Pressões liberalizantes e o protecionismo agrícola indiano: mecanismos de difusão de políticas públicas no âmbito da OMC

August 20, 2017 | Autor: Leandro Adriano | Categoria: India, Doha Round and FTA, World Trade Organization, Public Policy Theory
Share Embed


Descrição do Produto

2º Seminário de Relações Internacionais: Graduação e Pós-Graduação Os BRICS e as Transformações da Ordem Global João Pessoa – 28 e 29 de agosto de 2014

PRESSÕES LIBERALIZANTES E O PROTECIONISMO AGRÍCOLA INDIANO: MECANISMOS DE DIFUSÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS NO ÂMBITO DA OMC

Leandro Terra Adriano Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Área Temática

Governança e Instituições Internacionais Painel

Resistindo à ordem mundial econômico-comercial: o papel dos emergentes

2

Pressões liberalizantes e o protecionismo agrícola indiano: mecanismos de difusão de políticas públicas no âmbito da OMC

Leandro Terra Adriano1

Introdução

Após a dificuldade em se finalizarem as negociações da Rodada Uruguai no âmbito do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT – General Agreement on Tariffs and Trade) durante a década de 1990, as partes deram início à Rodada de Doha em 2001 - agora sob o âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC). Desde então, formaram-se agrupamentos de Estados antagônicos em questões como a extensão da abertura de mercados agrícolas. Ao rejeitarem a proposta apresentada em 2003 pelos Estados Unidos e a União Europeia, os países emergentes criaram o grupo do G20 (agrícola) e solicitaram que medidas de proteção e subsídio fossem reduzidas nos países desenvolvidos, mas toleradas nos países ainda em desenvolvimento. Sob a justificativa da proteção alimentar e econômica de sua grande população pobre e pequenos agricultores, a Índia encabeçou uma das contrapropostas mais voltadas para o protecionismo (CAMPOS, 2012), contrariando assim a sua postura de compromisso com a liberalização demonstrada na Rodada Uruguai e praticada em vários setores da indústria ao longo dos anos 1990 (OMC, 2011). O objetivo desse artigo é compreender porque houve essa mudança no posicionamento diplomático indiano através de ferramentas teóricas que buscam descrever o processo de difusão de políticas públicas, sendo tanto a liberalização quanto o protecionismo, dois tipos de políticas públicas sujeitas a serem disseminadas internacionalmente. Como nos lembra Priyadarshi (2004), muitos estados indianos são maiores em território e população do que vários membros da OMC, portanto é impossível submeter a autonomia de seus respectivos desdobramentos domésticos a uma suposta esfera superior que é o sistema internacional, mas curiosamente, os partidos federais e a burocracia estatal demonstram

1

Mestrando em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, vinculado à linha de pesquisa “Desenvolvimento e Desigualdades Internacionais” e bolsista da FAPEMIG; Bacharel em Relações Internacionais pelo Centro Universitário de Belo Horizonte (2012). Contato: [email protected] ou http://br.linkedin.com/in/leandroterra

3

grande capacidade de “afunilar” tão diversa miríade de preferências domésticas a posições monolíticas em foros multilaterais. Nossa análise levará em conta virtualmente todas as classes de instituições capazes de levar suas preferências ao resultado dos acordos comerciais firmados entre a Índia e os demais membros da OMC: partidos políticos, ministérios, associações de pequenos e grandes agricultores, grandes e médias potências estatais. Para evitar o grande prejuízo da falta de foco e objetividade ao lidar com tantos atores, apresentaremos construções teóricas a respeito dos processos decisórios e de difusão global de políticas públicas para conferir diferentes graus de importância a esses atores. Nesse momento, são feitas duas distinções: relevância disputada entre internacional e doméstico e entre atores domésticos. A primeira distinção é tratada teoricamente, onde após compreender a influência do externo à adoção de políticas públicas por parte de Estados com Dobbin, Simmons e Garret (2007), nos debruçamos sobre como atores sub estatais se articulam ao tentar alterar a política econômica externa de seus respectivos governos para alcançar resultados que dependem do cenário internacional com Cunha (2009), e por fim buscamos em Putnam (1988) um diálogo entre as duas esferas – externa e doméstica – e como se dá a pressão doméstica sofrida pelos negociadores ao representarem um Estado em negociações internacionais. Em uma segunda análise de caráter factual e empírico, revisamos a história partidária recente da democracia indiana em paralelo ao período que vai do final da Rodada Uruguai em 1994 até os últimos desdobramentos da Rodada de Doha em curso. Dialogando com os partidos políticos estão associações de agricultores (grandes e pequenos) e órgãos da burocracia como o Ministério do Comércio e Indústria e o Ministério da Agricultura. O caso do protecionismo agrícola indiano corrobora de forma contundente as abordagens teóricas que privilegiam o nível doméstico pois após analisarmos as diferentes influências na questão comercial, encontramos não nas grandes e médias potências internacionais ou nos partidos políticos, mas na crescente participação do Ministério da Agricultura nas negociações diplomáticas a partir do início da Rodada de Doha, a mudança fundamental para as restrições apresentadas pela Índia à liberalização dos mercados (GUPTA, 2004; PRIYADARSHI, 2004), o que resolve as duas distinções perseguidas: no caso indiano, o doméstico tem prevalência sobre o internacional, e entre as instituições domésticas, a demanda social por segurança alimentar e proteção comercial ao pequeno agricultor conquistou um papel determinante ao ser levada pelo Ministério da Agricultura ao âmbito da OMC. Contudo, as constantes mudanças no cenário político indiano – como a eleição do Primeiro Ministro Narendra Modi esse ano – podem impor novas pressões liberalizantes ao Ministério da Agricultura e assim trazer novas possibilidades à Rodada de Doha.

4

Protecionismo agrícola e segurança alimentar na Índia: questões partidárias

Compreender as pressões sociais e as instituições democráticas de um país com as dimensões da Índia não é tarefa trivial. A democracia mais populosa entre as nações também concentra expressiva parcela da pobreza mundial2, e ao mesmo tempo, foi um dos países que encabeçou as cifras de crescimento econômico durante a primeira década do século XXI, ao lado daqueles que ficaram conhecidos como BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).3 A participação da Índia na OMC indica um franco compromisso do país com o crescimento do comércio global através da abertura de mercados, ao mesmo tempo, o liberalismo econômico jamais foi um consenso entre os partidos que disputam o comando de tão diversa democracia.4 No início da Rodada de Doha, em 2001, a Índia era governada por uma coalização multipartidária liderada pelo partido Bharatiya Janata, a Aliança Nacional Democrática (NDA – National Democratic Alliance). Sendo uma democracia parlamentar, o Poder Executivo indiano é intimamente dependente da composição do Poder Legislativo, e durante toda a história da participação da Índia nas negociações a respeito das regras comerciais globais o país foi governado por uma sensível sucessão de coalizões multipartidárias. A NDA, de tendências sociais conservadoras e mais propícia ao liberalismo econômico, governou a Índia de 1998 a 20045, dando lugar à Aliança Progressiva Unida (UPA - United Progressive Alliance) que permaneceu no poder durante dois mandatos seguidos, de 2005 a 2014, cedendo o lugar de volta à NDA a partir de maio de 2014, sob a representação de Narendra Modi como Primeiro Ministro. O discurso oficial da UPA, liderada pelo partido do Congresso Nacional Indiano (INC - Indian National Congress)6, tende a ser mais socialmente orientado e tal posicionamento se fez perceber claramente no comportamento da Índia ao buscar uma agenda própria para os países em desenvolvimento durante os anos da Rodada de Doha, em detrimento dos vários compromissos liberalizantes assumidos com a conclusão da Rodada Uruguai, em 1994. A questão ideológica no sistema partidário indiano é complexa e pouco útil 2

A Índia é um dos países mais populosos do mundo, registrando 1,237 bilhões de habitantes em 2012, sendo que 68,4% dessa população vive em zona rural. Em 2011, 32,7% dos habitantes estavam abaixo da linha internacional da pobreza, com renda inferior a US$ 1,25 (UNICEF, 2014). 3 O marcante ponto em comum entre os países que ficaram conhecidos como o BRICS é o crescimento do PIB dessas nações durante a década de 2000. Os “recordes” de crescimento em relação ao ano anterior, dessa década, foram: Índia com 18,3% em 2010; Brasil com 7,5% em 2010; China com 14,2% de 2007; Rússia com 10% em 2000; África do Sul com 5,6% em 2006 (STATISTICS SOUTH AFRICA, 2013). 4 A Índia é um membro da OMC desde a sua fundação em 1º de janeiro de 1995 (OMC, 2014). 5 Nesse período o cargo de Primeiro Ministro foi ocupado por Shri. Atal Bihari Vajpayee, do partido Bharatiya Janata. 6 Dr. Manmohan Singh foi o Primeiro Ministro da Índia entre 2004 e 2014, encabeçando o partido Indian National Congress.

5

para a nossa análise, pois desde o final da década de 1980 a maioria das vitórias eleitorais foram atingidas através de coalizões multipartidárias que buscavam dar uma terceira opção à bipolaridade entre o INC e o Bharatiya Janata, como foi o caso da Frente Nacional (National Front) durante 1989 e 1991, liderada pelo Janata Dal e dependente do apoio tanto do Partido Comunista da Índia (marxista) quanto do Bhratiya Janata (centro direita). Entre 1991 e 1994 o INC – o mesmo partido que liderou a UPA entre 2004 e 2014 e esteve na linha de frente do endurecimento da Índia na Rodada de Doha - assumiu a liderança através Primeiro Ministro P. V. Narasimha Rao e seu caráter social teve pouca influência sobre o Ministério do Comércio e da Indústria (PRIYADARSHI, 2004). Sendo assim, os diferentes posicionamentos da Índia na Rodada Uruguai e em seguida na Rodada de Doha parecem ter pouca relação com as questões ideológicas dos partidos mais próximos ao poder. Na Índia, proteção social significa, largamente, lidar com uma imensa população de pequenos agricultores e famílias em situação de pobreza ou miséria em uma zona de insegurança alimentar. Tal demanda não é recente e desde 1964 há uma lei que estabelece a Food Corporation of India (FCI) que tem como objetivo: “(i) Effective price support operations for safeguarding the interests of the farmers; (ii) Distribution of foodgrains throughout the country for public distribution system; (iii) Maintaining satisfactory level of operational and buffer stocks of foodgrains to ensure National Food Security” (FCI, 2014).7 Através de um preço mínimo de apoio, o governo federal e os entes federados compram a produção de trigo e arroz dos pequenos agricultores, produção que, por sua vez, é redistribuída às camadas mais pobres da população. Esse subsídio socialmente orientado tem um forte efeito sobre as exportações e importações agrícolas indianas: o maior produtor agrícola do mundo limita a sua produção a cereais em detrimento de outras culturas como feijão e lentilha, obrigando-o a incorrer em caras importações, além de dirigir grande parte de sua produção ao mercado interno, perdendo oportunidades comerciais em mercados externos (GOPNATH, 2013). A questão da segurança alimentar é inescapável a qualquer coalização que ocupe o governo, mas os subsídios estatais aos agricultores oferecidos pelo mandato da UPA em 2012 e 2013 foi superior em três vezes e meia àquela oferecida pelo mandato da NDA no biênio de 2003 e 2004 (UPA, 2014). Veremos a seguir como essa política doméstica encontrou uma transposição coerente na política econômica externa por parte do governo indiano.

7 Tradução livre: “(i) Operações eficazes de apoio aos preços para salvaguardar os interesses dos agricultores; (ii) Distribuição de grãos alimentícios em todo o país para o sistema de distribuição pública; (iii) A manutenção de um nível satisfatório de ações operacionais e reservas de grãos alimentícios para garantir a Segurança Alimentar Nacional.”

6

Atores, posições e resultados

A posição indiana nas negociações no âmbito da OMC sofreu significativas alterações entre a Rodada Uruguai e a Rodada de Doha. Os compromissos assumidos no sentido da abertura de mercados desde 1991 trouxeram resultados (GUPTA, 2004) e não seria correto dizer que a Índia não internalizou os objetivos da OMC, pois é natural que uma agenda tão ampla como a das regras do comércio internacional resultasse em negociações lentas e pontos de discordância entre as partes (CAMPOS, 2008), conforme veremos a seguir no caso da agenda agrícola e as diferentes posições dos atores domésticos indianos, dos países desenvolvidos e dos em desenvolvimento. Herdeiro de um passado socialista, o governo indiano tomou medidas liberalizantes desde o início dos anos 1990, concomitantemente com a sua participação na Rodada Uruguai do GATT, chegando inclusive a cumprir certos compromissos antes do fim dos prazos negociados. A economia foi aberta, tanto domesticamente, permitindo assim a competição das firmas, quanto externamente, com a remoção a de barreiras tarifárias e não tarifárias, gerando assim um maior fluxo comercial e atração de investimento estrangeiro. O índice tarifário mais alto para importações (peak tariff rate) sofreu uma drástica redução, saindo de 355% em 1990 e alcançando 35% em 2002. Até mesmo no setor agrícola houve certa liberalização e consequente resultado comercial: as exportações do biênio de 1996-1997 alcançaram 7 bilhões de dólares em detrimento dos 3,2 bilhões de 1992-1993, caindo para 5,5 bilhões em 1999-2000 (provavelmente devido à queda generalizada dos preços globais de commodities no período). Entre 1996 e 2000, o valor das importações agrícolas cresceu em 80% (GUPTA, 2004). Tais resultados eram esperados pelos representantes do governo indiano após o final da Rodada Uruguai, mas para compreender a retração da Índia mais tarde na Rodada de Doha, é necessário elencar outros atores dentro do processo democrático desse país. Os fazendeiros de horti e floricultura se beneficiaram das oportunidades de exportação, e ao lado de outros setores da agricultura com capacidade para competir no mercado externo, vocalizaram os seus interesses de forma organizada e institucional, como fez a associação Shetkari Sangathana ao defender que os fazendeiros indianos fossem “libertados” de todas as barreiras de importação e exportação. Fazendeiros ricos e também os de médio porte alcançaram grande representatividade institucional através dos partidos e dos sindicatos. Todos os partidos indianos, federais ou estatais, são comprometidos com questões agrícolas, uma vez que a grande maioria dos membros dos parlamentos são provenientes de áreas

7

rurais, sendo que, alguns partidos são integralmente dedicados à agenda dos fazendeiros, como o Akali Dal e o Rashtriya Lok Dal (GUPTA, 2004). Entre os pequenos agricultores, podemos destacar dois grupos: os produtores de grãos (arroz e trigo) que comercializam somente para o mercado doméstico e, portanto, demandam proteção do governo, e os produtores de culturas exportáveis, mas que também demandam proteção devido à falta de infraestrutura do país, tornando os custos de exportação muito altos. A demanda por proteção comercial rapidamente se tornou uma apologia contra o regime de comércio internacional. Segundo a Karnatka State Farmers’ Association: “The developed world wants to convert the region into a global trade region so that they can dump their surplus production”8 (GUPTA, 2004). Os sindicatos que representam os pequenos agricultores conquistaram grande influência sobre a burocracia governamental, chegando diretamente ao Poder Executivo. Os burocratas dos ministérios (especialmente da Agricultura) cumprem um papel de guardiões da segurança alimentar e da subsistência dos pequenos agricultores, alertando as demais esferas do governo sobre o iminente backlash e estresse popular caso tal agenda não seja tratada com prioridade. A ascensão da UPA (coalização de orientação social) ao poder em 2004 está intimamente ligada a essa inclinação da burocracia estatal às reivindicações do grande contingente de pequenos agricultores (GUPTA, 2004). Dentro dessa burocracia, os interesses liberais eram promovidos pela Divisão de Política Comercial do Ministério do Comércio e Indústria. Tal divisão foi criticada pelo seu insulamento em relação aos demais ministérios durante a Rodada Uruguai. Para os grupos ligados à esquerda, a elite política (como o Parlamento) e outras partes interessadas como o Ministério da Agricultura não foram consultados nessa rodada de negociações e os compromissos liberalizantes assumidos e praticados durante os anos 1990 necessitavam de uma revisão durante a Rodada de Doha. Posteriormente, tal insulamento foi corrigido e a Divisão de Política Comercial passou a consultar um comitê composto por membros de outros ministérios e enviados do Parlamento. Essa mudança fomentou a posição defensiva da Índia, que em 15 de janeiro de 2001 apresentou uma proposta nas negociações de Doha que indicava a noção de que o comércio internacional é inerentemente desigual e os fazendeiros indianos não poderiam se beneficiar dele, tanto pela dificuldade em competir com os baixos preços oferecidos pelos países desenvolvidos, quanto pela baixa capacidade dos agricultores em lidar com um mercado dinâmico devido a problemas como a baixa escolaridade e outros problemas estruturais. Também é interessante ressaltar que não houve, exatamente, uma mudança do espírito liberal na Rodada Uruguai para o espírito protecionista na Rodada de Doha, entre os tomadores de decisão. Durante a década de 1990 o aparato governamental 8

Tradução livre: “O mundo desenvolvido quer converter a região em uma região de comércio global, para que possam despejar seu excedente de produção.”

8

nas mãos dos tomadores de decisão sofreu uma grande sofisticação e isso tornou os burocratas e políticos mais cautelosos e críticos em relação ao que já havia sido acordado no âmbito da OMC. Podemos dizer que a ameaça do comércio internacional à segurança alimentar não era tolerada, mas antes, ignorada (GUPTA, 2004). Nessa mesma época houve um claro reposicionamento dos países em desenvolvimento em relação aos Estados Unidos e a União Europeia, formando assim o G20 agrícola.9 A Índia, ao lado de países em desenvolvimento e com fortes interesses agrícolas, como o Brasil, incluiu em sua proposta de janeiro de 2001 a sua preocupação com os subsídios agrícolas praticados pelos países desenvolvidos, e talvez esse seja o maior entrave para as negociações a respeito desse setor. Tais subsídios levam à depreciação artificial dos preços das commodities agrícolas e fatalmente reduzem a renda dos pequenos agricultores no mundo em desenvolvimento (GUPTA, 2004; CAMPOS, 2012). Em suma, a posição revisada da Índia solicitava, entre outros pontos: maior flexibilidade para promover subsídios na agricultura voltados para o desenvolvimento rural; exceção dos países em desenvolvimento de compromissos que reduzam políticas de alívio à pobreza, diversificação da agricultura e desenvolvimento rural; isenção de compromissos de abertura mínima de mercados para países em desenvolvimento; redução de tarifas em países desenvolvidos; e eliminação de subsídios à exportação agrícola nos países desenvolvidos. O cenário se torna mais complexo quando consideramos que entre os países em desenvolvimento, não há consenso ou unidade absoluta de interesses. Entre eles, o Brasil faz um contraponto à Índia, ao defender um mercado agrícola aberto entre os países em desenvolvimento, uma vez que tem grande interesse em exportar para grandes consumidores como a China e a Índia.10 O Brasil é o membro da OMC que mais acionou o mecanismo de solução de controvérsias entre 1995 e 2007, em uma clara demonstração de defesa institucional dos seus exportadores agrícolas (AZEVÊDO, 2007), deixando claro que é um aliado da Índia no discurso que critica os subsídios praticados pelos países desenvolvidos e na

9

salvaguarda

dos

países

menos

desenvolvidos

(CAMPOS,

2008),

mas

não

O G20 dos países em desenvolvimento, ou G20 agrícola, foi criado em 20 de agosto de 2003 na ocasião da 5ª Conferência Ministerial da OMC. Sua formação conta com 23 países: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, China, Cuba, Equador, Egito, Guatemala, Índia, Indonésia, México, Nigéria, Paquistão, Paraguai, Peru, Filipinas, África do Sul, Tanzânia, Tailândia, Uruguai, Venezuela e Zimbábue (BRASIL, 2014). Não confundir com o G20 financeiro, grupo formado em 1999 e que reúne a elite do aparato financeiro de 19 países mais a União Europeia: África do Sul, Argentina, Brasil, México, Canadá, Estados Unidos, China, Japão, Coreia do Sul, Índia, Indonésia, Arábia Saudita, Turquia, Alemanha, França, Itália, Rússia, Reino Unido e Austrália (G20, 2014). 10 A África do Sul também possui interesses de exportação ao mercado interno da Índia (CAMPOS, 2012).

9

necessariamente tem interesse em medidas de proteção social e segurança alimentar como as implementadas na Índia (OMC, 2011; OMC, 2013). Partimos das engrenagens domésticas da Índia (partidos, governo e grupos de interesse) e a sua mudança de postura na definição de política econômica externa e consequente reivindicações na OMC a partir de 2001. Para chegarmos a uma conclusão sobre a coesão e permanência do protecionismo agrícola indiano, precisamos nos afastar de constatações empíricas a respeito de causas e efeitos domésticos ou internacionais, e eleger abordagens teóricas que distribuam o devido peso a cada uma dessas influências.

Difusão global de políticas públicas e os entraves domésticos

Ao observarmos o processo de liberalização e abertura da economia indiana e os seus respectivos contrapontos – especialmente no setor da agricultura, nos damos conta de dois pontos de vista. O primeiro, mais visível aos que se dedicam às relações internacionais, nos mostra o longo esforço de liberalização dos países em desenvolvimento empenhado pelos países desenvolvidos através das instituições de Bretton Woods.11 Essa abordagem insinua que uma organização intergovernamental como a OMC exerce agência sobre o Estado indiano, as vezes de forma unilateral, tendo assim o poder de alterar as políticas domésticas desse seu membro.12 Um segundo e não menos importante ponto de vista nos leva a encarar os acordos internacionais no âmbito da OMC como efeito, e não como causa de mudanças e preferências domésticas indianas. Isso não significa que o ambiente político doméstico indiano seja alheio ao sistema internacional, e muito menos que os acordos possíveis em foro multilateral sejam reduzidos a simples ferramentas dos grupos de interesse sub estatais.

11

O desenvolvimento econômico e social – com ênfase no primeiro – dos países periféricos entrou definitivamente para a agenda dos países desenvolvidos ao instituírem o Banco Mundial, o FMI e o GATT em 1944. Tais instituições nasceram orientadas por dois princípios: o de que o desenvolvimento das nações é uma peça fundamental da segurança internacional, e que o livre mercado é o meio mais eficiente para que se alcance o mesmo (SANTOS FILHO, 2005 apud CAMPOS, 2008). 12 Ao lidarem com o papel da OTAN nas Guerras do Afeganistão e Iraque pós 11/9, Fearon e Laitin (2004) esboçam um modelo teórico sobre a agência das organizações internacionais sob o molde neo realista. Os autores apontam nos grandes tratados multilaterais, como as coalizões militares, o papel de difusores de políticas públicas, como a democracia e o liberalismo, em Estados fracos e falhados. Termos como “neotutela” e “imperialismo pós-moderno” são utilizados, então, para descrever o fenômeno de domínio e liderança das grandes potências sobre os demais Estados de forma indireta, ou seja, através das organizações internacionais. Não nos parece, porém, uma abordagem teórica apurada o suficiente para levar em conta a contundente agência e autonomia de potências médias como a Índia e o papel das suas instituições domésticas, nos fazendo buscar embasamento teórico na Ciência Política como um todo, e não somente nas Relações Internacionais.

10

Simplesmente implica que a participação da Índia na OMC, e de qualquer outro Estado, é voluntária e carregada de interesses domésticos consoantes à matéria dessa organização, que é multiplicar o comércio internacional através da abertura de mercados domésticos. Os dois pontos de vista são embasados por ricas contribuições teóricas tanto da disciplina de Relações Internacionais quanto de outros campos da Ciência Política, como o estudo das Políticas Públicas. Existem também tentativas de construção de um modelo teórico que concilie a agência externa com a agência doméstica, especialmente na tradição liberalista das Relações Internacionais, que serão exploradas a seguir. Nos parece útil e contundente que a análise do protecionismo agrícola indiano e sua repercussão internacional seja analisada por abordagens do segundo tipo (preferências domésticas como agentes nos acordos internacionais), porém sem perder de vista a importância das pressões externas. Para tanto, serão apresentados três trabalhos teóricos que tratam do processo decisório em política doméstica e externa enfatizando o diálogo das instituições estatais e sub estatais com agentes externos (Estados, tratados, organizações internacionais e outras instituições menos ou nada formais). Trataremos das (i) vias globais em que as políticas públicas podem ser difundidas em ambientes domésticos (DOBBIN, SIMMONS e GARRET, 2007), (ii) de como as preferências domésticas se organizam para atingir seus interesses em decisões de política econômica externa (CUNHA, 2009), e (iii) como os acordos internacionais constituem um intricado jogo de dois níveis, o doméstico e o externo (PUTNAM, 1988). Ao final dessa sessão, daremos o devido peso de cada abordagem à análise do que leva a Índia a proteger a sua agricultura dos mercados externos.

As quatro vias de difusão global de políticas públicas

Dobbin, Simmons e Garrett (2007) apontam o recente interesse acadêmico na disseminação de políticas públicas13 entre nações e faz uma revisão bibliográfica de quatro vertentes de pesquisa a esse respeito, assim pontuadas: Construção Social; Coerção; Competição Econômica; e Aprendizado. O objetivo dos autores nesse artigo é distinguir entre os vários possíveis mecanismos causais de disseminação de políticas públicas. Sem eleger um modelo 13

Segundo Laswell (apud SOUZA, 2006), “decisões e análises sobre política pública implicam responder às seguintes questões: quem ganha o quê, por quê e que diferença faz. Em Dobbin, Simmons e Garrett (2007), alguns exemplos recorrentes de políticas públicas difundidas internacionalmente são as reduções de tarifas de importação, leis de proteção aos Direitos das Mulheres, privatização de empresas públicas, o Estado nação territorial (Tratado de Vestefália em 1648) e a democracia participativa (Revoluções Francesa e Americana).

11

preferido e sem trabalharem no sentido de criar um modelo congruente às quatro vertentes, os autores entendem que a produção acadêmica compilada se baseia exclusivamente em pesquisa empírica, e não em modelos teóricos, que seriam mais desejáveis para a evolução do campo dentro das Ciências Políticas (DOBBIN, SIMMONS e GARRET, 2007). Apesar dessa crítica, consideramos tal revisão bibliográfica útil ao estudo da presente matéria pois nos apresentam uma série de situações empíricas em que uma política pública foi difundida entre nações, e entre elas, os estudos sobre difusão por Competição Econômica se aproximam muito do caso de protecionismo agrícola mantido pelo governo indiano. A seguir, analisaremos em maior detalhe as quatro vias de difusão separando-as entre aquelas que levam a mudanças institucionais através de incentivos ou através de ideias, seguindo a importante distinção feita pelos autores do artigo. As políticas difundidas por ideias são aquelas que ocasionam mudanças voluntárias através de um processo pouco ou nada pragmático de adoção de diferentes crenças e teorias por parte dos tomadores de decisão. Na vertente da Construção Social (ou Construtivista), o processo que leva à difusão global de uma política pública é repleto de agentes intermediários que comunicam e compartilham o seu entendimento sobre determinada matéria que antecedem a tomada de decisões práticas em suas esferas.14 Essa disseminação de ideias ocorre pelo contato social entre governantes, professores, pesquisadores e a opinião pública e antecedem a construção pessoal de crenças e interesses de um tomador de decisão. Essa vertente tende a conferir aos tomadores de decisões um caráter menos racional, uma vez que a escolha das políticas adotadas podem ser baseadas em manias, exemplos reverenciados, ou teorias abstratas, ao invés de teorias sólidas.15 Fazendo eco ao caráter estadocêntrico da sociedade internacional de Hedley Bull, os construtivistas consideram o Estado como principal vetor de difusão de ideias, e consequentemente, políticas públicas. As pesquisas nesse sentido são, entretanto, concentradas em compreender como certas ideias são aceitas, antes de se transformarem em políticas concretas (DOBBIN, SIMMONS e GARRET, 2007). A aceitação social a respeito de uma política pública pode ocorrer através do exemplo de países líderes (“cópia ritualística”), através do consenso de vários especialistas a respeito de uma teoria que fundamente a política ou a respeito da contundência da política perante a uma situação específica. O liberalismo econômico é considerado como um conjunto de políticas

14

Na política global, os indivíduos, organizações e Estados nação substituíram os clãs, a Cidade estado, os feudos, enquanto objetivos como o crescimento econômico e a justiça social substituíram a conquista territorial e a Salvação Eterna (DOBBIN, SIMMONS e GARRET, 2007). 15 Houve uma rápida difusão global de políticas educacionais após a Segunda Guerra Mundial, mesmo no mundo em desenvolvimento que ainda não estava estruturado para aplicá-las. Esse pode ser considerado um exemplo de adoção de políticas públicas por socialização e imitação, e não por um cálculo racional apropriado para a realidade doméstica de determinada nação (DOBBIN, SIMMONS e GARRET, 2007).

12

difundidas através de uma ampla “onda” de aceitação social após a vitória dos aliados na Segunda Guerra Mundial, a longa expansão do poder americano durante o século XX, e o enfraquecimento dos modelos econômicos intervencionistas da Alemanha e do Japão, além do desenlace da experiência comunista. No caso indiano, o liberalismo econômico não é estranho ao mercado doméstico, beneficiou vários setores - como os serviços de telecomunicação – e é tido como uma meta para os demais setores, sendo que a própria participação da Índia na OMC indica um interesse voluntário em integrar o mercado global (OMC, 2011). O desafio que o caso indiano traz à abordagem construtivista é o fato de que os diferentes setores econômicos do país internalizam a ideia da abertura de mercado de formas distintas. A onda do liberalismo não foi bem aceita pelos pequenos e médios agricultores, e a própria OMC é vista como um agente externo imperialista (CAMPOS, 2008). As políticas difundidas por incentivos são aquelas adotadas a partir da reação de um Estado a oportunidades e ameaças externas. Na vertente que trata do fenômeno da Coerção, há uma pressão unilateral por parte de um ou mais Estados, organização internacional, ou organização não governamental sobre determinados “alvos” através do uso da força16, manipulação de custos e benefícios econômicos, e o monopólio de informações e expertise. Sempre que um Estado ou organização financeira internacional aplica condicionalidades a um Estado que receberá empréstimos ou ajuda de outra classe, o Estado receptor recebe um incentivo (coercitivo) para alterar sua malha de políticas públicas e provavelmente o fará mesmo que tal mudança não reflita interesses nacionais estabelecidos anteriormente. Credores e doares geralmente difundem políticas alinhadas aos seus interesses, e experiências passadas nos mostram que condicionalidades aplicadas por organizações financeiras internacionais raramente são eficazes, tanto para desenvolver um país, quanto para preservar a estabilidade e os investimentos dos países doadores, como os ajustes estruturais exigidos pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) aos países em desenvolvimento na década de 1980. Por outro lado, certas imposições unilaterais são úteis aos interesses privados dos governantes dos países coagidos, e por isso, eficazes aos agentes coatores (DOBBIN, SIMMONS e GARRET, 2007). Essa última observação tem especial valor para a análise do caso indiano, pois as instituições domésticas da Índia não são homogêneas e existem setores do Poder Executivo indiano que possuem interesse em maior liberalização do mercado agrícola e na legitimidade das

16

Dobbin, Simmons e Garrett (2007) excluem as mudanças ocasionadas pelo uso ou ameaça de uso da força da categoria de difusão de política pública. Para os autores, quando a decisão de alterar uma política pública não é voluntária, o fenômeno não pertence à ordem da difusão global. Dessa forma, o artigo citado não trata da força militar como mecanismo de difusão, mas de outras formas de coerção: persuasão, empréstimos, condicionalidades para ajuda internacional e escolhas unilaterais de política doméstica por parte de um Estado influente.

13

negociações no âmbito da OMC. Entretanto, um contraponto nos alerta de que a natureza da OMC, no que diz respeito ao poder de coação, é muito distinta daquele do Banco Mundial e do FMI. A OMC não impõe condicionalidades, todas as mudanças institucionais provenientes das rodadas de negociação desse foro são carregadas de uma legitimidade multilateral, ou seja, nenhuma decisão será imposta à Índia se os próprios negociadores indianos não concordarem com tal medida (CAMPOS, 2008). Outra forma menos óbvia de criar incentivos através da Coerção e atingir a mudança de uma política pública em outros Estados, é o ato de assumir liderança política em determinado tema. Quando um Estado altera o seu próprio status quo, automaticamente gera efeitos aos demais e isso ocasiona incentivos para eles também efetuem alguma mudança doméstica.17 O primeiro Estado a agir sempre terá vantagens e a ação unilateral pode ser necessária para resolver problemas de coordenação (DOBBIN, SIMMONS e GARRET, 2007). Os efeitos da liderança política, ou “primeiro movimento”, são muito similares aos incentivos que levam à Competição Econômica, mas nesses casos, os competidores diretos importam mais a um Estado do que os movimentos das grandes potências. Os mercados domésticos competem por capital (através de investimento externo direto) e por mercados de exportação (através da abertura econômica), logo, os governos tem poucas escolhas além de adotar políticas liberais. Entre os países em desenvolvimento, ocorre uma race to the bottom, ou seja, uma competição pela liberalização de seus respectivos mercados em detrimento de salvaguardas importantes para a sociedade como a proteção social e as legislações trabalhistas18, sendo que a adoção súbita da abertura de mercados geralmente tem (somente) efeitos de curto prazo na competição comercial em que o Estado participa (DOBBIN, SIMMONS e GARRET, 2007). Entre as vertentes reunidas pelos autores, acreditamos que a difusão devido à Competição Econômica é a mais útil ao estudo do caso de proteção agrícola indiano, não somente por ser menos generalista e tratar diretamente de economia política, mas porque é a vertente que melhor se aproxima da construção de um modelo teórico útil para compreender a posição de um Estado perante os seus vizinhos e a economia global (ou a geopolítica, ou na rede de difusão de ideias e crenças). Analisar a mudança de política pública de um Estado por conta de um incentivo externo nos ajuda a esclarecer quais são as arenas políticas salientes ao mesmo, e através disso, identificar quem são os parceiros comerciais (ou militares, ou 17

Um bom exemplo é a adesão do México ao NAFTA (North American Free Trade Agreement) em 1992, antes da entrada em vigor do acordo em 1994 (DOBBIN, SIMMONS e GARRET, 2007). A atitude do México pode ser considerada como uma reação ao incentivo criado pelos EUA e pelo Canadá quando começaram a esboçar o acordo em 1988. Obviamente, o México entendeu que teria prejuízos econômicos se ficasse de fora do bloco norte americano. 18 Existe uma correlação entre a maior integração de um Estado no mercado global e a crescente demanda doméstica por políticas sociais. Da mesma forma, com a crescente mobilidade de pessoas e capital, Estados estão se tornando cada vez mais homogêneos uma vez que as populações toleram cada vez menos políticas impopulares (DOBBIN, SIMMONS e GARRET, 2007).

14

ideológicos) disputados, e quem são os seus concorrentes. O que a insistência da Índia em proteger o seu mercado agrícola nos ensina sobre a sua relação com os seus vizinhos, os países do G20 e os países desenvolvidos? O que os setores governamentais e privados da Índia estão de fato disputando no ambiente externo e quem são os seus concorrentes? Para responder a essas perguntas, é necessário compreender melhor como o interesse nacional da Índia é construído e levado às negociações da OMC, e, portanto, versaremos agora sobre ferramentas teóricas mais apropriadas ao entendimento do comportamento dos grupos de interesse domésticos em relação à política externa.

Interesse e preferências domésticas na construção da política econômica externa

As pesquisas empíricas a respeito da difusão global de políticas públicas nos levam a uma análise estadocêntrica e com tendências a subestimar a agência dos atores domésticos, especialmente os heterogêneos grupos de interesse sub estatais, em detrimento da forte influência exercida por grandes potências e suas respectivas hegemonias. Em Cunha (2009), podemos encontrar elencados importantes desenvolvimentos teóricos a respeito da influência desses grupos de interesse no processo decisório em política econômica externa, e como as instituições governamentais podem ser mais ou menos suscetíveis à influência dos mesmos. Se o sistema internacional possui a agência de recompensar e punir os diferentes comportamentos dos Estados, não há motivo para subestimar o fato de que os grupos domésticos politicamente organizados também possuem o mesmo poder sobre os seus respectivos governos nacionais. Tais grupos – associações comerciais e industriais, partidos políticos, think tanks, organizações não governamentais, movimentos sociais, etc. – possuem interesses específicos e de acordo com os seus recursos políticos, traduzem esses interesses em preferências na política externa, ou seja, o resultado das negociações diplomáticas que mais atendem aos seus interesses (CUNHA, 2009). Existem dois modelos teóricos para a construção de preferências em política econômica externa pelos grupos de interesse domésticos: fatorial e setorial, baseados, respectivamente, nos modelos de comércio internacional Heckscher-Ohlin e Ricardo-Viner. Esses modelos traçam uma correlação das preferências de determinados atores da indústria e do comércio a políticas liberalizantes ou de proteção em função do efeito das mesmas em suas rendas. O modelo fatorial distingue entre as preferências daqueles que detém os fatores de produção (trabalhador, empresário e proprietário de terra) a despeito do setor da economia que

15

integram. Esse modelo prevê que as clivagens em torno da adoção de medidas protecionistas ou liberalizantes se darão entre os detentores dos fatores de produção de acordo com a escassez, abundância e mobilidade de cada fator perante a entrada de produtos e competidores estrangeiros (por exemplo: trabalhador versus empresário e proprietário de terra gerariam um conflito de classe, enquanto trabalhador e empresário versus proprietário de terra gerariam um conflite urbano-rural). O modelo setorial considera que nas economias modernas a mobilidade dos fatores de produção é limitada e, portanto, as clivagens ocorrerão entre os setores e não entre os detentores dos fatores (por exemplo, agricultores versus industriais, industriais versus varejistas, etc.) (CUNHA, 2009). Sem prejuízo da relevância do modelo setorial, nos parece mais adequado adotar o modelo fatorial no caso indiano. É fato que, ao menos no discurso adotado pelas referências empíricas utilizadas nesse estudo, o protecionismo comercial indiano é uma demanda de um setor específico – os pequenos e talvez médios agricultores – em detrimento de quase todos os outros setores da economia, inclusive os grandes agricultores. Contudo, se considerarmos a agricultura de subsistência e o agronegócio como o mesmo setor, o modelo fatorial assume prevalência, pois fica clara preferência dos pequenos proprietários de terra (que as cultivam para alcançar renda) pelo protecionismo em detrimento dos grandes agricultores. O primeiro grupo sofre da falta de mobilidade entre os setores da economia e fatalmente terão sua renda reduzida se o mercado se abrir, enquanto o segundo grupo possui tanto a capacidade de sofisticarem o seu capital produtivo e competirem com as importações, quanto para alçar exportações a novos mercados externos (e em último caso possuem poupança para investir em outros setores da economia, caso o empreendimento do agronegócio falhe perante o mercado global). Como esse ensaio se apoia na atenção do governo indiano despendida entre classes sociais de sua economia doméstica ao negociar na OMC, o modelo fatorial terá participação no raciocínio subsequente. Quando falamos de uma certa atenção despendida pelo governo a grupos domésticos, queremos dizer que as preferências desses grupos não é o suficiente para influenciar as decisões de política externa. Os diferentes grupos buscam informar o governo de suas preferências e atuam em suas instituições na forma de lobby, mas a essa altura, o desenho institucional dos diferentes braços do governo também exerce agência sobre o processo decisório. Em suma, as instituições governamentais (o Ministério de Relações Exteriores, o Ministério da Agricultura, a Câmara de Deputados, etc.) são mais ou menos permeáveis às preferências de grupos de interesse domésticos. Quanto maior o insulamento do burocrata tomador de decisões, ou seja, quanto menor a sua necessidade de atender às pressões políticas de grupos de interesse, maior será a relevância do seu conjunto de crenças pessoais para a decisão que será tomada. Representantes do Poder Legislativo e dos cargos mais

16

salientes do Executivo, por outro lado, são muito dependentes da aprovação dos setores da sociedade que o elegeram, e, portanto, são alvos fáceis de lobbies e pressões domésticas em geral (CUNHA, 2009). No início da Rodada de Doha, o poder de negociar na OMC deixou de ser exclusividade da quase isolada Divisão de Política Comercial (do Ministério de Comércio e Indústria) e passou a ser compartilhada por outras instâncias burocráticas mais permeáveis aos movimentos sociais, como o Ministério da Agricultura (GUPTA, 2004). Tendo em mãos tantos modelos de difusão global de políticas públicas quanto modelos de formação de preferências domésticas em temas de economia política, podemos agora compreender a terceira e última peça do raciocínio: o mecanismo de interdependência entre o ambiente externo e o doméstico em uma negociação internacional.

Putnam e o jogo de dois níveis

A tradição liberalista das Relações Internacionais nos parece a mais próxima de questões como relações transnacionais de grupos domésticos e processos de cooperação e coordenação em foro multilateral, ou seja, justamente aquilo que precisamos tratar quando falamos do protecionismo agrícola indiano. Nessa seara, o artigo “Diplomacy and Domestic Politics: The Logic of Two-Level Games”, publicado por Robert Putnam em 1988, contribui para a nossa tentativa de compreender os mecanismos que levam um interesse doméstico da Índia a influir nos resultados das negociações no âmbito da OMC. Em suma, Putnam aponta para uma tendência dos negociadores internacionais, quando representantes de governos nacionais, em legitimar previamente em âmbito doméstico as cartas que levarão à mesa internacional. Todo avanço ou acordo feito no Nível I (internacional) é inválido se os atores influentes no Nível II (doméstico) não aprovarem tal medida antes, durante e até depois das negociações. Como atores influentes, entendemos, principalmente, o Poder Legislativo e o seu poder de ratificação dos acordos internacionais, mas também podemos considerar grandes sindicatos, associações empresariais e membros do Poder Executivo devido ao seu poder de manobra através de instituições democráticas e arranjos burocráticos (PUTNAM, 1988). O conceito mais valioso desse artigo é o de win-set. Do ponto de vista do negociador, quanto maior a congruência de interesses dos distintos atores que integram o Nível II, maior as suas opções para fechar um acordo no Nível I. O win-set também se expande quando um ator do Nível I é indiferente às preferências de outros atores em assuntos específicos, reduzindo os

17

“becos sem saída” que podem surgir para um negociador quando as preferências de suas partes no Nível II são intrincadas e incompatíveis. Ainda assim, um win-set muito grande também pode trazer problemas ao negociador no Nível I, pois virtualmente, qualquer acordo pode ser atingido com ele e essa informação será explorada por suas partes, mas na prática, os win-sets são limitados e os negociadores do Nível I buscam colaborar para que suas partes tenham sucesso em seus respectivos Níveis II e consigam assinar um acordo (PUTNAM, 1988). Como outros teóricos assinalaram mais tarde, os grupos de interesse domésticos são capazes de se relacionar transnacionalmente com governos e grupos domésticos de outros Estados e perseguir a sua agenda de preferências sem depender somente do seu respectivo governo – embora também se esforce expressivamente nesse sentido (MORAVCSIK, 1997). O jogo de dois níveis de Putnam (1988) reconhece essa possibilidade, mas confere maior poder aos negociadores estatais e o processo de tomada de decisões durante uma rodada de negociações internacionais. Essa escolha é compatível com a sucessão de modelos teóricos que buscamos compreender nessa sessão: (i), em um primeiro momento, há um processo de difusão de políticas globais que influenciam, invariavelmente, as políticas disponíveis a cada Estado, mesmo que essa influência seja no sentido de recusar a pressão externa; (ii) em seguida, cientes dos riscos e oportunidades oferecidos pelo ambiente internacional e suas respectivas opções de política externa para combatê-los ou aproveitá-las, os grupos de interesse se organizam politicamente para influenciar o processo de tomada de decisão executado pelo governo; (iii) e finalmente, cada governo é obrigado a levar em consideração tais pressões domésticas ao negociar acordos internacionais e aplicar as mudanças de política pública decorrentes dos mesmos. Em relação ao caso indiano, apesar de reconhecermos um intenso equilíbrio de forças entre os ambientes externo e doméstico, daremos um peso menor ao “determinismo sistêmico” dos modelos de difusão global de políticas públicas e um peso maior às preferências, limites e barreiras domésticas. Apesar disso, o poder dos grupos domésticos não é sempre eficaz em perseguir suas tão diversas agendas, e isso é evidenciado pelas restrições que a burocracia estatal é capaz de impor aos interesses setoriais, sendo inclusive autônoma em vários processos decisórios. Tanto Cunha (2009), quanto Putnam (1988) reconhecem o papel restritivo e seletivo do Estado e isso é evidente na forma como o governo indiano foi capaz de canalizar a preocupação com os pequenos agricultores e com a segurança alimentar do país nas negociações da Rodada de Doha, mesmo sem intencionar o abandono ao compromisso liberalizante da OMC.

18

Conclusão

Esse ensaio lida com inferências diametralmente opostas tanto no campo teórico quanto no empírico. Existem teorias, modelos e esboços de modelos que conferem maior (ou toda) relevância a pressões externas – convencionadas como “sistêmicas” – ao tentarem explicar mudanças institucionais domésticas. O mainstream das teorias de Relações Internacionais é unânime ao ignorar ou conferir pouca relevância aos desdobramentos domésticos e sua agência sobre a definição de política externa dos Estados, e, portanto, foram pouco utilizados nesse estudo. A revisão bibliográfica oferecida por Dobbin, Simmons e Garret (2007) apresenta uma série de estudos empíricos que, mesmo tendo como objetivo a adoção de políticas públicas no âmbito doméstico, podem ser enquadrados ao lado dessas teorias de Relações Internacionais, ao submeterem as mudanças institucionais à pressão exercida por grandes potências, teorias bem validadas e o comportamento de concorrentes comerciais externos. Tais abordagens nos pareceram fracas ao depararem-se com o caso do protecionismo agrícola indiano, que conforme foi analisado, pode ser explicado de forma satisfatória através de uma análise voltada quase que inteiramente às preferências domésticas, submetendo as possibilidades do sistema internacional a meios disponíveis para os fins de grupos como partidos políticos, associações comerciais e movimentos sociais. À primeira vista, a fragilidade do pequeno agricultor indiano e de outras camadas dependentes dos programas de segurança alimentar do governo criam uma imensa demanda política aos partidos políticos e burocracia estatal, que refletem tal pressão externamente ao imporem restrições ao longo processo liberalizante no âmbito da OMC. A situação dessa grande parcela da população indiana (que soma também uma significativa parcela da população mundial) parece exercer uma agência irresistível aos partidos e coalizações que os representam, uniformizando-os no campo social, e anulando assim a influência externa de grandes potências como os Estados Unidos e a União Europeia e também de outras potências emergentes como o Brasil. Concluímos que os modelos teóricos e outros estudos empíricos que subordinam a política internacional à política doméstica encontram corroboração no caso indiano. Apesar dessa primeira conclusão, ainda não é certo que as coalizações multipartidárias que revezam entre si o governo indiano há duas décadas não possuam agência própria e poder de mudança. O subsídio agrícola e o programa de segurança alimentar indianos são mais antigos e paralelos a todos os momentos das negociações na OMC, e podemos dizer que, no máximo, pode haver uma variação no volume de investimentos como houve durante o último governo da UPA que foi significativamente maior do que o período predecessor sob a NDA.

19

O próximo passo seria acompanhar o tratamento dado pelo novo mandato da NDA através de Narendra Modi à expansão das políticas sociais efetuadas durante o período de Manmohan Singh. Uma vez que é óbvia a heterogeneidade de interesses privados e partidários na Índia, e as coalizões democráticas representam o oposto de uma cultura política monolítica, o recém iniciado governo da NDA possui meios para alterar a posição da Índia nas futuras negociações na OMC para algo mais conciliatório e liberalizante, porém com grandes limites. A mudança chave para o aumento do protecionismo agrícola indiano não foi uma questão partidária, mas um movimento de dentro da burocracia estatal que veio do Ministério da Agricultura, e é esse Ministério que deve ser antagonizado pelos interesses dos grandes agricultores e pela centro direita indiana. Sendo assim, o aparente “beco sem saída” que a Rodada de Doha enfrenta desde 2008 não pode culpar a Índia por ser um negociador com o mais restrito win-set, pois da mesma forma que suas mudanças domésticas chegaram ao ponto da salvaguarda alimentar e agrícola, o caminho inverso pode ser feito em direção às preferências liberalizantes que existem em larga escala dentro do próprio país.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZEVÊDO, Roberto. Contenciosos agrícolas na OMC. em: BAPTISTA, Luiz O. CELLI JUNIOR, Umberto. YANOVICH, Alan. (org.) 10 anos de OMC: Uma análise do Sistema de Solução de Controvérsias e Perspectivas. São Paulo: Aduaneiras, 2007, 284 pp. CAMPOS, Taiane L. C. A Rodada de Doha: dificuldades e avanços nas negociações agrícolas entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Análise de Conjuntura, Rio de Janeiro, n. 11, 2008. __________________. . "Conexão entre o Doméstico e o Internacional: Interesses e Estratégias do Brasil e da Índia na Construção do G-20". In: Monica Hirst; Maria Regina Soares de Lima; Marco Antonio Vieira. (Org.). Vozes do Sul e Agenda Global - África do Sul, Brasil e Índia. 1ª edição, São Paulo: HUCITEC Editora, 2012, pp. 147-192. CUNHA, Raphael C. Preferências domésticas e instituições do processo decisório em política econômica externa. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 52, no. 4 2009, pp. 871-910. DOBBIN, Frank, SIMMONS Beth and GARRETT, Geoffrey. The Global Diffusion of Public Policies: Social Construction, Coercion, Competition, or Learning?. Annual Review of Sociology, s.l., Vol. 33, 2007, pp. 449-472 FCI. Objective. Food Corporation of India. . Acesso em: 12 jul. 2014.

Disponível

em:

FEARON, James D; LAITIN, David D. Neotrusteeship and the Problem of Weak States. International Security, s.l., v. 28, n. 4, 2004. p. 5-43. G20. G20 Members. G20 2014. Disponível . Acesso em: 15 jul. 2014.

em

20

GOPINATH, Deepak. Agricultura na Índia enfrenta sérios problemas. Portal Epoch Times, s.l., 1º abr. 2013. Mundo. Disponível em: . Acesso em: 07 jul. 2014. GUPTA, Surupa. Ideas, Interests and Institutions: Explaining the politics of India´s engagement in the WTO negotiations on agriculture. In: ANNUAL MEETING OF THE AMERICAN POLITICAL ASSOCIATION, 2004, Chicago. INDIA. Prime Minister of India, Shri. Narendra Modi. Disponível em: . Acesso em: 15 jul. 2014. MORAVCSIK, Andrew. Taking Preferences Seriously: A Liberal Theory of International Politics. International Organization. Cambridge, v. 51, n. 4, 1997. BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. G-20 comercial. Disponível em: . Acesso em: 15 jul. 2014. OMC. India and the WTO. World Trade Organization. Disponível em: . Acesso em: 15 jul. 2014. ____. Trade Policy Review: India. 14 and 16 September 2011. WT/TPR/S/249 pp. ix-xiii. Disponível em: http://www.wto.org/english/tratop_e/tpr_e/tp349_e.htm>. Acesso em 06 jul. 2014. ____. Trade Policy Review: Brazil. 24 and 26 June 2013. WT/TPR/S/283 pp. 8-13. Disponível em: . Acesso em 06 jul. 2014. PLAHE, Jagjit. Sacrificing the right to food on the altar of free trade. Pambazuka News 284: Special Issue on Trade and Justice, s.l., Janeiro, 2007. PRIYADARSHI, Shishir. Decision-Making Process in India: the case of the agriculture negotiations. Managing the Challenges of WTO Participation: Case Study 15 (2004), Disponível em . Acesso em 28 jul. 2014. PUTNAM, Robert D. Diplomacy and Domestic Politics. The Logic of Two-Levels Games. International Organization, Cambridge, vol. 42, 1988. SANTOS FILHO, Onofre. O Fogo de Prometeu nas mãos de Midas: desenvolvimento e mudança social. In CAMPOS, Taiane L.C. (org.) Desenvolvimento, Desigualdades e Relações Internacionais. Belo Horizonte, Editora Pucminas, 2005. SOUZA, Celina. Políticas Públicas: uma revisão de literatura. Sociologias, Porto Alegre, ano 8, n. 16, 2006, pp. 20-45. STATISTICS SOUTH AFRICA. BRICS Joint Statistical Publication 2013. Disponível em . Acesso em 15 jul. 2014. UNICEF. India. Statistics. Disponível . Acesso em 15 jul. 2014. UPA. UPA vs NDA. Disponível em . Acesso em: 12 jul. 2014.

em:

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.