Processos de criação coletiva a partir da canção brasileira

October 16, 2017 | Autor: Rita Maria Brandão | Categoria: Music Education, Voice (Music), Body in Performance, Music Improvisation, Creative Process
Share Embed


Descrição do Produto

   

 

 

 

 

MARIA RITA BRANDÃO MACHADO

Processos de criação coletiva a partir da canção brasileira

Pesquisa de Iniciação Científica realizada no Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes através do Programa de Iniciação Científica da Universidade de São Paulo, Orientação: Profa. Dra. Susana Cecília Igayara.

CMU-ECA-USP São Paulo, 2014

   

1    

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 - EXEMPLO DE EXERCÍCIO DE VOCALIZAÇÃO COM TRÊS VOGAIS ................................ 40 FIGURA 2 – EXERCÍCIO DE VOCALIZAÇÃO COM UMA VOGAL ..................................................... 41 FIGURA 3 - PARTITURA DO CÂNONE BELLE MAMA ..................................................................... 42 FIGURA 4 – PARTITURA DO CÂNONE NHAMANDU MIRIN ............................................................ 42 FIGURA 5 – REPRODUÇÃO DOS DIAGRAMAS TEXTURAS EXTRAÍDOS DO CAPÍTULO QUANDO AS PALAVRAS CANTAM (SCHAFER, 1990). .............................................................................. 43

FIGURA 6 – PRIMEIRAS PARTITURAS GRÁFICAS PARA O ARRANJO COLETIVO ............................. 64 FIGURA 7 – PARTITURA GRÁFICA DO ARRANJO PRODUZIDO (PRANCHA 1) ................................. 71 FIGURA 8 – PARTITURA GRÁFICA DO ARRANJO PRODUZIDO (PRANCHA 2) ................................. 72 FIGURA 9 - PARTITURA DA SEÇÃO MARACANGALHA, DO ARRANJO PRODUZIDO. ...................... 76

2    

SUMÁRIO  

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 1 Objetivos................................................................................................................................. 2 Metodologia ............................................................................................................................ 3  

CAPÍTULO 1 – DETALHAMENTO DE CONCEITOS FORMULADORES DA CONCEPÇÃO DIDÁTICO-PEDAGÓGICA ........................................................................ 6 1.1. Conceitos de aula-ensaio, professor-aprendiz e pesquisador-criador .............................. 6 1.2. Formação do grupo .......................................................................................................... 7 1.3. Estruturação das aulas ..................................................................................................... 7 1.4. Aprendizagem vocal e musical ........................................................................................ 8 1.5. Concepção do processo de ensino e aprendizagem ......................................................... 9 1.6. O corpo no processo de aprendizagem .......................................................................... 11 1.7. A interação entre linguagens ......................................................................................... 13 1.8. O trabalho com a Técnica dos Six Viewpoints ............................................................... 14

CAPÍTULO 2 – PROCESSOS CRIATIVOS DE ARRANJOS VOCAIS SOBRE A CANÇÃO POPULAR BRASILEIRA .................................................................................. 18 2.1. A canção brasileira ........................................................................................................ 18 2.1.1. Princípio entoativo .................................................................................................. 18 2.1.2. Relação com oralidade e vocalidade ....................................................................... 19 2.1.3. A obra de Dorival Caymmi ..................................................................................... 20 2.2. Processos de criação de arranjos vocais ........................................................................ 22 2.3. Atividades desenvolvidas no processo coletivo de criação de arranjos vocais ............. 24 2.3.1. Escolha das canções ................................................................................................ 24 2.3.2. Escuta das canções .................................................................................................. 24 2.3.3. Cantar as canções .................................................................................................... 25 2.3.4. Trabalho com os conteúdos elencados .................................................................... 25  

CAPÍTULO 3 – RESULTADOS E ANÁLISES .................................................................. 27 3.1. Exercícios ...................................................................................................................... 27 3.1.1. Nível físico .............................................................................................................. 31

3    

3.1.2. Nível técnico ........................................................................................................... 38 3.1.3. Nível interpretativo ................................................................................................. 43 3.2. Análises ......................................................................................................................... 50 3.2.1. Da formação do grupo ............................................................................................ 50 3.2.2. Da organização das aulas ........................................................................................ 56 3.2.3. Primeira e segunda aulas-ensaios............................................................................ 56 3.2.4. Terceira aula-ensaio ................................................................................................ 60 3.2.5. Quarta e quinta aulas-ensaios.................................................................................. 62 3.2.6. Reflexões sobre o processo ..................................................................................... 64 3.2.7. Sexta aula-ensaio .................................................................................................... 66 3.2.8. Sétima e oitava aulas-ensaios.................................................................................. 67 3.2.9. Nona aula-ensaio..................................................................................................... 69 3.2.10. Das três últimas aulas ........................................................................................... 69 3.3. O arranjo produzido pelo grupo .................................................................................... 71 3.4. Análise do arranjo produzido ........................................................................................ 76 3.5. Da performance do arranjo ............................................................................................ 77  

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 78 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 80 ANEXO 1 – Exemplos audio-visuais .................................................................................... 82 ANEXO II – Depoimentos dos participantes ....................................................................... 83

1    

INTRODUÇÃO Este trabalho é fruto da pesquisa de IC, através da qual pudemos integrar os conhecimentos do curso de licenciatura com experiências em situações de ensino e aprendizagem. Nossa proposta consistiu em investigar o desenvolvimento de processos criativos, tendo por foco o ensino-aprendizagem de música e técnica vocal. Como parte de uma pesquisa desenvolvida no curso de Licenciatura em música, buscamos discutir tanto a perspectiva do aluno quanto a do educador. Na perspectiva do aluno, tivemos a oportunidade de vivenciar processos criativos relativos aos diversos conteúdos abordados nessa pesquisa em diferentes atividades1 e a partir delas levantamos considerações que estruturaram a concepção de nossa proposta: •

Trabalhar com a diversidade e a heterogeneidade dos grupos;



Desenvolver uma escuta aberta para si e para o outro;



Contemplar a individualidade nos processos de aprendizagem;



Construir o trabalho a partir da perspectiva do grupo;



Reunir experiências em práticas musicais e corporais a fim de construir um repertório amplo de procedimentos a partir da vivência;



Criar novos procedimentos a partir da pesquisa e da vivência;



Desenvolver a atitude de investigação e pesquisa em si e no grupo;



Estar pronto para transformar e ser transformado com a experiência;

Nossa proposta coaduna-se com o princípio de pedagogia aberta, um dos princípios do Fórum Latino Americano de Educação Musical (FLADEM 2 ), entidade formada por educadores musicais da América Latina que investiga a problemática da educação musical a partir das realidades e particularidades de cada país, objetivando a troca de informações e experiências. Por pedagogia aberta entendemos: pedagogia inclusiva e contempladora da diversidade cultural e da individualidade dentro do espaço coletivo. [...] não atar-se a modelos, porém sem desdenhar os modelos. Abertura é ampliar nossa visão com discernimento entre o que é aceitável e o que é necessário descartar. Abertura é eliminar prejuízos, soberbas, dogmatismos e preconceitos, é aceitar outros modos de organizar o ensino. Mas não apenas pedagogicamente. A real

                                                                                                                        1

Detalhamos essas atividades ao longo do relatório, articuladas aos conteúdos e atividades resultantes e relativos às mesmas. 2 Sobre o FLADEM, ver www.fladem.info, sítio oficial da associação.

2     abertura é mental, é a aceitação, compreensão e aproveitamento da diversidade estética, filosófica, pedagógica, ideológica e musical3. (SIMONOVITCH, 2009, p. 19, tradução nossa).

O conceito de pedagogia aberta pressupõe a atitude de docente reflexivo, aquele que: [...] não descarta a prática coletada ou a teoria fornecida por especialistas, mas, no entanto, busca ou cria material, se interessa por ler sobre educação musical, participa de congressos, seminários ou jornadas (não apenas com intenção de obter pontuação) e aplica o que aprende em sua prática pedagógica; mas sobretudo possui seus próprios critérios construídos mediante a reflexão baseada em sua experiência, leitura e observação de seus alunos. 4 (SIMONOVITCH, 2009, p. 22, tradução nossa).

Do ponto de vista do educador, compreendemos que a docência implica o trabalho com seres-humanos, que respondem de maneiras diversas a um mesmo estímulo. Isso implica numa atitude de constante atenção, para adaptar-se a cada momento às diferentes circunstâncias em que se desenvolve a atividade educativa, percebendo desde o contexto social, cultural e grupal quanto as situações emergenciais que podem ocorrer; saber observar e reconhecer quando se faz necessária alguma mudança de atitude pedagógica imediata para que se possa continuar o processo de educação musical; estar em constante processo de observação e reflexão sobre a própria atuação (Ibid., p. 22).

Objetivos Nossa pesquisa investigou processos coletivos na criação de arranjos vocais para a canção popular brasileira, em ambientes de ensino/aprendizagem. Analisamos a atuação junto a um grupo misto, formado por adultos entre 24 e 60 anos, a partir de duas perspectivas: a formação do educador (observando as atitudes e conteúdos relativos a essa ação) e a formação musical do grupo (observando suas características e necessidades) em diálogo com conteúdos referentes a essa proposta. Considerando os conteúdos pertinentes ao trabalho, elencamos os seguintes objetivos:

                                                                                                                        3

[...] no atarse a modelos, pero sin desdeñar modelos. Apertura es ampliar nuestra visión, pero con discernimiento entre aquello que es aceptable y aquello que es necesario descartar. Apertura es eliminar prejuicios, soberbias, dogmatismos y preconceptos, es aceptar otros modos de organizar la enseñanza. Pero no sólo en lo pedagógico. La real apertura es mental, es la aceptación, comprensión y aprovechamiento de la diversidad estética, filosófica, pedagógica, ideológica y musical. (SIMONOVITCH, 2009, p. 19).

4

[...] no descarta la práctica recopilada o la teoria suministrada por expertos, pero sin embargo busca o crea material, se interessa por leer sobre educación musical, participa en congressos, seminarios o jornadas (y no con la sola intención de obtener puntaje) y aplica lo que toma de estos en su práctica pedagógica; pero sobre todo tiene sus próprios criterios construidos mediante la reflexión baseada en su experiencia, lectura y observación de sus alumnos. (Ibid., p. 22).  

3    

Objetivo geral: Discutir processos de criação coletiva de arranjos vocais para obras do cancioneiro popular brasileiro, a partir de atividades práticas e analíticas. Objetivos específicos: Levantar no universo da canção, obras que apresentem em seu conteúdo características relacionadas à tradição oral e à interação entre linguagens. Discutir e analisar procedimentos de ensino e aprendizagem em processos criativos, a partir da participação em atividades práticas e analíticas de bibliografia especializada. Apresentar propostas de exercícios envolvendo a interação entre linguagens e processos de criação coletiva. Produzir arranjos vocais para canções brasileiras a partir da criação coletiva, da interação entre linguagens e de procedimentos ligados à música e à educação musical do século XX. Apresentar documentação escrita sobre o processo de criação coletiva e de ensino e aprendizagem.

Metodologia A proposta de refletir sobre a atividade prática em ambiente acadêmico nos fez optar pela metodologia de pesquisa-ação: (...) definindo-se como um modo de investigação com fins formativos, baseada num processo de autorreflexão compartilhada. De caráter qualitativo, diferencia-se dos métodos tradicionais pelo cuidado de fazer circular os dados coletados durante todas as fases da investigação, mediante diversos instrumentos de obtenção de informações, com o objetivo de realimentar tanto o conhecimento dos participantes como o processo de ensino/aprendizagem subjacente ao seu uso. Portanto, sua metodologia permite condições de investigar, a um só tempo, a própria prática docente, os processos criativos artístico-pedagógicos e o processo de aprendizagem, de modo crítico-reflexivo. (LATORRE, 2014, p. 8)

O trabalho também possui características de um estudo de caso, pois analisamos o processo realizado com o grupo Vozeiral, grupo vocal amador, de caráter educacional, criado em 2012 com a proposta de produzir arranjos vocais a partir de processos de criação coletiva. Por tratar-se de uma pesquisa participativa, o pesquisador observa e é observado em sua atuação, em atitude de constante reflexão associada à prática. Nesse processo, levamos em consideração as ações do pesquisador enquanto educador durante os ensaios do grupo, no período de março a maio de 2014 e as participações como aluno em oficinas, workshops e

4    

cursos relativos a processos criativos e interação entre linguagens. A coleta de dados dessas atividades foi feita a partir de registros em áudio, vídeo e de anotações pessoais. A dinâmica estabelecida com o grupo Vozeiral se constituiu de preparação da aula, registro em áudio do ensaio; audição, minutagem e edição do material coletado; análise comparativa entre o planejamento e a prática; preparação do próximo encontro. Das atividades como aluna foram coletados exercícios e práticas relativas a processos criativos, que dialogaram constantemente com as referências teóricas. Estas atividades estavam previstas em relatório parcial dessa pesquisa, a saber: improvisação livre com Diego Galcerán (setembro de 2013) e Franziska Schroeder (março de 2014), workshop de técnicas em processos criativos com Fernando Machado e Hannah Dunster (outubro de 2013), workshop e grupo de estudos em Desvendar da Voz com Thomas Adam (outubro de 2013), dança contemporânea com Maristela Estrela (segundo semestre de 2013) e Helena Bastos (primeiro semestre de 2014), coro piloto da Primeira Semana de Estudos e Pesquisas USP – Universidade de Cambridge com Geoffrey Webber (fevereiro de 2014), palestra sobre criatividade musical com John Rink (fevereiro de 2014), eutonia com Miriam Dascal (abril e maio de 2014). Ainda com relação à participação em atividades como aluna, destacamos dois workshops em técnica dos Six Viewpoints com Marcelo Gama (junho de 2012 e março de 2013) e os cursos de improvisação e técnica vocal com Beth Amin (entre 2000 e 2005). As amostragens foram coletadas a partir de anotações pessoais e da realização de duas entrevistas semi-estruturadas, com Gama e Amin5. Nossa pesquisa coletou referenciais teóricos nas áreas de educação musical, processos criativos, improvisação, canção brasileira, arranjos vocais, canto coral, eutonia e dança contemporânea. A pesquisa bibliográfica contribuiu tanto para a concepção de nossa proposta quanto para direcionar as atividades desenvolvidas ao longo do processo investigado, estabelecendo um elo dinâmico entre teoria e prática. Estudando a coleta de dados, observamos um grupo inicialmente formado por nove6 participantes (incluindo o professor) com idades entre 24 e 65 anos. Após o primeiro mês, o grupo sofreu uma transformação com a saída de três integrantes. O trabalho de criação se deu                                                                                                                         5

Elisabeth Amin, fonoaudióloga, cantora e professora de técnica vocal, que trabalha com improvisação idiomática e processos criativos na formação musical de coralistas no Coralusp. Marcelo Gama, pianista graduado pela ECA-USP, que atua em processos criativos ligados à ópera e ao teatro a partir da Técnica dos Six Viewpoints. 6 Incluímos o professor na contagem de integrantes, a partir das concepções de professor-aprendiz e criadorpesquisador, desenvolvidas em nossa proposta pedagógica.

5    

então com um grupo misto formado por seis pessoas, com idades entre 24 e 45 anos, com o seguinte perfil: duas pessoas sem nenhuma experiência musical e/ou vocal; um aluno do curso de licenciatura em música da USP; uma pessoa com vivência anterior em aulas de canto e canto coral; uma atriz com vivência anterior em aulas de canto, sendo essa sua primeira experiência com práticas vocais coletivas. Foram coletados dados de doze encontros semanais, com duração de três horas cada, objetivando a criação de um arranjo vocal. Os encontros ocorreram ao longo de três meses e consistiram de aulas-ensaios. No primeiro mês realizamos atividades que objetivaram: o reconhecimento individual e coletivo e integração dos participantes; mapear os vocabulários musicais existentes; constituir o ambiente para o processo criativo; pesquisa sobre repertório. No segundo mês, predominaram atividades com foco na estruturação musical e vocal do grupo e na criação do arranjo vocal. No terceiro mês o grupo concentrou-se no arranjo criado, e os ensaios dedicaram-se a seu detalhamento. A conclusão do processo se deu com performance do arranjo criado e avaliação coletiva do trabalho realizado.

6    

CAPÍTULO 1 – DETALHAMENTO DE CONCEITOS FORMULADORES DA CONCEPÇÃO DIDÁTICO-PEDAGÓGICA A concepção didática desse trabalho foi desenvolvida a partir da articulação entre as experiências em canto coral e processos criativos em música, associados aos referenciais teóricos pesquisados e a processos relativos à eutonia, à dança contemporânea e à Técnica dos Six Viewpoints.

1.1. Conceitos de aula-ensaio, professor-aprendiz e pesquisador-criador Por se tratar de um processo de criação de arranjos vocais, relacionamos nossa prática aos procedimentos comuns a grupos vocais e coros, a fim de estruturar as aulas-ensaios. A ideia de aula-ensaio deriva do conceito de Coral Escola, desenvolvido por Marco Antonio da Silva Ramos e aplicado às atividades realizadas pelo Communicantus: Laboratório Coral. [...] a ação educativa no conceito de Coral Escola ganhou, dentro do Comunicantus: Laboratório Coral, um foco duplo: o ensino-aprendizagem tanto dos coralistas quanto dos alunos estagiários, associando a ideia de Coral Laboratório ao conceito de Coral Escola. Com este formato, estabeleceu-se um espaço para a discussão, orientação e pesquisa sobre Canto Coral e sobre Educação Musical no coro, assim como para a prática artística e educativa, que busca, por meio das atividades com o Coral Escola Comunicantus, o Coral Oficina Comunicantus (entre os anos de 2008 e 2010) e o Coral da Terceira Idade da USP, aproximar a formação acadêmica da realidade externa à Universidade (HAUCK-SILVA, 2012, p. 33).

Silva Ramos desenvolveu esse conceito observando a necessidade de se associar formação musical à pratica coral, reunindo aprendizado e performance no mesmo ambiente. Esse pensamento perpassa a concepção das atividades, o planejamento dos ensaios, pesquisa de repertório, em diálogo com a constante observação sobre o grupo. O conceito de Coral Escola pressupõe não apenas a formação musical de coralistas, como também de regentes e preparadores vocais, realizadas a partir da vivência e da prática. O conceito de aula-ensaio pressupõe um ambiente de ensino e aprendizagem em que os conteúdos abordados são o material constitutivo do processo criativo desenvolvido. Considerando a formação de todos os participantes envolvidos no processo, compreendemos ser esse um espaço em que as relações de ensino e aprendizagem se estabelecem a partir da ressignificação das figuras do professor e do aluno. Segundo Murray Schafer: Numa classe programada para a criação, não há professores: há somente uma comunidade de aprendizes. O professor pode criar uma situação com uma pergunta ou colocar um problema; depois disso, seu papel de professor termina. Poderá continuar a participar do ato de descobertas, porém não mais como professor, não mais como a pessoa que sempre sabe a resposta (SCHAFER, 1990, p. 286).

7    

Ao nos colocarmos na posição de professor-aprendiz, pressupomos a construção do trabalho a partir da observação e da vivência com o grupo. Segundo a concepção de Koellreutter, o professor deve ensinar “aquilo que o aluno quer saber”, ou ainda, “aprender do aluno o que ensinar” (BRITO, 2001, p. 31). A dissolução da figura do professor também objetiva incentivar e desenvolver no aluno a atitude de investigador, tornando-o consciente de que é responsável pelo processo de ensino e aprendizagem. A ressignificação desses papéis é essencial para a constituição do ambiente em que se desenvolverão as atividades de criação. Tratar o aluno como um pesquisador-criador compreende uma postura ativa deste com relação ao processo.

1.2. Formação do grupo É comum às práticas corais realizar uma audição individual dos coralistas; a audição ou teste (seja de caráter seletivo ou apenas classificatório) permite ao regente e ao preparador vocal traçar o primeiro perfil do grupo, ponto de partida para a estruturação do trabalho. Tendo em vista a dissolução da figura do professor e a proposta de construir o trabalho a partir do grupo formado, optamos por não realizar audição individual prévia. Realizamos uma aula aberta, que consistiu na apresentação simultânea dos interessados em participar do processo e dos principais procedimentos e conceitos relativos ao trabalho. A aula aberta assume um caráter de audição coletiva, e objetiva iniciar o diálogo entre os referenciais teóricos estudados e as vivências pesquisadas com as reais demandas do grupo em formação, levantando suas particularidades e seus pontos de conexão. Este processo de “seleção” visa contemplar a diversidade e a heterogeneidade. Não se propõe uma hierarquia de saberes, o trabalho objetiva acolher as diversas percepções, valorizar o individual e construir conteúdos a partir da troca de experiências. Partimos do princípio que a percepção é um processo individual que se realiza no grupo. Olhar para o individual significa acolher todas as manifestações de percepção. Aprende-se com a diferença.

1.3. Estruturação das aulas Para elencar e organizar as atividades desenvolvidas nas aulas-ensaios, partimos da vivência e observação de práticas corais. Os ensaios se iniciam com atividades de aquecimento corporal e vocal seguidas do trabalho sobre o repertório (leitura e ensaio).

8    

Observamos essa estrutura de ensaio e estendemos seu conceito ao ambiente de criação coletiva. Dessa maneira, os aquecimentos são tratados como processos de pesquisa individual e coletiva sobre a voz e a linguagem musical; o trabalho sobre repertório constituise das atividades de criação dos arranjos vocais (incluindo pesquisa e seleção de repertório). Na condução das atividades, buscamos desenvolver a percepção através da escuta do que foi realizado e de pequenas rodas de discussão, em que todos têm a oportunidade de expressar verbalmente suas impressões sobre a experiência vivenciada. O contato com a percepção do outro amplia o horizonte de percepção individual e traz novos conteúdos e significados para a experiência. É fundamental ao processo que cada um se conscientize de que apesar de estar realizando uma mesma atividade que os demais, no mesmo espaço e ao mesmo tempo, sua experiência é sempre única e pessoal. E que a vivência do grupo é o resultado da interação entre as diversas vivências.

1.4. Aprendizagem vocal e musical Uma característica do grupo diz respeito ao aprendizado vocal e musical dos participantes. A maioria dos que procuram a prática vocal vem com a expectativa de ter uma vivência de aula de canto em grupo, e mesmo sem saber exatamente o que isso significa, traz consigo o desejo de cantar e de se relacionar com a música através da voz. Elencamos conteúdos relativos a essa prática, organizados em quatro grandes grupos7, a saber: •

Técnica vocal: respiração, emissão, sustentação, ressonância, articulação rítmica;



Práticas vocais coletivas: timbre, textura, camadas, naipes, harmonia vocal;



Canção brasileira: conteúdos relativos à linguagem musical como ritmo, harmonia, melodia, forma, extraídos das canções;



Processos de criação de arranjos vocais: transcrição da canção, estrutura formal do arranjo, tratamento de vozes, procedimentos de estilo.

Procuramos trabalhar com um espectro amplo de conteúdos, deixando o recorte por conta da vivência com o grupo. Retomando a concepção de Koellreutter: [...] cabe ao educador facilitar situações para uma aprendizagem autodirigida, com ênfase na criatividade, em lugar da padronização, da planificação dos currículos rígidos presentes na educação tradicional. Mais do que programas que visam a resultados precisos e imediatos, é preciso contar com princípios metodológicos que

                                                                                                                        7

Detalhamos cada um desses itens ao longo desse relatório

9     favoreçam o relacionamento entre o conhecimento (em suas diversas áreas), a sociedade, o indivíduo, estimulando, e não tolhendo, o ser criativo que habita em cada um de nós (BRITO, 2001, p. 31).

Essa postura requer: contato constante história musical/vocal do participante; observação de como ele se relaciona com as propostas apresentadas; diversidade de procedimentos para atender a diferentes necessidades dos participantes do processo e promover o diálogo entre todos.

1.5. Concepção do processo de ensino e aprendizagem O trabalho com processos criativos aponta para o desenvolvimento de uma autonomia dos participantes ao longo do aprendizado, isto é, uma consciência do que está aprendendo e de como esse aprendizado se processa no corpo de cada um. Em outras palavras, o aprendizado musical e vocal se dá a partir do indivíduo, de sua corporalidade, em diálogo constante com o grupo. A ênfase é dada ao processo, ou seja, na tomada de consciência de como os participantes incorporam os conteúdos abordados. O que interessa é desenvolver a compreensão sobre o processo corporal que nos faz produzir um novo som ou gesto (seja ele vocal, um movimento corporal, ou uma escuta). As atividades propostas não objetivam uma execução perfeita, acertada no sentido tradicional do acerto. Pelo contrário, o erro é valorizado como caminho para o aprendizado. Ao reconhecer o erro podemos desvendar um novo processo corporal que não conhecíamos. Mais além, para a maioria das atividades não existe erro ou acerto: existe o que é possível de ser realizado. Interessa, portanto, a percepção do que foi feito. José Eduardo Gramani (2004) sugere esse procedimento na introdução do livro Rítmica. Propõe que os exercícios sejam realizados até que se tenha a compreensão do processo corporal que levou à compreensão do mesmo. Depois, podem ser abandonados, não é preciso refazê-los à exaustão, ou à perfeição (GRAMANI, 2004). O que ele quer dizer com relação ao aprendizado, é que a repetição de um exercício se faz necessária enquanto ela promove uma mudança em nosso estado de consciência. Estes exercícios não são um fim e sim um MEIO através do qual muito se pode desenvolver, principalmente os aspectos de disciplina interior e flexibilidade de adaptação da atenção a novos tipos de associações ou relações. Quando o exercício já estiver sendo bem realizado, já deixou de ter sua função, pois os problemas que dificultavam sua realização já foram solucionados através de processos interiores de associação e dissociação. O desenvolvimento destes processos é que é o FIM. (GRAMANI, 2001, p. 12).

10    

Encontramos outras considerações no livro A soprano on her head de Eloise Ristad (1982) em que a autora e educadora descreve seu trabalho com processos de aprendizagem em música. Em linhas gerais, sua concepção de ensino sugere que mais do que ensinar uma linguagem ou uma técnica aos alunos, é preciso criar condições para o aprendizado. O foco é o processo individual e coletivo de aprendizagem e a essência de seu trabalho é desenvolver um estado de presença constante ao longo do processo. [...] a pessoa deve permitir se libertar das restrições habituais. Cada um de nós é, em parte, um ser inconsciente e infantil, capaz de permanecer no momento presente sem pensar nos outros milhões de momentos de nossas vidas. Meu trabalho não consiste em dar à pessoa a permissão de descobrir a consciência momento a momento; é criar o ambiente no qual essa pessoa possa dar a ela mesma essa permissão (RISTAD, 1982, p.6, tradução nossa) 8.

Para tal, ela considera fundamental desenvolver uma atitude lúdica diante do aprendizado; resgatar a atitude de aprendizado que se tem na infância, diante da novidade; conhecer e alimentar o espírito clown; requalificar os julgamentos; movimentar o corpo e dançar; alternar procedimentos; não insistir exaustivamente sobre um processo (try hard) (RISTAD, 1982). Levamos em consideração as reflexões e os procedimentos sugeridos por esses autores na elaboração das atividades aplicadas nas aulas. Procuramos alternar atividades que despertam a atenção para a atitude interna com outras que promovem conexões entre os participantes. Conduzir as atividades valorizando o caráter lúdico e o espírito de aventura e desafio. Atuar sobre a manifestação do medo diante do novo, incorporando as diversas expressões que surgirem ao longo do processo. Tratar os conteúdos técnicos vocais e musicais não como fim a ser atingido, mas como meio para o aprofundamento da escuta e requalificação dos julgamentos. Com relação à nossa atitude durante o processo, retomamos o pensamento de Schafer: O professor precisa continuar a aprender e crescer com os alunos. Naturalmente o professor é diferente, mais velho, mais experiente, mais calcificado. É o rinoceronte na sala de aula, mas isso não significa que ele deva ser coberto com couraça blindada. O professor precisa permanecer uma criança (grande), sensível, vulnerável, aberto a mudanças (SCHAFER, 1990, p. 282).

                                                                                                                              8

“(...) a person must accept permission to be free of the usual restrictions. Each of us is partly a childlike, unselfconscious being who can stay in the present moment without thinking of the millions of other moments in our lives. My job is not only to give a person permission to discover moment-by-moment awareness; it’s to create a climate in which that person can give herself that permission.” (RISTAD, 1982, p. 6)

11    

1.6. O corpo no processo de aprendizagem A proposta de trabalhar com criação vocal nos levou a investigar processos corporais de cognição e aprendizagem alinhados aos princípios desse trabalho. Consideramos necessário definir nossa abordagem sobre corpo e voz e sua articulação com os procedimentos investigados. Observamos na educação musical do século XIX um modelo técnico-científico de ensino, que objetivava “treinar” o aluno em expedientes técnicos. A educação musical objetivava o domínio técnico da linguagem, tanto na formação de compositores e orquestradores quanto de intérpretes e instrumentistas. As habilidades técnicas eram levadas ao máximo da capacidade humana, e o objetivo do instrumentista era tornar-se um virtuose. O que se percebe, no entanto, é o fato de não se tratar de ensino artístico, mas de “domínio de técnicas instrumentais, que em muito se assemelham à formação do artesão” (FONTERRADA, 2008, p. 82). Esse modelo técnico-científico vem associado à concepção cartesiana de corpo, que dissocia corpo e mente, tratando o corpo a partir de seu aspecto mecânico sujeito ao saber da mente. Segundo essa concepção, a mente torna-se “a única fonte de conhecimento da vida ativa” (DASCAL, 2008, p. 42). Procedimentos de ensino de música da época revelam essa dissociação, constatadas por Émile-Jaques Dalcroze9 durante sua atividade no Conservatório de Genebra. Ele próprio é quem conta que, desde o início de seu trabalho no Conservatório, constatou a precariedade do preparo auditivo de seus alunos, que não conseguiam imaginar o som dos acordes que escreviam nas aulas de harmonia. Para Dalcroze, isso era fruto de um erro conceitual comum à época: o de centrar o conhecimento na mente do aluno, desconsiderando as oportunidades de se estabelecerem ligações entre a atividade cerebral e as sensações auditivas. (FONTERRADA, 2008, p. 122).

Os educadores musicais do século XX combateram essa abordagem, inaugurando ampla reflexão sobre o aprendizado musical e processos corporais. A crítica que teceram aos modelos do século XIX centrava-se na constatação de que esse modelo levou a uma dissociação entre corpo e mente. Seus pensamentos abriram caminho para o ensino de música a partir da percepção e da escuta e de sua relação com o fazer musical. Richard Murray Schafer também aborda a questão do ensino de música; o compositor e educador musical da segunda geração do século XX, propõe que música seja ensinada a                                                                                                                         9

Émile-Jaques Dalcroze (1865-1950), educador musical suíço da chamada primeira geração de educadores musicais do século XX, um dos pioneiros na proposição de um trabalho sistemático de educação musical baseado no movimento corporal e na habilidade de escuta. Seu sistema, conhecido como Rítmica, influenciou uma série de educadores musicais, servindo referência para práticas corporais em outras áreas, como dança e teatro até os dias de hoje.

12    

partir da perspectiva da criatividade, e aponta para a questão do aperfeiçoamento técnico levado às últimas consequências: O principal objetivo de meu trabalho tem sido o fazer musical criativo, e embora seja distinto das principais vertentes da educação, concentradas sobretudo no aperfeiçoamento das habilidades de execução de jovens músicos, nenhuma dessas atividades pode ser considerada substituta da outra. O problema com a especialização da velocidade digital é que a mente tende a ficar fora do processo [...] Felizmente, as limitações da capacidade humana estão colocando um fim nessas ambições. (SCHAFER, 1990, p. 280).

A dissociação entre corpo e mente pressupõe que o corpo não produz conhecimento, e que a ação corporal é um ato puramente mecânico. Por consequência, a técnica é tratada como procedimentos alheios ao indivíduo, um saber que é dado de fora para dentro. No campo da dança, essa dissociação chegou ao ponto de ser necessário, num dado momento, se negar a técnica em favor de um trabalho criativo. Essa ruptura com a técnica se deu principalmente em âmbito conceitual; a dança contemporânea, ao romper com a estética do balé clássico, rompeu também com os procedimentos de ensino dessa técnica, que buscava o aperfeiçoamento formal do movimento sem levar em conta o corpo do intérprete-dançarino. Consequentemente, novas abordagens sobre processos corporais surgiram, em diálogo com as abordagens de ensino de música. Nelas identificamos um conceito de corpo diverso da concepção cartesiana. Encontramos esse pensamento em Paul Zumthor: O corpo não é somente esse agregado de membros gesticulando sob nossos olhos; mais profundamente é a intensidade do gesto interior, subitamente manifestada na plenitude da voz. É a nossa maneira de estar no mundo, nosso modo de existir no tempo e no espaço. (ZUMTHOR, 2005: 165)

Ao falar de corpo (e de voz), Zumthor refere-se a uma unidade integrada entre corpo físico, mente e existência no mundo. Trata-se de uma abordagem fenomenológica de corpo, a saber: Quando pesquisam o corpo e a mente, os fenomenólogos levam em conta a existência, ou seja, o mundo e a vida. Não basta dividir e classificar o corpo e, separadamente, estudar as funções e as possibilidades da mente. É preciso compreender de que forma corpo e mente se interpretam e estabelecem, no interior de uma unidade indissolúvel, infinitas conexões com o mundo e a vida. (DASCAL, 2008, p. 42)

Seguindo a trilha da fenomenologia, encontramos importante reflexão sobre corpo e cognição no trabalho de Miriam Dascal (2008) intitulado Eutonia – o saber do corpo. No capítulo “O corpo como fonte de saber”, a autora analisa o pensamento de Maurice MerleauPonty a respeito de corpo, percepção e cognição, contribuindo com a abordagem corporal desenvolvida nesse trabalho.

13     Segundo Merleau-Ponty10, a consciência do corpo não é meramente intelectual, não se reduz a algum conjunto de imagens idealizadas, simples decalques ou fotografias da realidade. Ela nasce de uma percepção criada durante o movimento. Por princípio, toda percepção é movimento, não havendo possibilidade de se compreender o corpo sem sua motricidade, sem sua capacidade de se pôr em movimento (DASCAL, 2008, p. 43).

Tem-se que o corpo constrói conhecimento durante a ação. Observamos como as propostas de educação musical e da dança no século XX articulam-se com esse conceito, ao tratar o aprendizado musical e corporal na perspectiva da criação. É importante ressaltar que não existe aqui um desprezo pela técnica em favor da criatividade. Esse é um pensamento datado, que foi de grande importância para as inovações promovidas no campo da dança e da educação musical. Em dança, abriu caminho para o desenvolvimento de abordagens de processos corporais a partir do autoconhecimento, da consciência corporal, da pesquisa sobre o movimento. Em música, permitiu libertar o ensino de música da formação de virtuoses, humanizando e democratizando o acesso ao aprendizado musical, e ressignificando seus valores. A partir dos referenciais pesquisados compreendemos que é necessário trabalhar tecnicamente dentro de uma perspectiva humana, partindo do indivíduo, de sua percepção de si e da realidade em que está inserido. O trabalho criativo envolve a técnica, sem que ela seja o objetivo principal, ou a única motivação. Ao mesmo tempo, compreendemos que o aprendizado técnico, quando construído criativamente e de dentro para fora, é absolutamente libertador. A esse respeito, destacamos a palestra do Prof. John Rink: Introdução à pesquisa sobre criatividade individual e coletiva11. O professor abordou a questão da criatividade em situações de ensino e aprendizagem de música, e dentre os diversos pontos destacados, discutiu a relação entre técnica e criatividade, ressaltando a importância de não mais alimentar essa dicotomia no pensamento sobre ensino de música (informação verbal).

1.7. A interação entre linguagens O aprendizado técnico vocal e musical baseia-se na apropriação da sonoridade da voz enquanto voz, em estado bruto, sem elaboração, sem julgamentos e na percepção do som em                                                                                                                         10 11

Merleau-Ponty, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Martins Fontes. São Paulo: 1999

Professor John Rink, diretor do Centro AHRC de Pesquisa da Performance Musical como Prática Criativa e Professor de Estudos de Performance Musical, Universidade de Cambridge. A palestra foi apresentada durante a Primeira Semana de Estudos e Pesquisas USP e Universidade de Cambridge, realizada em fevereiro de 2014 no departamento de música da USP, organizada pelo GEPEMAC.

14    

seus diversos estados e manifestações. Este processo encontra ressonância nos procedimentos da dança contemporânea, em que técnica é resultado da pesquisa pessoal e coletiva sobre o corpo e seus movimentos. A elaboração técnica tem como ponto de partida a pesquisa individual, requer estimular e desenvolver em cada um a atitude de investigação. A partir de nossas vivências com dança e eutonia, procuramos associar seus procedimentos ao aprendizado vocal. O objetivo foi levar cada participante a perceber e reconhecer seu corpo, seus gestos e sua voz, ampliando a consciência de si mesmo, para então atuar criativamente. Trazemos referências da eutonia: [...] um método investigatório e de observação do corpo em que a pessoa é, simultaneamente, o sujeito e o objeto da própria experiência. Essa experimentação constante e observação rigorosa do próprio corpo aguçam a sensibilidade proprioceptiva, desenvolvem um estado de presença [...] autêntica de si e em relação às pessoas, às coisas e ao mundo. Esse desenvolvimento de uma presença autêntica de si pode resultar numa mudança de hábitos e comportamento, significativa para uma transformação da pessoa e de sua atitude em relação ao outro. (DASCAL, 2008, p. 51).

Também encontramos nos procedimentos da Técnica Klauss Vianna esses mesmos princípios: o interesse não está no virtuosismo ou no acúmulo de habilidades corporais, mas sim no desenvolvimento de um “pensamento do corpo, que é um “estar presente” em suas sensações, enquanto se executa o movimento [...] tornando-se, dessa forma, um expectador do próprio corpo” (MILLER, 2007, p. 22, grifo do autor).

1.8. O trabalho com a Técnica dos Six Viewpoints Trazemos referências nos processos realizados com Marcelo Gama12, em Técnica dos Six Viewpoints. O contato com Marcelo se deu nos anos de 2012 e 2013, em dois workshops realizados na escola Canto do Brasil. Em 2012 o workshop abordou os fundamentos da técnica. Em 2013 tratou da sua aplicação em processos de criação e improvisação vocal. O músico Marcelo Gama teve contato direto com Mary Overlie em uma experiência em processos criativos para a montagem de um espetáculo cênico-musical com o Projekt Theatre Studio, dirigido por Eva Brenner, em Viena. Mary Overlie foi convidada para dirigir uma criação coletiva com o grupo. Ao participar do processo, Gama traçou as relações entre a Técnica dos Six Viewpoints e os conteúdos e parâmetros musicais, para a criação da trilha                                                                                                                         12

Marcelo é músico, bacharel em piano pela Universidade de São Paulo, e direcionou suas atividades para a ópera e o teatro musical em Viena, quando conheceu a Técnica dos Six Viewpoints a partir de trabalho realizado com sua criadora, a performer americana Mary Overlie. As informações reunidas aqui devem-se a relatos dessa experiência somados a entrevista realizada com o músico em 02/06/2014, via skype.

15    

sonora do espetáculo, buscando criar uma música que espelhasse o trabalho de improvisação. A partir daí, passou a trabalhar com a improvisação musical, e a compreendê-la sob outros parâmetros, aplicando os processos desenvolvidos em trabalhos com ópera e teatro musical. Six Viewpoints é uma técnica desenvolvida por um grupo de coreógrafos, artistas plásticos, diretores de teatro e músicos, que atuavam em Nova Iorque na década de 1970. O grupo propunha um novo olhar para o fazer artístico, partindo da desconstrução do pensamento formado, para então reconstruí-lo. Foi estruturada pela dançarina e coreógrafa Mary Overlie, e posteriormente tornou-se conhecida como Viewpoints através do trabalho de Bogart e Landau (2005) direcionado para a criação teatral13. As referências diretas para o pensamento de Overlie sobre os Viewpoints, encontram-se em sítio na internet escrito por ela, de onde extraímos o seguinte excerto que contém o cerne do trabalho sugerido: A semente de todo o trabalho com os Six Viewpoits se encontra no simples ato de permanecer em pé no espaço. Dessa perspectiva, o artista é convidado a ler e se educar pelo léxico da experiência cotidiana. A informação do espaço, a experiência do tempo, a familiaridade das formas, as qualidades e as regras da cinética no movimento, os caminhos lógicos que constituem as estórias e os estados do ser e as trocas emocionais que constituem o processo de comunicação entre os seres vivos. Esses são os seis materiais nomeados nos Six Viewpoints que constituem a base da desconstrução teatral. Trabalhando diretamente com esses materiais, o artista começa a aprender a performance como uma inteligência independente através das linguagens essenciais14. (OVERLIE, tradução nossa)

Os Six Veiwpoints são, portanto, uma técnica para criação, que consiste em trabalhar com dinâmicas e exercícios a partir de seis pontos de vista, ou seis perspectivas, a saber: espaço, tempo, forma, movimento, emoção e estória. As dinâmicas buscam isolar cada um desses parâmetros, e tratam da habilidade perceptiva de cada indivíduo com relação a eles. O foco na experiência individual é de grande importância para o trabalho com a técnica: A simplicidade dos Six Viewpoints fundamenta-se no contato individual com os materiais básicos. Esta abordagem se alinha com as práticas orientais em que depende do aluno encontrar sua própria verdade como parte do entendimento que abrange toda a vida. Nesse trabalho não existe um professor, uma autoridade a

                                                                                                                        13

Sobre a origem, aplicações e estruturação da técnica, conferir o sítio oficial www.sixviewpoints.com. Com relação ao trabalho de Bogart e Landau, conferir o livro The Viewpoints Book: A practical guide to the viewpoints and composition (2005), indicado na bibliografia deste trabalho. 14 The seed of the entire work of The Six Viewpoints is found in the simple act of standing in space. From this perspective the artist is invited to read and be educated by the lexicon of daily experience. The information of space, the experience of time, the familiarity of shapes, the qualities and rules of kinetics in movement, the ways of logics, that stories are formed and the states of being and emotional exchanges that constitute the process of communication between living creature. These are the six materials named in The Six Viewpoints that constitute basic deconstructed theater. Working directly with these materials the artist begins to learn of performance through the essential languages as an independent intelligence. (OVERLIE)  

16     anunciar a conquista ou o fracasso, através da compreensão de que qualquer parte é parte de um todo15. (OVERLIE, tradução nossa)

A vivência com Marcelo Gama nos propiciou um contato com a técnica e com sua abordagem com relação ao fazer musical. Gama nos trouxe os principais conceitos e procedimentos, a partir de sua experiência pessoal, contribuindo para a construção de nosso trabalho com criação musical. Sua abordagem consiste em relacionar os viewpoints aos conteúdos e fazeres específicos da música (no caso através do canto) e desenvolver exercícios que propõe essa interação. Num contexto mais direto, Gama associa os parâmetros do som altura, duração, intensidade e timbre aos viewepoints espaço, tempo, emoção e forma, consecutivamente, criando exercícios que estimulem a percepção, compreensão e apropriação criativa desses conteúdos. Entretanto, notamos a partir dos workshops realizados, que a Técnica dos Six Viewpoints, mais do que se relacionar pontualmente com um ou outro procedimento, está presente na concepção do trabalho realizado por ele. Isso reflete na maneira como os exercícios são aplicados, desenvolvidos ou criados em cada vivência, em sua atitude enquanto condutor das atividades, e nos resultados atingidos ao longo do processo. Tendo isso em vista, destacamos e comentamos os pontos dos quais nos apropriamos e consideramos relevantes a essa pesquisa: •

Olhar para o individuo: a experiência individual é de extremo valor, interessa a percepção que cada um tem das atividades realizadas. Cada atividade é sucedida de uma breve troca de impressões e de uma reflexão coletiva que objetivam contribuir para a percepção que se tem do grupo e para a ampliação do repertório individual e coletivo sobre cada conteúdo trabalhado.



Olhar para o grupo: um grupo é formado por cada integrante, com sua contribuição individual/ pessoal, somado às interações entre os integrantes no ambiente do grupo, mais o grupo em si, como entidade. O olhar sobre o grupo se orienta a partir dessas linhas de força: o indivíduo, suas expectativas e suas necessidades; as relações traçadas entre os indivíduos no grupo; o grupo como um organismo indivisível.



Olhar para o professor: desenvolver e ampliar a atenção para os processos realizados com o grupo, estar pronto para o inesperado. Os conceitos de “trabalhar sem saber”

                                                                                                                        15

The simplicity of The Six Viewpoints is based on one on one contact with the basic materials. This approach aligns itself with the eastern practices that rely on the student to find their own truth as part of the understanding encompassing all of life. In this work there is no teacher, no authority to pronounce achievement or failure beyond understanding that any part is a part of the whole. (OVERLIE)

17    

(not knowing), no sentido de se inspirar pelo que acontece (e não apenas esperar que aconteça) e de re-agir, no sentido de estar pronto para o inesperado e atuar sobre o que realmente aconteceu. •

Isolar parâmetros: um dos princípios fundamentais da técnica é o isolamento dos parâmetros e a percepção de cada um a partir da experiência individual e coletiva. O isolamento de parâmetros promove uma limitação que consideramos fundamental para a ampliação do espectro da percepção e da escuta.



Sinestesia entre audição e visão: a visão e a percepção do espaço são facilitadoras da percepção auditiva. Perceber o som no espaço é um caminho para perceber o som no próprio corpo. Muitas dinâmicas propunham essa relação, partindo do geral ao particular, do espaço externo para o interno.



Sinestesia entre som e movimento corporal: associar a voz a movimentos corporais como facilitador da percepção do som vocal enquanto movimento e presença no corpo.

18    

CAPÍTULO 2 – PROCESSOS CRIATIVOS DE ARRANJOS VOCAIS SOBRE A CANÇÃO POPULAR BRASILEIRA 2.1. A canção brasileira Nosso olhar sobre a canção popular brasileira foi conduzido a partir das seguintes características: princípio entoativo; relação com oralidade e com vocalidade; presença no cotidiano; importância como bem cultural; permeabilidade do gênero. Dessas, detalhamos o princípio entoativo e a relação com oralidade e vocalidade, na perspectiva do trabalho com processos criativos em situações de ensino/aprendizagem e destacamos a obra de Dorival Caymmi sob essa perspectiva. 2.1.1. Princípio entoativo Segundo Luiz Tatit, na canção existe um processo entoativo que estende a fala ao canto, ou ainda, que produz a fala no canto (TATIT, 2002, p. 9). Tatit trata da dicção, ou do modo de dizer do cancionista e afirma: “Compor uma canção é procurar uma dicção convincente. É eliminar a fronteira entre o falar e o cantar. É fazer da continuidade e da articulação um só projeto de sentido.” (TATIT, 2002, p. 11). O autor define a gestualidade oral na canção como uma habilidade do cancionista de equilibrar as tensões existentes entre os elementos melódicos, linguísticos, os parâmetros musicais e a entonação coloquial (TATIT, 2002, p. 9). Tatit compreende a canção como produto de uma dicção e o cancionista/ malabarista como um gesticulador, que de maneira pessoal camufla a fala em tensões melódicas: “A grandeza do gesto oral do cancionista está em criar uma obra perene com os mesmos recursos utilizados para a produção efêmera da fala cotidiana” (TATIT, 2002, p. 11). O que assegura a adequação entre melodia e letra numa canção é a base entoativa: as melodias, ao mimetizarem as entoações da fala, mantém o efeito de que cantar é também dizer algo, de uma maneira especial (TATIT, 2004, p. 73). O autor localiza na origem e consolidação da canção popular urbana razões que justificam a presença marcante dos processos entoativos da fala nas melodias. Por mais que os ambientes sonoros, nos quais surgiram as melhores obras do repertório nacional, tenham sido marcados pela presença de músicos competentes, maestros arranjadores ou instrumentistas notáveis, o centro de criação dessas obras sempre esteve nas mãos de outros artistas, amplamente reconhecidos como

19     compositores e letristas de sucesso, que em geral exibiam pouca intimidade com a linguagem musical. (TATIT, 2004, p. 72)

2.1.2. Relação com oralidade e vocalidade A canção popular em sua origem não passa pela mediação da escrita. Sua origem remonta às rodas de batuque, às serestas, manifestações musicais ligadas à tradição oral, produzida por “artistas que não se encaixavam na ‘tradição escrita’ da música brasileira” (TATIT, 2004, p. 34). Seu desenvolvimento é decorrente de um diálogo intrínseco com as tecnologias de registro e difusão de áudio. Os elementos ligados à corporalidade da voz, conforme descritos por Paul Zumthor, estão relativamente perpetuados nesse registro. O registro fonográfico, uma novidade no início do século XX, confere à mensagem outro conteúdo, este relativo à voz que a entoa – no caso específico da canção popular, a voz do intérprete (seja ele compositor ou não da canção). Trata-se da vocalidade, termo concebido por Zumthor, ao dizer que o sentido de uma mensagem transmitida pela voz é composto por valores ligados à sua materialidade e sua corporeidade, integrados ao significado semântico do texto. (ZUMTHOR, 2005, p. 117). A análise dessas características da canção contribuiu com nossa abordagem sobre o processo de ensino e aprendizagem vocal. Buscamos reconhecer o gesto vocal cotidiano e individual, a dicção pessoal, para então distendê-lo, como a fala ao encontro da melodia no processo de criação de uma canção. A partir do registro em áudio do processo, temos outra percepção do mesmo, desenvolvemos um “ouvido externo”, mais apto a perceber e identificar determinados conteúdos, por estar distante do fazer. A canção age como mediadora desse processo. Por conter em suas melodias as características dessa fala cotidiana (de uma época, de um personagem, de um estado de espírito), a canção apresenta-se como meio para a compreensão pessoal do gesto vocal ligado à fala e ao canto. Os registros fonográficos também atuam como referência para o desenvolvimento de uma escuta atenta ao gesto vocal, capaz de reconhecer modalizações, processos corporais, maneiras de fazer. Com essa análise, localizamos no universo da canção exemplos que mais se alinhavam com as necessidades do trabalho. Listamos características e conteúdos que orientaram nossa pesquisa: •

Melodias que remetessem a cantos coletivos (cantos de trabalho, canções folclóricas, folguedos populares);

20    



Presença de refrão (repetição);



Reconhecimento dos processos entoativos na relação entre letra e melodia;



Harmonias modais ou tonais sem modulações;



Caráter cíclico;



Canções estróficas (reiteração melódica com textos diferentes);



Canções de forte acento rítmico ligado a ritmos brasileiros (samba de roda, partido alto, baião, coco).

Encontramos essas características em canções de diferentes compositores de diversos períodos da história da musica brasileira, e elaboramos uma primeira listagem no sentido de orientar o trabalho com o grupo. Nosso critério consistiu em enfocar os conteúdos, procurando abranger um amplo espectro de compositores e obras, permitindo ao grupo realizar suas próprias escolhas no processo de criação coletiva do arranjo. O processo com o grupo nos levou a um trabalho aprofundado sobre as canções de Dorival Caymmi (1914-2008). Este trabalho envolveu a escuta de suas canções e uma análise panorâmica de sua obra, dentro de uma perspectiva histórica e estética. 2.1.3. A obra de Dorival Caymmi Caymmi tem um quê de folclore, de canção de roda, de samba, sempre muito simples e despojado, com o mínimo de letra e com a melodia fortemente centralizada em apenas alguns motivos. (Luiz Tatit)

A obra do compositor pode ser classificada em duas grandes vertentes, uma de inspiração na Bahia, sua terra natal e outra de inspiração na cidade do Rio de Janeiro, para onde se mudou no ano de 1938. Na primeira vertente encontramos as canções praieiras, os “sambas sacudidos” (com inspiração no samba de roda característico do recôncavo baiano) e canções com temas folclóricos; na segunda vertente estão os sambas-canções. Em análise realizada por Luiz Tatit em seu livro O Cancionista (2002) sobre a dicção do compositor, encontram-se elementos que demonstram a relação entre a obra de Caymmi e a tradição oral. Segundo Tatit: As emoções culturalmente marcadas, como ciúme, frustração, vingança, desprezo, não fazem parte de sua dicção. Só aquelas que brotam espontaneamente em qualquer idade, em qualquer época, em qualquer circunstância. Busca a emoção humana essencial, sem vícios, tão antiga e natural quanto a natureza. E, por vezes, nesse gesto, anula-se como compositor já que algumas de suas canções parecem ter sempre existido (cf. Acalanto, Peguei um Ita no Norte, Roda Pião). Declarou diversas vezes que seu sonho era chegar à perfeição de compor uma Ciranda-

21     Cirandinha que se perdesse no meio do povo (“Dorival Caymmi”, em Nova História da Música Popular Brasileira, 1976, p. 09). (TATIT, 2002, p. 106)

Esse traço de sua dicção, que busca a universalidade, faz com que as canções de Caymmi sejam rapidamente assimiladas por quem as canta, causando a impressão de que sempre foram cantadas por nós desde a infância. Notamos esse fato ao longo do processo, observando essa manifestação mesmo naqueles que não conheciam suas canções. Essa manifestação se deu de diferentes maneiras no decorrer do processo com o grupo. Por vezes um comentário como: “Nossa! Essa música é dele? Nunca imaginei”; por vezes pela rápida assimilação do contorno melódico e da letra das canções, mesmo sem o apoio de material escrito ou gravações. Outro traço da dicção de Caymmi tratado por Tatit diz respeito ao caráter metonímico de suas melodias. “Com seu texto icônico, sua melodia rodeando a tônica e seu instrumento esboçando o arranjo final, cada fragmento da composição já é uma boa amostra da obra completa” (TATIT, 2002, p. 106-7). Destacamos também a sinestesia com a visualidade, que transparece nas letras de suas canções. Passagens na biografia do compositor se relacionam diretamente com as observações e análises acima16. Caymmi nasceu em Salvador, onde viveu até seus 28 anos (quando se muda para o Rio de Janeiro). Seu contato com a música vem de sua infância, na casa da família, e se dá pela escuta de amplo repertório (de canções populares da época, a Debussy, passando por pregões e cantos de rua e melodias folclóricas) em contato com a percepção da paisagem sonora e visual que o rodeava e com o rigor técnico ao instrumento exigido pelo pai. Aprendeu a tocar o instrumento a partir de sua exploração solitária, observando seu pai e seus tios e amigos, escutando as canções que chegavam pelo rádio, e em aulas informais e broncas dadas por seu pai ao vê-lo tocar à sua maneira, ou de maneira errada, segundo depoimento do próprio compositor: “Aliás, você está tocando errado, você tá tirando pitada, não está tocando violão. Não é pra isso” (Dorival Caymmi in: CAYMMI, 2001, p. 57). Constatamos que seu contato com a linguagem musical sempre esteve associado ao processo criativo: Caymmi buscava sua maneira pessoal de processar seu aprendizado, ora inventando as próprias posições ao violão para a sonoridade desejada, ora criando suas canções.

                                                                                                                        16

Os dados biográficos são extraídos da biografia Dorival Caymmi: o mar e o tempo (2001), escrita por sua neta, Stella Caymmi. A biografia consta de diversas declarações do próprio Dorival sobre sua história e memória, sua obra e seu processo criativo.

22    

Não se trata de um processo formal de aprendizagem musical (apesar de ser bastante comum à época). No entanto, podemos observar conteúdos e procedimentos pertinentes ao processo criativo que desenvolvemos: ênfase na transmissão oral; aprendizado a partir de enfoque criativo; valorização da escuta e percepção (tirar de ouvido); valorização da experiência (o fazer musical sempre associado ao processo criativo e de aprendizagem); relação entre escuta da paisagem sonora e escuta musical; sinestesia com a visualidade. Da obra do compositor, o grupo destacou as seguintes canções: O Mar; História de Pescadores (da Suíte dos Pescadores); Morena do Mar; Quem Vem pra Beira do Mar; O Vento; Pescaria (O Canoeiro); É Doce Morrer no Mar; A Jangada Voltou Só; O Bem do Mar (canções praieiras); Maracangalha; Doralice; Vatapá; Maricotinha (sambas sacudidos); Marina (samba-canção). À exceção de Marina, o único samba-canção trabalhado pelo grupo, as demais canções remetem à vertente baiana do compositor. No quadro a seguir, destacamos as principais características das canções estudadas.

2.2. Processos de criação de arranjos vocais  

A proposta de trabalhar com processos de criação coletiva na canção nos levou ao território dos arranjos vocais. Encontramos importante reflexão acerca do papel do arranjo coral sobre repertório popular na dissertação de mestrado Samuel Kerr: um recorte analítico para a performance de seus arranjos, de Paulo Frederico de Andrade Teixeira (2013) sobre os arranjos produzidos pelo maestro Samuel Kerr. Destacamos os depoimentos do maestro para a dissertação, em que ele trata do papel do arranjo coral em sua trajetória como regente coral. As observações de Samuel Kerr referem-se, sobretudo, a seu trabalho junto a coros amadores. O maestro constatou a dificuldade de um grupo amador em se relacionar com o repertório coral europeu e compreendeu a importância de se estabelecer um diálogo entre esse repertório e os referenciais vocais e culturais do grupo. Passou então a produzir os próprios arranjos, buscando construir um repertório que surgisse de dentro do coro e que pudesse ser executado por coros amadores. Kerr considera que todo arranjador é um compositor e que o arranjo é uma necessidade que o regente, junto com o coro, descobre que existe. Segundo o maestro, essa necessidade surge da percepção sobre a maneira de cantar do grupo, e o arranjo produzido passa a ser um veículo para a expressão vocal do grupo (TEIXEIRA, 2013).

23     A minha introdução nesse campo do arranjo foi por uma necessidade do trabalho. Eu não disse: “Agora vou ser um arranjador”. Não, eu nem me percebi sendo chamado de arranjador porque eu fazia uma música que era necessária para o grupo. Tanto que os arranjos que eu fazia pra um coro nem sempre eu conseguia fazer em outro porque eles tinham a característica do grupo. Era um serviço pro processo de ensaio. [...] durante o caminho eu comecei a perceber que não deveria haver nenhum preconceito em relação ao arranjo como obra menor porque você trabalha como compositor quando você está fazendo o arranjo e é terrível como você pode até comprometer a música original de tanto que você interfere, como um trabalho de composição (KERR, 2013 in: TEIXEIRA, 2013, p. 14).

Para conduzir o grupo no processo de criação coletiva, partimos de características referentes a processos de criação de arranjos vocais: escuta e transcrição da canção e seleção de procedimentos de escrita coral utilizados para compor o sentido do arranjo. No segundo capítulo de sua dissertação, Teixeira descreve os principais procedimentos utilizados por Kerr em seus arranjos, a saber: introduções; finais; distribuição de melodias entre as vozes; preencher espaços vazios; uso de pergunta e resposta; melodia acompanhada; homofonia; alternância de procedimentos; imitações; liberdade do intérprete; uníssonos; uso de fonemas; sobreposição de duas ou mais canções no mesmo arranjo ou QuodLibet17. A transposição desses conteúdos ao processo nos conduziu a quatro grupos de procedimentos, que nos orientou na condução das atividades de criação: •

Estrutura formal do arranjo: introduções, finais.



Forma de tratamento das vozes no âmbito da estrutura: distribuição da melodia entre os naipes, preencher espaços vazios.



Forma de tratamento das vozes no âmbito das texturas: uso de pergunta e resposta, melodia acompanhada, homofonia, uníssonos, uso de fonemas, procedimentos imitativos.



Procedimentos de estilo: alternância de procedimentos, liberdade do intérprete, sobreposição de canções/ Quodlibet.

Ao transpor essas reflexões para o processo, compreendemos que a criação coletiva de arranjos vocais constitui-se de uma pesquisa conjunta sobre a vocalidade do grupo, uma vez que todo o processo apoia-se, sobretudo, no desenvolvimento da escuta e no fazer musical. Ao se lançar na criação de um arranjo, o grupo tem a oportunidade de investigar seus referenciais culturais, sua musicalidade, explorar o repertório, experimentar vocalmente as canções de diversas maneiras (para além das melodias e letras). O grupo conjuntamente vai escolher “o                                                                                                                         17

Quodlibet é um procedimento que consiste em articular duas melodias num arranjo, por sobreposição, de maneira que elas funcionem ao mesmo tempo (TEIXEIRA, 2013, p. 51). Em nosso trabalho usamos o termo policanção, procedimento que consiste em sobrepor canções em arranjos de diversas maneiras. A descrição desse procedimento encontra-se na seção Exercícios desse relatório, e sua aplicação em Análises.

24    

que” cantar e “como” cantar, lançando-se no desafio de transformar a canção em um projeto autoral. 2.3. Atividades desenvolvidas no processo coletivo de criação de arranjos vocais O processo constitui-se da experimentação coletiva e instantânea dos procedimentos elencados, em constante relação entre ação e reflexão (ou elaboração intelectual de conceitos). O registro em áudio de todo o processo garante sua “escrita oral”, e deve ser acessível a todos os participantes. 2.3.1. Escolha das canções A escolha se deu a partir de uma pesquisa prévia sobre o universo da canção brasileira (conforme apresentado em relatório parcial) seguida de diálogo com o grupo. Esse procedimento estabelece contato entre o universo musical dos integrantes através do repertório e indica o que o grupo quer cantar. 2.3.2. Escuta das canções A atividade de escuta permeou o processo de criação. Estimulamos que seja realizada individual e coletivamente ao longo de todo o trabalho, sendo imprescindível para o aprendizado vocal e musical. Num primeiro momento estimulamos a escuta individual como parte da pesquisa e seleção do repertório. Em seguida, a escuta objetivou a transcrição da canção. A transcrição pressupõe o mapeamento da obra, o reconhecimento de suas estruturas formais, antes do contato com a partitura das mesmas. Nesse trabalho, transcrição significou as diversas maneiras de representação da canção: com movimentos corporais, em posições no espaço, graficamente. A transcrição contribui para a interpretação coletiva da canção trabalhada. É de praxe que o arranjador vocal num primeiro estágio do trabalho tire a música, ou seja, transcreva as informações contidas numa gravação. Mesmo com a popularização dos songbooks, a escuta da música vem antes da partitura. É claro que o ato de tirar a música implica numa leitura pessoal da gravação. (PEREIRA, 2005, p. 70).

Num terceiro momento, realizamos escutas coletivas das obras selecionadas. Nessas dinâmicas, procuramos ampliar o repertório de escuta musical e aprofundar a percepção das

25    

diferentes camadas que compõe as gravações. Isso se dá a partir da escuta repetida da mesma gravação, da escuta comparada entre gravações distintas, da escuta relacionada a referenciais históricos (dados sobre a biografia do compositor) e estéticos. É comum que o arranjador busque nas gravações, referências e ideias musicais que irão compor o arranjo final, optando por se aproximar ou afastar dessas referências. 2.3.3. Cantar as canções Nosso processo de criação de arranjos prescindiu do registro sonoro, sendo a vocalidade a principal ferramenta do grupo enquanto arranjador. É necessário que o grupo experimente vocalmente as canções, e principalmente escute a maneira como as vozes encontram a canção, no âmbito individual e coletivo. A escuta é dirigida para os processos vocais, e as percepções aqui coletadas são substrato para a construção do arranjo. No aprendizado da canção, tratamos da relação entre melodia, letra e voz, atentando para o significado do texto, contornos melódicos, sonoridade das palavras e do fonema, e como o corpo expressa esses elementos através da voz. Observamos também as pausas, os espaços não ocupados pela voz, destacando a diversidade do uso da voz num arranjo vocal e a importância do silêncio na construção do significado da canção. No processo de cantar a canção, também procuramos escolher a tonalidade que melhor se adapta ao grupo, estabelecer o pulso e elencar os conteúdos técnicos vocais e musicais específicos a serem tratados ao longo das atividades. 2.3.4. Trabalho com os conteúdos elencados Os conteúdos selecionados direcionaram a elaboração e seleção das atividades desenvolvidas em ensaio. Como o trabalho objetiva o aprendizado criativo, procuramos explorá-los nas dinâmicas de improvisação, a partir das seguintes perspectivas: ativação da memória musical; capacidade de escolha, seleção e repetição de elementos que constituirão o arranjo final; estimular a escuta atenta para o momento do fazer musical. A partir desse trabalho são gerados os materiais constituintes do arranjo vocal. Relacionamos esse processo ao que Kerr chama de “Invenção Coral”. A invenção coral é um exercício, um procedimento de ensaio, em que o grupo tem a oportunidade de experimentar a linguagem do arranjo sem a preocupação de se tornar uma obra acabada. Em nosso trabalho, a

26    

invenção coral é também uma maneira de permitir ao grupo explorar as possibilidades de realizar arranjos coletivamente, funcionando como fonte de materiais para a criação coletiva. Na invenção coral eu entendo que você faz uma proposta pro coro sem se preocupar se aquilo será um arranjo acabado ou não. Faça daquilo uma experiência de momento. Não é um arranjo acabado. Não é uma composição definida. É um exercício coral que eu chamo de Invenção coral. Você inventou alguma coisa pro coro cantar e pra isso você teria a disposição tudo o que ocorresse no ensaio, a frase de alguém ou a lembrança de uma música do outro e você ajunta e dá uma forma e vai levar no ensaio seguinte como aquecimento ou como preparação pra um outro repertório. Acontece que, eu não pretendi teorizar sobre isso, mas eu queria que as pessoas se entusiasmassem de fazer pequenos exercícios que eu chamei de invenção coral. (KERR, 2013 in TEIXEIRA, 2013, p.15).

Procuramos orientar as dinâmicas a partir dos quatro grupos de procedimentos relacionados anteriormente, chamando atenção do grupo para os elementos que constituem um arranjo vocal, e fornecendo critérios para a avaliação do arranjo produzido.  

27    

CAPÍTULO 3 – RESULTADOS E ANÁLISES

3.1. Exercícios Sabemos que é necessário libertar a educação e o ensino artísticos de métodos obtusos, que ainda oprimem nossos jovens e esmagam neles o que possuem de melhor. A fadiga e a monotonia de exercícios conduzem à mecanização tanto dos professores quanto dos discípulos. Não é a rotina que governará os ‘Seminários’, mas sim o espírito de pesquisa e investigação, pois é indispensável que, em todo ensino artístico, sinta-se o alento da criação. (H.-J. Koellreutter)

O processo coletivo realizado nessa pesquisa contempla o ensino e aprendizagem de música numa perspectiva criativa e colaborativa com foco na performance. Os exercícios aqui apresentados foram transcritos a partir do registro em áudio das atividades realizadas com o Vozeiral e são resultado da observação e da vivência com o grupo. Foram escolhidos e transformados a partir do registro de experiências relacionadas a processos criativos e práticas vocais em constante diálogo com a pesquisa bibliográfica, e com a observação e vivência do processo com o grupo. A escolha e a elaboração das atividades objetivaram relacionar a escuta ao fazer musical. Nossa concepção se fundamenta na relação entre os níveis da escuta qualificados por Barthes (1990) e os níveis da voz cantada, como descritos na dissertação de mestrado A Voz na Canção Popular Brasileira: um estudo sobre a vanguarda paulista de Regina Machado (2007). Barthes identifica três níveis de escuta: a escuta de índices, que funciona como um alerta; a escuta de signos, ou escuta do sentido; a escuta intersubjetiva, relacional. Segundo o autor, no primeiro nível, a escuta tem a função de alerta, e inaugura a relação do ser humano com o território, que pode ser definido como espaço de segurança: É essa atenção prévia que permite captar tudo o que pode vir a perturbar o sistema territorial: é uma defesa contra a surpresa; seu objeto (aquilo para cuja direção se volta) é a ameaça, ou ao contrário, a necessidade; o material da escuta é o índice, seja porque revela o perigo, seja porque permite a satisfação da necessidade. (BARTHES, 1990, p. 219)

A escuta de signos pressupõe a decodificação, o significado, a relação da escuta com a linguagem. Barthes parte da relação do ser humano com o ritmo, e do ritmo com a linguagem e associa as primeiras inscrições rítmicas com o surgimento das primeiras habitações humanas: Evidentemente, sobre o nascimento do ritmo sonoro, tudo o que se sabe é mítico; mas, seria lógico imaginar [...] que ritmar (incisões ou golpes) e construir casas são atividades contemporâneas. [...] Também através do ritmo, a escuta deixa de ser pura vigilância para tornar-se criação. Sem o ritmo nenhuma linguagem seria possível: o signo baseia-se em um ir e vir do marcado e do não marcado. (idem, p. 220)

28    

No terceiro nível de escuta inaugura-se a relação intersubjetiva, em que escutar pressupõe ser escutado. Barthes a qualifica como escuta psicanalítica, e não está direcionada ao índice ou ao signo, mas àquele que fala. Nesse nível, a voz e sua corporalidade têm papel fundamental: Nesse reino do significante em que o individuo pode ser escutado, o movimento do corpo é, antes de tudo, aquele de onde provém a voz. A voz é, em relação ao silêncio, o que é a escrita (no sentido gráfico) em relação à folha em branco. A escuta da voz inaugura a relação com o outro. (idem, p. 224)

Os três níveis também são descritos por Machado em sua análise do comportamento vocal, com base na semiótica da canção desenvolvida por Luiz Tatit. No nível físico encontram-se os elementos da voz considerados naturais: extensão, tessitura, timbre e registro. No nível técnico, o desenvolvimento de competências físicas através de elaboração técnica: emissão e articulação rítmica. No nível interpretativo, a elaboração intelectual e sensível do cantor: dicção e gestualidade vocal18 (MACHADO, 2007, p. 53-4). Ao relacionarmos a escuta com o comportamento vocal, enfatizamos seu caráter ativo. Escutar é uma ação, tanto quanto o movimento de um braço, ou uma palavra pronunciada. Voltando a Barthes, “ouvir é um fenômeno fisiológico; escutar é um ato psicológico” (BARTHES, 1990, p. 217, grifo do autor). Dentro do campo da audição, a escuta se destaca como o exercício de uma função de inteligência, de seleção (idem, p. 218). Passamos então a enfocar a ação (escutar, cantar) enquanto processo físico, técnico e interpretativo; indicial, alerta e subjetivo. Definimos três focos principais para a condução das atividades, relacionados a cada um desses níveis: o corpo e seus processos de aprendizado, percepção e memória; a linguagem musical como condutora e mediadora desses processos; e as interações criativas e expressivas entre ambos como procedimento adotado. Consideramos atividades de nível físico as que despertam a atenção, o estado de presença e a escuta aberta; direcionam a atenção para o processo da voz e da escuta, buscando localizar e perceber a ação cotidiana de falar e ouvir. A atenção se desenvolve em atividades de percepção do corpo no espaço; de ligação com os outros corpos no espaço; de escuta da paisagem sonora; de percepção dos processos físicos ligados à voz cotidiana; escuta da própria voz.                                                                                                                         18

Gestualidade vocal é um termo utilizado pela linguística, que diz respeito à entonação. Luiz Tatit desenvolveu o termo no âmbito da canção popular, e aqui aparece definido por Regina Machado “Gestualidade vocal (gesto interpretativo): a maneira como cada cantor equilibra as tensões da melodia somadas às tensões linguísticas, construindo um universo de sentidos para a canção, valendo-se também das possibilidades timbrísticas.” (Machado, 2007, p. 59). Amplio a definição para o trabalho, substituindo a canção por música vocal, seja ela improvisada ou composta, utilizando a voz de forma semântica ou não.

29    

Como caminhos para o aprofundamento da escuta, buscamos exercícios que promovessem a sinestesia (ora com o tato, ora com a visão). Nesse nível, exercícios que contemplam a interação entre as linguagens da dança e do teatro são constantes. Esses exercícios promovem mudanças nos estados corporais cotidianos, contribuindo para a percepção dos mesmos. Igualmente atuam sobre a cognição, possibilitando que se estabeleçam novas conexões entre pensamento e realização. Com relação à voz, os conteúdos elencados por Machado, referentes ao nível físico – timbre, extensão e registro – atuam como parâmetros para sua escuta e para a requalificação dos julgamentos que realizamos sobre ela. As atividades de nível técnico têm como foco principal conteúdos de técnica vocal e elementos da linguagem musical. Ao dirigir a atenção para a linguagem, buscamos aprofundar a escuta e, num processo de correlação ampliar o repertório de gestos, sejam eles físicos (no caso do aprendizado corporal relacionado à técnica vocal, por exemplo) ou expressivos (já no âmbito da linguagem musical). Toda elaboração técnica requer o reconhecimento físico do som e da voz. Assim se estabelece o diálogo entre os níveis físico e técnico: o estado de atenção que se desenvolve no nível físico pressupõe a atitude de investigação e pesquisa para explorar os conteúdos técnicos. No nível interpretativo as atividades fornecem o ambiente para que o encontro criativo entre o corpo e a linguagem se realize, no indivíduo e no grupo. Consiste, portanto, nos procedimentos didáticos de aplicação dos conteúdos elencados acima. Adotamos a improvisação como principal ferramenta na elaboração dessas atividades, a partir da concepção de Koellreutter: Não há nada que precise ser mais planejado do que uma improvisação. Para improvisar é preciso definir claramente os objetivos que se pretende atingir. É preciso ter um roteiro, e a partir daí trabalhar muito: ensaiar, experimentar, refazer, avaliar, ouvir, criticar etc. O resto é vale-tudismo (H.-J. Koellreutter, in: BRITO, 2001, p. 45-6).

O educador aponta a prática da improvisação como meio para se vivenciar e conscientizar importantes questões musicais: por meio do trabalho de improvisação abre-se espaço para debates e discussões com os alunos, favorecendo o desenvolvimento do espírito pesquisador e investigador, fundamental para o processo criativo (BRITO, 2001, p. 45). Violeta Gainza aponta algumas características da improvisação, das quais nos apropriamos na condução do trabalho:

30     A improvisação, como jogo integrador, permite ao músico, de acordo com as circunstâncias, por um lado, imitar, reproduzir, interpretar (seguir, obedecer, adaptar-se a um modelo) e por outro, inventar, explorar, criar (dirigir, produzir modelos ele mesmo)19. (GAINZA, 2009, p.13, tradução nossa)

Para além da ideia de jogo musical, a improvisação se constitui em uma atividade submetida a certas regras que se relacionam tanto com os aspectos técnicos e expressivos do fazer musical, quanto com a capacidade criativa do músico que a realiza. Por capacidade criativa, Gainza considera a capacidade de seleção, organização e manejo dos materiais musicais (idem, p.14). Ao jogar com estruturas sonoras e musicais, conduzimos o grupo à incorporação das mesmas, sendo que cada indivíduo irá utilizá-la à sua maneira. No processo de incorporação, a educadora aponta para a capacidade individual de isolar um objeto musical do complexo sonoro que o contém (idem, p. 14). Compreendemos que essa capacidade é própria de cada um, o que acarreta uma variedade de procedimentos a fim de estimular a descoberta individual. Segundo Beth Amin, em entrevista concedida para esse trabalho, há pessoas que são mais visuais, outras mais auditivas e outras mais proprioceptivas: é importante equilibrar essas três características em cada um, observando seus processos de aprendizagem. Isso é possível a partir da diversidade de procedimentos e de propostas abertas no contato com os conteúdos. (AMIN, 2014). Também no sentido de oferecer caminhos para a incorporação de conteúdos, observamos a importância da limitação. Recorremos ao pensamento de Igor Stravinsky (1996) em sua Poética Musical em 6 Lições, ao tratar de questões relativas à criação musical. O compositor estabelece a relação entre liberdade e restrição a partir da comparação entre força e resistência. (...) minha liberdade será tanto maior e mais significativa quanto mais estritamente eu estabelecer meu campo de atuação e mais me cercar de obstáculos. Tudo o que diminui a restrição diminui a força. Quanto mais restrições nos impusermos, mais libertamos nossa personalidade dos grilhões que aprisionam o espírito. (STRAVINSKY, 1996, p. 64-5)

Encontramos ressonância nos procedimentos realizados com Marcelo Gama, no trabalho com a Técnica dos Six Viewpoints. Gama aponta para a necessidade de reduzir o universo para então redirecionar a atenção.                                                                                                                         19

La improvisación, como juego integrador, permite al músico, de acuerdo con las circunstancias, por una parte, imitar, reproducir, interpretar (seguir, obedecer, adaptarse al modelo) y, por otra, inventar, explorar, crear (dirigir, producir modelos él mísmo). (GAINZA, 2009, p.13)

31    

Utilizamos nesse trabalho o conceito de framework, a partir de workshop realizado com a pesquisadora Franziska Schroeder. Schroeder utiliza o termo para indicar as restrições ou limites que considera importantes no ensino da improvisação livre: partindo de limites, podemos ampliar a escuta, aprofundar o estado de atenção, para então distender, transformar ou mesmo romper com os limites. Gainza comenta que romper com os limites, quebrar uma estrutura incorporada, possibilita uma melhor compreensão, assimilação e posterior recomposição durante o processo de expressão, e aponta o medo, a falta de liberdade e os bloqueios de diversas naturezas como opositores a essa mobilidade (GAINZA, 2009). O processo criativo consiste na realização consciente das interações entre corpo e linguagem; ele presume a apropriação criativa dos conteúdos. Trata-se, portanto, de desenvolver caminhos que promovam o encontro criativo e expressivo entre corpo e técnica. Consideramos que o processo criativo não dispensa a elaboração técnica: ele pressupõe a técnica como mais uma ferramenta para a expressão. Com esse olhar, nos debruçamos sobre um acervo de exercícios já vivenciados e estudados. O critério de seleção dos exercícios foi a memória enquanto constante articulação entre passado e presente. Segundo Eduardo Seincman, a memória propicia a articulação no e do tempo; permite que o fazer musical não seja um eterno renascer (SEINCMAN, 2001, p. 31). Cada fato que ocorre, cada novo instante, é iluminado por aqueles que já ocorreram. O tempo não é unidimensional, simples, mas denso, presença maciça de um passado que se desdobra no presente e avança em direção ao futuro (idem p.32).

A memória estabeleceu o elo entre prática, experiência e referenciais teóricos e foi estimulada pelo desenrolar das atividades ao longo do processo. Entendemos que o uso e a aplicação dos exercícios sempre serão inerentes a cada processo vivenciado. Cada indivíduo pode se apropriar e transformar as atividades propostas, gerando novas dinâmicas a partir de suas experiências. Acreditamos que as atividades aqui propostas podem contribuir como um banco de memória para o desenvolvimento de outras futuras, o que torna o processo vivo. 3.1.1. Nível físico Os exercícios aqui listados envolvem a preparação corporal, a percepção das estruturas do corpo diretamente envolvidas na produção vocal e o despertar da atenção. O objetivo desses exercícios é desenvolver a autonomia com relação ao fazer vocal e musical, através da

32    

consciência corporal. Traçamos um paralelo com procedimentos de dança contemporânea, quando se diz que o corpo constrói conhecimento dançando, e que a cognição se dá em tempo real. Para isso, existe um trabalho de despertar dessa consciência, que consiste em reconhecer o próprio corpo nas atividades que este realiza. Antes de qualquer exercício, realizamos o que chamamos de chegada, que consiste em um momento livre e individual de espreguiçamentos, alongamentos, suspiros entre outros procedimentos. Procuramos deixar o grupo livre para escolher seus movimentos, mapear suas tensões e agir de acordo com a escuta do corpo. Esse momento é fundamental para que se inaugure uma relação pessoal com o próprio corpo e se desenvolva uma atitude de pesquisa individual, antes das atividades dirigidas e coletivas. Na chegada, os alunos também têm a oportunidade de escolher os movimentos que sentem vontade de explorar, a partir do repertório pessoal. A preparação corporal consiste em exercícios que trabalham com a percepção da postura, do peso do corpo (sentado e em pé), com o reconhecimento das tensões e com a percepção do corpo no espaço. •

Percepção do apoio do corpo sobre os pés: Em pé, de olhos fechados, observar como o peso do corpo se distribui na planta dos pés. Chamar atenção para as diferentes regiões da planta dos pés que se apoiam no chão, buscando reconhecer esses lugares. Brincar com o peso do corpo, deslocando-o para frente, para trás e para as laterais, massageando a planta dos pés com o próprio peso, experimentando desequilíbrios e novos equilíbrios. Observar o que os deslocamentos de peso provocam no corpo como um todo (na postura, na respiração). Orientar o peso na direção dos metatarsos. Abrir os olhos e observar as sensações relativas ao trabalho.



Percepção do apoio do corpo sobre os ísquios: Sentado, sentir o apoio da bacia sobre a cadeira. Caminhar com o quadril sobre o assento, sensibilizando os ísquios. Realizar pequenas básculas dos quadris para frente e para trás. Observar como esses movimentos refletem na posição da coluna vertebral (principalmente na região lombar) e na respiração.



Rotações das articulações: realizar movimentos circulares com as principais articulações do corpo, buscando reduzir tensões comummente acumuladas nesses locais e deixar o corpo disponível para o movimento. Trabalhamos com as seguintes articulações: tornozelos, joelhos, articulação coxofemoral, punhos,

33    

cotovelos, ombros, pescoço. Após cada rotação, estimulamos a observação de como o corpo reagiu ao movimento, comparando as partes do corpo que se moveram com as que ainda não foram ativadas, percebendo a respiração, as alterações na postura, e abrindo espaço para observações e comentários pessoais sobre a experiência. •

Percepção do peso dos braços e dos ombros: Levantar os braços até a altura dos ombros e deixá-los cair, soltando um suspiro. O mesmo, elevando os braços acima da cabeça. Suspender os ombros até quase tocarem as orelhas e soltá-los de uma vez junto com um suspiro. Realizamos esses movimentos para aliviar o acúmulo de tensões sobre a região da cintura escapular. A sonorização do gesto auxilia no alívio da tensão.



“Balancinhos”: Soltar o peso do corpo com pequenos balanços, observando o relaxamento das articulações, procurando empurrar o chão com os pés para realizar o movimento e deixando esse balanço repercutir na respiração e no som da voz. Esse movimento, que consiste num chacoalhar corporal, ativa a circulação, desperta a atenção, aquece o corpo, libera algumas tensões acumuladas e sensibiliza a região pélvica (centro gravitacional do corpo), bastante importante para a prática vocal. Sugerimos que os “balancinhos” se iniciem em silêncio, dirigindo inicialmente a atenção para as partes do corpo que estão mais tensas. Em seguida, observar como eles refletem na respiração, procurando sonorizar a saída de ar com sons sibilantes. Por fim, deixar a mandíbula relaxar, entreabrindo a boca, e observar como os movimentos podem repercutir no som da voz.



Coluna vertebral: O trabalho sobre a coluna objetiva em primeiro lugar reconhecêla como uma estrutura articulada. Realizamos diversos enrolamentos de coluna, tanto de pé quanto sentados, procurando abrir o espaço entre as articulações das vértebras a partir dos movimentos de enrolar e desenrolar. Esses movimentos podem ser realizados com toda a extensão da coluna, ou apenas sobre uma região (cervical, dorsal e lombar). Num primeiro momento, trabalhamos com a percepção da coluna e sua relação com a postura geral do corpo. Em seguida, associamos o trabalho com a respiração, conforme detalharemos a seguir.



Costelas: Percepção do tamanho, da posição e dos movimentos das costelas a partir do tato. Desenhar o contorno das costelas com a ponta dos dedos, partindo do final do osso esterno, em direção à cintura. Ainda com a ponta dos dedos, tocar

34    

os ossos das costelas, observando seu contorno e a posição que ocupam no corpo. Perceber o espaço entre os ossos das costelas, onde estão localizados os músculos intercostais. Massagear os músculos intercostais com a ponta dos dedos. Perceber a posição das costelas flutuantes, localizadas na altura da cintura, e sua distância em relação ao osso ilíaco. •

Movimentar o tórax a partir de movimentos de abertura e fechamento das costelas. Este movimento consiste em abraçar as costelas com as mãos e inclinar o tronco ora para a direita, ora para a esquerda, percebendo as costelas se abrirem e se fecharem (comparar com o movimento do fole de uma sanfona). Observar se o movimento parte dos ombros ou se parte das costelas.



Alongamentos para pescoço, ombros, costelas e costas: Deixar a cabeça cair para um dos lados, e soltar seu peso alongando o pescoço; repetir o movimento para o outro lado. Deixar a cabeça cair para frente, alongando a cervical. Elevar um braço pela lateral, passando por sobre a cabeça, alongando a parede lateral do abdômen e as costelas; repetir o movimento com o outro lado (esse alongamento pode ser realizado em pé ou sentado). Muitos alongamentos são associados aos exercícios respiratórios, principalmente os que envolvem a região das costelas e as costas (região lombar). Orientamos os alunos a expirarem, sonorizando a expiração com sons sibilantes ([s] ou [x]) conforme aumentam o alongamento.



Percussões sobre os ossos: Percutir os ossos com as pontas dos dedos, experimentando os sons provocados. Realizar as percussões sobre o esterno, clavícula, osso ilíaco, caixa craniana. As percussões ósseas estimulam a percepção da caixa de ressonância.

Com relação à respiração, trabalhamos com diversos procedimentos ainda relacionados ao nível físico, que consistem em reconhecer o gesto cotidiano da respiração antes de elaborá-lo tecnicamente. Da mesma maneira que conduzimos a preparação corporal, abordamos a respiração a partir da percepção dos movimentos corporais relativos a ela, objetivando desenvolver a atenção e a observação dos alunos para esse processo. •

Em pé ou sentado, de olhos fechados, observar a respiração procurando identificar: se ela é nasal ou bucal; a relação entre inspiração e expiração, qual é mais demorada ou se têm a mesma duração, se existe intervalo entre uma e outra ou se a ação é contínua; qual o caminho do ar no corpo, e que regiões do corpo se movimentam nas trocas aéreas. Neste processo é importante que a observação não

35    

altere a ação, para que se tenha real consciência do gesto corporal, antes de elaborá-lo tecnicamente. Costumamos observar a respiração juntamente com os exercícios de observação da postura, do peso e das tensões do corpo. •

Observar a respiração com auxílio do tato: Apoiar as mãos em diferentes regiões do tronco e sentir se há movimentos relativos à respiração (esterno, ombros, costelas, abdômen, lombar).



Exercício de esquecimento da respiração: Este exercício objetiva sensibilizar músculos envolvidos na respiração a partir de movimentos corporais. Sentado, apoiado sobre os ísquios, realizar um pequeno enrolamento da lombar ao expirar, produzindo o som de [f]. Desenrolar o tronco deixando o ar entrar. Exercício extraído de atividades com o Desvendar da Voz, auxilia na sensibilização da musculatura do baixo ventre conferindo mobilidade para a lombar. A sonorização pode ser feita com outras consoantes, como [x] ou [s].



Ritmo e respiração: Este exercício consiste em movimentar o ar com a respiração, a partir de movimentos corporais. Com o grupo em roda, dar três passos para trás, abrir os braços e inspirar; sem seguida, expirar com som de [f], caminhando para frente e levando os braços para cima. Os movimentos devem ser curtos e ritmados; com relação à inspiração, usamos a expressão: deixar o ar entrar, com o objetivo de evitar movimentos excessivos na região do pescoço e ombros. Este exercício também é recolhido de atividades com o Desvendar da Voz.



Respiração e movimentos corporais: Soltar o ar em [s], varrendo o ambiente com o olhar, provocando rotação de pescoço no sentido horizontal. Olhar de um lado para outro soltando o ar com s durante o movimento; conectar a respiração com o movimento. Procurar fazer com que a respiração não sofra alteração com o movimento da cabeça.

A preparação corporal envolve ainda a percepção e conscientização de estruturas diretamente ligadas ao canto, como músculos da face, articulação temporomandibular (ATM), língua, mandíbula e laringe. Recolhemos exercícios que objetivam despertar a consciência para essas estruturas, referenciados no trabalho da fonoaudióloga e professora de canto Beth Amin. •

Alongamento do músculo masseter, utilizando as mãos, tracionando o músculo para baixo, deixando a mandíbula se abrir.

36    



Trabalhar os músculos da face, com caretas, movimentos exagerados, estimulando os orbiculares dos lábios e o zigomático.



Exercícios para a língua: Esticar a língua para fora da boca e deixar que ela volte lentamente; varrer o véu palatino com a língua, desde os incisivos superiores até o palato mole; apoiar a ponta da língua nos incisivos inferiores e movimentá-la para fora e para dentro da boca, sem articular a mandíbula.



Mastigação do som: com movimentos exagerados e muito fluxo de ar, realizar uma mastigação com sonorização, estimulando o trato vocal.

Com relação aos exercícios ligados à laringe, destacamos a fala de Amin sobre sua aplicação: São exercícios usados em terapia de fonoaudiologia, para dar flexibilidade à musculatura laríngea, buscando relaxar e ampliar espaços internos, melhorar o fechamento das cordas vocais, distribuir a tensão e a força ao longo de toda a prega (AMIN, 2014).



B prolongado: realizar o som da consoante [b], prolongando-o ligeiramente, em região confortável da voz, provocando ligeira movimentação da laringe.



Exercícios com trato vocal semiocluído, em que o ar sai com fricção: Glissandos com vibração de língua e lábio e com a consoante [v].

Com relação ao despertar da atenção, trabalhamos com exercícios que estimulam a conexão entre os integrantes do grupo, a percepção do espaço, o reflexo a estímulos e a prontidão para o movimento e para a ação. São exercícios que derivam de jogos teatrais, da experiência com a técnica dos Six Viewpoints e do workshop em processos criativos realizado com Fernando Machado e Hannah Dunster. •

Caminhar no espaço: Exercício básico da técnica dos Six Viewpoints consiste em caminhar no espaço em linha reta, sem desviar a direção, sem variar a velocidade, sem criar intencionalidade, apenas observando o espaço. O objetivo desse exercício é isolar o parâmetro espaço e explorar sua percepção ao extremo.



Caminhar em linhas retas, deixando clara a mudança de direção com o olhar. Buscar trajetórias retas e decididas. Observar a respiração, a velocidade, o deslocamento no espaço, sua posição em relação ao espaço, em relação aos outros corpos em deslocamento.



Caminhar percebendo os sons dentro existentes dentro e fora do espaço ocupado. Orientar o movimento a partir da percepção sonora, procurando se relacionar claramente com essa percepção, de maneira que a escuta defina a direção a ser

37    

tomada na caminhada pelo espaço. Nessa dinâmica, realizar escolhas de se afastar ou se aproximar dos sons escutados. •

Caminhar produzindo um som: Enquanto o corpo se movimenta pelo espaço, produzir algum som. Observar o som produzido com os outros sons presentes no espaço, escolher que sons causam atração ou repulsa e se relacionar claramente com eles, ora se aproximando, ora se afastando dos mesmos. Observar a ocupação sonora do espaço a partir dos sons existentes na paisagem sonora e dos sons produzidos pelo grupo.



Produzir sons propositalmente a partir do efeito que se quer produzir – de aproximação ou repulsa; instigar o grupo a produzir não apenas sons agradáveis, mas também sons que possam ser negados pelos outros, ou que causem desconforto. O importante é ter clareza nas escolhas.



Exercício do “João-bobo”: O exercício é realizado em trios e trabalha com o medo, a confiança, a entrega e a coimplicância. Brincar de “João-bobo” significa fazer-se de boneco nas mãos de duas pessoas, enquanto elas jogam com o peso de seu corpo, de uma para outra. A pessoa que está na posição do boneco, deve entregar o peso de seu corpo à dupla que está jogando, sem interferir no movimento.



Exercício com bola de tênis: Este exercício foi adaptado a partir do workshop realizado com Fernando Machado e Hannah Dunster. Com o grupo em roda, jogar uma bola de tênis de um para outro aleatoriamente. Na segunda rodada, jogar a bola dizendo o próprio nome junto com o movimento. Na terceira rodada, jogar a bola dizendo o nome da pessoa para quem se joga. Observar a prontidão para jogar e receber a bola, a atenção para os movimentos.



Uma variação do exercício anterior consiste em criar uma sequência definida para a jogada, ou seja, jogar sempre para a mesma pessoa, dizendo o nome da pessoa para quem se joga a bola. Quando a sequência for estabelecida, realizar o exercício com duas ou mais bolas. Ao ter mais bolas em jogo, os participantes devem manter a atenção e a conexão, de modo que só lancem a bola quando o outro estiver pronto para receber.



Roda de nomes: O exercício é realizado para promover um primeiro contato entre os participantes do grupo, e consiste num jogo de memória utilizando os próprios nomes. Na primeira rodada, um participante diz seu nome estalando os dedos da mão esquerda, dando início à roda. Na sequência cada participante repete o gesto,

38    

até a roda se completar. Na segunda rodada, o primeiro participante diz seu nome estalando os dedos da mão direita e o nome do participante a sua esquerda estalando os dedos da mão esquerda, e assim sucessivamente, até a roda se completar. É importante que se estabeleça um pulso constante durante o jogo. •

Uma variação do exercício anterior consiste em falar o próprio nome e em seguida o nome da pessoa para onde se dirige o sentido da roda. Nessa variação, a roda pode mudar de sentido a qualquer momento, o que exigirá do grupo maior atenção para a sequência. Quem erra deve sair da roda, deixando o jogo mais ágil e estimulando a atenção e a prontidão durante a dinâmica.



Caminhar no espaço em pares: Este exercício foi recolhido a partir de workshop com a técnica dos Six Viewpoints. Uma pessoa guia a outra em movimento pelo espaço pela nuca. O exercício trabalha a percepção do espaço a partir de uma maneira inusitada. O toque na nuca deve ser sutil, e o líder é estimulado a variar a movimentação e a trajetória. Quem é guiado deve se deixar levar. O exercício trabalha com a relação interpessoal no grupo, com a disponibilidade, com a capacidade de liderança e com a percepção do espaço.

3.1.2. Nível técnico Os exercícios que seguem contemplam os conteúdos relativos ao aprendizado técnico vocal e musical, bem como as dinâmicas de improvisação desenvolvidas ao longo do processo, objetivando a criação do arranjo vocal coletivo. Observamos que o ambiente em que esses exercícios foram desenvolvidos está relacionado com o nível interpretativo (conforme relatado na exposição que antecede essa listagem) visando uma apropriação criativa dos conteúdos trabalhados. Nossa abordagem sobre técnica vocal objetivou desenvolver no grupo consciência e autonomia com relação aos processos corporais envolvidos no canto, desde a respiração ao gesto vocal, procurando sempre esclarecer quais os conteúdos pertinentes a cada exercício realizado. Com relação aos conteúdos musicais, trabalhamos com o pulso a partir de movimentos corporais, melodias na escala maior em vocalizações e cânones, percepção de texturas e percepção dos parâmetros do som: altura, duração, intensidade e timbre.

39    

O trabalho técnico foi conduzido a partir da observação do grupo como um todo e de cada participante individualmente, sendo que o olhar para o indivíduo e para a experiência pessoal foi bastante determinante. Sempre que necessário, incluímos procedimentos trabalhados no nível físico, a fim de aumentar a compreensão corporal sobre os procedimentos técnicos. •

Exercício de vibração lingual ou labial com movimentos corporais: A vibração, lingual ou labial, promove o aquecimento das pregas vocais, conferindo maior elasticidade ao músculo vocalis e promovendo equilíbrio no fechamento das pregas. Deixar a cargo de cada participante escolher a vibração que é capaz de realizar com maior conforto.



Realizar as vibrações associando-as a movimentos corporais correspondentes à altura do som. Os participantes realizam gestos como se desenhassem o som no espaço, sonorizando esses gestos com as vibrações. Inicialmente, cada um realiza seu gesto individualmente; no segundo momento, todo grupo sonoriza o gesto de uma pessoa. Atentar o grupo para a correspondência entre gesto e som no âmbito das alturas, e estimular a variedade de gestos. Estimular os participantes a realizarem gestos que possam sonorizar, buscando ampliar as alturas gradualmente.



Exercícios de vibração labial ou lingual em intervalos definidos, utilizando glissandos em intervalos de 5J e 8J, associando gestos às vocalizações.



Exercícios de ressonância utilizando a consoante [m]: Exercício em que os participantes escolhem a altura do som, e experimentam movimentos faciais (mastigações), observando as diferentes regiões de ressonância ativadas com a movimentação. Podem-se utilizar alturas definidas e melodias com âmbito de segunda maior, associadas aos movimentos.



Ressonância com a sílaba “ning”: Esta sílaba é bastante utilizada nos exercícios do Desvendar da Voz, e tem a propriedade de abrir os ressonadores superiores (seio esfenoidal e frontal) por conta da vogal [i] e ampliar a ressonância na caixa craniana com o fonema [ng]. Realizar o exercício com duas alturas diferentes em intervalo de terça maior, deixando que cada participante escolha a altura que preferia cantar. Realizar o mesmo exercício com as notas de uma tríade de dó maior, deixando que cada participante escolha sua nota na formação da tríade. É importante deixar o fonema [ng] soar e observar sua propagação no espaço interno

40    

do corpo, no espaço da sala e na soma com as outras vozes. Esse exercício prescinde de silêncio após a vocalização, a fim de despertar a atenção para a ressonância do som. •

Improvisação com ressonância, ou som dos sinos: O exercício explora diversas maneiras de imitar sons de sinos com a voz. Num primeiro momento, o grupo realiza uma pesquisa individual dos sons possíveis. Em seguida, em roda, cada um apresenta um som, deixando-o soar em tempo confortável. Num terceiro momento, um regente aciona os sinos, definindo a dinâmica e a duração das ressonâncias pela associação entre gesto e som.



Vocalizações com melodias: Nesses exercícios, observar o encontro entre voz e melodia, valorizando a escuta e a percepção.



Exercício de vocalização com três vogais: Exercício realizado em duas etapas. Na primeira etapa, trabalhar com a repetição da melodia no âmbito de uma oitava, com o objetivo de aquecer a voz e reconhecer suas reações em diferentes regiões de sua tessitura. Em seguida, fixar uma altura em que as variações de registro são mais aparentes para o grupo, a fim de explorar a percepção dos mesmos. Dessa maneira, com a vogal [u] na região aguda, percebe-se o sub-registro de cabeça, com a valorização dos ressonadores agudos. Com a vogal [o], percebe-se o mix cabeça e peito. Com a vogal [a] sensibilizar os ressonadores mais baixos, e a percepção do sub-registro de peito.

 

Figura 1 - Exemplo de exercício de vocalização com três vogais



Uma variação do exercício anterior é a sua execução em cânone, formando uma textura de terças paralelas. Ao trabalhar com o cânone, estamos incluindo o conteúdo de harmonia vocal.



Exercício de vocalização com uma vogal: Melodia realizada com a vogal [a], buscando a livre passagem do ar pela laringe, da maneira mais ligada possível. Primeiro realizar em uníssono, em diferentes alturas. Para realizar a melodia em legato, associamos sua execução ao direcionamento do peso do corpo para os metatarsos. Ao direcionar o foco da execução para o movimento corporal,

41    

promove-se uma mudança na conduta respiratória: a saída do ar se dá em fluxo contínuo e direcionado, apenas com a alteração do eixo do corpo.

 

Figura 2 – Exercício de vocalização com uma vogal



Uma variação do exercício anterior é a associação do cânone a movimentos espaciais. Trabalhamos esse exercício inicialmente em duplas, com as duplas posicionadas frente a frente. A dupla que inicia o exercício caminha em direção a outra. A segunda dupla repete o movimento no sentido oposto, no tempo do cânone. Em seguida, trabalhamos o cânone em roda. Quem inicia a melodia, caminha pelo centro da roda, em direção a uma pessoa. A pessoa a quem se dirige iniciará a segunda entrada do cânone e assim sucessivamente. Ao trabalhar a melodia em movimento, estimula-se o poder de decisão sobre o som, procurando enfatizar a direcionalidade da melodia sugerida pelo exercício, a consciência do ataque e do corte, e a autonomia para realizar o cânone.



Exercícios de estruturação rítmica a partir do estabelecimento de um pulso com subdivisão binária, utilizando movimentos dos pés e palmas. O pulso é marcado com movimentos dos pés alternados. A subdivisão binária é marcada com as palmas. Alternar momentos em que pés e palmas soam juntos, com momentos de defasagem, a fim de estimular a percepção do conteúdo, conforme o diagrama a seguir.



Exercícios com pulso e subdivisão binária a partir do método d’O Passo20, dentro de um compasso quaternário. O exercício consiste em realizar padrões rítmicos utilizando pulso e contra-pulso em compasso quaternário, utilizando sons do corpo. O pulso é marcado com movimentos dos pés alternados. O compasso quaternário é marcado pelo corpo a partir do desenho de um quadrado no chão. Executar o exercício em uníssono e em cânone, realizando os padrões rítmicos sugeridos com palmas e com sons da voz.

                                                                                                                        20

O Passo é um método desenvolvido por Lucas Ciavatta, que pressupõe o uso do corpo como meio para a percepção rítmica. O Passo consiste em criar partituras no corpo e no espaço, valendo-se da sinestesia para estimular a compreensão de pulsos, subdivisões, compassos e estruturas rítmicas. A base do método é o passo, ou seja, o deslocamento do corpo através do caminhar rítmico.

42     •

Cânone Belle Mama: Cânone aprendido em workshop com Fernando Machado e Hannah Dunster. Cânone em compasso ternário sobre a escala maior, usado para aquecer. Letra simples, e melodia de fácil assimilação e execução. Pode-se associar a melodia a movimentos corporais na representação das alturas.

 

Figura 3 - Partitura do cânone Belle Mama



Cânone Nhamandu Mirin: melodia tupi-guarani apresentada por Alice Oliveira durante ensaios com o Coro Profano. A melodia utiliza as notas de um acorde maior. Gera uma partitura corporal fácil de ser compreendida e executada (sinestesia com o visual).  

 

Figura 4 – Partitura do cânone Nhamandu Mirin

43    

3.1.3. Nível interpretativo Aqui listamos as principais dinâmicas de improvisação em que trabalhamos com a apropriação criativa da linguagem musical, utilizadas no processo de criação do arranjo vocal. •

Exercícios com texturas, utilizando diagramas extraídos do livro O Ouvido Pensante, de Murray Schafer. Os diagramas foram apresentados conforme a ordem exposta a seguir:

 

Figura 5 – Reprodução dos diagramas texturas extraídos do capítulo Quando as palavras cantam (SCHAFER, 1990).

44    



Na primeira rodada, realizar uma leitura a primeira vista coletiva, sem instrução prévia, experimentando os gestos vocais que surgiram a partir do estímulo visual. Esse procedimento tem como objetivo permitir a cada um realizar suas próprias escolhas sem sugestão anterior e favorece o fazer antes da elaboração teórica. Em seguida, comentar cada leitura, investigando o que as imagens sugerem e confrontando as interpretações e percepções individuais. A multiplicidade de sentidos e o contato com a percepção dos outros contribui para ampliar o horizonte da percepção individual. No que diz respeito a construir uma linguagem do grupo, trabalha com o potencial de aceitação e incorporação da ideia do outro e da própria ideia, bom como com a redução de julgamentos, dentro de um ambiente em que não existe exatamente certo e errado, mas sim a percepção de cada um.



Realizar novas leituras a partir de estratégias definidas pelo grupo. Nas estratégias, pode-se traçar orientações visuais, escolher o que cada um vai executar, como as leituras serão iniciadas e como serão finalizadas.

Notas longas com vogais (nlv): Exercício recolhido de atividades de improvisação vocal realizadas com Beth Amin. Segundo Beth, foi extraído de dinâmicas coordenadas por Bob Stoloff, no Vocal Summit (grupo de improvisação vocal da Berkley College of Music). O exercício consiste em emitir notas longas em diferentes alturas, com vogais. Todos devem cantar a mesma vogal: uma vez definida a vogal, essa deve ser assimilada pelo grupo. Alterações de vogais podem ocorrer durante a dinâmica, sendo que quando uma nova vogal é lançada para o grupo esse deve aderir coletivamente à mudança. Não é permitido alterar a altura escolhida durante a emissão da nota longa. Alterações de altura devem ser feitas após as respirações. Observar para não configurar ritmos nem melodias. Observações: Antes do exercício, deve existir silêncio. É importante que o professor observe a capacidade do grupo de se concentrar, e escutar o silêncio que antecede o som. Qualquer integrante pode iniciar o exercício, escolhendo a vogal e a altura em que irá emitir o som. O grupo vai emitindo suas notas, escolhendo alturas para preencher o espaço acústico, observando a relação entre som e silêncio, o tempo da respiração, o espaço que a vogal ocupa no corpo e no ambiente, escutando as ressonâncias e a sonoridade resultante.

45    

O trabalho com a escuta permite que a cada rodada o grupo tenha capacidade de realizar escolhas mais conscientes no que diz respeito aos sons que emite. O professor pode observar o tempo de duração de cada vogal, as diferentes variações de dinâmica e densidade, e estimular o grupo a lidar conscientemente com esses parâmetros. Sons e suspensões: Exercício extraído de workshop com Marcelo Gama, em técnica dos Six Viewpoints aplicada à improvisação vocal. Exercício consiste em emitir sons no pulso e criar suspensões ou silêncios. O grupo, em roda estabelece um pulso coletivo e juntos respiram e atacam um som em conjunto. Esses sons são livres, podendo variar de ruídos, percussões vocais e corporais, palavras, sílabas, sons com frequência definida. Observações: Esse exercício trabalha a consciência coletiva do pulso e a percepção do silêncio. Pode ser executado em sessões curtas, sendo que a cada repetição pode-se acelerar ou retardar o andamento. O professor pode sugerir que o pulso inicialmente seja marcado com os pés, porém é importante que a cada repetição o grupo internalize a pulsação, deixando o espaço entre os sons ser preenchido apenas pelo silêncio. Também é interessante estimular o contágio entre os participantes, despertando a escuta para os sons coletivos, o olhar para o outro. Quanto mais rápido, menos tempo o participante tem para julgar e realizar escolhas, dessa maneira é mais capaz que o som produzido seja resultante de um impulso ou reflexo e menos de um ato racional e reflexivo. Sugerimos alternar esse exercício com o de notas longas com vogais, para maior compreensão da importância do silêncio e da sensação de pulso. Variações: Podem-se incluir movimentos corporais nas dinâmicas; pode-se trabalhar com a defasagem entre sons e silêncios, provocando mudanças nas texturas e suspensões locais (entre pequenos grupos dentro do coletivo). Sequência minimal: Este exercício foi originalmente recolhido em atividades realizadas com Stenio Mendes e Fernando Barba, e transformado durante as atividades com o grupo. O objetivo é montar uma sequência de sons composta de pequenas unidades sonoras feitas pelos participantes. Os sons devem ser realizados pelos participantes na ordem em que

46    

estão dispostos na roda e repetidos ciclicamente. Quando todos estiverem soando, o primeiro a colocar seu som silencia, e assim sucessivamente até o último som se calar. Observações: O exercício trabalha os conceitos de motivo e textura e as relações de autonomia e interdependência dentro de um conjunto. Estimula a escuta, a percepção rítmica, e a memória. O exercício pode ser realizado com um pulso definido e marcado pelo grupo. O professor deve estimular o grupo a silenciar a marcação do pulso, mantendo apenas sua percepção interna. Também pode orientar o grupo a escutar e ter calma para realizar as escolhas sonoras, sem antecipar o gesto; com relação ao gesto sonoro proposto, o professor pode orientar para que os participantes escolham um som possível de ser repetido por ele mesmo. Não há necessidade de ser uma escolha sofisticada, mas algo que possa ser memorizado, reproduzido e manipulado por quem a realiza. A complexidade está na resultante dos sons propostos. Os integrantes devem atentar para os espaços existentes entre os sons, para realizar suas escolhas. Variações: Uma variação possível para essa atividade é a realização de regências. Uma vez que todos os sons estão na roda, um integrante pode reger o conjunto, elencando os sons que são tocados e os que são silenciados, realizar regência de dinâmicas, etc. O grupo deve ser estimulado a ouvir o que não soa, a manter a atenção durante o silêncio e a memória dos sons que não estão sendo tocados. Outra variação é o estabelecimento de uma voz solista sobre a textura criada. Tim-Uê: Exercício adaptado do original de Meredith Monk. Esse exercício foi recolhido a partir de atividades de improvisação vocal realiadas com Beth Amin. O exercício consiste em passar as sílabas “Tim” e “Uê”, com alturas definidas, em roda. As sílabas são geradas por uma pessoa, que transmite o som enquanto pressiona gentilmente a mão do vizinho. Quem recebe a pressão na mão, deve reproduzir o som, e envia-lo para o seguinte, repetindo o mesmo gesto. Quando o som gerado retorna à origem, a fonte sonora dispara outro som, e a dinâmica prossegue até que a fonte pare de gerar os sons. Observações: O exercício trabalha com a percepção de alturas e com timbre. As sílabas escolhidas projetam harmônicos diferentes, o “tim” valoriza a projeção de harmônicos agudos, enquanto “uê” favorece os graves. O contraste entre os timbres das sílabas funciona como um facilitador na percepção das alturas. Durante a dinâmica, é importante que o grupo consiga passar o som na mesma altura que escutou e sustentá-lo até que receba a pressão nas mãos.

47    

Variações: a fonte sonora pode emitir outro som, mesmo antes do primeiro retornar; qualquer jogador pode mudar o sentido da roda; pode-se alternar o gerador dos sons; pode-se jogar com duas ou mais fontes sonoras. Contágio livre: Exercício recolhido de atividades com Fernando Barba (barbatuques) e Stenio Mendes. O exercício consiste em se deixar contagiar pelos sons do grupo. A dinâmica deve partir do silêncio e não se define quem vai iniciar. Quando um som é apresentado, o grupo deve aguardar até que ele se consolide. Qualquer um que se sentir contagiado pelo som apresentado, pode responder ao estímulo. Observações: a dinâmica trabalha com a escuta aberta e atenta, e com o silêncio que antecede o som. Deixar-se contagiar é não antecipar o gesto criativo à escuta, é experimentar o silêncio interno. O tempo que cada som leva para se consolidar é o tempo que cada um tem para experimentar sua escolha até que ela se torne cíclica. O grupo deve escutar o gesto apresentado até perceber que este se consolidou e é dessa percepção que deve surgir o novo gesto. Cada um deve ter a clareza de se colocar em atitude de contágio, sem antecipar a resposta, escutando cada novo som apresentado. Quando todos os sons forem apresentados, o grupo deve ser estimulado a escutar cada um deles na roda, uma espécie de escuta panorâmica. A partir desse momento, todos podem realizar novas escolhas, quando o contágio livre de fato se inicia. Variações: a partir do contágio livre o grupo pode estabelecer naipes; explorar variações dentro dos naipes; estabelecer diálogos entre os naipes; explorar variações de densidade e dinâmica; explorar regências internas nos naipes; explorar regência geral.

Aquecimento policancional: Exercício desenvolvido a partir de dinâmicas de improvisação envolvendo canções brasileiras. O exercício consiste em cantar em conjunto diferentes canções simultaneamente, de forma a criar uma textura polifônica. O desencadeamento das canções se dá pelo contágio. Pode-se restringir o universo cancional por compositor, tema, palavra, entre outras possibilidades.

48    

Um-Dois (one-two): Exercício adaptado do original desenvolvido por John Smith, percussionista inglês que trabalha com improvisação livre. Recolhido em workshop de improvisação livre ministrado pela Prof. Dra. Franziska Schroeder. O exercício consiste em falar as palavras UM e DOIS, alternadas em uma roda, criando um pulso coletivo. As vozes vão se acumulando, formando dois naipes. Observações: Procurar manter o pulso. Quando todas as vozes se colocarem, o grupo é estimulado a escutar todas as vozes soando juntas. Perceber a mudança de timbre, densidade e dinâmica. Variações: a cada repetição, podem-se variar as maneiras de emitir as palavras. Estimular as variações de altura, timbre intensidade, duração. Variar o idioma, estabelecer diálogos internos, deixar-se contagiar pelo som do grupo. Pode-se também migrar de um para dois, explorando figuras rítmicas e pausas na estrutura estabelecida. Variar o pulso, pelo método da distensão, prolongando a sílaba para além da voz falada, explorando gestualidades vocais pouco usuais no cotidiano. Pode-se acrescentar novos naipes à dinâmica, como UM, DOIS,TRÊS, por exemplo. One-Two com Tim-Uê: Substituir as silabas um e dois por [tim] e [uê], do exercício proposto por Meredith Monk (ver Tim-Uê). Valorizar a ressonância, percebendo o ataque do começo de cada sílaba e a ressonância que se sucede. Experimentar a ideia de contágio ao longo do exercício, para as variações apresentadas, estimulando a escuta e percepção do todo. Exercício da fonte geradora: Dinâmica desenvolvida por Marcelo Gama durante workshop de Técnica dos Six Viewpoints e Improviso Vocal. Os participantes são dispostos em fila ou em roda. Uma pessoa é a fonte geradora de sons vocais e deve emitir um som repetidamente. A pessoa a seu lado deve variar o som escutado a partir de um parâmetro do som (altura, duração, intensidade e timbre). A próxima pessoa deve utilizar o mesmo parâmetro para variar o segundo som produzido e assim sucessivamente, até que todos apresentem suas variações. Observações: O exercício começa isolando-se um parâmetro para ser variado. Os participantes devem ter clareza tanto na produção do som quanto na variação, buscando restringir sua ação ao parâmetro selecionado. O exercício trabalha com a atenção, a escuta, a restrição do universo sonoro e promove a discussão sobre os parâmetros do som e sua

49    

realização vocal. É interessante que tanto o som gerado quanto as variações sejam repetidas ciclicamente, produzindo diferentes resultados sonoros. Variações: Após algumas rodadas isolando parâmetros e trabalhando sobre cada um individualmente, sugerimos combinar os parâmetros de diversas maneiras. Num primeiro momento, um integrante é a fonte geradora e o som vai sendo transformado pelos demais participantes, sendo que cada um utiliza um parâmetro diferente na variação. Pode-se jogar com diferentes posições e formações espaciais, delimitando o território de cada parâmetro a ser variado e criando partituras espaciais. Podem-se combinar parâmetros para as variações. Triângulo Rotativo: Exercício recolhido em workshop sobre a Técnica do Six Viewpoints, ministrado por Marcelo Gama. O exercício é uma adaptação de Gama a partir de práticas vivenciadas com Mary Overlie. O exercício consiste em um “siga-o-mestre”. Devem-se formar trios entre os participantes e o “siga-o-mestre” se processa dentro de cada trio. Os trios são dispostos em formação triangular, com uma pessoa à frente (o mestre), e duas atrás (os seguidores), todos voltados para a mesma direção. Quem está à frente gera os sons, enquanto os de trás devem segui-lo. Durante a dinâmica pode-se trocar de mestre tanto pela passagem do comando (o mestre entrega o comando a outro) quanto pelo roubo (alguém se dirige à posição do mestre e troca de lugar). Observações: Inicialmente trabalha-se com a imitação do som, e a instrução dada é para que os participantes sejam fiéis à imitação do som gerado. Procura-se dar um tempo para que cada participante possa experimentar o comando. O professor deve orientar o grupo escutar o som realizado pelos outros trios a fim de estabelecer diálogos entre as diversas formações. O exercício explora a escuta, a atenção e a ampliação dos vocabulários vocais e musicais, a partir do reconhecimento do gesto do outro. Variações: A troca de mestre pode se dar pela entrega do comando, dessa maneira quem está à frente dirige-se à pessoa com quem deseja mudar de posição. Também se pode trabalhar com o roubo do comando, sendo que quem quer comandar, ocupa a posição dianteira. É importante atentar para a generosidade tanto de quem comanda quanto dos que o seguem. Pode-se dar a regra: “não querer liderar”. Após um tempo realizando imitações, pode-se trabalhar sobre variações a partir dos parâmetros do som (altura, duração, intensidade e timbre) isolados ou combinados. Podem-se combinar movimentos aos sons.

50    

3.2. Análises Em nossas análises, articulamos a proposta pedagógica ao processo vivenciado com o grupo Vozeiral, observando como se estabelece o diálogo entre teoria e prática. Por se tratar de um trabalho com ênfase na prática, anexamos alguns exemplos em áudio, contidos na mídia em anexo.

3.2.1. Da formação do grupo O processo de seleção dos participantes de uma prática vocal está comprometido com o tipo de trabalho a ser realizado; não apenas dá início ao processo, como estabelece o primeiro contato entre os envolvidos. Por se tratar de um projeto que se constrói a partir do grupo, optamos por realizar uma aula-aberta, com caráter de oficina, como processo seletivo. Elaboramos uma aula prática, com o objetivo de apresentar a proposta e conhecer os interessados. Na aula desenvolvemos as seguintes atividades: Exercícios de chegada: durante a chegada dos participantes, iniciamos alguns movimentos corporais como alongar e espreguiçar. Procuramos deixar os participantes confortáveis a explorar individualmente seus movimentos no ambiente coletivo. A chegada tem duração de cinco a dez minutos, de acordo com o grupo, não passando dessa duração. Sugerimos que os integrantes ocupem o espaço livremente e iniciem os movimentos de acordo com suas necessidades e vontades. As instruções dadas referem-se a como direcionar a atenção, para estimular a percepção do próprio corpo. São comuns instruções em forma de perguntas, como: Como meus pés tocam o chão? Como está minha respiração? Qual parte do meu corpo tenho vontade de espreguiçar/alongar? Para onde estou olhando? Estou confortável no espaço que escolhi? Este procedimento nos permite: - dar tempo para que todos cheguem e se acomodem no espaço; - iniciar a aula já com a proposta de atividade corporal; - estimular a auto-observação e a investigação pessoal sobre o próprio corpo; - observar como cada pessoa se relaciona consigo no ambiente do grupo; - observar como o grupo ocupa o espaço; - observar movimentos, gestos, sons que fazem parte do repertório do grupo; - criar um ambiente acolhedor para o trabalho.

51    

Neste primeiro contato podemos ter uma ideia da diversidade do grupo, a partir da observação de seus gestos e das maneiras como cada um se relaciona com seu corpo, sem o intermédio das palavras. Também permitimos que cada um inaugure ou desenvolva processos de percepção e autoconsciência, e conquiste um espaço individual no ambiente coletivo. Observamos que existem pessoas que tendem mais ao movimento do que outras, e procuramos lidar com as diferentes manifestações sem criar hierarquias ou juízos sobre cada atitude. Simultaneamente procuramos deixar claro que se trata de um trabalho com abordagem corporal, e que a observação do corpo e do movimento é inerente ao trabalho. Apresentação do grupo: realizamos a atividade a partir da formação de duplas. Estipulamos cinco minutos para que cada um se apresentasse na dupla, para depois um apresentar o outro para o grupo. Objetivos: - estabelecer contato pessoal entre os participantes; - trabalhar a escuta aberta; - estabelecer diálogo; - conhecer os nomes e o perfil dos participantes. Reflexão: Ao propor que a apresentação seja feita em duplas, sugerimos aos participantes um contato mais íntimo e a oportunidade de escolher como vão se apresentar uns para os outros e depois para o grupo. A ação se processa de dentro para fora, em diferentes gradações: a autoapresentação pressupõe um olhar para si; a apresentação do outro para o grupo pressupõe a escuta aberta para o outro. Observamos que algumas pessoas não gravaram o nome do parceiro a apresentar, outras tinham dificuldade em falar do outro em público, outras tinham dificuldade de falar de si no ambiente íntimo, outras precisavam de mais tempo. Essas informações são substanciais para a seleção de atividades objetivando a escuta, o estado de atenção e a atitude diante do grupo. Num trabalho colaborativo, a escuta do outro é tão importante quanto a escuta de si, e ambas se constroem em diálogo ao longo do processo. Ao observar como cada um se apresenta (a partir do que escolheu dizer sobre si) e como apresenta o outro (qual a atenção dada ao outro durante sua apresentação), podemos traçar um primeiro perfil da escuta do grupo. As relações também constituem o ambiente do trabalho: trabalhar sobre elas também contribui para criar um ambiente acolhedor e contemplador da diversidade.

52    

Exercício de conexão e atenção: após a apresentação, nos colocamos em roda e realizamos o exercício da flecha. O exercício dispõe os participantes em roda, e consiste em fazer o som de uma palma circular pelo grupo21. Objetivos: - promover e facilitar uma integração física no grupo; - trabalhar com a concentração do grupo; - despertar a atenção; - utilizar movimentos e ritmos simples para colocar e manter os participantes num mesmo nível. Reflexão: O exercício da flecha é muito comum a diversas práticas de grupo, tanto musicais como teatrais. Ao fazer uma flecha em forma de palma circular pela roda, estimula-se a conexão entre os participantes. A conexão se dá através estabelecimento de contato visual entre eles, da ampliação da percepção de visão periférica, do desenvolvimento de um estado de prontidão para o movimento e atenção para o gesto do outro. Acrescentamos um componente rítmico ao exercício, procurando estabelecer um pulso comum, e alternar a passagem da flecha no pulso ou no intervalo entre dois pulsos. Com isso, inicia-se um aquecimento rítmico ao mesmo tempo em que se observam as habilidades e dificuldades dos integrantes com relação a ele. Aquecimento vocal: o aquecimento vocal foi realizado em etapas: trabalhamos respiração associada ao ritmo e a movimentos de braços e do corpo; em seguida trabalhamos com alguns movimentos da face e sons vocálicos livres; passamos para um exercício de ressonância com a consoante [m], partindo de alturas aleatórias escolhidas pelos participantes, até conquistar um uníssono; da ressonância chegamos à sílaba [ma] em pequenas frases melódicas no âmbito da escala maior, que pudessem ser cantadas em intervalos de terças, ou em cânones. Objetivos: - apresentar ao grupo o trabalho vocal a ser desenvolvido; - conhecer um pouco do universo musical e vocal dos participantes; - apresentar o trabalho musical a ser desenvolvido; - traçar um primeiro perfil musical do grupo;

                                                                                                                        21

Ver descrição na seção Exercícios.

53    

- estimular a escuta e o estado de atenção durante os procedimentos ligados à técnica vocal e musical; - integrar esses procedimentos ao ambiente de criação coletiva e pesquisa. Reflexão: Adotamos um critério de gradação para a elaboração dessa sequência de exercícios, procurando partir dos gestos respiratórios e vocais pessoais dos participantes, para então encontrar elementos relativos à técnica vocal e musical. Da mesma maneira que a chegada, procuramos não impor gestos ou alturas iniciais, permitindo uma exploração individual livre. Esse procedimento tem a função de despertar a atenção e conscientizar cada participante da responsabilidade que tem sobre seu corpo e seu aprendizado. Deixamos que o grupo escolhesse livremente as primeiras alturas a serem entoadas, sem a preocupação de fixar uma frequência comum. Esta surgiu da interação entre as vozes dos participantes, na procura pelo uníssono. A partir da altura estipulada pelo grupo, trabalhamos com a percepção da ressonância do som no corpo de cada um, através da consoante [m]. Nesse procedimento, procuramos despertar atenção para a vibração do som no corpo, com auxílio do toque das mãos. A atenção do aluno está voltada para si, para o som dentro do seu corpo. Conforme o grupo vai conquistando intimidade com seu som e com os procedimentos, acrescentamos novas informações. Passamos então da ressonância para a sílaba [ma], e o som vocal ganha nova dimensão no corpo e no espaço. Com essa sílaba, trabalhamos sobre melodias no âmbito da escala maior, partindo de frases curtas para gradualmente ampliar seu âmbito e a maneira de explorá-la. O critério de gradação dos exercícios faz com que um procedimento se transforme em outro, conferindo organicidade ao processo. Podemos com ele observar o grupo e cada participante, experimentando alguns limites e colhendo material para a elaboração das atividades seguintes. Notas longas com vogais: após um aquecimento vocal dirigido, apresentamos uma dinâmica de improvisação vocal. Objetivos: - permitir exploração pessoal das alturas e espaços de ressonância com a voz; - aprofundar a escuta a fim de promover escolhas vocais e musicais mais conscientes; - associar o aquecimento às práticas de improvisação; - conhecer o grau de atividade e passividade dos integrantes no grupo; - trabalhar com harmonia vocal sem utilizar o sistema tonal;

54    

Reflexões: Para que os integrantes do grupo possam explorar conscientemente sua voz em diversas alturas, orientamos a perceber a relação entre a altura emitida e a ressonância do som no corpo e no espaço. Procuramos estimular o contraste como forma de evidenciar a percepção a partir do parâmetro espacial. Orientamos a escuta para o momento de escolha do som a ser realizado, estimulando os participantes a escutar o som antes de emiti-lo. Também direcionamos a atenção para o encontro entre o som produzido em relação ao som dos outros participantes. Trabalhamos com as seguintes instruções: Onde eu percebo o som da minha voz? Onde eu me sinto confortável para produzir um som? Que som da minha voz não me é familiar? Como o som de outra pessoa interfere no som que estou fazendo? Quando escuto esse som, consigo manter o som que estou produzindo? O que o som do grupo provoca em mim (investigar sensações de estabilidade e instabilidade; conforto e desconforto; movimento e repouso)? Trabalho com a canção Berimbau (Baden Powell e Vinícius de Morais): a partir da canção de Baden e Vinícius, propusemos atividades envolvendo memória e criação vocal. Objetivos: - introduzir o grupo no ambiente da canção popular; - apresentar diferentes abordagens no trabalho com a canção; - cantar coletivamente; - executar um arranjo vocal coletivo. Reflexões: A canção Berimbau possui características que justificam sua escolha para a aula aberta. Além de ser uma canção bastante conhecida, sua estrutura formal permite diversas abordagens. A introdução, em que se repete a palavra BERIMBAU, é de rápida assimilação mesmo por aqueles que estão escutando a canção pela primeira vez. A melodia da introdução faz alusão ao toque do berimbau, o que torna a assimilação mais imediata. Essa melodia desenvolve-se sobre uma base harmônica cíclica, de dois acordes sobre uma nota pedal. A parte A apresenta melodia sobre uma base harmônica de dois acordes, em ambiente modal (escala eólia). Com relação à parte A, existe a dificuldade de memorização da letra e de se articular a divisão rítmica da melodia com precisão. A parte B é constituída de uma melodia sobre uma base harmônica tonal. A mudança do ambiente harmônico vem acompanhada de alteração também no fluxo melódico e de ampliação do âmbito da melodia.

55    

Apresentamos a canção a partir da escuta da gravação de Baden e Vinícius contida no álbum Os Afrossambas de 1964, e em seguida cantamos juntos, procurando explorar o que cada um trazia da canção na memória. A partir desse primeiro contato, trabalhamos sobre cada parte separadamente até compor o arranjo final. Sobre a introdução, recuperamos os exercícios com terças paralelas realizados no aquecimento. Procuramos estimular o grupo a descobrir a abertura vocal em terças, através da experiência e da escuta, repetindo algumas vezes a melodia com apoio da harmonia ao violão. Sobre a parte A, a proposta foi explorar sonoridades da voz em diálogo com a melodia e a letra. A condução da melodia deveria ficar a cargo de ao menos três pessoas mais o professor, e os demais exploravam as sonoridades. Repetimos algumas vezes a dinâmica, alternando a condução, e observando o resultado sonoro produzido, procurando orientar o grupo a se agrupar em naipes a partir da escuta do outro. Sobre a parte B, trabalhamos sobre um arranjo vocal pré-existente a duas vozes, trazido para o trabalho. Todos aprenderam a cantar a melodia original e a melodia do arranjo. A separação em naipes foi feita coletivamente com o grupo. Não utilizamos suporte escrito (letra e partitura) para esse trabalho. Trabalhadas as três partes, montamos a canção e realizamos duas performances da mesma. Finalizar a aula com uma canção e um arranjo, consolidou a experiência e contribuiu com a experiência de realizar música coletivamente, mesclando procedimentos de improvisação e criação ao aprendizado técnico. [áudio: 01 berimbau aula aberta] Consideramos essa aula um processo seletivo, pois é através do contato com as atividades desenvolvidas que os interessados podem escolher participar ou não do trabalho. Também é através das atividades que podemos traçar um perfil inicial do grupo com quem vamos trabalhar (ainda que ele sofra alterações ao longo do tempo) e selecionar os principais conteúdos a serem trabalhados. A aula foi realizada com doze pessoas interessadas. Dessas doze, sete escolheram continuar no trabalho. O grupo se completou com a chegada de um participante na primeira aula-ensaio que não participou da aula aberta. Da aula aberta, pudemos traçar um plano geral de trabalho e programar as atividades da primeira aula-ensaio.

56    

3.2.2. Da organização das aulas O processo se desenvolveu em três fases. A primeira consistiu em estabelecer o ambiente para o processo criativo, a partir da integração entre os participantes, do mapeamento dos vocabulários musicais existentes e do trabalho com os conteúdos básicos elencados. A segunda fase teve ênfase na estruturação musical e vocal do grupo e na criação do arranjo vocal. Na terceira fase, o grupo dedicou-se a detalhar o arranjo criado e trabalhar sobre a performance do mesmo. Cada etapa teve duração aproximada de um mês. A organização e seleção das atividades realizadas nas aulas se basearam na observação inicial do grupo e de seus integrantes. Observamos que se tratava de um grupo bastante heterogênio no que diz respeito às biografias musicais e às atitudes com relação ao grupo. Havia pessoas com muita experiência em práticas vocais individuais e coletivas em contraste com outras sem qualquer experiência em canto. Também notamos que alguns integrantes eram bastante ativos no grupo, enquanto outros eram demasiado passivos, e que essa atitude não tinha relação com as trajetórias musicais pessoais. As aulas-ensaios foram organizadas da seguinte maneira: exercícios de chegada, aquecimento corporal e vocal, dinâmicas de improvisação sobre os conteúdos elencados para o trabalho criativo.

3.2.3. Primeira e segunda aulas-ensaios Os exercícios de preparação corporal realizados nas primeiras aulas procuraram aprofundar a percepção do corpo e conscientizar os participantes de que todo o corpo está envolvido com o trabalho vocal e musical. Trabalhamos sobre as rotações das articulações, consciência da coluna como eixo do corpo, percepção do peso do corpo na base (pés), sensibilização das costelas e do esterno. Com relação à técnica vocal, enfocamos a respiração em conexão com o trabalho corporal realizado. Procuramos, a partir da sensibilização corporal, atentar para a respiração, percebendo-a a partir do ritmo respiratório pessoal. Ao associar respiração a ritmo, damos ênfase a seu fluxo natural (que é rítmico por natureza) para, então, direcionar a consciência para as estruturas e movimentos a ela relativos. Também trabalhamos com exercícios colhidos de terapias com fonoaudiologia, como “Mastigação com som”, “B prolongado”, “Exercícios para língua”, “Exercícios com trato vocal semi-ocluído”, e exercícios do Desvendar da Voz, como “Ressonância com a sílaba

57    

[ning]”. O objetivo desses exercícios é conscientizar os participantes das estruturas do trato vocal envolvidas na fala e no canto e abrir caminho para a elaboração técnica. Com relação à linguagem musical escolhemos a dinâmica “Pulsos e palmas”, que traz uma abordagem corporal do ritmo a partir da relação entre pulso e contra-pulso. Esses elementos já haviam sido trabalhados no exercício da “Flecha”, na aula aberta. Aproveitamos para explorar a realização do ritmo com sons do corpo. “Pulsos e palmas” tem a característica de utilizar movimentos e ritmos simples, a fim de colocar os participantes num mesmo nível. Nas duas primeiras aulas-ensaios realizamos exercícios de conexão que objetivaram aprofundar o contato pessoal entre o grupo e integrar as pessoas entre si e com o trabalho. Na primeira utilizamos a “Roda de nomes”, que funciona como um exercício de quebra-gelo, reforçando o contato com o outro e estimulando a atenção e a memória. A “Roda de nomes” também trabalha com a noção de pulso coletivo, sem precisar de uma abordagem teórica. Com a dinâmica “Caminhar no espaço em pares”, realizada na segunda aula-ensaio, procuramos abordar a atividade e passividade dentro do grupo e estabelecer uma relação de confiança e cumplicidade entre os integrantes. A dinâmica “Caminhar no espaço em pares” teve forte impacto sobre o grupo e gerou uma série de reflexões: dificuldade de ser comandado no começo e de saber como se relacionar com o outro; aprender a perceber o comando; aprender a perceber o outro; estar em atitude de disponibilidade corporal e saber receber antes de tomar atitude; perceber quando a resposta ao comando é instintiva e reflexa e quando é sucedida de silêncio. Com relação às dinâmicas de improvisação, partimos do exercício “Notas longas com vogais”, já conhecido dos participantes por conta da aula inaugural. Um dos participantes comentou, após a realização do exercício, que não sabia se poderia realizar uma nota longa e que seu ar não era suficiente para sustentar um som por muito tempo. Diante dessa observação, trabalhamos com o exercício “Sons e suspensões”. [áudio 02: vozeiral ensaio notas longas vogais] A mudança de atitude, não prevista na elaboração da atividade, foi importante para acolher a dificuldade surgida, e abriu caminho para o desenvolvimento de outras atividades. Aproveitamos para trabalhar com a livre associação de ideias sonoras, o que contribuiu para as dinâmicas que se sucederam. O contraste entre os dois exercícios deixou claro para os participantes o significado de um som longo: a duração é relativa à percepção e à possibilidade de cada um. Ainda sobre o aspecto de harmonia vocal (abordado no exercício “Notas longas com vogais”), adicionamos o exercício “Tim-Uê”, que trabalha com a duração de sons de maneira

58    

direcionada. As primeiras rodadas do exercício foram coordenadas pelo professor, para apresentar o exercício e suas possibilidades. Em seguida, abrimos para o grupo a possibilidade de propor os sons. O contraste entre as sílabas [tim] e [uê] permite uma clareza na distinção das alturas, e o resultado sonoro do exercício é bastante interessante. Permite um trabalho consciente com harmonia vocal, alturas e timbres, mesmo com grupos iniciantes ou heterogêneos. [áudio 03: vozeiral ensaio tim-ue] Realizamos ainda a “Sequência minimal” e o “Contágio livre”, exercícios que permitem a cada participante acessar seu “banco sonoro”. Com esses exercícios procuramos deixar claro que todos os sons trazidos pelos participantes são importantes para o trabalho e contribuem para a constituição da sonoridade do grupo. A inclusão de sons considerados “não-musicais” faz o grupo refletir sobre o que é fazer música ao mesmo tempo que incorpora diferentes expressões sonoras, o que enriquece o trabalho. Para os que estão muito condicionados a um modo de fazer, a inclusão de sons pouco usuais abre caminho para o descondicionamento. Nesse sentido, a diversidade de experiências contribui para o aprendizado de todos e para a pesquisa coletiva da vocalidade. Nós mesmos nos deixamos surpreender e contagiar pelos sons propostos, buscando valorizar a diversidade. [áudio 04: vozeiral ensaio sequencia minimal regência] Nas dinâmicas de “Contágio livre”, procuramos valorizar o que foi considerado erro pelo grupo, reforçando o som “errado” e transformando-o em acerto. Procuramos deixar claro que qualquer atitude pode ser musical, inclusive o silêncio, demonstrando esses fatos nas atividades, conforme eles surgiam. Aproveitamos essas duas dinâmicas para trabalhar com dois conteúdos fundamentais ao trabalho: formação de naipes e regência. Nas duas primeiras aulas, ainda sem repertório definido para a criação do arranjo, realizamos um trabalho com a música Minas, de Milton Nascimento e Novelli. Utilizamos a gravação contida no disco Minas, de Milton Nascimento (1975). Minas é uma “canção instrumental” em que a melodia é entoada por vocalizes. Aproveitamos essa característica para trabalhar com texturas e com o uso da voz na música para além das palavras. Inicialmente realizamos repetidas escutas da canção, a fim de aprofundar a escuta e revelar suas camadas. A primeira escuta não foi direcionada, e procurou mapear a percepção do grupo ao escutar uma música. Trabalhamos com o aprofundamento da escuta, dissecando a canção e suas camadas. Anotamos nossas percepções a partir da escuta, e a cada repetição outras percepções vieram à tona. Associamos a percepção musical com a interpretação que

59    

cada um fez da canção, abrindo espaço para todo o tipo de observação. Tanto a sensibilidade, a emoção, quanto aspectos mais técnicos foram levantados para o grupo desenhar o quadro da canção, como uma partitura narrada. A descrição da percepção foi a notação utilizada nesse processo de transcrição. Conceitos como textura, densidade, fusão, foram trabalhados e discutidos. Cantamos algumas vezes a canção e trabalhamos em seguida com a percepção da forma, dos ritmos e das alturas, buscando um ajuste mais fino. Gestos corporais serviram de apoio para definir as alturas da melodia. O trabalho sobre a canção prosseguiu na aula seguinte, quando sugerimos que um participante traduzisse graficamente a canção, produzindo um registro gráfico, que organizou nossa percepção numa espécie de linha do tempo. Aproveitamos para trabalhar com a ideia de notação musical, como forma de consolidar a percepção de conteúdos, e utilizar o suporte visual como apoio para o aprofundamento da escuta. Lemos e interpretamos a representação, dando enfoque para os conteúdos forma e textura. Falamos da sobreposição de camadas, do adensamento da textura e dos materiais que aparecem ao longo da forma. Cantamos a canção com acompanhamento de piano, violão e a cappella. Iniciamos um processo de improvisação e experimentação sobre a melodia da segunda parte da canção. Procuramos deixar o grupo à vontade para explorar possíveis variações da melodia Utilizamos o parâmetro espaço para trabalhar com tema e variação: quem está com a melodia fica em pé, quem faz variações fica sentado. À atitude de sentar correspondemos um momento em que cada pessoa pode ficar mais consigo mesmo, prestar mais atenção ao seu som. Quando detectada a passividade de uma parte do grupo, estipulamos um formato que induzisse a todos os participantes a realizar as variações. Começaram a surgir outras experiências, como sons sibilantes, falas, outras canções sobrepostas, o que tornou as dinâmicas passaram mais soltas e interessantes. Atentamos para a permissão e para a importância do erro no processo, e para a valorização da escuta. A cada repetição, as texturas se enriqueciam de sons e experimentos. Depois dessa rodada, trabalhamos com a melodia da primeira parte. Usamos o corpo como catalisador do aprendizado, uma vez que não havia letra, desenhando a melodia no espaço. Detalhamos as alturas da melodia, criando uma espécie de partitura corporal, buscando a maior precisão possível. Em seguida, trabalhamos em duplas, organizadas frente a frente, alternando a cada frase quem canta a melodia e quem improvisa. Repetimos a

60    

experiência em roda: quem canta a melodia forma uma roda interna, quem improvisa forma uma roda externa. O trabalho aprofundado com Minas aproximou o grupo dos procedimentos ligados à criação de arranjos vocais. Foram explorados: a escuta repetida da canção, o levantamento de elementos relativos ao arranjo instrumental (através da percepção das texturas), a escrita ou transcrição da canção (em notação não convencional e em gestos corporais), a interpretação coletiva da canção e a exploração de possibilidades do uso da voz num arranjo. O parâmetro espaço esteve bastante presente nas atividades com melodia e textura. Observamos que essas duas aulas inseriram o grupo na proposta de criação vocal coletiva, apresentando os principais procedimentos e conteúdos desenvolvidos ao longo do processo. Pudemos ter contato mais aprofundado com o universo musical e comportamental dos integrantes e a partir dessa percepção definimos as atividades diretamente ligadas à criação do arranjo vocal. A escolha do repertório a ser trabalhado se deu no intervalo da segunda aula-ensaio, numa conversa informal sobre canções. O tema “Dorival Caymmi” surgiu por conta do centenário do nascimento do compositor; ao conversar (e cantarolar) sobre sua obra, descobrimos um terreno fértil para a exploração. Todos conheciam ao menos uma canção de Caymmi. Sugerimos que cada um pesquisasse a obra do compositor, escolhendo uma ou duas canções. Deixamos a cargo dos participantes o critério de seleção dessas obras.

3.2.4. Terceira aula-ensaio Na terceira aula-ensaio demos continuidade ao trabalho corporal e vocal que vínhamos desenvolvendo, estimulando a pesquisa individual e atentando para as estruturas do corpo ligadas à respiração e ao canto. Ainda predominaram exercícios relativos ao nível físico da voz, com a insersão de “Ressonância com a sílaba [ning]” e “Exercícios de vibração lingual ou labial em intervalos de quinta justa e oitava justa”. Nessa aula, demos continuidade ao trabalho com texturas a partir da leitura de imagens extraídas do livro O Ouvido Pensante de Murray Schafer (1990). O trabalho, descrito na seção “Exercícios” desse relatório, contribuiu com a redução de julgamentos e com a aceitação do “erro”. Além disso, contribuiu com a ampliação do repertório de gestos sonoros possíveis de se produzir com a voz. Um dos participantes se mostrou surpreso com as possibilidades

61    

descobertas. Nas palavras de Laura: “Nunca pensei que minha voz pudesse realizar sons tão diversos”. Iniciamos o processo de criação do arranjo vocal sobre a obra de Caymmi. O grupo não se definiu por nenhuma canção específica e as pesquisas sobre o repertório do compositor foram vagas. Optamos por desafiar o grupo, numa dinâmica que chamamos de policanção. A dinâmica consiste em cantar simultaneamente diversas canções (no caso de Dorival Caymmi), sendo levados pelo contágio e pela memória. Realizamos a dinâmica em dois tempos. Num primeiro momento, partindo do silêncio, com cada um cantando para si, murmurando e aos poucos deixando o som se manifestar mais claramente na roda. O objetivo foi desenvolver a escuta interna e externa, o acesso à memória e a expressão sonora. O grupo encontrou dificuldade em realizar as duas ações simultaneamente. Na segunda rodada, restringimos o universo da obra de Caymmi às canções que continham a palavra MAR, num procedimento chamado “modulação por palavra pivô”. Antes de dar início à segunda rodada, o grupo considerou necessário relembrar alguns trechos de canções, que cantamos em grupo. Quando o grupo se apropriou vocalmente de cada trecho, refizemos a dinâmica, e o resultado foi completamente diferente. Improvisamos sobre canções com tema MAR, criando uma textura interessante, que nos remeteu ao movimento das ondas. Outras canções surgiram naturalmente das ondas desse mar, e a rodada terminou com o grupo cantando junto a canção “Maracangalha”, já com uma sugestão de arranjo vocal. Escutamos o procedimento, e após a escuta, o grupo estava suspirando e comentando em voz sussurrada e suave, como se um mar, ventos e ondas permeassem o espaço. Concordamos, depois dessa escuta, que já tínhamos um começo para o arranjo, uma seção com textura que remetesse à paisagem praieira, com trechos de canções emergindo e submergindo dessa textura, e uma chegada coletiva à “Maracangalha”. [áudio 05: vozeiral ensaio policançao_caymmi] A aula ainda prosseguiu com outras experiências sobre as diversas canções que afloraram a partir dessa dinâmica.

62    

3.2.5. Quarta e quinta aulas-ensaios Observamos no grupo como a relação com o parâmetro espaço estava influenciando o trabalho e contribuindo para ampliar a percepção e aprofundar a escuta. Dessa maneira, trabalhamos sobre a sequência “Caminhar no espaço”, exercício extraído de vivências com a Técnica dos Six Viewpoints, a fim de isolar esse parâmetro e explora-lo em diálogo com a escuta. Realizamos a sequência conforme descrita na seção Exercícios desse relatório, e após a dinâmica discutimos brevemente sobre a experiência. O grupo observou sua maneira de ocupar o espaço, e como a mudança do foco da atenção transformou sua atitude com relação ao movimento, à posição e à percepção dos sons. Também foi comentada a questão da tomada de atitude e das escolhas conscientes, e a dificuldade de se concentrar em dois ou mais parâmetros simultâneos. Quando a instrução se referia apenas à percepção do espaço e da posição, pareceu ao grupo mais fácil executar o exercício. Quando inserimos a atitude de caminhar produzindo um som, muitos não conseguiram manter a mesma atenção para o espaço. Trabalhamos então com a atitude diante do som. Buscamos qualificar a escuta a partir da relação afetiva que se estabelece com os sons. Estimulamos o grupo a se aproximar e se afastar dos sons a partir da polarização entre agradável e desagradável. Para isso era necessário, escutar, julgar, escolher e realizar a ação. Ressaltamos ainda a importância de se ter clareza na escolha, e manifestá-la na tomada de atitude. Primeiro realizamos esse exercício apenas com os sons do ambiente e em seguida produzindo nossos próprios sons. Na discussão sobre o exercício, percebemos o quanto ele contribuiu para requalificar alguns julgamentos que fazemos da nossa própria produção vocal. Muitas vezes não nos permitimos cantar de uma ou outra maneira por conta do que julgamos ser belo ou feio em nossa voz. Porém, esse pensamento nos afasta do fazer artístico, na medida em que limita nossas possibilidades expressivas. Dentro de um ambiente lúdico e descompromissado, pudemos explorar feiura e beleza, sons agradáveis e desagradáveis, e descobrir novas possibilidades vocais, em função de um efeito que se quer provocar. Esse processo trouxe à tona a questão dos julgamentos e apontou para a necessidade de realizar um trabalho técnico vocal em outro nível. Foi interessante observar a necessidade do grupo de entrar no território da técnica vocal, e perceber o momento que essa demanda nasceu. Até então, vínhamos trabalhando com o despertar da consciência corporal e da escuta para o corpo e para o som, pontuando o aquecimento com alguns exercícios de nível técnico,

63    

sem, no entanto, nos aprofundar nessa seara. Quando o grupo mergulhou no processo de elaboração do arranjo, novas demandas surgiram do encontro entre voz e linguagem. Observamos o quanto os julgamentos precisavam ser requalificados e optamos coletivamente por nos aprofundar em procedimentos ligados à elaboração técnica vocal, como caminho para essa construção. Com relação às dinâmicas de improvisação, realizamos o exercício “Um-dois”, extraído de uma vivência recente em improvisação livre. Esse exercício apresenta grande restrição criativa, uma vez que só se pode dizer as palavras UM e DOIS dentro do pulso estipulado pelo grupo. A dinâmica sugere a formação de dois naipes e favorece a percepção da mudança de timbre conforme os naipes vão se completando com a entrada das vozes. [áudio 06: vozeiral ensaio um_dois] Trabalhamos com a ideia de escuta panorâmica, que pressupõe perceber todas as vozes em ação conjunta. Nessa escuta, procuramos atentar para o máximo de detalhes, tentando identificar cada voz no todo e o todo formado pela composição das vozes. Como o universo sonoro é bastante restrito, abre-se espaço para desenvolver essa percepção durante o fazer musical. Naturalmente o grupo foi realizando variações vocais sobre as palavras UM e DOIS, e a cada repetição fomos estimulando a criação de diálogos internos, a partir da escuta e do contágio. Trabalhamos com variações silábicas, utilizando as sílabas [tim] e [uê] (já trabalhadas em outra dinâmica), com a variação para “Um-dois-três” e em seguida com a distensão do pulso. [áudio 07: vozeiral ensaio um_dois_tim_ue] Retomamos a “Sequência minimal”, que também parte da noção de pulso e de sons curtos formando uma textura. Realizamos a sequência experimentando regências e em seguida estimulando os integrantes a criarem pequenos solos vocais sobre a textura formada. Neste momento, o trabalho com regência contribuiu com o processo de escuta e seleção consciente do som desenvolvido nas dinâmicas anteriores. Já a dinâmica com pequenos solos vocais foi relativa às demandas do arranjo em constituição (em que de uma textura criada pelo grupo, pequenos solos emergem e submergem). Nos pequenos solos trabalhamos com o conceito de contágio, que pressupõe a escuta e assimilação do som do outro. Para trabalhar sobre o arranjo vocal, retomamos algumas canções levantadas pelo grupo, e cantamos os trechos escolhidos em uníssono e em seguida em cânone livre. A proposta de trabalhar com os cânones livres partiu de um dos integrantes do grupo e consistiu em cantar as melodias com atrasos, defasagens e distensões temporais.

64    

Na quinta aula Max trouxe uma sugestão de partitura gráfica como proposta para o arranjo. A partitura continha elementos trabalhados nos gráficos de Schafer, e organizava as ideias desenvolvidas no arranjo da seguinte maneira: primeira seção com sons sibilantes relativos ao VENTO; segunda seção com textura sobre o MAR; terceira seção com canções de caráter rítmico acentuado.

 

Figura 6 – Primeiras partituras gráficas para o arranjo coletivo  

Com a partitura, agrupamos as canções por conteúdos temáticos e realizamos algumas leituras do arranjo. Desse processo fixamos a estrutura do mesmo: iniciar com o VENTO (sons sibilantes), passar pelo MAR (textura com notas longas, palavra MAR e temas melódicos que emergem e submergem), chegar à TERRA (parte rítmica), acabar em MARACANGALHA (com proposta de abertura de vozes). Observamos que a estrutura do arranjo foi reflexa do processo vivenciado nas atividades de aula, contendo os principais conteúdos trabalhados. O conteúdo espacial é um ingrediente marcante de sua constituição e também de sua performance. Em muitos momentos, o grupo propôs movimentações e posicionamentos no espaço durante a criação e execução do arranjo. [áudio 08: vozeiral ensaio primeira versao arranjo Caymmi]

3.2.6. Reflexões sobre o processo Chegamos ao meio do processo. Analisando a sequência de atividades, observamos que o trabalho resultou na criação de um arranjo coerente com o que desenvolvemos em aula. Em conversa com o grupo, chegamos à conclusão de que não daríamos início à outra criação, e sim nos dedicaríamos ao arranjo em criação: consideramos necessário refinar sua concepção quanto preparar sua performance.

65    

Avaliando a participação do grupo até o momento, percebemos uma polarização com relação à atitude dos integrantes. A essa altura do trabalho, já estávamos com o grupo definido, formado por seis pessoas (incluindo o professor). Desse grupo, duas participantes tinham uma conduta bastante passiva diante das atividades, apesar de todo o trabalho com julgamentos e com o desenvolvimento do estado de atenção. Durante os procedimentos relativos à técnica vocal e musical, essas integrantes sentiam-se à vontade para pesquisar e cantar. No entanto, nos processos criativos, a resistência ainda era alta, havendo grande discrepância entre suas condutas e as dos demais. Esse fato também foi percebido pelo grupo, e notamos que algumas pessoas mais ativas buscavam jogar e envolver as participantes passivas, instigando e brincando musicalmente durante os exercícios, procurando estabelecer comunicações e elos. Percebemos nesse momento a necessidade de uma tomada de atitude com relação à condução do processo, a fim de integrar e acolher a todos. Compreendemos que a horizontalidade da relação entre professor e aluno, nesse grupo, havia chegado ao limite da insegurança e do medo para alguns participantes, enquanto que para outros ampliou seu potencial criativo. Tendo em vista o princípio de docente reflexivo, buscamos construir uma nova estratégia para acolher o medo e a insegurança demonstrada, sem, no entanto, cercear a liberdade conquistada pelo restante do grupo. Consideramos este o ponto culminante do trabalho, em que percebemos a situação de risco em que estávamos com relação ao desenvolvimento dos integrantes e do grupo. Como procedimento, escutamos algumas vezes as gravações das aulas-ensaios anteriores, debatemos o assunto em reuniões e conversas e recorremos à pesquisa bibliográfica e à memória das vivências em processos criativos. Nossa postura consistiu em aprofundar o trabalho técnico-vocal e musical, utilizando seus conteúdos a fim de constituir um ambiente mais seguro e acolhedor para o processo. Buscamos inserir esses procedimentos no contexto das atividades que vínhamos desenvolvendo, a fim de contemplar as diferentes demandas do grupo e continuar construindo a atitude de investigação e pesquisa nos integrantes do processo. Nas aulas-ensaios que se sucederam, analisamos essa nova abordagem.

66    

3.2.7. Sexta aula-ensaio Iniciamos a aula escutando as versões realizadas do arranjo. Procuramos dirigir a escuta para a percepção das vozes no conjunto, como forma de ativar a memória para o momento em que realizamos a gravação. Também trabalhamos sobre os conteúdos relativos a procedimentos de arranjos vocais, observando como eles apareciam no arranjo em construção, e como a articulação dos mesmos poderia contribuir para aprimorá-lo. Em seguida, realizamos o “Exercício da bola de tênis”, dando início ao aquecimento corporal. Com esse exercício, objetivamos: despertar o estado de atenção; trabalhar com a ideia de colaboração entre os participantes, tornando-os conscientes de que todos são responsáveis pelo som do grupo. Em seguida trabalhamos com alguns aquecimentos de nível físico, como o “B prolongado” e “Mastigações com som”. O aquecimento vocal foi realizado a partir do cânone “Belle Mama”. Por se tratar de um cânone com letra de rápida assimilação, utilizando material da escala maior, inicialmente o tratamos como um vocalize, cantando em uníssono em diferentes alturas. Quando o grupo se apropriou da melodia do cânone, realizamos a divisão inicialmente a duas e posteriormente a três vozes. Experimentamos o cânone em movimentos pelo espaço, associando a movimentação ao som, recuperando as atividades realizadas nas aulas anteriores. [áudio 10: vozeiral ensaio belle mama] Com relação ao arranjo vocal, nos debruçamos sobre a canção Maracangalha, a fim de definir as aberturas vocais sugeridas nas dinâmicas anteriores. Partimos de um procedimento comum a processos criativos de arranjos vocais, que é a escuta de diferentes gravações da canção, investigando possíveis materiais a serem utilizados. Escutamos e comentamos as gravações de Dorival Caymmi contida no álbum “Eu vou pra Maracangalha” de 1957 e de Tom Jobim no álbum “Antonio Brasileiro” de 1994. Da gravação de Caymmi destacamos o diálogo entre a voz e o trombone, observando como este preenche os espaços vazios da melodia, e para o coro de pastoras em uníssono na repetição da melodia. Da gravação de Jobim, notamos a alteração na melodia da segunda parte, alteração no contexto harmônico e diferença no tratamento das vozes (com relação à timbragem). Cantamos a canção com apoio do violão, escolhemos um tom confortável para o grupo e iniciamos o processo de improvisação vocal sobre a melodia, buscando explorar os elementos escutados e consolidar as escolhas a partir da escuta. [áudio 09: vozeiral ensaio maracangalha]

67    

3.2.8. Sétima e oitava aulas-ensaios Nas duas aulas que seguiram, mergulhamos no universo da técnica vocal. Realizamos a chegada e alguns aquecimentos de nível físico, que a essa altura já estavam incorporados ao trabalho. Em seguida, iniciamos uma exploração técnica da voz, através de vocalizes utilizando material da escala maior. Como vínhamos tratando dos espaços de ressonância do corpo, de associações entre espaço e som e cânones, procuramos incorporar esses processos ao trabalho técnico. Algumas questões foram levantadas pelo grupo: É preciso fazer força para cantar? Como se pode ter uma voz com volume? Em atenção a essa questão, conduzimos o trabalho relacionando volume ao movimento de ar e à ressonância, apontando para a diferença entre cantar forte e usar a força para cantar. É preciso equilibrar a saída de ar com a sua passagem pelas pregas vocais: “Se a laringe está relaxada, e com os músculos equilibrados, tonificados e não tensos, o som acontece com mais volume” (AMIN, 2014). As trocas de ar entre nós e o ambiente se dão através da respiração, seja pulmonar, seja cutânea. Da mesma maneira, a percepção do som se dá tanto pela escuta auditiva quanto por uma espécie de escuta da pele, escuta do tato, que percebe a vibração ao se tocar uma superfície que reage às ondas sonoras. Realizamos uma sequência de procedimentos visando estimular essa percepção: - com a boca aberta, contrair o abdômen, deixando o ar sair em grande fluxo, experimentando a sensação de ar quente; - deixar a voz se manifestar na saída de ar, gradualmente, do suspiro ao som um pouco mais sustentado, observando possíveis mudanças na conduta corporal com a fonação; - aos poucos, experimentar aumentar a pressão na saída de ar, sem contrair a laringe, provocando sons curtos e mais densos e volumosos. O grupo interrompeu o processo com uma série de questões, sobre como fazer, ou o que fazer. Percebemos que havia uma necessidade de elaboração mental dissociada da experiência corporal. Curiosamente uma integrante comentou; “Na verdade, quanto mais porquês, mais a garganta fecha”. Aproveitamos esse comentário para enfatizar o processo de aprendizado do corpo, e relacionamos à experiência com dança e eutonia. A atenção deve estar voltada para as sensações provocadas pelos exercícios e procedimentos. Observamos, em atenção a nossa pesquisa teórica, o quanto a percepção está dissociada dos processos corporais, constatando o quanto é importante trabalhar sobre esse

68    

saber. O saber do corpo está negligenciado em favor de uma supervalorização da mente e da intelectualidade. No entanto, cantar é uma ação corporal integral, que envolve processos afetivos, mentais e corporais de maneira integrada. Um não pode se subjugar a outro. Seguimos então com a pesquisa da manifestação do som no corpo, em exercícios de ressonância com a consoante [m], com alturas escolhidas livremente pelos participantes: a instrução foi “deixar o corpo escolher a altura”. Em seguida buscamos um uníssono coletivo e a partir do som atingido trabalhamos movimentos melódicos com intervalos de segunda maior. Esse processo foi um marco para o grupo com relação à percepção da voz em nível técnico. A partir desses procedimentos, a atitude dos integrantes com relação à voz se transformou. A mudança na maneira como conduzimos o trabalho contribuiu para essa transformação, e observamos que era necessário manter nossa conduta de sempre chamar atenção para o saber do corpo, e constantemente estimular essa percepção, utilizando os procedimentos e conteúdos relativos à técnica vocal, satisfazendo a mente e abrindo espaço para o corpo se perceber. Nessas duas aulas trabalhamos ainda com dois exercícios vocais em cânone. Os aquecimentos se concluíram com o cânone Nhamandu Mirin. Os cânones são grandes facilitadores para o trabalho que pressupõe independência das vozes, por se tratar de uma mesma melodia cantada em defasagem: a repetição por defasagem ativa a memória e desenvolve a escuta polifônica. Listamos as características de Nhamandu Mirin que justificaram sua escolha: - a melodia utiliza as notas de um acorde maior e sua sobreposição no cânone gera o acorde; - a relação intervalar entre as sílabas é ampla (no mínimo uma terça): isso facilita a percepção das alturas e gera uma partitura corporal fácil de ser compreendida e executada; - é uma reza tupi-guarani dedicada ao espírito sol, um pedido para iluminação do caminho; remete a um ambiente místico e meditativo; - junto à melodia, é comum na tradição indígena dançar em roda, com movimentos que além de marcarem o ritmo, promovem uma conexão das pessoas com a terra e com o céu. [áudio 11: vozeiral ensaio nhamandumirin] Depois dos aquecimentos, retomamos o arranjo sobre Dorival Caymmi, realizando escutas das aulas anteriores e retomando a partitura. Discutimos sobre a proposta de notação, e concluímos que era necessário trabalhar sobre a parte rítmica do arranjo, tanto na execução quanto na escrita.

69    

3.2.9. Nona aula-ensaio Nesse dia o grupo foi convidado para assistir a uma aula sobre Dorival Caymmi, ministrada pela cantora Naira Marcatto. O objetivo da aula foi desenvolver a escuta ativa a partir de elementos musicais da obra de Caymmi, associados a dados biográficos do compositor. Essa pausa no fazer, e a atividade de escutar foi bastante importante para o grupo. Os participantes de deram conta do quanto podem aprender com a escuta a partir dos parâmetros trabalhados. Detalhes como mudanças nas características da voz de Caymmi a cada canção, a relação entre o violão e a paisagem sonora relativa à canção, se mostraram reveladores. O grupo participou ativamente da aula, com perguntas e contribuições a partir da experiência vivenciada até o momento. Na sequência, debatemos sobre a escuta e o processo do arranjo, buscando tecer relações e fixar os novos conteúdos. Em seguida, cantamos o arranjo “à seco”, apenas com a memória do processo. Aproveitamos o momento para conversar sobre a experiência, e sobre os procedimentos adotados, avaliar o arranjo e traçar as próximas atividades, uma vez que estávamos nos aproximando do encerramento desse ciclo, e em breve teríamos uma performance. Destacamos a fala de Patrícia sobre a experiência: Eu que não tenho nenhuma experiência com o cantar, é... a gente está fazendo um trabalho que é bem fora de um padrão mais tradicional. Eu falo com as pessoas que estou indo na aula de canto coral, as pessoas pensam que a gente está aqui sentado com a partitura na frente, porque as pessoas têm essa visão. Mas aí eu explico que não, que a gente trabalha mais com improvisação, e aí até veio comentários de que improvisação é uma coisa mais evoluída no canto, você nunca cantou na vida e está trabalhando coisa de improvisação? É, mas sem esse compromisso, é uma questão de deixar soltar. E é interessante para mim, como eu nunca cantei, eu de fato não tenho consciência de várias coisas que eu possa fazer, que eu consiga fazer, que resultado isso vai dar em termos de percepção da música mesmo, e depois você vai escutar e percebe que está bem legal, mas no fazer ainda parece bem estranho. É gostoso estar fazendo, mas será que isso é legal estar escutando? A gente está envolvido no processo, mas depois você vai escutar e não sabe exatamente o que isso causa nos outros. (Patrícia Romano, 2014)

3.2.10. Das três últimas aulas O tema das três últimas aulas foi a “falta de criatividade”. Apesar do aparente contrassenso, a “falta de criatividade” tem uma importância ao processo criativo, atuando na

70    

requalificação de julgamentos, e direcionando a atenção dos participantes para os procedimentos técnicos que conduzem o grupo no processo de criação. Trouxemos essa abordagem do workshop em Técnica dos Six Viewpoints voltada para improvisação vocal, ministrado por Marcelo Gama em fevereiro de 2013. Naquela situação, tratava-se de um grupo excessivamente ativo e criativo, que não conseguia atingir uma realização musical coletiva, por conta do excesso de atitudes. A “falta de criatividade” aplicada àquele caso redimensionou a ação dos participantes, redirecionando sua atenção para a realização técnica. Imediatamente o grupo percebeu a mudança em sua produção sonora e passou a interagir musicalmente. Observamos que criar e improvisar foram ações que geraram uma demanda por ser criativo, inovador, original. Isso refletiu na atitude dos participantes de duas maneiras antagônicas: alguns viram o caminho aberto para se lançar no desconhecido e experimentar gestos e sons inéditos que foram incluídos no vocabulário vocal do grupo; outros se sentiram coagidos por não se julgarem criativos ou músicos o suficiente para criar, apesar da insistência em acolher cada expressão e percepção. De fato, são reações esperadas em um grupo, e é importante agir no sentido de equilibrar os polos e abrir caminho para que todos possam se sentir igualmente responsáveis e criadores no processo. A “falta de criatividade” pressupõe uma abordagem técnica dos processos vivenciados, atuando diretamente sobre os julgamentos. É nesse momento que a técnica atua como libertadora e condutora do processo. Observamos que a apropriação do vocabulário técnico vocal e musical amplia a complexidade sonora da realização musical. Para tratar da “falta de criatividade”, realizamos atividades vocais isolando os parâmetros do som. Trabalhamos com os exercícios “Fonte geradora” e “Triângulo rotativo”. Inicialmente discutimos sobre a dificuldade de se isolar um parâmetro do som, e abordamos principalmente a questão do timbre, diante da observação de que ao mudar o cantor naturalmente o timbre muda. Por outro lado, ao isolar um parâmetro, é necessário que exista grande concentração na escuta e no fazer, para conseguir realizar uma variação precisa. A instrução “falta de criatividade” foi dada não apenas aos que variavam os sons, como também às fontes geradoras. Quanto mais simples e claro o gesto vocal, mais fácil de ser transformado pelo grupo. A resultante sonora, no entanto, foi adquirindo interesse e ganhando complexidade a cada rodada, conforme as variações se sobrepunham. Os parâmetros do som levavam os participantes a realizar gestos sonoros inéditos a seu repertório original.

71    

Como aquecimento trabalhamos também sobre exercícios extraídos do método do passo, e com “Improvisação com ressonâncias, ou som dos sinos”. Com relação ao arranjo, ensaiamos sua performance e finalizamos a partitura gráfica. Nos ensaios, executamos o arranjo em diferentes velocidades, explorando os extremos: passar por todas as partes o mais rápido possível; demorar muito em cada parte; alternar as velocidades parte a parte. Trabalhamos também com o contágio, buscando ter uma rápida resposta do grupo às mudanças de ambiente que cada parte do arranjo sugeriu. [áudio 12: vozeiral_dois ensaios da suite caymmi rapido lento]

3.3. O arranjo produzido pelo grupo O arranjo é constituído de quatro seções, assim definidas: I – Introdução (O Vento); II – Mar; III – Pescaria (O Canoeiro); IV – Maracangalha. Introdução (utilizando a canção O Vento): sibilância das consoantes que sugerem a ventania, o assobio do tema da canção, as palavras “chamar” e “vento”, sussurradas e levemente entoadas. Transição do vento para o mar, as consoantes sibilantes vão adquirindo corpo, ganhando sons vocais, e a palavra MAR emerge de CHAMAR. A repetição da palavra MAR pelas diversas vozes do grupo cria uma textura associada ao movimento das ondas do mar.

 

Figura 7 – Partitura gráfica do arranjo produzido (prancha 1)

72    

Mar: sobre a textura mar são entoados os principais motivos das canções praieiras de Caymmi. Os motivos são sugeridos aleatoriamente pelos intérpretes, conforme a textura se articula com a memória. Os motivos podem ser ecoados em cânone livre, ou transformados. É muito comum um motivo sugerir outro, procedimento que denominamos modulação por palavra pivô. Ao final dessa seção surge a figura feminina, relacionada ao mar. Essa seção finaliza com a chegada do pescador à praia [ou à terra], marcada na palavra CHEGUEI, entoada em uníssono ou com pequenas defasagens entre os intérpretes.

 

Figura 8 – Partitura gráfica do arranjo produzido (prancha 2)

Pescaria (O Canoeiro): motivos rítmicos e melódicos extraídos da canção “Pescaria” são apresentados, propondo uma remontagem (desmontagem?) não linear da canção. O aspecto rítmico é valorizado. As palavras são reduzidas aos fonemas, havendo grande interesse sobre a articulação das consoantes; consoantes explosivas e sons sibilantes curtos e fortes se alternam entre trechos melódicos de caráter entoativo (característica marcante da obra de Caymmi). Esse processo é acrescido de aceleração no andamento e adensamento da textura.

73    

FIGURA 9 – Partitura gráfica do arranjo produzido (prancha 3) Maracangalha: do adensamento da textura de Pescaria, surge Maracangalha, cantada a primeira vez em uníssono por todos os intérpretes e em seguida com o arranjo vocal criado pelo grupo a partir de escutas de duas gravações (Dorival Caymmi e Tom Jobim).

74    

75    

76    

Figura 9 - Partitura da seção Maracangalha, do arranjo produzido.

3.4. Análise do arranjo produzido O arranjo produzido refletiu o processo do grupo. Não se tratou de um arranjo para uma canção, mas de uma espécie de “suíte” sobre a obra do compositor, reunindo canções emblemáticas de seu repertório. Quando realizamos a primeira dinâmica em policanções, imaginamos que o grupo iria naturalmente escolher uma peça para trabalhar. De fato, isso aconteceu com a canção “Maracangalha”, que foi a única que todos sabiam de cor e cantaram em uníssono. No entanto, a experiência com as policanções com modulação sobre a palavra pivô MAR apresentou um resultado sonoro surpreendente para o grupo. Depois da escuta, foi consensual utilizar esse processo no arranjo. O grupo acabou criando um arranjo bastante aberto, que confere muita liberdade ao intérprete. A notação adotada para a partitura deixa clara essa opção. As três primeiras seções são, em essência, improvisações sobre os temas lítero-musicais de algumas canções de Caymmi. Uma improvisação sobre o VENTO, uma sobre o MAR e outra sobre os elementos rítmicos da canção “Pescaria”.

77    

As primeiras execuções do arranjo foram demasiado longas, segundo avaliação do próprio grupo. Nos últimos ensaios chegamos ao tempo de aproximadamente seis minutos, que consideramos bastante justo e satisfatório para a exposição de todas as ideias, e definimos durações aproximadas para cada seção, sendo o VENTO a seção mais curta, e o MAR a mais longa (e a que contém mais informações). [áudio 13: vozeiral ensaio geral suíte]

3.5. Da performance do arranjo O grupo enfrentou dificuldades na performance ao vivo do arranjo, devido à inexperiência de muitos de seus integrantes (para alguns essa era a primeira vez que subiam a um palco) e às características do arranjo produzido. Uma situação de performance é sempre desafiadora, e uma estreia é sempre envolta de expectativas, medos e tensões. Havia no grupo uma integrante que não queria de maneira alguma se apresentar, e que resistiu até o último momento a participar. Cuidamos para que não se sentisse obrigada, e debatemos sobre o significado da performance e quais os aprendizados se pode ter dessa situação. Ao final, essa integrante participou da apresentação, e foi interessante, pois ela pode perceber que todo o grupo estava bastante nervoso, mas ao mesmo tempo concentrado. Não consideramos que foi a melhor execução do arranjo (talvez não tenha sido a pior), porém nos sentimos bastante unidos e acredito que demos um passo na construção de uma cumplicidade fundamental para o trabalho. Estabelecemos comunicação entre nós e encaramos o desafio de realizar um arranjo aberto, improvisado e complexo (que criamos!). Além do nervosismo da estreia, o tempo de trabalho não favoreceu a performance ao vivo do arranjo. Pela característica do grupo e pelo desenrolar do processo, julgamos que seria necessário ao menos um mês a mais de trabalho sobre a requalificação dos julgamentos e a incorporação de conteúdos relativos ao arranjo criado. [vídeo 14: performance vozeiral]

78    

CONSIDERAÇÕES FINAIS Lançamo-nos no desafio de trabalhar com criação coletiva de arranjos no ambiente da canção, a partir da formação de um grupo aleatório e heterogêneo, com objetivo de construir um trabalho musical de dentro para fora, contemplando a diversidade. Buscamos estabelecer uma relação horizontal com os participantes, o que em certa medida foi possível e perceptível a partir do momento que alguns se sentiram confortáveis para sugerir atividades nas aulas. Percebemos que a horizontalidade também é conquistada, conforme o grupo se apropria dos procedimentos, incorpora os conteúdos e se torna íntimo do processo. A horizontalidade pressupõe um ambiente coletivo de pesquisa e investigação, que deve incluir os diversos saberes e especialidades de cada um. Porém a proposta de horizontalizar o processo entrou em conflito com as expectativas de alguns participantes, que desejavam informações mais precisas, e reagiram com medo ou passividade diante da proposta. No entanto, não abandonaram o processo, continuaram se desafiando, à suas maneiras. Acolhemos isso, e compreendemos que era preciso mudar de conduta sem abandonar o ambiente de pesquisa e a proposta de explorar criativamente os conteúdos. Buscamos uma maneira de restringir e delimitar ainda mais o território dos conteúdos trabalhados, e conduzir as atividades a passos mais lentos, insistindo em direcionar a atenção para a escuta, a percepção e a atitude corporal. Notamos que existe uma distância entre elaboração mental e saber corporal a ser superada, e que para isso acontecer é necessário desenvolver o estado de percepção e atenção. No entanto, esse desenvolvimento varia de pessoa para pessoa, de grupo para grupo; independe do grau de musicalização dos participantes, ou da experiência pessoal com grupos. Só se pode ter a dimensão disso no decorrer das atividades. Nesse sentido, tanto faz um grupo formado por participantes com ampla vivência musical, ou um grupo iniciante. Todos são iniciantes naquela situação particular de interação e troca. Uma característica desse trabalho também está em objetivar o processo. Interessa-nos explorar como cada um processa seu aprendizado e se apropria do mesmo e como isso se manifesta no grupo. O processo de aprendizagem corporal leva o tempo de cada corpo, e esse tempo não se encerra no período de uma pesquisa. Por ser orgânico e pessoal, é construído a partir da história de cada participante. Percebemos que realizamos consideráveis conquistas no sentido da expressão vocal e musical do grupo.

79    

Observamos também que esse trabalho prescinde da escuta, no entanto, apesar de todas as aulas-ensaios serem registradas em áudio e disponibilizadas aos participantes, nenhum deles (à exceção do professor) parou durante o espaço entre os encontros para se dedicar à escuta. Todas as escutas do processo foram realizadas apenas no espaço dos encontros. Isso influenciou no andamento do trabalho. Os áudios eram nosso registro, nossas “partituras”. Acessá-los com certeza alimentaria a memória do que foi realizado e estabeleceria outro vínculo com as atividades, além de contribuir com o aprendizado individual. Para nós, poder registrar os encontros e escutá-los depois, nos deu outra dimensão de nossa atuação. Além de ser fonte indispensável para a elaboração das atividades, nos permitiu desenvolver um olhar distanciado do processo, uma vez que nos colocamos como pesquisadores, em constante atividade junto ao grupo.

80    

REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. O obvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. BOGART, Anne; LANDAU, Tina. The Viewpoints book: A practical guide to the viewpoints and composition. New York: Theatre Communications Group, 2005. BRITO, Teca Alencar de. Koellreutter educador: O humano como objetivo da educação musical. São Paulo: Peirópolis, 2001. CAYMMI, Stella Tereza Aponte. Dorival Caymmi: o mar e o tempo. São Paulo: Editora 34. 2001. DASCAL, Miriam. Eutonia: o saber do corpo. São Paulo: Editora Senac, 2008. FONTERRADA, Marisa Trench de Oliveira. De Tramas e fios: Um ensaio sobre música e educação. São Paulo: UNESP, 2008. GAINZA, Violeta Hemsy de. Conversas com Gerda Alexander: vida e pensamento da criadora da eutonia. Tradução Cintia Avila de Carvalho. São Paulo: Summus, 1997. GAINZA, Violeta Hemsy de. La Improvisación musical. Buenos Aires: Melos de Ricordi Americana, 2009. GRAMANI, José Eduardo. Rítmica.São Paulo: Perspectiva. 2004. HAUCK-SILVA, Caiti. Preparação vocal em coros comunitários: estratégias pedagógicas para construção vocal no Comunicantus: laboratório coral do departamento de Música da ECA-USP. São Paulo, 2012. 193f. Dissertação (Mestrado em Música) USP. LATORRE, Maria Consiglia Raphaela Carozzo. Sonoridades múltiplas: práticas criativas e interações poético-estéticas para uma educação sonoro-musical na contemporaneidade. Fortaleza, 2014. 222f. Tese (Doutorado em Educação Brasileira). UFC. MACHADO, Regina. A Voz na canção popular brasileira: um estudo sobre a vanguarda paulista. Campinas, 2007. 114f. Dissertação (Mestrado em Música) UNICAMP. MILLER, Jussara. A Escuta do corpo: sistematização da técnica Klauss Vianna. São Paulo: Summus, 2007. PEREIRA, André Protasio. Arranjo vocal: definição e poiesis. XV CONGRESSO DA ANPPOM, Rio de Janeiro, Anais... p. 67-74. 2005 RISTAD, Eloise. A Soprano on her head: Right-side-up reflections on life and other performances. Moab: [s.n.], 1982. SCHAFER, R. Murray. O Ouvido pensante. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1990. SEINCMAN, Eduardo. Do Tempo musical. São Paulo: Via Lettera, 2001.

81    

SIMONOVICH, Alejandro. Apertura, identidad y musicalización: bases para uma educación musical latinoamericana. Buenos Aires: FLADEM, 2009. STRAVINSKY, Igor. Poética musical em 6 lições. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1996 TATIT, Luiz. O Cancionista. São Paulo: EDUSP, 2002. __________. O Século da canção. Cotia: Ateliê Editorial, 2004. TEIXEIRA, Paulo Frederico de Andrade. Samuel Kerr: um recorte analítico para performance de seus arranjos. São Paulo, 2013. 179f. Dissertação (Mestrado em Música) USP. ZUMTHOR, Paul. Escritura e nomadismo: entrevistas e ensaios. Trad. J. P. Ferreira e S. Queiroz. Cotia: Ateliê Editorial, 2005. Sítios na internet: www.fladem.info www.sixviewpoints.com www.ferenandomachado.com

82    

ANEXO 1 – Exemplos audio-visuais Este anexo contém mídia eletrônica (DVD) com os exemplos em áudio e video destacados no corpo do trabalho, a saber: 01 berimbau aula aberta 02 vozeiral ensaio notas longas vogais 03 vozeiral ensaio tim-ue 04 vozeiral ensaio sequencia minimal regência 05 vozeiral ensaio policançao_caymmi 06 vozeiral ensaio um_dois 07 vozeiral ensaio um_dois_tim_ue 08 vozeiral ensaio primeira versão arranjo Caymmi 09 vozeiral ensaio maracangalha 10 vozeiral ensaio belle mama 11 vozeiral ensaio nhamandumirin 12 vozeiral_dois ensaios da suite caymmi rapido lento 13 vozeiral ensaio geral suíte 14 performance vozeiral Os mesmos podem ser encontrados no endereço eletrônico a seguir: https://www.dropbox.com/sh/9ptxmuws2i0crod/AACEM-bchy9fePX0a7UoB7Sxa

83    

ANEXO II – Depoimentos dos participantes Achei o processo com o grupo bem interessante. Acredito que abriu portas para o território da criatividade/flexibilidade. É um trabalho bem desafiador porque sou muito acostumada com a estrutura/organização. Serviu para questionar o conceito de certo/ errado, bonito/ feio. E serviu para valorizar o trabalho em grupo. (Clarice Yokoya, funcionária pública da área de direito, estudante de música). Os arranjos trabalhados no processo criativo, a partir da improvisação de elementos sonoros inspirados na paisagem “Caymiana”, contribuíram para o desenvolvimento de minha percepção interna e externa-coletiva. O espaço etéreo em que resultou o primeiro movimento foi de difícil rompimento, pois acredito que retrata a essência musical do grupo. Pensar em novas possibilidades capazes de nos conduzir à concretude da terra e à luz solar foi o maior desafio. (Fabiana Pedroso, atriz e estudante de canto). Participar do Vozeiral foi importante na minha formação, pois pude praticar e conhecer mais exercícios de técnica vocal e por me aprofundar nos processos de criação coletiva em um grupo bastante heterogênio. Sou músico, professor e estudo improvisação livre há quatro anos. Por ter uma mente criativa e veloz é comum que meu excesso de atividade no grupo “intimide” aqueles mais tímidos e menos criativos. No Vozeiral pude exercitar como manter a criatividade de maneira convidativa com os outros integrantes, ou seja, trabalhando mais com respostas e aproveitando ao máximo o pouco material fornecido pelos “tímidos”. A criação de um arranjo aberto do Caymmi foi importante para explorar as texturas como estrutura do arranjo. A possibilidade de obter resultados bem diferentes a cada repetição torna a escuta ativa pois não fica viciada. Cantar assim é sempre criar. (Max Schenkman, músico e educador, graduando em licenciatura em música). Pra mim todo esse processo de trabalho com voz e sonoridade é bem novo. É uma exploração que estou curtindo. Percebo minha produção vocal em conjunto com o grupo e em cada indivíduo e pequenas descobertas e percepções me levam a ter mais consciência da minha capacidade e com isso consigo aos poucos assumir mais controle destas produções.

84    

O processo livre da improvisação também é bem interessante. O exercício de se arriscar é bem desafiador pra mim, mas tenho me sentido à vontade, ou pelo menos, o grupo, com os encontros, vai ganhando mais confiança de trabalharmos nisso juntos. Por outro lado gostaria de trabalhar mais afinação, desenvolver mais o potencial da minha voz e não sei se para isso deveria procurar por aulas particulares. Acho legal todo o processo que estamos fazendo, mas talvez em alguns momentos trazer orientações mais definidas ajudaria a chegarmos mais rápido a um resultado sonoro com mais equilíbrio de improvisação e produção de voz. Às vezes penso que o resultado é mais interessante a nossos olhos, já que estamos em todo o processo, mas nem tanto a quem está de fora e escuta esse resultado pela primeira vez. (Patrícia Romano, professora de línguas).

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.