Prisões cautelares e seus discursos legitimadores: entraves a um processo penal democrático

September 4, 2017 | Autor: Breno Zanotelli | Categoria: Criminal Procedure, Critical Criminology, Direito Processual Penal, Criminologia Crítica
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ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISADORES EM SOCIOLOGIA DO DIREITO

anais V CONGRESSO

DA ABRASD

PESQUISA EM AÇÃO: ÉTICA E PRÁXIS EM SOCIOLOGIA DO DIREITO 19 a 21 de novembro de 2014 – VITÓRIA/ES

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ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISADORES EM SOCIOLOGIA DO DIREITO  - V CONGRESSO DA ABRASD 19 a 21 de novembro de 2014 – VITÓRIA/ES PESQUISA EM AÇÃO: ÉTICA E PRÁXIS EM SOCIOLOGIA DO DIREITO

ISSN: 2358-4270

Organização: Marcelo Pereira de Mello Quenya Correa de Paula Comissão Científica: Adélia Miglievich (UFES) André Carneiro Leão (DPU-PE) André Reid dos Santos (FDV) Artur Stamford da Silva (UFPE) Carlos Eduardo Filho (UFF) Delton Ricardo Soares Meirelles (UFF) Elda Coelho de Azevedo Bussinger (FDV) Enoque Feitosa (UFPB) Fernanda Busanello (Unibrasil/UP) Fernando Rister de Sousa Lima (PUC-SP/Unitoledo) Flávio Bortolozzi (Unibrasil/UP) Germano Schwartz (Unilasalle/FSG) Guilherme Azevedo (UNISINOS) Gustavo Batista (UFPB) Gustavo Ferreira Santos (UFPE)

João Paulo Allain Teixeira(UFPE/UNICAP) Juliana Neuenschwander Magalhães (FND/UFRJ) Lorena Freitas (UFPB-PPGD) Luiz Otávio Ribas (UFPR) Marília Montenegro (UFPE/UNICAP) Olga Jubert Krell (UFAL) Quenya de Paula (FDV) Raffaele De Giorgi (Università di Lecce) Raul Francisco Magalhães (UFJF) Ricardo Prestes Pazello (UFPR) Thiago Fabres de Carvalho (FDV) Virgínia Colares (UNICAP) Virgínia Leal (UFPE) Wilson Madeira Filho (PPGSD/UFF)

Normatização: Eduardo Cunha Pontes Capa e Diagramação: Eduardo Cunha Pontes e Cláudia Areias Realização: ABraSD (Associação Brasileira de Pesquisadores em Sociologia do Direito) Apoio: CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) Faculdade de Direito de Vitória (FDV) Programa de Pós Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD/UFF) 2014 © Todos os direitos reservados. A reprodução ou tradução de qualquer parte desta publicação será permitida com a prévia autorização escrita do(s) autor(es). As informações contidas nos artigos são de responsabilidade de seu(s) autor(es).

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Prisões cautelares e seus discursos legitimadores: entraves a um processo penal democrático Breno Zanotelli RESUMO: Este trabalho pretende investigar, a partir da matriz teórica da criminologia crítica, os discursos legitimadores da prisão cautelar, os quais podem ser enquadrados em dois centros de sentido: de um lado uma doutrina autoritária reconhece e legitima o fato de que a prisão processual tem caráter de pena antecipada; de outro lado uma doutrina liberal defende a natureza não penal do confinamento cautelar, que teria caráter estritamente instrumental ao processo. Traçando uma genealogia de ambos os discursos, pretende-se buscar, no histórico dessas vertentes, as ideologias que fundamentam os institutos das prisões processuais e sua aplicação concreta, apontando, por fim, que a persistência de algumas delas no imaginário dos juristas é um dos principais óbices ao desenvolvimento de um processo penal democrático e comprometido com os direitos humanos.

Palavras-chave: prisões cautelares; discursos legitimadores; matrizes autoritárias; criminologia crítica.

ABSTRACT: This work will investigate, with the theoretical basis of the critical criminology, the legitimizing discourses of the provisional detention, that can be framed in two perspectives: an authoritarian doctrine recognizes and legitimizes the fact that the preventive imprisonment has the characters of an early punishment; on the other hand a liberal doctrine sustain the non-penal nature of the pre-trial detention, that would be strictly instrumental to the process. By tracing a genealogy of both discourses, we intend to seek, in the history of these positions, the ideologies that underlie the institutes of the provisional detention and its practical application. Finally, it is pointed that the persistence of some of these ideologies as a common belief of the jurists is one of the major obstacles to the development of the democratic and committed to human rights criminal procedure.

Keywords: provisional detention; legitimizing discourses; authoritarian basis; critical criminology.

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Introdução

Partindo da base teórica da criminologia crítica, pretende-se analisar no presente trabalho os discursos legitimadores da prisão cautelar1, os quais se concentram em duas perspectivas opostas: uma doutrina liberal, visando à redução da incidência do instituto, sustenta seu caráter estritamente instrumental ao processo (discurso processualista), e uma doutrina autoritária, por sua vez, reconhece e legitima o fato de que a prisão processual tem caráter de pena antecipada (discurso substantivista). Para tanto, traçaremos uma genealogia da tensão entre a presunção de inocência e a práxis das prisões provisórias no percurso histórico do pensamento criminológico moderno e contemporâneo, para buscar, no seio desses dois centros de sentido da cautelaridade processual penal, as ideologias que fundamentam os institutos relativos às prisões processuais e sua aplicação concreta. Com as reflexões de Eugenio Raúl Zaffaroni, Luigi Ferrajoli e André Ribeiro Giamberardino compreende-se que também a doutrina processualista é profundamente incipiente na tarefa de contenção do poder punitivo e que na denominada “escola clássica italiana”, onde teve seu maior desenvolvimento, já estava presente certa legitimação da negação do valor do princípio da presunção de inocência, radicalizada na doutrina substantivista. A tese substantivista tem por principais mentores intelectuais os criminólogos positivistas italianos Raffaele Garófalo e Enrico Ferri, que exerceram enorme influência sobre o Codice Rocco do fascismo, principalmente no que diz respeito às prisões processuais, o qual, por sua vez, serviu de modelo para o nosso Código de Processo Penal de 1941, ainda em vigor. Por fim, a persistência de tais matrizes autoritárias de nosso processo penal no imaginário dos juristas e nas suas práticas, a referida insuficiência das teses processualistas na limitação da violência do encarceramento provisório e a inadequada utilização das categorias da teoria geral do processo para a compreensão da tutela cautelar no processo penal são algumas das questões apontadas como verdadeiros óbices ao desenvolvimento de um processo penal democrático e comprometido com os direitos humanos.

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Adotaremos como sinônimas as expressões “prisão cautelar”, “prisão processual”, “prisão provisória” e “prisão preventiva”, pois nas tradições analisadas todas apresentam o significado genérico de prisão no curso do processo, em contraposição à prisão enquanto pena aplicável com o trânsito em julgado.

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1. Discursos legitimadores da prisão cautelar: a presunção de inocência no fogo cruzado entre teses processualistas e teses substantivistas

Segundo Luigi Ferrajoli (2006, p. 551), a história da prisão do acusado no curso do processo criminal está diretamente atrelada à da presunção de inocência, no sentido de que as compreensões teóricas e normativas acerca desta em cada período histórico determinaram a forma e os limites com que a prisão processual foi admitida e praticada. Diante da indisfarçável tensão entre a aplicação das prisões cautelares e a garantia da presunção de inocência, diversos foram os teóricos que se debruçaram sobre a questão da legitimidade da custódia cautelar, podendo ser afirmado, a partir de alguns autores, dentre os quais Zaffaroni (2007, p. 111-114), que os discursos legitimadores produzidos ao longo da história moderna e contemporânea gravitam em torno de dois centros de sentido2: de um lado uma doutrina autoritária vê a presunção de inocência como entrave para a realização da justiça penal e reconhece e legitima o fato de que a prisão processual tem caráter de pena antecipada (tese substantivista); de outro lado uma doutrina liberal encampa a tese processualista da natureza não penal do confinamento cautelar, que teria caráter estritamente instrumental ao processo. De forma geral, para os teóricos alinhados à esta segunda perspectiva, que teve grande força entre os filósofos iluministas e, em especial, entre os autores da escola clássica italiana, a restrição à liberdade do acusado no curso do processo seria sempre problemática, devendo, portanto, ter caráter excepcional. Mas, apesar de constituir um mal, seria um mal necessário. Mesmo Thomas Hobbes, filósofo conhecido como defensor da autoridade máxima estatal, já se preocupava com a arbitrariedade que poderia representar a prisão de um indivíduo antes de sua condenação definitiva, conforme pode ser visto na seguinte afirmação: “no entiendo cómo puede haber un delito para el que no hay sentencia, ni cómo puede inflingirse una pena sin un sentencia previa”. De forma mais enfática, ele sustenta que a prisão preventiva seria um ato hostil contra o cidadão, pois “caulquier daño que se le obligue a padecer a un hombre al encadenarlo o al encerralo antes de que su causa haya sido oída, y que vaya más allá de lo que es necesario para asegurar su custodia, va contra la ley de naturaleza” (apud FERRAJOLI, 2006, p. 550-552).

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A expressão é tomada emprestada de Frédéric Gros (2002), importante discípulo de Michel Foucault, que em sua magistral contribuição à obra Punir em democracia: e a justiça será aborda “os quatro centros de sentido da pena”.

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Para Cesare Beccaria (2005, p. 72), a privação de liberdade, por ser pena, não poderia preceder a condenação, salvo quando se fizesse necessária para impedir a fuga ou para que não se ocultassem as provas dos delitos, devendo durar o menor tempo e ter o menor rigor possível, sendo clara sua posição de que a prisão preventiva só poderia cumprir funções processuais. Ainda, Voltaire criticava o uso arbitrário do instituto asseverando que “la manera como se arresta cautelarmente a un hombre en muchos estados se parece demasiado a un asalto de bandidos” (apud FERRAJOLI, 2006, p. 552). Além desses autores, muitos outros se posicionaram nesse mesmo sentido, mencionando Ferrajoli (2006, p. 552) Diderot, Filangieri, Condorcet, Pagano, Bentham, Constant e Carrara, os quais denunciaram as atrocidades e injustiças que ocorriam na aplicação da prisão preventiva e defenderam sua limitação no que se refere à duração e aos pressupostos, que deveriam corresponder a critérios relativos às necessidades do processo. Ferrajoli (2006, p. 553) faz a ressalva de que o germe da concepção substantivista da prisão provisória já se encontrava na legitimação, por Pagano e por Carrara, de que pudesse ser utilizada também como instrumento de prevenção e defesa social, para impedir a execução de outros delitos pelo imputado. Para o autor de Direito e Razão este argumento foi a “perversão mais grave do instituto”, fazendo recair sobre o acusado uma presunção de periculosidade embasada apenas na suspeita do cometimento do delito, o que equivaleria a uma presunção de culpabilidade. De qualquer modo, todos os autores vinculados à tese processualista, com diferentes matizes e argumentos, acabam por legitimar o encarceramento preventivo, entendendo-o como uma injustiça necessária, não chegando ao que Ferrajoli (2006, p. 552) considera como a conclusão coerente com as premissas adotadas, qual seja a defesa da supressão do instituto. Zaffaroni (2007, p. 113) afirma que muitas vezes as teses processualistas pouco diferem das substantivistas autoritárias, pois culminam, da mesma forma, na negação do valor do princípio da presunção de inocência. A tese substantivista, que rechaça a concepção da natureza puramente processual da prisão preventiva, vai ter seu maior desenvolvimento na escola positiva italiana, sendo Raffaele Garófalo seu principal defensor. Segundo ele, a liberdade provisória seria a pior das instituições da legislação italiana, pois iria em sentido diametralmente oposto ao dos interesses repressivos, privaria a justiça de seriedade, estimularia o “mundo criminoso”, desalentaria as vítimas e as testemunhas e desmoralizaria a polícia. (GARÓFALO, 2005, p. 301) Ainda, para o autor tal liberdade “presenta los mayores peligros; parece hecha ex profeso 2401

para favorecer al mundo criminal y atestigua la ingenuidad de los legisladores, los cuales parece que no se percatan de las nuevas armas que a los malhechores les presta la civilización” (GARÓFALO, 2005, p. 295). Ele defende, então, a completa desaparição do instituto, entendendo que o réu só poderia responder ao processo em liberdade quando o magistrado se convencesse de sua inocência. (GARÓFALO, 2005, p. 295) Trata-se de completa inversão do sistema de garantias, estabelecendo uma verdadeira presunção de culpa do denunciado até que se prove sua inocência, não sendo válido, porém, acusá-lo de incoerência com suas premissas, haja vista que o arcabouço teórico desenvolvido nesta tradição criminológica, fundado nas ideias de periculosidade e monstruosidade orgânica dos delinquentes, implica como conclusão necessária no desprezo pelos direitos fundamentais do acusado, em especial a presunção de inocência. Garófalo (2005, p. 294) não nega que a prisão preventiva possa cumprir funções processuais, como impedir da fuga do acusado, impedir que faça desaparecer as provas materiais do delito, impedir que faça combinações com os cúmplices ou com os amigos para que suas declarações sejam confirmadas, dificultar que ameace ou corrompa as testemunhas ou defender o processado contra as vendetas decorrentes do crime. Contudo, ele afirma que não é possível antever todos os casos em que seria necessária, de modo que ficaria a cargo do magistrado a determinação discricionária nos casos concretos. Exemplificativamente, menciona que a detenção teria cabimento quando se pudesse prever que o processado seria condenado a uma pena dura o suficiente para que resolvesse evitá-la mediante desterro voluntário ou ocultando-se da polícia, pois o resultado final do processo seria para ele um mal mais grave; quando o fato delituoso envolvesse golpes e lesões que gerassem no ofendido uma enfermidade da qual não estivesse completamente curado; quando os réus fossem ladrões ou fraudadores apanhados em flagrante delito; bem como quando fossem reincidentes, delinquentes habituais, pessoas sem estima social, que não exercessem algum “ofício honrado” ou sem domicílio fixo. (GARÓFALO, 2005, p. 295) Quanto à alegação da existência do direito dos indigentes de responderem ao processo em liberdade e sem prestar qualquer caução, Garófalo (2005, p. 296) afirma que seria um verdadeiro privilégio concedido ao proletariado, semelhante aos antigos privilégios de casta. Vale fazer um paralelo com a célebre frase de Anatole France (apud SILVA, 2010, p. 984), em que afirma que a majestosa igualdade das leis proíbe tanto o rico como o pobre de dormir sob as pontes, de mendigar nas ruas e de roubar o pão. Com visão semelhante à ironizada pelo francês, Garófalo sugere que a caução, quando cabível, se não exigida do rico e 2402

do pobre de igual forma, violaria a “majestosa igualdade das leis” e constituiria um privilégio da casta inferior. Reconhecendo-se a vedação desse “privilégio”, concepção semelhante à existente ainda nos dias de hoje, exteriorizada quando magistrados se utilizam de argumentos ligados à situação de miséria do acusado para mantê-lo preso preventivamente, resta patente que a caução (ou fiança), assim como diversos outros institutos penais e processuais penais, instrumentaliza muitas vezes uma atuação seletiva do aparato repressor estatal. Para Garófalo (2005, p. 296-302) a eventual rejeição da prisão preventiva decorreria de um imaginário formado pela influência de construções retóricas de alguns professores, bem como pela difusão do sensacionalismo de certos romances que narravam torturas morais de indivíduos encarcerados em calabouços terríveis, dos quais se suspeitava sem razão. Assim, no seu entendimento, as consequências das detenções irregulares poderiam ser facilmente revertidas e não só tais práticas seriam casos isolados, como a maior parte delas seria consequência direta das atitudes do réu, tais quais adotar condutas excêntricas e ter más companhias. Enrico Ferri, que junto com Raffaele Garófalo e Cesare Lombroso forma a tríade dos criminólogos positivistas mais conhecidos e influentes, também via na prisão cautelar um dos mais importantes instrumentos do sistema de justiça criminal. Em sua clássica obra Sociologia criminal, após expor as bases de sua compreensão acerca do crime e do criminoso, aborda no último capítulo as reformas práticas vistas como coerentes com o arcabouço teórico desenvolvido, havendo especial destaque para a necessidade de se adotar novas concepções acerca da presunção de inocência e dos critérios para a decretação das prisões preventivas. Segundo ele, a escola positiva reduzia a importância prática do direito penal aos mais estreitos limites e, por outro lado, elevava a das leis processuais e medidas penais, “por ser las que tienen precisamente por objeto transportar la pena desde las regiones etéreas de las amenazas legislativas al terreno práctico de la clínica social de defensa contra la enfermedad del crimen” (FERRI, 2005, p. 445). Assim, ele concorda com a afirmação daqueles que denomina “criminalistas clássicos” de que a eficácia das penas depende mais de sua imediaticidade e de sua certeza do que de sua severidade, mas afirma que tais autores sempre fizeram letra morta deste postulado no campo prático, pois lhes faltaria a base científica da sociologia criminal positivista e a compreensão de que é das leis de procedimento que depende exclusivamente a probabilidade de o réu escapar das penas abstratamente cominadas para o delito imputado, do que se concluiria com a “necesidad de ocuparse menos de las reformas penales y mucho más de las reformas de los tribunales y de las prisiones” (FERRI, 2005, p. 445). 2403

Além disso, partindo da concepção de que os delinquentes poderiam ser alocados em diversas categorias, conforme o seu maior ou menor grau de determinação biopsicológica para a prática delitiva, que iriam do criminoso louco, considerado atávico ou completamente predisposto organicamente, ao criminoso passional, que cometeria o crime em razão de contingências momentâneas, passando pelos natos, habituais e ocasionais, que apresentariam graus diferenciados de predisposição, Ferri (2005, p. 445) defende ser necessária a aplicação diferenciada dos diversos institutos penais, processuais penais e de execução da pena, conforme variassem as categorias em que se enquadrassem os infratores. A ausência desse conhecimento, então, segundo o autor, seria a grande falha teórica da escola clássica. Ferri adota um tom um pouco mais moderado que seus contemporâneos positivistas e reconhece na tradição liderada por Beccaria uma reação necessária contra os excessos repressivos da Idade Média, determinada pelas circunstâncias históricas da revolução burguesa, mas assevera que, por não terem distinguido as diferentes categorias de criminosos, caiam em exageros contrários à necessidade de defesa social, aplicando indistintamente o sistema de garantias da liberdade individual a todos os delinquentes. (FERRI, 2005, p. 446-447) Nesse ponto, Ferri parece ser o criador do primeiro modelo do que hoje se denomina “garantismo positivo” (inclusive havendo, coincidentemente, paralelo na nomenclatura adotada), pois defende “como conquistas irrevocables de la libertad individual las justas garantias aseguradas por el predominio del sistema acusatorio en la organización judicial” e chega a reconhecer que, em princípio, a escola positiva teria incorrido no exagero oposto ao da escola clássica, descartando a importância de proteger os direitos dos indivíduos, mas destaca que seria necessário um equilíbrio entre estes e os direitos da sociedade, afastando ambas as formas de suposto extremismo. Caberia, então, à escola positiva, como missão prática, o estabelecimento desse ponto de equilíbrio, que, segundo ele, estaria presente em um modelo processual que admitisse a preeminência das garantias individuais no tratamento da delinquência evolutiva (criminosos com baixa predisposição orgânica ao delito e não habituais ou reincidentes) e a supremacia da defesa social no tratamento da criminalidade atávica. (FERRI, 2005, p. 446-447) É a partir dessas concepções que Ferri vai analisar o princípio da presunção de inocência. Ele não parte de uma repulsa a priori, como fez Garófalo, e reconhece que, juntamente com o in dubio pro reo, teria um “fundo de verdade” e poderia até ser considerado obrigatório em determinadas circunstâncias, como na fase de investigação ou de instrução quando não houvessem contra o imputado mais que simples suposições ou indícios. Existiria 2404

na presunção de inocência, inclusive, uma “base positiva incontestável”, derivada do fato de que os delinquentes (incluindo os que não são descobertos) seriam apenas uma parca minoria da coletividade. (FERRI, 2005, p. 447) Contudo, para o autor, o princípio não teria a mesma força lógica ou jurídica quando se tratasse de uma prisão em flagrante ou houvesse uma confissão do processado corroborada por outros dados. Careceria, ainda, de qualquer sentido a presunção de inocência quando aplicada a “delinquentes profissionais”, reincidentes ou sujeitos que revelassem, pelos motivos e circunstâncias do feito, serem criminosos natos, pois, segundo ele, “cuando es absoluta y no hace distinción alguna, es sólo un aforismo jurídico” (FERRI, 2005, p. 447). Ferri (2005, p. 448) entende, então, que a presunção de inocência, da forma “ilógica” que era aplicada, serviria de sustentáculo para uma série de disposições processuais manifestamente contrárias à justiça e aos interesses da sociedade, de tal modo que, eliminada das hipóteses em que estivesse “em contradição com a realidade mesma das coisas”, seriam suprimidas também suas consequências deletérias. Assim, a regulamentação da liberdade provisória, por utilizar critérios relacionados ao fato punível e não “o critério essencial da categoria de delinquente”, não estaria, de modo algum, em consonância com o interesse social. Para o autor, o regramento então empregado somente seria aceitável quando, diante dos exames periciais, se comprovasse não se tratar o acusado de um criminoso atávico. Caso contrário, a presunção de inocência seria completamente descabida (FERRI, 2005, p. 448-449), não havendo que se falar em processo penal de garantias, mas em processo penal de defesa social, o qual, nos parece, estaria mais próximo de um subsistema policialesco de segurança pública de exceção. Portanto, fica claro que o alardeado modelo defendido por Günther Jakobs (2009) de funcionamento paralelo de dois sistemas penais, sendo um o “Direito Penal do Cidadão”, no qual as garantias penais e processuais penais da tradição iluminista são plenamente aplicáveis, e o outro o “Direito Penal do Inimigo”, em que impera a coação pura contra sujeitos considerados como grave ameaça para o corpo social, tem raízes teóricas também no positivismo criminológico de Ferri. Jakobs (2009, p. 49-51) acredita na possibilidade de manter esse sistema dual dentro dos estados democráticos de direito, o que não só não comprometeria sua essência, como seria fundamental, principalmente em tempos de terrorismo e outras graves ameaças à sua existência. Para ele somente abstratamente e idealisticamente se poderia falar em um estado de direito puro, pois, concretamente, renunciar à aplicação de mecanismos de exceção seria abdicar da segurança e da eficácia jurídica real. Ainda, a realização de sua proposta 2405

representaria um progresso, segundo ele, na medida em que se possibilitaria que o “Direito Penal do Cidadão” fosse menos contaminado pelas medidas cabíveis aos inimigos. Também Ferri entendia ser possível a separação entre dois modelos claramente definidos, mantendo intocados os direitos dos “cidadãos de bem”. Contudo, a crítica de Thiago Fabres de Carvalho (2006, p. 215) à teoria de Jakobs, a seguir transcrita, também é aqui aplicável. [...] a faceta mais sombria desta edificação teórica reside, precisamente, na ambiguidade e no viés autoritário dos critérios da definição hegemônica daquilo que seria o verdadeiro “inimigo”, obedecendo meramente a antagonismos religiosos, a clivagens culturais, a diferenças étnicas, a disparidades econômicas e sociais, e no limite, a opções políticas e ideológicas que culminam na criminalização do embate político. Portanto, a noção inimigo tende a identificar-se simplesmente com os elementos indesejados e nocivos para uma certa visão dominante da realidade social.

Os critérios supostamente científicos, fundados na biologia e na psiquiatria, estabelecidos pelo positivista italiano como idôneos para definir qual o regime jurídico repressivo aplicável aos infratores, também não constituem mais do que um discurso ideológico de desesperada tentativa de legitimar um sistema penal manifestamente comprometido com a estrutura social desigual. É interessante observar que, apesar das posições políticas divergentes entre si dos três positivistas mencionados, todos convergiram na legitimação de projetos autoritários. Lombroso e Ferri militaram no partido socialista, sendo que este foi deputado diversas vezes. Já Garófalo era um aristocrata conservador de família nobre e combateu anarquistas, sindicalistas e socialistas. Foi procurador do reino da Itália e senador por um partido de direita. Contudo, tanto Ferri quanto Garófalo não tiveram problemas em apoiar a ascensão do regime fascista. (ELBERT, 2005, p. IX; ANITUA, 2008, p. 308-313) Lombroso não viveu tempo suficiente, tendo falecido em 1909, mas sem dúvida suas teorias contribuíram para legitimar este e outros projetos políticos autocráticos. Aproveitando a herança teórica do positivismo criminológico, o sistema penal fascista abandonou completamente o princípio da presunção de inocência. Um de seus ideólogos, Vincenzo Manzini, o considerou absurdamente paradoxal e irracional, pois, dentre outros motivos, a experiência histórica demonstraria que a maioria dos imputados eram culpados, e nos trabalhos preliminares do código Rocco de 1930 foi considerado como uma extravagância oriunda de concepções ultrapassadas ligadas à Revolução Francesa, que teriam levado as garantias individuais aos mais absurdos excessos. (FERRAJOLI, 2006, p. 550-551) É importante destacar que essa deslegitimação da presunção de inocência está diretamente vinculada ao núcleo da ideologia fascista, que não considera a liberdade 2406

individual como um direito preeminente, mas como uma concessão do Estado em interesse da sociedade. (FERRAJOLI, 2006, p. 631-632) Assim, a partir dessas concepções, o sistema jurídico-penal fascista não conheceu freios ao uso da prisão preventiva, cuja legitimidade sequer necessitava de adicional argumentação, haja vista que, se a liberdade é considerada como dada pelo Estado, sua retirada é um direito pleno deste. Com isso, a prisão preventiva passou a ser concebida como verdadeira medida de prevenção frente aos indivíduos considerados perigosos, indispensável sempre que o delito causasse grave alarme público. (FERRAJOLI, 2006, p. 553) Segundo Novelli, outro jurista ligado ao regime, seria um instituto ao mesmo tempo processual e carcerário, com finalidades exclusivas de defesa social, tendo como pressupostos fundamentais somente a gravidade do delito e a periculosidade do imputado. (FERRAJOLI, 2006, p. 632) No mesmo sentido também se estruturou o direito sob o nazismo, conforme se depreende do seguinte trecho de autores que legitimaram tais práticas: Enquanto no direito vigente a prisão preventiva só serve para evitar o perigo de fuga do culpado ou do apagamento das provas, no futuro também terá como objetivo a proteção da comunidade diante dos fatos que o culpado poderia cometer em liberdade ou diante do risco de quebra da ordem pacífica do povo de qualquer forma (SCHOETENSACK; CHRISTIANS; EICHLER apud ZAFFARONI, 2007, p. 112).

Dessa forma, o encarceramento cautelar assumiu feição manifesta de execução provisória ou antecipada da pena nestes regimes, se caracterizando como medida policial profilática. Enquanto na legislação italiana anterior estava prevista a liberação do acusado na hipótese de transcurso dos prazos máximos de prisão, o código Rocco aboliu esta prática, sendo considerada no relatório sobre o projeto preliminar do mesmo como “aberrante e insidiosa”, pois “lesiona el interés público, y no al magistrado que hubiera descuidado cumplir con la debida diligencia su proprio deber” (apud FERRAJOLI, 2006, p. 633). Substituiu-se, então, uma garantia do acusado pela confiança na acentuação da organização hierárquica judiciária, de modo que a liberdade foi confiada ao poder discricionário dos magistrados, que só não poderia ser considerado absoluto porque, segundo os autores fascistas, a vigilância disciplinar interna a que estavam submetidos os compeliria a atuar com a responsabilidade necessária, inclusive coibindo atrasos injustificados. (FERRAJOLI, 2006, p. 633-634) Há que se ressaltar, ainda, que à defesa não era reconhecido qualquer poder ou relevância, sendo que das decisões que dessem provimento ao pedido de liberação do acusado 2407

no curso do processo caberia recurso por parte do Ministério Público, mas não se admitia nenhuma medida processual por parte da defesa para impugnar as decisões que denegassem tal pleito, pois, segundo a doutrina fascista, não haveria motivo para que o réu discutisse, na fase instrutória, se existiam indícios suficientes contra ele, já que poderia ser o caso de não ter tido acesso a todos os indícios existentes. (FERRAJOLI, 2006, p. 634) Evidencia-se, desse modo, que esse modelo processual autoritário é fortemente marcado pelo inquisitorialismo, possibilitando, inclusive, que o procedimento fosse conduzido sem que o acusado e a defesa pudessem ter acesso efetivo aos elementos que embasaram a persecução penal, os quais poderiam fundamentar uma condenação alheia ao contraditório. Conforme frisou Carrara (2002, p. 316), o segredo dos processos aos cidadãos em geral e ao réu e seu defensor estão entre os principais caracteres do modelo inquisitorial. Além disso, a concessão de liberdade ao acusado ficaria sempre sujeita à valoração de suas qualidades morais e sociais, o que pode ser considerado uma das mais evidentes expressões de um processo penal do autor. De acordo com o projeto preliminar do código Rocco, uma “inflexível severidade” deveria recair sobre aqueles que não oferecessem confiança, pela sua personalidade, de que se submeterão às autoridades. Outros seriam dignos de uma “iluminada humanidade”, quando a equidade e as condições pessoais assim indicassem. (FERRAJOLI, 2006, p. 633) Quem seriam os merecedores da “inflexível severidade” e quem seriam os merecedores da “iluminada humanidade” é fácil imaginar. O que fica patente é que a diferenciação entre cidadãos e inimigos na aplicação da lei penal não é recente e, pelo contrário, sempre foi constitutiva do poder punitivo, conforme a tese central da obra O inimigo no direito penal, de Eugenio Raúl Zaffaroni. O que este autor, demonstra, ainda, é que o direito penal do fascismo e do nazismo representou o coroamento coerente das propostas defensivistas e perigosistas do positivismo e de sua pretensa identificação do inimigo, legitimando os genocídios do século XX. (ZAFFARONI, 2007, p. 102-109) Além de todas essas características autocráticas do sistema penal cautelar fascista, a que Ferrajoli (2006, p. 554) considera como a mais absurda foi a invenção da obrigatoriedade da captura. Segundo ele, com a criação da prisão automática se resolveria ex lege a questão da fundamentação da prisão preventiva, culminando em uma presunção legal absoluta de periculosidade, não importando sequer se de caráter processual ou penal. Assim, o próprio embate das teses processualistas e substantivistas seria visto como superado, pois considerados existentes os indícios suficientes de culpabilidade, os mesmos requeridos para que o processo tivesse início, derivava-se a presunção de se tratar de um sujeito nocivo e, 2408

portanto, passível de ser excluído do convívio social, o que equivale perfeitamente a uma presunção de culpabilidade. Percebe-se, diante de tal quadro, que o desprezo demonstrado pelas ideologias positivistas, fascistas e nazistas ao princípio da presunção de inocência não tinha caráter meramente teórico, pois aterrissava na prática processual concreta, tendo legado uma herança maldita aos sistemas penais dos estados ditos democráticos de direito do século XX, bem como dos dias de hoje, o que será demonstrado mais adiante. Tal constatação reforça a pertinência de outra tese de Zaffaroni (2007, p. 10), segundo a qual, historicamente, no interior dos estados de direito sempre operaram estruturas e práticas próprias do estado de polícia, o que, em termos processuais, equivale à ideia de que no seio dos sistemas formalmente acusatórios e vinculados à tradição iluminista de garantia de direitos dos acusados convivem institutos e lógicas correlatas às do Tribunal do Santo Ofício e dos tribunais da Itália de Mussolini.

2. Prisão cautelar, obstáculos epistemológicos e obstruções à democracia

Em brilhante dissertação sobre o tema, André Giamberardino (2008a, p. 16) aponta que “mesmo com mudanças significativas na estrutura social e econômica, o discurso acadêmico dominante sobre a custódia cautelar segue sendo, majoritariamente, muito similar àquele de três séculos atrás”, constituindo diversas das enraizadas premissas de tal discurso verdadeiros obstáculos epistemológicos ao conhecimento crítico das funções reais desempenhadas pela prisão processual. O autor se utiliza da ideia de obstáculo epistemológico de Gaston Bachelard para designar uma série de questões acerca da fundamentação teórica, regulamentação jurídica e aplicação concreta da prisão cautelar que, por não serem suficientemente problematizadas, impedem uma reflexão aprofundada do instituto. De modo semelhante, e partindo de diversas das reflexões do autor, neste tópico levantaremos questões que apontam para os limites do discurso que tenta compatibilizar a aplicação do confinamento cautelar com os princípios constitucionais nos marcos do estado democrático de direito, demonstrando que a própria democracia é vitimada quando se aborda um instrumento que pode gerar tão drásticas consequências aos direitos fundamentais pelo viés do senso comum teórico dos juristas, recheado de fórmulas arcaicas e ao mesmo tempo simplificadas para enquadramento no padrão melhor-livro-dos-últimos-tempos-da-última2409

semana do mercado editorial concursista, em uma perversa simbiose entre o que há de pior no tradicional e no atual em matéria de dogmática jurídica.

2.1 A insuficiência das teses processualistas na limitação da violência do encarceramento provisório

Conforme ressalta Giamberardino (2008a, p. 59), se a defesa pelos iluministas da presunção de inocência estabeleceu o postulado de que a liberdade do acusado no curso do processo deve ser a regra, estabeleceu também a exceção ao princípio, pois, sendo a prisão cautelar considerada um “mal necessário”, não havia como se questionar os seus fundamentos de existência, mas tão somente as medidas capazes de minimizar seus danos. A síntese da proposta dos variados teóricos adeptos dessa limitação pode ser expressa na ideia de que a prisão cautelar seria ilegítima sempre que representasse uma antecipação da punição, isto é, fosse utilizada com finalidades atribuídas à pena de reclusão, podendo, então, ser adotada para cumprir funções estritamente processuais. Esse é, em resumo, o teor da tese processualista, anteriormente apresentada. Dessa forma, a própria distinção entre a prisão como pena e prisão como acautelamento processual, embora em sua gênese visasse também uma redução da violência institucionalizada do encarceramento provisório, foi um álibi teórico para que se pudesse abordar a coexistência entre a faticidade da prisão do réu sem condenação e a normatividade do seu “estado de inocência” como se não fossem noções conflitantes. Giamberardino (2008a, p. 60-61) expõe tal questão nos seguintes termos: Pode-se dizer que a consolidação da diferenciação entre prisões, umas processuais e outras penais, da forma que perdura até hoje, deve suas premissas ao pensamento clássico liberal. Os mesmos autores que em primeiro momento criticam com rigor o instituto da custódia cautelar, em seguida a aceitam quando respeitados determinados limites dentro dos quais a coerção pessoal seria justificável e não violaria o princípio da presunção de inocência, tudo a partir de funções ou finalidades eminentemente processuais atribuídas à custódia.

No mesmo sentido, Zaffaroni demonstra como até hoje esse discurso não consegue obter resultados práticos redutores das taxas de aprisionamento preventivo e acaba sendo incorporado ao coro das vozes legitimantes do sistema penal cautelar, abordando o caso da América Latina, onde

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[...] as medidas de contenção para os inimigos ocupam quase todo o espaço de ação do sistema penal em seu aspecto repressivo, por via da chamada prisão ou detenção preventiva, ou seja, o confinamento cautelar, a que estão submetidos 3/4 dos presos da região. De fato e de direito, esta é a prática de toda a América Latina para quase todos os prisioneiros. Este dado é fundamental para extrair conclusões acerca do alcance da proposta de legitimação de um eventual tratamento penal diferenciado na América Latina, pois esta seletividade é praticada em nossa região por efeito da criminalização. Porém, uma vez posto em marcha este processo, todos passam a ser tratados como inimigos, através de puros confinamentos de contenção, prolongados ou indefinidos. (ZAFFARONI, 2007, p. 109)

Assim, o penalista argentino afirma que o sistema penal oficial latino-americano se divide em um subsistema cautelar ou pré-condenatório e outro definitivo, “sendo o primeiro muito mais importante que o segundo, posto que a reação praticamente se esgota na delinquência leve e média, que é, com folga, a mais numerosa” (ZAFFARONI, 2007, p. 110). A prevalência do sistema penal cautelar no continente é tão patente que os índices de encarceramento variam pouco em razão de reformas penais, de modo que somente as alterações na regulamentação da prisão cautelar, em geral prevista nos códigos de processo penal, afetam substancialmente esses números. (ZAFFARONI, 2007, p. 111) Diante desse quadro tenebroso, manifestamente contraditório com o princípio da excepcionalidade das prisões provisórias, reconhecido amplamente pela doutrina e jurisprudência como corolário do princípio da presunção de inocência, previsto nas constituições dos países do continente e já incorporado até mesmo ao costume do direito internacional, os adeptos da tese processualista se limitam a negar o caráter punitivo da prisão cautelar para reduzir as possibilidades de sua aplicação, o que não impede que a presunção de inocência seja esmagada pelo sistema penal cautelar, sendo questionável se algum êxito obtiveram na redução de sua amplitude. (ZAFFARONI, 2007, p. 113) Na realidade, ao ignorar que invariavelmente o confinamento cautelar opera a partir de considerações de cariz eminentemente penal, havendo, inclusive, historicamente, uma identidade substancial entre a prisão cautelar e a prisão como pena e “uma equivalência quanto às funções reais objetivamente exercidas” (GIAMBERARDINO, 2008b, p. 65), e ao buscar racionalizar a manifesta e inevitável violação ao princípio da presunção de inocência pela prisão cautelar, as teses processualistas legitimam o funcionamento do sistema penal cautelar. (ZAFFARONI, 2007, p. 113) De forma precisa, Giamberardino (2008b, p. 66) assevera que

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A questão que se coloca é se ainda se pode honestamente conceber a hipótese de, uma vez observados e respeitados os princípios informadores voltados à limitação da utilização da prisão cautelar, utilizá-la enquanto medida estritamente processual, marcada pela excepcionalidade e pela proporcionalidade. [...] Na medida em que o controle interno pelo qual tanto se luta é todo fundado em parâmetros normativos, vê-se que há uma operacionalidade real em outro plano a prevalecer. Por isto é que a crítica se deve dar neste plano, não sendo suficientes os parâmetros normativos; optando-se, aqui, pela perspectiva segundo a qual, dentro das novas estratégias de controle social, marcadas por um modelo tecnocrático de gestão das penalidades, a prisão cautelar exerce papel assaz central que não se coloca passível de limitação pelas garantias formais. Em outras palavras, significa dizer que a prisão cautelar existe para ser abusiva; e negá-lo sob teses processualistas, mesmo com a boa intenção de limitá-la e reduzir sua aplicação, implica risco de ocultar o desempenho de sua real função. (grifo nosso)

Desse modo, considerando que as teses processualistas e as substantivistas tiveram seu maior desenvolvimento, respectivamente, nas escolas clássica e positiva e que a práxis de ambas as posições implica na legitimação do funcionamento do sistema penal cautelar; e considerando os princípios enumerados por Alessandro Baratta (2002, p. 41-48) para agrupar sob a denominação de ideologia da defesa social as concepções comuns às duas escolas, percebe-se que elas também apresentam orientações semelhantes no campo processual penal, podendo ser afirmado que a referida ideologia é também integrada pelo princípio da necessidade da prisão cautelar. Deve-se atentar, sobretudo, para a seguinte reflexão de Baratta (2002, p. 43-44): O conceito de defesa social parece ser, assim, na ciência penal, a condensação dos maiores progressos realizados pelo direito penal moderno. Mais que um elemento técnico do sistema legislativo ou do dogmático, este conceito tem uma função justificante e racionalizante com relação àqueles. Na consciência dos estudiosos e dos operadores jurídicos que se consideram progressistas, isso tem um conteúdo emocional polêmico e, ao mesmo tempo, reassegurador. De fato, por ser muito raramente objeto de análise, ou mesmo em virtude desta sua aceitação acrítica, o seu uso é acompanhado de uma irrefletida sensação de militar do lado justo, contra mitos e concepções mistificantes e superados, a favor de uma ciência e de uma práxis penal racional.

Assim, outro obstáculo epistemológico para o estudo crítico da prisão cautelar consiste no fato de que o discurso legitimador do instituto está a tal ponto enraizado no imaginário coletivo que aqueles que ousam discutir sua compatibilidade com os direitos e garantias fundamentais são automaticamente vistos como loucos.

2412

2.2 A inadequada utilização das categorias da teoria geral do processo para a compreensão da tutela cautelar no processo penal

Outra questão apontada por Giamberardino é a indevida utilização de categorias importadas do direito processual civil na compreensão da tutela cautelar processual penal. Mais especificamente, menciona o autor que a utilização da noção de lide de Carnelutti na fundamentação da cautelaridade no processo penal desvirtua o sistema de garantias fundamentais do réu. De fato, se o fundamento da tutela cautelar para os adeptos da teoria geral do processo é a repartição de riscos entre os interesses em jogo, concepção decorrente da noção de lide de Carnelutti, podemos dizer que para o direito processual penal tal ponto de partida é um verdadeiro obstáculo epistemológico, na medida em que a Constituição – ao garantir aos acusados que sejam presumidos inocentes até o trânsito em julgado dos processos e ao prever que na dúvida sobre a condenação (e a prisão preventiva caba sendo uma condenação antecipada) deve prevalecer a liberdade – já fornece de antemão o viés hermenêutico para analisar qual prato da balança deve prevalecer. Se é que existe uma pretensão acusatória vinculada a um interesse de acautelamento do resultado possível do processo, a condenação, mediante a prisão provisória, ou mesmo a um interesse de antecipação da pena, ideias que nos parecem autoritárias por presumirem “um conflito imanente entre imputado e Estado” (GIAMBERARDINO, 2008a, p. 42), ainda assim as garantias constitucionais apontam que muito mais importantes são os interesses opostos, da liberdade até o trânsito em julgado, pois uma vez violados nunca serão devidamente compensados. A tal compreensão dificilmente se chega com a utilização dos pressupostos privatistas da teoria geral do processo, onde o dinheiro, equivalente geral para a troca de mercadorias (MARX, 2008, p. 121-131), é visto como idôneo a reparar qualquer dano causado.3

3

Para uma análise sobre como os institutos jurídicos tendem a ser assimilados pela lógica da circulação de mercadorias cf. A teoria geral do direito e o marxismo, de Eugeny B. Pasukanis (1989), e Marxismo e direito, estudo do jurista brasileiro Márcio Brilharinho Naves (2000) sobre a obra do autor russo.

2413

2.3 O fantasma das matrizes autoritárias do Código de Processo Penal

Não se pode olvidar, ainda, do obstáculo epistemológico consistente no ranço antidemocrático legado pelas ideologias positivistas e fascistas aos sistemas penais da atualidade, que se faz presente principalmente nas regulamentações jurídicas das prisões cautelares e em sua fundamentação teórica. Conforme

exposto

anteriormente,

tais

ideologias

foram

responsáveis

pelo

desenvolvimento de teorias e práticas acerca da prisão processual profundamente autoritárias e contrárias ao princípio da presunção de inocência. Embora a princípio possa parecer exagerada a afirmação de que recebemos essa herança, uma breve análise da exposição de motivos do Código de Processo Penal de 1941, em vigor até hoje, inspirado no Codice Rocco fascista, demonstra que nossa legislação processual penal tem suas raízes fincadas no ideário mencionado. Além de conter citação direta de Alfredo Rocco, Ministro da Justiça de Mussolini responsável pelo diploma legal italiano, o documento assinado por Francisco Campos, então Ministro da Justiça do governo Getúlio Vargas, menciona como virtudes do código a restrição da aplicação do in dubio pro reo e a previsão de hipóteses em que a prisão preventiva seria não mais uma faculdade do magistrado, mas um dever. Vale lembrar que, conforme mencionado anteriormente, Ferrajoli (2006, p. 554) considera a criação da prisão processual obrigatória pelo sistema processual fascista como seu “elemento mais perturbador e aberrante”. A prisão preventiva seria obrigatória sempre que ao crime imputado fosse cominada pena de reclusão máxima igual ou superior a 10 anos, “dispensando outro requisito além da prova indiciária contra o acusado” (CAMPOS, 1941). Além disso, outro ponto considerado positivo na exposição de motivos é o fato de que a decretação da prisão preventiva adquiria, com a regulamentação prevista no novel código, a “suficiente elasticidade para tornar-se medida plenamente assecuratória da efetivação da justiça penal” (CAMPOS, 1941). Poderia ser objetado que o código foi bastante alterado, não fazendo sentido dizer que se trata de uma matriz que ainda se faz presente. Contudo, na verdade, muitos dos absurdos ali previstos se mantiveram. Embora a prisão obrigatória não tenha perdurado nos mesmos moldes, ela ainda era possível até recentemente, podendo ser mencionada a prisão decorrente da decisão de pronúncia no procedimento do júri, prevista no antigo § 1º do art. 408 do Código de Processo Penal, revogado somente em 2008, pela Lei 11.689, e a vedação da concessão de liberdade provisória prevista no antigo inciso II do art. 2º da Lei de Crimes 2414

Hediondos (Lei 8.072/90), alterado pela Lei 11.464/07, e no art. 44 da Lei de Drogas (Lei 11.343/06), ainda em vigor, incidentalmente considerado como inconstitucional pelo STF em julgados recentes nesse ponto e no que diz respeito à vedação da conversão das penas em restritivas de direitos. Deve se atentar, com isso, para o fato de que, com a promulgação da Carta de 1988, não apenas não foi realizada a devida filtragem hermenêutico-constitucional dos entulhos legislativos processuais penais produzidos em períodos ditatoriais, como continuaram sendo criadas e aplicadas normas absolutamente contrárias às garantias fundamentais nessa seara. Dentre as práticas oriundas das matrizes autoritárias do Código de Processo Penal que se fazem presentes até os dias de hoje podem ser mencionadas a inexistência de prazos máximos para a prisão preventiva e os critérios para a decretação da mesma. Na exposição de motivos é afirmado que “a prisão preventiva poderá ser decretada toda vez que o reclame o interesse da ordem pública, ou da instrução criminal, ou da efetiva aplicação da lei penal” (CAMPOS, 1941). A atual redação do art. 312 do Código de Processo Penal, mesmo após a recente alteração legislativa do sistema cautelar processual penal pela Lei 11.403/2011, tida por muitos como progressista e avançada, permanece albergando as mesmas hipóteses, acrescidas apenas da “garantia da ordem econômica”. Desse modo, percebe-se que nosso ordenamento jurídico adota uma posição substantivista ao prever a possibilidade de prisão do acusado no curso do processo não só para fins processuais, mas também com objetivos próprios da pena privativa de liberdade, posição que é histórica e filosoficamente vinculada às tradições autocráticas, conforme analisado anteriormente.

Conclusão

Por fim, entendemos que os juristas que pretendem enfrentar essa forte herança autoritária devem estar atentos ao alerta de Walter Benjamin (2005, p. 83) em sua oitava tese sobre o conceito de história:

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A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” no qual vivemos é a regra. Precisamos chegar a um conceito de história que dê conta disso. Então surgirá diante de nós nossa tarefa, a de instaurar o real estado de exceção; e graças a isso, nossa posição na luta contra o fascismo tornar-se-á melhor. A chance deste consiste, não por último, em que seus adversários o afrontem em nome do progresso como se este fosse uma norma histórica. – O espanto em constatar que os acontecimentos que vivemos “ainda” sejam possíveis no século XX não é nenhum espanto filosófico. Ele não está no início de um conhecimento, a menos que seja o de mostrar que a representação da história donde provém aquele espanto é insustentável.

Da mesma forma que o autor rejeita que a oposição ao fascismo se dê em nome do progresso visto como linear e irresistível e desdenha da perspectiva que considera a ascensão dos regimes totalitários como “vestígio do passado, anacrônico e pré-moderno” (LÖWY, 2005, p. 84), a luta contra os vilipêndios das garantias constitucionais não pode ter por base um assombro em relação ao fato de que “ainda” sejam a regra na prática cotidiana. Cabe aos juristas críticos perceberem a necessidade urgente de ruptura com o sistema penal posto, compreendendo que ele é peça crucial do continuum da dominação, o que se manifesta com a persistência em sua estrutura de institutos e práticas vinculados à inquisição, ao positivismo criminológico, ao fascismo, ao nazismo, às ditaduras militares, etc., e de construção de um novo, pautado primordialmente na defesa da dignidade da pessoa humana. Ou talvez – seguindo a advertência de Radbruch (2004, p. 246) de que “não temos que fazer um direito penal melhor, mas sim algo melhor do que o direito penal” – seja necessária a criação de formas de controle social melhores que o sistema penal, pois este sempre foi instrumento do estado de exceção permanente, principalmente na contenção dos esforços históricos pela sua ruptura, conforme afirma Zaffaroni (2003, p. 98-99) no seguinte trecho: Se existe alguma dúvida acerca do enorme poder verticalizador do sistema penal, basta olhar para a experiência histórica: o sindicalismo, o pluralismo democrático, o reconhecimento da dignidade das minorias, a própria república, conseguiram estabelecer-se sempre em luta contra esse poder. Qualquer inovação social que se fizer em prol do desenvolvimento humano deverá enfrentar o sistema penal: todo conhecimento e todo pensamento abriu caminho confrontando-se com o poder punitivo. A história ensina que os avanços da dignidade humana sempre ocorreram em luta contra o poder punitivo.

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