Prioridade absoluta às avessas que a juventude permaneça no cárcere!

June 6, 2017 | Autor: Giancarlo Vay | Categoria: Juvenile Delinquency, Adolescentes
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Domingo, 7 de setembro de 2014

Prioridade absoluta às avessas: que a juventude permaneça no cárcere! Por Giancarlo Silkunas Vay

No começo da segunda metade do século passado, Augusto Thompson escrevia a obra “Quem são os criminosos”, onde destacava que o crime não é um ente natural, mas algo definido pela sociedade como tal, sendo que, ainda, diuturnamente pessoas quebrariam leis penais, todavia só uma seleta parcela seria rotulada com o estigma de criminoso, na grande maioria das vezes as parcelas mais periféricas, os pretos, os pobres, as prostitutas, e sejam lá quais outras minorias sociais que assim forem estabelecidas pelos nossos gestores da moral da ocasião. No dia-a-dia forense tenho sentido certa dificuldade em conversar com os adolescentes que acabaram de ser apreendidos em decorrência da prática de ato infracional (na imensa maioria das vezes por roubo e tráfico). Isso porque o mesmo Estado que agora lhe acusa e em breve decidirá sobre sua custódia provisória (o que até aí costuma ser bem aceito, afinal são essas as regras do “jogo”), é o que lhe viola diversos direitos sem o menor pudor, tudo com ares de autoridade, muito embora esteja agindo flagrantemente contra a lei. O Estatuto da Criança e do Adolescente traz previsto em seu art. 172 que “o adolescente apreendido em flagrante de ato infracional será, desde logo, encaminhado à autoridade policial competente” e que, “havendo repartição policial especializada para atendimento de adolescente e em se tratando de ato infracional praticado em co-autoria com maior, prevalecerá a atribuição da repartição especializada, que, após as providências necessárias e conforme o caso, encaminhará o adulto à repartição policial própria”. Conforme o art. 175 do Estatuto, “em caso de não liberação, a autoridade policial encaminhará, desde logo, o adolescente ao representante do Ministério Público, juntamente com cópia do auto de apreensão ou boletim de ocorrência”, "sendo impossível a apresentação imediata, a autoridade policial encaminhará o adolescente à entidade de atendimento, que fará a apresentação ao representante do Ministério Público no prazo de vinte e quatro horas” e, ainda, “nas localidades onde não houver entidade de atendimento, a apresentação far-se-á pela autoridade policial. À falta de repartição

policial especializada, o adolescente aguardará a apresentação em dependência separada da destinada a maiores, não podendo, em qualquer hipótese, exceder o prazo referido no parágrafo anterior”. Seu art. 178 dispõe que “o adolescente a quem se atribua autoria de ato infracional não poderá ser conduzido ou transportado em compartimento fechado de veículo policial, em condições atentatórias à sua dignidade, ou que impliquem risco à sua integridade física ou mental, sob pena de responsabilidade”. O art. 185, por seu turno, aponta que “a internação, decretada ou mantida pela autoridade judiciária, não poderá ser cumprida em estabelecimento prisional” e “inexistindo na comarca entidade com as características definidas no art. 123, o adolescente deverá ser imediatamente transferido para a localidade mais próxima”, ao que, “sendo impossível a pronta transferência, o adolescente aguardará sua remoção em repartição policial, desde que em seção isolada dos adultos e com instalações apropriadas, não podendo ultrapassar o prazo máximo de cinco dias, sob pena de responsabilidade”. Além de tais dispositivos, o ECA ainda traz os seguintes tipos penais nos arts. 230 a 235: “privar a criança ou o adolescente de sua liberdade, procedendo à sua apreensão sem estar em flagrante de ato infracional ou inexistindo ordem escrita da autoridade judiciária competente”; “procede[r] à apreensão sem observância das formalidades legais”; “Deixar a autoridade policial responsável pela apreensão de criança ou adolescente de fazer imediata comunicação à autoridade judiciária competente e à família do apreendido ou à pessoa por ele indicada”; “Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento”; “deixar a autoridade competente, sem justa causa, de ordenar a imediata liberação de criança ou adolescente, tão logo tenha conhecimento da ilegalidade da apreensão”; “descumprir, injustificadamente, prazo fixado nesta Lei em benefício de adolescente privado de liberdade”. Como se pode verificar, muitos são os dispositivos que visam restringir ao máximo o tratamento desumano e degradante aos adolescentes apreendidos em flagrante de ato infracional, trazendo, inclusive, figuras penais a responsabilizar pessoalmente as autoridades (policial, judiciária, dentre outras), que não observarem os direitos mínimos que se colocam à juventude em virtude da prioridade absoluta que gozam em razão de seu peculiar estado de pessoa em desenvolvimento. Pois bem, deixando o mundo de Alice e retornando ao mundo real, na cidade de Santo André, onde exerço minha função pública, muitos dos referidos dispositivos não vem sendo cumpridos a contento pelas referidas autoridades e, pasmem, não tenho notícia de nenhum policial, guarda municipal, delegado, juiz ou direção da Fundação CASA que tenha sequer tenha sido responsabilizado administrativamente, muito embora a violação à lei protetiva e – como exposto – penal seja flagrante. Pelo contrário, com um pobre

verniz argumentativo dá-se um jeito para justificar o porquê se age contra a lei, sabendo que o faz, mas que nesse caso o faz sem ser crime, exatamente por tal argumentação. Neste último domingo (dia 31/08/2014), o Defensor Público plantonista da 3ª Circunscrição Judiciária apresentou, à juíza responsável pelo plantão judicial, pedido de revogação da internação provisória de dois adolescentes que haviam sido apreendidos, acusados da prática de ato infracional. Parênteses para compreender o caso: Tratam-se de dois adolescentes apreendidos em 26/08/2014 sob a acusação de prática de roubo de celulares, sem emprego de arma de fogo, sendo que um deles, primário, quando de sua apreensão teria sofrido lesões, por parte de guardas municipais, em seu pescoço (em ambos os lados) provocadas por uma faca/estilete, sendo que tais servidores públicos teriam, ainda, feito com tal instrumento cortante uma lesão em forma de asterisco em toda extensão das costas desse adolescente em cima de uma tatuagem de palhaço que o jovem ali possui. A comarca não dispõe de repartição policial especializada (art. 172). Tendo a lavratura do auto de apreensão exasperado o expediente judiciário, os adolescentes tiveram de pernoitar na carceragem do 1º Distrito Policial que, muito embora seja separado do local destinado aos adultos, se assemelha a um calabouço medieval seja pelas péssimas condições de higiene, seja pela superlotação (onde cabem duas pessoas estavam, sexta feira de manhã – 29/08/2014, seis adolescentes), seja pelo fato de que em tal local não bate luz solar e é completamente vedado, tratamento esse que não é dispensado sequer aos presos adultos em regime disciplinar diferenciado (RDD). Isso apesar de na comarca existir entidade de atendimento da Fundação CASA, muito embora não um estabelecimento propriamente destinado para atendimento inicial (art. 175). No dia seguinte, encaminhados ao fórum, tiveram de permanecer em outra carceragem, rectius: calabouço, sem direito a comida ou luz do sol, até que fossem finalmente apresentados à autoridade judicial que lhes decretou a internação provisória, solicitando, imediatamente, a transferência à Fundação CASA por meio de ofício encaminhado àquela direção. Por ausência de vaga na fundação CASA, algo de conhecimento público e notório de todos em virtude da ação civil pública recentemente ajuizada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo (saiba mais), os adolescentes voltaram ao 1º Distrito Policial onde ainda hoje (domingo, 31/08/2014) aguardam sua transferência para a Fundação CASA (art. 185). Foi diante dessa conjuntura que o Defensor Público plantonista da 3ª Circunscrição Judiciária apresentou, à juíza responsável pelo plantão judicial pedido de revogação da internação provisória dos adolescentes, os quais completavam, no domingo, seis dias em

delegacia policial, lembrando-se que devemos considerar tanto o dia de entrada quanto o dia de hoje para constatarmos a permanência do adolescente na repartição policial. Assim, sob a argumentação básica de que estar-se-ia violando o previsto no art. 185, §2º, do ECA: “sendo impossível a pronta transferência, o adolescente aguardará sua remoção em repartição policial, desde que em seção isolada dos adultos e com instalações apropriadas, não podendo ultrapassar o prazo máximo de cinco dias, sob pena de responsabilidade”, buscou-se a imediata liberação dos adolescentes, sob pena de se configurar, inclusive, o crime previsto no art. 234 do ECA: “deixar a autoridade competente, sem justa causa, de ordenar a imediata liberação de criança ou adolescente, tão logo tenha conhecimento da ilegalidade da apreensão” e no seu art. 235: “descumprir, injustificadamente, prazo fixado nesta Lei em benefício de adolescente privado de liberdade”. Não foi o que aconteceu. Em decisão inusitada – pero no mucho – da magistrada plantonista, assim se negou o pedido de liberdade dos adolescentes: “tendo em vista que já foram solicitadas as vagas junto a Fundação Casa, nada há a ser apreciado em sede de plantão judiciário. Encaminhe-se os autos à D. Juíza da Infância e Juventude de Santo André para as providências que entender necessárias. Int.” Sem mais. O Estado está falido? Que me importa? Que permaneça a juventude no cárcere! Que aguardem o resultado da ação civil pública do Ministério Público Estadual! Diminuir o número de internações? Besteira! Doida é a Fundação CASA que se pronunciou no sentido de que “o excedente que existe na instituição deve-se, principalmente, às exageradas internações e internações provisórias decretadas pelo Poder Judiciário paulista, principalmente pelo ato infracional de tráfico de drogas, em contradição à orientação da Súmula 492, do Superior Tribunal de Justiça (STJ)”... Dessa forma, foi levado ao conhecimento de Autoridade Judicial a existência de adolescentes presos em repartição policial há mais de 5 dias, em descompasso com o art. 185, §2º, do ECA, o que foi ignorado, bem como as disposições criminais dos arts. 234 e 235 do Estatuto. Pergunto: quem julga o julgador? Sabemos que, juridicamente falando, a medida jurídica cabível seria, agora, a impetração de um Habeas Corpus que, em regra, vem sendo apreciado de forma célere pela Câmara Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que, na minha experiência, vem se mostrando um rápido meio de passagem para levarmos as injustiças ao Superior Tribunal de Justiça que, com sorte, conhece do Habeas Corpus substitutivo de Recurso Ordinário Constitucional (ROC) contra decisão liminar desfavorável, superando o teor da Súmula 691 do Supremo Tribunal Federal, e concede a ordem. Assim, com sorte, o Tribunal de Justiça defere o pedido no sétimo dia, a ordem chega ao conhecimento da vara de origem no oitavo dia e, então, a fundação CASA já conseguiu a vaga para realizar a transferência. Ou então, levado ao conhecimento do magistrado de 1º grau que se

extrapolou o prazo de 5 dias em delegacia (isso no sexto dia), tal pedido é encaminhado ao Ministério Público para manifestação no sétimo dia e então, apenas no oitavo dia, surge um pronunciamento judicial acerca da ilegalidade da permanência dos adolescentes em delegacia ao que, como regra, a Fundação CASA já conseguiu a transferência para uma de suas superlotadas unidades. Ora, se converso com um adolescente que acaba de ser pego roubando e esse me diz que sabe que pegar o que é dos outros é errado, mas que acreditava que a sociedade é injusta e que portanto estaria a realizar uma redistribuição social; ou ainda um adolescente recém pego vendendo maconha a outrem, e esse me diz que sabe que vender maconha é errado, mas que acredita que não cometeu crime algum porque há movimentos sociais que defendem a legalização da droga, isso não significa nada em termos de afastar a tipicidade penal por si só, devendo o caso ser submetido a uma autoridade judicial – quiçá a policial. Dessa forma, por qual razão um Delegado de Polícia, um Juiz de Direito ou a direção da Fundação CASA pode, por sua única consciência, dizer com todas as palavras que descumpre a lei sabendo disso, mas o faz plenamente justificado, sem que ninguém submeta à investigação tal proceder? Confesso que fica difícil dizer aos adolescentes apreendidos que eles estão com suas liberdades restringidas em decorrência do descumprimento da lei, justamente em razão de ordens proferidas por outras pessoas que, igualmente, estão a descumprir a lei e nada lhes acontecem. Parece ainda mais difícil dizer isso aos adolescentes que ali se encontram detidos por tráfico: te prendo porque você vendeu (ou ajudou a vender) material proibido a outrem, mas a autoridade X que lesiona o seu direito à saúde (art. 7º), à liberdade, ao respeito e à dignidade (art. 15), à convivência familiar e comunitária (art. 19), à integridade física, dentre outros, tudo na mais descarada ilegalidade, mas uma ilegalidade justificada, é claro! Pelo próprio infrator, diga-se.

Giancarlo Silkunas Vay é Defensor Público no Estado de São Paulo.

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