Processos de Construção da Identidade Palestina

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS

THAÍS LACERDA QUEIROZ CARVALHO

PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE PALESTINA: UMA ANÁLISE DOS LIVROS ESCOLARES E A MOBILIZAÇÃO DE ELEMENTOS ESTATAIS NA AUSÊNCIA DE UM ESTADO E A SUA INFLUÊNCIA NA NEGOCIAÇÃO DE ACORDOS SOBRE A REGIÃO

ORIENTADORA: PROFESSORA PAULA SANDRIN

Rio de Janeiro 2016.1

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS

THAÍS LACERDA QUEIROZ CARVALHO

PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE PALESTINA: UMA ANÁLISE DOS LIVROS ESCOLARES E A MOBILIZAÇÃO DE ELEMENTOS ESTATAIS NA AUSÊNCIA DE UM ESTADO E A SUA INFLUÊNCIA NA NEGOCIAÇÃO DE ACORDOS SOBRE A REGIÃO

Monografia apresentada ao Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Relações Internacionais.

ORIENTADORA: PROFESSORA PAULA SANDRIN

Rio de Janeiro 2016.1

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Àqueles que contribuíram para isto chegar ao final, muita gratidão.

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Resumo

Analisando os processos de construções de nações e estados europeus, percebe-se que estes são assumidos como modelos em nosso atual sistema, mas que não necessariamente todos os seus desdobramentos são a melhor opção para a garantia de direitos para muitos grupos identitários. Compreendendo o processo de aprendizado e formação cognitiva dos jovens através da educação, analisamos elementos da formação da identidade palestina por meio da análise do conteúdo de livros escolares utilizados em escolas para palestinos, percebendo elementos em destaque como o território, o Direito de Retorno, o não reconhecimento do direito de existir do outro, a utilização de narrativas unilaterais, o enaltecimento do self e a lógica do outro como inimigo. Por meio de uma análise que entende as ameaças como culturalmente produzidas e a linguagem como protagonista neste processo, estudamos os processos de negociações de paz e como estes seguem um modelo específico que não é capaz de perceber as consequências das mobilizações destes elementos na construção de identidades e a importância das identidades na construção de diálogos, tornando-se ineficiente na tentativa de parar a violação de direitos humanos e uma ocupação ilegal. Palavras chave: Palestina, Construções Identitárias, Educação, Livros

Escolares, Negociações, Estado.

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Sumário

Resumo e palavras chave ................................................................................ 3 Lista de Abreviações ....................................................................................... 5 Introdução ....................................................................................................... 6 Capítulo 1: Análise de discurso, identidades e educação ............................. 9 1.1. Educação, livros didáticos e seu papel na construção identitária ........ 9 1.2. Teorias Identitárias e produções culturais de inseguranças............... 14 1.3. Metodologia e desenho de pesquisa: linguagem e construções de significados nas relações identitárias ........................................................ 22 Capítulo 2: Construção e mobilização da identidade palestina .................. 30 2.1. Palestina e concepções estatais eurocêntricas.................................... 30 2.2. Memórias palestinas construídas e resgatadas: narrativas nacionais e pluralidade de atores que contribuem na construção da Palestina como nação .......................................................................................................... 33 2.3. Mobilizações de elementos nacionalistas e identitários por meio dos livros escolares palestinos ......................................................................... 39 Capítulo 3: Negociações, resoluções, desconsideração de elementos identitários e algumas de suas consequências .............................................. 56 3.1. Principais negociações e resoluções a respeito da questão ............... 56 3.2. O que enxergamos a este respeito ...................................................... 67 Conclusão ...................................................................................................... 75 Bibliografia ................................................................................................... 77

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Lista de Abreviações

AP ou ANP – Autoridade Palestina / Autoridade Nacional Palestina CRIHL – Council of Religious Institutions of the Holy Land OLP – Organização para a Libertação da Palestina ONU – Organização das Nações Unidas PMoE – Ministério da Educação Palestino (Palestinian Ministry of Education) TPOs – Terrotórios Palestinos Ocupados UNRWA – Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (United Nations Relief and Works Agency for Palestine Refugees in the Near East) UNSCOP – Comissão Especial das Nações Unidas sobre a Palestina (United Nations Special Comittee on Palestine)

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Introdução

O projeto inicial para esta monografia previa fazer uma análise da representação do outro como inimigo nos livros escolares palestinos e israelenses e perceber a sua influência em cada lado como um dos fatores da perpetuação do conflito. Em janeiro de 2016, no entanto, já tendo efetuado muitas leituras sobre o assunto e as teorias identitárias e iniciado o trabalho, viajamos durante dois meses para a região da Palestina e Israel e retornamos, além de com muitas impressões diferentes e emoções confusas, com a percepção de que a situação não podia ser resumida simplesmente a “um conflito de dois lados”. Tendo conversas com diversos ativistas, moradores e alguns políticos nas cidades de Ramallah, Jerusalém Oriental e Ocidental, Tel Aviv, Hebron, Beit Sahour, Fassayil (uma vila no Vale do Jordão), Nazareth, Haifa, Belém, Efrata, entre outras, isto é, cidades de diversas

configurações

populacionais

(palestinas,

israelenses

ou

“misturadas”), e também conversas com alguns poucos amigos de lá, percebemos como as percepções e opiniões eram variadas sobre a situação e também como havia uma presença muito forte de uma disparidade de poder, que daria outro tom ao nosso entendimento do assunto. Depois de muito refletir, percebemos que seria complicado se desprender de um elemento mais palpável para realizar este projeto, como são os livros didáticos, mas que seria possível reformular a pergunta de pesquisa sem abandoná-los, já com o entendimento de que há uma relação de disparidade de poder entre palestinos e israelenses que se concretiza na forma da ocupação militar, civil, territorial e econômica de Israel sobre os palestinos e tentar compreender como é representado o processo de construção da identidade palestina nestes livros e que elementos estão presentes na educação escolar de milhares de palestinos que contribuem nesta construção. Nesta pesquisa vamos, portanto, analisar como os livros didáticos utilizados na educação escolar de palestinos retratam diversos elementos

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nacionalistas e por vezes estatais, sem ainda a Palestina ser um estado devidamente decretado, como estes elementos fazem parte dos processos de construção de suas identidades e, por fim, qual a influência disto para as concepções de segurança a respeito da região. Para fazer isto, em um primeiro momento vamos tentar entender como ocorre o processo de educação e a importância dela na formação cognitiva dos jovens e crianças e esta influência no processo de construção identitária do povo palestino e posteriormente tentaremos perceber como as medidas tomadas pelas grandes potências em relação à região não levam muitos destes elementos em consideração e quais as contribuições disto para a perpetuação da atual situação de perpetração de violações de direitos humanos na região ou privação de acesso a direitos civis. No primeiro capítulo traçaremos um breve entendimento dos processos de construção identitária e invenção estatal e nacional utilizando o modelo europeu, com a presença da lógica do inimigo e das produções de massa, percebendo a presença educacional e como funciona o processo de aprendizado; perceberemos, por meio das leituras das teorias identitárias nas Relações Internacionais após o período da Guerra Fria e de teorias estatais, como ameaças são culturalmente produzidas e o papel central exercido pela linguagem na construção da relação entre fatores materiais e ideacionais, isto é, como tudo aquilo que é material ganha significados específicos através do que nós fazemos dele, e a influência disto nas concepções de segurança; além de traçar o nosso desenho de pesquisa dentro da perspectiva pós estruturalista. No segundo capítulo pretendemos perceber diversos elementos que fazem parte do processo constante de construção da identidade palestina, a forma como eles são mobilizados nesta sociedade e a sua conformidade ou não com o modelo europeu de Estado Moderno, além da análise propriamente dita de conteúdos presentes em livros didáticos utilizados nas escolas palestinas e de uma descrição da Palestina como região. Na terceira parte, traçaremos um breve histórico das tentativas de negociações de

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acordos e resoluções do sistema ONU sobre a situação da região e de que maneira os elementos que constituem a identidade de palestinos através dos processos anteriormente estudados estão presentes ou têm influência na implementação destes acordos e nos processos de negociações em si. Mais especificamente, queremos entender como as identidades e narrativas apresentadas nas produções de tradições através de publicações de massa servem para construir identidades e são também reflexo delas e quais as consequências desses discursos e representações nas concepções de insegurança sobre o assunto, a interação existente de disparidade de poder e as consequentes intervenções de grandes atores do Sistema Internacional. Ainda que não seja diretamente citado, durante todo o processo teremos em mente a ideia de que todas as relações estabelecidas sempre têm diversos tons que podem ser analisados de inúmeros ângulos e que seria desonesto acreditar que chegaríamos minimamente perto de realisar uma análise que aborde a maioria destes tons e ângulos, além de termos a consciência de que falamos da posição privilegiada de ator que fala “de fora” e compreendendo as questões de representatividade envolvidas neste processo. Por fim, gostaríamos de registrar que acreditamos ser importante trazer esta discussão para o público brasileiro, que ainda guarda muitos preconceitos em relação ao “mundo árabe” e desconhecimento em relação ao “conflito israelo-palestino”

na

esperança

de

cada

vez

mais

compreendermos que muito daquilo que reconhecemos como bárbaro é na verdade porque esquecemos de reconhecer o outro como ser humano tanto quanto nós.

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Capítulo 1: Análise de discurso, identidades e educação

1.1. Educação, livros didáticos e seu papel na construção identitária

Nesta pesquisa, utilizaremos o conteúdo de livros escolares como objeto de análise por entendermos que a educação formal tem importante papel no desenvolvimento cognitivo de crianças e que cumpre papel também na construção e molde de identidades. Esta análise também se baseia na crença de que as produções escritas, como jornais e livros, exercem papel na invenção de tradições e costumes, como nos mostra o historiador Eric Hobsbawm em seu livro The Invention of Traditions (1983). Hobsbawm fez um estudo sobre a produção em massa de tradições na Europa no fim do século XIX e início do XX no qual ele demonstra que the creation of traditions was enthusiastically practiced on numerous countries and for various purposes [...] both practiced officially and unofficially [...] primarily in or by states or organized social and political movements (Hobsbawm, 1983, p.263).

Sabemos que as escaladas do conflito entre palestinos e israelenses têm muitas facetas e motivações e fazem parte de um contexto bastante complexo, mas quando entendemos que as construções e criações de tradições e costumes estão incluídas entre estas motivações e excluídas das elaborações de acordos de tréguas ou soluções podemos tentar entender as consequências disto, bem como procurar possibilidades de mudança. O Estado de Israel foi criado em 1948 e com este evento temos também a criação em massa de tradições de um novo Estado formado a partir de um projeto de nação específico. É importante notarmos, é claro, que a produção destas ocorre por diferentes motivos e diferentes atores, conforme a necessidade é sentida, não apenas por parte dos israelenses, mas também dos palestinos, ainda que estes não tenham tido a criação de um Estado, mas

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tendo há muito tempo projetos nacionais – que vão sendo historicamente negligenciados. Este estudo de Hobsbawm nos ajuda a entender o processo de invenção de estados que ocorre em diversas esferas e também na educação estatal e as suas consequências. Ao abordar o processo de criação do estado Alemão, formado em 1871, o autor aponta que “[t]he standardization of administration and law within it, and, in particular, state education, transformed people into citizens of a specific country” (1983, p. 264), mostrando que muito do que temos hoje como naturalizado é na verdade construído através de diversos processos, incluindo o educacional. Observar como acontecem estes processos e atores que os influenciam mesmo que não haja uma “estandardização” da administração e da lei no caso palestino pode ajudar a entender quais são os principais elementos que recebem atenção dos projetos nacionais e a forma como são instrumentalizados junto à população, possibilitando que pensemos nas maneiras de expressão desta população e sua influência nas dinâmicas locais. Hobsbawm atenta também para uma destas dinâmicas, que é o processo da criação de um inimigo e da sua importância fundamental na criação de nações e de sentimentos de nações, usando também o caso da Alemanha: Since the ‘German people’ before 1871 had no political definition or unity, and its relation to the new Empire […] was vague, symbolic or ideological, identification had to be more complex […] through the shorthand cartoon stereotypes to definition of the nation in terms of its enemies. Like many another liberated ‘people’, ‘Germany’ was more easily defined by what it was against than in any other way (1983, p. 278, grifo nosso).

No caso palestino, poderemos identificar nos livros este desenho do inimigo e lembrar que no momento da fabricação dos livros escolares, após a instauração da Autoridade Palestina na década de 1990, esta lógica de inimigo já está instaurada perante o estado que surgiu em 1948. O caso do Estado de Israel pode também ser visto sob esta ótica, quando vemos que hoje a população de Israel é altamente militarizada e muitas das suas políticas de segurança são baseadas na ideia de repelir o terrorismo

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palestino. Esta pesquisa nos ajudará a perceber o quanto esta lógica de inimigo está presente desde a infância nos livros didáticos e perceber também os momentos em que ela se fez mais necessária, conforme o estado de Israel avança sua ocupação sobre as terras palestinas, levando em conta também as tentativas de acordos de paz, de cessar-fogo e determinações territoriais. Ainda que os palestinos não possuam declaradamente um estado reconhecido perante o direito internacional como soberano, existe uma lógica de funcionamento estatal que nos permite também avaliar esta presença de sentimento nacionalista e ações do “Estado” para esta criação da lógica de inimigo e da necessidade da invenção de tradições, que será explorada no próximo capítulo. No processo de estabelecimento dos Estados soberanos que existem hoje no sistema, estes Estados, quando havia necessidade, ativaram a invenção de tradições formais e informais, oficiais ou não, políticas e sociais, como observa Hobsbawm (1983, p.264). “Quite new, or old but dramatically transformed, social groups, environments and social contexts called for new devices to ensure or express social cohesion and identity and to structure social relations” (Hobsbawm, 1983, p.263). Esta estruturação de relações sociais pode ser criada ou incentivada, como vimos, de maneiras variadas. Nesta pesquisa queremos nos ater aos livros didáticos por acreditarmos no papel que os sistemas educacionais formais exercem sobre as crianças e por a pesquisa em publicações escritas ser mais acessível do que experiências e práticas educacionais no caso estudado. O nosso entendimento deste papel dos sistemas educacionais mencionados relaciona-se com as teorias de desenvolvimento mental das crianças, principalmente a ideia de Jean Piaget, que, ainda que não seja uma teoria da aprendizagem (e sim uma teoria do desenvolvimento mental), nos permite perceber a importância dos tipos de estímulos que são dados às crianças e jovens.

12 [E]nsinar (ou, em um sentido mais amplo, educar) significa, pois, provocar o desequilíbrio no organismo (mente) da criança para que ela, procurando o reequilíbrio (equilibração majorante), se reestruture cognitivamente e aprenda. O mecanismo de aprender da criança é sua capacidade de reestruturar-se mentalmente buscando um novo equilíbrio (novos esquemas de assimilação para adaptar-se à nova situação) (Moreira,1999, p. 102).

Mesmo que a parcela com maior peso na educação das crianças e jovens esteja na educação informal, dentro de casa e na rua, representada normalmente pela família, pela comunidade e pelas situações vividas no dia a dia, as escolas e o conteúdo que é passado ao alunato em seu material didático possui também uma parcela de importância e esta parcela permite intervenções mais específicas e reguladas por parte de instituições. O que queremos dizer aqui é que sabemos que as vivências desses jovens em seus cotidianos e os relatos que são passados aos filhos pelos pais também fazem parte deste processo de desequilibro da mente da criança e do jovem para uma seguinte reestruturação. Vivenciar violências de tipos variados nas ruas, passar por revistas de segurança em seu dia-a-dia e terem confrontos de tipos variados com o exército israelense em base semanal acontecendo ao seu redor são consideráveis processos que causam este abalo nas estruturas cognitivas das pessoas, no caso de nosso estudo, os jovens, e deixam marcas, que fazem parte do processo educacional. A educação não ocorre apenas no ambiente da escola, com metodologias formais, envolvendo livros e canetas, mas a todo momento em que a mente é perturbada de seu estado de equilíbrio e lavada a uma reacomodação das informações recebidas, junto com aquelas já anteriormente adquiridas. Ou seja, a educação inclusive ocorre, ou deveria ocorrer, menos dentro da escola e mais dentro do ambiente familiar, da comunidade e nas ruas. Mas por uma questão de dimensões e de acessibilidade, esta pesquisa se concentrará nos meios de educação formal, mais especificamente na análise de livros didáticos, com pequenas intervenções de nossa experiência nos territórios palestinos no início do ano de 2016. Também nos ateremos a esta ferramenta palpável porque

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experiências e efeitos de relatos são mais complicados de medir sozinhos e pensar em possibilidades de mudanças, que são controladas por parte de atores estatais ou que fazem este papel. Livros didáticos são produzidos por órgãos específicos e usados em massa, ou seja, é a mesma publicação que chega a milhares de crianças com um mesmo conteúdo. Entender o que está refletido ali e também as consequências de produções nestas dimensões, ainda que bastante subjetivas, são mais mensuráveis do que as variáveis anteriormente citadas.

E, por tal motivo, possibilitam elaborações mais

concretas sobre possíveis mudanças, que buscariam a diminuição de violências e violações de direitos humanos. Como pudemos observar, a educação é um processo complexo e contínuo de construção do ser e depende dos estímulos ao seu redor. A educação formal é um dos processos que contribui para a formação dos seres humanos e deve, por isso, ser levada em consideração no processo de construção de identidades. O intuito da nossa pesquisa é entender as consequências práticas que derivam dessas identificações e, para isso, entender os processos discursivos que contribuem na formação ou perpetuação desta identificação, para posteriormente analisar a sua presença ou negligência nos processos de negociações de acordos de paz ou resoluções da ONU e a influência destes elementos. Buscamos fazer este estudo para entender mais um dos fatores que contribuem para a perpetuação desta situação que há tantos anos faz crescer o número de mortes violentas e perpetração de violações de direitos humanos. É por tal motivo que queremos estudar um dos agentes que influenciam o conflito e se este é considerado na hora de elaborar soluções, que são as construções identitárias e buscar uma das suas formas de construção.

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1.2. Teorias Identitárias e produções culturais de inseguranças

As teorias de Ralações Internacionais experimentaram na década de 1990 incertezas sobre os tipos de análises e os campos que estudavam durante os anos da bipolaridade, devido às mudanças que estavam se operando no sistema. Na busca de abordagens mais apropriadas, o campo de estudos identitários, já parte das discussões de teoria social, ganha espaço e atenção também para as relações internacionais. Este campo, quando nas Relações Internacionais, como sugere I. Neumann (1999, p. 1), permite não só o entendimento do sistema de estados, mas agora dá um status ontológico a outros assuntos e atores das políticas mundiais, ou seja, permite estudar outros atores de maneira mais profunda, inclusive indivíduos. More fundamentally, the failure of scholars to foresee, predict, or explain the sudden end of what was allegedly the central fact of world politics in the second half of the twentieth century – the superpower conflict itself – suggested an empirical anomaly of gross proportions and raised questions about the adequacy of the basic theoretical presumptions of neorealism, arguably the dominant approach to international relations and security studies. (Weldes, Jutta et al. 1999, p. 4)

Os estudos de

segurança

mostraram-se

defasados ao não

conseguirem mais prever acontecimentos com base nas teorias usadas. As literaturas de análises de política externa sobre percepções, sistemas de crenças e códigos falharam, segundo Neumann, porque tendiam a começar e terminar com um objeto (self) que não era socialmente situado e desta maneira não focavam na relação entre o eu (self) e o outro (the other) (Newmann, 1999, p. 8). Esta é uma das relações, que hoje já permeia diversas análises de relações internacionais e é também objeto de estudo de tantas outras, que pretendemos também enxergar e analisar na interação entre israelenses e palestinos: a relação com o outro a partir do entendimento da linguagem como objeto de transformação destas relações sociais, que é partilhado por Neumann em seu estudo “Uses of the Other in World Politics.” (Neumann, 1999, p. 8) e o estudo de indivíduos que também interferem nas dinâmicas de guerra, como sugerem as perspectivas

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pós-estruturalistas em contraposição àquelas que centravam a análise nos Estados como entes unitários e monolíticos . Através da análise de discurso, entendendo a linguagem como organismo vivo e agente de transformação, pretendemos estudar estes processos de construção identitária para a identidade palestina em livros escolares e a sua relação com elementos estatais e nacionais, entre eles o pertencimento à terra. Nossa hipótese é a de que ao longo dos anos os palestinos foram concretizando elementos nacionalistas como parte de suas identidades, como narrativas ou elementos concretos, que deixam de ser percebidos pelos grandes atores internacionais quando levam o caso a negociações utilizando modelos europeus e eurocêntricos, que partem do princípio da necessidade de um estado nacional consolidado para negociar e implementar medidas, abandonando a pluralidade de narrativas locais que dificultam estas implementações. Criase, então, para tentar justificar a falha destes processos de negociações, a narrativa de um conflito intransponível e inerente àquela localidade que a transforma em uma área insegura, que precisa receber segurança militar. Essa “criação” de insegurança é um importante objeto de estudo das Relações Internacionais. As abordagens construtivistas da disciplina entendem as inseguranças como sendo todas culturalmente produzidas. Jutta Weldes et al (1999), que partilham desta abordagem, entendem que as inseguranças são culturais “in the sense that they are produced in and out of ‘the context within which people give meanings to their actions

and

experiences and make sense of their lives’” (Tomlinson, 1991, p. 7 apud Weldes et al., 1999, p. 1). A nossa pesquisa quer se aprofundar em um destes contextos, na construção desta insegurança a partir da mobilização de identidades. Acreditamos que o estudo destes campos em conjunto abre caminho para entendermos melhor como estas construções são feitas, como as identidades existentes são mobilizadas e quais as consequências a partir disto. Nossa linha de pensamento se dá no mesmo sentido apresentado por Weldes et al na introdução de seu livro Cultures of Insecurity (1999):

16 We take discourses of insecurity, or what David Campbell (1992) has called “representations of danger,” as our objects of analysis and examine how they work. […] Because we seek to challenge conventional understandings of actors and their security problematic, the focus of all the analyses presented in this volume is always and expressly on insecurity and its cultural production. (p. 10, grifo nosso).

É evidente que em uma monografia de graduação não temos tal pretensão, mas nas devidas proporções buscaremos este mesmo foco de análise nas produções culturais da insegurança e da constituição do self através da análise do conteúdo de livros escolares. Pretendemos descobrir como o outro e o self são representados, se existe esta imagem de ameaça ou inimigo e as consequências disto nas produções de inseguranças e, por conseguinte, nas concepções de segurança utilizadas no processo.

E o

nosso entendimento da criação de inseguranças vai ao encontro daquele abordado no livro Cultures of Insecurity: “insecurity is itself the product of processes of identity construction in which the self and the other, or multiple others, are constituted.” (Weldes et al, 1999, p. 10). A suposição de que identidades e inseguranças são produzidas em um processo mútuo de constituição nos leva à necessidade de compreender melhor o campo de estudo das identidades, para nos dar possibilidades de compreender um dos fatores que motiva ações violentas no histórico conflito na região da Palestina. Sobre identidades, Weldes et al (1999) também levam em consideração as narrativas e memórias coletivas que são construídas e que pretendemos estudar: identities (both of the self and of others) and insecurities, rather than being given, emerge out of a process of representation through which individuals […] describe to themselves and others the world in which they live. These representations – narratives, collective memories, and the imaginary that make them possible – define, and so constitute, the world. They […] define the relations among those objects and subjects. In so doing, they create insecurities, which, as we have argued are threats to the identities, and thus to the interests, of these socially constructed subjects (p.14, grifo nosso).

O conceito de identidade, no entanto, tão útil para esta nova perspectiva da Relações Internacionais, opera, segundo Stuart Hall (2000),

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sob rasura. Pois segundo ele, está-se efetuando uma desconstrução das perspectivas identitárias, isto é, certos conceitos chaves estão sendo questionados: O sinal de rasura (x) indica que eles não servem mais – não são mais ‘bons para pensar’ – em sua forma original e reconstruída. Mas uma vez que eles não foram dialeticamente superados e que não existem outros conceitos, inteiramente diferentes, que possam substituí-los, não existe nada a fazer senão continuar a pensar com eles – embora agora em suas formas destotalizadas e desconstruídas, não se trabalhando mais o paradigma no qual eles foram originalmente gerados. (Hall, 2000, p. 103).

O conceito de identidade tem papel chave na nossa pesquisa quando pensamos que identidades são socialmente construídas, mas possuem um significado e, principalmente, quando pensamos nas consequências de mobilizações operadas a partir destas identidades. Ainda segundo Hall, precisamos observar “onde e em relação a qual conjunto de problemas emerge a irredutibilidade do conceito de identidade” (2000, p. 104). E entendemos que na questão palestino israelense a identidade é um conceito de suma importância para levarmos em consideração, ainda que operando nesta reformulação constante, uma vez que motiva práticas, entre elas práticas de guerra e ignorá-lo em elaborações de possíveis soluções pode influenciar na dificuldade de negociá-los e, se acordados, no não cumprimento deles. Utilizaremos a abordagem discursiva posto que esta “vê a identificação como uma construção, um processo nunca completado” (Hall, 2000, p. 106) e vemos os livros didáticos como parte dos elementos que contribuem para este processo de construção. Pois ainda que seja, ao fim e ao cabo, condicional, a identificação tem “suas condições determinadas de existência, o que inclui os recursos materiais e simbólicos exigidos para sustentá-la” (Hall, 2000, p.106) Percebemos que no conflito entre uma identidade palestina e a identidade nacional do Estado de Israel há importante papel de instituições na invenção política e social de tradições e que as produções textuais para uso em escolas são um importante representante deste papel.

Neste

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sentindo entendemos estar presente também a produção oficial de política externa e que esta está também representada, mesmo que de forma indireta, nestes livros escolares. David Campbell (1998) nos traz a noção de que a política externa, que era “conventionally understood as the external orientation of pre-established states with secure identities” (p.75) é na verdade uma performance política de produção de fronteiras, essencial para a produção e reprodução das identidades em nome das quais ela opera. Estas fronteiras são importante motivo de discussões não apenas nas questões identitárias e também nas relações internacionais como um todo, mas mostram-se elemento base do conflito da região palestina, ganhando destaque em questões práticas estabelecidas nos acordos de paz e resoluções da ONU. As práticas de política externa ajudam a construir os discursos de perigo e de insegurança que constituirão o outro e o self. E para constituir a própria identidade, são mobilizados ou criados também sentimentos de nacionalismo. Os nacionalismos tiverem importante papel durante e após a Segunda Guerra Mundial no mundo ao definir políticas, estratégias, orientar ações e promover sentimentos que guiavam também indivíduos. No entanto, na Europa, “one period which saw them spring up with particular assiduity was in the thirty or forty years before the first world war” (Hobsbawm, 1992, p. 263). Mesmo que no momento dos surgimentos dos nacionalismos as práticas se mostrem mais acentuadas, a perpetuação de práticas com base no nacionalismo ocorre conforme a necessidade sentida de criação ou perpetuação de um sentimento de união e pertencimento. É válido nos questionarmos, por exemplo, o quanto o fato de palestinos ainda não terem um estado nacional palestino não contribui ainda mais para exacerbações de demonstrações nacionalistas. O caso da relação de disparidade de poder existente entre palestinos e israelenses mostra-se ao mesmo tempo representativo e oposto da ideia de nacionalismos que teve tanta força durante o pós Segunda Guerra Mundial, pois ao mesmo tempo em que existem nacionalismos sendo defendidos, seja

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pela criação de um Estado Palestino internacionalmente reconhecido ou pela manutenção do Estado de Israel, existe também a guerra sendo travada entre narrativas individuais: de pertencimento a uma terra específica como sua, sem considerar o Outro, a busca pelo retorno (tanto palestino, pós 1948, quanto Israelense, em relação aos judeus), mobilizadas por estas narrativas de um passado histórico e um direito divino sobre a terra ou pertencimento anterior. Mas é interessante entendermos que esta busca de retorno a um passado histórico pode também ser compreendido dentro da lógica dos nacionalismos e da construção de nações. Benedict Anderson (2006, p. 4) defende que nacionalidades e nacionalismos são artefatos culturais que comandam uma “profunda legitimidade emocional” e para entendê-los é necessário considerar cuidadosamente como eles surgiram historicamente, de que maneiras seus significados mudaram com o tempo e por que hoje eles comandam essa legitimidade emocional tão profunda. Ele considera que nações são comunidades políticas imaginadas (ANDERSON, 2006, p. 6). E por isso consideramos importante pensarmos em como ocorre este processo de imaginação, para melhor entendermos as suas consequências. Esta consideração de comunidades imaginadas dá-se pelo fato de mesmo na menor nação não conhecermos, jamais encontrarmos ou até mesmo nunca ouvirmos falar da maioria de nossos companheiros de nação e ainda assim termos uma ideia formada sobre a nossa existência comum. Um ponto muito importante de ressaltarmos para nossa pesquisa sobre nacionalismos

foi

registrado

por

E.

Gellner

em

“Though

and

Change”(apud Anderson, 2006, p. 6), que argumenta que nacionalismo não é um despertar de nações para uma ‘consciência de si mesmo’, nacionalismo inventa nações onde elas não existem. Em nossa pesquisa buscaremos analisar principalmente o conteúdo dos livros didáticos, entre outros elementos, como parte desta invenção e também reflexo dela. Ainda na definição de Anderson ele nos explica que conceitua nação como comunidade porque, apesar da desigualdade e exploração que hoje

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prevalece, a nação é sempre concebida como uma profunda e horizontal camaradagem (comradeship) que, em última instância, “faz ser possível, pelos últimos dois séculos, para tantos milhões de pessoas não apenas matar, como também de bom grado morrer por tais imaginados limitados” (ANDERSON, 2006, p. 7). Ou seja, é necessário tentarmos entender como a criação deste sentimento ocorre, de que maneira identidades são produzidas e mobilizadas e em que medida existe essa lógica de um inimigo que ameaça a nossa comunidade e unidade para entendermos um dos fatores que motiva estas agressividades e medidas violentas que resultam em mortes e em outros tipos de sofrimentos e descobrirmos se eles são considerados na hora de pensar soluções. “O tema do ‘Outro’ – e especialmente o que constitui a ‘auteridade’ [otherness] do ‘Outro’ – tem sido um dos temas centrais dos filósofos continentais ocidentais do século XX” (NEUMANN, 1999, p. 3). Este tema ganha esta importância quando entendemos que constituímos e somos constituídos através da nossa relação com este outro. Isto é, quando as Relações Internacionais saem do entendimento de ameaças dadas e naturais e percebem esta relação mútua e contínua de produção cultural de ameaças e de seguranças. Ações para a minha segurança podem ameaçar o outro e vice-versa. A questão da identidade e da identificação volta a aparecer na tentativa de rearticular a relação entre sujeitos e práticas discursivas (Hall, 2000, p.105). A respeito do recorte utilizado na análise das identidades, escolhemos o recorte estatal, pois o Estado e as práticas estatais continuam sendo os elementos mais comuns de análises nas Relações Internacionais, e, segundo David Lake (2008), tendem a permanecer pelos próximos anos. International relations as a discipline is chiefly concerned with what states do and, in turn, how their actions affect other states. Similarly, states are a common unit of analysis in theories of international relations. Many analysts focus on states and their interactions to explain observed patterns of world politics (Lake, 2008, p.1).

Exporemos algumas das concepções de Estados que temos hoje no campo de Relações Internacionais e no próximo capítulo tentaremos

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analisar em que medida a Palestina não se enquadra nestes elementos, mas os mobiliza nos processos de construção identitários, em especial o território, e a sua influência nos acordos de paz. As concepções clássicas de Estado são discutidas por Hobbes, em Leviatã, e por Max Weber, quando discute a Política por Vocação. Em termos muito resumidos, Hobbes explica que a liberdade do homem no estado de natureza consiste em poder fazer o que tiver vontade e desejo, porém, neste estado, o homem não tem o que lhe é essencial para desfrutar de suas vontades, que é a segurança. Para tanto é que o homem designa um homem ou uma assembleia de homens como representante de suas pessoas, considerando-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que representa sua pessoa praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser respeito à paz e segurança comuns. (Hobbes, 2003, p. 61).

Esta entidade, a qual Hobbes chama de Estado, “uma multidão unida numa só pessoa” (Hobbes, 2003, p. 61), fica responsável, em nome de todos os cidadãos que governa, pela segurança deles. Richard Devetak (2007, p.127) chama a atenção para a ideia de que nos séculos XVI e XVII os estados soberanos começaram a surgir na Europa justamente para assegurar a paz e a segurança, como insiste Hobbes. Para Weber, “devemos conceber o Estado contemporâneo como uma comunidade humana que, dentro dos limites de determinado território [...] reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física”. (Weber, 2007, p. 56, grifo do autor) Estas perspectivas clássicas ainda são importantes de serem consideradas quando pensamos em Estado, pois os modelos de estados nacionais que temos hoje, ou seja, o Estado Moderno, são majoritariamente baseados no molde europeu: a era do imperialismo acabou por legar este padrão à estrutura do Sistema Internacional atual. E este modelo surgiu em um contexto político e militar específico, aquele que envolve esta busca pela paz e pela segurança, cujo entendimento nos ajudará a pensar em como a Palestina se encaixa ou não neste modelo e por que há disparidades na hora de pensar em soluções e negociações.

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Charles Tilly nos lembra que há pouco mais de mil anos, as pessoas que habitavam a massa de terra hoje chamada de Europa não tinham motivos para se sentirem “ligadas pela história ou pelo destino comum” (2007, p. 89), ou seja, não tinham nem mesmo a intenção de formação daquilo que hoje chamamos de estado ou de nacionalismo. Devemos pensar também na pouca probabilidade de tais conceitos existirem naquela época em outras partes do planeta tais como os entendemos hoje. O estado moderno, no entanto, possui características muito específicas que não necessariamente aplicam-se em todas as partes do globo, como é ainda o caso da Palestina. Mas isto não significa que parte destes elementos não estejam presentes nesta sociedade ou sejam mobilizados na construção de uma identidade nacional. Por isto trabalharemos com estes elementos e conceitos em nossa análise. 1.3. Metodologia e desenho de pesquisa: linguagem e construções de significados nas relações identitárias

Quando as Relações internacionais perceberam esta importância que as identidades e suas manipulações têm na construção de ameaças, faz-se necessária uma metodologia de pesquisa que possa analisar como estes processos ocorrem e quais são as suas consequências. O pós-estruturalismo vem responder a esta necessidade ao perceber a linguagem como objeto social que é protagonista na construção de significados. Poststructuralism has strengths and weaknesses, as do all theoretical approaches—no theory can pursue all relevant research questions simultaneously—but it can be drawn upon to show not only that identities matter for foreign policy, but also how they can be studied systematically through the adoption of a theory of discourse (Hansen, 2006, p. 4).

Como Lane Hansen nos mostra em seu livro “Security as Practice” (2006), o pós-estruturalismo adota uma teoria do discurso e da linguagem para estudar esta relação das identidades. Ao contrário das teorias mainstream das Relações Internacionais do período da Guerra Fria, que tomavam os fatores materiais como os de maior importância e influência ou até mesmo os únicos com relevância, o pós-estruturalismo privilegia a

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relação entre fatores ideacionais e materiais: tudo aquilo que é material ganha significados específicos através do que nós fazemos dele e, por este motivo, da linguagem que usamos. Jacques Derrida (1978) argumenta que “meaning is established not by the essence of a thing itself but through a series of juxtapositions, where one element is valued over its opposite” (apud Hansen, 2006, p. 17). Portanto são os valores que atribuímos que constroem os significados. Ainda assim, como é importante registrar, “for poststructuralism neither ideas nor materiality have a meaningful presence separate from each other” (Hansen, 2006, p19). Com este entendimento da linguagem como objeto social e do discurso como parte integrante da construção de identidades podemos perceber como é indispensável a presença de um “outro” e a construção de um “self” como referências para descrevermos aquilo que queremos e, consequentemente, construirmos significados, assim como vemos nesta nossa pesquisa com o caso dos palestinos e israelenses. Como o argumento de Derrida nos mostrou, o “self” não seria completo sem o “outro”. Os significados são atribuídos por estas justaposições e links. A análise de discurso quer justamente olhar para esta relação, mas sem deixar de dar a devida importância aos fatos e à materialidade: It is a key goal of discourse analysis to show how these firstorder facts are dependent upon a particular discursive framing of the issue in question and that this framing has political effects […] The strategy of discourse analysis is thus to ‘incorporate’ material and ideational factors rather than to privilege one over the other. […] The analytical intent is not to measure the relative importance of ideas and materiality but to understand them as constructed through a discourse which gives materiality meaning by drawing upon a particular set of identity constructions (Hansen, 2006, p. 20).

E para analisarmos como este enquadramento inicial é construído, quais são os links e justaposições, precisamos de um desenho de pesquisa metodologicamente estabelecido para organizar nosso estudo. A análise de discurso mostra-se adequada para que possamos descobrir que elementos são mobilizados em torno de um discurso nacional, que tipos de ligações são feitos entre estes elementos e a história palestina, de que maneira os

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palestinos se relacionam com estes elementos e suas influências nas ações cotidianas e na construção de suas identidades, para que vejamos a sua relação com os elementos materiais do conflito e da ocupação israelense e considerar ambos na elaboração de políticas locais ou a negociação de acordos a respeito da situação. Em seu livro já citado, Lane Hansen utiliza o método da análise de discurso e elabora um desenho de pesquisa que ajuda a organizar a análise nos casos de pesquisas pós-estruturalistas. Ela nos mostra que a relação entre construções de políticas e identidades não é teorizada em temos causais, ou seja, com uma relação de causa e efeito, mas a ausência de uma causalidade não implica em uma carência de estrutura (Hansen, 2006, p.15): Adopting a non-causal, discursive epistemology does not, however, imply that analysis should be conducted without any epistemological or methodological principles. Rather, what is opened up is a discursive research agenda focused on the construction of identity and policy and the way in which the two are linked within political discourses (Hansen, 2006, p.25).

Para formar esta agenda de pesquisa discursiva ela nos sugere algumas perguntas que devem tentar ser respondidas: whether one should study official foreign policy discourse or expand the scope to include the political opposition, the media, and marginal discourses; whether one should examine the foreign policy discourse of one Self or of multiple Selves; whether one should select one particular moment or a longer historical development; whether one should study one event or issue or a multiplicity; and, finally, which material should be selected as the foundation for and object of analysis (Hansen, 2006, p.65).

Mas ela já nos atenta para o fato de que às vezes é o próprio caso que fará estas escolhas por nós: ao escolher os livros escolares palestinos e um pouco de nossa experiência como objeto de análise das construções de identidade, nos deparamos com uma série de limitações que não nos impedirão ou comprometerão nossa pesquisa, mas serão determinantes nesta seleção de fatores. Começando pela seleção do número de selves, Hansen nos atenta para as críticas recebidas pelos pós-estruturalistas quanto à falta de perspectivas não comparativas, mas mostra também que a única pesquisa

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não comparativa seria uma que examinasse a articulação de um único self em um evento específico por meio do discurso oficial. Ou seja, toda pesquisa, mesmo que envolvendo apenas um self já é de alguma maneira comparativa quando analisa mais de um evento ou mais de uma fonte de discurso. Nesta pesquisa escolhemos dar atenção à identidade palestina. O que estudaremos será parte da construção de sua identidade por meio do uso de elementos nacionais e de pertencimento, principalmente em relação à terra. Isto não excluirá perspectivas comparativas com o self israelense, que no caso se configurará como o “Outro” em algumas situações ou de outras nações e também a análise deste em momentos diferentes (no caso dos acordos de paz e resoluções). O nosso estudo tentará perceber, através do estudo da constituição deste self palestino, que momentos sua ausência ou sua presença é percebida como relevante e de que maneira é percebida e as consequências disto em acordos de paz e resoluções. Para estabelecermos nosso desenho de pesquisa precisamos também determinar qual o modelo intertextual que analisaremos. Poderíamos abrir a pesquisa para uma análise de todo um debate político a respeito do tema, feito na academia ou em outras instâncias; para as representações culturais que são feitas nas mídias (e aqui abriríamos mais um grande leque de opções definindo quais as mídias ou as mídias de quem); ou ainda para discursos críticos e marginalizados sobre o nosso objeto. Nesta pesquisa, entretanto, escolhemos focar no discurso oficial: analisaremos livros escolares, que são produzidos pelo Ministério da Educação Palestino. Esta escolha, além de ter sido feita por uma questão de acesso a material, levou em consideração a extensão da pesquisa: para uma monografia de graduação é adequado escolher um modelo de publicações que nos permita traçar limites mais claros, como é o caso de discursos oficiais. Acabamos por incluir parte das percepções às quais tivemos acesso no tempo em que estivemos na região, mas apenas como forma de enriquecer a análise e trazer mais detalhes. Decidimos manter o foco no discurso oficial passado através de livros didáticos porque é mais difícil ter um controle suficiente

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sobre as publicações envolvendo debates políticos, representações culturais e discursos marginais e como estes influenciam as construções identitárias para abarcá-los em uma pesquisa desta extensão, principalmente porque eles não são em nossa língua mãe ou em uma língua a nós acessível. Mas parte de nossas experiências não serão deixadas de lado durante a pesquisa. A nossa perspectiva temporal também será estabelecida com influência de questões pragmáticas: como será retomado no próximo capítulo, até 1967 os livros escolares utilizados na Faixa de Gaza e na Cisjordânia eram os mesmos produzidos pelos governos egípcio e jordaniano, respectivamente, países fronteiriços com estas regiões. A partir de 1967, após a Guerra dos Seis Dias, na qual Israel tomou grandes proporções de terra e estabeleceu controle militar sobre muitos espaços, o controle da produção passou a ser israelense. Apenas a partir de 1994, com a criação da Autoridade Palestina e consequentemente de um Ministério da Educação Palestino (Palestinian Ministry of Education – PMoE) é que os livros usados por crianças palestinas passam a ser produzidos por palestinos. A UNRWA (United Nations Relief and Works Agency), agência da ONU para os refugiados palestinos, que também terá seu trabalho abordado no próximo capítulo, utilizava sempre os livros produzidos pelas autoridades locais em cada tempo, passando a usar a partir da década de 1990 os livros da Autoridade Palestina nos territórios de Gaza e Cisjordânia1. As análises de centros de estudos que encontramos disponíveis para nosso acesso (que serão explicitadas a seguir) concentramse também neste período posterior à criação do PMoE. Por isto nossa pesquisa utilizará as análises realizadas em livros escolares produzidos a partir da criação da Autoridade Palestina, em sua maioria em versões mais recentes, posteriores a 2009, que foram abarcadas nas nossas fontes de pesquisa.

1

Nos campos de refugiados palestinos localizados em outros países (como Líbano, Jordânia e Síria), a UNWRA ainda utiliza os mesmo livros das escolas nacionais destes países.

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O mesmo critério se aplicará ao número de eventos: o nosso “evento” principal é a disputa entre palestinos e israelenses após a criação do Estado de Israel em 1948, mas não pretendemos fazer uma análise histórica ou englobar todos os principais acontecimentos desde esta data. Escolhemos o período a partir do qual os palestinos também passaram a exercer controle sobre as publicações utilizadas em seu sistema educacional. Mas tentaremos abarcar as principais negociações de cessar fogo, de divisões territoriais ou outras medidas importantes para a dinâmica local desde o seu início em 1947, com o Plano de Partilha da ONU. Para finalizar o nosso desenho de pesquisa precisamos definir que material será selecionado para análise. Por uma questão de acessibilidade e de língua, nossa pesquisa se baseará em fontes secundárias, isto é, olharemos para o resultado de análises que foram feitas diretamente nos livros, pois estes resultados estão publicados em inglês e disponíveis para acesso na Internet. Para fazer uma investigação diretamente na fonte primária, os livros didáticos utilizados nas escolas palestinas, seria necessário, além de ter acesso direto a estes livros físicos – o que provavelmente seria financeiramente muito custoso –, também dominar com exímio o árabe, que não dominamos. Basearemos nossa pesquisa principalmente em análises publicadas pelo Institute for Monitoring Peace and Cultural Tolerance in School Education (IMPACT-SE), em cujo banco de dados selecionamos os relatórios em inglês de estudos realizados em livros texto do Território Palestino e livros texto de Israel. Esta organização, como podemos ver em seu website institucional, é uma organização de pesquisa interdisciplinar que monitora e analisa livros escolares e currículos ao redor do mundo “with an eye to determining their compliance with international standards on peace and tolerance, as derived directly from UNESCO declarations and resolutions” (IMPACT-SE, 2014). Fazendo um trabalho no campo de análises de livros didáticos, a organização esforça-se em apresentar uma imagem clara de quão diferentemente os países instruem e educam sua

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juventude no que diz respeito a “different religions, societies, cultures, democratic values and the ‘other’.” (IMPACT-SE, 2014), dedicando-se a processos de paz que encorajam a aceitação do Outro e a rejeição de resolução de conflitos por meios violentos. Ele é um instituto apartidário e sem fim lucrativos com voluntários no Oriente Médio e na Europa que compõem uma Assembleia Geral, um Chief Executive Officer (CEO) e um Conselho Consultivo Internacional. Nossa outra principal fonte de material será um estudo iniciado em 2009 pelo Council of Religious Institutions of the Holy Land, sediado em Jerusalém, que foi conduzido pelos profesores Sami Adwan, professor associado da Education at Bethlehem University; Daniel Bar-Tal, Branco Weiss Professor of Research in Child Development and Education, na Universidade de Tel Aviv; e Bruce E. Wexler, professor emérito e Senior Research Scientist em Psiquiatria na Escola de Medicina de Yale, uma vez que as publicações deste estudo contém muitas citações retiradas diretamente dos livros e traduzidas para o inglês (CRIHL, 2013). Como dito, esta seleção de material foi feita por uma questão de acesso e nãodomínio da língua das publicações originais. Sabemos que as nossas fontes de pesquisa são limitadas e por isto a análise e o seu resultado sempre podem ser tachados de tendenciosos, mas dentro das limitações impostas pela língua buscamos pesquisar em uma pluralidade de fontes que trabalhavam com o tema da identidade nos livros didáticos e acreditamos que toda contribuição neste sentido é válida devido ao distanciamento que ainda existe do público brasileiro em relação a este tema e ao Oriente Médio em geral. Além disso olharemos para outras publicações em inglês sobre este tema que tivemos acesso em bancos de dados universitários e publicações da UNRWA e uniremos esta pesquisa a relatos das experiências que vivemos em cidades dos Territórios Palestinos Ocupados e cidades israelenses durante os 40 dias que estivemos na região, incluindo o contato

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com duas Organizações Não Governamentais locais, uma israelense e uma palestina e palestras com ativistas de diferentes backgrounds. Quando analisamos fontes secundárias, estamos sujeitos a sermos subjetivos e tendenciosos ainda mais do que em análises diretas, visto que é um segundo “filtro” pelo qual a linguagem está passando. Isto faz parte de qualquer análise envolvendo linguagem, visto que a linguagem é algo subjetivo e os materiais e fontes que temos acesso para formar nossa visão não fogem também desta situação. Podemos inclusive encontrar resultados contraditórios entre os estudos, assim como encontramos opiniões contraditórias entre as pessoas com as quais conversamos a respeito do assunto enquanto estávamos no território, mas isto faz parte da análise de discurso e é o material ao qual tivemos acesso para nossa pesquisa.

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Capítulo 2: Construção e mobilização da identidade palestina

2.1. Palestina e concepções estatais eurocêntricas

A Palestina é uma porção de terra que se estende do Mar Mediterrâneo ao rio Jordão e faz limite com o continente africano, ao sudeste, e a Síria, a nordeste. Até o fim da Primeira Guerra Mundial, esta terra estava sob o domínio Otomano. Entre este período e o dia 15 de maio de 1948, o domínio foi do mandato Britânico. Neste dia, o Império Britânico retirou-se da Palestina e, com a saída dos exércitos britânicos, os sionistas2 que migravam para lá desde o final do século XIX declararam a criação do Estado judeu, Israel, dando início oficial à disputa com os países árabes, mais diretamente Jordânia, Egito, Síria e Líbano, já que estes não concordaram com a partilha feita pela Organização das Nações Unidas, que determinava uma divisão de 53% do território para Israel e 47% para os palestinos, através da Resolução 181. Hoje a Palestina tem a maior parte de suas estruturas e instituições limitadas pela ocupação e domínio israelense, como o controle de sua economia, incluindo a moeda utilizada nos Territórios Palestinos Ocupados, e dos produtos que entram ou saem, já que não há portos ou aeroportos nos TPOs. A soberania é um dos principais conceitos quando se trata de analisar as estruturas estatais. E seus componentes clássicos, abordados nas analises de Relações Internacionais, são o controle sobre o território, a população e o governo. Através disso, “the establishment of a sovereign state […] can create the conditions of security and order necessary for society to develop freedom and industry”, como manifesta Richard Devetak (2007, p.125). No

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Muito resumidamente, o Sionismo é um movimento político e filosófico que defende a autodeterminação do povo judeu e que teve suas manifestações modernas iniciadas no fim do século XIX na Europa, culminando em uma migração gradativa de judeus para a Terra Santa, onde localiza-se a Palestina.

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entanto, este tipo de soberania não pode hoje ser observado na Palestina, devido a esta ocupação civil, militar e econômica à qual está submetida. Ao falar da construção dos Estados Europeus, Charles Tilly (1996) mostra que conforme o modo de vida feudal foi se desmanchando, os modos de administração local também foram se modificando, aumentando as possibilidades de cobrança de impostos, recrutamento de um exército a partir da própria população (em vez da contratação de mercenários, externos à população), as obrigações de serviços que os estados passam a ter e a forma de governar. Se a Palestina possuísse sua soberania, ela poderia se auto gerir em alguns fatores que hoje não são possíveis. A Autoridade Nacional Palestina (ANP ou simplesmente Autoridade Palestina, AP) foi criada em 1994 com a assinatura dos Acordos de Oslo, após a primeira Intifada (chamada de Guerra das Pedras, iniciada em dezembro de 1987 contra a ocupação israelense). O acordo previa que ela administraria parte da faixa de Gaza e a cidade de Jericó, na Cisjordânia. Com os Acordos de Oslo II, a sua influência seria ampliada para toda a extensão da Cisjordânia. Os Acordos de Oslo dividiram o território em áreas A – cujo controle seria total da Autoridade Palestina –, áreas B – onde o controle civil seria da Autoridade Palestina e o controle militar seria do exército israelense – e áreas C – sob controle total de Israel. A intenção expressa no acordo era de que posteriormente os territórios de Gaza e Cisjordânia seriam inteiramente administrados pela Autoridade Palestina (com exceção, naquele momento, dos territórios com assentamentos judaicos dentro da Faixa de Gaza). Sabemos que os Acordos de Oslo não foram implementados, devido, inicialmente, ao assassinato de um de seus negociadores, o líder Israelense Yithzak Rabin, por um militante da extrema direita israelense que era contrário à “entrega de terras” aos palestinos. Mas a Autoridade Palestina ainda assim foi estabelecida e continua a exercer atividades até hoje. Na época dos acordos, a ANP assumiu o controle da educação, da saúde, do turismo e das finanças. Mas apesar de ter sido concebida para ser um

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governo de transição, ela se mantém até hoje com formato semelhante e hoje conta com ministérios, polícia, sistema de transportes, organizações internacionais, sistema prisional e inclusive time de futebol. O Plano Nacional de Desenvolvimento para o triênio de 2011-2013, lançado em abril de 2011 pela Autoridade Palestina, por exemplo, conta com

uma

National

Policy

Agenda,

que

prevê

planos

para

o

desenvolvimento social, de governança, econômico e de infraestrutura, um Macroeconomic & Fiscal Framework e inclusive uma seção de Public Accountability, para a prestação de contas e transparência das atividades da Autoridade. (PNA, 2011, p. 3). Charles Tilly nos mostra que na história de construção do modelo estatal europeu (aquele hoje aceito como modelo estatal no Sistema Internacional), seus governantes foram sendo levados, devido à internalização das forças armadas e dos mecanismos fiscais ocorrida, a negociar com capitalistas e outras classes o crédito, o que “criou novas exigências ao estado”, como educação pública, planejamento urbano, pensões, pagamentos aos pobres e muito mais. “No processo, os estados [...] passaram a criar organizações de múltiplas finalidades” (Tilly, 1996, p.107). São estes mesmos tipos de organizações com as quais a Autoridade Palestina conta hoje, fazendo com que sua estrutura assemelhe-se muito a de um Estado. Com a assinatura dos Acordos de Oslo em 1993, a esperança era a de que os Palestinos poderiam criar posteriormente, conforme as negociações avançassem, um Estado Palestino, com território, população e governo próprios, como contam os Estados Modernos, podendo desenvolver a sua nação e soberania. Mas desde a morte de Rabin e a primeira eleição de Binyamin Netanyahu, o atual primeiro ministro de Israel, assentamentos judaicos não param de ser construídos nos territórios que outrora seriam negociados como parte do território palestino. A ocupação territorial, econômica e militar perpetrada pelo Estado de Israel nos territórios da Cisjordânia e em Gaza (ainda que nesta Israel não considere mais haver ocupação territorial, desde a retirada dos assentamentos judaicos em 2005 –

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mas continua a militar e a econômica) colocam-se cada vez mais como barreiras a este estabelecimento. A título de exemplo, os produtos que entram na Palestina a partir de outros países são taxados duas vezes: pois são primeiro importados para Israel e, de Israel, são importados novamente para os TPOs. Quem tem o poder de controlar estas taxas é o governo israelense, exclusivamente. Mas isto não impede que os palestinos criem, perpetuem e mantenham uma noção de nação, nacionalismo e identidade nacional que pautam suas vivências, lutas, ativismos políticos, conteúdo ensinado nas escolas ou simplesmente fatores de seu dia-a-dia mais simples como solicitações de deslocamento dentro do território, fora dele, emissões de passaportes ou torcidas esportivas. Acreditamos que inclusive muitos destes elementos acabam emergindo com tanta força justamente pela repressão à sua existência. A seguir, tentaremos apresentar exemplos destas formas de expressão e constituição da nação palestina. 2.2. Memórias palestinas construídas e resgatadas: narrativas nacionais e pluralidade de atores que contribuem na construção da Palestina como nação

Durante a minha breve vivência nos Territórios Palestinos Ocupados, pude perceber a forte presença, com as pessoas com quem conversei, do reconhecimento de si como palestino(a). Quando estamos em um grupo com o qual temos uma característica comum, é costumeiro nos apresentarmos falando de outras características com as quais nos identificamos, que não é aquela característica comum. Por exemplo, quando um brasileiro está em território brasileiro, em meio a brasileiros, não há exatamente por que ele se apresentar como brasileiro se todos se identificam como pertencentes ao mesmo grupo identitário. Ele pode dizer a cidade de onde ele vem, a profissão dele, o seu hobby, o bairro onde mora ou algum outro elemento de sua identidade, mas o olhariam com estranheza se fora do contexto ele se apresentasse como brasileiro, sendo que está entre brasileiros. Mas ao conversar com palestinos era comum perceber um certo

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medo de acharmos que aquele território era Israel e por tabela que pensássemos que eles poderiam ser algo diferente de palestinos. Os elementos nacionais podem a todo momento ser percebidos pelos Territórios Palestinos Ocupados e entre sua população. A começar pela bandeira. A bandeira hoje identificada como a bandeira palestina foi usada inicialmente em 1916, como bandeira da revolta árabe. Em outubro de 1948, no entanto, na guerra pela criação de Israel, ela foi adotada pelo governo palestino e reconhecida pela Liga Árabe como a Bandeira da Palestina (Hadi, 1986). Em 1988 foi adotada pela OLP – Organização para a Libertação Palestina – como bandeira do Estado Palestino e desde 1993, com a assinatura dos Acordos de Oslo, a criação da Autoridade Palestina e o fim do seu banimento, imposto pelo governo israelense desde a guerra de 1967, vem sendo usada como bandeira do Estado Palestino nos territórios de Gaza e da Cisjordânia. A bandeira está presente nos batentes de portas, nas varandas, em grafites nos muros e paredes, em grafites no Muro construído por Israel, em suvenires, camisetas e nos postes da praça central de Ramallah, por exemplo, a capital administrativa. A sua presença era ainda mais forte quando entrávamos em campos de refugiados, mais especificamente os dois que conheci: o de Aida e o de Deheisha. A grande densidade populacional em espaços tão pequenos3 faz as cores transbordarem em nossos olhos ao vê-las nas paredes das casas e muros e sobre as estreitas ruas, de forma similar às bandeirinhas de São João que temos aqui no mês de junho. Além da bandeira, um símbolo nacional visível aos olhos na sua forma física, outros elementos presentes na sociedade palestina prestam-se à assegurar ou expressar uma coesão social e identidade, estruturando relações sociais, como vimos anteriormente. A noção de comunidade é muito forte, o que não escapa à conceituação de nacionalismo feita por Banedict Anderson, apresentada no capítulo anterior. Para a construção e

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O Campo de Refugiados de Aida, por exemplo, tem por volta de 0,1Km² de área e mais de 5 mil habitantes

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perpetuação desta noção, as narrativas são diversas e apresentam-se em inúmeros lugares. A contagem de histórias, de avós para filhos e netos, é muito presente e é difícil encontrar palestinos que não saibam narrar o passado de sua família, como ocorreu a expulsão de suas terras por parte dos britânicos que auxiliaram os sionistas e também de como era a vida antes da Ocupação. A música também é um importante elemento que vem permeado por narrativas palestinas. Narrativas de resistência, de amor à terra, do Direito de Retorno e também sobre um passado histórico, muitas vezes envolvendo vastos campos e idealização da agricultura praticada no passado. A dabke, por exemplo, é uma dança típica da região do levante, que mistura muitas cores e ritmos alegres e dançantes e é mobilizada pelos palestinos com músicas sobre estes temas e criando a noção de pertencimento.

É

significativo perceber também que esta é uma dança feita em roda em ocasiões festivas ou em forma de apresentações para plateias, mas perde significado se é realizada por apenas um indivíduo. Estes mesmos temas e narrativas não escapam às poesias e livros. Um dos grandes nomes da poesia palestina é Mahmoud Darwish, inclusive responsável pela redação da Declaração de Independência Palestina, de 1988. Em suas obras, o direito de retorno, a dor de ser refugiado, e paradoxos de pertencimento são componentes presentes. Através da poesia e da música, escreve-se sobre sentimentos comuns a um grupo de pessoas que podem nem se conhecer entre si como indivíduos, mas sentem que pertencem a este grupo por se identificarem por estes mesmos sentimentos, como uma comunidade. Este sentimento de pertencimento e a narrativa da luta conjunta pela independência de um Estado Palestino são mobilizadas também por ONGs dentro e fora do território. No tempo em que estive lá, pude conhecer um pouco do trabalho do Tamer Insitute for Comunity Education, um instituto criado em 1989, após a primeira Intifada, que visa a promoção de um “free and safe learning environment in Palestine” (Tamer Institute, 2012a, website). O instituto

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conta com atividades de incentivo à leitura e a escrita “as well as all forms of self-expression” entre crianças e jovens palestinos e projetos que inegavelmente remetem a ideias nacionalistas. O instituto promove projetos para que crianças se expressem através da arte, por meio da escrita de poemas, oficinas de desenhos e encenações teatrais. Nestes projetos, a noção de pertencimento a um todo maior, mesmo que não conhecendo todos os integrantes desta totalidade, é frequentemente estimulada. O projeto “My Reading Passaport”, por exemplo, é uma “Prominent Palestinian Iniciative” criada pelo instituto Tamer em 1990, que distribuiu diversos “passaportes de leitura” em escolas e organizações para incentivar crianças a ler. Na descrição do projeto, lemos: “The reading passport contributed to enhance the sense of belonging among children when official documents of identity were lacking.

Children were encouraged to

document the books they have read as visas in each page” (Tamer, 2012b, website). Isto é, o projeto de uma organização não governamental busca uma forma de substituir a falta de elementos oficiais aos quais estas crianças teriam acesso se tivessem um Estado, fortalecendo o sentimento de pertencimento a uma nação, na ausência dele. O projeto The Little Continent também demonstra em sua descrição a ideia da construção de um local nacional ao qual estas crianças pertencem, ressaltando sua naturalidade e a inerência de seu pertencimento a um território. As crianças, através desta iniciativa comunitária voluntária, são levadas a “explorar a sociedade palestina”, visitando suas “paisagens naturais e históricas”: After hiking and exploring, the ideas, reflections and thoughts the children have in relation to the place were published in a book. This initiative reconnects youth with the natural and historical aspects of Palestine (Tamer, 2012b, website).

Podemos perceber como este projeto lida com o território palestino como um direito natural e inerente daqueles indivíduos que fazem parte desta nação, ou seja, reforça a ideia de que a nação palestina tem o projeto de possuir um Estado e este Estado se constituirá neste território específico,

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com o qual a sua nação tem uma relação de pertencimento natural e intrínseca. Esta organização realiza oficinas, trabalhando com crianças e jovens, em mais de 86 bibliotecas, nas cidades de Ramallah, Jericho, Hebron, Bethlehem, Jenin, Tobas, Nablus, Jerusalem, Qalqilia, Salfeet, Central Province of Gaza, Tulkarm, North Province of Gaza, Gaza, Khanyounes e Rafah, além de escolas nacionais e da UNRWA nestas cidades (Tamer, 2012c, website). Através de seus projetos, as crianças vão sendo informadas do seu pertencimento a um território específico e determinado e suas paisagens naturais e o seu direito indiscutível a estes elementos. Ou seja, faz-se uma equação de impossibilidade de dissociar território e nação e cria laços com um local específico utilizando-se de narrativas históricas. O esforço pelo reconhecimento, no entanto, não parte apenas da comunidade palestina. Apesar da relação de inimigo existente com “o outro”, israelense, que é inclusive um fator muito importante na construção e mobilização desta identidade palestina, há uma pequena e pouco ouvida parcela dentro da comunidade israelense que faz tentativas de colaborar com o diálogo e acaba por contribuir para esta construção identitária, através da construção e perpetuação de narrativas. A ONG De-Colonizer, fundada em 2015 por dois pesquisadores ativistas israelenses, com a qual também tive a oportunidade de entrar em contato, trabalha pela recuperação da memória da Nakba entre os israelenses e dentro do território de Israel. Nakba é o nome que os palestinos dão para o dia 15 de maio de 1948. Enquanto para os israelenses comemora-se o dia da proclamação do Estado de Israel, os palestinos relembram neste dia A Catástrofe, em árabe: Al Nakba. Através de tours críticos, pesquisa, intervenções artísticas, vídeos, seminários, conferências, textos e campanhas públicas, os ativistas, que hoje residem em Tel-Aviv, fazem intervenções no dia-a-dia dos israelenses buscando aumentar o reconhecimento e a consciência a respeito da Nakba e da situação palestina. No website da organização é possível encontrar a seguinte descrição:

38 We envision a future beyond the colonialist and racist regime, in which everyone living here will be equal. Ground zero of the existing regime is the 1948 Nakba, the inevitable result of the effort to create a Jewish State in the Middle East. Overcoming Zionism requires Israel to acknowledge the expulsion and destruction of Palestinians and their lives, and to redress that by granting refugees the right to return. The principal victims of this regime are, of course, the Palestinians, but Israeli Jews have also paid the price of conquest since 1948 by living in constant fear, with no hope of peace. In other words, we believe an essential key to our future here is deeply rooted in our past (De-Colonizer, 2015, website).

Aqui, neste momento, é importante percebermos como há influência da disparidade de poder existente nesta situação. O fundador da organização é um importante pesquisador israelense e a outra fundadora é francesa. Devido aos seus locais de fala, reportagens sobre o trabalho da ONG podem ser encontradas na mídia francesa, em blogs “dissidentes” israelenses, em alguns jornais israelenses e inclusive em um noticiário nova-iorquino. Além disso, a posição de israelense falando do palestino dá muito mais voz a esta organização dentro do público de Israel do que se o mesmo conteúdo “anticolonial” fosse produzido pelos próprios palestinos. As produções em inglês e francês, além do hebraico, também contribuem para esta posição. A disparidade de poder permite que este discurso seja por vezes “mais” importante na construção da identidade do palestino para quem enxerga “de fora” do que aqueles produzidos pelos próprios palestinos. Em um dos tours críticos, do qual participei, o guia nos contou como e por que a vila que antes existia naquele lugar que estávamos visitando foi destruída. Posteriormente, fui convidada, enquanto pesquisadora auxiliar da organização, a ir para um campo de refugiados em Bethlehem (o campo de Aida) para entrevistar um homem que nasceu na vila de Beit Natif, uma vila palestina destruída em 1948, para obter informações sobre como era a vida nesta vila antes da guerra de 1948 e como ocorreu o processo de expulsão. O seu depoimento posteriormente se fará ouvir através de projetos criados pela De-Colonizer, para aumentar o conhecimento a este respeito. Mas não podemos deixar de notar este “filtro” pelo qual inevitavelmente passa a informação e constitui esse processo de construção de narrativa,

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influenciando o processo de construção identitário. O homem contando as suas narrativas dentro do seu público, influencia a ideia daqueles que o ouvem diretamente. Os seus filhos, netos, companheiros e quem mais tiver contato. Já através da instituição, outro público saberá de sua história através de um “filtro” israelense. Outro elemento que gostaríamos de chamar a atenção é para a relação de reconhecimento do Outro que esta organização procura fazer. Esta relação é um dos principais elementos levantados em pesquisas que analisam o conteúdo de livros didáticos que é apontada como problemática e que dificulta uma reconciliação entre as partes. No projeto de construção de sua identidade e sua nação, o self acaba tendo as suas características positivas enaltecidas e o outro não só tem suas características negativas selecionadas como muitas vezes não tem nem mesmo a sua existência reconhecida. É importante registrar que apesar de alguns elementos usados em “campanhas” nacionais serem por vezes inventados, a maior parte deles são elementos existentes que são mobilizados de maneiras específicas, isto é, nem sempre um outro que é propagandeado como ruim está tendo características inventadas para ele, mas sim que quase exclusivamente as suas características e ações negativas estão sendo selecionadas. Assim como as positivas que são enaltecidas em relação ao self. Mostraremos a seguir como esta relação está estampada em diversos momentos em livros didáticos de escolas palestinas e o seu papel na construção desta identidade nacional e, posteriormente, sua influência nos processos de negociação de paz. 2.3. Mobilizações de elementos nacionalistas e identitários por meio dos livros escolares palestinos

Como a Autoridade Palestina foi criada em 1994, foi apenas a partir deste ano que um Ministério da Educação Palestino começou a atuar na publicação do conteúdo didático utilizados nas escolas palestinas. De 1948 (fim do mandato britânico) a 1967 a educação de palestinos na Faixa de Gaza era dirigida pelo governo egípcio e na Cisjordânia pelo governo

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jordaniano. A partir de 1967, após a Guerra dos Seis dias, até 1994, a educação estava sob o controle da Autoridade Militar Israelense. Há também uma entidade que estava presente nos sistemas educacionais de maneira contínua para uma parcela desta população desde 1950 e por vezes inclusive fez o papel de estado para os refugiados palestinos, que é a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA – United Nations Relief and Works Agency for Palestine Refugees in the Near East). Mas é apenas a partir de 1994 que há uma entidade específica liderando e supervisionando a publicação de conteúdos para a educação escolar do público palestino. Hoje, segundo dados publicados em 2014 na International Society of Political Psychology, aproximadamente 70% das crianças palestinas estudam em escolas governamentais públicas na Cisjordânia e em Gaza; 23% estudam em escolas da UNRWA (incluindo 67% das crianças de Gaza); e 0,1% (aproximadamente 800 estudantes) frequentam escolas religiosas, com currículo Islâmico religioso (Adwan et al. 2014, p. 4). Todas as escolas públicas e as escolas da UNRWA usam o mesmo conjunto de livros, aprovados pelo Ministério da Educação Palestino (Palestinian Ministry of Education – PMoE), e as escolas privadas apenas complementam a literatura com outros livros (Adwan et al. 2014, p. 4). Por este motivo acreditamos ser representativo abordar análises do conteúdo destes livros em relação à construção identitária dos palestinos e sua relação com a nação, já que estes são também não só agentes que influenciam em sua formação como de certa maneira reflexos da sociedade que os produziu. Além disso, the Palestinian school textbooks are written by the sponsors of the Ministry of Education, and thus they are in line with the official narrative [...] The schools are centralized under the supervision of the Ministry of Education which dictates their way of teaching and contents of instructions. Nevertheless, there are differences of openness among schools in the way they carry out the guidelines (Adwan et al. 2014, p. 4, grifo nosso).

Mesmo com estas diferenças e aberturas entre as escolas e a aplicação do conteúdo pelos professores, a análise destes conteúdos é representativa de

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ideias nas quais as crianças crescem acreditando, ainda que hoje o acesso a informação de forma on-line seja vasto entre os jovens e permita perspectivas diferenciadas. Como visto anteriormente, o processo de aprendizado se dá por desequilíbrios no organismo (mente) da criança e a sua tentativa de reorganização deste conteúdo, gerando uma reestruturação cognitiva. Um conteúdo que é passado em sala de aula impacta este processo de aprendizagem e influencia esta nova estrutura cognitiva, refletindo na construção desta identidade. Notar que faz apenas pouco mais de duas décadas que um grupo de palestinos guia a criação do conteúdo ensinado nas escolas de seus alunos é também representativo deste processo de construção de nação e perpetuação da identidade. Até 1948, a educação disponível era moldada para servir ao colonialismo britânico. A partir da Nakba, em 1948, os palestinos foram “alocados” em escolas em países vizinhos ou escolas da UNRWA, mas mesmo assim não se deixaram (e não foram deixados) “assimilar” em outra identidade nacional. Esta não assimilação e consequente perpetuação da identidade nacional palestina, mesmo sem possuir um Estado hoje reconhecido pode ter se dado por alguns fatores, incluindo a mobilização do seu pertencimento a uma terra específica, a terra palestina.

Um dos

responsáveis por este processo de não assimilação foi o trabalho realizado pela UNRWA, cujos programas e serviços, principalmente aqueles relacionados à educação, têm notável papel na reconstrução do nacionalismo palestino. Mesmo que desde 1967 o controle da educação dos palestinos tenha sido da Autoridade Militar Israelense, o trabalho da UNRWA foi uma espécie de “continuidade”, aplicado às crianças refugiadas cuja educação não estava sob este controle de Israel, até o Ministério da Educação Palestino ser finalmente criado em 1994. “National governments are widely recognized as a powerful force in fostering a sense of nation, national identity, and nationalism through education policies in their own societies” (Shabaneh, 2012, p. 491), mas no caso palestino não existia este elemento até a criação da Autoridade Palestina.

42 The main factor that had the unintended consequence of reconstructing Palestinian nationalism in the last six decades has been the use by UNRWA schools of extracurricular activities that reinvented many elements of Palestinian identity and nationalism (e.g. songs, plays, music, paintings, poetry). […] UNRWA schools have been providing opportunities for Palestinian youth to articulate and enact Palestinian identity […]UNRWA educational services made it possible to ‘imagine’ (Anderson 1991) the nation and its space by new means: bringing refugee children from various backgrounds together in the structured setting of school and extracurricular activities.(Shabaneh, 2012, p.491-493).

A UNRWA foi criada em dezembro de 1949 através de uma decisão da Assembleia Geral da ONU e começou a operar em maio de 1950. Como a questão dos refugiados nunca é plenamente resolvida, a Assembleia Geral vem desde esta data renovando continuamente o seu mandato. Ela foi criada “to carry out direct relief and works programs for the Palestine refugees” (UNRWA, s.d.) e hoje mais da metade do seu orçamento é dedicado à educação (52% de um total de US$1,2 bilhão em 2009) (Groiss, s.d., p.3). “In the academic year of 2009/2010 it ran a total of 691 schools caring for 483,000 students” (Groiss, s.d., p.2), sendo mais da metade deles na Cisjordânia e Faixa de Gaza. Mesmo que apenas 23% dos estudantes palestinos na Cisjordânia e em Gaza hoje estejam em escolas da UNRWA, esta agência manteve uma continuidade na educação dos palestinos desde a Nakba que pode nos ajudar a entender inclusive conteúdos presentes nos livros escolares usados nas escolas governamentais da Autoridade Palestina hoje, que são os mesmo utilizados pela UNRWA, e sua colaboração no forjar de uma consciência nacional. Antes da criação do Ministério da Educação Palestino, a UNRWA utilizava os mesmos livros das escolas locais, que eram produzidos pelos governos egípcio e jordaniano. Hoje utiliza os mesmo livros produzidos pela Autoridade Palestina. Um dos elementos presente nestes livros em diversos momentos que gostaríamos de trabalhar aqui é o Direito de Retorno, abordados por Ghassan Shabaneh e Arnon Groiss, em suas análises dos conteúdos trabalhados

pela

extracurriculares.

UNRWA

em

livros

escolares

e

atividades

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O Direito de Retorno está regulamentado pela resolução 194 do Conselho de Segurança da ONU, de 11 de dezembro de 1948, que em seu 11º ponto Resolves that the refugees wishing to return to their homes and live at peace with their neighbours should be permitted to do so at the earliest practicable date, and that compensation should be paid for the property of those choosing not to return and for loss of or damage to property which, under principles of international law or in equity, should be made good by the Governments or authorities responsible;[And] Instructs the Conciliation Commission to facilitate the repatriation, resettlement and economic and social rehabilitation of the refugees and the payment of compensation (UN General Assembly, Resolution 194, December 1948).

Mas mais do que estar regulamentada legalmente no direito internacional, este direito é frequentemente mobilizado para a formação de uma ligação com a terra e de pertencimento que dá um senso quase inerente a todo refugiado palestino de que a sua terra é aquela de onde seus pais, avós ou bisavós foram expulsos em 1948, muitas vezes sem nunca ter estado lá. Isto acontece desde maneiras mais sutis, como neste trecho do livro National Education, usado para alunos do 4º ano: The number of the Palestinians in the world is close to nine millions… Four and a half millions live in the Diaspora outside of Palestine… Most of them are refugees who wait to return to the motherland after having been expelled from it… (National Education, Grade 4, Part 1, 2011, p. 43 apud Groiss, s.d.a, p. 4, grifo nosso),

onde vemos dada como natural a sua espera pelo retorno à sua terra [motherland] - e não é nem mesmo “their motherland”, mas “the motherland”, dando um senso de única e indiscutível. 4 Além disso, há exemplos mais explícitos, nos quais a sua espera pelo retorno à sua vila ou cidade é expressamente tratado, como neste livro de Educação Islâmica, usado por crianças do 6º ano: The [refugee] camp is not considered an original home for the Palestinian refugee. Rather, it is a temporary place where he has been forced to live. All the Palestinians wait for the return of every Palestinian to his city or village from which he was

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É possível fazer também um paralelo deste discurso com o discurso utilizado por israelenses quanto à diáspora judaica pelo mundo. De 6 milhões de judeus viverem em Israel e outros 8 milhões estarem espalhados pelo mundo e terem o direito de retornar a sua terra.

44 made to emigrate (Islamic Education, Grade 6, Part 1, 2011, p. 69 apud Groiss, s.d.a, p. 4)

A ideia de naturalidade do pertencimento do palestino àquelas vilas e cidades específicas de onde seus ascendentes foram expulsos em 1948 e seu inerente direito de retorno são tratados também em exercícios de língua árabe, expressão literária e educação artística (Arts and Crafts), como no exemplo de exercício de língua árabe a seguir: Activity 2: Let us fill in the empty space with the appropriate noun: The …[refugee]… dreams of returning to his homeland. (Our Beautiful Language, Grade 5, Part 1, 2011, p. 91 apud Groiss, s.d.a, p. 4).

Ou na proposta de redação a seguir (Jaffa é uma cidade a noroeste de Jerusalém que costumava ser o segundo maior porto palestino, atrás apenas do porto de Gaza. Seus habitantes palestinos foram expulsos na guerra de 1948): Expression: …I visited the city of Jaffa [which is within Israel’s borders since 1948] and while I was [strolling] along its streets and neighborhoods I saw an Arab-style house that was empty of its dwellers. I imagined it telling me its story, and it said:… [to be completed by the student] (Reading and Texts, Grade 9, Part 1, 2011, p. 120 apud Groiss, s.d.a, p. 5)

Aqui podemos notar o incentivo à criação do imaginário sobre o seu passado e a terra à qual se quer dar a ideia de pertencimento inegável destes estudantes, mesmo que muitos nunca tenham ido a Jaffa (porque não são permitidos) e até mesmo talvez seus parentes que foram expulsos em 1948 de sua vila não terem conhecido a cidade de Jaffa, construindo a ideia de um passado comum histórico que não necessariamente é comum a todos, mas assim é mobilizado. Além disso, a lembrança explícita ao evento que liga todos eles: a expulsão de sua terra, que deixou vazia a casa construída em estilo árabe. Lembrando, é claro, que dizer que determinados elementos que não são comuns a todos são mobilizados desta maneira não deslegitima a existência de sua identidade e o sentimento de pertencimento a ela. Pois como já registramos, estas, em qualquer ocasião, são constantemente construídas e partes de um processo contínuo de idealização.

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Esta ideia também é vista neste outro exemplo, parte do livro de língua árabe do 1º ano: A night in the camp One winter night, a rainstorm flooded Um5 Saber's house, and her children woke up afraid. The neighbors rushed to help, and one of them took the children to his house. Um Saber looked at the picture of her house hanging on the wall, and said 'I wish we had stayed in Jaffa' (Our Beautiful Language, Part 2, Grade 1, p. 119 apud CRIHL, 2013, p. 4).

Aqui vemos não só a mobilização do sentimento em relação à cidade ocupada como também o reforço deste imaginário de comunidade e proteção, ao contar com naturalidade como a vizinhança socorreu e levou as crianças para a casa deles. O incentivo à criação deste imaginário também é feito por parte dos professores e é tratada em um livro do professor que, para uma aula de artes na qual é pedido aos alunos que desenhem as suas casas, o professor recebe a seguinte sugestão: It is possible to make a connection between the house in the refugee camp [where they live] and the houses left by their parents and grandparents in the Palestinian cities and villages in 1948 (Arts and Crafts, Grade 2 – Teacher’s Guide, 2001, p. 44 apud Groiss, s.d.a, p. 5).

A ideia de retornar à sua “verdadeira terra” faz parte também de muitas obras literárias, músicas e poemas palestinos. E estes não deixam de aparecer nos livros escolares, como nestes dois poemas homônimos, presentes em um livro de língua árabe do 7º ano: We Shall Return […] Tomorrow we shall come back and the ages shall listen To the footfalls during the return We shall return with the resounding storms With the sacred lightening and the star With the winged hopes and the songs With the soaring vulture and the eagle Yes! The thousands victims shall return Victims of oppression shall open every door (Our Beautiful Language, Grade 7, Part 1, 2002, p. 34 apud Groiss, s.d. a, p.5)

e outro do 5º ano:

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“Um” é o pronome utilizado para designar “mãe de” em árabe, no lugar do nome próprio da pessoa, que, pela cultura da língua, tem o costume de ser preservado. Por exemplo, em vez de dizer “Suhaila, mãe de Sireem”, ao usar “Um Sireem” estaríamos nos referindo a Suhaila.

46 We Shall Return Return, return, we shall return Borders shall not exist, nor citadels and fortresses Cry out, O those who have left: We shall return! [We] shall return to the homes, to the valleys, to the mountains Under the flag of glory, Jihad and struggle With blood, sacrifice [fida’], fraternity and loyalty We shall return [We] shall return, O hills; [we] shall return, O heights [We] shall return to childhood; [we] shall return to youth To Jihad in the hills; [to] harvest in the land” (Our Beautiful Language, Grade 5, Part 1, 2011, p. 50 apud Groiss, s.d.a p.6)

Como nestes poemas, cheios de significados de construção do ser, os elementos que fazem parte do processo de construção de um Estado e de uma nação, como vimos, são diversos e são mobilizados em diferentes tempos, de diferenciadas maneiras. Consideramos que na Palestina, o pertencimento à terra de onde foram expulsos em 1948 é um dos mais fortes e presentes neste processo, como vimos nos projetos das organizações não governamentais e nestes poucos exemplos dos livros didáticos, mas outro importante elemento deste processo é, como registrado anteriormente através das palavras de Hobsbawm, a identificação de um inimigo comum, que se faz, na realidade palestina, pela personificação da instituição que o expulsou da sua terra durante a Catástrofe (Nakba), em 1948. O projeto colonial Israelense acaba infligindo sobre os palestinos restrições diárias que levam à representação do israelense como inimigo comum, o que acaba sendo fortalecedor da construção identitária palestina. Este papel de inimigo também é abordado na educação escolar das crianças em todas as idades. Um estudo coordenado por três professores do Council of Religious Institutions of the Holy Land (CRIHL) fez uma análise que considerou todos6 os livros escolares aprovados pelo Ministério da Educação Palestino em 2011, dos quais 142 se adequavam ao objetivo do estudo, que era ver “how Israelis and Palestinians present their narratives related to their

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A análise de todos os livros é possível porque os palestinos só começaram a produzir seus livros escolares do 1º ao 12º ano a partir do ano 2000, diferente dos livros Israelenses, também analisados por este estudo, que são produzidos há mais de 60 anos pelo Governo Israelense.

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conflict” em livros escolares usados pelo sistema educacional do estado e pela comunidade ultraortodoxa de Israel e por todas as escolas palestinas nos Territórios Nacionais Palestinos, focando em como cada lado retrata o outro e o seu próprio grupo, trabalhando com aspectos qualitativos e quantitativos (Adwan et al., 2014, p. 1). As principais conclusões do estudo quanto a esta caracterização do outro que queremos reproduzir aqui é que a “demonização” ou “desumanização” do outro são bastante raras dos dois lados, mas que a representação do outro como inimigo está presente em 81% das “literary pieces” (excertos literários) analisadas (que podem ser mapas, poemas, hitórias, capítulos, fotografias, composições, etc.) como “muito negativas” nos livros palestinos. A retratação do outro é feira de maneira negativa ou muito negativa em 84% das literary pieces. Mas aqui é muito pertinente notar, conforme aponta o estudo, que nenhuma destas representações do outro como negativas ou muito negativas diz respeito a características atribuídas aos judeus ou israelenses, mas sim a ações destes para com os palestinos. Como em um relato presente no livro de literatura do sexto ano em que um palestino, sobre a sua prisão por Israel, escreve “I was in the ‘slaughterhouse’ [casa da chacina] for 13 days” e a seguir vem a explicação entre parêntesis “(‘the slaughterhouse’ is the interrogation place, and the prisoners gave the place this nickname due to the brutality of the interrogators)” (Our Beautiful Language, Grade 6, Part 1, p. 93 apud Adwan et al., 2014, p. 8). Este tipo de retratação também é feito neste exemplo de um livro de história do último ano, registrando alguns fatos ocorridos da seguinte maneira: It (Israel) also destroyed large sections of the water utilities, such as by demolishing wells, and destroyed irrigation networks, water storage facilities, and water pipes, . . . [and] threatens to not supply a number of Palestinian cities with water (History of the Arabs and the World: in the Twentieth Century , Grade 12, p. 139 apud Adwan et al., 2014, p. 8).

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Aqui percebemos aquilo que é apresentado nas teorias identitárias que não necessariamente o que é falado sobre o outro é inventado ou falacioso, mas sim que ocorre uma seleção de fatores específicos do outro que o retratam como negativo e da mesma maneira de fatores positivos do self, o que constituem parte deste processo de identificação. Mais um exemplo disto está explícito neste exercício apresentado no livro de Educação Nacional do 6º ano: Let us draw the following conclusions: First, the specific problems: 1. Imperialism: Palestine was exposed to British occupation after the First World War in 1917 and to Israeli occupation in 1948 with Britain's help. Israeli occupation destroyed most of the Palestinian villages and cities, expelled the Palestinian inhabitants and forced them to leave their lands and villages. 2. Colonization: Israel pursued a new policy in occupying Palestinian lands, which is the establishment of agricultural, industrial and residential settlements. 3. Neglect of the Palestinian people's health, education and social services under occupation. 4. Israel's control of ground water in Palestine. (National Education, Grade 6, 2009, p. 15 apud Groiss, s.d. b, p. 5)

Neste caso o registro de atitudes do outro é bastante explícito de maneira negativa, usando palavras específicas que fortalecem essa ideia, como a simbólica e significativa palavra ocupação, e a descrição de atividades que prejudicam a sobrevivência dos palestinos. Nos livros israelenses, devemos notar, isto não é diferente. Os livros israelenses, tanto do Estado, quanto da comunidade ultra ortodoxa, têm inclusive proporcionalmente mais caracterizações dos palestinos e árabes ou suas ações do que os livros palestinos caracterizando israelenses e judeus (Adwan et al., 2014, p. 8). Isto pode ser representativo de uma maior necessidade de Israel mostrar a presença de um inimigo, quando constitui a sua identidade, e consequentemente as ações que estas geram, do que os palestinos, que são o lado “mais fraco” da relação de disparidade de poder, mas que já se constituíam antes da criação do estado de Israel em 1948. Isso também pode ser verdadeiro pelo fato de Israel ter surgido sob a força das armas em 1948 e precisar dela constantemente para sobreviver em um

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horizonte próximo, tendo relação direta com uma terra que antes era tida como de outra população. Isto pode acabar refletindo em uma mais frequente necessidade de caracterizar o outro como inimigo, para deslegitimá-lo e combatê-lo. Esta caracterização está explícita, por exemplo, em uma passagem do livro “Country and Its Inhabitants: Israel Studies”, usado no 4ª ano das escolas Ultra-Ortodoxas, reproduzida a seguir: Israel is a young country and surrounded by enemies: Syria, Egypt, Jordan. And on every side [...] enemy states are hatching plots that are only waiting for the right time to be carried out. Like a little lamb in a sea of seventy wolves is Israel among the Arab states. […]” (Country and Its Inhabitants: Israel Studies, Grade 4, Part 3, 2008, p. 118, apud Adwan et al., 2014, p. 9)

Nos livros escolares palestinos, a relação com o inimigo também se dá pelo reconhecimento de aspectos positivos do self através desta relação com o inimigo ou das consequências causadas a si por ações do inimigo, como no caso a seguir, em um livro de literatura árabe do último ano escolar: The people of Palestine decided to wage a struggle and jihad with their money, themselves, and their pens to prevent Britain from establishing the Jewish state in Palestine... The tragedy of Palestine and the inexhaustible calamities which befell it provided authors and poets with their greatest creations and best songs, enflaming feelings and passions, and overwhelming minds until it became a source of inspiration and creation (Arabic Language: Reading, Literature, and Analysis, Grade 12, 2008 (2nd ed.), p. 98–99 apud Adwan et al., 2014, p. 10).

Este enaltecimento do self também ocorre em outras situações, como por exemplo relacionando-o com as palavras positivas cooperação e amor, e a atitude de ajudar a fazer o bem, como neste livro de Educação Islâmica para o 1º ano, onde primeiro cita-se uma passagem do Corão: "God Almighty said: Cooperate in righteousness and piety. (5:2)." E em um momento seguinte registra-se o seguinte trecho, no qual não só o sujeito é prestativo e bondoso como ajuda seus pares a fazerem o bem: […] with love and cooperation we build Palestine. […] I am a Muslim: I help my mother, my mother,[sic] and my siblings with their work. I help my friends, assisting them in doing good.

50 I help my neighbors, assisting them in doing good. I help my relatives assisting them in doing good. I help the poor, assisting them in their need (Islamic Education, Part 2, Grade 1, p. 46-47, apud CRIHL, 2013, p. 3, grifo nosso).

As narrativas unilaterais de acontecimentos também são um importante fator de construção da nação e de projetos estatais que se vê presente nos livros escolares palestinos. Como dito, estas narrativas podem ser invenções, que favorecem a construção ou perpetuação de um projeto estatal específico ou podem ser relatos de fatos que mais uma vez são feitos de forma que enalteça pontos positivos do self. Um exemplo na narrativa unilateral está neste livro de Educação Nacional, do 7º ano, em que são listados esforços para o apagamento da herança intelectual dos palestinos: Attempts at obliterating [the Palestinian] intellectual heritage, such as: 1. Destruction and theft [roubo] of Arabic and Islamic manuscripts, especially at the Al-Aqsa Mosque. 2. An attempt to Judaize some Muslim holy places such as the Mosque of Abraham and the Mosque of Bilal bin Rabbah (National Education, Grade 7, 2008, p. 55 apud Groiss, s.d. b, p. 7)

Aqui registra-se que há um esforço de judaizar lugares sagrados muçulmanos sem reconhecer a possibilidade de estes lugares também serem tratados como lugares sagrados judeus (como os judeus também não reconhecem estes lugares como sagrados muçulmanos). A mesquita de Abraão é conhecida pelos judeus pelo nome de Santuário Machpelah ou Tumba dos Patriarcas e a Mesquita Bilal bin Rabbah é reconhecida pelos judeus como Tumba de Rachel (irmã de Ruth, da história bíblica), mas nenhum destes nomes é registrado. Muitos locais são reconhecidos como sagrados também para os cristãos, mas isto não acontece em relação aos muçulmanos, por parte dos judeus, e nem aos judeus, por parte dos muçulmanos. Esta “omissão” proposital que faz parte da narrativa unilateral nacional está claramente registrada por exemplo neste exercício do livro de Educação Nacional do 4º ano: Think about the following, and answer: 1-Tell the story of Al-Israa' and the Ascent to Heaven.

51 2-Name some Islamic and Christian holy places in Jerusalem (National Education, Part 1, Grade 4, 2009, p. 52 apud CRIHL, 2013, p. 15).

Da mesma maneira ocorre um fator muito considerável para a nossa análise que é o não reconhecimento do outro, que, no caso palestino, está intimamente ligado à questão da terra, já que Israel foi estabelecido sobre o território considerado palestino e que é constantemente trabalhado e mobilizado na sua identidade, parte de seu pertencimento. Um pequeno exemplo deste não reconhecimento aparece no livro de Educação Islâmica do 2º ano que informa aos alunos os países que formam a região do Levante (al-Sham, em árabe) sem considerar Israel: “The countries of the Levant [bilad al-Sham] are: Palestine, Jordan, Syria and Lebanon (Islamic Education, Grade 2, Part 1, 2009, p. 72 apud Groiss, s.d. b, p. 2), mesmo que Israel seja reconhecido desde 1948 pela ONU. Através das análises feitas também pudemos perceber que este não reconhecimento, além de fazer parte de poemas, e histórias, acontece principalmente em momentos que trabalham com mapas da região, fazendo a ligação direta com a terra. Na análise realisada pelo Council of Religious Institutions of the Holy Land, os pesquisadores averiguaram que dos 83 mapas da região entre o Rio Jordão e o Mar Mediterrâneo presentes nos livros palestinos, 48 deles (58%) não tinham fronteiras traçadas dentro da região, nenhuma referência a Israel e se referiam à região inteira como Palestina. Outros 27 (33%) apresentavam a Green Line (fronteira traçada pelo armistício de 1949 após a guerra de 1948, que supostamente deveria delimitar as fronteiras oficiais do Estado de Israel), mas sem mencionar Israel, referindo-se a toda a área como Palestina. Apenas três mapas assinalavam a Green Line e identificavam a zona ocidental com Israel. Além disso, oito mapas (9%) traçavam a Green Line e separavam Israel e Palestina por cores, mas não escreviam a palavra Israel e somente um mapa dividia a Palestina em áreas A, B e C (Adwan et al., 2014, p. 11), que são as divisões administrativas temporárias dos Territórios Palestinos previstas nos Acordos de Oslo assinados de 1995, até que um status final fosse estabelecido (o que nunca

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ocorreu, devido à descontinuidade das negociações, como apresentado anteriormente), mas também sem usar a palavra Israel. A este respeito vale notar que, segundo o previsto nos Acordos de Oslo, a área A (18% da Cisjordânia) inclui as cidades palestinas e áreas vizinhas sem assentamentos israelenses que estariam sob total controle civil e de segurança da Autoridade Palestina. A área B (21% da Cisjordânia) também abrange as regiões sem assentamentos israelenses que estariam sob controle civil da Autoridade Palestina e controle conjunto palestino israelense da segurança (na prática, controle militar israelense). A área C (61% da Cisjordânia) inclui todos os assentamentos Israelenses na Cisjordânia (já que desde 2005 não estão mais em Gaza) e algumas vilas palestinas e estão sob total controle (civil e militar) israelense (à exceção dos cidadãos palestinos residentes nestas áreas, por quem Israel não se responsabiliza civilmente) (Adwan et al., 2014, p. 11). A Israeli Civil Administration governa os assentamentos construídos em anexações unilaterais feitas na Cisjordânia e que por eles é chamada de Judeia e Samaria. Mas estas anexações unilaterais (tendo a maioria sido feita sob o governo de Natanyahu) não são reconhecidas pelo direito internacional devido ao modo como são feitas. A cidade de Jerusalém, que a princípio estaria sob uma administração internacional, não fazendo parte nem de Israel, nem da Cisjordânia, é dividida em Jerusalém Ocidental, considerada pelos israelenses como sua capital (a comunidade internacional considera Tel Aviv como capital) e Jerusalém Oriental, que é reconhecida como parte da Cisjordânia pela Autoridade Palestina, mas foi anexada em 1980 por Israel como como parte de seu território, retirando-na da Cisjordânia, ainda que isto não seja reconhecido pelo direito internacional. Dito isto, percebemos que as discussões e possíveis interpretações em cima deste território são incontáveis, mas ainda assim, apenas 4% dos mapas (3 mapas) apresentados nos livros escolares palestinos identificavam parte da terra com israelense. These features of the maps shape the child’s cognitive image of their homeland, and any subsequent division of the land is

53 viewed as unilaterally giving it away (Bar-Gal, 1996; Leuenberger & Schnell, 2011). Israelis and Palestinians both grow up with patriotic attachment to the whole land between the Jordan River and the Mediterranean Sea (Adwan et al., 2014, p. 11, grifos nossos).

Como muito bem expresso neste relatório comparativo do CRIHL, a imagem que os palestinos têm de sua terra e a inerência do seu direito de retorno a ela são fundamentais na noção que eles têm de si e do espaço que ocupam, moldando suas identificações pessoais. E a pluralidade de interpretações e discussões a respeito de um elemento tão mobilizado nesta construção acaba refletindo na pluralidade de posições perante a situação do local, que foi o que pude notar quando, na minha posição privilegiada de brasileira que “olha de fora”, tive a oportunidade de conversar com palestinos e israelenses de diferentes backgrounds enquanto estive por diversas cidades da região. Conversei com palestinos que não reconheciam Israel e sua existência para além da existência de um exército perverso e perpetrador de crimes de Direitos Humanos na Palestina (que era considerada toda a região, incluindo Tel Aviv e Jerusalém) e que acreditava que os israelenses acabariam sendo expulsos para o direito de retorno poder se concretizar, já que são palestinos demais hoje no mundo e todos têm o direito de retornar; com Israelenses que não reconheciam a Palestina e viam a invasão de “árabes” no único pedaço de terra no qual os judeus podem viver com segurança, sendo que estes “árabes” têm 21 nações para habitar; israelenses que não reconheciam a Palestina como território, identificando a Cisjordânia como Judeia e Samaria, mas reconheciam “os árabes” que viviam perto do assentamento judaico como bons para trabalhar dentro dos assentamentos, como ajudantes de construção e manutenção, por exemplo; israelenses que reconheciam o direito dos árabes existirem, de retornarem para a sua terra e de terem direitos iguais aos dos israelenses garantidos, mas sob o nome de Israel e sem a expulsão dos israelenses; palestinos que diziam aceitar viver em um só estado com os israelenses, se tivessem seus direitos garantidos; israelenses e palestinos que tinham total descrença na

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ultrapassada solução de dois estados (a proposta pelos Acordos de Oslo); israelenses e palestinos que acreditavam que a solução de dois estados ainda era a melhor; entre outras combinações possíveis. Mesmo que muitos elementos nacionais sejam mobilizados por outros meios perante a ausência da figura de um Estado, há também uma pluralidade de mobilizações que acaba por construir diferentes estruturas cognitivas na educação dos palestinos7 que por vezes seriam unificadas diante de um projeto nacionalista estatal como ocorreu na criação de muitas nações de modelos europeus no século XX, mas não se aplica ao caso palestino. Acreditamos que esta pluralidade, em consonância com um não conhecimento da cultura, religião e conexões com aquela mesma terra, do “Outro” leva a uma não legitimação da existência deste outro e dificulta a formação de relações, inclusive na forma de negociações. Como novamente registra muito bem a análise feita por Adwan, Bar-Tal e Wexler: Palestinians are at an earlier stage of nation building. Palestinians are also the weaker of the two adversaries in this conflict, suffering greater financial hardship, higher unemployment, and substantially more deaths both in absolute numbers and per capita. The conflict, while sustained and deeply problematic for both Israelis and Palestinians, has more continuous and multifaceted impact on the daily life of Palestinians (Adwan et al., 2014, p. 14).

E estes impactos maiores que recaem sobre os palestinos têm consequências diretas no seu dia a dia e, por conseguinte, na sua formação identitária. Este não reconhecimento do outro, de suas características e de seu direito de existência, junto da pluralidade de vozes, opiniões e mobilizações que vimos, são um dos principais fatores reconhecidos como empecilhos às negociações de acordos entre as partes. A seguir, tentaremos traçar um breve histórico das resoluções emitidas a respeito da região e negociações de acordos e como as noções de segurança (e insegurança) são afetadas pelos elementos identitários e mobilizações que vimos neste capítulo bem

7

E aqui reconhecendo a educação como o processo contínuo que acontece durante toda a vida de uma pessoa, não apenas durante a fase da infância e da adolescência, e por métodos formais (escola) e informais (influência familiar, da comunidade e outros meios possíveis).

55

como a influência destes elementos e mobilizações quando desconsiderados ou a maneira como são tratados nestas negociações e decisões.

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Capítulo 3: Negociações, resoluções, desconsideração de elementos identitários e algumas de suas consequências

Como sabemos, o número de mortes, as situações de sofrimento e outras muitas consequências negativas para a vida no dia a dia de palestinos e israelenses são plurais e intensas há mais de pelo menos meio século devido à situação na qual eles vivem, de uma ocupação territorial, econômica e militar israelense. Como também dito, as consequências têm mais impacto negativo sobre a vida dos palestinos, que nesta relação de disparidade de poder encontram-se do “lado” com menos recursos. Para tentar aliviar as consequências negativas ou para encerrar as “causas do problema” (comumente chamadas na literatura sobre o assunto de “a questão palestina”), diferentes tentativas já foram realizadas, que propunham múltiplas medidas a serem tomadas que por vezes são cumpridas e, na maioria das vezes, são desconsideradas. Traçando um breve histórico sobre os principais confrontos bélicos da região nas últimas sete décadas e os processos de negociações de tréguas ou acordos neste sentido, tentaremos neste capítulo analisar se as identidades formadas e clamadas pelos processos anteriormente explorados são levadas em consideração e qual a influencia disto e dos elementos identitários para os constantes entraves ocorridos. 3.1. Principais negociações e resoluções a respeito da questão

Sendo o território palestino alvo de controvérsias históricas, sabemos que muitos são os momentos e detalhes que influenciam a atual situação, mas temos também consciência da dificuldade e extensão de fazer uma análise holística a este respeito, que não é nosso objetivo. Considerando as tentativas mais recentes de negociações, que ocorreram em detrimento dos ataques de 2014 em Gaza, podemos considerar como início deste confronto

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entre dois inimigos e os modelos de tentativas de negociações a criação do estado de Israel em 1948, a partir do Plano de Partilha de 1947 da ONU. O Plano de Partilha de 1947 foi elaborado pela UNSCOP – United Nations Special Comittee on Palestine ou Comissão Especial das Nações Unidas sobre a Palestina - e, de maneira extensa, leva em consideração onze recomendações principais sobre: o término do mandato [britânico] sobre a região; a independência [de “árabes” e “judeus”]; um período de transição [para a independência]; as responsabilidades das Nações Unidas durante o período transicional; os locais sagrados e os interesses sobre eles; os judeus deslocados [como parte das consequências da Segunda Guerra Mundial]; princípios democráticos e proteção de minorias; relações pacíficas; rendição; apelos contra atos de violência; e “o problema judeu em geral” tendo este último ponto uma nota de que houve dissenso a respeito desta recomendação e registrando que qualquer solução a respeito da questão palestina não pode ser considerada como uma solução para o problema judeu em geral (UNSCOP, 1947). Este plano de partilha está contido no relatório entregue à Assembleia Geral da ONU daquele e ano e leva em consideração por exemplo que: (a) Although sharply divided by political issues, the peoples of Palestine are sufficiently advanced to govern themselves independently. (b) The Arab and Jewish peoples, after more than a quarter of a century of tutelage under the Mandate, both seek a means of effective expression for their national aspirations (UNSCOP, 1947, capítulo V, recomendação II).

Levando em consideração tal relatório, a Assembleia Geral reunida dia 29 de novembro de 1947 adotou, através da resolução 181, um Plano de Partilha com União Econômica determinando a divisão do território palestino para a criação de dois estados, um “Judeu” e um “Árabe”: Independent Arab and Jewish States and the Special International Regime for the City of Jerusalem[...] shall come into existence in Palestine two months after the evacuation of the armed forces of the mandatory Power has been completed but in any case not later than 1 October 1948 (ONU, 1947, p.133).

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Apesar de as avaliações do UNSCOP levarem em consideração muitos aspectos da situação naquele momento, incluindo as aspirações nacionalistas de “ambos os povos”, como expresso na redação do plano, [t]he Commission did not engage in any attempt to mediate between the parties, but listened to the preferences of Jewish and Palestinian entities and of Arab States and great powers with a stake in the region. The result of this strategy of solving the problem was the tactical acceptance of partition by Zionists and the search for other options by Arab countries and Palestinian groups. In May 1948, when the British withdrew, war openly broke out in the region (Uziel, 2015, p. 5),

como

comenta Eduardo Uziel em sua análise sobre os processos de

mediação no Oriente Médio. Nesta guerra, como já vimos, o nascente estado israelense estava muito mais bem preparado belicamente e o número de mortes não seria irrizório. Os palestinos, que, como o próprio trabalho da UNSCOP registrou, já buscavam meios de efetivar as suas aspirações nacionais, neste momento se viram diante de uma proposta que não ignorava totalmente a sua identidade e projeto nacional, mas que retirava de seu domínio mais de metade da terra que fazia parte de seu projeto nacional e à qual tinha sentimento de pertencimento. Com o estouro da disputa, na tentativa de negociar uma trégua entre as partes, a Assembleia Geral da ONU novamente interveio e criou em maio de 1948, após o término do mandato britânico, um cargo de United Nations Mediator on Palestine. A missão deste mediador seria negociar um armistício e um acordo de paz entre os países árabes e o novo independente Estado de Israel, mas vale registrar que estes recusavam-se a sentar em uma mesma mesa para negociar, visto que os estados árabes não reconheciam a existência do Estado de Israel. Ainda assim, o mediador, na pessoa de Count Folke Bernadotte, “ceaselessly travelled between capitals and consulted primarily with the United States and the United Kingdom in order to produce two peace plans”(Uziel, 2015, p. 6), ou seja, sem poder começar uma negociação entre as partes, tomava para si a tarefa de, consultando terceiros, propor opções e imaginar soluções. Este é o primeiro momento

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visível em que a imaginação de soluções por parte de terceiros não diretamente envolvidos na questão e sem a consulta direta dos envolvidos, mas sim de partes sem relação direta, é realizada. Após um cessar-fogo no início de 1949, mais duas tentativas de negociações paralelas foram iniciadas, mas continuando a enfrentar o obstáculo do não reconhecimento. Adotando uma estratégia de fazer múltiplos tipos de contatos entre as partes, formais e informais, mesmo sem estas se reconhecerem, o medidor, agora na pessoa de Ralph Bunche, sucessor de Bernadotte, foi investindo esforços em desfazer mal entendidos e ir abordando questões específicas que poderiam aproximar as partes. Paralelamente, o United Nations Conciliation Commission for Palestine, comissão esta que não incluía nenhum membro palestino ou israelense, mas sim estadunidenses, franceses e turcos, também tentava formular acordos de paz em uma conferência na Suíça. At the end of months of proposals and counterproposals, the only resulting document, the Lausanne protocol, dealt with procedural matters only and was blighted by the parties’ opposing interpretations. […] Efforts to resume UNCCP efforts in later years were equally frustrating, reflecting the interlocutors’ difficulty of mutually recognizing each other and the distance between their substantive interests (Uziel, 2015, p.6).

Este impedimento fez com que, à parte das negociações sobre a crise do canal do Suez em 1956 com o Egito, não houvesse mais negociações entre árabes e israelenses, menos ainda que levasse em consideração qualquer aspiração dos palestinos. A próxima decisão tomada a respeito da situação é a resolução do Conselho de Segurança número 242 em função da Guerra dos Seis Dias travada em 1967 entre os exércitos sírio, jordaniano, egípcio e israelense. Nesta guerra, o exército israelense novamente mostrou sua superioridade de força e preparo bélico e tomou considerável porção de territórios que segundo a Resolução 181 da Assembleia Geral seriam do proposto estado árabe. A respeito desta tomada de territórios através da guerra, que é registrada no documento como inadmissível, a resolução 242 recomenda, antes de fazer sua determinação, a retirada das forças armadas

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de Israel dos territórios ocupados pelo recente conflito, o fim de todas as formas de beligerância e o respeito e reconhecimento da soberania, integridade territorial e independência política “of every State in the area” (grifo nosso) e o seu direito de viverem em paz com fronteiras seguras e reconhecidas, livres de ameaças de uso ou uso da força (ONU, 1967, p. 8). Além disso, no texto da resolução, afirma-se a necessidade de garantir a liberdade de navegação nas vias navegáveis da região, de atingir “a just settlement of the refugee problem” e de garantir a inviolabilidade territorial e independência política “of every State in the area”, por meio de medidas que incluíam o estabelecimento de zonas desmilitarizadas (ONU, 1967, p.9). O que queremos chamar à atenção neste texto é justamente a ausência, em qualquer momento, do reconhecimento da identidade palestina, de elementos que são mobilizados em seu processo identitário ou da existência de qualquer projeto nacional específico desta população. Ainda que desde o plano de partilha se considerasse que os palestinos estão preparados para concretizar suas aspirações nacionais, não se considera a terra, que faria parte desta aspiração nacional, como elemento essencial nesta discussão ou estudando-se as maneiras como a população é ligada a ela. Ou a construção de um inimigo neste processo de construção de nação, que é um elemento tão essencial. Não só a única menção feita a eles é na forma de “o problema dos refugiados” como diz-se a todo momento sobre a integridade territorial,

reconhecimento de soberania e a independência

política de todos os estados da região, sem declarar especificamente o direito palestino a estes requesitos, como havia sido previsto em 1947 pelo Plano de Partilha, após o período transicional. Os palestinos são novamente jogados em um plano meio indefinido, sendo chamados de “a questão dos refugiados” e não observando o Direito de Retorno, por exemplo, que desde 1948 faz parte da identificação de diversos palestinos como palestinos, que muitas vezes veem neste um objetivo de vida. Seria necessário ver, por exemplo, como lidar com ele em relação ao direito divino que muitos

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judeus também veem em relação à mesma terra. Parece que estes elementos são apagados da discussão. Antes de assinalar a decisão do Conselho de Segurança, o documento ainda registra a solicitação para que o Secretário Geral designe “a Special Representative to proceed to the Middle East to establish and maintain contacts with the States concerned […]” (ONU, 1967, p. 9, grifo nosso), novamente mencionando um termo geral, “o Oriente Médio”, deixando de especificar qualquer referência aos palestinos, os mais atingidos diretamente pelas consequências da guerra em si e dessa tomada de terras através da guerra. Novamente tenta-se indefinir a ligação com a terra que muitos palestinos e judeus sentem com a utilização de um termo genérico. Segundo o diplomata Eduardo Uziel, a negociação desta resolução “was not in itself a mediation attempt. However, it was drafted to serve as a reference for future negotiations, with criteria accepted by the parties (although with divergent interpretations) and by the great powers (2015, p.8). Isto é, mesmo tratando-se de uma violação do direito internacional e da “inadmissibilidade da aquisição de territórios por meio da guerra”, não são tomadas medidas punitivas e aceita-se com ar de “progresso” estabelecer critérios para negociações futuras, sem tomar medidas concretas a respeito da situação presente e suas consequências para a população que ali vive.

As divergências de interpretações entre as partes podem ser

consequência direta das narrativas plurais existentes sobre o mesmo fato, que são mais um elemento mobilizado nos processos de construção identitária. Não se chega a uma mediação em si devido a estas narrativas de passado histórico que cada grupo identitário mobiliza de forma unilateral que os faz acreditar no direito inerente àquela terra e que negociá-lo pode significar abdicar de parte de sua essência. Até mesmo as mortes em decorrência da guerra, para proteger este território, podem novamente ser mobilizadas como parte do esforço (jihad) intrínseco da

comunidade

palestina, como vimos nos poemas, que lutam pela sua terra, como parte de

62

um esforço de enaltecimento do self e novamente o não reconhecimento do outro como ser igualmente legítimo. Em 1973, quando novamente as forças armadas de Egito, Síria e Israel envolvem-se em um grave conflito bélico, a guerra do Yom Kippur, o Permanent Representative of the United States of America to the United Nations envia uma carta ao presidente do Conselho de Segurança solicitando “to consider the situation in the Middle East” e especifica que o pedido é feito levando em consideração que de acordo com o artigo 24 da Carta da ONU “the Members of the United Nations have conferred primary responsibility for the maintenance of international peace and security on the Security Council” (UNISPAL, 1973). Contemplando esta carta, em agosto daquele ano o Conselho de Segurança formula a resolução 337, que convida representantes do Egito, de Israel e da República Árabe da Síria para participar, sem direito a voto, das discussões solicitadas pela carta; e em outubro elabora a resolução 338 que: 1. Calls upon all parties to the present fighting to cease all firing and terminate all military activity immediately, no later than 12 hours after the moment of the adoption of this decision, in the positions they now occupy; 2. Calls upon the parties concerned to start immediately after the cease-fire the implementation of Security Council resolution 242 (1967) in all of its parts; 3. Decides that, immediately and concurrently with the ceasefire, negotiations shall start between the parties concerned under appropriate auspices aimed at establishing a just and durable peace in the Middle East. (ONU, 1973, p. 10)

Ou seja mesmo a Guerra do Yom Kippur tendo sido sobre as terras do Sinai (no nordeste do Egito, sudoeste de Israel) e as colinas de Golã (Sudoeste da Síria e nordeste de Israel), isto é, limites do território palestino, mobilizado como parte da identidade nacional de centenas de indivíduos, estes nunca são levados em consideração ou são diretamente evolvidos na decisão, mesmo que o maior número de pessoas refugiadas ou atingidas diretamente por outras consequências negativas acabe sempre por ser deste grupo. Mais grave, convoca que as partes envolvidas implementem a resolução 242, que considerava a independência,

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integridade territorial e soberania

de todos os estados da região, sem

novamente fazer qualquer consideração ou menção aos palestinos e a todas as consequências às quais esta população seria submetida. Além, é claro, de o Conselho de Segurança ordenar que as partes comecem a negociar imediatamente após o cessar-fogo, sem considerar o recorrente entrave do não reconhecimento dos líderes de países árabes já consolidados e de Israel. Como vimos o “não reconhecimento” do direito de existência dos israelenses nos livros escolares palestinos de hoje, podemos também entender, pelo que vimos, que estes livros escolares, além de contribuírem para a construção e mobilização identitária, são reflexos de como os palestinos se identificam. O não reconhecimento da legitimidade do outro entrava as negociações nos modelos europeus e contribui para a percepção dos mediadores de ver as atitudes bélicas como atos de rebeldia e terror inerentes a este grupo identitário em vez de enxergá-la como forma de defesa de sua identidade e de seu direito àquela terra. Isto contribui para que se conceitue a insegurança como um problema bélico, resolvível a partir de elementos bélicos e negociando para cessar o uso destes elementos. Nos próximos passos os Estados Unidos desempenharam importante papel de mediadores, tentando concretizar aquilo que foi colocado no papel. Como descreve Uziel, [i]n fact, the following two years witnessed Kissinger’s shuttle diplomacy. The Secretary travelled dozens of times to the parties’capitals in order to obtain his desired agreements. During these negotiations, Kissinger was an active negotiator, exerting pressure and offering material and political rewards for the parties to accept military disengagement (Uziel, 2015, p.8).

Pelo menos no final desta década tanto egípcios quanto israelenses mostravam-se mais dispostos a negociar. Nas negociações dos acordos de Camp David (assinados no início de 1979) os líderes das duas nações formaram um compromisso de negociar de boa fé um tratado internacional futuro, sendo o Egito a primeira nação árabe a reconhecer Israel. O tratado

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futuramente assinado, o “Tratado de Paz Israelo-Egípcio”, apesar de considerar as resoluções 242 e 338 do Conselho de Segurança em seu preâmbulo e minimamente citar a existência de uma “mandated Palestine”, quando declara que “Israel will withdraw all its armed forces and civilians from the Sinai behind the international boundary between Egypt and mandated Palestine” (PEACE...1979) não demonstra reconhecer a importância do envolvimento da situação dos palestinos para o “establishment of a just, comprehensive and lasting peace in the Middle East”, objetivo declarado no preâmbulo deste tratado (PEACE...1979). Ou seja, mais uma vez decisões são tomadas sem que muitos dos envolvidos sejam consultados de qualquer maneira ou levados em consideração. Não se considera, por exemplo esta parte tão fortemente mobilizada na identidade palestina, que é o território, e também o direito de retorno, que já vinha sendo instigado pela UNRWA desde a década de 1950, e não se entende a participação dos palestinos para que a aplicação do acordo desse certo, sendo que são estes palestinos, que têm esses elementos mobilizados, que habitam esses lugares. É apenas em 1991, em uma conferência em Madri arquitetada pelos Estados Unidos e pela ainda União Soviética, que uma delegação palestina participa das negociações, ainda que de maneira informal. Formalmente, os membros palestinos faziam parte da delegação jordaniana. A conferência reuniu as delegações de Israel, Síria, Líbano, Jordânia e Palestina e teve a garantia, por parte dos anfitriões, de que uma solução não seria imposta, nem um acordo atingido entre as partes seria vetado. Apesar de não ter produzido

nenhum

documento

formal,

“[t]he

event’s

terms

of

reference[...]mentioned the Palestinian question by reconsidering the idea of an interim agreement leading to negotiations on a definitive status and the end of occupation” (Uziel, 2015, 2015, p.9-10). Isto é, finalmente a questão da ocupação estava sendo discutida em debates internacionais e “a questão palestina” é mencionada com algum devido reconhecimento. Além disso, percebe-se também esta demanda palestina pelo fim da ocupação,

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que tem relação direta com o reconhecimento da narrativa palestina de que há uma ocupação, narrativa esta que é mobilizada na construção da identidade palestina. Durante esta conferência, grupos de trabalho paralelos discutiam temas centrais para a população palestina (até então quase sempre desprezados) como desarmamento, recursos hídricos, refugiados, segurança regional, meio ambiente e desenvolvimento econômico, assuntos estes que até hoje são parte de barreiras impostas pela administração israelense a grande parte da população palestina, tanto nos Territórios Ocupados da Cisjordânia quanto na Faixa de Gaza. A este respeito, o diplomata Eduardo Uziel manifesta que o processo de mudanças internacionais que permitiu uma delegação palestina separada nas negociações de Madrid começou a ganhar força após a Guerra dos Seis Dias (1967), quando a OLP (Organização pela Libertação da Palestina), em 1969, ganhou autonomia da Liga Árabe e em 1974 foi reconhecida como a única representante legítima do povo palestino. “As a result, in the international sphere, the ‘Question of Palestine’ became the ‘Palestinian Question’ – no longer about the future of a former British mandate territory, but about a people’s right to self-determination” (Uziel, 2015, p. 10, grifo nosso). Em 1988, a Jordânia renunciou de sua reivindicação sobre os territórios da Cisjordânia, o Palestinian National Council proclamou a independência da Palestina e a OLP aceitou a resolução 242 (de 1967) e o estabelecimento de contatos formais com os Estados Unidos. After the mutual recognition between Israel and the PLO, an avalanche of negotiations followed, resulting in what became known as the Oslo accords – a set of three agreements signed between 1993 and 1995 about how the Palestinians final status would be negotiated and how the interim period would be administered (Uziel, 2015, p. 11).

As negociações dos acordos assinados em Oslo ocorreram em segredo, não sofrendo a costumeira pressão da mídia internacional, e nela acadêmicos e diplomatas do país anfitrião atuaram como facilitadores de diálogos informais entre membros da OLP e israelenses autorizados pelo governo, mas não ligados a ele diretamente. Finalmente também

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negociações que envolvessem ambos os lados interessados, não apenas um, ocorreram. Depois de 45 anos a voz dos palestinos era ouvida e levada em consideração diretamente em processos oficiais.

Mesmo o território

palestino estando envolvido nas negociações e a sua população estar diretamente envolvida nas suas consequências, esta passou décadas sem ser mencionada pelas grandes potências e processos da Organização das Nações Unidas ou então sendo apenas manobrada como “o problema dos refugiados”, como visto no texto da resolução 242 do Conselho de Segurança. Desde 1947 a ONU vinha contemplando modelos que não abarcavam as necessidades da realidade local e considerava apenas um modelo europeu de Estado na hora de negociar ou criar resoluções vinculantes, desconsiderando os mais atingidos pelas suas consequências por não haver um meio formal de consulta que considerasse um não-estado. Hoje, depois de tantos anos, finalmente entendeu-se que não são apenas Estados e seus representantes que devem sentar para negociar, apesar de em muitos momentos ainda se insistir nisto (como na atual guerra da Síria, por exemplo, em que continua-se convocando reuniões entre os líderes e representantes de grandes estados sem fazer consultas com a população local ou buscar meios de dialogar com os inúmeros atores envolvidos na dinâmica). O modelo de negociações aplicado em Oslo, no qual grupos de dois a quatro acadêmicos sentavam com alguns representantes de cada lado, permitia uma fluidez e representatividade que negociações com governos, sempre repletas de numerosos assessores e ruídos, não permitiria. Os Acordos de Oslo foram considerados a medida que deu mais certo em relação à busca da redução de consequências negativas para as populações da região, que mesmo ainda não decidindo sobre questões essenciais, como o status de Jerusalém o ou direito de retorno, já estabelecia diversas medidas que contemplavam o povo palestino desta vez, não só o israelense, e fecharam com um clima de que ambos os líderes estavam

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dispostos a continuar a negociar estes assuntos também, conforme as medidas do acordo fossem sendo aplicadas. Tudo, é claro, até o assassinato do líder israelense Yitzhak Rabin pelas mãos de um israelense que bradava contra a “entrega de terras” aos palestinos. A partir daí, percebe-se novamente a dificuldade de aplicação de medidas devido a discordâncias de grupos internos com poder de ação. Neste caso, foi apenas um homem agindo sozinho. Mas os acordos também não possuíam estrutura o suficiente para contemplar as necessidades e desejos da maioria dos habitantes da região, sejam eles palestinos ou israelenses, fazendo com que os processos não tivessem continuidade após a morte de um dos líderes específicos que concordou em cumprir o que estava naquele papel. 3.2. O que enxergamos a este respeito

Os modelos de negociação e de decisões tomados até hoje não consideram as pluralidades das populações locais e a necessidade de contar com elas para que as medidas sejam colocadas em prática.

Como

vimos

nos capítulos anteriores, identidades são compostas por diversos elementos e a identidade palestina não está fora desta rota. Um destes elementos é o reforço do passado histórico comum e da ligação com a terra. Palestinos se sentem palestinos devido a tudo que aprendem em suas vidas. Mas se estes elementos não são levados em consideração, talvez não só a morte de Rabin teria dificultado a implementação do acordo (que de certa forma é um pouco do que acontece até hoje). Israel recusa-se a reconhecer a Palestina como um estado acusando as lideranças de descumprirem suas partes nos acordos e resoluções e as lideranças palestinas acusam Israel do mesmo. Mas basear decisões em líderes não se aplica àquela realidade. Entre os palestinos não há, por exemplo, pelo que vimos por lá e apreciamos nos livros escolares, um sentimento de nação baseado em líderes específicos ou um líder carismático. Não seria adequado, portanto, pensar que processos de negociações formais poderiam resultar em medidas que seriam facilmente aplicadas no território palestino e seguidas por toda a população

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se estas não levassem em consideração as principais questões que estão presentes no dia-a-dia destas pessoas, em todo o seu processo educacional. Alguns dos assuntos que foram debatidos em grupos de trabalho paralelos na Conferência de Madrid, por exemplo, envolviam estes elementos identitários cuja influência podemos analisar em relação às negociações, mas que naquele momento não passaram de discussões sem chegar a realizações concretas. Lidar com a questão do desarmamento, por exemplo, além de lidar com uma sociedade israelense extremamente militarizada, significa também considerar o quanto os palestinos veem a jihad de seu povo como negociável ou não. Compreender o quanto ela é constantemente reforçada, inclusive através de seu próprio hino, por exemplo, que traz em si a ideia do mártir e de resistência, conquista e vingança, tem relação com os entraves deste assunto. Envolve perceber que não é apenas a negociação com líderes estatais que permitirá um desarmamento de fato se este está relacionado com questões que são mobilizadas como parte do nacionalismo palestino e parte de sua identidade, como suas relações com um inimigo determinado, permeando os entendimentos de cada indivíduo, não só de grupos armados específicos. Lidar com os recursos hídricos diz também respeito à questão da terra à qual os palestinos se sentem intimamente ligados e sobre a qual entendem-se com direitos. O exército israelense mantém hoje controle sobre a maioria dos recursos hídricos aos quais palestinos residentes em Gaza e na Cisjordânia têm acesso. Muitos campos de refugiados dentro do território da Cisjordânia recebem água duas vezes por mês ou menos, dependendo da administração israelense, pois este abastecimento é controlado por Israel. No caso do Vale do Jordão, o vale do rio mais caudaloso da região que hoje foi canalizado por Israel, muitas famílias palestinas não têm acesso a água a não ser que a comprem de distribuidoras israelenses sendo que encanamentos passam por cima ou no subsolo de suas comunidades, mas eles não têm direito a acessá-las. Assim como não têm

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direito a construir poços artesanais, que são destruídos pelo exército se forem cavados sem autorização (que dificilmente é concedida). Estas são estratégias adotadas pelo exército do Estado israelense para que aqueles palestinos desistam de continuar a viver em situações tão complicadas e restritas. Mas esta ideia de inerência de pertencimento a esta terra e seu direito de ali permanecer ou ainda da retornar para outras localidades nos arredores são constantemente mobilizados como parte da identidade palestina e têm influência direta na construção da sua ideia de resistência e de que “viver é resistir”, lema de muitas campanhas. Permanecer ali, apesar dos recursos hídricos serem controlados e usados contra eles, faz parte de compreender o que é ser “verdadeiramente palestino”, resistente e fiel à sua terra e luta, através destas mobilizações que são dadas como naturais, mas que são repetidamente reforçadas e reconstruídas. Esta questão pode ser diretamente relacionada a questões de segurança, bem como as questões ambientais e de desenvolvimento econômico também. O entendimento que palestinos possuem de uma ocupação de suas terras por direito por parte de um inimigo que está ali de forma ilegítima tem influência direta na sua concepção de segurança e seus desejos de desenvolvimento. Na discussão de assuntos de segurança regional, um palestino que não reconheça a humanidade do outro que ocupa aquela terra e a controla, no caso, um outro que é também inimigo de sua nação, pode deixar de reconhecer também outras relações que envolvem a humanidade deste outro com quem se está negociando. Deixa-se de perceber que este “outro” é formado por um conjunto de seres humanos, que tem também necessidades de desenvolvimento econômico, de segurança regional e de relações com o meio ambiente. Tem também necessidade de acesso a água e a moradia naquele local. Que deveria se negociar uma possibilidade para que ambos tivessem igualdade de acesso, não que um precise sair dali ou ser eliminado para que outro possa usufruir. Isto pode contribuir para o entrave de negociações concretas sobre o assunto que projetem soluções reais e tangíveis.

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Da mesma forma se dá a questão do refúgio em relação a quem enxerga os palestinos. Os palestinos reconhecem como indiscutível o seu direito de retornar para a suas terras, das quais foram expulsos em 1948, 1967 ou gradativamente depois. Este retorno envolve diversos aspectos que muitos atores envolvidos na equação não estão dispostos a lidar. E isto entrava discussões e a aplicação de reais medidas. Quando os negociadores e as partes (israelenses, no caso) envolvidas na negociação tratam apenas como uma “questão de refugiados”, eles deixam de lidar com o caso palestino que é específico na questão de refúgio no direito internacional. O refugiado palestino tem, conforme determinado pela própria Organização das Nações Unidas, o direito de retornar para a terra de onde foi expulso em 1948 ou de receber uma indenização caso decida não retornar, diferente de outros refugiados cujo direito que lhes é garantido é de receber igualdade de tratamento nos países que os acolhem em relação a seus cidadãos e de não serem devolvidos. No caso palestino, faz parte da narrativa mobilizada em relação à sua identidade compreender que ele foi expulso de seu lugar de direito por um inimigo e que perante este fato ele merece reparação. Negociar os limites desta reparação tem influência direta nos processos de negociações e até onde cada um está disposto a ceder. Como

percebemos,

o

direito

de

retorno

é

um

assunto

importantíssimo e parte indispensável do processo de construção identitário de milhares de palestinos, mas este não é nem mesmo cogitado por israelenses na hora de negociar e não faz parte de nenhum acordo. Como legitimar decisões que desconsideram temas tão centrais? Além disso, são violações diárias de direitos humanos perpetradas pelo Estado de Israel que não são julgadas ou punidas por organismos internacionais que ainda assim geram reações que muitas vezes “pintam” o povo palestino como terrorista. Diversas mesas de negociações não aceitavam o Hamas ou o Fatah, partidos políticos hoje fortes na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, respectivamente, porque estas organizações eram consideradas organizações terroristas e não como representantes eleitos de um povo. Se as potências mundiais não

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levam em consideração a resistência de um povo como parte de sua identidade construída, deixam de buscar alternativas que identifiquem as origens deste elemento e possibilidades de mudanças. O reconhecimento de uma delegação palestina, ainda que junto da jordaniana, nas negociações de Madri foi um passo gigante em direção a este reconhecimento. Mas sabemos que é preciso ir muitíssimo além. Os palestinos, como apresentado, têm entre si muitos elementos estatais, ainda que não sejam reconhecidos como um estado, que se enquadrariam nos modelos estatais já existentes. Mas não é apenas fazendo-os Estado, que o assunto estaria resolvido, se todos os demais elementos não forem considerados. Os palestinos têm demandas por direitos que talvez um modelo estatal pudesse lhes entregar. O estabelecimento de um estado também poderia facilitar um discurso nacionalista que visasse unificar opiniões (ainda que levasse muitos anos) e assim facilitaria implementar determinados projetos que fossem acordados. Mas se os elementos mobilizados na construção identitária de palestinos não forem sempre considerados, não será possível saber nem mesmo se é um modelo estatal europeu que poderia assegurar a diminuição no número de mortes e nas violações de direitos fundamentais que vem ocorrendo sistematicamente com a população local da região. A busca de um modelo de “paz” que não inclua a percepção existente do outro como inimigo, o não reconhecimento do direito de existência do outro, o direito inerente do self à terra, e, no caso palestino, o direito de retorno para as terras de onde foram expulsos em 1948, 1967 e aos poucos depois, é descabida e serve de exemplo de mais um modelo sendo aplicado de cima para baixo, desprezando elementos indispensáveis. Mais um entrave muito importante de se considerar é a ocupação israelense exercida de maneira ilegal que impede que palestinos se manifestem e sejam ouvidos. A ocupação é uma medida legal perante o Direito Internacional, mas há deveres que este ocupador deve cumprir,

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determinados pela Quarta Convenção de Genebra e algumas disposições do Protocolo Adicional I e o direito internacional consuetudinário, isto é, baseado nos costumes. Enquanto potências mundiais, principalmente os Estados Unidos da América, continuam financiando uma ocupação que é feita de maneira ilegal, os palestinos não podem lutar pela sua autodeterminação. Lembramos que a defesa aqui não é em torno de uma autodeterminação em si, antes de tudo, mas que o fim das violações de direitos possa ser de alguma maneira assegurada para que os próprios palestinos possam determinar aquilo que desejam, seja isto um estado independente em um modelo europeu ou não. Não falamos também de “deixá-los se resolverem sozinhos, já que entendem da própria identidade”. Neste momento é imprescindível reconhecermos os anos de intervenção na região sem que nenhum deles fosse consultado ou considerado, como registramos aqui. Todos estes processos têm consequências que precisam ser observadas agora. Uma ideia de “solução” que cheguei a ouvir de mais de uma fonte (israelense e palestina) enquanto estava lá é a de um estado (não dois estados, como sugeria-se no Plano de Partilha de 1947 e em Oslo) binacional, isto é, que palestinos e israelenses vivam sob o mando de uma mesma autoridade, mas que neste estado ambas as nacionalidades sejam reconhecidas e com isso cidadãos de ambas as nacionalidades tenham direitos iguais assegurados por lei. Esta é uma posição que ainda não foi discutida em tratados e que nem mesmo vemos muito frequentemente em mídias mundiais sobre o assunto. Alguns palestinos comentavam o fato de não se importarem de estar sob o comando de Israel se parassem de ter direitos humanos violados e tivessem os mesmos acessos a direitos que os cidadãos israelenses têm, pois na realidade eles já estavam de fato há quase 70 anos sob o comando de Israel – militar, econômico e muitas vezes civil – mas com tratamento extremamente diferente daqueles que portavam a

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carteira de identidade azul – a israelense. É muito possível que esta solução também seja indesejada por uma enorme parcela da população, levando-se em conta todos os elementos que vimos ser mobilizados e a maneira como são mobilizados. Mas como é possível saber sem verdadeiramente envolver os habitantes no processo? A mobilização de hino, bandeira, representantes e a formalização da criação de políticas públicas voltadas para esta população (como é o caso do Plano Nacional de Desenvolvimento da Autoridade Palestina, que vimos anteriormente) podem ser trabalhados no dia-a-dia dos palestinos de forma que se crie uma comunidade imaginada que não aceitaria em hipótese alguma submeter-se a outra autoridade, com outros símbolos nacionais, que não fariam parte de sua identificação com palestinos, sejam estes árabes ou não, muçulmanos ou não, uma vez que são palestinos, ainda que fosse criada uma terceira identidade, que também fosse diferente da judia, hebraica ou israelense. Talvez, a mobilização de narrativas de formas unilaterais, como explicamos anteriormente, cria uma concepção de segurança que passa por não se misturar com este “outro”, que é ameaçador e perpetrador de violações. Como dito, não é que estas narrativas sejam inventadas do zero ou inteiramente mentirosas, mas são mobilizadas de formas que dão destaque às qualidades positivas do self e às qualidades negativas e prejudiciais do outro, que acabam por impedir qualquer forma de reconhecimento e avanços em negociações. Em suma, como pudemos perceber, a pluralidade de interpretações e discussões a respeito de elementos mobilizados na construção da identidade palestina reflete também na pluralidade de posições perante a situação do local e consequentemente nas negociações a este respeito, assim como ocorre com a identidade israelense, que não foi foco deste trabalho. Os processos de construções identitárias têm contribuições diretas para a forma como eles se posicionam perante negociações e também ignorar os processos pelos quais estes elementos são construídos, que muitas vezes são

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como respostas a violações de seus direitos humanos ou direitos de existir, contribui para a criação de concepções de insegurança por parte de Israel, que se sente diretamente ameaçado, e concepções internacionais, que muitas vezes são fortemente influenciadas pelo lado mais “forte” da equação,

que

recebe

também

apoio

direto

estadunidense.

Consequentemente, deixar de perceber o processo destas construções e pluralidades contribui para as concepções de segurança a respeito da situação, que leva à perpetuação de situações de violações de direitos e o tratamento da situação local como bélica e de conflito de dois lados, quando na verdade diz respeito a uma ocupação que preza a primazia de direitos de um sobre o outro, desconsiderando sua humanidade.

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Conclusão

Nesta pesquisa analisamos como os livros didáticos utilizados na educação escolar de palestinos retratam diversos elementos nacionalistas e estatais, sem ainda a Palestina ser um estado em todos os requisitos estabelecidos de soberania e território, e como estes elementos fazem parte da construção de suas identidades como um processo contínuo e influenciado por diversos fatores. Entendemos que a educação é um processo que ocorre durante toda a vida, por meio do abalo das estruturas cognitivas que levam a formação de novos equilíbrios conforme vão sendo perturbados e a importância deste processo na formação de identidades. E percebemos que um dos principais elementos mobilizados na identidade palestina diz respeito à terra, ao sentimento de pertencimento a ela e ao direito de retorno, envolvendo a resistência às violações de direitos e a construção do outro como inimigo ou o não reconhecimento do direito do outro de existir. Compreendendo os processos de construção identitária, de invenção nacional e percebendo como funciona o processo de aprendizado, vimos também como ameaças são culturalmente produzidas e o papel central exercido pela linguagem na construção destas ameaças e consequentemente de

concepções

de

segurança.

Percebemos

como

grandes

atores

internacionais durante muito tempo perceberam a situação local através da perspectiva do “mais forte” na questão discursiva e os resultados negativos desta interação em relação à disparidade de direitos garantidos às populações locais. Vimos que desde 1947 a ONU vem contemplando modelos que não abarcam as necessidades da realidade local e consideram apenas um modelo europeu de Estado na hora de negociar ou criar resoluções vinculantes, desconsiderando os mais atingidos pelas suas consequências por não haver um meio formal de consulta que abrangesse um não-estado. Por fim, vimos que a relação de não reconhecimento da humanidade do outro, de entender o outro como menos digno do que o self, que afeta tão

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fortemente as dinâmicas locais, está contido na educação escolar, mas é principalmente um reflexo de ações enfrentadas no dia a dia por estas populações, portanto uma “paz” assinada entre estados não é capaz de compreender a complexidade e pluralidade de elementos que constroem o sentimento de ser e pertencer das pessoas que lidarão diretamente com as consequências destes acordos assinados. Desta forma, pudemos entender que muitas das dificuldades enfrentadas pelos palestinos influenciam na construção do seu sentimento de nação e comunidade e que este processo precisa ser compreendido para que eles tenham o seu espaço de perceber o que consideram adequado para si, seja isto uma autodeterminação em um estado de modelo europeu ou não. Pois, como esperamos ter deixado claro, ainda que o discurso oficial expresso nos livros escolares mobilize muitos elementos que poderiam gerar alguma ação uniforme, os outros elementos que geram perturbações nos processos de construções contribuem para uma pluralidade de visões, concepções, percepções e opiniões sobre a situação.

Sendo assim, é

preciso perceber esta pluralidade quando se lida com a região e entender a influência da relação de disparidade de poder para a continuação das perpetrações de violações de direitos.

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