Pro salute anime: a peregrinação de D. Dinis a Compostela. Antecedentes e consequências.

Share Embed


Descrição do Produto

incipit

1

WORKSHOP DE ESTUDOS MEDIEVAIS DA UNIVERSIDADE DO PORTO 2009–10

GIHM GRUPO INFORMAL DE HISTÓRIA MEDIEVAL

think medieval

Coordenação de Flávio Miranda e Joana Sequeira Universidade do Porto Faculdade de Letras Biblioteca Digital, 2012

Grupo Informal de História Medieval CITCEM, Universidade do Porto, Faculdade de Letras Via Panorâmica 4150-564 Porto Portugal www.gihmedieval.com

Incipit 1 Workshop de Estudos Medievais da Universidade do Porto, 2009–10

COORDENADORES Flávio Miranda CITCEM, Universidade do Porto Joana Sequeira CITCEM, Universidade do Porto

Porto, 2012 Universidade do Porto, Faculdade de Letras, Biblioteca Digital ISBN: 978-972-8932-94-7

Apoio:

Ficha técnica Título: Incipit 1. Workshop de Estudos Medievais da Universidade do Porto, 2009–10 Coordenadores: Flávio Miranda, Joana Sequeira Editor: Universidade do Porto, Faculdade de Letras, Biblioteca Digital Local de edição: Porto Ano de edição: 2012 ISBN: 978-972-8932-94-7 Capa: Flávio Miranda Grupo Informal de História Medieval CITCEM, Universidade do Porto, Faculdade de Letras Via Panorâmica 4150-564 Porto Portugal www.gihmedieval.com

SUMÁRIO

Lista de autores .................................................................................................................................................. vii Incipit .................................................................................................................................................................. ix Filipa Lopes O Domínio Fundiário do Mosteiro de Paço de Sousa nos séculos XI e XII. Apresentação de um Projecto de Dissertação de Mestrado em História Medieval................................................................................................. 1 Giulia Rossi Vairo Pro Salute Animae: a peregrinação do rei D. Dinis a Compostela. ................................................................... 9 João Costa Palmela nos finais da Idade Média. Estudo do códice da Visitação e Tombo de propriedades da Ordem de Santiago de 1510. Apresentação do projecto de Mestrado ............................................................................... 23 Thiago Borges Da sacralidade à centralidade: breve análise comparatista acerca das representações cartográficas da cidade de Jerusalém nos mapas-múndi medievais do século XIII.................................................................. 31 Helena Regina Lopes Teixeira Elites Sociopolíticas na Urbanização do Porto no Final da Idade Média ........................................................ 45 Maria Amélia Álvaro de Campos Estudar uma Colegiada Urbana Medieval no contexto de um projecto de doutoramento............................. 57 Marta Dias A Liturgia dos Defuntos na Arte Funerária Medieval ...................................................................................... 65 Rita Nóvoa As atitudes face à doença no Portugal dos séculos XIV e XV: a lepra, os leprosos e as leprosarias ............... 77 Gonçalo Graça Portugueses na Biscaia nos finais da Idade Média ...........................................................................................89 Helena Pizarro A Rua Nova na cidade do Porto entre os séculos XV e XVI: urbanismo, construção e sociedade ................. 99

LISTA DE AUTORES

Thiago Borges Universidade de Lisboa Maria Amélia Álvaro de Campos Universidade de Coimbra João Costa CEH, Universidade Nova de Lisboa Marta Dias CITCEM, Universidade do Porto Gonçalo Graça Universidade da Cantábria Filipa Lopes CITCEM, Universidade do Porto Rita Nóvoa IEM, Universidade Nova de Lisboa Helena Pizarro Universidade do Porto Helena Teixeira CITCEM, Universidade do Porto Giulia Rossi Vairo IHA, Universidade Nova de Lisboa

vii

INCIPIT

Mais de dois anos depois da realização do primeiro Workshop de Estudos Medievais (WEM), é finalmente publicado o volume inaugural que reúne os textos apresentados e discutidos pelos oradores das edições de 2009 e 2010. Organizado pelo Grupo Informal de História Medieval da Universidade do Porto, com a colaboração do Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória (CITCEM), e do Curso de Mestrado em História Medieval e do Renascimento da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, o WEM é um fórum anual de discussão científica destinado a mestrandos e doutorandos em Estudos Medievais. Este volume não é temático. Nas primeiras duas edições do WEM foram debatidas questões relacionadas com as ordens militares, história urbana, arte funerária, cartografia histórica, e questões sobre os portugueses como estrangeiros, domínios fundiários de mosteiros, colegiadas urbanas e a lepra em Portugal na Idade Média. Os leitores encontrarão aqui um conjunto de trabalhos em estado embrionário: são ideias de um projeto, hipóteses de investigação e resultados preliminares de estudos de história, história da arte e cartografia histórica. Para alguns dos autores, esta é mesmo a sua primeira publicação científica. Daí que Incipit seja o título adequado para este volume – por representar um começo e poder ser o princípio de uma carreira de investigação. Este volume é o produto do trabalho dos mestrandos e doutorandos que participaram no WEM, cujos textos foram apreciados numa primeira fase por professores de várias universidades portuguesas, para estes que os pudessem melhorar e desenvolver. O nosso primeiro obrigado é endereçado aos autores e a todos os professores que contribuíram com a sua experiência e conhecimento nas sessões do WEM. Os editores querem ainda agradecer a todos os membros do Grupo Informal de História Medieval, ao Professor Luís Miguel Duarte e à Professora Cristina Cunha (então diretora do curso de mestrado de História Medieval e do Renascimento); ao Professor Gaspar Martins Pereira, pelo apoio do CITCEM a esta iniciativa, e à Dr.ª Paula Montes Leal, pelo excelente trabalho na organização. Gostaríamos ainda de agradecer o apoio financeiro concedido pela Reitoria da Universidade do Porto e a Fundação para a Ciência e a Tecnologia para a organização do WEM e publicação deste volume.

Porto, novembro de 2011 Flávio Miranda Joana Sequeira

ix

2 Pro Salute Animae: a peregrinação do rei D. Dinis a Compostela. Antecedentes e consequências Giulia Rossi Vairo1 IHA, Universidade Nova de Lisboa Resumo Em 1318 o rei D. Dinis resolveu ir em romaria a Compostela, para recolher-se em oração sobre o túmulo do Apóstolo São Tiago Maior. Perante o curioso silêncio das Crónicas e a inquestionável indiferença da historiografia portuguesa em relação a este episódio, pretende-se reconstruir, através das fontes a disposição, os tempos e as modalidades da jornada do monarca a Compostela. Nomeadamente, serão indagadas as motivações e as razões profundas deste acto de devoção pessoal do soberano, a fim de avaliar a sua carga simbólica e de contextualizar este gesto no âmbito das complexas dinâmicas de poder daqueles anos. Para isso, serão analisadas algumas iniciativas e acções concretas empreendidas por D. Dinis ao longo daquele mesmo ano no âmbito político, social, religioso, cultural, artístico e as relativas também à esfera pessoal do rei, interpretadas como directas consequências da peregrinação a Compostela. Abstract In 1318, the King Dinis decided to go on pilgrimage to Compostela, to gather in prayer on the tomb of the Apostle saint James. In front of the curious silence of Chronicles and the unquestioned indifference of Portuguese historiography in relation to this episode, we intend to rebuild, through the available sources, the chronology and modalities of the jornada of the King to Compostela. In particular, we will study the motivations and reasons for this expression of the devotion of the monarch in order to assess its symbolic meaning and to contextualize this act within the complex dynamics of power during those years. For this, will be examined some initiatives and actions taken by D. Dinis along that same year within the political, social, religious, cultural and artistic field, together with those relating to the personal sphere of the sovereign, interpreted as direct consequences of the King's pilgrimage to Compostela.

Este artigo visa fazer luz sobre a peregrinação de D. Dinis a Compostela, realizada em 1318, episódio da vida do rei reconhecido pela historiografia portuguesa, mas que nunca foi verdadeiramente objecto de aprofundamento científico. Perante o silêncio das crónicas, procurou-se reconstruir a jornada do soberano a Santiago de Compostela através do estudo de fontes documentais, editadas ou inéditas, mas sobretudo tomando em consideração factos ocorridos naquele mesmo ano de 1318. Lidos no âmbito do quadro geral dos acontecimentos daqueles anos, cruciais para a vida da Monarquia portuguesa, estes factos podem ser interpretados, em conjunto com as referidas fontes documentais, como consequências directas do acto de devoção do monarca. No início de 1318, o rei D. Dinis resolveu ir em peregrinação a Compostela para se recolher em oração sobre o túmulo do Apóstolo São Tiago Maior. 1 Membro do IHA. Doutoranda em História da Arte Medieval na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (Ref. SFRH / BD / 43795 / 2008). Este artigo apresenta o resultado da investigação desenvolvida no âmbito do projecto de Doutoramento até a data de 1 de Abril de 2010. Não obstante a evolução dos estudos decorrida nos últimos meses, resolveu-se manter o conteúdo do artigo substancialmente inalterado, introduzindo correcções e acrescentos pontuais no texto e algumas notas de rodapé, reenviando à tese o necessário aprofundamento do tema.

9

Incipit 1. Workshop de Estudos Medievais da Universidade do Porto, 2009–10

A historiografia portuguesa não tem assumido uma atitude unívoca em relação a este acontecimento tão importante da vida de D. Dinis: ao silêncio das crónicas seguiuse uma omissão geral do assunto pela maior parte dos historiadores. Com excepção de alguns autores que têm defendido a efectiva realização da jornada a Compostela,2 é curioso observar a continuação da indiferença total, nos estudos respeitantes ao reinado de D. Dinis, para com este tema ou a escassa vontade manifestada pelos investigadores de indagar e aprofundar este episódio, revelador da espiritualidade do soberano. Parece até que este acto penitencial, expressão, em certos aspectos, da grande humildade do seu protagonista, não se adapta à imagem do rei forte e sábio encarnado pelo Rei Lavrador, mito historiográfico que, ainda hoje, não obstante as novas leituras e o florescimento dos estudos relativos ao reinado dionisino, sobrevive à passagem do tempo. O Rei Lavrador, ao longo dos anos, foi substituído pelo Rei Civilizador e pelo Rei Poeta e Culto. Todavia, ainda não foi verdadeiramente investigado o rei D. Dinis, “filho obediente da Santa Igreja de Deos”, como ele próprio se proclama, muito oportunamente, no testamento de 13223, mas também como ele é definido pelo papa João XXII em diversas cartas dirigidas a ele e aos seus familiares, antes e depois do seu falecimento4. Ao contrário do esquecimento a que este episódio da vida de D. Dinis foi votado, de resto vale a pena sublinhar a atenção e o espaço dados à peregrinação a Santiago realizada pela rainha Isabel, a partir da Crónica de D. Dinis de Rui de Pina e, em geral, em toda a produção historiográfica nacional.5 Nem a Crónica de D. Dinis de 14196 nem a Crónica delRey D. Dinis de Rui de Pina (1440-1512)7 referem a peregrinação do rei ao túmulo de São Tiago Maior. Porém, temos a narração, pródiga de informações, do cronista régio, o monge cisterciense frei Francisco Brandão. De facto, o capítulo LXIV da VI Parte da Monarquia Lusitana (1672) é parcialmente dedicado à descrição do caminho de D. Dinis a Compostela, empreendido juntamente com um grupo de nobres e fiéis servidores: primeiro, entre todos, o inseparável D. Afonso Sanches, filho natural e mordomo mor do monarca.8 O cronista conta que o soberano partiu de Lisboa no início do ano de 1318, chegando ao destino a 12 de Fevereiro, dia da festa de Nossa Senhora da Purificação (sic). Na indicação da data de chegada do cortejo real deve reconhecer-se um erro, provavelmente do tipógrafo, pois a festividade em questão, a festa da Purificação da Virgem Maria, vulgarmente recordada como Nossa Senhora da Luz ou Nossa Senhora das Candeias e mais popularmente conhecida como “Festa da Candelária”, é uma festa fixa no calendário litúrgico. Ocorre exactamente 40 dias após o parto da Virgem Maria e, portanto, calha sempre no dia 2 de Fevereiro e não a 12, dia em que se celebra a memória de Sta. Eulália, virgem e mártir9. Porém, não deve ter sido casual o facto de, por ocasião de tal festividade, ter sido celebrada uma missa solene e, ao mesmo tempo, de boas-vindas ao

Cf. F. Lopes, “Santa Isabel de Portugal e a larga contenda entre el-rei D. Dinis e seu filho D. Afonso”, Colectânea de Estudos 4 (1953), 3-41, cfr. 16, n. 1; J. A. de Sotto Mayor Pizarro, D. Dinis (Lisboa: Temas & Debates, 2005), 234. 3 Para o testamento de 20 de Junho de 1322 de D. Dinis, veja-se: A. C. de Sousa, Provas da História Genealógica da Casa Real Portuguesa (Coimbra: Atlântida - Livraria Editora, 1947), I, 3, 125-132, doc. 11, cf. 131. 4 1 de Março de 1325, Avinhão, Instituto dos Arquivos Nacionais – Torre do Tombo, Bulas, maço 68, caixa 30, docs. 7071. Transcreve-se uma passagem da carta dirigida pelo pontífice à rainha Isabel, dando as condolências pela morte do marido, referindo a devoção do falecido rei: cf. doc. 71: “cum non potuerimus de tam devotissimi et carissimi subtractione filii non dolere, felix tamen ipsius Regis transitus, qui devotione ad Deum et Sanctam Ecclesiam clarens precipua, et zelo fidei orthodoxe accensus, devote receptis sacramentis Dominicis, de morte transisse ad vitam, et in excelsis cum amicis et electis Dei obtinuisse mansionem perpetuam creditur”. 5 Sobre a rainha D. Isabel de Aragão peregrina a Santiago de Compostela, veja-se: H. Baquero Moreno, “Santa Isabel, Rainha de Portugal peregrina a Santiago de Compostela”, em Portugal na memória dos peregrinos. Actas das Jornadas sobre o Caminho de Santiago (Porto, 29-30 Novembro 2001), 17-26 (Santiago de Compostela: Xunta de Galicia) e F. Pato de Macedo, Isabel de Aragão, Rainha de Portugal, peregrina de Santiago, em III Memorial Filgueira Valverde. Santiago y Peregrinación, 9-43 (Pontevedra: Publicación da Cátedra Filgueira, 2004). 6 Crónica de D. Dinis, edição do texto inédito do Cód. Cadaval 965 por C. da Silva Tarouca (Coimbra: Universidade de Coimbra, 1947). 7 Rui de Pina, Crónica de D. Dinis, (Porto: Civilização, 1945). 8 F. Brandão, Monarquia Lusitana (Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1980), VI, 18, cap. LXIV, ff. 268-272. 9 A. Cappelli, Cronologia, Cronografia e Calendario perpetuo (Milano: Ulrico Hoepli Editore, 1988), 118. 2

10

Pro Salute Animae: a peregrinação do rei D. Dinis a Compostela. Antecedentes e consequências

rei por D. Berenguel de Landora, que somente pouco tempo antes tomara posse do arcebispado de Compostela.10 Também Hernando del Castillo, autor citado por Francisco Brandão, na II Parte da sua Historia General de Santo Domingo y de su Orden (1612), ao contar a vida de D. Berenguel, pertencente à família dominicana, refere com pormenores o encontro entre D. Dinis e o prelado que, na evolução do conflito entre o monarca português e o herdeiro do trono, assumirá um papel pacificador e de intermediário por explícito mandato da Sé Apostólica11. Além destas fontes literárias tardias, outros dados e documentos podem ser adoptados em favor da realização da peregrinação de D. Dinis de acordo com os tempos e as modalidades recordados pelo cronista régio. Por exemplo, o estudo dos itinerários do rei, estabelecidos a partir da análise da Chancelaria dionisina, a documentação emitida pela administração régia, parecem confirmar o efectivo desenvolvimento da peregrinação em 1318 e na altura do ano indicada12. De facto, embora seja obrigatório lembrar que a Chancelaria não constitui um tombo completo, pois pode apresentar lacunas também consistentes, podemos confirmar o que é referido pela Monarquia Lusitana, confrontando os dados surgidos através da análise dos itinerários com as afirmações do autor. Portanto, é provável que o D. Dinis tenha ido em peregrinação a Compostela entre 12 de Janeiro, data a que remonta o último diploma, emitido de Estremoz, registado pela Chancelaria antes de uma longa pausa, e o dia 22 de Fevereiro, data em que encontramos novamente o rei em Montemor-o-Novo. Trata-se dum lapso de tempo bastante amplo (41 dias), em que a Chancelaria, pelo menos em função dos dados disponíveis, permanece “muda”, ao contrário de outros meses do ano quando a produção de diplomas e autos, se bem com algumas pausas que chegam a atingir a quinzena de dias, apresenta prazos em geral bastante mais curtos13. Por outro lado, a favor desta hipótese está a descoberta, pelos especialistas do sector, de segmentos de possíveis itinerários jacobeus no Alto e Baixo Alentejo, incluindo cidades como Estremoz e Montemor-o-Novo, coincidentes, na sua maior parte, com trajectos das antigas vias romanas.14 A confirmação ideal dos limites temporais (12 de Janeiro – 22 de Fevereiro de 1318) é a carta apostólica, até hoje inédita, de João XXII, datada de 14 de Março 1318, em que o Papa concede a D. Dinis a possibilidade de outorgar a total remissão dos pecados in articulo mortis, precedida de uma prévia, sincera e contrita confissão, enviada em resposta a uma súplica do soberano, remontando evidentemente a algum tempo antes de jornada ser empreendida, e que poderá ser lida na perspectiva do percurso de purificação ou de preparação ao caminho penitencial ou, mais simplesmente, de reflexão pessoal protagonizada pelo monarca15.

A nomeação de D. Berenguel de Landora, mestre da Ordem de São Domingos, para o arcebispado de Compostela remonta a 13 de Julho de 1317, mas ele só chegou a tomar posse da arquidiocese no início do ano de 1318; v. infra e nota seguinte. 11 H. del Castillo, Segunda Parte de la Historia General de Santo Domingo y de su Orden de Predicadores (Valladolid: por Diego Fernandez de Cordova, 1612), cap. XXXIV-XXXIX, ff. 53v coluna a - 54v coluna a. Sobre o papel desempenhado por D. Berenguel de Landora durante a guerra civil, veja-se F. Lopes, “Santa Isabel na contenda entre D. Dinis e o filho 1321-1322”, Lusitánia Sacra, VIII (1967-1969), 57-80. 12 V. Rau, Itinerários régios medievais, I, Itinerário del-Rei D. Dinis 1279-1325. Elementos para o estudo da administração medieval portuguesa (Lisboa: Centro de Estudos Históricos, 1962), 80-81. 13 Considere-se que de Lisboa a Porto, via terra, procedendo expeditamente e sem pausas, levava-se pelo menos uma semana; cfr. C. Gil, J. Rodrigues, Pelos caminhos de Santiago. Itinerários portugueses para Compostela (Lisboa: Círculo de Leitores, 1990). 14 Para os itinerários jacobeus na região do Alto e Baixo Alentejo, veja-se: Gil, Rodrigues, Pelos caminhos e a comunicação apresentada por J. A. Falcão, “Iconografia Jacobeia e o caminho de Santiago no Baixo Alentejo. Balanço de resultados, metodologias e problemas em aberto”, em ocasião do VI Encontro sobre Ordens Militares. Freires, Guerreiros, Cavaleiros (Palmela, 10-14 de Março de 2010), que proximamente será publicada nas Actas do Congresso. 15 14 de Março de 1318, de Avinhão, Arquivo Secreto Vaticano, Registri Vaticani, 67, ep. 836. 10

11

Incipit 1. Workshop de Estudos Medievais da Universidade do Porto, 2009–10

O ANO DA PACIFICAÇÃO: 1318 Desde logo, 1318 apresenta-se como um ano chave na vida de D. Dinis, a nível público e privado, pois, nos meses que seguiram, irá tomar decisões delicadas, cheias de implicações futuras para si próprio, para a sua família e para o Reino de Portugal. O ano de 1317 tinha começado sob os melhores auspícios com o nascimento do neto a que tinha sido atribuído o nome do rei, o infante D. Dinis (12 de Fevereiro de 1317)16, mas logo foi abalado pelas inquietações, suspeitas e desavenças surgidas na família real, primeiros sinais da guerra civil que, poucos anos depois, entre 1319 e 1324, terá posto à prova a estabilidade do reino. A gravidade da situação foi tal que exigiu mesmo a intervenção do pontífice João XXII, que se expressou sem demora a favor do rei e contra todos os que se opunham e obstavam ao seu governo, ameaçando-os com pena de excomunhão.17 Um tal estado de tensão teve que se prolongar até aos inícios de 1318, pois remontam ao mês de Março três cartas apostólicas em que, com tons ligeiramente diversos, João XXII se dirige respectivamente ao rei, à rainha e ao herdeiro do trono (estes últimos dois mancomunados no ressentimento contra o soberano), exortando-os à reconciliação em nome da concórdia familiar e da paz do Reino de Portugal18. A exortação do Papa não foi vã porque, de facto, em 1318 não se registam outros confrontos directos entre pai e filho – nem entre marido e mulher - mas, pelo contrário, assistimos a uma substancial recomposição do conflito: será necessário esperar pelo ano de 1319 para ver novamente e mais dramaticamente contraporem-se os contendentes. Numa leitura retrospectiva dos acontecimentos, poderia afirmar-se que 1318 se apresenta como um ano de trégua, um ano “suspenso” entre as primeiras e mais concretas manifestações do conflito (1317) e o violento e definitivo rebentar da guerra civil (1319-1324).19 Uma série de iniciativas empreendidas por D. Dinis ao longo de 1318, nos meses seguintes à peregrinação a Compostela, parecem ir na direcção de uma pacificação familiar e de uma diminuição das tensões, que podem ser atribuíveis mesmo à experiência espiritual vivida em primeira pessoa pelo soberano. A Monarquia Lusitana conta que, após a viagem à Galiza, o ano passou tranquilo e sem problemas. A partir dos finais do mês de Abril, o rei mudou-se para Torres Vedras, onde ficou até ao início de Julho, segundo os itinerários. Foi provavelmente durante esta longa estadia que D. Dinis, numa área rural pertencente ao concelho de Torres Vedras, junto à foz do rio Alcabrichel, ordenou a realização de uma obra pública, um porto, recordado nas fontes como o Porto de S. Dinis, o actual Porto Novo20. Além disso, determinou ainda que quem quisesse podia estabelecer-se e construir ali a sua casa, a fim de povoar e tornar “viva” uma zona até àquele momento desabitada. Na ocasião, decidiu também que, naquela mesma área, se levantasse uma igreja intitulando-a da invocação do seu santo protector, São Dinis, ao qual, por devoção, em 1295, já tinha dedicado a construção de um mosteiro cisterciense, confiado ao ramo feminino da ordem, em Odivelas, nos arredores de Lisboa. 16 O infante D. Dinis, terceiro filho do casal formado por D. Afonso e D. Beatriz, nasceu a 12 de Fevereiro de 1317 (S. Eulalia), e não a 12 de Janeiro, como a Monarquia Lusitana refere, transcrevendo erroneamente a notícia extraída do Livro da Noa; cfr. Brandão, Monarquia Lusitana, XVIII, cap. XXXII, f. 133, coluna b e Livro da Noa de Santa Cruz de Coimbra, em de Sousa, Provas, 47-66, cfr. 54. 17 10 de Junho de 1317, de Avinhão, ASV, Reg. Vat., 109, ep. 321-323, ff. 73r-74r; cfr. Lopes, “Santa Isabel”, em Apêndice, 27-28, trascreve a epístola 321. 18 21 de Março de 1318, de Avinhão, ASV, Reg. Vat., 109, ep. 499-501, ff. 120r-121r; cf. Lopes, “Santa Isabel” em Apêndice, 29-31 trascreve as epístolas 499-500. 19 Os primeiros sinais da desavença entre D. Dinis e o herdeiro do trono tiveram lugar alguns anos antes, entre 1312 e 1313, por ocasião da disputa da herança de D. João Afonso, Conde de Barcelos, que, no princípio, tinha visto contraporse o conde Martim Gil, mordomo mor do príncipe herdeiro, e D. Afonso Sanches, filho natural de D. Dinis. Este último, com o apoio do pai, saiu vencedor da contenda. Também a herança de D. Martim Gil, falecido no fim de 1312, transitou para D. Afonso Sanches que, no ano seguinte, foi nomeado mordomo mor do rei; cfr. Lopes, “Santa Isabel”, 7-11; sobre os primórdios e a evolução da guerra civil, veja-se: J. Mattoso, “A guerra civil de 1319-1324”, em Estudos de História de Portugal, I, Séc X-XV. Homenagem a H. de Oliveira Marques, 163-175 (Lisboa: Imprensa Universitária - Editorial Estampa, 1982), v. infra. 20 A. M. Seabra de Almeida Rodrigues, “O “Porto Novo” de D. Dinis e o “Porto do Carro” de D. Fernando”, em Espaços, Gente e Sociedade no Oeste. Estudos sobre Torres Vedras Medieval, 17-24 (Cascais: Patrimónia Histórica, 1996).

12

Pro Salute Animae: a peregrinação do rei D. Dinis a Compostela. Antecedentes e consequências

O projecto de edificação da igreja de S. Dinis de Porto Novo, documentado nas fontes literárias e arquivísticas, existia há alguns anos. Provavelmente, o edifício nunca foi acabado: embora D. Dinis possuísse todas as autorizações necessárias, não conseguiu terminar a construção devido à disputa surgida com a Abadia de S. Maria de Alcobaça e o concelho de Torres Vedras, relativa à jurisdição territorial da área rural sobre a qual devia ser levantada a igreja e de que a abadia se declarava proprietária. A contenda prolongou-se até 1322, concluindo-se com o reconhecimento dos direitos dos monges. Porém, o rei defendeu sempre as novas instalações e, apesar de obrigar os residentes a respeitar as condições impostas pelo capítulo alcobacense, nunca este conseguiu recuperar totalmente os terrenos. Seria interessante indagar sobre as razões das resistências da abadia de Alcobaça para com o projecto – no fundo, tratava-se sempre de um edifício sagrado, construído para benefício e em suporte espiritual da comunidade que ali se tinha estabelecido -, mas não é este ponto que vamos tratar. D. Dinis obtivera alguns anos antes, em 1312, a licença para edificar um novo templo, manifestando desde então o desejo de dedicá-lo ao seu santo protector, mas o projecto, por um motivo ou por outro, tinha sido posto de lado21. Tê-lo retomado, e com tal determinação, em 1318, nos meses imediatamente sequentes à sua peregrinação, pode ser entendido como um ex voto relacionável com a experiência espiritual vivida. Entre as acções empreendidas pelo rei em sinal de paz deve ser considerada também a compra por parte de D. Dinis ao filho, D. Afonso Sanches, de Campo Maior, vila fortificada no Alentejo, na fronteira com o Reino de Castela e Leão22. Para além da importância estratégica da localidade, é preciso lembrar que, em 1308, Campo Maior havia sido objecto da contenda surgida à volta da posse de uma avultada herança. Um dos contendentes foi o conde D. Martim Gil, mordomo do infante D. Afonso, e o outro foi D. Afonso Sanches: em 1312, a vila foi cedida a este último por intervenção indirecta de D. Dinis, não sem contestações por parte do conde e do infante. O protesto atingiu um tal nível que alguns historiadores fazem remontar a esta circunstância o início das desavenças entre o rei e o herdeiro do trono23. Desse modo, o facto de o soberano ter querido recuperar e fazer reentrar no património da Coroa a vila de Campo Maior, pode ser interpretado como um acto concreto, mas, ao mesmo tempo, simbólico, expressando o desejo e o intuito de pacificação e de concórdia de D. Dinis para com o infante D. Afonso.24 O MOSTEIRO DE S. DINIS DE ODIVELAS NO DESENHO DE RECONCILIAÇÃO FAMILIAR Remonta igualmente a 1318 a decisão de D. Dinis, partilhada também pela rainha Isabel e pelo infante D. Afonso, de fazer do Mosteiro cisterciense de S. Dinis de Odivelas o novo panteão familiar e, em sentido lato, o novo panteão régio25 em alternativa à Abadia de Sta. Maria de Alcobaça, onde, até àquela altura, se tinha concentrado a maioria das sepulturas dos membros da Casa Real.26 Durante os anos precedentes, o rei tinha manifestado para com o mosteiro, fundado em 1295 sobre terrenos de sua propriedade pouco distantes do paço real de Frielas, nos arredores de Lisboa, uma predilecção explícita, a partir do ano de fundação, através da cedência do padroado de igrejas, da doação de terras de cultivo, casais e casas, da concessão de privilégios, como a possibilidade de herdar bens de raiz por parte das monjas por um período de 10 anos, e de isenções especiais. Além disso, em diversas ocasiões o soberano tinha confirmado por escrito a protecção outorgada ao cenóbio de Brandão, Monarquia Lusitana, XVIII, cap. LXV, ff. 272, coluna a – 275, coluna b. 18 de Outubro de 1318, de Serra del Rey, Atouguia, IAN/TT, Chancelaria de D. Dinis, Livro 3, f. 122; original: Gav. 12, maço 10, doc. 6. V. infra. 23 Cfr. nota 19. 24 Cfr. nota 17. 25 G. Rossi Vairo, Isabella d’Aragona, regina del Portogallo, e il Monastero di S. Dinis di Odivelas, em Actas IV Congreso internacional Císter en Portugal y en Galicia. Los caminos de Santiago e la vida monástica cisterciense, coord. M. Á. González Garcia e J. L. Albuquerque Carreiras, II, 845-867 (Braga: Ediciones Monte Casino, 2009). 26 Sobre a Abadia de Sta. Maria de Alcobaça panteão régio, veja-se: J. C. Vieira da Silva, O Panteão Régio do Mosteiro de Alcobaça (Lisboa: IPPAR - Ministério da Cultura, 2003). 21

22

13

Incipit 1. Workshop de Estudos Medievais da Universidade do Porto, 2009–10

monjas cistercienses27. Ao mesmo tempo, as cartas apostólicas de Clemente V, de 130828 e de 1312, enviadas em resposta a pedidos do rei, concediam numerosos dias de indulgência a todos os fiéis que visitassem a igreja do mosteiro e até os mesmos privilégios de que gozava a abadia de Alcobaça.29 Diversos documentos emitidos entre Maio e Outubro de 1318 atestam, mais uma vez, a vontade de D. Dinis em favorecer o mosteiro de Odivelas: é de 4 de Maio o auto de doação no qual o monarca concedia à abadessa e à comunidade religiosa o casal de Leichim, nos arredores de Sintra; de 5 de Maio é o auto de cedência, assinado pela rainha e pelo herdeiro, do padroado das igrejas de S. João de Lumiar e de S. Julião de Frielas30. Mas é num extenso documento, datado de 1 de Outubro de 1318, que se depreende o intuito de fazer do mosteiro o novo panteão régio, quando, ao instituir uma capela, o soberano afirma que os capelães responsáveis teriam de celebrar quotidianamente uma missa e rezar pela salvação da sua alma, do pai e “pollas almas dos outros Reis e Rainhas e Infantes e Infantas que depois em esse mosteiro jouverem”.31 Se neste acto D. Dinis menciona explicitamente o seu monumento, quando dispõe que seja aspergido com água benta no fim de cada celebração, considerando-o um “lugar” para se recolher em oração, uma ulterior confirmação do projecto está contida na carta apostólica de João XXII, de 27 de Fevereiro de 1319, onde se afirma que o rei e a rainha haviam eleito a própria sepultura ecclesiatica comum no Mosteiro de S. Dinis de Odivelas, pelo qual ambos tinham uma especial devoção.32 Da análise da documentação referida, deduz-se que, à data de 1 de Outubro de 1318, o rei já tinha manifestado por escrito, através de um novo testamento ou de um codicilo, a vontade de ser sepultado no mosteiro de Odivelas, uma vez que, no primeiro testamento de 1299, a escolha recaía na abadia de Alcobaça. Esta primeira opção tinha sido partilhada pela rainha que, em confirmação do estabelecido pelo consorte, nesse mesmo sentido se expressara no seu testamento de 131433. Também sabemos que, em 1322, o soberano, naquele que até hoje tem sido considerado o seu segundo testamento, dispõe a sua sepultura em Odivelas exclusivamente para si34. Mas, entre as decisões expressas em 1299 e 1322, deve ter havido um momento em que os cônjuges decidiram ser sepultados juntos no Mosteiro de S. Dinis, pois a carta de João XXII é inequívoca a tal propósito. Portanto, é plausível defender que tal decisão tenha sido tomada exactamente ao longo de 1318 – o ano da trégua – entre os primeiros meses e o fim desse ano, considerando que a carta apostólica já remonta a Fevereiro de 1319. Assim, também o projecto de criar um novo panteão familiar e real deve ser lido no âmbito do desenho de reconciliação e de pacificação com ambições - ou esperanças duráveis, pensado e lançado por D. Dinis, através de diversas iniciativas, mas partilhado também pelos seus familiares.

27 Para o aspecto da fundação e do património do Mosteiro de S. Dinis de Odivelas, veja-se: H. Vasconcelos Vilar e M. J. Branco Silva, A fundação do Mosteiro de Odivelas, em Actas do Congreso Internacional sobre San Bernardo e el Cister en Galicia e Portugal, I, 589-602 (Ourense. Xunta de Galicia, 1992) e M. I. da Silva Pinto, O Mosteiro de Odivelas no século XIV. Património e Gestão (Dissertação de Mestrado em História Medieval, FCSH - UNL, Lisboa 2000). 28 28 de Abril de 1308, de Poitiers, ASV, Reg. Vat, 55, ep. 394; cf. Rossi Vairo, Isabella d’Aragona, Apêndice, doc. 1, 862. 29 15 de Julho de 1312, de Priorato de Grausello, ASV, Reg. Vat., 59, ep. 470; cf. ibidem, docc. 2-3, 863-864. 30 Sobre as diversas doações em benefício do Mosteiro de S. Dinis de Odivelas, veja-se H. Vasconcelos Vilar e M. J. Branco, A fundação do Mosteiro de Odivelas, 597-598. 31 IAN/TT, Mosteiro de S. Dinis de Odivelas, Livro 3, ff. 165-171, cfr. f. 166. Para a análise desta passagem do documento, veja-se: Rossi Vairo, Isabella d’Aragona, 854-855. 32 27 de Fevereiro de 1319, de Avinhão, ASV, Reg. Vat., 69, ep. 375; cfr. Rossi Vairo, Isabella d’Aragona, doc. 4, 864865. 33 Para o primeiro testamento de D. Dinis, veja-se: Brandão, Monarquia Lusitana, V, 17, cap. L, ff. 275 coluna b – 275v, coluna b; para o primeiro testamento de Isabel de Aragão, veja-se de Sousa, Provas, 144-147, doc. 15. 34 O que nos leva a crer que a rainha D. Isabel de Aragão fez outro tanto, alterando, nos anos a seguir, as suas disposições em relação à escolha do locus mortis.

14

Pro Salute Animae: a peregrinação do rei D. Dinis a Compostela. Antecedentes e consequências

PRO SALUTE ANIMAE: A MORTE DO INFANTE D. DINIS E A PEREGRINAÇÃO A COMPOSTELA Neste ponto, é oportuno interrogar – e tentar encontrar uma resposta – sobre as motivações que impulsionaram o rei a encaminhar-se para Compostela mesmo em 1318, no início do ano. Na segunda metade do século XIII, os peregrinos dirigiam-se ainda ao túmulo do Apóstolo na esperança de obter curas milagrosas ou benefícios materiais concretos, como se depreende da leitura de um dos mais ilustres textos literários da época, as Cantigas de Santa Maria de Afonso X de Castela, o Sábio, dedicadas especificamente a tal argumento35. Porém, já nas Partidas, do mesmo autor, refere-se à peregrinação afirmando que “Romarias e pelagrenagens faze os homes pera servir Deus e onrrar os santos”.36 No século XIV, a peregrinação a Compostela tornou-se na expressão de uma devoção pessoal pelo santo ou da preocupação pela salvação da própria alma e daquela dos seus defuntos, ou de um defunto em particular. Além disso, esta podia ser fruto de um voto ou de um acto penitencial imposto pelo confessor, possivelmente a cumprir-se pessoalmente ou, em alternativa, por interposta pessoa.37 Da análise até agora efectuada, pode deduzir-se que D. Dinis revolveu ir homenagear o sepulcro de São Tiago Maior num momento não favorável do ano, considerando o rigor do Inverno no norte do País. Assim esta decisão parece surgir de uma urgência interior do monarca: tem 57 anos, uma idade já bastante avançada para enfrentar uma tal viagem, fisicamente muito cansativa, sobretudo tendo em conta que estamos na centúria de Trezentos. Porém, nos últimos tempos, por mais do que uma ocasião, deve ter parado para meditar sobre a caducidade do ser humano e a vaidade das coisas terrenas, com uma atitude que bem se reflecte na súplica enviada ao Papa, remontando a este mesmo período38. Por certo, as fricções familiares, que tinham começado a manifestar-se de uma forma mais evidente no ano anterior, podem ter pesado na decisão de D. Dinis de cumprir um acto tão emotiva e espiritualmente envolvente. Também o desejo do soberano de recomendar ao santo a alma do pai D. Afonso III, cuja memória é omnipresente em cada auto ou acção do rei, pode ter influenciado a sua resolução. Porém entre as razões concretas que levaram o monarca a encaminhar-se a Compostela poderia ser enumerada também a morte prematura do neto Dinis, ao qual o rei era muito afeiçoado. O historiador franciscano Félix Lopes (1953) defendeu já esta específica circunstância como motivação e origem da peregrinação de D. Dinis a Compostela.39 As crónicas referem uma relação especial entre o soberano e o infante Dinis: tendo sobrevivido aos primeiros delicados meses de vida, este era o terceiro filho do casal dos futuros reinantes, D. Afonso e D. Beatriz, nascido quatro anos depois de Maria (1313-1357) e dois depois de Afonso (1315), falecido recém-nascido. No início, o pai tinha pensado mandar criar e educar o príncipe no vizinho Reino de Castela e Leão, junto da sogra, a rainha mãe Maria de Molina, e o infante D. Pedro, com quem D. Dinis já não se relacionava bem há algum tempo. Todavia, a seguir, provavelmente D. Afonso teve de ceder às insistências do rei, consentindo que o menino fosse confiado aos cuidados da casa paterna40, como, aliás, já tinha acontecido com os primeiros dois filhos

35 M. Cadafaz de Matos, “O culto português a Santiago de Compostela ao longo da Idade Média: peregrinações de homenagem e louvor ao túmulo e à cidade do Apóstolo entre o séc. XI e séc. XV”, Bibliotecas, Arquivos e Museus 1/2 (JulhoDezembro 1985), 521-557. São dedicadas ao tema da peregrinação a Santiago de Compostela as cantigas nn. 175, 186, 218, 253, 268, 278, 367. 36 Alphonse X Primeyra Partida. Édition et étude, ed. J. de Azevedo Ferreira (Braga: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1980), cf. Títolo XXVII° Dos Rromeus e dos pelegrijs en que ha IIII leys, pp. 576 e ss. 37 Da imensa bibliografia sobre o tema da peregrinação, limitar-me-ei a citar: A. Vauchez, Pèlerinages et sanctuaires dans l’Occident médiéval (Xe-Xe siècles), em Les pélerinages dans le monde à travers le temps et l’espace. Actes du colloque organisé par le professeur Jean Chélini le 9 novembre 2005, 73-82 (Paris, 2008), e J. Chélini, H. Branthomme, Le vie di Dio. Storia dei pellegrinaggi cristiani dalle origini al Medioevo (Milano: Jaca Book, 2004). 38 V. nota 15. 39 Cf. Lopes, “Santa Isabel”, 15-16. A este propósito, ocorre espontaneamente uma pergunta: tendo em conta que o infante D. Dinis nasceu a 12 de Fevereiro de 1317, é possível que se tenha tratado de um lapsus o erro cometido pelo cronista Brandão – e não pelo tipógrafo - na indicação da data de chegada do rei a Compostela (12 em vez de 2 de Fevereiro)? 40 Rui de Pina, Crónica de D. Dinis, 100: “E assy ouve o Iffante dom dinis que elRey dom denis seu avoo com grande Amor criava em sua casa e nella faleceo moço”.

15

Incipit 1. Workshop de Estudos Medievais da Universidade do Porto, 2009–10

do casal41. Pois o soberano não podia aceitar o facto de aquele neto que, na altura, aos seus olhos, representava aquele que podia garantir a continuidade do reino, o “futuro herdeiro do trono”, fosse criado em terra estrangeira. Porém, o monarca teve de se esforçar bastante para tê-lo ao seu lado, tendo em conta que no primeiro manifesto pronunciado contra o infante D. Afonso, em Santarém, a 1 Julho de 1320, D. Dinis se queixa, entre as muitas admoestações dirigidas ao filho, do facto de ele ter querido afastar do avô o amado neto42. O afastamento forçado dos netos, sem mencionar explicitamente Dinis, será recordado como uma ofensa e uma culpa também nos dois sucessivos e mais animados manifestos proclamados contra o príncipe rebelde, pronunciados a pouca distância um do outro, a 15 de Maio e ainda a 17 de Dezembro de 132143. O menino Dinis concluiu a sua breve existência provavelmente ao findar o primeiro ano de idade, deixando o avô desconcertado, como testemunham as palavras do cronista Rui de Pina “elrey foy tam anoxado e triste que no sabia nem podia com nenhuma cousa ser ledo nem consollado”44. Tal foi o sofrimento patenteado pelo soberano que mereceu a atenção do pontífice que, alguns meses depois, a 10 de Junho de 1318, dirigiu ao rei, e não aos pais da criança, uma carta de condolências carinhosa e sincera, de um afecto paternal, pela morte não de um parente qualquer, mas do infante bone memorie Dionisii nepotis.45 Na altura, era regra não escrita ir em peregrinação a Compostela pela salvação da alma do defunto, durante o primeiro ano da morte do parente: assim fez a rainha Isabel quando, falecido o consorte a 7 de Janeiro de 1325, se encaminhou no mês de Julho daquele mesmo ano para rezar sobre o túmulo do Apóstolo pela alma do marido e recomendá-la a Deus46. Da mesma maneira, é possível que D. Dinis tenha decidido ir em peregrinação logo a seguir à morte do neto, quase a querer chegar ao destino ainda antes de se completar o primeiro aniversário do nascimento do infante (12 de Fevereiro), no qual tinha depositado as grandes esperanças, suas e do reino. Portanto, é nesta perspectiva que podem ser lidas as acções empreendidas pelo soberano ao regressar de Compostela: a construção do Porto de S. Dinis e a fundação da igreja de S. Dinis. O cronista Brandão define estas iniciativas como genéricas obras de piedade. Porém, por detrás delas, pode ser entrevista a vontade de D. Dinis de homenagear a memória do neto prematuramente falecido, que tinha o seu próprio nome, o do seu santo protector. Às muitas orações rezadas à volta do sepulcro do Apóstolo, seguiram-se acções concretas, muito provavelmente ligadas à jornada a Compostela47. Ibidem, 100: “e tynha cuydado de lhe criar seus filhos que jaa atee este tempo elle ouvera”. F. Lopes, “O primeiro manifesto de el-Rei D. Dinis contra o Infante D. Afonso seu filho e herdeiro”, Itinerarium 13 (1967), 17-45, cf. 42: “Item Quando naçeo o Iffante Don Dinis en Santaren, querendo el Rey fazer o que devya contra el e crialo como cousa que amava e que atendia que veesse ao seu logar se o Deos por bem tevera como era razon de o cuydarem e atenderem os homeens, disse ao Iffante que el o queria criar ca no avya nenhuum na terra que o mays de vontade criasse nem tam bem nem tam onrradamente. E cuydando El Rey, o que era aguysado, que lhy tevesse o Iffante esto en amor e en merçee, tornoulhy o Iffante muy doutra guysa dizendo que el cataria como se criasse dando a entender que nom queria que El Rey criasse e detevelho nojando hy El Rey e mostrandolhy escatima e movendo al Rey preytesia que lhy desse algo por lhy criar El Rey o seu filho, e maravilhandosse El Rey por que lhy pusera esta escusança, soube por certo que se tragia con no Iffante Don Pedro que era emnijgo dEl Rey e da sa terra, que lhy desse o Iffante a criar o seu filho que avya derdar os Regnos de Portugal e do Algarve.”. 43 Para a edição do segundo manifesto, de 15 de Maio de 1321, veja-se: Lopes, “Santa Isabel”, 34-41; pela publicação do terceiro manifesto, de 17 de Dezembro de 1321, vê-se: Livro I de Místicos de Reis. Livro II dos Reis D. Dinis, D. Afonso IV e D. Pedro. Documentos para a história da cidade de Lisboa (Lisboa: Câmara Municipal, 1947), 135-146. 44 Rui de Pina, Crónica de D. Dinis, 100. Também a Crónica de D. Dinis de 1419 regista a morte do neto e o consequente sofrimento do rei: cf. ibid., 173: “Em esta sezão morreo o Iffante D. Denjs; seu avo, elRey, tomou grande nojo”. 45 13 de Junho de 1318, de Avinhão, ASV, Reg. Vat., 109, ep. 576, f. 141r – 141v. Cf. Lopes, “Santa Isabel”, em Apêndice, 30-31, transcreve o texto da epístola. 46 Veja-se H. Baquero Moreno, “Santa Isabel, Rainha de Portugal peregrina a Santiago de Compostela”. 47 Para além da validade do projecto urbanístico, desejava deter-me brevemente no valor simbólico de uma obra pública como a construção de um porto. Voltam à memória as palavras de Séneca dirigidas ao amigo Políbio para consolá-lo da morte do irmão, quando recorda que, após as tempestades e a alternância das marés da vida, os naufrágios, a exposição à força dos ventos, “a morte é o único porto seguro”, a morte que dá paz e que torna “finalmente livre, finalmente seguro, finalmente eterno”. Não temos condições para afirmar se este pensamento ocupava a mente e a alma do rei quando encomendou a obra em questão, mas as palavras do filosofo estóico, que, na Idade Média, se pensava ter sido cristão - o primeiro a fazer de Séneca um cristão foi o dominicano Giovanni Colonna (ca. 1298 – ca. 1343) na sua obra De viris illustribus, mas tal ideia circulava desde o século II -, poderiam perfeitamente adaptar-se ao estado da alma do homem culto, que sofre pela morte de um familiar e procura conforto não somente na oração, como também nas letras; e tratando-se de um poeta, homem de letras sapiente como foi D. Dinis, talvez possamos tomar em consideração esta eventualidade; cf. Seneca, Consolatio ad Polybium, 9. 41

42

16

Pro Salute Animae: a peregrinação do rei D. Dinis a Compostela. Antecedentes e consequências

A ulterior confirmação desta intenção é o facto de que, à cerimónia do assentamento da primeira pedra da igreja de S. Dinis, ocorrida a 15 de Outubro de 1318, como atesta a carta de fundação, para além do rei, esteve presente também o herdeiro do trono D. Afonso, juntamente com o grupo dos seus fiéis servidores, entre os quais, Afonso Teles, Gonçalo Pires Ribeiro, Lopo Fernandes Pacheco, Martim Gonçalves de Ataíde. E mais: no instrumento está especificado o acto material da colocação da primeira/as pedra/as por parte quer do soberano quer do Infante, circunstância inusitada, mas de forte impacto emotivo e de grande carga simbólica48. Assim, a fundação de uma igreja intitulada de São Dinis e a participação do rei junto do herdeiro e dos seus representaram um acto de conciliação e de pacificação cumprido para honrar a memória do neto e do filho tão amado. PROPOSTA DE IDENTIFICAÇÃO DO JACENTE NUM TÚMULO DO MOSTEIRO DE INFANTE D. DINIS

ODIVELAS: O

No Mosteiro de S. Dinis de Odivelas, além do monumento fúnebre gravosamente danificado do rei, existe um outro túmulo com jacente que tem representado, por muitos anos, um verdadeiro enigma para os historiadores da arte. Encontra-se numa capela da abside, do lado da Epístola. Antigamente achava-se que conservava os restos mortais de uma filha natural de D. Dinis, D. Maria Afonso, nascida da união extra conjugal do soberano, professa no mosteiro de Odivelas e abadessa da comunidade entre 1317 e 1318, tendo falecido em 132049. Recentemente, Carla Varela Fernandes tem justamente negado a associação deste túmulo a D. Maria Afonso, tendo elaborado uma interessante análise iconográfica da peça e formulado uma nova proposta de identificação do jacente, atribuindo-o ao infante D. João, filho de D. Afonso IV e D. Beatriz de Castela e Leão, nascido a 23 de Setembro de 1326 e falecido com menos de um ano de idade, em 132750. A única fonte documental em suporte desta hipótese avançada pela investigadora é a rápida passagem da Crónica del’Rey D. Alfonso IV, onde se refere a notícia, retomada também pela Monarquia Lusitana, de que o infante D. João foi sepultado junto do avô no Mosteiro de Odivelas, na capela de S. João Evangelista51. Por certo, o sarcófago é produto de boa qualidade, pelas características formais e estilísticas, um unicum na produção escultórica portuguesa trecentista, reconduzível a uma encomenda régia, não só pela tipologia da peça, mas também pela linguagem da heráldica, alusiva à Coroa portuguesa e à de Castela e Leão. O mestre ou os mestres que realizaram este túmulo tinham seguramente elevadas capacidades técnicas, de que nos dão provas expressivas quer na representação da figura humana, quer nos motivos ornamentais que decoram as quatro faces da arca. À luz de tudo o que foi referido sobre a peregrinação de D. Dinis a Compostela, as motivações, os acontecimentos que tiveram lugar ao longo de 1318, a importância que, na altura, chegou a assumir o Mosteiro de S. Dinis de Odivelas, cremos poder avançar com uma nova proposta relativa à personagem esculpida, individualizando nesta a pessoa do infante D. Dinis, filho do príncipe herdeiro D. Afonso e da princesa D. Beatriz de Castela e Leão e, portanto, irmão do infante D. João, não obstante a Crónica

12 de Outubro de 1318, de Torres Vedras, IAN/TT, Gav., 19, maço 8, doc. 18, cf.: “[...] Ad instanciam dicti domini Regis hedificavit seu fundavit quamdam ecclesiam ad honorem et laudem beati Dionisii ibidem manibus propriis primarium lapidem imponendo et consequenter vero praedicti domini Rex et Infans ibi similiter singulos lapides posuerunt quamdam ecclesiam prefatus dominus Rex hedificari seu fundari ut premicitur mandavit.” 49 Sobre o perfil biográfico de D. Maria Afonso, veja-se: Sotto Mayor Pizarro, D. Dinis, 313. 50 C. Varela Fernandes, “Proposta de identificação de um jacente medieval. O infante D. João”, Artis. Revista do Instituto de História da Arte 5 (2006), 73-86. O Livro da Noa informa-nos que o infante D. João nasceu a 23 de Setembro de 1326, enquanto António Caetano de Sousa indica o dia 21 de Junho de 1327 como data da morte; cf. de Sousa, História Genealógica, I, 2, 193. 51 Crónicas dos sete primeiros reis de Portugal, edição crítica por C. da Silva Tarouca (Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1952), p. 142: “E ouve mais ho Ifamte D. Joham, que tambem faleçeo moço, e jaz sepultado no Mosteyro d Odivelas, jumto com elRey D. Denis, seu avoo”. 48

17

Incipit 1. Workshop de Estudos Medievais da Universidade do Porto, 2009–10

del’Rey D. Alfonso IV nos informar de que ele jaz no Mosteiro de Alcobaça, na Capela dos Reis, junto, ou melhor, “aos pés”, do bisavô D. Afonso III.52 Na ausência de fontes documentais directas, numerosas são as argumentações que se podem avançar como suporte desta hipótese. Em primeiro lugar, o locus mortis, ou seja, a igreja do Mosteiro de S. Dinis de Odivelas, que o rei fundou em 1295, dedicado ao seu santo protector, São Dinis, cujo nome recebeu por ter nascido no die natalis do santo (9 de Outubro). O infante, embora nasça noutra data, recorda porém no nome o avô. Na escolha do nome está implícita a homenagem ao soberano, mas também a evocação do santo titular da igreja. Por isso, é razoável pensar que se optou pela tumulação do menino no Mosteiro de Odivelas, dedicado a S. Dinis, para estender também ao infeliz infante a protecção espiritual do santo. Além disso, precisamente em 1318, no desejo de aplacar os conflitos surgidos na família, os reis decidem fazer do Mosteiro de S. Dinis de Odivelas o novo panteão régio, em alternativa à Abadia de Sta. Maria de Alcobaça. Na partilha do carinho, antes, e do sofrimento pela perda do filho e do neto amado, depois, configura-se o projecto de reconciliação a longo prazo, representado pela criação de um novo panteão familiar. Portanto, é justificável crer que, tendo em conta a coincidência das datas, o primeiro membro da Casa real a ser sepultado em Odivelas fosse o menino Dinis. Vista a homonímia, é possível que o soberano fosse o padrinho de baptismo da criança. Para além desta afirmação, que, de momento, não tem outro fundamento a não ser o bom senso, a tradição e a associação ao caso análogo da rainha D. Isabel que foi madrinha da neta Isabel (1324) e quis educá-la na sua casa, é certo porém que D. Dinis sentiu um carinho especial para com o infante, como foi largamente demonstrado. Em testemunho da oficialidade desta ligação privilegiada entre o avô e o neto, está a epístola de João XXII dirigida ao rei, que já referimos. Também Rui de Pina se detém a descrever o afecto, mas sobretudo o desconforto do rei após a morte do menino: as palavras do cronista deixam sobressair a humanidade de D. Dinis e confirmam, mais uma vez, a relação especial existente entre os dois, pois somente neste único caso se menciona o sofrimento do soberano pela perda de uma pessoa querida53. Por outro lado, não existe ligação afectiva entre D. Dinis e o infante D. João, que não conheceu porque nasceu a 23 de Setembro de 1326, depois do falecimento do rei (7 de Janeiro de 1325). Não há nenhuma razão para que este mesmo neto tivesse de jazer junto ao avô em Odivelas: não há nenhuma relação especial do rei D. Afonso IV com este mosteiro, ao qual não dedica nenhuma afeição, nem aos santos aí venerados. Nessa altura, em 1327, o mosteiro de Odivelas representa somente o “mausoléu” de D. Dinis, no momento em que o projecto de panteão régio não resistiu à guerra civil e por explícita vontade do monarca que, no testamento de 1322, se expressa em termos de sepultura individual, ou seja, já nem prevê a presença da mulher. Encontramos outra argumentação em favor da identificação do jacente com o infante D. Dinis na atitude análoga à do soberano assumida, uns anos mais tarde, pela rainha mãe para com a neta Isabel. Nascida a 22 de Dezembro de 1324, foi baptizada pela avó e criada na casa dela até à morte, ocorrida a 11 de Julho de 132654. No testamento de 22 de Dezembro de 1327, a rainha D. Isabel manda que a infanta, falecida com um ano e meio de idade, descanse junto de si no Mosteiro de Sta. Clara e Sta. Isabel de Coimbra: o túmulo da menina será colocado na igreja, além da grade do coro, onde a rainha elegera a sua sepultura55. Ibidem; cf. p. 142: “E apos ele ouve o Ifamte D. Denys que naçeo e moreo em Samtarem, moço de hum anno, e jaz sepultado em Alcobaça, na Capela dos Reys, aos pes da sepultura delRey D. Afomso, Comde de Bolonha, seu bisavo”. 53 V. infra, 10 e nota 39. O autor menciona somente os primeiros dois filhos do casal, omitindo todos os outros, entre os quais o infante D. Pedro, nascido em 1320, futuro rei de Portugal, e refere, demorando-se, a carta de condolências do Papa. 54 Cf. Livro da Noa de Santa Cruz, 55. É interessante observar como no Livro da Noa, dos sete filhos nascidos do matrimónio dos reis D. Afonso e D. Beatriz, os únicos a ser recordados são Dinis (1318), Pedro (1320), Isabel (1324) e João (1326). 55 A este propósito, poder-se-ia talvez ler como um acção motivada pelo propósito comemorativo da menina e pela vontade de procurar indulgências para a salvação da alma da defunta neta, a fundação do Hospital de Sta. Isabel, no mesmo 52

18

Pro Salute Animae: a peregrinação do rei D. Dinis a Compostela. Antecedentes e consequências

Last but not least, também sob o ponto de vista puramente histórico artístico, pode-se afirmar que este jacente não representa o infante D. João, mas sim o infante D. Dinis. Pois, se este sepulcro tivesse sido para o infante João, falecido em 1327, quereria dizer que a peça foi realizada depois do da neta Isabel, que se encontra hoje na igreja de Sta. Clara a Nova de Coimbra. Da análise estilística comparativa dos sarcófagos, reparamos em muitas diferenças de execução: bastará, aliás, concentrarmo-nos no jacente, para observamos uma diversa maneira de proceder. Trata-se da representação, em ambos os casos, de crianças defuntas retratadas como “pequenos adultos”56. Porém, enquanto na estátua de D. Isabel observamos uma riqueza de pormenores, um deter-se nos detalhes do vestido, das jóias, dos acessórios de princesa, o mesmo não se pode constatar na imagem do infante, essencial, sem ornamentações, sóbria, ao ponto de ter feito pensar, no passado, na possibilidade de se tratar do jacente da filha natural de D. Dinis, monja cisterciense. No entanto, não se trata duma peça de menor qualidade: é suficiente reparar no requinte do trabalho de incisão a imitar a trama do tecido que enriquece a dúplice almofada sobre a qual descansa a cabeça do menino. Entre as duas obras existem diferenças substanciais de concepção, na ideia de memória que se quer transmitir deles e que está na base da realização material: basta pensar que ela está coroada e ele não. Quando morrem, Dinis é filho do infante herdeiro, mas Isabel já é filha de rei; portanto, também João deveria ter algum atributo alusivo ao seu status de príncipe e “filho de rei”: por exemplo, as armas de Portugal deveriam ter um lugar mais destacado em comparação com às de Castela e Leão, como, de resto, consta na tampa da infanta D. Isabel, onde os escudos do Reino de Portugal ocupam a parte central, sendo rodeados pelos castelos que fazem de contorno. Se verdadeiramente se tratasse do túmulo do infante D. João († 1327), então deveríamos ter em conta que a sua realização seria posterior ao da princesa D. Isabel († 1326) e que, entre um e outro, mediaria pelo menos um ano, uma vez que, somente pouco mais de dois meses após a morte dela (11 de Julho), nasceu o outro (23 de Setembro), cuja breve vida se concluiu cerca de um ano mais tarde (21 Junho 1327). Porém, as diferenças estilísticas, formais e conceptuais entre os dois monumentos saltam aos olhos: trata-se de dois ou mais mestres caracterizados por uma linguagem não assimilável e não confundível um com o outro, de origem e proveniência geográfica diversas, com um background cultural distinto e com talentos diferentes. Toda esta diversidade não pode justificar-se somente com o facto de que um trabalha em LisboaOdivelas e o outro em Coimbra, sobretudo considerando que, tratando-se de uma encomenda da família real, o artista se desloca até onde for preciso. De resto, assumindo a obra de mestres provenientes de áreas geográficas diversas, mesmo assim, a nosso ver, não são justificáveis todas as diferenças de estilo existentes entre os dois túmulos - a nível de iconografia, técnica, forma, matérias-primas utilizadas - com a realização a um único ano de distância. CONCLUSÕES 1318 foi um ano chave na existência do rei D. Dinis: um ano de paz, um ano de trégua, antes do definitivo romper dos equilíbrios e o rebentar da violência da guerra civil que teria modificado para sempre, e em profundidade, as relações no interior da família real.

ano, em Coimbra (27 de Outubro de 1327, de Avinhão, ASV, Reg. Vat., 86, ep. 1700), no momento em que a edificação de hospitais, institutos assistenciais por excelência, reentrava naquelas categorias de obras pias encomendadas pro salute animae; cfr. M. A. Beirante, “Para a História da Morte em Portugal (séc. XII-XIV)”, em Estudos de História de Portugal, 359-383. Esta hipótese será devidamente desenvolvida na prossecução da investigação. 56 Sobre a representação das crianças na arte funerária, cfr. M. Nuñez Rodriguez, “El concepto de la muerte en la “aetas imperfecta”: iconografia del niño”, em La Idea y el Sentimiento de la Muerte en la Historia y en el Arte de la Edad Media (II), 36-64 (Santiago de Compostela: Universidade de Santiago de Compostela, 1982). 19

I Incipit 1. Worksh hop de Estudos Medievais da Universidade U do o Porto, 2009–110

Em 11318, o sobeerano dirigiiu-se a Com mpostela, ao o túmulo do o Apóstolo SSão Tiago Maior, M para rezar pela paz do seu u reino e peela salvação o da alma dos d seus paarentes defu untos, sobreetudo os pa ais e o neto queridos. q Não nos é dado con nhecer quão o intensa e sinceramen nte D. Diniss viveu a ex xperiênciaa da peregrrinação, ma as, de facto,, no seu reg gresso o sob berano tom mou decisõe es importaantes para si s próprio e para a sua família e, em e sentido lato, l para o Reino de PortuP gal, n no desejo de d tornar duradouro d o efeito ben néfico deriv vado do perrcurso espiritual emprreendido e vivido v na prrimeira pes soa. Infelizmente, a Histtória frustro ou os esforçços de D. Diinis, transtoornando tod dos os seus bons propó ósitos: o con nflito com o Infante D. D Afonso, qu ue envolverrá também a rainha IIsabel, torn nará vãs as tentativas en nsaiadas ao o longo daqu uele mesmoo ano de 13118.

José C Custódio Vieirra da Silva (Co opyright Imaggo), Túmulo do o infante D. Dinis. D Mosteiroo de S. Dinis, Odivelas.

20

Pro Salutee Animae: a perregrinação do rrei D. Dinis a Co ompostela. Ante ecedentes e conssequências

José C Custódio Vieirra da Silva (Co opyright Imagoo), Túmulo da a infanta D. Isa abel. Mosteiroo de S. Clara a Nova, Coimbra.

José Custódio Vieirra da Silva (Co opyright Imaggo), Túmulo do o infante D. Dinis. Mosteiroo de S. Dinis, OdiveO las. Pormenorr

21

I Incipit 1. Worksh hop de Estudos Medievais da Universidade U do o Porto, 2009–110

José C Custódio Vieirra da Silva (Co opyright Imagoo), Túmulo da a infanta D. Isa abel. Mosteiroo de S. Clara a Nova, Coiimbra. Pormeenor

22

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.