Proença, Cortesão, Sérgio e o Grupo Seara Nova - Amon Pinho, António Pedro Mesquita e Romana Valente Pinho, organizadores

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Descrição do Produto

Proença, Cortesão, Sérgio e o Grupo Seara Nova

Organização Amon Pinho António Pedro Mesquita Romana Valente Pinho

Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa 2015

Amon Pinho • Anita Vilar - António Almodovar • António Braz Teixeira • António Cândido Franco • António Pedro Mesquita • António Reis • Carlos Leone • Celeste Natário • Daniel Pires • Duarte Drumond Braga • Duarte Ivo Cruz • Ernesto Castro Leal • Guilherme d’Oliveira Martins • João Maria de Freitas Branco • João Príncipe • Joaquim Domingues • Joaquim Romero Magalhães • José Carlos Seabra Pereira • José Manuel Garcia • José Manuel Quintas • Luís Bigotte Chorão • Luís Lóia • Luís Prista • Magda Costa Carvalho • Manuel Cândido Pimentel • Manuel Ferreira Patrício • Maria de Lourdes Sirgado Ganho • Mário Barroso • Miguel Real • Paulo Borges • Pedro Baptista • Pinharanda Gomes • Renato Epifânio • Romana Valente Pinho • Rui Lopo • Sérgio Campos Matos • Ulpiano Nascimento

Proença, Cortesão, Sérgio e o Grupo Seara Nova Organização

Amon Pinho António Pedro Mesquita Romana Valente Pinho

Preparação de originais e revisão técnica

Amon Pinho Romana Valente Pinho

FICHA TÉCNICA Título Proença, Cortesão, Sérgio e o Grupo Seara Nova

Organização Amon Pinho António Pedro Mesquita Romana Valente Pinho

Preparação de originais, revisão técnica, revisão de texto e notas editoriais Amon Pinho e Romana Valente Pinho

Comissão Científica Fernando Catroga (Universidade de Coimbra) José Esteves Pereira (Universidade Nova de Lisboa) Leonel Ribeiro dos Santos (Universidade de Lisboa) Norberto Cunha (Universidade do Minho) Pedro Calafate (Universidade de Lisboa)

Pesquisa iconográfica Amon Pinho e Romana Valente Pinho

Capa Lou Bertoni. Pintura digital a partir da capa, de autoria de Leal da Câmara, do primeiro número da revista Seara Nova

Ilustrações Pinturas digitais de Lou Bertoni a partir da capa, também da autoria de Leal da Câmara, do segundo número da revista Seara Nova e de fotografias de Raul Proença, António Sérgio e Jaime Cortesão

Editor Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa (CFUL)

Colecção ACTA 22

Apoios Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL) Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa (CFUL)

Impressão e acabamento Clássica – Artes Gráficas

Depósito legal 388340/15

ISBN 978-989-8553-34-8

ÍNDICE Prefácio................................................................................................................. 9 António Reis

Nota Introdutória.................................................................................................. 11 Amon Pinho António Pedro Mesquita Romana Valente Pinho

I. O GRUPO SEARA NOVA O Grupo Seara Nova em seus ideais e propósitos fundadores.............................. 17 Amon Pinho

A “Renascença Portuguesa” e a “Seara Nova”..................................................... 27 Pinharanda Gomes

Leonardo Coimbra e a Seara Nova......................................................................... 45 Manuel Cândido Pimentel

Depois da Renascença Portuguesa........................................................................ 55 Joaquim Domingues

Entre os movimentos da Renascença Portuguesa e da Seara Nova – da Lusitanidade à Lusofonia: o caso de Agostinho da Silva...................................... 65 Renato Epifânio

Uma efémera união de “almas republicanas”..................................................... 77 José Manuel Quintas

Sobre a revista Homens Livres. O que é a liberdade dos livres?............................. 105 Rui Lopo

O Grupo Seara Nova, a crise nacional e a “ilusão sobre os governos de técnicos”. Alguns aspectos (1921-1924).......................................................... 127 Ernesto Castro Leal

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ÍNDICE

As perspectivas educativas abertas por Faria de Vasconcelos na Seara Nova...... 137 Manuel Ferreira Patrício

A Seara Nova na actualidade.................................................................................. 145 Ulpiano Nascimento

II. RAUL PROENÇA Raul Proença: Republicano e Panfletário.............................................................. 153 Daniel Pires

A matriz socialista liberal no pensamento político de Raul Proença................... 161 António Pedro Mesquita

A ideia de democracia em Raul Proença e António Sérgio.................................... 173 António Braz Teixeira

Ordem e ditadura no pensamento de Raul Proença............................................. 183 Luís Bigotte Chorão

Os valores em Raul Proença.................................................................................. 199 Mário Barroso

O heroísmo trágico em Proença como superação do positivismo........................ 213 Pedro Baptista

Raul Proença: a moral epicurista e o homem de elite.......................................... 223 Celeste Natário

A leitura de Raul Proença do “Eterno Retorno” em Nietzsche............................ 233 Paulo Borges

E7/2060, 2061, 2062.............................................................................................. 243 Luís Prista

A enfermidade que abateu Raul Proença.............................................................. 269 Anita Vilar

ÍNDICE

III. ANTÓNIO SÉRGIO António Sérgio, a primeira Seara Nova e a República Moderna. Algumas notas...................................................................................................... 283 Guilherme d’Oliveira Martins

António Sérgio e os nacionalismos....................................................................... 293 Sérgio Campos Matos

A doutrinação económica em António Sérgio − algumas notas de leitura........... 309 António Almodovar

O idealismo de António Sérgio: Sobre algumas considerações cartesianoespinosistas.......................................................................................................... 321 Romana Valente Pinho

A percepção em António Sérgio: do sensível ao inteligível.................................. 329 Luís Lóia

“Uma filosofia para as Alforrecas”: Sérgio crítico de Bergson............................ 337 Magda Costa Carvalho

Inspirações para um ensaio: O Considerações sobre o problema da cultura............ 353 João Príncipe

Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual..................................... 371 João Maria de Freitas Branco

IV. JAIME CORTESÃO Jaime Cortesão – Pensar e cantar “a vida intensiva e expansiva” (Entre Guyau e a voz que falava baixo a S. Francisco).......................................... 425 José Carlos Seabra Pereira

Do mito da Águia ao simbolismo da Seara (modos e processos da poesia de Jaime Cortesão)..................................................................................................... 451 António Cândido Franco

Entre história e poesia, entre Pascoaes e Pessoa: Jaime Cortesão nos Inquéritos Literários de 1912 e de 1920................................................................. 463 Duarte Drumond Braga

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ÍNDICE

Jaime Cortesão contista........................................................................................ 483 Miguel Real

O teatro de Jaime Cortesão: história, cultura, política, literatura. Uma reflexão pessoal............................................................................................ 491 Duarte Ivo Cruz

A “Parábola Franciscana” de Jaime Cortesão....................................................... 503 Maria de Lourdes Sirgado Ganho

O civismo político nos homens da Seara Nova: o caso de Jaime Cortesão............ 509 Carlos Leone

António Sérgio, Jaime Cortesão e a necessidade seareira da concepção de uma História de Portugal...................................................................................... 517 Joaquim Romero Magalhães

A obra de Jaime Cortesão no contexto da historiografia portuguesa do seu tempo.................................................................................................................... 531 José Manuel Garcia

ANEXO: REPERCUSSÃO DO COLÓQUIO “PROENÇA, CORTESÃO, SÉRGIO E O GRUPO SEARA NOVA” NAS PÁGINAS DA (ACTUAL) SEARA NOVA Proença, Cortesão, Sérgio e o Grupo Seara Nova.................................................. 557 Redacção da Revista Seara Nova

Idealismo e neokantismo no pensamento de António Sérgio. ............................ 559 Romana Valente Pinho

A Seara Nova no itinerário pedagógico de Faria de Vasconcelos. ......................... 565 Manuel Ferreira Patrício

SOBRE OS AUTORES: NOTAS BIOBIBLIOGRÁFICAS............................................. 583

Prefácio

O Colóquio sobre Proença, Cortesão, Sérgio e o Grupo Seara Nova, organizado por Amon Pinho, António Pedro Mesquita e Romana Valente Pinho na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 2009, constituiu um importante acontecimento académico e, sem dúvida, um dos mais fecundos encontros científicos jamais promovidos em torno do grupo seareiro e das suas mais relevantes personalidades. E tantos foram, desde os que ocorreram na década de oitenta do passado século, assinalando os centenários dos nascimentos dessas mesmas personalidades, até ao que se realizou já na primeira década deste século sobre António Sérgio e organizado pelo Centro Regional do Porto da Universidade Católica Portuguesa. E, no entanto, de cada vez que nos aproximamos dos grandes vultos seareiros, somos sempre surpreendidos por novos ângulos de abordagem e originais aprofundamentos das múltiplas dimensões dos respectivos magistérios. Como se fossem filões inesgotáveis a inspirarem sucessivas vagas de pesquisa por parte de renovadas gerações de estudiosos. Foi o que se passou neste último colóquio na FLUL, com a feliz participação desta feita também de académicos brasileiros. Afinal, quando tudo parece já ter sido dito e escrito, descobre-se que há sempre mais alguma coisa para dizer e escrever! Ainda bem! É, a meu ver, mais uma cabal demonstração da importância histórica e filosófica desta geração de intelectuais portugueses, a quem pode caber o epíteto de “geração de ouro”. Nascidos na década de oitenta do século XIX, mas afirmando-se na vida pública, sobretudo a partir da segunda década do século XX, Proença, Sérgio e Cortesão, pelo modo como aliam a produção intelectual com a intervenção cívica e política, bem como pela intensidade dos laços afectivos que os unem, evocam irresistivelmente a famosa Geração de Setenta de Antero, Oliveira Martins e Eça, apesar de tudo o que desta os separa nos subsequentes percursos de vida e orientações ideológicas. Em comum e sempre, uma idêntica ética da missão do intelectual na cidade. Em comum também a admiração por Antero e a rejeição dos dogmas do naturalismo cientista, que entre eles estabelece a primeira ponte intelectual, como fica bem patente na apreciação crítica que Proença e Sérgio, cada qual à sua maneira, fazem da tese de Cortesão sobre Antero. No seu

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PREFÁCIO

conjunto, os três constituem-se em exemplos do modo como uma certa intelectualidade portuguesa pretendeu actualizar o melhor do século XIX, herdado da Geração de Setenta, dentro do século XX, demarcando-se ao mesmo tempo criticamente das novas correntes culturais e filosóficas do novo século. Uns e outros, porém, carregarão para a história o estigma do fracasso da intervenção dos intelectuais na transformação da pólis e da sua impotência política, traídos pela comum crença utópica na possibilidade de mudar os homens e as mentalidades através do poder das ideias. Mas das duas trindades de intelectuais, a da Geração de Setenta e a seareira, foi sem dúvida esta última a que mais longe levou essa crença. Mais coesa como grupo, dotada de um programa reformador mais estruturado e de meios de intervenção mediática de maior alcance, viu-se, porém, a breve trecho entalada entre elites intelectuais bem mais sensíveis às ideias autoritárioconservadoras, numa primeira fase, e ao marxismo, numa segunda fase. Esgotava-se o tempo do intelectual-profeta ou consciência moral guia do povo, para emergir o tempo do intelectual-instrumento quer do Estado deificado no seu chefe político, quer da classe operária representada na sua vanguarda partidária. Seriam necessárias mais algumas décadas para que, em democracia, se viesse a superar essa dialéctica entre a concepção do intelectual-instrumentalizador do poder político e a do intelectual por este instrumentalizado. Não, porém, sem que a situação actual deixe de levantar novas interrogações sobre o estatuto dos intelectuais num mundo marcado pelo fim das grandes narrativas de legitimação e pelo poder da imagem, dos media e das novas tecnologias de informação. Até para que os intelectuais não se vejam hoje condenados a um simples papel ornamental e sejam capazes de manter e até de ampliar a sua liberdade e a sua força de intervenção crítica, ainda que sem as veleidades directivas dos seareiros… É a um convite a esta reflexão crítica que a revisitação da geração de ouro seareira nos leva. Não apenas através da evocação do pensamento dos seus principais representantes, mas também do de outros que com eles se cruzaram, nomeadamente na Renascença Portuguesa. Na diversidade das temáticas abordadas em torno de cada autor, sempre com inegável qualidade e profundidade, na originalidade de algumas das análises empreendidas, este colóquio tornou-se num marco que honra os seus participantes e organizadores e não deixará de estimular novos contributos e investigações. António Reis

Nota Introdutória

Com o propósito de pensar e debater aquela que foi uma das mais importantes e longevas agremiações de intelectuais portugueses do século XX, especialistas de diferentes campos das Humanidades reuniram-se na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa nos dias 28, 29 e 30 de Outubro de 2009. Decorria então o Colóquio “Proença, Cortesão, Sérgio e o Grupo Seara Nova”, fruto de uma iniciativa promovida por investigadores das linhas de pesquisa “Pensamento Português” e “História da Filosofia” do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, e ocasião desde a qual a presente obra começou a gestar-se com o objectivo de tornar acessível a um público mais amplo os diversos estudos, análises e perspectivas, de tão expressivos resultados, que ali tiveram lugar, bem como alguns dos seus desdobramentos. Não teria como ser outro, portanto, o sentido próprio deste livro, senão o de aspirar constituir-se num plural contributo para o incremento dos estudos em torno das obras de Raul Proença (1884-1941), Jaime Cortesão (1884-1960) e António Sérgio (1883-1969), tanto quanto do movimento seareiro em seu conjunto, protagonizado que foi, como é sabido, por um dos mais paradigmáticos agrupamentos sócio-culturais e político-filosóficos dentre os que as escritas da história de Portugal nos têm dado a conhecer. Ao convidarem os leitores para uma consideração dos ditos, escritos e feitos seareiros, estão os quarenta textos que compõem este livro a proporcionar uma tematização crítica e mediada – em diferentes clivagens – dos percursos da Revista e do Grupo Seara Nova em momentos decisivos da vida política, social, cívica e cultural da nação, sucedidos no século passado. Afinal, as aspirações que animaram o que viriam a ser tais ditos, escritos e feitos começaram a nesse sentido se conformar em 1919, à época das reuniões na Biblioteca Nacional entre Raul Proença, Jaime Cortesão, Raul Brandão, Aquilino Ribeiro, Ferreira de Macedo e Luís da Câmara Reys, descontentes e preocupados que estavam com a situação caótica em que se encontrava Portugal; e a se estruturar, no primeiro semestre de 1921, em encontros no antigo Convento de São Francisco ou no Coimbrão, em casa que o escritor José das Neves Leal, amigo de Aquilino Ribeiro, tinha

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NOTA INTRODUTÓRIA

perto de Leiria. O primeiro número da Seara Nova vem a lume no dia 15 de Outubro de 1921 e traz estampado o seguinte corpo directivo: Raul Proença, Jaime Cortesão, Aquilino Ribeiro, Raul Brandão, Augusto Casimiro, António Faria de Vasconcelos, José de Azeredo Perdigão, António Ferreira de Macedo, Francisco António Correia e Luís da Câmara Reys. Estavam estes homens dispostos a salvar a República e a fazer frente aos avanços do Integralismo Lusitano. António Sérgio ainda não comparece ali porque vivia, precisamente desde 1919, no Rio de Janeiro. Passará a integrar o corpo directivo da revista só em Abril de 1923. Torna-se, no entanto, desde essa data, um dos seus mais influentes representantes e seguramente a sua figura central após o alquebrar-se de Proença. De 1939, ano em que se dá a efectiva saída de Sérgio, em diante, o periódico nunca mais será o mesmo. Acometem-no problemas de ordem administrativa e financeira; a actuação da censura e a perseguição política, que continuavam a se abater sobre os principais seareiros; a consequente quebra na regularidade e sistematicidade das tiragens; o distanciamento de colaboradores e leitores por conta de dissidências internas ou no contexto de derivas ideológicas. Se, decerto, não esqueceu o republicanismo, a resistência cívica e moral e o primado da liberdade, afunilou-se doutrinariamente – sobretudo a partir de 1959, quando acolhe o marxismo, e depois, em 1974, quando divulga efusivamente o comunismo –, e demarcou-se do criticismo que lhe era peculiar no seu início e nos tempos do apostolado sergiano. Como que inspirando-se no étimo de “seara”, desde o latim ibérico do século XIII senara, “campo de terra para semeadura”, é precisamente deste movimento de natureza interpelante, mobilizadora e seminal, que atravessou destacadamente parte significativa da primeira metade do século XX português e que até aos dias correntes jamais se deixou completamente apagar, que Proença, Cortesão, Sérgio e o Grupo Seara Nova se propõe ocupar. E o faz através de uma constelação de intérpretes a quem nunca será demasiado ou congratular ou agradecer. O rigor e a fecundidade das suas respectivas análises e pesquisas são a motivação para a presente obra vir à luz do dia. Poder-se-ia inclusive dizer que – sem prejuízo de discordâncias e nuances interpretativas entre o elenco dos quarenta textos subsequentes  –, o que aqui essencialmente se pretende, com semelhante vir a lume, é o pormo-nos na esteira das abordagens que têm procurado elaborar representações cada vez mais bem fundamentadas da Seara como dos seareiros, portanto, na contracorrente de parcialismos ou dualismos que terminam em alguma medida por caricaturizá-los. Que possam a Revista e o Grupo Seara Nova ser crescentemente perspectivados de forma mais mediada,

NOTA INTRODUTÓRIA

pois possuem um percurso tão longo quanto próprio que, não obstante perseguições políticas, exílios e censura, dissensões ideológicas e dissidências internas, se soube em sua importância manter, tornando-se um marco incontornável para uma compreensão mais alargada da sociedade, pensamento e cultura portuguesas do Novecentos. Assim como o fizemos relativamente aos autores dos diferentes estudos ora publicados, gostávamos de também destinar aqui o nosso agradecimento a colegas e colaboradores que concorreram de forma especial para o suceder do Colóquio, anos atrás, ou para a concretização deste livro, mais recentemente: ao Professor Doutor Leonel Ribeiro dos Santos (Director do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa à época da realização do Colóquio), pelo sempre reiterado estímulo intelectual e pelo apoio institucional concedido; à Dr.ª Carla Simões e à Dr.ª Filipa Seabra, que, ontem como hoje, imprimem vida ao secretariado do referido Centro, por toda a disponibilidade e acção; à arquitecta Fabrícia Valente, pela idealização e termo da arte dos materias de divulgação do Colóquio e ao jornalista João Corregedor da Fonseca, da actual Seara Nova, por ampla e atenciosamente tê-los difundido através das páginas da revista; ao Doutor Bruno Béu, pela digitalização de algumas das fotografias pesquisadas no processo de preparação deste volume; ao Professor Doutor António Reis, pela generosidade das palavras prefaciais; e, também muito especialmente, à Lou Bertoni, por todo o esmerado trabalho realizado quer com as pinturas digitais, feitas a partir do acervo fotográfico coligido, quer com as capas, ao nível da concepção, recriação e design, que simbólica e propositivamente envolvem o corpo desta edição. Amon Pinho António Pedro Mesquita Romana Valente Pinho Organizadores

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NOTA INTRODUTÓRIA

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NOTA INTRODUTÓRIA

O Grupo Seara Nova em seus ideais e propósitos fundadores* AMON PINHO Universidade Federal de Uberlândia Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

Objectivando abordar os ideais e propósitos fundadores do Grupo Seara Nova, conforme consubstanciados na publicação de mesmo nome, enceto estas considerações, não por acaso, com Raul Proença, aquele que foi uma das figuras referenciais do que podemos designar como a primeira fase da revista e do Grupo Seara Nova, sucedida entre os anos de 1921 e 1926. Num texto intitulado “A Seara Nova e certos republicanos”, publicado no número inaugural da revista, vindo a lume em 15 de Outubro de 1921, Proença discorre sobre dois fenómenos políticos conexos que se faziam proeminentes na contextura histórica portuguesa do pós Primeira Grande Guerra, na qual se deu a origem mesma do agrupamento e periódico homónimos: por um lado, a acentuada crise, e crescente descrédito, da experiência governativa republicana, tantas vezes definida por contemporâneos e pósteros como orgia demagógica e caótico partidocratismo. Por outro, a rápida e ampla difusão do Integralismo Lusitano no credo político da juventude universitária do período, como uma das consequências ou reacções a uma República parlamentar que, de tão instável, beirava o desgoverno. “Como os senhores [republicanos] estão cegos! [exclamava Proença] Pois não viram ainda que o facto que mais compromete a existência da República é o alastramento das ideias monárquico-integralistas entre a mocidade das escolas, e que esse facto se deve à absoluta inanidade mental do regime?! A juventude escolar apega-se à ideologia monárquica porque não encontra, no terreno dos factos, senão uma República monstruosa, e no terreno dos princípios a completa ausência duma ideologia republicana de reconstrução e revolução. Os integralistas têm vivido, pura e simplesmente, da inanição mental do regime. Não é a força política das

* Trabalho realizado com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).

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O Grupo Seara Nova em seus ideais e propósitos fundadores

suas doutrinas ou a importância real dos seus homens que explicam o triunfo do snobismo azul-e-branco”1.

Noutros termos, o que quero dizer, tomando em conta o quadro político do início da década de 1920, desde o qual a revista Seara Nova despontava, é que ao lançá-la o Grupo Seara Nova apresentava-se e tentava afirmar-se por meio de duas finalidades muito precisas. Em primeiro lugar, barrar a espantosa proliferação do Integralismo Lusitano nas convicções políticas da juventude; em segundo, aproveitar o afastamento das antigas lideranças partidárias republicanas, tais como Manuel de Brito Camacho (Partido Unionista), Afonso Costa (Partido Democrático) e, mais tarde, António José de Almeida (Partido Evolucionista), para propor uma rectificação geral da vida social e política portuguesa, através da difusão de princípios cívicos, morais, éticos e políticos2. O que significa que não pretendiam os seareiros – Jaime Cortesão, Aquilino Ribeiro, Raul Brandão, Luís da Câmara Reis, PROENÇA, Raul. A Seara Nova e certos republicanos. Seara Nova, Lisboa, n.° 1, 15 Out. 1921, p. 6. 2 Historiador do período republicano, David Ferreira fornece-nos um esclarecedor resumo da conjuntura em que se deu o advento da Seara Nova: “No alvorecer de 1920 o panorama da vida política e social portuguesa estava longe de ser animador: lavrava o desentendimento entre os partidos e agrupamentos republicanos, entre os elementos monárquicos e entre as forças do operariado. A agitação social e as perturbações políticas, advindas tanto das consequências da primeira guerra mundial e da Revolução Russa, como das resultantes da liquidação do ‘sidonismo’ e das tentativas de restauração monárquica registadas em Portugal nos meses de Janeiro e Fevereiro de 1919, repercutiram-se durante muito tempo na vida nacional. (…) Uma parte importante do escol republicano assistia confrangida ao desenrolar dos acontecimentos quotidianos e, por carência de meios adequados, sentia-se impotente para os influenciar e muito menos para os modificar. Alguns dos seus melhores intelectuais procediam novamente como se estivessem divorciados da República. Entretanto os monárquicos (…) tinham voltado à carga com as soluções propostas pelo integralsimo lusitano, cuja propaganda se reacendera e se tornava cada vez mais audaciosa, sem que do lado republicano aparecesse alguém que discutisse a sério as ideias e as doutrinas do credo integralista. Repetia-se (…) o retraimento do escol republicano. É então que (…) vários intelectuais republicanos (…) iniciam trabalhos com vista à formação de um agrupamento (…) que se dê por missão concretizar as aspirações de um vasto sector da opinião republicana, que receava (…) as graves consequências da falta de vozes livres e independentes capazes de se erguerem simultaneamente na defesa da República e na condenação dos erros e hesitações de alguns dos seus governantes, assim como na crítica e discussão do integralismo lusitano e das demais teses realistas”. Nascia aí o Grupo Seara Nova. FERREIRA, David. Seara Nova. In: SERRÃO, Joel (dir.). Dicionário de História de Portugal, vol. III. Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1971, pp. 805-806. 1

Amon Pinho

Raul Proença, entre outros3 – “governar como os políticos” ou “aconselhar como os técnicos”, mas “orientar, como os ideólogos”4. “Sendo nosso intento contribuir para que se renove completamente a política portuguesa, porque não somos um partido político [perguntava Proença]? Não seria essa a maneira mais directa e eficaz de exercer uma influência positiva sobre a sociedade portuguesa? [¶] Esta pergunta (…) requer uma resposta categórica; e por isso este artigo. [¶] Não somos, em primeiro lugar, um partido político porque a nossa acção não pretende limitar-se à simples esfera política. Para além dela vemos toda a vida da nação nas suas actividades essenciais; e à renovação dessas actividades nos consagramos. É preciso que duma vez para sempre, se deixe de ver no político o bode expiatório de todas as desgraças nacionais. É em todas as modalidades da vida portuguesa que devemos encontrar o vírus profundo da nossa degeneração. Cada um de nós, no círculo das suas actividades próprias (quer sejamos empregados públicos, professores, militares, industriais ou agricultores), tem manifestado essa mesma ausência de capacidade criadora e de subordinação aos interesses gerais que tão de boamente assacamos aos nossos políticos. Simples órgãos de correlação, os políticos não podem elevar-se acima das condições gerais de actividade e da mentalidade nacional. Simples função de correlação, a função política não pode ser a única que haja a modificar e corrigir. Há, pois, que agir sobre todos os tecidos do corpo colectivo, que modificar todas as funções desse corpo. E sobretudo que modificar aquele organismo que está destinado a exercer sobre todos os outros uma acção directiva: numa palavra, que reformar a estrutura espiritual, a forma da mentalidade da élite portuguesa, tão certo é que têm sido os vícios mentais dos portugueses os seus piores inimigos. [¶] A nossa empresa é, pois, cumpre vê-lo a toda a luz, extremamente ambiciosa. Não podemos ser um simples partido político,

No corpo directivo inicial da Seara Nova – que sofreu alterações com o tempo, claro; em 1923, por exemplo, entrou António Sérgio e, em 1924, o capitão João Sarmento Pimentel, assim como, em sentido contrário, outros foram saindo –, estavam os escritores Aquilino Ribeiro e Raul Brandão, o poeta e historiador Augusto Casimiro, o pedagogo António de Sena Faria de Vasconcelos, o advogado e economista José de Azeredo Perdigão, o pedagogo e matemático António Augusto Ferreira de Macedo, o político e professor Francisco António Correia, o professor e jornalista Luís da Câmara Reis, o médico e escritor Jaime Zuzarte Cortesão, além do professor e bibliotecário Raul Sangreman Proença. 4 Cf. RAMOS, Rui. A Segunda Fundação (1890-1926). In: MATTOSO, José (dir.). História de Portugal, vol. 6. Lisboa: Editorial Estampa, 1994, p. 548. 3

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O Grupo Seara Nova em seus ideais e propósitos fundadores

porque a nossa missão social excede o campo de acção de todo e qualquer partido político”5.

Partindo do princípio de que a vida política duma nação é, em grande medida, decorrência da sua vida intelectual e do seu movimento de ideias, como das aspirações dos grupos sociais hegemónicos, e de que, portanto, a origem da crise nacional residia na aguda degeneração das estruturas mentais da sociedade lusa, as das classes dirigentes particularmente, o Grupo Seara Nova propôs-se, por um lado, a transformar radicalmente a mentalidade da elite portuguesa, de modo a torná-la apta a um “verdadeiro movimento de salvação”6 e, por outro, a formar uma opinião pública nacional que exigisse e apoiasse as reformas que se fizessem necessárias. Sem um escol intelectualmente capaz e um profundo movimento de opinião pública, galvanizado por um ideal colectivo, nenhum esforço sério de regeneração, pensavam os seareiros, seria possível. Tratava-se, pois, fundamentalmente, dum ambicioso programa de Doutrina e de Crítica, numa palavra, de uma audaciosa acção idealista sobre a multiplicidade da realidade social, na qual inclusos o “miserável circo onde se debatem os interesses inconfessáveis das clientelas e das oligarquias plutocráticas”, o seu “espírito de rapina”, o “egoísmo dos grupos, classes e partidos”, “os inimigos do bem comum, os que deitaram abaixo as estátuas de todos os altares, para prestar apenas culto ao Bezerro de Ouro”7. Enfileirada, segundo textualmente declarava, na extrema esquerda da República; disposta “a fundar as condições da verdadeira democracia” – “sem as quais a República não passará do regime de baixa mentira e indigna plutocracia que tem sido até hoje”–; e simpática à luta pelo triunfo do socialismo8, a Seara Nova, no que se refere à sua vertente Crítica, e de PROENÇA, Raul. Porque não somos um partido político. Seara Nova, Lisboa, n.° 2, 5 Nov. 1921, p. 48. Observamos que os grifos, em todos os excertos que forem citados, devem ser atribuídos ao próprio autor do texto referenciado, sempre que não for assinalado nada em contrário. 6 Seara Nova, n.° 1, contracapa. 7 Cf. Seara Nova, n.° 1, contracapa e p. 1. 8 EDITORIAL, Seara Nova, n.° 1, pp. 2-3. Embora se tenha demarcado, neste manifestoeditorial do seu número inaugural, como situada na extrema esquerda da República e simpática ao socialismo, a Seara Nova, politicamente, foi mais complexa que isso. No entendimento de António Ventura, as grandes linhas do seu ideário, nestes primeiros anos, “um ideário composto de sensibilidades várias, reflectidas em artigos onde não é possível descortinar a opinião ‘oficial’ do grupo, assentam em duas vertentes ideológicas fundamentais e contraditórias: a liberal e a socializante. A primeira visa um aprofundamento da democracia através da luta contra as oligarquias de qualquer 5

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acordo com a correlação que estabelecera entre a degenerada esfera mental e a caótica vida política da nação, fustigou severamente aquele segmento social – leia-se: as elites – que considerava especialmente culpado pelo desastre colectivo do país e cuja mentalidade urgia reformar. Para os seareiros, todas as esferas de actividade da nação estavam a ressentir-se da “falta de ideal, de inteligência, de capacidade criadora e de sensibilidade moral” característica das suas elites9. Esferas de actividade, portanto, sobre as quais, sabia a Seara, também era preciso actuar. O aspecto da Crítica era imprescindível, mas insuficiente se não acompanhado do aspecto da Doutrina, isto é, do aspecto de uma educação geral, ou colectiva, de cunhos popular e social, superior e profissional, educação de cunho decididamente humanístico, que, para se concretizar, contou com a participação de colaboradores das mais diversas áreas do conhecimento tipo e da defesa das liberdades individuais, condições necessárias para a pacificação e concórdia da família portuguesa; a segunda dá uma particular atenção à questão social através de uma intervenção estatal esclarecida e do diálogo entre as partes envolvidas. O carácter sagrado da propriedade privada – dogma intocável do liberalismo – é mitigado, pontualmente submetido aos interesses gerais da sociedade”. VENTURA, António. A Seara Nova e a República. In: MEDINA, João (dir.). História de Portugal: dos tempos pré-históricos aos nossos dias, vol. XI. Amadora, Portugal: Ediclube, 1995, p. 131. 9 EDITORIAL, op. cit., p. 1. Dada a relevância desta passagem do editorial seareiro de debutação, parece-me de interesse reproduzí-la aqui mais amplamente: “(…) nenhum regime político de mentira e incompetência se pode manter em qualquer país sem que essa incompetência e essa mentira sejam os característicos dominantes da sua própria élite intelectual. De outra forma, as monstruosidades e as traficâncias, impedi-las-ia o seu protesto organizado. Em última análise, é ela a maior responsável, porque constitui aquela parte da consciência duma nação que deveria ser a última a desfalecer ou a corromper-se. Renunciando ao seu papel directivo, sequestrando-se no formalismo e no cabotinismo literário, não fazendo do sacrifício o seu prazer mais elevado e da dedicação pelo bem geral o seu mais alto privilégio – não tendo sequer a elegância moral de se conservar pura e desinteressada no meio da corrupção e da deliquescência das altas camadas da sociedade – a sua indiferença, o seu miserável contentamento de si própria, o seu cepticismo moral, a sua intolerável vaidade, a sua falta de preocupações largamente humanas e, sobretudo, a absoluta incompreensão da sua verdadeira missão social, conduziram a este tremendo resultado, que todas as esferas da actividade da nação se sentiram atingidas da falta de ideal, de inteligência, de capacidade criadora e de sensibilidade moral que se revelavam na sua élite”. Note-se que excertos deste manifesto seareiro de apresentação foram republicados mais de quinze anos depois, em 1.° de Abril de 1937, na ocasião em que se celebrou a edição do número quinhentos da revista. O que não deixou de ser uma reafirmação, em contexto salazarista, dos princípios básicos que haviam animado aquelas ideias fundadoras. Cf. Seara Nova, Lisboa, n.os 500-503, 1 Abr. 1937, pp. 336-337.

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humano, que fizeram da Seara Nova um renovador panorama crítico das actividades nacionais as mais relevantes: as sociais como as económicas, as políticas como as culturais. Discutiam-se nas suas páginas questões que iam da economia política à religião, dos meios de transporte e comunicação à pedagogia e às artes, do mundo do trabalho e da técnica ao mundo filosófico, matemático, histórico ou físico-teórico, da literatura, da agricultura e da poesia às forças armadas e às finanças e, evidentemente, à política, quer dizer, às questões relativas à disputa e ao exercício do poder, à governança da nação. Demonstram-nos essa diversidade temática e de interesses, não só os artigos e matérias que compunham a revista, como também outras iniciativas seareiras adicionais (algumas delas de extensão), tais como os Cadernos da Seara Nova, colecção em que se publicou de tudo, numa “obra de democratização da cultura” e de “vulgarização sistemática”, então dividida nas seguintes secções: “estudos literários”, “textos literários”, “estudos filosóficos e científicos”, “textos filosóficos”, “estudos políticos e sociais”, “estudos histórico-económicos”, “estudos pedagógicos”, “moralistas”, “estudos de arte”, “biografias” e o que mais se possa imaginar10. “Poetas militantes, críticos militantes, economistas e pedagogos militantes”11, os homens da Seara Nova não foram, ao longo de toda essa sua educativa e combativa produção intelectual, analistas imparciais, mas homens com causas, dispostos a descer “até a corrente que transporta os germens da sociedade futura”, nela lançando “o seu próprio sangue”. “O heroísmo [afirmava-se no editorial ou manifesto de apresentação do primeiro número] é a palavra mais adequada para exprimir o peso enorme das suas responsabilidades”12. Principal orientador político do grupo no período compreendido entre o ano de fundação da revista, 1921, e o momento em que, em 1926, ela sofreu uma paragem forçada por conta da acção repressiva da ditadura militar, Raul Proença, novamente ele – ainda naquele primeiro número com que a Seara saiu às ruas –, dava mostras do peso de tais responsabilidades, ao referir-se ao papel dos seareiros na resistência à expansão do Integralismo Lusitano em meio à mocidade: “(…) os srs. [republicanos] são homens práticos. Pensam apenas em defender o regime com as metralhadoras da guarda republicana. Mas ai, Entre outros números, cf. Seara Nova, Lisboa, n.° 552, 12 Mar. 1938 e Seara Nova, Lisboa, n.° 558, 23 Abr. 1938. 11 EDITORIAL, op. cit., p.1. 12 Id., ibid., p. 1. 10

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srs. homens práticos! a juventude académica (que será amanhã a classe dirigente do país) não a podem os srs. conquistar por esses processos marciais. Não é essa a maneira de vencer o Espírito. E se isto continuasse (que não continua porque o não queremos) veriam como chegaria uma ocasião em que não tinham quem pôr na guarda… senão alferes partidários do [Alberto] Monsaraz e do [Hipólito] Raposinho [dois conhecidos ideólogos integralistas]. E então para que serviria ao regime a guarda republicana? [¶] No seu superior espírito prático (que assim se chama à maior estreiteza de espírito e ao maior afastamento das verdadeiras realidades que se pode conceber), os srs. imaginam que, nas democracias, o papel dos intelectuais é inteiramente nulo, e o que importa praticamente para sua defesa é uma metralhadorazinha perfeita. Limpem as mãos ao seu excelentíssimo espírito prático, excelentíssimos cavalheiros! E de aqui a dez ou quinze anos espantem-se por tão conspícua perspicácia ter servido apenas para pôr as metralhadoras mais perfeitas nas mãos dos mais perfeitos antirepublicanos. [¶] Os srs. troçam de nós. Os srs. não dão valor a poetas, a escritores, a pedagogos… Literatura, utopias! Quando reconhecerão afinal os srs. que seremos nós, só nós, que salvaremos a República?”13

Atribuindo tão decisiva importância aos intelectuais – a quem via, quando bem preparados, como dotados de extraordinário poder políticosocial, dado as possibilidades críticas, esclarecedoras, persuasivas e criadoras da razão –, Proença expressava, enquanto pressuposto, o interesse natural do Grupo Seara Nova em proceder ao questionamento e convencimento dos intelectuais portugueses, de modo a, impelindo-os àquele heróico desígnio de descer ao mundo e afirmar ideais, engajá-los na sua ambiciosa empresa de regeneração das estruturas espirituais da nação, isto é, em sua iniciativa de formação de uma “luminosa e firme consciência nacional que imponha aos dirigentes (políticos e não políticos) o caminho da nossa salvação”14. “Antes de governar no Poder [considerava Proença] é preciso governar nos espíritos”15, para o que, em se tratando de seareiros, punha-se como indispensável a seguinte cartilha ética, cujos princípios passo a citar: “Clareza de entendimento e disciplina de ideias. Abandono de todos os exclusivismos. Amor da realidade, na sua expressão total e profunda. Poder de sugestão e de sedução intelectual. PROENÇA, Raul. A Seara Nova e certos republicanos, Seara Nova, n.° 1, p. 6. EDITORIAL, op. cit., p. 2. 15 Citado por RAMOS, Rui, op. cit., p. 548. 13

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Uma dedicação sem limites pelos interesses gerais. O mais absoluto escrúpulo profissional. O amor supremo da verdade – fonte de todas as virtudes. O desprezo absoluto da mentira – fonte de todos os vícios. O amor da acção – e das ideias, unicamente como instrumentos e finalidades da acção. Vontade enérgica e decidida aos esforços mais violentos e heróicos. Desprezo completo de todo o medo do ridículo. E audácia, audácia invencível!”16

Inspirada num conjunto de valores e princípios de que semelhante cartilha ética era exemplo notável, não precisamos de inventividade para imaginar o que se passaria com a Seara Nova, anos mais tarde, sob o regime militar – a propósito, ironicamente instaurado por um seu antigo colaborador em temas castrenses, o general Manuel de Oliveira Gomes da Costa, aquele mesmo que em Maio de 1926 marchara com suas tropas de Braga para Lisboa a fim de, tomando o poder, no que foi exitoso, pôr um ponto final à balbúrdia liberal-parlamentar. Pois bem, nem três meses passados, a 12 de Agosto, ocorreu uma primeira interrupção no processo de preparação e impressão de que adviria mais um número da democrata e missionária revista. A instituição da censura prévia actuava e a Seara ressentia-se tanto da repressão quanto das crescentes dificuldades em se manter uma periodicidade editorial regular. Proença e Cortesão, assim como o seareiro e republicano capitão do Exército João Sarmento Pimentel, lançaram-se na acção conspirativa que, em Fevereiro de 1927, desemboca na primeira e única revolta constitucionalista que, efectivamente, chegou a se constituir numa real ameaça para a ainda cambaleante autocracia. À derrota da intentona, das mais violentas e mortíferas que houve contra a ditadura, seguiram-se medidas oficiais tanto mais opressivas17. O QUE NOS É NECESSÁRIO, Seara Nova, n.° 1, p. 9. Iniciada no Porto em 3 de Fevereiro e alargada a Lisboa quatro dias depois, a insurreição, em ambas as cidades, contou um total de 150 mortos e 760 feridos. A rendição dos insurrectos, num Porto devastado – sem comida, artilharia ou munições – datou de 8 do mesmo mês; a dos de Lisboa, no dia seguinte. No “rescaldo repressivo”, foram “efectuadas centenas de prisões entre civis e militares, dissolvidas e dispersas as unidades rebeldes, demitidos os funcionários públicos e os oficiais implicados, suspensa ou proibida a imprensa apoiante e agravada a censura, ilegalizados os centros políticos directa ou indirectamente ligados ao movimento, criada uma polícia secreta (a Polícia de Informações). A 21 de Fevereiro, são despachados no Lourenço Marques, sem julgamento, mais de 700 deportados para os Açores e as colónias africanas”.

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João Sarmento Pimentel, que entrara no corpo directivo da revista em 1924, e Jaime Cortesão e Raul Proença, que, fundadores, já lá estavam desde 1921, sem outra opção que lhes preservasse liberdade e integridade física e moral, expatriaram-se. Aquele para o Brasil, estes para a França, onde António Sérgio, também ele desde 1923 co-director da revista, se exilara em finais de 1926, igualmente por conta da sua destacada oposição ao regime militar. O Grupo Seara Nova, pois, vergava sob uma grave e preocupante crise. Mas eis que, surpreendentemente, quando tudo parecia apontar para o seu fim, a Seara, em Abril de 1927, torna a ganhar as avenidas. Aliás, tal como em missiva de Março do mesmo ano, António Sérgio, desde Paris, informara ao jovem literato José Castelo Branco Chaves: “A Seara vai reaparecer, sem política, com números especiais”18. Com quatro de sete dos seus directores no exílio – permaneceram em Portugal, Câmara Reis, o militar aviador José Manuel Sarmento de Beires e o engenheiro agrónomo e político Mário de Azevedo Gomes – e em busca de meios pelos quais pudesse taticamente se reorganizar e restabelecer, o periódico enveredou por um grande debate interno. Novos intelectuais assomaram em suas páginas19, assinando artigos e contribuindo para a revitalização das forças do grupo, que, como se pode facilmente inferir, não mais se destinaria à reforma e salvação da República parlamentar, que morta e enterrada deixara de existir, mas à restauração da democracia. ROSAS, Fernando. O Estado Novo (1926-1974). In: MATTOSO, José (dir.). História de Portugal, vol. 7. Lisboa: Editorial Estampa, 1994, p. 218. 18 SÉRGIO, António. Cartas de António Sérgio a Castelo Branco Chaves: 1924-1955. Revista da Biblioteca Nacional. Lisboa, vol. 4, n.° 2, Jul./Dez. 1989, p. 52. 19 Entre eles, Castelo Branco Chaves e Agostinho da Silva, nominalmente aqui mencionados pelo facto de terem sido dois integralistas que se deixaram tocar pela militância republicana e democrata do Grupo Seara Nova. Ambos aderiram ao ideário e ao programa seareiros de uma reforma profunda da mentalidade portuguesa. Sobre a fase monárquico-integralista de Agostinho da Silva, antes da sua adesão à Seara Nova, em 1928, ver “O politizado estudante universitário Agostinho da Silva e o movimento integralista de regeneração do espírito e da realidade nacionais (19251927)” em DAVI, Amon Pinho. O pensamento político do jovem Agostinho da Silva: da primeira Faculdade de Letras do Porto e da Renascença Portuguesa ao ingresso no grupo Seara Nova. In: EPIFÂNIO, Renato (org.). Agostinho da Silva, pensador do mundo a haver. Corroios: Zéfiro, 2007, pp. 349-378. Ver também CALDAS, Bento (entrev.). O Pensamento Académico: O que diz Agostinho da Silva, estudante da Universidade do Porto e director do Porto Académico. In: DAVI, Amon Pinho; EPIFÂNIO, Renato; PINHO, Romana Valente (orgs.) In Memoriam de Agostinho da Silva: 100 anos, 150 nomes. Corroios: Zéfiro, 2006, pp. 84-88.

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Os tempos já eram de pura e dura ditadura, brevemente militar, depois, longamente civil, toda ela marcada por António de Oliveira Salazar – o exseminarista de Santa Comba Dão e professor de Economia da Universidade de Coimbra –, primeiro como ministro das Finanças, subsequentemente como chefe de Governo. De modo que, com o termo da República parlamentar em Portugal, chegava igualmente ao fim a primeira fase daquela “revista de doutrina e crítica”, que, ainda assim, soerguendo-se, continuaria a marcar decisivamente o desenrolar da vida política, social e cultural portuguesa. À guisa de conclusão, relembremos nesse sentido o tom decidido com que António Sérgio – regressado do exílio em 1933, e até 1938-1939 o novo principal orientador da publicação – reafirmava o espírito seareiro, mais moral que politicamente, por óbvios motivos: “A Seara Nova (…) não é um partido nem um corrilho, mas um estádio, uma academia, uma escola (…) onde se treinam os cidadãos no Espírito Crítico e no Civismo, e onde a busca da justiça na sociedade tem como raiz ou alicerce a busca da justiça na nossa alma, o culto da veracidade e da razão”20. “(…) a Seara Nova, falange moral, não é uma seita entre as demais seitas, um partido entre os demais partidos, uma igrejinha político-social entre as demais igrejinhas político-sociais, – igrejinha que oponha, como qualquer outra, às estreitezas, incompreensões e limitações das outras seitas, as suas próprias estreitezas, incompreensões e limitações. A Seara Nova não é nada disso, mas sim um ginásio de cultura humana, de largo e generoso humanismo crítico, – e a cultura, para ela, consiste precisamente em se libertar o indivíduo de toda espécie de limitações, subindo portanto ao universal, donde tudo que é positivo se observa e abarca. (…) Tudo quanto é larga e profundamente humano é ‘seareiro’”21.

Extraído de uma nota preliminar de António Sérgio a um texto de Castelo Branco Chaves sobre Raul Brandão, publicado na Seara Nova, Lisboa, n.º 394, 21 Jun. 1934, p. 147. 21 SÉRGIO, António. Uma explicação. Seara Nova, Lisboa, n.o 412, 25 Out. 1934, p. 59. Republicado em SÉRGIO, António. Ensaios, tomo VI. 3.ª ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1980, p. 209, com o título “A alguns que julgam dever opor-se a Francisco de Assis e a Teresa de Ávila”. 20

A “Renascença Portuguesa” e a “Seara Nova” PINHARANDA GOMES Instituto de Filosofia Luso-Brasileira

A “Renascença Portuguesa” surgiu no Porto (com sede provisória, inicial, na Rua da Alegria, n.o 218, transitando mais tarde para a Rua Mártires da Liberdade, n.o 178, num edifício de interessante frontaria de estilo manuelino) como uma sociedade por quotas, com ramos no Porto, em Coimbra, Lisboa e, um pouco mais tarde, no Rio de Janeiro. Tinha por fins promover a maior cultura do povo português, por meio de conferências, manifestos, revista (que seria A Águia), livros, bibliotecas, escolas, etc., conforme os Estatutos aprovados em Janeiro de 1912. Álvaro Pinto, um intelectual e pessoa de iniciativa empresarial, nascido em Barca d’Alva, mas residente no Porto, aqui fundara uma revista quinzenal, ilustrada, de Literatura e Crítica. A revista intitulava-se A Águia, que, antes de haver «Renascença Portuguesa», publicou dez números, entre 1 de Dezembro de 1910 e Julho de 1911. Dava-se o evidente fenómeno de inércia e desencanto da sociedade portuguesa mais culta. Nem se torna necessário repetir aqui e agora as inúmeras deficiências de um povo na sua mor parte analfabeto, dominado, mais do que educado, por grupos de ocupação ideológica, cujas mãos retinham o poder político, a Revolução do 5 de Outubro de 1910 em nada tendo alterado os parâmetros do bem estar nacional, a felicidade de um Povo que, de facto, até ignorava o que República significasse em termos de carácter, de benefícios e de vantagens. Alguns intelectuais, vários deles oriundos do Povo, entenderam que os problemas da vida nacional se resumiam numa palavra: Cultura. Poucos dias após a publicação do n.º 10 de A Águia (1.ª série), um médico, e professor, residente no Porto, Jaime Cortesão, dirigiu-se por carta a um erudito polemista republicano, de Lisboa, Raul Proença, carta essa datada de 26 de Julho de 1911. Nela, Jaime Cortesão sugeria se criasse um movimento, uma “associação”, “uma espécie de maçonaria de Artistas e Intelectuais”, mas sem o carácter maçónico, cuja finalidade seria a de exercer uma acção cultural, social e orientadora na vida portuguesa, adoptando a revista de

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Álvaro Pinto, que a disponibilizou para o efeito. Nessa carta, Jaime Cortesão sugeriu que o cargo de Director fosse desempenhado por Teixeira de Pascoaes, que de tanto foi informado por Cortesão em carta de 4 de Agosto de 1911, em que também deu conta do projecto1. Previa-se um movimento abrangente, tendo-se constituído três Comissões locais (Porto, Lisboa e Coimbra), integradas por respeitadas figuras da vida cultural e política da época, na sua mor parte republicanas, sem prejuízo da presença de um que outro monárquico. Todas desencantadas com o estado da República, a qual, à distância, alguém já definiu como uma Ditadura nominada República. O escol intelectual deu acordo ao projecto, mas houve necessidade de uma definição doutrinária e estratégica. Nas reuniões que se seguiram à carta de Jaime Cortesão, verificou-se a diversidade de pontos de vista, quanto ao modo de entrosamento da cultura com a política e vice-versa. Uma primeira reunião das Comissões decorreu em Coimbra, em 27 de Agosto de 1911, tendo decidido que se redigisse um Manifesto, de que Teixeira de Pascoaes foi incumbido. Uma vez redigido, Pascoaes apresentou o projecto de Manifesto na reunião que as Comissões efectuaram em Lisboa, a 17 de Setembro de 1911. O Manifesto apresenta uma obra patriótica, então ainda chamada “Renascença Lusitana”, dirigida ao “Povo Português”. Define-se que tal obra constitui “uma associação de indivíduos cheios de esperança e fé na nossa Raça, na sua originalidade profunda, no seu poder criador de uma nova civilização”. A finalidade da associação “é combater as influências contrárias ao nosso carácter étnico […] e provocar […] o aparecimento de novas forças morais, orientadoras e educadoras do povo, que sejam essencialmente lusitanas”, enfim revelar as energias potenciais da alma portuguesa. Os promotores convidam todos os que acreditem no “renascimento lusitano”, uma vez que o movimento, de óbvio carácter nacionalista, ainda sem os estigmas que mancharam os posteriores nacionalismos decorrentes da época da II Grande Guerra, tem em vista “dar ao povo uma educação lusitana, e não estrangeira, uma arte e uma literatura, que sejam lusitanas, e uma religião no seu sentido mais elevado e filosófico que seja também lusitana”. A nova religião é potenciada pela “suprema criação sentimental da Raça, a Saudade”. Os carismas do projecto como que separam Portugal do resto do Mundo, da Europa e da Cristandade, num acto de profilaxia destinada a manter e a ampliar a portuguesa singularidade.

Cf. SANTOS, A. Ribeiro dos. Jaime Cortesão, um dos Grandes de Portugal. Porto: Fund. Eng. António de Almeida, 1992, pp. 51-54.

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A obra da “Renascença Lusitana” será feita, além de outros meios, por conferências, livros, e duma revista de literatura, filosofia, ciência, crítica social – que se intitulará A Águia e que, durante algum tempo, se considerou como órgão da Sociedade. Foi este, em linhas gerais, o teor do primitivo Manifesto, ao qual foram aditados três breves parágrafos sobre a importância da Ginástica, da Higiene e da Arte2… Este Manifesto não foi publicado na revista A Águia na data prevista, por não ter havido acordo maioritário sobre o seu teor. Por isso, as Comissões encarregaram Raul Proença de proceder à redacção de um Manifesto merecedor de amplo consenso, e excluindo dele os matizes messiânicos e saudosistas, que foram ideia original de Pascoaes. Raul Proença redigiu o Manifesto, que também não chegou a ser publicado n’A Águia. Seria publicado mais tarde, a título histórico-documental, no jornal A Vida Portuguesa, que se tornara órgão oficial da “Renascença Portuguesa”, a revista A Águia tendo outras funções3. Em linhas gerais, o Manifesto de Proença já invoca, não a “Renascença Lusitana”, mas a “Renascença Portuguesa”, e dirige-se também ao povo português. Sentiase a necessidade de, após uma revolução triunfante, dar uma alma nova à nacionalidade, concentrando num “bloco de renascença nacional, tudo o que há aí de esparso”. Um bloco norteado pelo amor da colectividade, “estranho a todas as facções políticas, religiosas e filosóficas […] e tão largo, que nele caibam as tendências mais variadas”, contanto que úteis e dedicadas. Torna-se necessário pôr de lado as divergências formais, face à resolução dos problemas nacionais, embora a República já fosse um dado adquirido. Na sociedade sente-se uma “aspiração esparsa, latente”, o desejo de alguma coisa, “não se sabe bem o quê”. A sociedade olvidou as forças que outrora a tinham colocado na dianteira da civilização mundial, dando novos mundos ao mundo, e levando a Europa a esses mundos. Quanto à civilização moderna, ela aparece como simples continuidade da Contra-Reforma. A actualização das ideias revelou-se ineficaz e contraditória – as que lá fora tiveram um tempo de progressistas, tornaram-se aqui inibitórias. Para se resolverem os novos problemas, havia que “pôr a sociedade portuguesa em contacto com o mundo moderno”, aplicando-nos “o espírito do nosso A Vida Portuguesa, n.º 22, Porto, 10.2.1914, pp. 10-11. Compilada em PASCOAES, Teixeira de. A Saudade e o Saudosismo. Comp., pref. e notas de Pinharanda Gomes. Lisboa: Assírio e Alvim, 1988, pp. 31-33. 3 A Vida Portuguesa, n.º 22, pp. 11-12. Cf. PASCOAES, Teixeira de, A Saudade e o Saudosismo, pp. 283-286.

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tempo”, criando, por via da cultura, “uma elite consciente, uma opinião pública esclarecida”. Por fim, o Manifesto segundo Proença apela à união para que ao país seja dada uma alma que “o faça grande” e que crie um povo “que merece ser livre”. Mantido inédito, os renascentistas portuenses decidiram avançar, retomando a publicação de A Águia, agora propriedade da “Renascença Portuguesa”, em Janeiro de 1912. Esse primeiro número abriu com um outro Manifesto, intitulado “Renascença”, da óbvia autoria de Teixeira de Pascoaes, Manifesto esse apresentado como um programa de acção, sendo, afinal de contas, o primeiro a ser tornado público e como que oficial4, revelando já as diferenças que afastavam o grupo do Norte do grupo do Sul, ou, no mínimo, Pascoaes de Proença e de António Sérgio. Ao pragmatismo de Proença, Pascoaes apõe um renovado concerto messiânico: elogio da Raça, necessidade de criar “um novo Portugal, ressuscitando a Pátria Portuguesa”. Renascença significa “criar uma vida nova”. Apela-se à unidade em torno da “alma portuguesa”, que de facto existe. Se não existisse, diz o Manifesto, “teríamos de nos fundir nessa massa amorfa da Europa” (sic). Numa sequência apologética, expressa como que o cântico das nossas glórias, eleva a Saudade a mistério e dinamiza a alma lusitana. Enfim, “um novo Portugal, mas português, surgirá à luz do dia, e a civilização do Mundo sentir-se-á dilatada”. Pascoaes aprofundou a sua cruzada, numa persistente campanha a favor da alma da Raça, do Espírito Lusitano, que se chama Saudosismo, e viria a ser o pomo das cisões e das discórdias. Não por causa do Saudosismo, mas por diferente critério estético, ocorreu a primeira evasão, a de Fernando Pessoa, após ter concluído n’A Águia o ensaio intitulado “A Nova Poesia Portuguesa”, também ele motivado pela esperança messiânica do aparecimento do “poeta supremo da nossa raça”5. Com a apologia dos poetas renascentistas, Pessoa como que se preparou para a introdução do Primeiro Modernismo (Orpheu) e também para o aprofundamento de dois grandes mas diferentemente inspirados poetas, Pascoaes e, ele próprio, Pessoa. Criada a “Renascença Portuguesa”, Álvaro Pinto trespassou a revista A Águia para a referida Sociedade, assumindo, porém, as responsabilidades da gestão empresarial. Desde então, A Águia apresentou-se como “Revista A Águia, vol. I, 2.ª série, n.º 1, Porto, Janeiro de 1912, pp. 1-5. Cf. PASCOAES, Teixeira de, A Saudade e o Saudosismo, pp. 35-37. 5 PESSOA, Fernando. A Nova Poesia Portuguesa. Nova edição preparada por Álvaro Ribeiro. Lisboa: Ed. Inquérito, s.d., p. 103. 4

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mensal de Literatura, Arte, Ciência, Filosofia e Crítica Social”. Da nova fase foram publicadas quatro séries: a 1.ª (1912-1921), sendo Pascoaes o Director; a 2.ª (1923-1927, após uma temporária suspensão), sob a direcção de Leonardo Coimbra que, desde 1919, fixara residência no Porto, após aí ter fundado a primeira Faculdade de Letras; a 3.ª (1928-1929), sob o Conselho Directivo integrado por Hernâni Cidade, Leonardo Coimbra, Teixeira Rego e o por todos admirado desenhador e pintor, António Carneiro, autor das “sanguíneas” que muitas vezes enriqueceram as páginas da revista; e a 4.ª (1932), sendo directores Leonardo Coimbra e o seu discípulo Sant’Anna Dionísio. A empresa deu corpo às actividades previstas. Além de A Águia, o quinzenário que se apresentou como órgão oficial da Associação, A Vida Portuguesa (1912-1915), dirigida por Jaime Cortesão, que, em 1915, voluntário do Corpo Expedicionário Português, como médico, abalou para a Guerra. A Universidade Livre também funcionou em algumas localidades (Porto, Póvoa de Varzim, Vila Real…), enquanto foram criadas diversas Colecções Bibliográficas de especialidades (Cultura, Literatura, Literatura Infantil, Educação, História e Economia). A vida da “Renascença Portuguesa” foi algo atribulada, uma aventura desde o início envolvida em tensões doutrinais, A Águia sendo sobretudo uma publicação poético-filosófica e literária, o que não satisfazia os anseios intervencionistas e pragmáticos da Comissão Lisbonense, que preferia o projecto de Raul Proença, mas que os lisbonenses não conseguiam levar por diante, como se tal só fosse possível depois de uma ruptura com a predominância do Saudosismo e do Etnocentrismo6. Notícia de uma separação veio quando, no Outono de 1912, Pascoaes, do mesmo modo que se congratulava com os bons sinais de acolhimento da Renascença no Porto, manifestou o desejo de se dirigir de modo especial a dois homens ilustres que, escreve, “pertencem ao número fundador da Renascença” – como Raul Proença e António Sérgio, que se separaram depois de um “mal entendido” (?). Por “mal entendido” Pascoaes aludiu às diferenças entre a doutrina do Saudosismo (considerada o coração da alma portuguesa) e o programa de Raul Proença, a quem, aliás, dedicou o artigo, Cf. MOREIRA, Joaquim. Para uma perspectiva exacta do que foi a Renascença Portuguesa: Portucale, 3.ª série, vol. I, Porto, 1955, pp. 155-164; SANTOS, Alfredo Ribeiro dos. A Renascença Portuguesa. Um Movimento Cultural Portuense. Porto: Fund. Eng. A. Almeida, 1990; SAMUEL, Paulo. A Renascença Portuguesa. Um Perfil Documental. Porto: Fund. Eng. A. Almeida, 1990. Para uma aproximação teorética: GOMES, Pinharanda. A Renascença Portuguesa. Teixeira Rego. Lisboa: ICALP, 1984.

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em que repete que o Saudosismo não é inimigo “dos progressos realizados lá fora”, que “a felicidade económica, só por si, não satisfaz o homem”, e que o “lusitanismo da Renascença não é tão feroz como o senhor Raul Proença imagina”. Por isso, considera que a orientação dada ao movimento não é incompatível com o programa da “Renascença Portuguesa”. Pascoaes acha que até se completam, professando a esperança de que Raul Proença e outros se juntem de novo, “animados da mesma fé”7. Pascoaes entregou-se a uma campanha saudosista, fazendo conferências, e continuou o debate em novo artigo, desta vez dedicado a António Sérgio, que, estando em Londres, lhe escrevera a contestar o Saudosismo, procurando explicar as causas da dissidência de Sérgio: que este magicara que o Saudosismo era ideia imposta por ele, Pascoaes, à “Renascença Portuguesa”; que Sérgio discordava da orientação dada à Saudade. Em suma, o artigo visou explicar a natureza e a originalidade da Saudade e do Saudosismo, esperando o retorno de Sérgio8. Estava pronta a arena para a famosa polémica Sérgio/Pascoaes, sobre a Saudade, desenvolvida entre Outubro de 1913 e Julho de 19149. A separação ou cisão entrara em vigor. Não obstante, Proença ainda colaborou na revista até Junho de 1917, e António Sérgio até 1920, data em que interrompeu, por se ter ausentado para o Brasil, mas retomou a colaboração entre 1929 e 1932, sendo Leonardo o director de A Águia quando Sérgio já dele se distanciara, por causa da questão do ensino religioso nas Escolas, defendido por Leonardo10. Entretanto, e como vimos, Jaime Cortesão, que dirigira A Vida Portuguesa, até ser mobilizado para a Guerra, ainda colaborou na revista até 1920. No ínterim, outras correntes de pensamento em vista da acção políticocultural se erguiam. Primeiro, o Integralismo Lusitano, que timidamente se iniciara na Bélgica (Lovaina), onde Luís de Almeida Braga, Rolão Preto e Domingos de Gusmão de Araújo publicaram a revista Alma Portuguesa, em 1913. A partir deste óvulo, se fundou o movimento do Integralismo Lusitano, cujo principal órgão doutrinário seria, desde 1914 até 1939, a revista Nação

PASCOAES, Teixeira de. O Saudosismo e a Renascença. A Águia, vol. II, 2.ª série, n.º 10, Porto, Outubro de 1912, pp. 113-115. Cf. PASCOAES, Teixeira de, A Saudade e o Saudosismo, pp. 59-61. 8 Idem. Ainda o Saudosismo e a «Renascença». A Águia, vol. II, 2.ª série, n.º 12, Porto, Dezembro de 1912, pp. 185-187. Cf. PASCOAES, Teixeira de, A Saudade e o Saudosismo, pp. 63-65. 9 Compilado em PASCOAES, Teixeira de, A Saudade e o Saudosismo, pp. 97-154. 10 Cf. COIMBRA, Leonardo. Cartas, Conferências, Discursos. Lisboa: Fund. Lusíada, 1994. 7

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Portuguesa11. Também os católicos, apostados na União Católica Portuguesa, criariam em 1917 o Centro Católico Português em vista à devolução dos direitos, liberdades e garantias à Igreja12. Neste contexto, a principal missão da “Renascença Portuguesa” foi a de uma actividade nacionalizante, sem vínculo partidário, visando uma explícita teoria da Portugalidade. “Do melhor arado à mais bela e ampla hipótese metafísica, do mais ingénuo cântico de amor à mais rica interpretação religiosa da vida, do trabalho à meditação do amor da família ao da Pátria, da humanidade e de Deus, nada lhe será estranho”13. A questão do Saudosismo teve esse dramático efeito de cisão doutrinal, porque institucionalmente, nem Proença nem Sérgio se desligaram da sociedade, em que, a partir de 1921, surgiram “competições de mando”, embora, como vimos, logo nos primeiros dias as tensões ideológicas se tornassem evidentes14. António Sérgio e Jaime Cortesão, por diferentes motivos, ficaram em transe de cisão, enquanto Álvaro Pinto, algo desencantado, decerto porque em termos de empresa o sucesso editorial não correspondia às expectativas, resolveu ampliar o horizonte, emigrando para o Brasil, em 1920. No Rio de Janeiro, serviu-se da Tipografia Anuário do Brasil (Rua D. Manuel, 62), tipografia essa que editou alguns livros sob a chancela da Renascença Portuguesa, como o 1.º volume dos Ensaios de A. Sérgio (1920), a Arte de Ser Português de Pascoaes (1920), etc., alguns números da revista A Águia, e, de parceria com o poeta Tasso da Silveira, a revista Terra de Sol. A “Renascença” e, sobretudo, A Águia, encontravam sólido e fiável apoio na Faculdade de Letras do Porto, criada em 1919 por Leonardo Coimbra, e cujos professores, entre eles Luís Cardim e o sábio José Teixeira Rego, e depois alunos como Agostinho da Silva, Delfim Santos e Sant’Anna Dionísio, garantiam o nível cultural da revista. Extinta a Faculdade, por Decreto de 12 de Abril de 1928, ela manteve-se activa até 1931, por forma Cf. GOMES, Pinharanda. Dicionário de Filosofia Portuguesa. 2.ª ed. Lisboa: Dom Quixote, 2004, pp. 183-185. 12 Órgão oficial, foi o jornal A União. Oficioso, primeiro, a Época de Fernando de Sousa e, depois, após perturbadas guerras, o jornal Novidades. Cf. ALVES, Adelino. Centro Católico Português. Lisboa: Rei dos Livros, 1996. 13 COIMBRA, Leonardo. O nosso Caminho. A Águia, 3.ª série, n.º 1, Porto, 1922. Texto compilado em COIMBRA, Leonardo. Dispersos I. Poesia Portuguesa. Lisboa: Verbo, 1984, pp. 45-48. Cf. GOMES, Pinharanda. A Escola Portuense. Porto: Caixotim, 2005, pp. 216-217. 14 GOMES, Pinharanda. A Tensão Doutrinal na Génese da Renascença Portuguesa. In: ______. Entre Filosofia e Teologia. Lisboa: Fund. Lusíada, 1992, pp. 143-158. 11

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a que os alunos ainda em estudo, pudessem concluir os cursos. Houve um sincronismo e uma convergência entre a revista e a Faculdade, de modo que era como se houvesse dois planos de ensino – um, oficial, esotérico, nas aulas, outro público, exotérico, na revista15. Ora, a seguir a 1931, o corpo docente e os alunos da Faculdade dispersaram-se. Uns regressaram ao ensino liceal (Leonardo), outros reformaram-se, e outros aderiram ao novo estado de coisas, obtendo cátedras em outras Universidades (sobretudo em Coimbra), como foram os casos de personalidades que Leonardo elevara ao magistério superior: Aarão de Lacerda, Hernâni Cidade, Newton de Macedo, Damião Peres… deixando Leonardo só, no Liceu Rodrigues de Freitas, no Porto. Por sua vez, os alunos mais brilhantes e discípulos de Leonardo (Agostinho da Silva, Sant’Anna Dionísio, Delfim Santos, Álvaro Ribeiro, José Marinho, Adolfo Casais Monteiro), saíram do Porto, em diáspora, ou exercendo o professorado, ou procurando modos de vida. Nestas condições, difícil seria continuar A Águia para além de 1932. Acrescia a legislação da Ditadura Militar quanto à liberdade de expressão, mesmo em publicações que não abundavam em matéria política. De facto, o infeliz epílogo de A Águia foi efeito da mudança de vida dos seus colaboradores, e a diáspora dos renascentistas, alguns dos quais já se haviam agrupado na “Seara Nova”. A empresa entrou em decadência, apesar de Augusto Martins e de outros, criando as Edições Marânus e a revista Portucale (já iniciada em 1928, na perspectiva do fim de A Águia). Álvaro Pinto regressara do Brasil em 1937 e testemunhou que, ao chegar, verificou que os seus sucessores, na “Renascença”, “procuraram toda a espécie de desatinos até dar cabo dela”16.

Pela Grei Objectivamente cindido da acção que A Águia levava a efeito, e discordando fortemente de Pascoaes, António Sérgio, um racionalista pragmático, decidiu efectuar uma outra experiência. Ainda não emigrara para o Brasil, residia em Lisboa, podia conviver com outros sócios da fundação da “Renascença Portuguesa”, sobretudo com Raul Proença, e que, face ao RIBEIRO, Álvaro. A antiga Faculdade de Letras do Porto e a “Renascença Portuguesa”. In: ______. As Portas do Conhecimento. Lisboa: IDL, 1987, pp. 173-175. 16 Cf. GOMES, Pinharanda, A Escola Portuense, p. 17. Depois de regressar, Álvaro Pinto fixou-se em Lisboa, publicando duas revistas: Ocidente (1958), de cultura humanista, e Revista de Portugal (1973), de linguística e de etnografia. A primeira, que ainda foi dirigida por Manuel Múrias, terminou em 1973, a segunda, devotamente coordenada por D. Maria Amélia de Azevedo Pinto, durou até 1981, tudo isto após a morte de Álvaro Pinto em 1957. Antes já se haviam publicado duas revistas homónimas. 15

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desenvolvimento levado a efeito pela Associação, em vez de aparecerem com uma alternativa, “calavam-se não concorrendo para o cumprimento do programa” – segundo o que Teixeira de Pascoaes afirmou17. Ele anotava que, enquanto os do Sul se calavam, os do Norte se abraçaram aos critérios publicitados por A Águia. Solitário, Sérgio queria uma nova Águia, e nesse sentido estabeleceu contactos epistolares com Álvaro Pinto, sugerindo outra publicação, para a qual hesitou entre dois títulos: Revolução Construtiva, ou Construção Moderna, algo que fosse o arauto do seu ideário pragmático e patriótico, assente numa visão política e doutrinal. Apoiado por alguns simpatizantes, como Ezequiel de Campos e vários outros que fundaram a Liga de Acção Nacional, e não tendo achado receptividade em Álvaro Pinto, apresentou a revista intitulada Pela Grei, surgida em 1918, que apostou num programa próximo do que se elaborara para a “Renascença Portuguesa”, mas propondo um pragmatismo reformista nos planos da economia, da educação e, sobretudo, de gerar nova obra nacional, obra essa que seria realizada pela Nação, tal como preconizara a Liga de Acção Nacional, organismo apartidário, propositor do que se designou por União Cívica, algo que até poderia ter inspirado a ideia de União Nacional. A breve trecho, Sérgio verificou não lhe ser possível teimar em servir a comunidade da maneira que tentara. E, publicados os seis números, em 18 de Março de 1919, pôs termo à revista, abrindo um novo hiato18. Depois, Sérgio emigrou. Leonardo Coimbra, Ministro da Educação, fundava a Faculdade de Letras do Porto, Jaime Cortesão era nomeado director da Biblioteca Nacional, onde Raul Proença era o bibliotecário por excelência19. Não tardou que, nos corredores da Biblioteca (então no antigo Convento de S. Francisco, ao Chiado) se formassem pequenos grupos ou tertúlias, conforme os interesses de cada uma.

Seara Nova Estando Sérgio emigrado no Brasil, um grupo de personalidades da vida cultural e política, habituais participantes das tertúlias a que Cf. PORTUGAL, Boavida. Inquérito Literário (1912). Lisboa: Liv. Clássica Ed., 1915, pp. 178-180. Também Fernando Pessoa considerava o país como um meio cultural desorganizado, e que a organização começara no Porto com a “Renascença” – que, a seu ver, sofria de alguns erros, o primeiro sendo o de estar no Porto. Cf. PESSOA, Fernando. Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literária. Lisboa: Ática, 1967, p. 356. 18 Cf. GOMES, Pinharanda, A Escola Portuense, pp. 165-210: A. Sérgio. Cisão e Decisão: as Revistas “Pela Grei” (1918-1919) e “Seara Nova” (1923). 19 GOMES, Pinharanda. A Política Cultural de Leonardo Coimbra. O Tripeiro, 7.ª série, n.º 9, Porto, Agosto de 2001. 17

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se convencionou chamar Grupo da Biblioteca Nacional (Grupo esse que manteve regulares encontros entre 1919 e 1927, enquanto Jaime Cortesão foi director da Biblioteca), que integrava personalidades das origens da “Renascença Portuguesa”, desavindos da orientação de A Águia, fundou a Empresa de Publicidade Seara Nova, S.A.R.L., com o propósito de uma intervenção educacional na sociedade portuguesa. A Águia, que fora desejada como o veículo de intervenção, seguira um caminho algo afastado do militantismo e de certo imediatismo de uma ideologia de construção e de renovação, dando primazia às artes, às letras, ao pensamento filosófico, à criação poética, e, sem grande empenho, à crítica social programática. Perante uma República em crise endémica, vivendo uma desordem, ou uma espécie de infância condenada à imaturidade; o óbvio indiferentismo ideológico da maioria do povo, tanto urbano como rural; o acentuado isolacionismo dos intelectuais e dos políticos relativamente ao povo real; o ascenso da promoção da doutrina monárquica e restauracionista; o ascenso, este menos significativo no recente episódio da Monarquia do Norte, do que no aparecimento do Integralismo Lusitano, em que se elevavam personalidades como António Sardinha, Luís de Almeida Braga, José Pequito Rebelo, Hipólito Raposo, etc.; perante estes factos surgiu a revista Seara Nova, por iniciativa dos fundadores – Aquilino Ribeiro, Augusto Casimiro, Faria de Vasconcelos, Ferreira de Macedo, Francisco António Correia, Jaime Cortesão, José de Azeredo Perdigão, Luís da Câmara Reys, Raul Brandão e Raul Proença, sendo Augusto Casimiro, Jaime Cortesão e Raul Proença, da primeira geração da “Renascença Portuguesa”. Quando se menciona o título Seara Nova, quase somos levados a crer que ele nasceu da eventual proposta de Jaime Cortesão, que, no Porto, em 1908, participou de um grupo político, também integrado por Rodrigo Solano, Gil Ferreira, A. Correia de Sousa e Leonardo Coimbra. Esse grupo chamou-se Nova Seara. A nova revista, quinzenal, de doutrina e crítica, saía sob a responsabilidade de um Corpo Directivo, constituído por Aquilino Ribeiro, Augusto Casimiro, Câmara Reys, Faria de Vasconcelos, Ferreira de Macedo, Jaime Cortesão, Azeredo Perdigão, Raul Brandão e Raul Proença. O Director era Câmara Reys, o Editor sendo Julião Quintinha. Uma vanguarda republicana. O primeiro número foi publicado em 15 de Outubro de 1921, sendo a capa habitualmente ilustrada, a deste primeiro número tendo sido pelo desenhador Leal da Câmara. Quando a Seara Nova apareceu deu-se um curioso episódio: Hipólito Raposo, que estivera preso por causa do seu envolvimento nas conspirações

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monárquicas, publicou, já em 1922, um romance de incidências antirepublicanas, intitulado “Seara Nova”, pelo que Hipólito apôs à edição uma Nota Prévia, esclarecendo que o romance nada tinha a ver com “uma sociedade comercial de livraria” (sic), havia pouco constituída. Afirmou que iniciara o romance no Forte de S. Julião da Barra (onde estava preso), em 1919, sendo director do jornal A Monarquia, e que o concluiu em 1921, na Casa da Fonte, em S. Vicente da Beira, sua terra natal. O primeiro biénio da nova revista enfrentou algumas dificuldades. É certo que captava a simpatia de alas juvenis e estudantis destinadas a altos voos na ordem cultural e política, ocorrendo agora os nomes de José Rodrigues Miguéis e de Mário de Castro, que se revelaram nas páginas da revista, tal como “João Falco”, isto é, Irene Lisboa. O Corpo Directivo era um tanto ou quanto heteróclito – polemistas, juristas, antigos membros renascentistas. Jaime Cortesão, ocupado na Biblioteca Nacional, encaminhava-se para a historiografia dos Descobrimentos; Raul Proença, insólito filósofo, era como que o aríete das lutas ideológicas, envolvido em frequentes polémicas. Um filólogo como Luís Cardim, um poeta e ideólogo como Adolfo Casais Monteiro e um filólogo militante como Agostinho da Silva (em tempos de Brasil, genro de Cortesão, por ter casado com uma filha, Judith Cortesão), aderiram, e cremos que mesmo Álvaro Ribeiro ainda esboçou um tentame de colaboração, a par de Sant’Anna Dionísio e de Hernâni Cidade. De Álvaro Ribeiro, embora não assinado, a revista transcreveu o artigo “Inquérito” (n.os 406-408, 1934, p. 365), origem do estudo intitulado Programa de um Estudo Nacional20, mas, ao tempo, Álvaro Ribeiro estava totalmente empenhado no movimento da “Renovação Democrática”. O grupo sentia a falta de um pensador sistematizante, de um doutrinador que harmonizasse a dinâmica cultural à acção política, embora sob o compromisso de ninguém aceitar cargos nos Governos da República. Uma solução veio a ser revelada. Após o fracasso da revista Pela Grei, e António Sérgio regressado da emigração, Raul Proença anteviu que António Sérgio seria uma pedra angular da revista, por isso que nesta publicou uma apologia e um desafio. Não compreendia que uma personalidade de élite como Sérgio tivesse como que renunciado à suprema realização do homem, acrescentando: “Sobre ser uma inteligência, ele tem de ser necessariamente um herói”. Mais: “O pedagogo que abandona Portugal dá ao país a pior lição de pedagogia”21. Cf. RIBEIRO, Álvaro, As Portas do Conhecimento, pp. 25-34. Cf. CARDIA, Mário Sottomayor (org.). Seara Nova. Antologia. Pela Reforma da República. 1921-1926, vol. 1. Lisboa: Seara Nova, 1971, p. 21, documento.

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Sérgio entendeu o recado, acabando por ingressar nos quadros da Seara Nova, de cuja fundação, como vimos, não participara. A entrada de Sérgio levou a uma reorganização dos Corpos Directivos, então integrados por ele, por Câmara Reys, Faria de Vasconcelos, Raul Proença e Jaime Cortesão. Este Corpo Directivo manteve-se até 1924, data em que à Empresa aderiram Mário de Azevedo Gomes e o Capitão Sarmento Pimentel. Em 1934, Sérgio é nomeado Director Delegado e Câmara Reys devém Editor. Por fim, em 24 de Junho de 1939 (n.º 618), a Direcção ficou nas mãos de Câmara Reys até à data do seu falecimento em 1961. Até 1940, Sérgio continuou no Corpo Directivo, tendo como Editor José Bacelar e como Director Augusto Casimiro (falecido em 1967), o último, segundo julgamos, aderente que a Seara Nova recebera da “Renascença Portuguesa”22. Tendo observado a circunstância, por nos parecer adequado começar por ela, olhemos agora para a Seara Nova em si mesma. Ela apresentou-se como o “esforço de alguns intelectuais, alheados dos partidos políticos, mas não da vida política, para que se erga, acima do miserável circo onde se debatem os interesses inconfessáveis das clientelas e das oligarquias plutocráticas, uma atmosfera mais pura em que se faça ouvir o protesto das mais altivas consciências, e em que se formulem e imponham, por uma propaganda larga e profunda, as reformas necessárias da vida nacional”. Do Manifesto de apresentação importa reter as teses ou afirmações comportamentais e programáticas, a saber: A situação do país é miserável, “e todo o país tem de aceitar a responsabilidade que lhe cabe no desastre colectivo”. Todavia, a élite tem uma responsabilidade acrescida, “ela é a maior responsável, porque constitui aquela parte da consciência duma nação que deveria ser a última a desfalecer ou a corromper-se”. “Os homens da Seara Nova pretendem fazer […] em nome de toda a élite portuguesa, o seu acto de contricção. Serão poetas militantes, críticos militantes, economistas e pedagogos militantes”. A Seara Nova “pretende constituir” um núcleo de homens de boa consciência e vontade enérgica, dispostos a assumir perante a espoliação, a rapina, o egoísmo e a mentira nacionais, uma violenta e sistemática atitude 22

Outros Directores vieram depois até ao último número (1599, de 21.1.1979). Após esta data, ainda saíram três números avulsos relativos a 1980, 1981 e 1982, para garantia da propriedade do título. No decurso da sua existência, a Empresa sediou em diversos endereços: Calçada do Tijolo, 37 A; Travessa da Boa Hora, 45; Rua António Maria Cardoso, n.º 26; Praça Luís de Camões, 46, 2.º; e, por fim, Rua Luciano Cordeiro, em Lisboa.

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de protesto. “Quem mente ao povo é réu de alta traição”. “É à verdade, à sinceridade, à absoluta lealdade e probidade de pensamento, que é mister habituar o povo português”. Além disso, a Seara Nova “quer chamar a atenção de todo o país, para as reformas necessárias e contribuir para que se crie, em volta dessas reformas, um espírito nacional que se exija e apoie”. “Não se prenderá a vãs palavras – República, Revolução,… para atingir as próprias realidades. A literatura, a arte, a filosofia são necessidades mais insofismáveis e as mais altas realidades da vida da espécie. O realismo conjugar-se-á com o idealismo, evitando utopias materialistas”. Do ponto de vista político, a Seara Nova enfileira na extrema esquerda da República. “Radical, sem ser jacobina”, todas as suas simpatias vão para “os que lutam, dentro da ordem, dos métodos democráticos […] pelo triunfo do Socialismo. É necessário regressar ao 5 de Outubro e iniciar nova progressão”23. A par do arrazoado ideológico, porventura menos acessível à cultura do comum, a Redacção sumariza em simples frases ou motes, a sua natureza e finalidade: não lisonjeará nenhuma classe social; não dará, aos seus aderentes, qualquer esperança de benefício pessoal; não pretende o poder, mas quer criar as condições para um verdadeiro poder; quer a Revolução, mas não aplaude as revoluções; visa o proveito colectivo e não o próprio; não se limita a celebrar as glórias do passado, mas quer criar uma nova glória para a Pátria; não olha o passado, e marcha para o futuro; para além dos heróis mortos, quer que apareçam os heróis vivos; enfim, “dirige todos os esforços para a acção, e para a preparação do dia de hoje e de amanhã”24. O Manifesto, ou Editorial, foi decerto aprovado em plenário, mas no seu teor pressente-se a aura do pensador e patriota republicano que foi Raul Proença, tal como se pressente ainda no artigo relativo à remodelação ocorrida em 1923. Num convite dirigido a todos os portugueses desinteressados do poder, e de puras intenções, e a fechar o Editorial de apresentação, de novo se professa que “a Seara Nova não é nem será um partido político”, que não pretende a “governança” mas que visa obrigar os políticos “a seguir uma verdadeira política nacional”. A revista está aberta a quem, neste quadro, deseje nela colaborar. A fechar estas páginas preliminares, um apontamento assinado R.P. sobre “A Seara Nova e certos Republicanos”. Afinal, a animadversão com a Seara Nova não vinha apenas dos integralistas 23

Seara Nova, n.º 1, Lisboa, 15.10.1921, pp. 1-3. Cf. MARQUES, Teresa M. In: Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, vol. IV. Lisboa: Verbo, 2001, col. 447. O artigo em causa acha-se reproduzido em PROENÇA, Raul. Páginas de Política, 2.ª série. Lisboa: Seara Nova, 1939, pp. 85-92.

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e dos nun’alvaristas. Soprava também de sectores republicanos, incapazes de verem que a juventude se apegava à ideologia monárquica porque, nos terrenos dos factos, lhe era dada apenas uma “República monstruosa”, cujos agentes pensavam defender o precário regime com as “metralhadoras da guarda republicana”; mesmo o convencido de ser parte do escol intelectual não dizia amen à Seara Nova. Viam nela uma espécie de fiscal, os olhos do Povo atentos aos políticos25. Em 1923, iniciava-se uma nova fase, aliás explicada em competente artigo, cujas linhas fundamentais mencionam: a necessidade de maior unidade doutrinal e de maior exigência quanto aos textos destinados a publicações; o número de Directores era reduzido, mas enriquecido com “o nome cheio de prestígio de espírito mais lúcido, mais penetrante e mais sólido da moderna geração” – António Sérgio. Este, por sua vez, comprometera-se a não alterar a linha doutrinal nem os processos de combate construtivo, os membros da revista continuando o seu republicanismo de tendência socialista, mas contrária ao bolchevismo. Enfim, independência quanto às crenças religiosas, ao acatamento dos métodos democráticos, o combate ao liberalismo económico, aos mitos revolucionários, em resumo, “a disciplina social fundada na disciplina intelectual, na moralidade governativa e na prática da justiça”26. Tudo quando os textos editoriais proferem, achase resumido no breve aviso “Seara Nova pretende”, que habitualmente constava do verso da capa da frente: cinco parágrafos, cujo último afirma o contributo para formar, acima das Pátrias, a união de todas elas, numa consciência bem forte, para evitar novas lutas fratricidas. No entanto, desentendimentos internos ocorreram algumas vezes. O mais notório terá sido o abandono da revista por Mário de Azevedo Gomes e António Sérgio, ao tempo da II Grande Guerra. Tentou-se que o episódio passasse despercebido, e, por isso, a revista limitou-se, em breves linhas, a noticiar que aqueles dois colaboradores deixaram de figurar entre os Directores, “numa resolução que torna definitivo um afastamento que existia há já alguns meses”27. Todavia, a Direcção lamentou o afastamento. Aliás, no exílio desde 1927, Jaime Cortesão também se afastara, fixando-se em 1940 no Rio de Janeiro, enquanto em 1941, Raul Proença, incompletamente são do foro mental, falecia no Porto.

Seara Nova, n.º 1, Lisboa, 15.10.1921, p. 6. Seara Nova, n.º 22, Lisboa, Abril de 1923, pp. 153-154. É óbvio que, no aspecto da teoria e da prática política, a Seara Nova mostrava uma solidez pouco explicitada por A Águia. 27 Seara Nova, n.º 662, Lisboa, 20.4.1940, p. 88. 25

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A Seara Nova professou o distanciamento da vida política activa, no entanto, viria a participar do Governo de Álvaro de Castro, em Dezembro de 1923, após convite de Álvaro de Castro a Jaime Cortesão, que recusou, enquanto António Sérgio aceitou o Ministério da Instrução e Mário de Azevedo Gomes, o da Agricultura. Estas nomeações levaram a Seara Nova a explicar que as aceitara “para defender o seu ponto de vista de política geral e para pôr em prática os seus planos”28, mas ambos os seareiros vieram a abandonar as pastas em Fevereiro de 1924. Aproveitamos este lugar para rememorar a dinâmica integracionista de Sérgio, mediante o grupo dos Homens Livres, congregando monárquicos e republicanos, dando corpo à revista intitulada Homens Livres, de que Sérgio foi o principal redactor, enquanto que do lado monárquico sobressaía António Sardinha. O grupo era suprapartidário, não pondo a questão do Regime, mas de facto, do lado dos monárquicos, o Regime estava em questão, pois visava a retoma da Monarquia. E a iniciativa, talvez destinada a anular os extremos representados pelo republicanismo seareiro e pelo monarquismo integralista, acabou sem florescer. O lugar de Sérgio estava, pois, confinado à Seara Nova. Brincando com a decadência da “Renascença Portuguesa” e da assunção do seareirismo de Sérgio, Pascoaes escreveu: “Finalmente, A Águia fugiu-me das mãos para voar mais alto. E, faminta, pousou em Lisboa, na Seara Nova, onde encheu o papo”29. Os acontecimentos de 1926 deram azo a múltiplas reacções. A Seara Nova declarou apoiar um “governo excepcional”, e com liberdade de acção, por forma a estabelecer a moralidade administrativa e a preparar a instauração de um regime de instituições democráticas30. Já antes, quer António Sérgio quer Alfredo Pimenta, tão distanciados um do outro, achavam vantagem na instauração de um governo forte (Ditadura) transitório, como remédio de última instância. Acreditava-se que a Ditadura seria breve, mas não foi, por isso que, desde cedo, a Seara Nova e Sérgio se assumiram como opositores ao Regime. Este, afinal de contas, não correspondia à União Cívica por ele preconizada em tempo, e que de certo modo figurava um modelo de união nacional, pluralista, em que os interesses sectoriais se vergassem face ao interesse nacional. Ezequiel de Campos, o mais preparado dos tecnocratas seareiros, não veio, afinal, a realizar-se ao serviço do Estado Novo, dedicado à organização económica, agrícola, energética e hidráulica? Seara Nova, n.º 28, Lisboa, 28.12.1923, p. 71. PASCOAES, Teixeira de. António Carneiro. In: ______, A Saudade e o Saudosismo, p. 208. 30 Seara Nova, n.º 90, Lisboa, 3.6.1926, p. 358. 28

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Já na revista Pela Grei, Ezequiel era o mais contributivo na área económica, enquanto Sérgio privilegiava a educação e a cooperação social, e Raul Proença, diferente do intelectualismo de Sérgio, se envolvia na didáctica política31, matéria em que a Seara Nova abundou. Uma breve análise revela os temas privilegiados na revista: doutrina social e política, problemas morais e filosóficos, educação, história, humanidades e, claro, as polémicas, e os problemas decorrentes da Guerra. As controvérsias políticas diminuiram um tanto após 1926, mas, nos primeiros seis anos de existência, de acordo com uma estatística credível, mais de 50% da revista era ocupada pela temática política32. Assinalamos, no entanto, as problemáticas inerentes a algumas polémicas: Raul Proença contra o integralismo, António Sérgio contra José Marinho e Sant’Anna Dionísio, a propósito de Leonardo Coimbra, e também, José Régio versus Álvaro Cunhal sobre a missão da arte. A Empresa procurou satisfazer o programa inicial, e, a par da revista, criou e manteve cadernos de cultura, sobretudo de textos didácticos, para o ensino liceal, e outros poligráficos. A Universidade Livre também se concretizou, funcionando na Praça Luís de Camões, n.º 46, 2.º (esquina da Rua da Misericórdia, no mesmo local se tendo estabelecido, em tempo, a Causa Monárquica). A duração da revista, quase sessenta anos, levou a que gerações adventícias, já marcadas por ideologias materialistas, perturbassem o perfil fundacional. De facto, já em 1949, António Sérgio, interrogando-se acerca de aspectos negativos da vida portuguesa, questionava também: “[…] porque é que uma revista como a Seara Nova veio a dar no contrário do que foi outrora?”33. O juízo de David Ferreira pode tomar-se como decisivo: “Não sendo, nem tendo desejado ser um partido político, a Seara Nova […] foi sempre um movimento político, com largos intuitos de pedagogia moral e social”34.

NATÁRIO, Celeste. O Pensamento Filosófico de Raul Proença. Lisboa: INCM, 2005 (sobretudo a Parte III, pp. 241-278). 32 LEMOS, Mário Matos e. A “Seara Nova” e o Pensamento da Revolução Nacional. Lisboa: Ed. Panorama, 1966, pp. 18-19; FERREIRA, David. A Acção Política da “Seara Nova”. Seara Nova, n.os 1000-1007, Lisboa, 26.10.1946, pp. 208-214. Mais importante: CARDIA, Mário Sottomayor (org.). Seara Nova. Antologia. Pela Reforma da República. 1921-1926, 2 vols. Lisboa: Seara Nova, 1971-1972. 33 SÉRGIO, António. Ensaios, tomo I. Lisboa: Sá da Costa, 1971, p. 93. Excerto de uma nota transcrita da 2.ª edição dos Ensaios (Coimbra, 1949). 34 FERREIRA, David. Seara Nova. In: SERRÃO, Joel et alii (dir.). Dicionário de História de Portugal, vol. 5. Porto: Livraria Figueirinhas, 1992, pp. 503-508. 31

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Sérgio e Proença pesaram muito na Seara Nova, como Pascoaes e Leonardo Coimbra pesaram n’A Águia. Durante anos assistiu-se à dialéctica de leonardistas e de sergistas. A “Renascença Portuguesa”, como coração do que já se designou por Escola Portuense, originou uma sequência de gerações que se reivindicam da sua matriz. Dela nos ficaram sobretudo três valores: o Criacionismo em Filosofia, o Saudosismo em Antropologia Filosófica e o Lirismo metafísico na Poesia. Quanto à Seara Nova, consideramos que constitui um ramo da “Renascença Portuguesa”, de feição heterodoxa, mas com as mesmas raízes, ou melhor, dadas as circunstâncias fundacionais, melhor será considerar a “Renascença Portuguesa” irmã mais velha, mas ambas originadas pelo mesmo ideal, correndo diferentes caminhos35. Quanto às linhas filosóficas predominantes, parece que o sergismo não gerou um discipulato, enquanto o leonardismo tem gerado uma sucessão de discípulos que se reivindicam da herança renascentista. Contudo, a Seara Nova teve uma vida (mesmo que difícil) mais longa e interveniente do que A Águia.

No mesmo quadro ou sequência, tem lugar o movimento denominado Renovação Democrática (1932-1945), inspirado na Renascença Portuguesa e com alguma apetência polemizante ao jeito da Seara Nova. Outras publicações se reivindicam da herança como o 57 – Movimento da Filosofia Portuguesa (1957), a Nova Renascença (1980), a revista Leonardo (1988), Teoremas de Filosofia (2000) e, mais recentemente, a Nova Águia (2008).

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Quase nove décadas após a fundação da revista Seara Nova, cujo primeiro número fez a sua aparição a 15 de Outubro de 1921, continuam a causar viva impressão o rasto de mal-entendidos da relação de Leonardo Coimbra com o grupo seareiro e o não menos impressivo retrato de animosidades com que se comprometeu a dignidade moral do filósofo portuense, se atingiu a figura humanista do pensador e a idoneidade da sua filosofia. As pinceladas desse retrato, que se perpetuaria até muito tempo depois da morte prematura de Leonardo Coimbra a 2 de Janeiro de 1936, têm as suas origens assinaladas nas opções intelectuais e pragmáticas, filosóficas, políticas e ideológicas, dos intervenientes e formaram o substrato do imaginário seareiro em torno de Leonardo, imaginário tornado activo e orientado pelo magistério de António Sérgio, tal como pude pessoalmente constatar nos finais da década de 80 pela boca do historiador Joel Serrão, no Porto, na Fundação Engenheiro António de Almeida, era eu um insuspeito estudante açoriano em terras nortenhas, ainda muito longe de conhecer-me intérprete de Leonardo. Aquele contributo de Joel Serrão para a mesa redonda sobre Leonardo e outros pensadores não me impressionou pela galhardia da retórica, que, com prazer, apreciei, mas pelas circunscrições com que facilmente estabelecia o lugar de inscrição de Leonardo na História do Pensamento Português, embora não deixasse ele, verdade seja dita, de reconhecê-lo filósofo. Mais tarde lhe confirmei algumas deixas sergianas ao ler os textos da polémica de António Sérgio com Sant’Anna Dionísio, que eclodira, em 1936, a propósito do valor filosófico da obra de Leonardo Coimbra, nas colunas do periódico lisboeta O Diabo, ao tempo dirigido por Rodrigues Lapa. Este episódio longínquo não me atirou para o estudo da obra leonardina, para o que houve outras e mais substanciais razões. Todavia, conjugado com os frutos de conhecimento que me vieram das relações com quem histórica e filosoficamente melhor se identifica com Sérgio e o espírito da Seara Nova, feita a passagem de estudo pela obra sergiana e de outros seareiros, fiquei convencido de que um imaginário seareiro, com legitimidade sociológica e cultural, subsistiu a partir das controvérsias que separaram Leonardo e

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o grupo da Seara Nova, que logo se manifestaram em 1921, declaradamente se agravaram a partir de 1923, ano de entrada de Sérgio para a Seara Nova, e receberam, em 1936, o impulso da polémica Sérgio/Sant’Anna. Esta polémica dá a António Sérgio a responsabilidade de principal construtor desse imaginário. Para ele contribuiu com o recorte de oposições entre o projecto político da Seara Nova – pelo menos no tempo em que identificou na revista uma tribuna doutrinal própria e também pragmática da sua experiência governativa, ponto que deve ser distinguido do ideário político de Raul Proença e de outros, com que, aliás, começou a revista1 – – e a doutrina e a acção políticas de Leonardo Coimbra, oposições evidentes tanto na acção ministerial com que extinguiu as Escolas Primárias Superiores (sumo da acção governativa de Leonardo), quando ocupou o lugar de Ministro da Instrução Pública, entre 18 de Dezembro de 1923 e 28 de Fevereiro de 1924, no governo de Álvaro de Castro, quanto na questão da instrução religiosa nas escolas particulares. As Escolas Primárias Superiores faziam parte de um pacote mais vasto de medidas ministeriais de Leonardo Coimbra, que, de 30 de Março a 29 de Junho de 1919, exerceu o cargo de Ministro da Instrução Pública, no 16.º governo republicano, primeiro governo de Domingos Leite Pereira. Polémica foi a ordem de desanexação da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e sua transferência para a Universidade do Porto (decreto n.º 5.770, de 10 de Maio de 1919). Seguiram-se protestos e sessões parlamentares até fins de Julho. Foi nesse contexto que redigiu Leonardo o opúsculo A Questão Universitária, pronunciado na Câmara dos Deputados e editado no mesmo ano. O novo governo, já Leonardo saíra do Ministério, confirmaria a continuidade da Faculdade em Coimbra e a criação de uma Faculdade de Letras no Porto (Lei 861, de 27 de Agosto de 1919). Aquando do Ministério de António Sérgio, apesar da ameaça que impendeu sobre a Faculdade, o seu encerramento não se verificou por mando deste, mas veio a dar-se em 1928, pelo decreto-lei 15.365, de 14 de Abril. Das outras medidas do primeiro ministério de Leonardo, assinalemse a reestruturação do Conservatório de Música de Lisboa, que passou a Quando, em 1923, Sérgio integrou a direcção da revista, saíram Aquilino Ribeiro, Augusto Casimiro, Ferreira de Macedo, Jorge de Azeredo Perdigão e Raul Brandão, ficando, com Sérgio, Câmara Reys, Faria de Vasconcelos, Jaime Cortesão e Raul Proença. Um estudo criterioso seria de fazer-se ao projecto político da Seara Nova, que admite dois momentos, sendo o segundo, de Sérgio, diferente dos fundamentos do ideário de Proença e Cortesão.

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designar-se Conservatório Nacional de Música, dos serviços de Instrução Primária e do Teatro Nacional Almeida Garrett. Introduziu ainda alterações ao regulamento do Ensino Secundário, propôs uma reforma dos estudos filosóficos liceais e universitários, criou um curso de Fisiologia, Embriologia e Biologia Gerais na Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra, um curso prático de Psicologia Experimental nas Escolas Normais do Porto e de Coimbra, e mandou reestruturar a Biblioteca Nacional, para a qual nomeou director o amigo e companheiro de muitas lutas, Jaime Cortesão. Foi este acto de Leonardo, que estava ciente de uma reforma urgente, administrativa e cultural, da Biblioteca, que criou as condições para que despontasse no gabinete de Jaime Cortesão e com a colaboração de Raul Proença, o designado “Grupo da Biblioteca Nacional”, a primitiva célula que germinaria e daria corpo, em 1921, à revista Seara Nova, cujo projecto, com Cortesão, Proença, Augusto Casimiro e, mais tarde, António Sérgio, se demarcou como forma dissidente da revista nortenha A Águia e do grupo da “Renascença Portuguesa”, por aqueles não se reconhecerem mais nos destinos culturais, políticos e ideológicos renascentes, sobretudo no rumo que lhes imprimira o saudosismo de Teixeira de Pascoaes e o seu programa de revitalização da pátria e do espírito nacional. Nos Anais das Bibliotecas e Arquivos, de Julho a Setembro de 1920, Jaime Cortesão reconhecia a Leonardo Coimbra que o seu nome ficaria de forma indelével ligado à Biblioteca pela lei de 10 de Maio de 1919 com que proporcionara a sua reforma, permitindo assim que esta instituição passasse de simples depositária de livros a influir directamente na vida cultural da pátria. Se a memória colectiva não veio dar razão a Jaime Cortesão, tendo ficado o facto apenas na lembrança dos amigos e dos eruditos, a atitude de Cortesão prova ao menos que ele e Leonardo, em 1920, mantinham os laços da mais antiga e funda amizade, que, no entanto, se perderiam em 1924, após a segunda passagem do filósofo portuense pelo Ministério da Instrução Pública, que ocupou de 30 de Novembro de 1922 a 9 de Janeiro de 1923, no 31.º governo republicano, segundo governo de António Maria da Silva. Foi nesta segunda passagem pelo governo que obteve, por ter defendido a liberdade do ensino religioso nas escolas particulares, a oposição dos partidos, tendo, por isso, renunciado à pasta. O primeiro artigo de Sérgio na Seara Nova, de Fevereiro-Março de 1923, a páginas 148 a 150, “O Problema da Instrução Religiosa nas Escolas Particulares”, espelha a ainda encoberta animosidade para com Leonardo e marca com ela a sua estreia na revista. Sucintamente: Sérgio considera

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que a posição filosófica e pedagógica de Leonardo não é nem filosófica nem pedagógica mas jurídica e que Leonardo, enquanto ministro, se devia ter atido ao problema estatal e constitucional do ensino religioso. Não o fazendo, ajudou a confundir a questão jurídica com aquelas, concluindo Sérgio pela defesa de que o ensino, sem excepção, deverá ser laico e neutral em matéria religiosa. Não foi, porém, a questão do ensino religioso que esteve na origem da separação de Cortesão de Leonardo. O episódio, absolutamente infeliz, inclui Sérgio, no tempo em que foi Ministro da Instrução, e gerou o artigo, publicado em 1924 na Seara Nova, página 92, não assinado e intitulado “Leonardo & Leonardo”, que versa assim: “Leonardo Coimbra, (n.º 1), veio a Lisboa com uma grande comissão em defesa da Universidade do Porto. Antes de se dirigir oficialmente ao Ministro de Instrução, procura-o no seu gabinete, para o abraçar fraternalmente. Pouco depois encontrava mais alguns directores desta revista, aos quais abraçou também fraternalmente [Jaime Cortesão e Raul Proença]. Nesse mesmo dia Leonardo Coimbra, (n.º 2), entrevistado pelo Diário de Lisboa, hostilizava e procurava meter a ridículo o mesmo Ministro da Instrução e «os pensadores da ‘Seara Nova’» mais a sua “ânsia de colher”. Existirão na verdade dois Leonardos, que se desmintam e falsifiquem mutuamente? Ou os dois farão um só, com tão notável riqueza de personalidade e incontinência de língua?”

A notícia de que restrições orçamentais levariam à extinção das Escolas Primárias Superiores, sistema equivalente ao nosso actual segundo ciclo, e da Faculdade de Letras do Porto levou a que, alarmados, os professores primários e liceais se tivessem constituído em comissão, para o que pediram o apoio e chefia de Leonardo Coimbra, que, com eles, a 10 de Janeiro de 1924, veio a Lisboa e se encontrou com o Ministro da Instrução Pública. Leonardo e o grupo de professores receberam a informação de que nada havia com que se preocupar. Antes de Sérgio abandonar o governo a 27 de Fevereiro de 1924, um seu decreto, ainda em Janeiro, extinguia oficialmente as Escolas Primárias Superiores sob o pretexto de que um mal insanável lhes vinha de raiz: um professorado mal preparado, cujas competências teriam de ser revistas e obrigado a reciclagem, que havia acedido ao ensino sem concursos por provas públicas. O Ministro achou por bem que a extinção era o melhor caminho para a criação de novas escolas, o que lançou no desemprego os professores e fechou as portas aos estudantes.

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O que incomoda neste processo é, sobretudo, o facto de que nada se criou de alternativo. De uma assentada ruiu o sistema de ensino que no ano lectivo de 1924-25 albergava 1660 estudantes e 362 professores. Era também o melhor do empenho ministerial e pedagógico de Leonardo Coimbra que mergulhava na catástrofe, sobre que se pronunciou o próprio classificando o acto de “verdadeira monstruosidade” numa entrevista a um jornalista do Porto, Marques da Cunha, dada em 1926, logo após o decreto de 15 de Junho que confirmou a extinção das Escolas Superiores. Esta entrevista manteve-se inédita até à sua publicação por António José de Brito no n.º 1 da revista Praça Nova, de Julho de 1960. Leonardo reclamava: “Não havia o direito de as extinguir, não havia sequer o direito de mandar a concurso os seus professores; mas antes o dever de as mandar inspeccionar, eliminando os professores claramente incompetentes, obrigando os medíocres a um esforço de aperfeiçoamento”2.

A ida a Lisboa para salvar as Escolas Superiores revelou-se infrutífera, mas com uma consequência que envenenaria as relações já complexas de Leonardo com o grupo seareiro. Um jornalista do Diário Popular procurou Leonardo, que entrevistou, tendo publicado, naquele jornal, a 11 de Janeiro de 1924, a peça que intitulou “Entrevista: Luta de Rivais: O Porto defendese de Lisboa”, que Leonardo Coimbra repudiaria por não estar de acordo com o que transmitira e que Sant’Anna Dionísio, mais tarde, classificaria de apócrifa em grande parte. Foi esta entrevista que originou o citado artigo da Seara Nova, “Leonardo & Leonardo”. O episódio, apesar do desmentido de Leonardo, a que o n.º 31 da Seara Nova, de 15 de Fevereiro de 1924, alude laconicamente, “feriu de morte – diz Sant’Anna Dionísio – as boas relações que Leonardo Coimbra até então mantivera com alguns dos mais destacados seareiros. Destes, somente Raul Proença continuou a tributar ao filósofo uma amizade sincera, acima de quaisquer questiúnculas; Jaime Cortesão, o amigo de longa data, o companheiro de tantas lutas, afastou-se definitivamente”3.

Cf. DIONÍSIO, J. Sant’Anna. Leonardo Coimbra: O Filósofo e o Tribuno. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1985, p. 196, e COIMBRA, Leonardo. Cartas, Conferências, Discursos, Entrevistas e Bibliografia Geral. Compilação e notas de Pinharanda Gomes e Paulo Samuel, nota preliminar de Pinharanda Gomes. Lisboa: Fundação Lusíada, 1994, p. 231. 3 DIONÍSIO, J. Sant’Anna. Leonardo Coimbra: O Filósofo e o Tribuno, pp. 251-252. 2

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No depoimento de Raul Proença, com que Sant’Anna Dionísio encerrou a polémica de 19364, estão bem reflectidos, sem equívocos, os valores de amizade e companheirismo que sagraram as relações de Proença e Leonardo, consistindo num desmentido formal das toscas assertivas que puseram em causa aqueles valores. No balanço final, escrevia o próprio Sant’Anna: “Perante este esclarecimento fica crucialmente provada a carência de razão de ser do protesto que A. S. [António Sérgio] entendeu levantar contra o nosso opúsculo, proclamando que era um ultraje a hipótese, nele sugerida incidentalmente, de que R. Proença nos parecia ter sido um dos que estimou culturalmente L. Coimbra”5.

Esta polémica, que culmina o desapreço que Sérgio tinha por Leonardo, aconteceu em meados de 1936, quando, a propósito do livro de Sant’Anna Dionísio, Leonardo Coimbra: Contribuição para o conhecimento da sua personalidade e seus problemas, Sérgio fez publicar nas colunas de O Diabo um artigo intitulado “Sobre uma opinião de Raul Proença”, onde protestava contra o uso do testemunho de Proença sobre o valor filosófico de Leonardo Coimbra, opinião que reputava falha de toda a verdade. O combate, com argumentos parte a parte, estendeu-se de Agosto a Dezembro, nem sempre com, quanto a Sérgio, a elevação moral que o bom senso consentiria, empenhado que esteve num polemismo de chacota que acabou no apodo de “palhaço” ao pensador portuense e de “palhaçada” à sua obra e pensamento. Ficou lesado sobretudo o valor da crítica, que devia ter sido posta ao serviço da verdade, e instruída pela leitura directa da obra do visado, o que Sérgio não fez e recusou mesmo fazer, segundo o teor final do último artigo “Resposta, não ao panegirista de Leonardo Coimbra, mas a três leitores que se me dirigiram”. Igualmente partilhou Rodrigues Lapa com António Sérgio este processo de fuga à hermenêutica da obra ao recusar a Sant’Anna Dionísio a publicação n’O Diabo de trechos de Leonardo com a afirmação de que não publicava nada do “mau cidadão” que fora Leonardo Coimbra. Directa ou indirectamente outros contribuíram para esta polémica detractora da dignidade do recentemente falecido filósofo, como Abel Salazar, que, por motivos de rivalidades passadas, publicou, no número 80 da revista Pensamento, do Porto, o texto “O dueto caracterológico e pseudofilosófico de Coimbra e Pascoaes”, a peça mais profundamente agressiva e malévola que foi escrita sobre Leonardo e Pascoaes, visando contaminar Idem. Objecções a António Sérgio sobre o Valor da Obra Filosófica de Leonardo Coimbra. Porto: Imprensa Portuguesa, 1938, pp. 111-112. 5 Ibidem. 4

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relações e sujar memórias, que receberia em tempo seguinte, em 1937, na Sol Nascente, a crítica estruturada de Adolfo Casais Monteiro. Sérgio aproveitou o ensejo e, no fim da polémica com Sant’Anna, referiu e inseriu nas páginas de O Diabo trechos de Abel Salazar, o que também fez na Seara Nova, como comprovam os números 488 e 489, secção “Factos e documentos”, artigo “Uma palhaçada filosófica”. Foi esta polémica, acrescida da verve cáustica de Salazar, que fez perdurar na nossa memória cultural a imagem de fundas desavenças intelectuais e ideológicas de Leonardo com os seareiros quando muitas das relações daquele com estes foram de convívio franco e amizade, nomeadamente, até à morte, com Raul Proença, seu compadre, e com Jaime Cortesão até ao indicado ano de 1924. Outra figura não pode ser esquecida. É Câmara Reys, antigo colaborador de Leonardo Coimbra, que foi seu adjunto no Ministério da Instrução Pública, e de quem o filósofo portuense receberia alguma ingratidão, segundo informa Sant’Anna Dionísio. Compulsando alguns números da Seara Nova, não pude avalisar suficientemente a assertiva de Sant’Anna. Câmara Reys surge no n.º 7 (1922), na página 190, a recensear a revista A Águia na rubrica “Dos Livros” – “Quase todos os directores e colaboradores da Seara Nova escreveram, durante anos, na Águia, e só o desejo e a imperiosa necessidade de criar uma revista com uma feição diferente os afastaram dessa colaboração, sem por isso olharem com menos simpatia as suas páginas, onde tanto talento se tem afirmado” – para, ainda a propósito de A Águia, assinalar, no n.º 117 (1922), o seu regresso, agora sob a direcção de Leonardo Coimbra, e voltar a recenseá-la no n.º 24 (1923), chamando ainda a atenção para os n.os 5 e 6 da Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, de que realça o artigo de Leonardo “Nova concepção espiritualista do Universo”. Do mesmo modo, deve-se ao punho de Câmara Reys o seguinte trecho, extraído do n.º 9 da Seara Nova (1922), página 246, na rubrica “Notas e Comentários”, com o título “Leonardo Coimbra”: “É uma das figuras mais representativas da sua geração e ligam-no à Seara Nova muitas afinidades espirituais. Leonardo Coimbra, nos seus discursos em Madrid, não enalteceu apenas o seu nome de orador, de poeta e filósofo; foi um arauto brilhante da moderna literatura portuguesa e das glórias da pátria. As suas orações, de uma elevação religiosa, formam um contraste frisante com a recente entrevista concedida por Aires de Ornelas, há pouco, a um jornalista de Espanha. No próximo número a Seara Nova publicará, sobre o ilustre orador e escritor, o estudo dum crítico muito distinto”.

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O facto mais relevante da biografia de Leonardo, em 1922, foi a sua ida a Madrid. Acolhido por José Carracido, reitor da Universidade Central de Madrid, Bonilla y San Martin, Ramón Maria del Valle-Inclán, García Morente e J. Ortega y Gasset, proferiu três conferências em Fevereiro de 1922: -- A primeira na Residência dos Estudantes da Universidade (“A contribuição das modernas teorias científicas para uma nova concepção do Universo”); -- A segunda na Universidade Central de Madrid (“A Lógica das Ciências”); -- A terceira no Ateneu de Madrid (“O sentido religioso das modernas correntes literárias portuguesas”). O sucesso extraordinário da presença do filósofo em Madrid teve ecos nas imprensas madrilena e portuguesa. Estas conferências e o texto da oração de sapiência deram origem à obra A Razão Experimental: Lógica e Metafísica, a cuja redacção se consagrou nos meses de Setembro e Outubro de 1922, e que publicaria no ano seguinte. Na Seara Nova, n.º 10 (15-03-1922), na página 268, rubrica “Notas e Comentários”, noticia Câmara Reys, sob o título “Leonardo Coimbra”, que: “Só no próximo número será publicado o estudo do sr. Dr. Teófilo Júnior sobre a individualidade de Leonardo Coimbra. Aproveitamos esta oportunidade para anunciar aos nossos leitores que o ilustre conferente teve a gentileza de prometer à Seara Nova o texto inédito da primeira das duas conferências, realizadas com tanto êxito, em Madrid”.

O estudo de Teófilo Júnior apareceria no número seguinte, a páginas 287-289. Trata-se de “O pensamento filosófico de Leonardo Coimbra” que, por razões desconhecidas, não continuou, conhecendo-se apenas esta primeira parte. Quanto ao texto das duas primeiras conferências madrilenas, não chegou a concretizar-se a promessa de Leonardo ou não chegou a ser publicado pela Seara Nova. Trata-se de “A contribuição das modernas teorias científicas para uma nova concepção do Universo”, provavelmente o texto que, com eventuais modificações, ele publicaria em 1923, na Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, com o título “Nova concepção espiritualista do Universo” e que receberia de Câmara Reys a referência de notícia com que indicou a saída dos n.os 5 e 6 daquela revista. A pedido de Câmara Reys se deve o único artigo de Leonardo publicado na Seara Nova, n.º 38, Setembro a Outubro de 1924, que insere o artigo-carta a Câmara Reys sobre o livro de Sarmento Beires, Sinfonia do Vento.

Manuel Cândido Pimentel

O que há de mais relevante nos anos seguintes para a ponderação das relações de Leonardo com os seareiros está circunscrito à referida polémica de Sérgio com Sant’Anna Dionísio. Esta polémica e o referido imaginário seareiro em torno de Leonardo devem merecer dos intérpretes de hoje o reconhecimento de que são casos de museologia, que interessam pelo valor sociológico e pela sintomatologia cultural da época e do repto das ideologias e pragmatismos políticos. Tal atitude, que deve ser a mais crítica e serena, é quanto basta para que reconheçamos aos grupos da “Renascença Portuguesa” e da “Seara Nova” o lugar que ocuparam e que continuam a ocupar na renovação da cultura e da vida pátrias com a sua herança de apelos à acção e à transformação, tal como, do mesmo modo, António Sérgio e Leonardo Coimbra, reagindo ao meio e pensando, fecundamente agiram sobre as gerações, cada qual a seu modo pelo magistério directo e pelo pensamento vivo nos seus livros.

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Leonardo Coimbra e a Seara Nova

Depois da Renascença Portuguesa JOAQUIM DOMINGUES Instituto de Filosofia Luso-Brasileira

I – Justificação O curioso artifício que permitiu juntar na mesma celebração o movimento da Seara Nova com as personalidades e obras de Raul Proença, António Sérgio e Jaime Cortesão ganha talvez maior coerência se atentarmos em que anuncia e prepara a do centenário do regime republicano. Como se naquele quadro se espelhasse quiçá o republicanismo ideal (para usar do jeito sergino) que, de tão arredado das concretas formas da política, da cultura e dos valores comuns, foi perdendo as virtudes mobilizadoras de que chegou a gozar. Porque não partilho dessa perspectiva idealizante, que tenho por irrealista, vejo-me na contingência de assumir uma posição divergente, que não seria leal iludir, desde que aceitei o generoso convite, que muito sinceramente agradeço, para colaborar neste colóquio. À laia de justificação, vem-me à memória um dos primeiros livros que li por iniciativa própria, ainda estudante no Liceu Alexandre Herculano, no Porto: o Húmus, de Raul Brandão. Era um exemplar usado, da segunda edição, impressa no Rio de Janeiro, em 1921, por diligência de Álvaro Pinto, cuja leitura representou um desafio tão difícil como gratificante, pela funda ressonância de uma visão que se adequava aos ecos ainda vivos na tradição familiar e na paisagem portuense. Ela me revelou, de modo impressivo, o sombrio ambiente anímico da sociedade portuguesa na transição do século XIX para o XX, em vincado contraste à imagem oficiosa duma quase épica libertação popular, de que nunca se me depararam sinais autênticos. Vim depois a encontrar reiterada e até amplificada essa perspectiva na trama vigorosa, mas não menos dramática, da Pátria de Guerra Junqueiro, inscrita numa teoria da história pátria a cuja luz mais avultam as circunstanciadas reflexões de Raul Brandão. E também nos pungentes quadros com que António Patrício imaginou, em 1909, como sacrifício ritual, O Fim de um País moribundo. Na senda dessas criações, que colocam o povo português em face do seu destino, uma profunda empatia me despertaria quem, como o autor de As Sombras e do Verbo Escuro, logrou divisar naqueles tristes cenários os sinais da luz vindoura que anunciavam.

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Não pude apreciar, em contrapartida, os sarcasmos que tingiram as penas e os pincéis de alguns artistas célebres, por melhor intenção ou valor estético que tivessem as suas críticas ao povo e à sociedade portuguesa, pois, mesmo se explicáveis por motivos vários, abriram caminho a uma deprimente concepção do valor próprio. O processo político, social e cultural que, entre outras calamidades, redundara no assassinato do Rei D. Carlos e do Príncipe Luís Filipe, pedia antes uma reflexão séria que, para além de identificar as causas dos males, despertasse as energias capazes de retirar o País do beco sem saída onde, já dobrado meio século XX, parecia manter-se. E a quem observava a persistente erosão do que tinha definido Portugal durante séculos, soava lúcida a advertência do autor da Mensagem, ao atribuir tal desnorte à pecha de os Portugueses procurarem fora de si o que só de dentro há-de brotar como inspiração, rumo e solução para os grandes problemas. Tenho de confessar, pois, que a minha cepa rural, com raízes ainda à mostra não longe do Marão, mais do que na lição citadina, se revia na áspera melodia de quem, arrumado o diploma conquistado em Coimbra, se retirara para o velho solar de Pascoaes, junto do povo rústico que não esquecera ainda as depredações napoleónicas, como não esquecerá o jugo de Castela nem o das legiões romanas. Afinal, o 5 de Outubro de 1910 representara a consumação do insanável divórcio entre as elites (como a si mesmas se chamavam, à francesa) e um povo que se recolhera, ensimesmado, à espera do príncipe libertador que a remotíssima memória lhe traz prometido. Urgia, por isso, compreender as razões da ruptura do modelo cultural e do sistema de valores que, ao invés das crises do passado, ultrapassadas com maior ou menor felicidade, instaurou uma solução de continuidade social que dura há mais de duzentos anos, sem que lhe tenha sido possível encontrar remédio. O paradoxo instalara-se desde que o interesse geral e comum, a coisa pública, fora assumida como função partidária, de uma fracção social, cuja vitória implicara, em vez da reconciliação das partes havia muito desavindas, um novo arranjo do mesmo domínio e até de análogos vícios, com ligeiras mudanças de protagonistas e de regras formais. Não fora por acaso que um homem como Bruno, cada vez mais desafecto ao sectarismo do partido que ajudara a medrar, se vira compelido a denunciar os novos mandarins que o intimavam e a renunciar à intervenção política a que sacrificara toda a vida. Desiludido, como a generalidade dos Portugueses, transferira a esperança que não morre para um horizonte mais largo, onde pudesse respirar, mas também expiar os erros da pressa juvenil, como o

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daquele livro, «má coisa», cujo jacobinismo dos dezasseis anos via alçado a programa do poder.

II – A Renascença Portuguesa Ao contrário do que tentou sugerir na porfiada reescrita do passado pessoal e colectivo, não foi António Sérgio o mentor do movimento que simbolicamente encontrou no Porto a sede da tentativa mais alta, ampla e consequente para reconciliar os Portugueses com Portugal. A capacidade demonstrada para reunir e mobilizar pessoas das diferentes gerações e distintas orientações mentais, como nem antes nem depois alguma vez sucedeu entre nós, só podia ser obra de poetas autênticos (não falo de versejadores), que Teixeira de Pascoaes, com o seu génio original, representou na perfeição. Mas os verdadeiros mentores, as figuras tutelares cuja personalidade, obra e pensamento garantiram o elevado padrão das expectativas mantidas durante alguns anos de rara exaltação criativa, foram os dois homens superiores que deram pelo nome de Guerra Junqueiro e de Sampaio Bruno. A colaboração do primeiro n’A Águia reduz-se ao texto recuperado aquando da sua morte e a do segundo é relativamente parca, ainda que significativamente centrada no tema que, pode dizer-se, elegeu para testamento espiritual, o do Plano de um Livro a Fazer. Os cavaleiros do amor ou a religião da razão. Contudo, o poeta e o filósofo foram, como inspiradores do movimento, não apenas os únicos a quem foram dedicados números especiais da revista, mas sobretudo aqueles cujo legado fluiu para as gerações que deram vida à Renascença Portuguesa, como depois para as que se formaram na Faculdade de Letras do Porto, sob o magistério de Leonardo Coimbra, de Teixeira Rego e de Aarão de Lacerda. Numa cadeia que, sem prejuízo da diversidade das opções pessoais, conseguiu ligar o século XIX ao XXI na certeza de que há um modo distinto de ser Português, ou seja, de que cumpre a Portugal dar um contributo próprio e singular para a evolução universal. A matriz endógena prevalecente no manifesto redigido por Teixeira de Pascoaes, com antecedentes nos próceres do romantismo, mostrou-se a tal ponto mobilizadora que, mesmo os que lhe levantaram embargos e sustentaram orientação divergente, como Raul Proença e António Sérgio, demoraram dez anos a encontrar-lhe alternativa. Entretanto, participaram de pleno direito nas actividades e responsabilidades do movimento, com relevo para o último, que escreveu largamente nas páginas d’A Águia e dirigiu a sua Biblioteca de Educação, como não desdenhou em falar da empresa

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como sua quando achou oportuno. Sendo certo que o mesmo Sérgio, com o jeito retórico característico de quem tudo fia do rigor lógico e da mais pura ética, explicitamente filiou o movimento seareiro no fecundo e generoso tronco da Renascença Portuguesa. Qual movimento matricial de onde irradiaram as principais linhas de desenvolvimento da vida mental portuguesa ao longo do século XX, nele se há-de procurar igualmente a génese de outras aventuras, como foi o caso da que se apresentou sob o signo de Orpheu e teve em Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, sócios ambos da Renascença Portuguesa, as personalidades emblemáticas. Julgo mesmo que ninguém melhor do que o primeiro compreendeu a originalidade e as virtualidades futurantes do pensamento plasmado na obra das gerações que confluíram ao chamamento renascentista. Como bem viu António Quadros, a ruptura das formas estéticas pelos modernistas foi compatível tanto à libertação de energias represadas, como à redescoberta da tradição esquecida, numa essencial consonância aos propósitos dos que, em 1911, reuniram forças para despertar o País da catalepsia anímica em que soçobrava. Demasiado se têm sublinhado as questiúnculas pessoais e as questões acessórias para subestimar a linha de continuidade que culminou, em 1935, na Mensagem, o fecho da abóbada escolhido por Fernando Pessoa para a sua obra. Como também tarda o esclarecimento das linhas da antropologia e da estética que, em termos ora de convergência, ora de divergência, ligam o movimento presencista ao foco portuense, representado por Adolfo Casais Monteiro, mas de modo algum circunscrito a ele. Para o que importa apurar as relações, pouco atendidas e no entanto decisivas, de José Régio com José Marinho e Álvaro Ribeiro, mormente na reflexão acerca da criação artística, dos valores culturais e do seu significado transcendente. Dado o seu lugar privilegiado na vida mental portuguesa, em especial desde o século XIX, cumpre reconhecer quanto a nossa historiografia ficou a dever à Renascença Portuguesa e à Faculdade de Letras do Porto. Sem esquecer Jaime Cortesão, cujo ascendente se afirmou um tanto tardiamente, impõe-se destacar os nomes de Aarão de Lacerda, Mendes Correia, Damião Peres, Hernâni Cidade e Torcato de Sousa Soares, entre os que elevaram a escola historiográfica portuense a um padrão nacional e internacionalmente relevante. Ainda hoje, não obstante a quase radical mudança das perspectivas teóricas, boa parte da sua bibliografia, tanto de âmbito geral, como nos domínios da história da literatura e das artes plásticas, por exemplo, continua a ser estimada e tida em consideração.

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Escuso-me a prosseguir com o elenco dos domínios em que a Renascença Portuguesa marcou época já que, à míngua de competência acresce a inutilidade do esforço para o singelo fito de repor na devida ordem hierárquica os movimentos e personalidades de que me propus fazer o pessoal juízo. É que, malgrado o apreço a que cada um tem jus, julgo inegável que só aquele logrou conjugar as mais diferentes personalidades e diversificadas orientações num projecto realmente comum, de carácter vincadamente patriótico, sem laivos de sectarismo. Todos os demais dele se distinguiram enquanto circunscreveram, especializaram ou reduziram o âmbito dos seus objectivos, ainda quando apelaram a um abstracto universalismo, tão típico dos intelectuais de formação exógena.

III – O movimento seareiro Que por vezes somos a face de algo que nos ultrapassa e só tarde (quando calha) se nos revela no seu verdadeiro significado, é constatação que, por pacífica, nem por isso deixa de ser pertinente. O movimento da Seara Nova que, sob alguns aspectos, aparece como derivado do antecedente, enquanto sob outros se lhe diria antagónico, também se quis, sob diverso prisma, a expressão de uma vontade lúcida, apesar de condicionada por factores históricos bem determinantes. Se em 1911 a águia simbolizara o esforço apostado em unir e dinamizar os Portugueses a partir do alto, sem pôr de parte um influxo transcendente, em 1921 apelou-se antes para as virtudes da terra, procurando fundar na ciência, na técnica e em particular na economia qualquer projecto para vencer o notório caos social em que o primeiro decénio de republicanismo mergulhara o País. Jaime Cortesão – representando uma essencial linha de continuidade – expressamente reconheceu ter o novo movimento correspondido a «uma renascença da ‘Renascença’, a sua actualização em obediência a necessidades novas e vitais» (Portucale, supl. à 3.ª série, n.º 1, Porto, Jan.-Mar. 1962, p. 6), pelo que cumpre interrogarmo-nos sobre as razões da inflexão, assumida sobretudo por Raul Proença, primeiro, e António Sérgio, depois. Assinale-se o facto, aparentemente fortuito, de em 1922 ter vindo a lume o livro de Hipólito Raposo intitulado Seara Nova, em cuja folha de guarda regista que, estando aquela designação escolhida desde 1919, em nada poderia depender «da designação idêntica por que se tornou conhecida uma sociedade comercial de livraria que há poucos meses se constituiu na praça de Lisboa» (sic). Contudo, no ano seguinte, o nome do autor apareceria, ao lado dos de outros integralistas e seareiros, como um dos promotores da revista que, sob o pendão de Homens Livres, reuniu

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quem tinha por comum referência a terra, o positivo e o sólido, ao invés do ígneo dinamismo renascente (Jaime Cortesão falaria dos «quatro mais ardentes iniciadores do movimento», a propósito dos que, com ele, o protagonizaram: Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coimbra e Álvaro Pinto, loc. cit., p. 3). Que o surgimento e o relativo sucesso da Seara Nova derivou em boa parte de factores incoercíveis, parece confirmado pela colaboração que lhe prestou um número significativo de leonardistas. É verdade que alguns só transitoriamente e com reservas o fizeram e outros por razões circunstanciais, mas ainda assim no respectivo índice onomástico algum relevo haverá que conceder ao conjunto das intervenções de Agostinho da Silva, Sant’Anna Dionísio, Adolfo Casais Monteiro e António Salgado Júnior, sem esquecer as de José Marinho e Álvaro Ribeiro. Apesar de não figurarem no seu quadro de honra, nem na antologia organizada por Sottomayor Cardia, ilustram quanto a empresa da Seara Nova teria correspondido a um real impulso, ainda que circunscrito no tempo e sobretudo no alcance. Há no entanto uma diferença assinalável entre a meta da Renascença Portuguesa, que entendia Portugal como realidade trans-histórica e visava reanimar o espírito que haveria de dar novo impulso ao corpo social, e os propósitos da Seara Nova, de cariz mais imediatista, condicionando as suas intervenções no ensino e na divulgação científica, como na política. Por mais de uma vez os seareiros ponderaram em público, como decerto mais detidamente nos conciliábulos restritos, a oportunidade duma ditadura que, sem dúvida com a melhor das intenções, muito dependeria no entanto das técnicas da intervenção social, onde dificilmente se logra traçar a linha demarcadora entre a propaganda, a doutrinação e o condicionamento das mentes. Afinal, o lema da mudança das mentalidades, tão ao gosto de quem admirava o pombalismo e se revia na perspectiva iluminista de um governo de sábios – decerto também virtuosos… –, prestava-se a equívocos tais que até a que se pode ter como biografia oficiosa de António Sérgio reconhece ter ele começado por olhar com benévola expectativa a tomada do poder pelos militares que saíram de Braga a 28 de Maio de 1926 (Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. XXVIII, Lisboa, Rio de Janeiro, s. d., p. 410). Compreende-se o cuidado posto por Sottomayor Cardia na identificação dos especialistas congregados na Seara Nova, como índice de quão bem estaria preparado o grupo para governar ou, pelo menos, apontar as soluções exequíveis numa sociedade carente de homens probos e competentes. Ainda assim, ressalta a ausência de um pensamento agregador, de uma linha de rumo mobilizadora, sequer de uma filosofia política em torno

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da qual se entendessem, não obstante o crescente prestígio conquistado por António Sérgio, mormente após a doença de Raul Proença e o exílio de Jaime Cortesão. De modo que um dos principais factores de unidade do movimento e talvez o que melhor assegurou a sua longevidade terá sido precisamente o poder contra o qual se afirmava de modo mais ou menos ostensivo e cujo declínio afinal acompanhou de perto.

IV – Depois da Seara Nova Ao celebrar o cinquentenário da Seara Nova, em 1971, com uma antologia que não chegou a completar, Mário Sottomayor Cardia tinha a consciência de que o movimento estava em vias de passar à história, pelo que urgia compor o quadro que lhe assegurasse um lugar condigno na memória colectiva. Chega a ser admirável o esforço para apagar ou esbater até ao limite do verosímil as relações dos seus protagonistas com os movimentos antecedentes, concomitantes ou sucessivos, como se no deserto de ideias, na decrepitude anímica e na degradação moral comum melhor se destacasse a impoluta conduta, a nobreza de alma e o saber sem par do núcleo de sumidades encabeçado por António Sérgio, «o doutrinário de vulto incomparável que por cerca de quinze anos, senão definitivamente, [a] marcaria com a sua eminente personalidade de pensador e crítico» (Seara Nova. Antologia, vol. I, Lisboa, 1971, p. 20). Basta porém atentar no tom quase elegíaco da rememoração para compreender quão magra fora a colheita de tão persistente lavra, quiçá porque não lograra formar a elite capaz de estabelecer a ligação entre a fonte de onde manava a doutrina e a ‘arraia-miúda’ (como Sérgio gostava de dizer), ao contrário do que no seu tempo conseguira Teófilo Braga. A questão permite e solicita diferentes abordagens, que a brevidade do tempo mal dá para apontar sequer, apesar da importância do tema, até para entender as vicissitudes de uma iniciativa que teve ao menos o mérito de suscitar debate – mais o debate aceso que a equânime reflexão. É por isso de estranhar que António José Saraiva e Óscar Lopes, na História da Literatura Portuguesa, se limitem a elencar os temas e as teses da obra sergina, omitindo qualquer juízo acerca dos méritos literários de quem se distinguiu pelos recursos retóricos e pela capacidade dialéctica, a verdadeira chave, creio, tanto da favorável recepção entre os contemporâneos, como do relativo desinteresse que sucedeu à mudança dos paradigmas literários. Sendo certo, para mais, que o primeiro subscrevera um opúsculo acerca do caprichismo polémico do autor dos Ensaios, onde teve ensejo para avaliar as suas características formas de argumentação.

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Escrito esse que, a par dos de Magalhães-Vilhena, de Eduardo Lourenço e de Sottomayor Cardia, suscita ainda a questão de saber por que razão o apreço com que foi acolhida a obra literária de António Sérgio não favoreceu a vertente idealista, mas antes a que crismou como atitude crítica, plasmada em especial nas polémicas ostensivas ou surdas que sustentou. Como bem sabia quem se ufanava do seu grego, a crítica, como a crise, remetem para as noções de separar, cindir ou cortar, que era em suma o propósito de quem, usando a metáfora da seara no ambiente citadino, se lançara a combater os valores, as crenças e as tradições que ainda mantinham a coerência, com a inércia social. Num processo que, se mais fino, apurado e reflectido, confluiu no essencial ao dos arautos do iluminismo, do liberalismo e do republicanismo que, em vagas sucessivas, tinham conduzido a tão calamitoso estado a sociedade que ele se propunha reeducar e reerguer desde os fundamentos ou, talvez melhor, desde as ruínas. Se, qual «campeador pela Cultura», António Sérgio se podia gabar dos golpes assestados com a cortante espada da crítica e dos estragos espalhados à sua volta, num corpo social que, quase cadáver, a seu juízo, nem justificaria tão grande lida e tal grita, o mesmo não sucedeu quanto ao que de positivo legou àqueles cujo mestre quis ser. De tal modo arredio o seu idealismo se mostrava das tendências, dos hábitos e das aspirações até dos mais próximos, que não resistiu à concorrência da antitética doutrina então promovida internacionalmente sob os rótulos de materialismo dialéctico, materialismo histórico ou realismo crítico. O que se ajusta, no entanto, a um dos muitos paradoxos do filósofo que, com reivindicar-se da formação científica, abundava na tese que definia «toda filosofia séria como um trabalho de reflexão sobre a actividade do espírito, e muito especialmente sobre a actividade científica», por outras palavras, «uma reflexão sobre a ciência, ou quase exclusivamente uma reflexão sobre a ciência» (Ensaios, t. II, Lisboa, 1972, pp. 235 e 236). Ao doutrinar os leitores, em especial os jovens, a quem se dirigia com estudada desenvoltura, na atitude crítica e no racionalismo de inspiração cientificista, quem afirmava a inexistência de uma civilização cristã não ignorava que punha em causa todo um sistema de valores. O modo, por exemplo, como reduziu a conquista de Ceuta a um episódio apenas do processo geral europeu de ascensão da burguesia, usando o legítimo, mas não inocente e muito menos inconsequente recurso de alterar a escala dos valores a cuja luz se há-de apreciar a acção humana, vale por si só como sinal e sintoma do que visava a mudança de mentalidades que teve a Seara Nova por veículo. Aliás, as gerações por ela directa ou indirectamente doutrinadas foram as

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que vieram a ocupar os decisivos lugares do poder na sociedade portuguesa e definiram o presente quadro político, social e cultural, pelo que me dispenso de explicitar o que veio depois da Seara Nova…

V – Atrás do tempo, tempo vem… A realidade é demasiado complexa para caber nos magros esquemas a que uma breve reflexão se há-de cingir para ter cabimento num concerto de tantas vozes, pelo que decerto ninguém estranhará que deixe de mencionar aspectos não menos importantes e passe por cima de belas páginas, como aquelas em que Sérgio apela para a libertação do que há de melhor no homem. De onde ressalta, aliás, quanto a eficácia de uma doutrina depende da inserção nos moldes da dinâmica cultural própria de cada povo, sem o que é de esperar que os efeitos dissolventes se sobreponham às melhores intenções construtivas. Sirva de exemplo o incitamento ao leitor do segundo volume dos Ensaios para que solte as amarras, fuja do porto e se aventure; metáfora no entanto tão acanhada no propósito que se resume no imperativo – «sê europeu!»; tão alheado da nossa melhor tradição, que nem no europeu, nem no homem, nem sequer na criatura se queda a vera ânsia redentorista. A quem ler o trecho até ao fim mais o surpreenderá, porém, o beco sem saída a que conduz tal incitamento e compreenderá por isso a quase invencível necessidade em que se viram tantos sergistas de procurar alhures um suplemento à mundividência que lhes era proposta. Já na mais antiga recensão de um escrito seu se observara a afinidade da atitude mental de António Sérgio com a da metafísica hindu: «um indianismo sem pessimismo agudo, sem regressão a Brama e sem aniquilamento pelo Nirvana», eis o que detectava o compreensivo leitor do seu livro de estreia, as Rimas, no Almanaque do Diário Ilustrado para 1909 (Lisboa, 1908, p. 217). É o que transparece ainda na conclusão do trecho acima referido, quando o ensaísta alude ao curso do seu «destino na imensa caravana dos que morrem de todo (do deserto do Nada para o deserto do Nada), depois de ter bebido por momentos breves na fonte pequenina desta vida breve…» (Ensaios, t. II, ed. cit., p. 23) Precisamente pelo seu cariz circunscrito, parcelar e a espaços sectário, o influxo da Seara Nova apenas repercutiu em sectores limitados da vida portuguesa, mormente os intelectuais, por via de regra alheados da realidade social. Contudo, através dele ou apesar dele, algo do que fora a melhor doutrina veiculada pela Renascença Portuguesa perviveu e por diversas vias animou alguns dos que se têm dedicado a dar nova vida às razões que,

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de raiz, justificam a existência de Portugal. Foi o que, por exemplo, graças à acção e à obra de Jaime Cortesão, se manifestou no cadinho brasileiro e viemos a receber, de retorno, por intermédio de Agostinho da Silva, a meu ver o mais consequente dos seareiros antes da emigração. Qualquer que fosse o influxo recebido até embarcar para a América do Sul, tudo foi como que refundido e reformulado à luz da descoberta de uma irredutível forma nossa de ser humano, que tem resistido a todas as tentativas para a eliminar. O tom profético da obra de Agostinho da Silva não permite subestimar a esperança de que o futuro está garantido por uma tradição que importa assumir de novo, com todas as implicações e sem quaisquer dos complexos de inferioridade que travaram as gerações passadas. Aliás, julgo que este colóquio algo deve a essa atitude de confiante ousadia, pela qual mesmo os erros devem ser assumidos, enquanto passos no longo calvário da história, com vista à redenção universal. Permito-me, pois, concluir estas considerações advertindo que o meu intento foi tão-só o de alertar para a necessidade de avaliar o movimento da Seara Nova no horizonte do mais largo ciclo em que se inseriu, no âmbito de uma teoria da história portuguesa, indispensável para ajuizar o pretérito, mas sobretudo pensar o futuro. No pulsar rítmico do tempo histórico, vejo-o qual momento de contracção, consequente ao de expansão, da Renascença Portuguesa; o que, por sinal, se pode documentar com citações textuais de António Sérgio, em termos muito semelhantes. Julgo por isso iminente uma nova fase expansiva e criadora, para cujos sinais importa estar atento, mas para cuja realização cumpre sobretudo que com denodo nos esforcemos. Para tal, muito de positivo se há-de colher da visão com que Jaime Cortesão, sem pôr as vindictas pessoais ou os interesses particulares acima dos valores pátrios, nos estimulou a realizar: o humanismo de raiz franciscana e intenção universalista, que é como quem diz, de razão, coração e braços abertos a toda a realidade, seja ela de que esfera for ou possa ser.

Entre os movimentos da Renascença Portuguesa e da Seara Nova – da Lusitanidade à Lusofonia: o caso de Agostinho da Silva RENATO EPIFÂNIO Instituto de Arte, Design e Empresa – Universitário Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

Dentre as cisões que animaram a nossa história cultural, a cisão Renascença Portuguesa-Seara Nova é, decerto, uma das mais fracturantes, senão mesmo a mais fracturante. Perante ela, parece fácil tomar posição. Tanto mais porque, historicamente, foi a Seara Nova que parece ter vencido, pelo menos nesse plano retórico onde muitas vezes, senão sempre, se joga o destino das histórias culturais. Segundo essa mesma retórica, temos, de um lado – da Renascença Portuguesa –, um movimento saudosista, logo passadista, logo reaccionário, que, alegadamente, pretendia enclausurar Portugal em si próprio1; do outro lado – da Seara Nova –, temos um movimento progressista, modernizador, que, ao invés, pretendia abrir Portugal à Europa, a todo o mundo. Como quase todas as visões caricaturais, também esta é tão substancialmente falsa quanto acidentalmente verdadeira. É verdade que a Renascença Portuguesa – na perspectiva de Pascoaes, em particular – sobrepunha, como veremos, os paradigmas endógenos aos exógenos. Isso não faz dele, contudo, a priori, menos progressista. Partindo desta perspectiva, mais ou menos expressamente enunciada, inevitável é depois falar-se do “esgotado movimento da Renascença Portuguesa e da revista A Águia” (como, por exemplo, em AA.VV. Seara Nova: Razão, Democracia, Europa. Porto: Campo das Letras, 2001, p. 7). Como visão contrapolar a esta, refira-se, nomeadamente, a de José Marinho, para quem “com a ‘Renascença Portuguesa’, e com tudo quanto se lhe segue em afinidade espiritual ou crítico contraste, surge a mais funda transmutação na vida espiritual portuguesa desde o Renascimento” (cf. MARINHO, José. Verdade, Condição e Destino no pensamento português contemporâneo. Porto: Lello, 1976, pp. 224-225).

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Entre os movimentos da Renascença Portuguesa e da Seara Nova

O que aqui há são diversas concepções de progresso, e mesmo de modernidade. Se, para Teixeira de Pascoaes, “o fim da Renascença Lusitana é combater as influências contrárias ao nosso carácter étnico, inimigas da nossa autonomia espiritual e provocar, por todos os meios de que se serve a inteligência humana, o aparecimento de novas forças morais orientadoras e educadoras do povo, que sejam essencialmente lusitanas”2, para Raul Proença, por exemplo, o paradigma é de facto outro. Ouçamos, para o atestar, estas suas palavras: “O nosso espírito, a nossa maneira de encarar os problemas, o nosso modo de os resolver, as ideias fundamentais que formamos da vida e do mundo, tudo isso que é o que importa numa sociedade, porque é o que nela há de garantias para uma sociedade melhor, são coisas anacrónicas, sem relação nenhuma com o meio europeu em que nos integramos fisicamente. É como se fossemos uma pústula no meio da Europa, onde circula ininterruptamente sangue sempre novo e sempre vivificante. Como estremunhados pensamos ideias que não são para o nosso tempo, continuamos num sonho distante, estranhos à actividade, estranhos ao pensamento moderno”3.

De facto, estamos aqui perante dois paradigmas: de um lado, pugnava-se por um progresso a partir de dentro, que fosse fiel à nossa alegada singularidade histórico-cultural; do outro, pugnava-se por uma adequação de Portugal ao que aparentava ser o exemplo máximo de modernidade: a Europa. Esta divergência – de ordem cultural, filosófica e até ideológica – foi, de resto, assumida de uma forma tanto mais nobre porquanto não envolveu qualquer desqualificação ético-moral da “outra parte”. Foi esse, por exemplo, o caso de Raul Proença, que se referiu aos seus “oponentes” do movimento da Renascença Portuguesa como “criaturas de alto valor, de nobre senso moral, credoras da nossa admiração e do nosso respeito”4. O que é de enaltecer, pois que, entre nós, o mais habitual é as divergências de ordem cultural, filosófica e até ideológica redundarem em desqualificações ético-morais. Neste caso, isso não aconteceu, até porque a divergência era de facto clara: entre, por exemplo, alguém como António Sérgio, que “não se pensava

Cf. Manifesto da Renascença Portuguesa. A Vida Portuguesa. Ano l, n.º 22, 10/02/1914, pp. 10-11. 3 Ibidem, p. 12. 4 Idem, ibidem. 2

Renato Epifânio

sob a categoria do nacional”5, e alguém como Teixeira de Pascoaes, que pensou a Pátria como “um ser vivo superior aos indivíduos que o constituem, marcando, além e acima deles, uma nova Individualidade”6, era claramente difícil, senão impossível, haver um caminho comum. Não obstante, houve casos que ultrapassaram essa fronteira aparentemente intransponível: prova de que os percursos pessoais são sempre irredutíveis a todos os rótulos, a todas as etiquetas. Exemplo máximo disso foi, a nosso ver, o caso de Agostinho da Silva. Não tendo sido propriamente um “renascente” – até por questões de ordem etária: Agostinho da Silva nasceu em 1906, apenas 6 anos antes da criação do movimento da Renascença Portuguesa – alguns textos de juventude aproximam-se, bastante, do ideário da Renascença. Atentemos, por exemplo, no seguinte texto: As responsabilidades de Eça de Queirós7 Poderosamente auxiliado pela cativante elegância, pelo humoris­mo deliciosamente delicado dos seus escritos, foi Eça de Queirós um dos mais perigosos demolidores da célebre e nefasta geração de 75. Enquanto Oliveira Martins estilizava com verdadeiro e indiscutí­vel talento de prosador as velhas crónicas portuguesas e as inter­pretava a seu sabor e modo, através da sua psicologia de homem culto do século XIX, não se integrando na época que historiava, não criando dentro de si um estado de espírito idêntico ao dos guerreiros e navegadores – cujas façanhas eram para ele pouco menos de assaltos de bandidos e viagens de piratas sanguinários – e envene­nava deste modo a História Nacional; enquanto Ramalho Ortigão troçava com ar superior dos seus compatriotas porque estes não possuíam a segura, firme e desempenada marcha peculiar aos povos de raça saxónica e se não encontrava a cada canto um sábio ou artista; enquanto Guerra Junqueiro atacava impiedosamente com as suas sátiras, verdadeiramente juvenalescas pelo vigor da linguagem e pela brutalidade do sarcasmo aliadas a uma trovejante indignação, o Trono e a Religião, contribuindo assim de uma maneira poderosa para a anárquica situação em que hoje nos encontramos; Eça de Queirós, com o seu indispensável e temível monóculo engastado na órbita, ia miudamente observando, para depois as fazer desfilar nos seus romances, todas as personagens más que encontrava, todos os ignorantes, todos os perversos, todos os Cf. SÉRGIO, António. Prefácio. In: FREYRE, Gilberto. O Mundo que o Português criou. Lisboa: Livros do Brasil, 1940, p. 10. 6 PASCOAES, Teixeira de. Arte de Ser Português. Lisboa: Delraux, 1978, p. 33. 7 SILVA, Agostinho da. As responsabilidades de Eça de Queirós. Acção Académica. Ano I, n.º 3, Porto, 15 de Outubro de 1925, p. 3. 5

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cínicos. Todos os acontecimentos mais ou menos ridículos ele retalhava com o seu escalpelo de finíssimo analista e eram esses exactamente os únicos que ele apresentava aos olhos dos leitores. Criava deste modo Eça de Queirós um ambiente de desprezo pela pátria; talvez não fosse esta realmente – estou mesmo em crê-lo que o não era — a intenção do romancista, mas as consequências eram inevitavelmente – dada a propensão inata que tem todo o português para dizer mal do que é seu – uma antipatia cada vez mais pronunciada por tudo quanto existia e a esperança, dia a dia em aumento, de que uma mudança das instituições viria limpar de vez e aniquilar para todo o sempre aqueles que Eça de Queirós tão bem retratava, ou melhor, caricaturava nos seus romances. As ideias de Eça sobre patriotismo, apesar de serem em si, e principalmente quando expostas pelo autor, duma verdade indiscutí­vel e extremamente simpáticas, produziram, depois de absorvidas pela multidão dos seus admiradores – quantos deles inconscien­tes –, efeitos verdadeiramente deploráveis. Dizia em resumo Eça de Queirós que se não devia estar sempre a admirar as glórias de Portu­gal, a «viagem do Gama e a tomada de Ceilão», e deixar que Por­tugal caminhasse atrás de todas as outras nações em tudo que tocasse em Civilização e Progresso. Não fazia sentido que se dissessem lindas coisas sobre os navega­dores e não houvesse marinha de guerra nem marinha mercante, que se compusessem odes e poemetos enfáticos elevando até às nuvens a ventania dos guerreiros de passadas eras e não houvesse exército bem amestrado e municiado, que os oradores e os poetas ultra-românticos bradassem aos quatro ventos que Portugal dera outrora muita lição ao mundo e existisse uma desoladora percenta­gem de analfabetos. E qual foi o resultado dos artigos em que Eça de Queirós – na polémica com Pinheiro Chagas – isto escrevia com a sua costuma­da elegância e graça? O resultado foi o mais desastroso que se podia esperar: os bocas de oiro deixaram de fazer ouvir as suas divinas vozes, as cordas enferrujaram nas liras – que dentro em pouco, feridas pela mão dos realistas, haviam de cantar a imundície e a podridão –, quase ninguém mais se lembrou de guerreiros e de navegadores, o passado de Portugal caiu num quase completo esque­cimento; falar dos dias gloriosos de antanhadas batalhas épicas e das viagens marítimas pertinazes e heróicas, perigosas e difíceis – era correr o risco de ser alcunhado de romântico com toda a significação depreciativa que esta palavra pode conter: piegas, lamechas, efemi­nado… Mas – e por esta não esperava decerto o romancista – não surgiu marinha de guerra, não trabalharam estaleiros, não se instruiu e muni­ciou o exército, preparando-o convenientemente para qualquer sur­presa externa – da parte dos amigos, está claro, que da parte dos inimigos não há perigo –, não

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diminuiu grandemente o número dos que não sabem ler nem escrever. E porquê? Porque foi sempre e sempre será mais fácil, imensamente mais fácil, destruir do que edifi­car. Todos concordaram logo com o escritor, porque isso lhes trazia diminuição de trabalho, em que era preciso não estar sempre com endechas à Pátria e frases líricas a Nuno Álvares e ao Infante, ao «Decepado» e a D. Francisco de Almeida e apressadamente rasgaram as razões de ordem dos seus discursos e os manuscritos das suas poesias patrióticas: mas, quando viram, quando perceberam que se lhes exigia o esforço suficiente para fazer Portugal caminhar mais depressa na célebre e batidíssima «estrada (ou senda – segundo alguns autores) do Progresso e da Civilização» – construindo os desejados barcos e fundando escolas primárias – todos se foram recolhendo – como o cágado que se abriga debaixo da casca – ao «não te rales» nacional, ao «deixa correr o marfim», como a uma segura e inviolável fortaleza. E ainda nenhum até hoje emergiu do seu sono e deitou a cabeça de fora, ao menos para ver se os outros já teriam feito alguma coisa. Não! Está tudo à espera que os navios, os marinheiros, os soldados, as escolas e os mestres caiam do céu sobre este desafortunado país como o maná de Deus sobre o fugitivo povo de Israel. O erro de Eça esteve em não perceber que estas suas doutrinas sobre o patriotismo, caindo assim bruscamente sobre a indolência e a preguiça, não teriam os resultados que ele esperava mas simples­mente dariam margem a que ninguém mais se importasse com o passado — o que era uma calamidade para quem já não queria saber do presente e do futuro. Julgando, pois, que elas teriam outras consequências seguiu-as fielmente Eça de Queirós na primeira parte da sua vida literária, dedicando-se a pôr a nu os ridículos para que todos, vendo a úlcera, a quisessem curar; mas não sucedeu isto: a úlcera era grande ou pareceu grande aos que a contemplavam e, apavorados por aquela imensidade, nem pensaram sequem em combatê-la e disseram com melancolia: «Está tudo perdido! Nada se pode fazer!»; não se defen­deu do contacto a carne que estava sã, não houve ninguém que dissesse e demonstrasse que ela era em muito maior quantidade do que a tomada pela ferida: e esta, votada ao abandono, a pouco e pouco foi invadindo e quase por completo a corroeu. Todas as mulheres que passam nos romances de Eça são desones­tas e impúdicas, quase tanto como as matronas da decadência roma­na; os homens ou são ignorantes ou estúpidos como o conde de Ribamar e o Gouvarinho ou são perversos e cínicos, apesar das tinturas de honradez e honestidade com que às vezes os cobre o autor. Apesar de ter protestado tanto contra os romances românticos, Eça também muitas vezes deu aos maridos «formas gordurosas e bestiais» e aos amantes todas as atracções

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de corpo e de espírito – concepção esta que toma um livro extremamente perigoso nas mãos de quem não tenha a necessária força de vontade para se defender da sua influência. O resultado de isto tudo foi a criação; o aparecimento de um pessimismo fortemente enraizado que só via nos homens Basílios e Acácios e nas mulheres Luísas e Cohens. Anojado ele próprio por este contínuo desfilar de criaturas de ínfima categoria moral e intelectual Eça criou um tipo de perfeita inteligência e perfeita correcção: Fradique Mendes. Mas este homem impossível estava colocado num pedestal tão elevado que os seus imitadores ficaram muito abaixo dele: onde Fradique punha uma discreta elegância puseram eles extravagância; onde Fradique punha amor puseram eles entretenimento e substituíram o seu saber múlti­plo e variado por um enciclopedismo reles de Petit Larousse; e assim se arranjaram três coisas que, a existir vergonha e bom senso, já teriam sido abolidas e pulverizadas: o futurismo, o namoro por dis­tracção e os deputados modernos. Pena foi que Eça não tivesse vivido bastante para apagar todos estes seus erros e contrabalançar os efeitos dos seus primeiros livros por uma série de saudáveis e patrióticas «Cidades e Serras» em que já palpita um sincero e comovido amor pela linda terra de Portugal, cuja beleza ainda mais se destaca posta assim em habilidoso confron­to com a vida e o ambiente enervante de Paris que, para me servir de uma velha imagem – atraía Eça de Queirós como a luz atrai a borboleta, mas em que ele depois só encontrou, como Antero no sonhado Palácio da Ventura, «silêncio e escuridão e nada mais». Decerto ele teria, por um alargamento daquela simpática e fresca Joaninha e do bom Zé Fernandes, mostrado que nem todas as mulhe­res são Gouvarinhas e nem todos os homens são Pachecos, e, por uma pintura das paisagens e da vida aldeã, que Portugal se não resume no Passeio Público de Lisboa e no Ateneu. Mas assim não sucedeu, infelizmente, e Eça de Queirós ficou como um dos que mais ajudaram a desmantelar e a anarquizar a sociedade portuguesa.

Comparemo-lo agora com o seguinte texto, escrito apenas cinco anos após, quando Agostinho da Silva militava já nas fileiras da Seara Nova8: Agostinho da Silva aproximou-se em particular de António Sérgio, a quem inclusivamente chegou a reconhecer como seu “mestre” – isto apesar destas suas considerações: “(…) Sérgio não ousou afrontar os problemas filosóficos mais profundos, as questões de dúvida. Preferia manter-se na certeza.”; “Mesmo como pedagogo, a sua atitude tendia a ser de grande arrogância intelectual.” (Cf. SILVA, Agostinho da. Dispersos. 2.ª ed., revista e aumentada. Introd. de Fernando Cristóvão, apres. e org. de Paulo A. E. Borges. Lisboa: ICALP, 1989, p. 55) Como, contudo, o próprio Agostinho

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Da imitação da França9 É raro o dia em que os nossos jornais não publicam artigos de puristas zelosos dos nossos hábitos e da nossa língua, reclamando a volta às boas tradições nacionais e protestando contra a invasão crescente das coisas horríveis que vêm de além Pirinéus. Por detrás destes montes existe de facto um país, e nunca lhe daremos epíteto que exprima suficientemente a sua perfídia, que fez de nós seu domínio e feudo e parece apostado em destruir todas as instituições sempre louváveis que nos legaram os nossos maiores. São lamentações imensas sobre os velhos esteios de Portugal que, abalados pelo vento pestilento, ameaçam ruína; e merece-lhes cuida­dos especiais a língua que, eivada de tanto francesismo, no vocábulo e na sintaxe, dentro em pouco não será compreendida por quem falar o português puro. Os defensores deste último dialecto vão logo buscar, para derru­bar os estrangeirados, o seu Camilo: o mau português começa a sê-lo desde que mareia (mareia, que delícia!) a pureza da sua língua – e indignam-se pelo insulto feito aos manes de Bernardes, de Lucena e de Vieira; e, creio que para dar a impressão de serem muitos, diz-se com ênfase – os Bernardes, os Lucenas, os Vieiras. A introdução duma palavra francesa ou afrancesada na língua parece-lhes um atentado digno do fogo dos céus; o seu lexicozinho não a traz, nenhum frade ou nenhum herói lhe deu foros de cida­de – some-te, palavra réproba e maldita! E apresentam-nos grave­mente, para a substituir, vocábulos terríveis que vão desenterrar de Rui de Pina ou de Ferreira e que são, segundo eles, o seu equivalente exacto. Nunca acabaremos de admirar suficientemente a santa ingenui­dade que se traduz nesta defesa da língua, este patriotismo tão since­ro e tão reconhece, o seu discipulato relativamente a Sérgio cumpriu-se, sobretudo, por oposição: “(…) mas ele [Sérgio] não me ensinou o racionalismo: ensinou-me antes o irracionalismo, por reacção minha.” (Cf. DIAS, Francisco da Palma. Agostinho da Silva, Bandeirante do Espírito. In: AA.VV. Agostinho. São Paulo: Green Forest do Brasil Editora, 2000, p. 155). Nessa medida, ainda que indirectamente, Agostinho terá sido, muito mais do que um “discípulo de Sérgio”, um “discípulo de Leonardo” – António Telmo considerou-o mesmo, de resto, como “o último discípulo de Leonardo Coimbra” (cf. TELMO, António. Testemunho. Diário de Notícias, 4/4/1994). Isto apesar do próprio Agostinho da Silva, na sua expressão algo jocosa, “nunca ter sido leonardesco” (cf. DIAS, Francisco da Palma, Agostinho da Silva, Bandeirante do Espírito, p. 155) –, não obstante ter reconhecido a sua “largueza de espírito” (cf. SILVA, Agostinho da, Dispersos, p. 174). Mais do que discípulo de Leonardo, Agostinho terá permanecido sempre, sobretudo, discípulo da Faculdade de Letras do Porto enquanto “escola de liberdade” (cf. ibidem, p. 147). 9 Seara Nova. Lisboa, n.º 197, 23 de Janeiro de 1930.

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arqueológico que se revolta contra a palavra e contra a ideia estrangeiras; é, de facto, muito curioso como objecto de museu – mas bem desejaríamos que fosse substituído por alguma coisa de mais amplo, de mais simpático, de mais humano. É necessário que os defensores jurados da nossa literatura e da nossa língua se conven­çam de que, se as continuarmos a admirar tão cegamente, nunca daremos um passo para uma cultura maior e melhor. Em primeiro lugar, e forçoso é dizê-lo claramente, os nossos clás­sicos não são o que SS. Ex.as supõem; o considerá-los grandes escrito­res, dos maiores do mundo, prova mais uma vez que Portugal é uma ilha de ignorância num mar civilizado que a cerca mas não a pene­tra; e cada vez levantamos diques mais altos para que nem a espuma das ondas nos salpique. Tratar os clássicos de incomparáveis revela, pelo menos, o desconhecimento das literaturas estrangeiras, a vaga, muito vaga notícia de alguns nomes, de algumas datas – desespera­doramente, mais nada. Nós temos inegavelmente grandes escritores em Portugal; mas são tão poucos que não podem autorizar a lenda, todos os anos repetida aos alunos do liceu e todos os dias escrita e dita em artigos e discursos, de que a nossa literatura é uma das grandes do mundo. E, se buscarmos bem, só encontraremos quatro ou cinco nomes que nos não envergonham no concerto europeu. O resto – frades ingénuos, acumuladores de factos, oradores verbalistas… Porque é tempo de acabarmos com lendas e tradições falsas; de nos não guiarmos apenas pelo que dizem os historiadores da literatu­ra; de ler as literaturas estrangeiras e depois as compararmos com a nossa; de não considerarmos Portugal um país glorioso que pode dormir, mas um pobre país que precisa de acordar e fazer-se. Precisamos de ver que o P.e Manuel Bernardes desce aos últimos limites da ignorância e – escrevamos uma doce palavra – da inge­nuidade escrevendo, em pleno século XVII, as suas historiazinhas, as suas visões, os seus milagres e acreditando piamente neles; que An­tónio Vieira, no século que teve Bossuet, é o mais oco retórico que se pode, exceptuando Alves Mendes, encontrar à flor da terra; que não tem uma ideia profunda e todo se perde em rebuscamentos e gongorismos, que é um mar de palavras e um deserto de pensamen­tos, que é, finalmente, a Fénix Renascida posta em prosa ao divino; que Sá de Miranda é um pobre homem que, lutando e suando como quem desbasta uma pedreira, vai talhando no português os seus versos duros e esquinados como calhaus; que todos os grandes de Portugal, quando muito, valem apenas por escreverem bem. E aqui está o que basta para os salvar – a tersa linguagem, o português genuíno; sabem muitas palavras, encadeiam-as numa sin­taxe impecável, os períodos são sonoros e cheios – e eles aí vão para o Olimpo, unindo ao

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peito as suas gramaticazinhas, adorados por todos os amadores de móveis velhos que desejam escrever clássi­co. Mas, Deus meu! Que há nisto de honroso – escrever bem – quando a ideia traduzida pela prosa admirável é reduzida ou nula? E ter boa voz e não saber escolher os trechos de canto, é pintar bem e não saber encontrar um assunto. A prosa portuguesa clássica, acostumada a ter pouco que dizer, não pode evidentemente servir para quem nela desejar exprimir ideias; tem que se arranjar uma língua que não esteja sempre a propender para a retórica, a trair o pensamento pelo gosto da metáfora, a suplantar o raciocínio pela música. Queremos uma prosa precisa e clara que ande em períodos curtos, que seja um instrumento de análise minuciosa e de síntese clara e bem ordena­da; que se não perca em luxos, diga o essencial e, pela íntima necessidade de ser lógica, torne lógico o nosso pensamento; uma prosa que se não entusiasme diante do que escreve mas seja serena e fria. Queremos – perdoai-me, meus amigos puristas! – uma prosa francesa; e, muito contra nossa vontade, temos, como vós dizeis, de marear a pureza da língua. Vão talvez bradar os puristas que nós, tendo outro génio, deve­mos ter uma língua de natureza e talhe diferentes, uma língua rica e formosa de sons, toda chocalhante de fúlgidas imagens. Era toda uma questão saber se temos algum génio particular e se o nosso génio, a existir, tem qualidades que reclamem uma língua como a que usaram os clássicos; atentemos apenas nas características da linguagem que desejam conservar os puristas, louvando, como Cas­tilho, as doçuras do hipérbato e as maravilhas do pretérito mais que perfeito composto. E, no entanto, meus senhores, não nos podemos apresentar ante a Europa apenas com o hipérbato, coisa jocosa, e com o mais que perfeito composto, coisa complicada; devemos levar mais se quiser­mos ser considerados civilizados; se lá formos só com o hipérbato – o que rirá a Europa! O hipérbato é um salto mortal de palhaço, não é o exercício ginástico, rítmico e fino, do atleta grego. Temos que escrever a língua da ciência, não a desordenada língua da emoção amorosa; e temos que escrever a língua do século XX, não a língua do século XVII, mais ainda, do século XVII português. E uma língua nova só a França no-la pode ensinar; temos que aprender com os historiadores e com os críticos franceses a simplici­dade de vocabulário, a simplicidade, que não é pobreza, mas domí­nio da abundância; os períodos que se não perdem em subordinações e em grandes coisas floridas, mas vão direitos ao fim; as frases que não são trabalhadas como uma jóia, mas como o forte elo de uma forte cadeia; a palavra de sentido exacto que se não presta a dúbias interpretações e às habilidades de dialectas escolásticos. Mais do que os clássicos portugueses, temos que tomar por mode­los os clássicos de França; como para os modernos historiadores franceses deve ser

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nosso mestre e nosso guia o claro Voltaire; e quando a nossa prosa portuguesa se possa verter para francês, para um bom francês nítido como cristal – então teremos encontrado a língua que nos convém e na qual deverão ser escritos todos os livros por que se fará a nova Renascença de Portugal. Mas, com os franceses, não aprenderemos apenas a ser precisos na nossa linguagem; aprenderemos também a ser precisos no nosso pen­samento; aprenderemos a pensar à europeia e poderemos depois dizer-nos civilizados.

Se há terra em que se tenha conservado o espírito grego – essa terra é a França; Platão, se vivesse hoje, falaria francês… Falariam francês os deuses imortais, Afrodite, a do corpo glorioso nascido das ondas, Atena, a dos olhos claros e da clara sabedoria. Encontram-se no espírito de França as qualidades que caracteri­zam o espírito de Atenas no auge do seu brilho: a elegância, a finura, a vibração de vida, a ironia, a ampla compreensão, numa palavra, o aticismo. E o aticismo anda tão lamentavelmente au­sente de Portugal que bem devemos fazer para que ele pouco a pouco se introduza entre nós. Não o poderão, de certo, conseguir os nossos professores de Gre­go; à mínima palavra que escrevem vê-se logo quanto têm em si de espírito grego, como estão educados em Platão e têm a delicadeza da Antologia. São pessoas irritáveis que avançam com grandes palavras de polémica insultuosa, que pretendem amesquinhar os adversários chamando-lhes com fúria coisas feias, que não têm a ironia límpida, a seta de oiro de que falava Anatole, mas o sarcasmo indelicado que constitui a arma de Camilo – a grande arma de Camilo o Pequeno. Porque desdenham comunicar com o público ou porque é tão bárba­ra a sua maneira de pensar e de escrever – os nossos mestres de grego constituem uma burocracia especial, uma engrenagem admi­nistrativa. A cultura não contará com eles. O abordar directamente os clássicos gregos, e quando dizemos directamente incluímos como meio de contacto a tradução, é esfor­ço demasiado violento para as gerações que saem do liceu adorando o totem Bernardes ou o manipanso Vieira. Os livros franceses, unin­do o espírito antigo e o espírito moderno, nos poderão levar ao fim que temos em vista. O seu estudo mostrará que a História não é, como para os erudi­tos portugueses, uma sequência de factos; que a crítica literária não consiste em recortar trechos dos autores estudados e enquadrá-los na prosa anunciativa – «Vejam como isto é belo!» – e na prosa final – «Encontrar-se-á alguma coisa de tal perfeição?»; que a arqueologia não é a caça feroz à tegula romana ou o passar a vida acocorado dentro dum dólmen; que a história da arte não consiste em catálogos de música ou repositórios de documentos sobre as faianças; que a filologia é bem alguma coisa de mais alto e de mais nobre que o massacre do galicismo e a apoteose dos puristas; que a polémica não é a fúria de prostrar o adversário, insultando-o, mas o desejo de aclarar a verdade, discutindo.

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Habituar-se-ão a ser serenos diante das opiniões que refutam as suas; a ser amigos da clareza – porque só se não exprime claramente o que não tem claros pensamentos; a ver alguma coisa mais para além da sua estreita especialidade e a ter uma cultura geral. E agora chegamos à acusação de superficial que se faz ao francês. Os livros de França são escritos com tal limpidez, as notas escolhidas com tão bom gosto, o saber tão vário e tão vivo – que o erudito português, obscuro e rebarbativo, com vinte linhas de notas para duas de texto, ignorando as coisas mais elementares que não sejam da sua especialidade, não compreende que o francês possa ser pro­fundo sendo elegante e chama-lhe superficial. Mas, pelos deuses!, o que é profundo? Ir-se alguém, a pouco e pouco, afundando em documentos, passar os dias inteiros na Torre do Tombo, revolver toda a clássica estante, perder o contacto com o mundo, para no fim trazer à superfície, e quanto trabalho para a atingir!, uma cartazinha régia que fala num charameleiro desconhe­cido? O quê? Pois encontrastes o charameleiro? Então vinde para a Academia e tomai lá S. Tiago. É profundo estar toda a vida estudando grego, não respirar senão grego, ler o grego como português, saber de cor Plateas e desconhe­cer Verdun – para não ter dentro de si uma centelha de espírito grego, para não saber escrever uma página luminosa, para trazer o nó da gravata na nuca e nunca se lavar? Ah, meus amigos, a que eruditos e a que escritores vós chamais profundos! Aos que revolvem não sei que montes de pergaminho e papel e, já velhos, cansados, com três óculos acavalados no nariz, discutem se Gil Vicente nasceu em Guimarães ou na Beira, se foi ourives ou não foi ourives – e ainda não tiveram o cuidado de nos dizer se Gil Vicente é um grande poeta e por que o é. Ainda há pouco, ó puristas, vós celebrastes o aniversário do eru­dito Latino, do profundo Latino: o que sabia o Latino! Nenhum francês sabe tanto! O Latino conhecia o latim, o Latino conhecia o grego, o Latino em matemática era um prodígio, o Latino lia o seu polaco; e depois? Depois o Latino traduziu a Oração da Coroa para polaco, perdão, para português: mas que português, senhores! ler-se­-ia melhor o polaco… E, no entanto, em França existem traduções de Demóstenes que qualquer pessoa pode ler; traduções fiéis e claras por onde é possível apreender o espírito grego, banhar-se de radiosa luz ateniense. Não, os eruditos portugueses não são mais profundos do que os franceses; dizê-lo é uma blague, nem sequer de bom gosto; mas os franceses, além de profundos, são artistas, sentem a beleza do que estudam, são vivos – ao passo que os nossos tendem, lamentavel­mente, para o bicho empalhado. Imitemos a França, imitemo-la inteiramente, ela nos ensinará o gosto pela composição, a erudição discreta, o amor da Vida, o sentido da Beleza

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– mesmo nos assuntos mais áridos, mesmo nos escritos mais técnicos; e por todas estas qualidades os eruditos portugueses se tornarão humaniores, mais humanos; e quando for profunda a nossa ciência, ampla a concepção e elegante a maneira de expor – então Portugal será europeu.

A diferença, de facto, dificilmente poderia ser maior. No primeiro texto, acusa Eça de Queirós de ter criado “um ambiente de desprezo pela pátria” – eis, de resto, a acusação que Agostinho da Silva imputou a toda a “Geração de 70”, à excepção de Francisco Manuel de Melo Breyner, conde de Ficalho, que, ao contrário dos outros, “não teve pessimismos, não considerou a nação falida, não troçou de ninguém”10. No segundo, conclui com a seguinte exortação: “Imitemos a França, imitemo-la inteiramente (…)”. Cerca de uma década e meia depois, já no Brasil – para onde parte em 1944 –, vai, contudo, Agostinho da Silva reencontrar a nossa singularidade histórico-cultural – para ele, de resto, como ele próprio escreverá, foi a criação do Brasil que terá “definitivamente livrado Portugal das daninhas influências europeias que não o deixaram ter nem regime cultural nem acção nem política verdadeiramente adequadas à sua mentalidade”11, antes procuraram “fazer de Portugal uma Dinamarca latina”12. Esse reencontro não se constituiu todavia como um regresso. Ainda que tenha retornado a este país, em 1969, aqui permanecendo os últimos vinte e cinco anos da sua vida – Agostinho da Silva faleceu no dia 3 de Abril de 1994 –, o autor da Reflexão à margem da literatura portuguesa jamais verdadeiramente regressou. Desde os anos cinquenta o seu horizonte foi sempre já outro: não já a Lusitanidade, não já Portugal, mas a Lusofonia, a Comunidade Lusófona, da qual Portugal era apenas uma extensão, a extensão europeia. No princípio de um novo século, eis o novo horizonte que se depara aos nossos olhos13.

Cf. SILVA, Agostinho da. Desconhecidos, quase. Vida Mundial, 12/11/1971, p. 25. Cf. Idem. Reflexão à margem da literatura portuguesa. In: ______. Ensaios sobre Cultura e Literatura Portuguesa e Brasileira, vol. I, Lisboa: Âncora, 2000, p. 66. 12 Cf. Idem, Desconhecidos, quase, p. 25. 13 A esse respeito, uma breve referência à Nova Águia: revista de cultura para o século XXI (www.novaaguia.blogspot.com) e ao MIL: Movimento Internacional Lusófono (www. movimentolusofono.org). Ambos, de diversos modos, procuram, no princípio deste novo século, cumprir esse horizonte. 10 11

Uma efémera união de “almas republicanas” JOSÉ MANUEL QUINTAS Academia da Força Aérea

Em 1978, num livro intitulado O Pelicano e a Seara, João Medina apresentou e reproduziu o texto integral dos dois únicos números da revista Homens Livres – Livres da Finança & dos Partidos, publicados em Dezembro de 19231. No referido texto de apresentação, Medina começa por dizer que “a constituição, em 1923, do grupo dos Homens Livres reunindo monárquicos do Integralismo Lusitano e republicanos da Seara Nova constitui uma das maiores surpresas dos meandros ideológicos e políticos da I República”.2 Em abono desta alegada surpresa, seareiros e integralistas são ali apresentados como “dois adversários políticos figadais”, “em tudo opostos”, isto apesar de se reconhecer, logo adiante, no mesmo parágrafo, que, entre seareiros e integralistas, havia “um denominador comum”: “a idêntica recusa do statu quo institucional, o repúdio pelo demo-liberalismo, a recusa de um regime de balbúrdia, ‘plutocracia’ e ineficácia governativa”. Após outros considerandos, Medina conclui ter sido a iminência do retorno de Afonso Costa ao Governo, em 1923, a unir as duas forças ideológicas antagónicas. Perante tal eventualidade, a iniciativa dos “Homens Livres”, segundo Medina, perde “o seu ar de paradoxo e, inserida no contexto das lutas internas do tempo, torna-se até lógica”3. Desfeita a paradoxal surpresa, e baseando-se num “depoimento escrito” cedido por Castelo Branco Chaves, Medina narra depois “a curta vida da revista e do grupo Homens Livres, intercalando um ou outro depoimento de outros protagonistas do caso” – sobretudo o de Aquilino Ribeiro, pelo lado seareiro, e o de Hipólito Raposo, pelo lado integralista. Ao aceitar o convite para participar neste Colóquio, coloquei-me uma pergunta primacial: trinta e um anos depois da publicação de O Pelicano e a Seara, haveria algo a acrescentar às palavras introdutórias de João Medina? MEDINA, João. O Pelicano e a Seara – Integralistas e Seareiros juntos na Revista Homens Livres. Lisboa: Edições António Ramos, 1978, pp. 35-131. 2 Ibidem, p. 11. 3 Ibidem, p. 15. 1

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Uma efémera união de “almas republicanas”

Após uma breve revisita às publicações e aos documentos depositados nos espólios dos integralistas, concluí que havia, na verdade, algumas informações a emendar ou ajustar e outras a adicionar. As emendas e os ajustes serão mencionados no decurso da minha exposição e, para benefício de futuras investigações, junto no final dois documentos ao processo: - Uma carta de J. Fernandes Júnior, administrador do jornal A Monarquia, para Pequito Rebelo, de 4 de Dezembro de 19234; - Uma cópia de um manuscrito, em papel com timbre do advogado Afonso Lucas, sem data, contendo o que poderá ter sido o programa que António Sérgio discutiu com os integralistas lusitanos em Dezembro de 1923.5

1. A vida efémera do grupo “Homens Livres” A constituição dos “Homens Livres” foi uma iniciativa do grupo da Seara Nova (1921), inserida no âmbito de um processo aberto, em Março de 1923, com a criação de uma “União Cívica” para intervir activamente na política à margem dos partidos políticos. Após a eleição pelo Parlamento, em 6 de Agosto, de Manuel Teixeira Gomes para a presidência da República, cresceu no seio do grupo seareiro uma forte apreensão perante o que se temia pudesse vir a ser o regresso de Afonso Costa à área da governação. No número 23 da revista Seara Nova, correspondente a Outubro-Novembro desse ano, Raul Proença publicou com efeito um artigo onde refere os “defeitos graves” e os “malefícios” que para Portugal resultaram da política de Afonso Costa. Terá sido pois nesse ambiente, em que ainda se temia o regresso do “fatal Afonso Costa”, que entre os seareiros terá surgido a ideia de congregar esforços com o grupo do Integralismo Lusitano. Tendo por base o testemunho de Castelo Branco Chaves6, recolhido por João Medina, António Sérgio terá pedido um dia a sua colaboração num rodapé do jornal A Pátria, dirigido por Nuno Simões. Branco Chaves terá aceite o convite, mas, dias depois, era-lhe revelado um outro plano resolvido por António Sérgio, Afonso Lopes Vieira, Raul Proença, Jaime Cortesão

Arquivo de Teresa Martins de Carvalho – Espólio de José Pequito Rebelo. J. Fernandes Junior – Correspondência para José Pequito Rebelo. Lisboa, 4 de Dezembro de 1923. 5 Arquivo de Teresa Martins de Carvalho – Espólio de José Pequito Rebelo. “Seara Nova” (Programa manuscrito em sete páginas de papel timbrado do advogado Affonso Lucas). Lisboa, sem data (Dezembro de 1923?). 6 MEDINA, João, op. cit., p. 15. 4

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e Reinaldo dos Santos, em reuniões entretanto realizadas na Biblioteca Nacional. A ideia seria agora a de se lançar uma revista independente. João Medina, citando o testemunho de Alfredo Pimenta, identifica do seguinte modo a filiação política de Castelo Branco Chaves: no Integralismo Lusitano até à criação da Acção Realista (1924-27), passando depois para a Seara Nova.7 Em Janeiro de 1919, Castelo Branco Chaves esteve com o movimento monárquico de Monsanto, tendo sido mesmo redactor do jornal A Monarquia. Mas, em Dezembro de 1923, ao publicar-se a revista Homens Livres, estaria ainda Branco Chaves no campo do Integralismo Lusitano, como Medina depreende a partir das palavras de Alfredo Pimenta?8 Julgo que não. Em finais de 1923, se Branco Chaves ainda estivesse no campo do Integralismo Lusitano, porque razão fora convidado por António Sérgio, antes ainda de ter surgido a ideia de lançar a revista Homens Livres, para participar no jornal Pátria de Nuno Simões? João Medina apresenta o surgimento da Acção Realista como o resultado de uma cisão no seio do Integralismo Lusitano. O equívoco de João Medina a respeito da filiação de Branco Chaves, em Dezembro de 1923, pode talvez explicar-se por essa imprecisão que exprime a respeito da relação entre o grupo da Acção Realista e o grupo do Integralismo Lusitano. A Acção Realista, constituída em Janeiro de 1924, não constituiu uma cisão no seio do Integralismo Lusitano, sendo antes uma organização que sucede à Acção Tradicionalista Portuguesa, formada em 1921. Para se compreender a atitude do Integralismo Lusitano face à iniciativa dos Homens Livres, importa esclarecer as exactas circunstâncias que rodearam a formação da Acção Tradicionalista Portuguesa. O Integralismo Lusitano surgiu como movimento de ideias tradicionalistas entre 1913 e 1914. Na sequência da entrada de Portugal na Grande Guerra, em Abril de 1916, os integralistas anunciam a sua transformação em organização política, afirmando obediência a D. Manuel II e confiança na aliança luso-britânica. Com a chegada ao poder de Sidónio Pais, os integralistas colaboram activamente na situação presidencialista que se esboçou. O propósito sidonista de acolher uma representação socioprofissional no Testemunho de Alfredo Pimenta, em 1944: “Chamaram por mim, várias vezes, garotos e falhados. De uma vez até, no meio da refrega brava, não faltou quem fosse meter na mão do meu adversário, as expressões injuriosas que (António) Sardinha tivera para comigo. O lacaio abjecto (Castelo Branco Chaves) fora do Integralismo, passara para a Acção Realista e acabara de fundear na barraca da Seara Nova…”; citado em MEDINA, João, op. cit., p. 26, nota 5. 8 Ibidem, p. 26. 7

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Senado tinha para eles grande significado político: pôr fim ao monopólio da representação por intermédio de partidos ideológicos (regime parlamentar), permitindo a representação dos municípios, dos sindicatos operários, dos grémios profissionais e patronais, etc., era dar um primeiro passo no sentido do restabelecimento da democracia orgânica da antiga Monarquia portuguesa. Após o assassínio de Sidónio Pais e o rápido retorno ao regime políticoconstitucional da “República Velha”, os integralistas pressionam os restantes monárquicos no sentido da acção revolucionária e, obtendo o acordo do lugar-tenente de D. Manuel II, Aires de Ornelas, lançam-se para a primeira linha do movimento político-militar que vem a proclamar a Monarquia do Norte (Porto) e de Monsanto (Lisboa). Em Janeiro e Fevereiro de 1919, precipita-se o desaire político-militar dos monárquicos e, em Julho, a Junta Central do Integralismo Lusitano envia a Londres uma delegação propondo a D. Manuel II uma reorganização dos organismos monárquicos que tivesse como objectivo vir a actuar com sucesso pela via revolucionária. Na perspectiva dos integralistas, ficara encerrado, durante o sidonismo, o capítulo da colaboração legal com a República.9 O projecto de organização revolucionária não obteve, porém, acolhimento junto de D. Manuel II e, em 19 de Outubro de 1919, os integralistas anunciaram o afastamento da sua obediência, para vir a reconhecer, em 2 de Setembro de 1920, D. Duarte Nuno de Bragança como o legítimo herdeiro do trono português. Ao abraçar a causa miguelista, o Integralismo Lusitano abriu imediatamente espaço para a criação de uma organização monárquica que de algum modo copiasse ou aparentasse copiar o seu ideário tradicionalista no campo dos seguidores de D. Manuel II. E não tardou muito para que esse espaço fosse ocupado: em 25 de Julho de 1921, era tornado público o lançamento da Acção Tradicionalista Portuguesa, com uma junta directiva constituída por Mateus da Graça de Oliveira Monteiro, Alberto Ramires dos Reis e Alfredo Pimenta, contando, entre os seus colaboradores, Alfredo de Freitas Branco, Eurico Satúrio Pires, Francisco Vieira de Almeida, João da Rocha Páris e Luís Vieira de Castro. Cerca de cinco meses depois, Alfredo Pimenta explicou os propósitos da Acção Tradicionalista Portuguesa, num

A Questão Dinástica – Documentos para a História mandados coligir e publicar pela Junta Central do Integralismo Lusitano. Lisboa: Empresa Nacional de Indústrias Gráficas, Limitada, 1921.

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órgão com o mesmo nome (Lisboa, n.º 1, 10 de Dezembro de 1921; Lisboa, n.º 2, 30 de Dezembro de 1921). Como referi, João Medina apresenta a Acção Realista como uma cisão no seio do Integralismo Lusitano. Seria esta nova organização uma cisão no seio do Integralismo Lusitano? Para que a Acção Realista representasse uma cisão no seio do Integralismo Lusitano seria necessário que os seus dirigentes tivessem sido, ou ao menos alguns deles, dirigentes do Integralismo Lusitano. Não foi esse o caso. A Junta Central do Integralismo Lusitano manteve-se unida. A Acção Tradicionalista Portuguesa captou, porém, algumas personalidades até aí identificadas como apoiantes ou aderentes ao Integralismo Lusitano, como Luís Chaves e Caetano Beirão. Nenhum deles pertencera à Junta Central do Integralismo Lusitano, mas sem dúvida que, de forma mais ou menos consistente, alguma coisa deviam ao ideário tradicionalista que os seus órgãos de imprensa vinham semeando desde 1913-1914. Colher os frutos da sementeira de ideias lançada pelo Integralismo Lusitano, foi aliás o claro propósito do designado “Núcleo Integralista D. Manuel II”, então lançado por Luís Chaves. Apesar da união e firmeza dos dirigentes do Integralismo Lusitano em torno da sua nova postura dinástica, alguma confusão se instalou na hoste dos seus aderentes e simpatizantes quando, em 17 de Abril de 1922, foi assinado o acordo dinástico designado por “Pacto de Paris”, pelo qual D. Aldegundes de Bragança, tutora de D. Duarte Nuno, aceitou a legitimidade dinástica de D. Manuel II, enquanto Aires de Ornelas, em representação de D. Manuel II, deduziu por seu lado a aceitação de D. Duarte Nuno como herdeiro do trono, para o caso do rei deposto falecer sem filhos. No plano da “questão dinástica”, o Pacto de Paris vinha esvaziar de conteúdo a recente mudança do Integralismo Lusitano para o campo legitimista. Não escondendo algum júbilo, no dia 5 de Maio, a Acção Tradicionalista Portuguesa, de Alfredo Pimenta, aceita aquele Pacto e anuncia a sua dissolução enquanto organismo político. No dia seguinte, porém, a Junta Central do Integralismo Lusitano anuncia que não reconhece o Pacto. As hostes que Alfredo Pimenta reunira em torno da Acção Tradicionalista Portuguesa, só vêm a recobrar do desaire sofrido em 16 de Janeiro de 1924, ao anunciar-se a criação da Acção Realista (1924-27)10. No mês anterior, ficara 10

A Comissão Executiva da Acção Realista era constituída por Alfredo Pimenta, António Cabral, Caetano Beirão, José Rodrigues de Sucena (2.º Conde de Sucena), Ernesto Gonçalves, Francisco Xavier Quintela, José Pedro Folque, D. Rui Zarco da Câmara e Visconde do Torrão.

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desfeita a experiência dos Homens Livres. Isto é, estava já morto o projecto da revista Homens Livres quando Castelo Branco Chaves passa a alinhar na Acção Realista de Alfredo Pimenta. Face aos dados disponíveis, inclino-me a considerar que, entre Novembro e Dezembro de 1923, Branco Chaves estaria em zona cinzenta ou indefinida. Se foi a “questão dinástica” a afastá-lo do Integralismo Lusitano, existiam razões para o seu afastamento desde 1920. Porém, ao ler-se com atenção o único texto que ele publica na revista Homens Livres, o que se pode facilmente depreender é que ele estaria já então conquistado, senão pelo ideário da Seara Nova, ao menos por um novo mestre: António Sérgio. Com efeito, ao ler-se sob o título “Bibliografia”, a sua recensão ao Bosquejo da História de Portugal, de A. Sérgio, nesse ano publicado em Lisboa pela Biblioteca Nacional e que serviu de prólogo ao Guia de Portugal de Raul Proença, ali surge denunciada uma clara menor consideração pelo labor historiográfico que vinha sendo desenvolvido por António Sardinha, destacado mestre do Integralismo Lusitano. Ao “abordar a primeira época, que abrange os alvores da nacionalidade e vai até à revolução de 1383-85”, Chaves diz que A. Sérgio colocou “com notável bom senso o tão debatido e sempre vago problema da raça, não se levando além da prudente opinião de Herculano”. Ora, tendo António Sardinha publicado, em 1915, a obra O Valor da Raça, onde se vai, além de Herculano, defender que o segredo da formação do reino de Portugal resultara da aliança que se estabelecera entre o Rei e os Concelhos ou Municípios, Chaves estava a denunciar uma nova preferência, que o leva, aliás, a concluir, pedindo que A. Sérgio “nos dê um grande estudo interpretativo da História de Portugal como só ele o seria capaz de fazer”.11 Através de uma carta de J. Fernandes Júnior, administrador do jornal A Monarquia, para Pequito Rebelo (o documento ficou depositado no seu Espólio), com data de 4 de Dezembro de 1923, quando estava já à venda o 1.º número da revista Homens Livres, sabemos que Branco Chaves pretendia instalar numa sala daquele jornal a administração daquela revista, prometendo concorrer no pagamento da renda da casa.12 Em íntima ligação com António Sérgio, Chaves terá sido, pois, sem dúvida, um importante elemento de ligação entre os grupos seareiro e integralista. Inclino-me, porém, a CHAVES, Castelo Branco. Bibliografia. António Sérgio: Bosquejo da História de Portugal. Lisboa: Publicação da Biblioteca Nacional, 1923. In: MEDINA, João, op. cit., pp. 121-125. 12 Arquivo de Teresa Martins de Carvalho / Espólio de José Pequito Rebelo. Pasta J. Fernandes Junior –Correspondência para José Pequito Rebelo. Lisboa, 4 de Dezembro de 1923. 11

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pensar, tendo por base o testemunho de Aquilino Ribeiro, também citado por João Medina, que a mais importante das ligações entre integralistas e seareiros terá sido estabelecida por intermédio de António Sérgio, pelo lado seareiro, e de Afonso Lopes Vieira, pelo lado integralista. Se bem que não fazendo parte da Junta Central do Integralismo Lusitano, terá sido por intermédio de Afonso Lopes Vieira que se estabeleceu a ideia de uma revista agregando os dois grupos, como se diz, aliás, no testemunho de Branco Chaves, citado por João Medina. Em Novembro e Dezembro de 1923, a Junta Central do Integralismo Lusitano (JCIL) incluía José Hipólito Raposo, António Sardinha, Luís de Almeida Braga, Alberto Monsaraz, José Pequito Rebelo e dois recentemente cooptados, em Maio de 1922, Afonso Lucas e Francisco Rolão Preto. Como reagiram estes integralistas ao projecto da revista? Segundo João Medina, António Sardinha tê-lo-á aceite com entusiasmo. Não vejo motivo para duvidar. Amigo íntimo de Afonso Lopes Viera, Sardinha é, aliás, o único membro da JCIL a ver um artigo seu publicado na revista. Tal como Medina, desconheço as reacções de Luís de Almeida Braga, Alberto Monsaraz, Afonso Lucas e Francisco Rolão Preto. Na interpretação de João Medina, terá sido Pequito Rebelo quem criou as maiores dificuldades ao projecto. Nas palavras de Medina, Pequito Rebelo, “intratável integralista, verdadeiro mineral de dogmatismo, recusou-se a colaborar”. Quando João Medina publicou estas palavras, Pequito Rebelo era ainda vivo. No testemunho de Teresa Martins de Carvalho, sua sobrinha, Pequito Rebelo, ao ler aquelas palavras, “ria-se muito. Já tinha ultrapassado os noventa anos e, portanto, era difícil ofendê-lo. Tirava daí apenas algo de divertido e curioso. – Sabes [disse ele para a sua sobrinha], já não pertenço à História. Pertenço à Geografia!”13. Mas, ter-se-ia mesmo Pequito Rebelo recusado a colaborar com a iniciativa dos Homens Livres? Como referi, pela carta de Fernandes Júnior para Pequito Rebelo, sabemos que entre a publicação do 1.º e do 2.º número da revista, Chaves quis instalar a administração da revista na sede do jornal A Monarquia. Desconheço o teor da resposta de Pequito Rebelo. No seu Espólio, não encontrei vestígio de uma projectada colaboração, mas não deixa de ser importante assinalar que o seu nome figura sempre na lista dos colaboradores da revista. O que não acontece com Hipólito Raposo, também membro da JCIL, cujo nome figura apenas entre os colaboradores do primeiro número. 13

Teresa Martins de Carvalho, Apresentação dos “Filhos de Ramires”, 3 de Novembro de 2004, Unica Semper Avis, acedido em 27 de Outubro de 2009: .

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Entre o 1.º e o 2.º número da revista, sabemos que aumentou o número de colaboradores e que se juntaram ao grupo “militares de prestígio”, como Francisco Aragão e Ribeiro de Carvalho14. E, pelo testemunho recolhido por João Medina, sabemos também que António Sérgio ter-se-á reunido com Hipólito Raposo, Pequito Rebelo, Afonso Lucas e Afonso Lopes Vieira, entre outros, na sede do jornal A Monarquia para discutir “a intenção política superior do grupo”. Nos espólios dos integralistas, não encontrei qualquer documento relatando o que se passou nessa reunião, sendo de admitir que “não se chegou (…) a qualquer acordo”15. No Espólio de Pequito Rebelo, existe uma cópia manuscrita, em papel com timbre do advogado Afonso Lucas, contendo o que poderá ter sido o programa que António Sérgio discutiu com os integralistas (Documento 2, em anexo). Entre a publicação do 1.º e 2.º número da revista Homens Livres, António Sérgio deu uma entrevista ao Diário de Lisboa, dizendo o seguinte: “Façam abstracção, por exemplo, da questão do rei e de algumas poucas ideias-sentimentos e verá que quase todas as teses concretas, de organização social, dos integralistas, se harmonizam perfeitamente com as do grupo Seara Nova. – Uns e outros, pois… Uns e outros são anti-conservadores; uns e outros são radicais; uns e outros regionalistas; uns e outros defendem a criação de uma assembleia representativa das classes e categorias sociais e intelectuais (com a diferença de que os primeiros só desejam esse e os segundos a combinam com um parlamento político); uns e outros atacam a plutocracia da sociedade portuguesa; uns e outros querem uma educação primária trabalhista e regional, etc.”16. O ponto n.º 5 do programa da Seara Nova, adiante transcrito (vide Documento 2), diz com efeito o seguinte: “A Seara Nova combate o parlamentarismo na forma como o temos tido; e, defendendo a existência de uma assembleia política, eleita por sufrágio não profissional, preconiza a criação de uma assembleia representativa das categorias económicas e intelectuais, ao lado da assembleia política; em caso de conflito entre as duas assembleias deseja o recurso para o Presidente da República, e, em última instância, para o referendum”. Segundo Medina, terá havido ajuste de seareiros e integralistas no que respeitava ao recurso a uma ditadura de salvação nacional, de duração limitada, mas não foi possível estabelecer acordo quanto à nova ordem MEDINA, João, op. cit., p. 20. Ibidem, p. 20. 16 “Homens Livres ou a nova falange política – António Sérgio fala das ideias reformadoras comuns a todos os campos”. Diário de Lisboa, Dezembro de 1923. 14 15

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político-constitucional. Esta era uma diferença importante, que António Sérgio não escondia, mas que, afinal minimizava na entrevista ao Diário de Lisboa: do lado seareiro, com efeito, defendia-se um sistema bicameral (câmara corporativa e câmara de partidos políticos), enquanto, do lado integralista, se defendia apenas, segundo as palavras de António Sérgio, uma “assembleia representativa das classes e categorias sociais e intelectuais”. Poderá ter sido este, na verdade, um decisivo pomo da discórdia. Sabemos que a colaboração dos integralistas com a situação sidonista fora escorada em pilar semelhante. E sabemos também, pelo programa do general Gomes da Costa, de Junho de 1926, praticamente elaborado pelos integralistas, que estes defendiam uma única câmara representativa por delegação directa dos municípios, excluindo-se a representação através de partidos ideológicos17. Na referida entrevista ao Diário de Lisboa, António Sérgio diz que o segundo número da revista incluirá colaboração de Hipólito Raposo. Tal não veio a acontecer e o seu nome veio mesmo a ser retirado da lista dos colaboradores. Assim, e face aos dados disponíveis, é bem possível que a maior intransigência para com a iniciativa dos Homens Livres não tenha partido de Pequito Rebelo, antes de Hipólito Raposo, secretário da Junta Central, então a mais importante figura do Integralismo Lusitano. Nas suas Memórias, Hipólito Raposo explica que não chegou a aderir aos Homens Livres por lhe ter sido recusada a publicação de um artigo intitulado “Nos liberi sumus” (Nós somos livres), em que combatia a personalidade política e moral do Presidente da República, Manuel Teixeira Gomes. Raposo acrescenta que o grupo também depressa de desfez: por alturas do Natal, dois seareiros “aceitaram o convite para fazer parte de um ministério de políticos desacreditados, daqueles que o grupo inicialmente se destinara a combater…”18. Pela periodicidade estabelecida, o terceiro número da revista deveria ter saído na semana do Natal. Sem a participação do secretário da JCIL, Hipólito Raposo, seria muito difícil manter juntos por muito tempo seareiros e integralistas, mas terá sido a formação do governo Álvaro de Castro a deitar por terra o projecto. Dois seareiros pertencentes ao grupo dos Homens Livres aceitaram o convite para integrar o Governo: em 18 de Dezembro, António Sérgio é empossado como Ministro da Instrução Pública enquanto o major Ribeiro de Carvalho toma posse como Ministro da Guerra;

RAPOSO, Hipólito. Folhas do Meu Cadastro – Volume II (1926-1952). Lisboa: Comissão do Centenário de Hipólito Raposo, 1986, pp. 14-19. 18 RAPOSO, J. H. Folhas do Meu Cadastro. Lisboa: Edições Gama, 1945, pp. 234-235. 17

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em 24 de Dezembro, Mário de Azevedo Gomes toma posse como Ministro da Agricultura. Tanto a revista dos Homens Livres como a participação do seareiros no Governo tiveram vida efémera. Em 26 de Fevereiro de 1924, já Ribeiro de Carvalho se demitia do Governo, secundado, dois dias depois, por António Sérgio. O governo de Álvaro de Castro acabará por cair em Julho desse ano.

2. O conteúdo da revista Homens Livres O 1.º Número – 1 de Dezembro de 1923 No primeiro número da revista, os seareiros assinam seis prosas e um poema: “Vivos e Mortos” e “O Torpel dos Escravos” (poema), por António Sérgio; “Lamentabilis Illi… O Concerto do S. Luís ante os direitos da consciência e a dignidade nacional”, por Raul Proença; “O Palácio Mundial em perigo”, por Jaime Cortesão; “A propósito dos Jogos Olímpicos”, por Simões Raposo; “Em torno do problema da raça”, por Aquilino Ribeiro e “Portugal hostil aos portugueses de mérito” por Reynaldo dos Santos. Pelo lado integralista, são publicadas apenas duas prosas: “Terra Nossa – Árvores”, por Afonso Lopes Vieira e, por Augusto da Costa, “A crise portuguesa e a reacção dos Homens Livres”. O artigo de entrada, assinado por António Sérgio, sob o título “Vivos e Mortos”, identifica, de forma breve, “a grande linha divisória” que, naqueles dias, não era entre as direitas e as esquerdas, mas entre a política nova e a política velha.19 Irmanados numa política nova, seareiros e integralistas, ali se apresentavam juntos em defesa de “uma Ideia Nacional, uma finalidade portuguesa, anterior e superior às finalidades partidárias”20. No poema “O Tropel dos Escravos”, dedicado à “livre Mocidade Académica de Lisboa”, a toada é de denuncia da Finança e dos Partidos que dominam a República: “A turba passa, como um rio, / Orgíaca, infernal, entrechocada, aos gritos, / E no meio eu, convulso, ergo os braços aflitos / Sobre o grão desvario.” A turba, porém, “é uma escada / Submissa ao gesto brando e à palavra enflorada / Que em mentira explodiu”… “Por sobre a podridão prospera o verme vivo, / Nos cofres do ricaço aninha o plumitivo, / Do oiro a pena sai…” O artigo de Raul Proença refere-se à posição pública de protesto levantada por Raul Brandão, José de Figueiredo, Reynaldo dos Santos, Marck Athias, Jaime Cortesão, António Sérgio, Câmara Reis e Afonso Lopes Vieira,

SÉRGIO, António. Vivos e Mortos. In: MEDINA, João, op. cit., pp. 39-41. Ibidem, p. 41.

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a respeito da exoneração do maestro Francisco de Lacerda e substituição pelo maestro Lassale. Jaime Cortesão escreve sobre “O Palácio Mundial em perigo”, enquanto Simões Raposo, em “A propósito dos Jogos Olímpicos”, inclui várias reflexões de índole científico-cultural. Reynaldo dos Santos escreve acerca da “hostilidade portuguesa aos portugueses de mérito”. Os textos de António Sérgio, Raul Proença, Jaime Cortesão, eram susceptíveis de ajudar a forjar alguma unidade, ao menos de acção, entre integralistas e seareiros. Do lado seareiro, porém, Aquilino Ribeiro disserta sobre o “problema da raça”, explicitando conceitos adversos ao ideário dos integralistas. Ali considera Aquilino que a “raça (portuguesa) desce a vertente rápida do seu aniquilamento”, acrescentando: “A raça, na sua maioria, é constituída por impaludados e luxuriosos – impaludismo que a migração secular trouxe ao sangue português, e luxúria que, mercê do clima, educação sexual, cruzamento com outras raças inferiores, se infiltrou também no sangue da grei”21. É possível que nestas palavras de Aquilino Ribeiro estivesse um eco das teses do “nacionalismo étnico” de Teófilo Braga, ou mesmo de Oliveira Martins, por exemplo, a quem repugnava a ideia de que Portugal pudesse ser uma “nação mestiça”22. Sendo certo que a apreciação racista de Aquilino era moeda corrente no ambiente colonialista da I República (foi então que se começou a levantar o problema da assimilação jurídica das populações indígenas dos territórios de África23), não deixava de levantar ali um potencial pomo de discórdia com os integralistas, para quem Portugal permanecia e devia permanecer uma Nação plurirracial e pluricontinental. Nesse primeiro número, como referido, a colaboração integralista resumia-se a dois textos, um assinado por Afonso Lopes Vieira, e o outro, por Augusto da Costa, então redactor no jornal A Monarquia, órgão do Integralismo Lusitano. Afonso Lopes Vieira, sob o título “Terra Nossa”, em toada “ecologista” – diríamos hoje – publicou um breve texto em “prol de árvores cuja beleza, ainda que estejam caducas, vale infinitamente mais que rendimento dos futuros esteres de madeira com que os serviços florestais nos gratificam”.

RIBEIRO, Aquilino. Em torno do problema da raça. In: MEDINA, João, op. cit., pp. 72-75, cit. p. 74. 22 MARTINS, J. p. de Oliveira. O Brasil e as Colónias Portuguesas. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1920, pp. 149-153. 23 Leis n.º 277 (Lei Orgânica da Administração Civil das Províncias Ultramarinas) e n.º 278 (Lei Orgânica da Administração Financeira das Províncias Ultramarinas), de 15 de Agosto de 1914. 21

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O texto assinado por Augusto da Costa, porém, além de ser o mais extenso desse primeiro número da revista, é aquele em que se coloca o problema da definição de uma missão para a revista Homens Livres, nos seguintes termos: “A nossa crise é uma crise de elites, ou uma crise da Nação, organicamente considerada?”Ao que logo respondia: “a crise portuguesa é hoje uma crise de inteligência e de carácter, uma crise intelectual e moral, uma crise de valores individuais mais do que uma crise de valores colectivos”24. Ao descer à componente político-social da crise, dizia Augusto da Costa: “A ditadura dos políticos – e dos políticos desorganizados dentro dos partidos ainda mais desorganizados – deu, daria fatalmente, no predomínio das oligarquias. Quem manda em Portugal? Os partidos? Não: entre os partidos, apenas um manda e dispõe do país: o mais forte numericamente e revolucionariamente. Os outros partidos são simples satélites do primeiro, apenas comparsas da comedia constitucional; só a benevolência do mais forte lhes permitirá o exercício temporário do governo. À face dos princípios, à face da letra constitucional corrente, é a maioria quem deve mandar. A maioria, porém, é constituída pelos não-votantes. Nessas circunstâncias, a minoria votante partilha-se numas tantas fracções, e a maior de todas elas é quem toma conta do governo. É isso a Soberania do Povo? Talvez, para aquela ínfima parcela de povo filiada no partido que detém o governo. Mas, para o resto da Nação, essa soberania de facto é pura e simplesmente a soberania dos partidos, se não dum partido só. A Nação está ausente do governo”25. (…) “A aliança da Finança com a Política é cada vez mais apertada: Se os Homens Livres de Portugal o consentirem, se os que restam vivos no meio dessa catástrofe moral e material a isso se não opuserem, será essa aliança diabólica quem estrangulará definitivamente, como uma coleira de aço, a Nação atrofiada já nas suas energias vitais. A Plutocracia dispõe dos políticos e dispõe também da imprensa”. Era assim que se fazia jus ao subtítulo da revista Homens Livres – Livres da Finança & dos Partidos, mas, qual o caminho a seguir para se vencer a crise portuguesa? Antes de mais reagir. Reagir, sim, mas sem uma preocupação imediatamente centrada nas maiorias – “As verdadeiras maiorias activas e dinâmicas, são sempre as minorias. O resto é poeira do caminho”26.

COSTA, Augusto da. A Crise Portuguesa e a Reacção dos Homens Livres. In: MEDINA, João, op. cit., pp. 56-63, cit. p. 56. 25 Ibidem, pp. 57-59. 26 Ibidem, pp. 56-63, cit. p. 62. 24

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Para o integralista Augusto da Costa, na senda de Trindade Coelho, a que alude, coexistia em Portugal uma massa de bronze com uma elite de lama. Importava antes de mais trabalhar com e para os “homens livres”: “A preocupação dos homens livres, de todos os homens livres que connosco pretendam trabalhar, deve ser exclusivamente a de reorganizarem a Nação verticalmente e não horizontalmente. Quer dizer: a nossa propaganda deve ser feita no sentido de reformar primeiramente as elites, os ‘homens-bons’ e os ‘homens livres’, dando finalidade e coerência aos seus esforços, e por aí, depois, caminharmos com passos mais seguros para a conquista das massas”27. Neste primeiro número da revista, em apoio a esta linha de ideias de Augusto da Costa, são transcritas palavras de Antero de Quental acerca da missão do escritor: “O escritor quer o espírito livre de jugos, o pensamento livre de preconceitos e respeitos inúteis, o coração livre de vaidades, incorruptível e intemerato. Só assim serão grandes e fecundas as suas obras: só assim merecerá o lugar de censor entre os homens, porque o terá alcançado, não pelo favor das turbas inconstantes e injustas, ou pelo patronato degradante dos grandes e ilustres, mas elevando-se naturalmente sobre todos pela ciência, pelo paciente estudo de si e dos outros, pela limpeza interior duma alma que só vê e busca o bem, o belo, o verdadeiro”28. Na mesma linha se situava o excerto de Oliveira Martins sobre o Ideal Nacional: “Desgraçadas as nações que um dia deixaram de ter um pensamento, uma ambição, um ideal, que seja para o seu corpo colectivo o que é para o corpo humano esta energia sintética que nos anima, incitando-nos a trabalhar como condenados quando poderíamos viver como lazaronis”29. Estranhamente, no que pode ter sido um contributo seareiro, é transcrito um excerto de Ortega y Gasset sob o título “Palavras sobre Espanha que se aplicam a Portugal”, onde se pode ler: “Os velhos políticos, digamo-lo lealmente, eram só a flor da velha política. A raiz e a causa de todo o regime estavam e estão nos governados, e não nos governantes”30. Começava a adivinhar-se difícil esta aliança entre integralistas e seareiros. De um lado, as citações de Antero de Quental e de Oliveira Martins vinham em reforço da tese da crise de elites diagnosticada por Augusto da Costa; do outro lado, transcrevia-se Ortega y Gasset, para se dizer que 29 30 27 28

Ibidem, cit. p. 62. QUENTAL, Antero de. Palavras de Antero de Quental. In: MEDINA, João, op. cit., p. 55. MARTINS, Oliveira J. Ideal Nacional. In: MEDINA, João, op. cit., p. 64. GASSET, Ortega y. Palavras sobre Espanha que se aplicam a Portugal. In: MEDINA, João, op. cit., pp. 68-69.

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a raiz da crise estava igualmente nos governados, nessa massa que afinal não seria de bronze, mas antes responsável pelo lamaçal em que as elites se prostravam. Como foi referido, entre o 1.º e o 2.º número da revista, António Sérgio deu uma entrevista ao Diário de Lisboa, sublinhando os pontos comuns. Pelo lado integralista, havia mesmo a promessa de colaboração de Hipólito Raposo com um texto a publicar no próximo número. Depois desta entrevista terá então ocorrido a reunião, na sede do jornal A Monarquia, entre António Sérgio e os integralistas. O 2.º Número – 12 de Dezembro de 1923 O segundo número da revista Homens Livres voltou a ser mais seareiro do que integralista: seis textos eram assinados por seareiros contra dois por integralistas. O artigo de abertura vinha assinado pelo seareiro Bettencourt Rodrigues, reproduzindo as últimas páginas do seu livro, então no prelo, Prováveis alianças e agrupamentos de nações. Uma Confederação Luso-Brasileira. O cerne da proposta de Bettencourt Rodrigues apontava para uma nova formação política centrada no Atlântico mas, no quadro político europeu da época, ali se sugeria o alinhamento de Portugal com a Itália de Mussolini e a Espanha de Rivera numa União Latina.31 Celestino da Costa trata do problema da investigação científica em Portugal32, enquanto Ezequiel de Campos escreve sobre “A Questão Agrária”. Segundo o seareiro Ezequiel de Campos, a situação agrária portuguesa caracterizava-se num duplo e grave desequilíbrio económico e demográfico: o “desequilíbrio das profissões” e o “desarranjo demográfico”. A solução estava em estancar as correntes migratórias para a França e para o Brasil e povoar o sul do território continental, em especial o deserto alentejano. Na visão de Ezequiel de Campos, depois da “traulitânia” – aludindo à derrota dos monárquicos no Norte e em Monsanto (Lisboa), em 1919 –, o regime republicano passara a viver em “comunismo burocrático e mavórcio” ou, como dirá mais adiante, “em revolucionário comunismo de pedintes em autofagia”33. António Sérgio assina um texto intitulado “Decadência Física e Apatia Moral”, em que faz uma apologia dos desportos e do exercício físico, RODRIGUES, Bettencourt. À Diplomacia Portuguesa. In: MEDINA, João, op. cit., pp. 85-89. 32 COSTA, A. Celestino. O Problema da Investigação Científica em Portugal. In: MEDINA, João, op. cit., pp. 89-95. 33 CAMPOS, Ezequiel de. A Questão Agrária. In: MEDINA, João, op. cit., pp. 95-98, cit. pp. 96, 98. 31

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municiado em longas citações de autores que os integralistas muito apreciavam e divulgavam: Eça de Queirós, Ramalho Ortigão, Fialho de Almeida. António Sérgio defendia naturalmente os seus pontos de vista mas, por assim dizer, acariciando os integralistas. Ainda no campo seareiro, Quirino de Jesus revela alguns dos meandros do caso das “400.000 libras esterlinas”, porventura, “o sintoma mais grave, neste últimos anos, da desmoralização que invadiu os poderes do Estado e os altos corpos que auxiliam ou corrigem a sua governação”. A sua conclusão justificava a reacção dos Homens Livres: a Finança e os partidos políticos viviam em vergonhoso conúbio: “todos os partidos e grupos da Câmara estavam influenciados em larga escala pelas pretensões dos interessados”34. Nesse segundo número da revista, os dois textos assinados por integralistas vêm assinados por Augusto da Costa e António Sardinha. Augusto da Costa apresenta algumas “Reflexões sobre Congressos Económicos” promovidos pelas Associações comerciais e industriais de todo o país35, voltando, no cerne da sua mensagem, a tocar no problema da representação política: “querer que um Parlamento político, exclusivamente constituído por representantes dos partidos políticos, e só como tal valendo os seus componentes individuais, seja capaz de representar e de se identificar com os interesses económicos da Nação, que ele totalmente desconhece, é querer fazer passar o absurdo por um raciocínio lógico”36. Mas é neste segundo número que um membro da Junta Central do Integralismo Lusitano, António Sardinha, publica o artigo intitulado “Almas Republicanas”. António Sardinha, referindo-se ao texto de abertura da revista, no seu 1.º número – “Vivos e Mortos” –, começa por dizer o seguinte: “Chamou António Sérgio aos integralistas, ou, pelo menos, aos melhores dos integralistas (o que para o caso não é indiferente!) ‘almas republicanas’. Não repelirei, por minha parte, a designação, desde que lhe precisemos o sentido”. “Defensores, contra a centralização abusiva do Estado moderno – seja ele de estrutura electiva, ou simplesmente monárquico-liberal –, daquele perdido localismo municipal, corporativo e provincialista, em que nasciam e se robusteciam as virtudes cívicas dos antigos cidadãos, o adjectivo ‘republicano’ pode caber-nos, na verdade, logo que o restituamos ao sentido apontado. JESUS, Quirino de. As 400.000 libras esterlinas. In: MEDINA, João, op. cit., pp. 110-115, cit. pp. 114-115. 35 COSTA, Augusto da. Reflexões sobre Congressos Económicos. In: MEDINA, João, op. cit., pp. 117-121. 36 Ibidem, pp. 117-121, cit. p. 120. 34

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Exprime até magnificamente o nosso protesto político perante o que são hoje as ‘repúblicas’, como sistemas de governo – máquinas de burocracia congestiva, em que as oligarquias, tanto partidaristas como plutocráticas, asfixiam as livres iniciativas não só dos indivíduos, como da colectividade”. Se a representação da República fosse feita através dos municípios, e não através de partidos ideológicos, então António Sardinha era republicano. Do seu ponto de vista, República e Monarquia não eram conceitos em si mesmo contraditórios, e por isso acrescentava que a “democracia” ou a “república”, no sentido municipalista que apontara, era melhor servida pela instituição monárquica no topo do Estado, enquanto “agente eficaz de unidade” nacional. “Nós, integralistas, almas republicanas, defendemos a Monarquia como fecho e remate da nação organizada”. Para Sardinha, as Repúblicas geridas por partidos correspondiam ao “regime aristocrático (ou oligárquico) por excelência”. “Exactamente porque os integralistas se têm como ‘almas republicanas’ é que a instituição monárquica não é para eles um detalhe decorativo ou episódio de museu”. A rematar, António Sardinha referindo-se ao projecto Homens Livres – Livres da Finança e dos Partidos, diz que não havia motivo para desistir. Do seu ponto de vista, havia coincidência em muita solução. Mais: a revista tinha vindo ao encontro das aspirações dos integralistas: “Chamaram por nós num brado de heróica mocidade. A esse brado respondemos, porque respondemos sempre a tudo o que seja por Portugal e a que não falte o selo dignificador da inteligência”37.

3. Após a experiência dos Homens Livres Do lado dos defensores do regime da I República, Carlos Ferrão classificou a experiência dos Homens Livres como uma “colaboração espúria”. Situando-se na mesma linha de ideias, João Medina conclui interrogando se os seareiros, aliando-se aos integralistas, não terão cometido um “erro de estratégia”. Ter-se-iam tornado, dali em diante, em “Cassandras trágicas diante do naufrágio iminente da República”. Ao avaliar o campo adversário, Medina diz que os integralistas lusitanos, após a experiência dos Homens Livres, passaram à conspiração activa, política e militar, contra o regime. Julgo tratar-se de um erro de paralaxe. O derrube da República era, para os integralistas, um objectivo estratégico, de há muito perseguido e aplicado em moldes conspirativos; assim tinham SARDINHA, António. Almas Republicanas. Homens Livres. Livres da Finança & dos Partidos, Lisboa, n.º 2, 12 de Dezembro de 1923.

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actuado logo após o assassínio do Presidente Sidónio Pais, concorrendo com risco de vida para a proclamação da Monarquia no Norte e em Monsanto, e assim continuaram a actuar, de forma activa, antes e depois de 1923. Na perspectiva dos mais destacados integralistas e seareiros, resulta claro que o subtítulo da revista Homens Livres tinha grande acuidade. Havia com efeito dois inimigos comuns a combater: a Plutocracia e o Partidarismo. Esta aproximação entre seareiros e integralistas na revista Homens Livres foi muito efémera, mas não se ficou por ali. Depois de derrubada a I República, seareiros e integralistas voltaram a encontrar-se, em diversas ocasiões, na oposição ao que Hipólito Raposo designou por “Estatocracia” (1926-1932), “Salazarquia” (1933-1939) e “Ilusitânia” (1940-1952). António Sardinha falecera em 1925. Hipólito Raposo virá a falecer em 1953. Os mais destacados integralistas que lhes sobreviveram, com destaque para Luís de Almeida Braga e Francisco Rolão Preto, continuaram na senda dos mestres, espreitando oportunidades propícias à junção de esforços com os seareiros. Foi desse esforço de unidade que vem a resultar o lançamento da candidatura presidencial do general Humberto Delgado, em 1958. No teor de algumas das intervenções que escutei durante este evento, encontrei um certo sentido de homenagem aos homens da Seara Nova. São poucos os documentos que hoje aqui junto ao processo historiográfico dos Homens Livres, mas espero que possam ainda assim contribuir para fazer avançar o inquérito em busca da verdade. É desta forma que lhes quero aqui prestar também a minha homenagem.

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ANEXOS UM PROGRAMA DA SEARA NOVA (Dezembro de 1923)*

1. A Seara Nova afirma um Ideal Nacional e o desejo da persistência da Pátria Portuguesa, autónoma; e preconiza a existência de um estado jurídico entre as nações, salvaguarda das pátrias militarmente fracas perante as mais fortes: que elas regulem as suas mútuas relações pelos ditames da consciência moral e do espírito jurídico. 2. A Seara Nova reconhece a liberdade da Igreja Católica, sem protecção do Estado, mas sem pressão ou hostilidade da parte deste: separação verdadeira e leal do Estado e das Igrejas. 3. A Seara Nova defende a estabilidade e normalidade da constituição da família, para a qual admite uma base exclusivamente jurídica. 4. A Seara Nova combate o predomínio da plutocracia na sociedade portuguesa e a constituição oligárquica e parasitária dela, bem como o espírito conservador, aliado dessa constituição e desse predomínio. 5. A Seara Nova combate o parlamentarismo na forma como o temos tido; e, defendendo a existência de uma assembleia política, eleita por sufrágio não profissional, preconiza a criação de uma assembleia representativa das categorias económicas e intelectuais, ao lado da assembleia política; em caso de conflito entre as duas assembleias, deseja o recurso para o Presidente da República, e, em última instância, para o referendum. 6. A Seara Nova propõe a reforma da lei eleitoral para a assembleia política, nos moldes da lei eleitoral argentina. 7. A Seara Nova não defende a luta de classes, mas a justa organização das classes pelo corporativismo, e a procura constante de um salário justo. 8. A Seara Nova sustenta, no problema financeiro, a compressão das despesas improdutivas, mas o aumento das despesas produtivas (sobretudo no fomento agrícola e na instrução pública reformada) e a manutenção das dotações orçamentais nos serviços onde se revela um espírito criador e progressivo para bem da economia ou da cultura intelectual da comunidade.

* Transcrição do documento 2, reproduzido a seguir. [N. do E.]

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9. A Seara Nova preconiza a reforma da educação nacional; a orientação trabalhista das escolas primárias (sem que passem a ser técnicas), desenvolvendo-se os trabalhos manuais como centro principal de interesse; o desenvolvimento das humanidades modernas na instrução secundária; a criação de escolas modelo, de um Museu Pedagógico, de uma Residência de Estudante, de uma Junta de Promoção de Estudos. 10. A Seara Nova preconiza a reforma agrária, nas linhas seguintes: obrigação de cultivo segundo as possibilidades dos terrenos, determinadas pelos técnicos; legislação de concentração parcelária; casal de família; fomento da pequena e da média propriedade ao pé da grande, nas regiões onde esta predomina; mobilização da propriedade rústica. 11. A Seara Nova preconiza a execução de um plano de numerosos pequenos trabalhos de hidráulica agrícola, estudado sob a direcção de uma autoridade técnica mundial no assunto. 12. A Seara Nova preconiza o aproveitamento hidroeléctrico dos nossos rios por empresas portuguesas, com caducidade de todas as concessões actuais em que se não tenham cumprido as cláusulas relativas ao prazo marcado para começo das obras, ou em que se não haja trabalhado com a intensidade correspondente à que tecnicamente devia haver para serem executadas no período respectivo, assim como daquelas em que se tenham pedido modificações e prorrogações e as obras não estejam em plena actividade, revertendo ao Estado as concessões caducas, para salvaguarda dos interesses nacionais; classificação das quedas de água e seu agrupamento, para concessão oportuna em máxima vantagem do trabalho português; intervenção efectiva do governo para a realização imediata dos aproveitamentos hidroeléctricos fundamentais e da rede fundamental de transportes eléctricos.

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Sobre a revista Homens Livres. O que é a liberdade dos livres? RUI LOPO Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

I Com data de 1 e de 12 de Dezembro de 1923 são publicados os dois números únicos de uma revista de anunciada periodicidade semanal, intitulada Homens Livres1. É lembrada na história da cultura portuguesa do século XX, na história da imprensa cultural periódica e na história da chamada Primeira República2 esta peculiar iniciativa editorial pela estranheza de – num período especialmente extremado da vida social portuguesa – nela se encontrarem cerca de quinze colaboradores3 de formações culturais e sensibilidades políticas tão diversas que já então (e ainda mais, a posteriori,) viriam até Os dois números da revista foram integralmente republicados numa edição organizada, prefaciada e preciosamente anotada por MEDINA, João. O Pelicano e a Seara. Integralistas e Seareiros juntos na revista Homens Livres. Lisboa: Edições António Ramos, Colecção Arquivos de Sempre, 1978. 2 Para uma visão panorâmica do periodismo cultural português das primeiras décadas do século XX em suas motivações ideológicas e justificações históricas, consulte-se PIRES, Daniel. Dicionário das Revistas Literárias Portuguesas do Século XX. Lisboa: Contexto Editora, 1986, refundido em Dicionário da Imprensa Periódica Literária Portuguesa do Século XX (1900-1940). Lisboa: Grifo, 1996 e Dicionário da Imprensa Periódica Literária Portuguesa do Século XX (1941-1974), 2 vols., Lisboa: Grifo, 1999-2000; e AA.VV. Revistas, Ideias e Doutrinas, Leituras do Pensamento Contemporâneo. Apresentação de Zília Osório de Castro e introdução de Luís Crespo de Andrade. Lisboa: Livros Horizonte, 2003. Para enquadramento histórico-cultural e sobretudo político-doutrinal do período, consulte-se História do Pensamento Filosófico Português. Dir. Pedro Calafate, vol. 5, tomo 2, Lisboa: Editorial Caminho, 2000, “O Século XX”, esp. o capítulo 3, de Ernesto Castro Leal: “Tópicos sobre os nacionalismos críticos do demoliberalismo republicano: moral, religião e política”, pp. 135-160. 3 Contabilizamos como tais os autores efectivos de peças assinadas nas páginas dos dois números da revista, embora a lista que surge no cabeçalho do periódico seja muito maior, o que leva João Medina a considerá-los “meramente simbólicos”. Para além desse estatuto de companheiros de caminho, que emprestam simbolicamente o seu nome como modo de sancionar o movimento ou de prestigiar a iniciativa, colocamos a hipótese de os nomes que aí surgem designarem autores que talvez se tivessem comprometido com uma colaboração que não chegou a acontecer pela repentina 1

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a ser considerados como perfeitos contrários, em termos políticos, ao abrigo da canónica divisão entre as chamadas esquerda e direita, adeptos da laicização da sociedade e crentes ou militantes católicos, republicanos democratizantes e monárquicos integralistas, tradicionalistas e avançados, revolucionários e contra-revolucionários. Recorde-se ainda que tais sensibilidades se encontravam perfeitamente organizadas em torno das revistas Seara Nova4 e Nação Portuguesa5 e as suas polémicas públicas eram frequentes. Estas revistas eram, em geral, entendidas como expressões culturais correspondentes a campos de opção político-partidária delimitada, o que implicou, por exemplo em 1919, a participação de algumas das suas personalidades em campos opostos de confrontações violentas de cariz político-militar. Atentemos em dois artigos fundamentais publicados nesta revista, da pena de António Sérgio6 (apresentado como Redactor Principal, que com o Editor, Reinaldo dos Santos, constituem os dois únicos cargos que se distinguem da lista não hierarquizada de colaboradores), um que abre o primeiro número da publicação e outro que encerra o segundo (e último, o que ainda se não sabia). O artigo serve como apresentação editorial, na medida em que é o primeiro que surge a abrir o periódico. Intitula-se “Vivos e mortos”7: (…) a grande linha divisória, nestes nossos dias, não é a que separa as “direitas” das “esquerdas”; é, sim, a que distingue na sociedade uma nova orientação, a política nova (dando à palavra “política” o seu mais largo significado), do espírito velho e da política velha; os homens século XX dos homens século XIX; os vivos dos mortos8.



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paragem da publicação da revista no seu segundo número, ou que efectivamente colaboraram com os Homens Livres, mas não como redactores de textos. Ver CARDIA, Sottomayor (organização, prefácio e notas). Seara Nova. Antologia. Pela Reforma da República (1), 1921-1926. Lisboa: Seara Nova, 1971. Órgão dos Integralistas, publicou-se entre 1914 e 1938. Ver, por exemplo, QUINTAS, José Manuel. Filhos de Ramires. As origens do Integralismo lusitano. Lisboa: Editorial Nova Ática, 2004. Ver, também, CARVALHO, Paulo Archer de. Da Nação Portuguesa (1914-1938) ao Integralismo Lusitano (1932-1934): A insurreição dos intelectuais. Revistas, Ideias e Doutrinas, pp. 134-151. Para uma visão global da obra de António Sérgio, consulte-se o volume especial, o n.º 5 (em dois tomos), que lhe é dedicado pela Revista de História das Ideias. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1983, coordenado por Fernando Catroga e Amadeu Homem, ou as Actas do Colóquio António Sérgio: Pensamento e Acção (em dois tomos). Lisboa: INCM, 2004. MEDINA, João, op. cit., pp. 39-41. Idem, p. 39.

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Substituindo assim a dicotomia política, classicamente operativa, de direita e esquerda pela de novo e velho, ou vivo e morto, passa depois Sérgio à breve e bastante retórica explicitação dessa díade feita de movimento e estagnação, de construção e negação, servindo-se de alguns outros pares de ideias equivalentes a estas, quase sempre denotando diversas atitudes morais mais do que argumentadas diferenças políticas: De um lado, pois, as almas mortas, presas à estrutura social do século XIX, à tirânica plutocracia do seu falso democratismo, ao individualismo negativista, ao aéreo jacobinismo, à sua gorda burguesia, egoísta e céptica; do outro, o século XX, com o seu anseio de reformação positiva, o democratismo construtor, o sentido social, o amor da liberdade racional e disciplinada. Homens de hoje e homens de ontem; regeneração e ancilose; movimento e estagnação; vida e morte; homens livres da decomposição da sociedade em que nasceram, e homens presos aos formalismos de uma sobrevivência que se desfaz9.

Lembremos a publicação de títulos tão emblemáticos como As Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, de Antero de Quental, em 1871, a História de Portugal, de Oliveira Martins, em 1879, o Finis Patriae de Guerra Junqueiro, em 1890, ou O Fim de António Patrício, em 190910: Neste sentido, é servindo-se assim de uma metáfora que de algum modo provinha – no sentido em que aqui ocorre – da geração de 70, depois reforçada pela geração de 90, que Sérgio profere a famosa afirmação de que cheira a cadáver neste país, que nos remete para a sua expressão relativa ao Reino Cadaveroso11. Não é difícil inferir que um país morto careceria de renascer, uma sociedade considerada decadente, formalista e em crise necessitaria de se regenerar. Um moribundo espera um novo alento; um morto aguarda a ressurreição? Propondo-se explicitar o conteúdo do que seja esta liberdade que definiria estes homens, Sérgio proclama assim a necessidade deste órgão: Pareceu-nos por isso conveniente o haver um órgão dos homens livres, para os homens livres; dos homens vivos e para os homens vivos, de qualquer classe, doutrina política ou religião; afirmador por isso mesmo

Idem, p. 40. Sobre o importante tópico da consciência apocalíptica finissecular, correlativo de uma urgência regeneradora que se estende às décadas seguintes, veja-se COELHO, Maria Teresa Pinto. Apocalipse e Regeneração. O Ultimatum e a Mitologia da Pátria na Literatura Finissecular. Lisboa: Edições Cosmos, 1996. 11 Título de uma conferência pronunciada em Coimbra, em 1926, e cujo texto foi integrado no tomo segundo dos seus Ensaios. 9

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de uma Ideia Nacional, de uma finalidade portuguesa, anterior e superior às finalidades partidárias (…)12.

Esta decisiva passagem esclarece-nos um pouco mais sobre a fundamentação político-doutrinária deste projecto de clara desvalorização das diferenças económicas e sociais, assim como da diversidade de consciência política e religiosa, na medida em que estas se deveriam subsumir numa Ideia Nacional, aqui definida como anterior e superior às finalidades partidárias. Livres da finança e dos partidos: o subtítulo desta revista remete, mais fundamente, para a noção de que estes homens (que se encontram enquanto membros de uma mesma geração) se considerariam alheios às diferenças (e aos interesses, conflitos e contradições) de classe e às divisões partidárias que organizavam o poder e enformavam a sociedade de então, como se o homem livre de algum modo (moral, ideal ou espiritualmente?) a estas se eximisse e a estas superasse e transcendesse. É ainda de sublinhar a consideração da finança como sinónimo de plutocracia e dos partidos como elementos alicerçadores da partidocracia reinante (tida como negativa e dissolvente). Não se distinguem os conceitos de finança, definível como conjunto de operações e instituições económicas de prolongada duração histórica, de uma sua apropriação plutocrática historicamente relativa e situada. Não se distingue um conceito de partido, como entidade historicamente mutável e conjuntural – que poderia estruturar uma democracia incipiente e organizar uma República em crise, assumindo-se as diferentes perspectivas ideológicas e interesses de classe em debate social – de uma partidocracia vista como sectária e mesquinha, lugar de demanda de proveitos egoistamente particulares, obliterando o interesse comum. O homem de partido é visto como um sectário e o homem livre como alguém que, misteriosamente, se encontra, de alguma forma, liberto da sua situação social, como se à agudeza das confrontações sociais efectivas do seu tempo só se pudesse responder com o seu esquecimento e com uma união feita toda ela de idealidade, de omissão e obliteramento das diferenças e de reivindicação de um terreno comum: Portugal inspirando uma finalidade portuguesa, idealizada como instância axiológica independente (superior ou anterior, nas metafísicas palavras de Sérgio), dos elementos históricos que a constituiriam: os portugueses reais, concretamente enredados em diferenças e contradições. O que Sérgio escreve foi provavelmente matéria de um acordo que presidiu à concepção deste projecto editorial. O seareiro procurará assim Idem, p. 41.

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justificá-lo a quantos experimentem a estranheza que nele se contenha, pensando, sobretudo, até nos seus mais atentos leitores e em seus companheiros políticos (assim como nos seus adversários). Sérgio estava ciente do quanto era ainda poderosa a invocação do nome da República e do qualificativo republicano, culminando a sua intervenção afirmando que: Os melhores dos integralistas […] são almas republicanas13.

António Sardinha responde ao artigo de Sérgio, em texto intitulado Almas republicanas14, dando assim conta das diversas manifestações de espanto ou perplexidade que aquele projecto suscitara, mas também assumindo a valia da operação retórica levada a cabo por Sérgio. Sardinha recorre a autoridades do pensamento contra-revolucionário como Bonald ou Maurras para precisar o alcance terminológico do qualificativo de republicano e do alcance do termo República. Afinal, o concordismo de ambos numa definição de república, como gestão independente e desinteressada das coisas comuns, não contribuirá para esvaziar de conteúdo doutrinal um termo que era então altamente polémico e objecto de acesas lutas? Sardinha, além de evitar aprofundar a crítica à democracia, identifica-a com o individualismo (tido como o adversário comum), contribuindo também para permitir, sancionar, justificar e legitimar uma aliança que muitos veriam como espúria. Ora, em combate franco ao individualismo na sua maior manifestação: – a Plutocracia, nos achamos aqui, neste reduto, dando as mãos fraternalmente, criaturas provindas dos mais diversos sectores do pensamento humano, desde o senhor Raul Proença (saúdo com respeito o meu adversário!), impugnador incansável das verdades semeadas pelo integralismo15, até ao meu reaccionarismo, cada vez mais justificado, mais consciente e mais indefectível16.

Aproveitando para esclarecer que o integralismo se apresenta como inimigo da Monarquia Liberal, Sardinha declara: Na guerra ao que reputamos como inimigo comum – a Plutocracia e o Partidarismo –, apenas nos cabe falar do que nos une e não do que nos separa. Idem, p. 40. MEDINA, João, op. cit., pp. 98-103. 15 Vejam-se as diversas controvérsias públicas, travadas contra os integralistas, compiladas em: PROENÇA, Raul. Polémicas. Organização, prefácio e cronologia de Daniel Pires. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1998. 16 Ed. cit., p. 100. 13

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Decerto que um integralista se encontra mais perto dum “radical século XX”, como António Sérgio, do que de qualquer avantajado corifeu da ignóbil mentira caída em 5 de Outubro de 191017.

Segundo Sardinha, os monárquico-liberais seriam matéria morta em total desagregação, mas os extremistas, no seu negativismo, seriam afirmativos virados do avesso. Sérgio seria um demolidor tão convencido do romantismo verbal, de que padece a mentalidade portuguesa. É lógica, portanto, a nossa aproximação, e com honra o digo, porque descontadas as nossas divergências, não de pessoas, mas de finalidade, António Sérgio e os seus companheiros marcam na podridão ambiente uma notável reserva de saúde e bravura moral18.

Sardinha não deixa contudo de identificar monarquismo em termos bastante abstractamente literais com uma busca da unidade nacional, dando assim diversos exemplos de actos monárquicos levados a cabo por republicanos (Primo de Rivera e Mussolini). Assim, se antes magnanimamente aceitou a qualificação de republicano, também de certa forma subtil obriga os seus correligionários de projecto, mas afinal adversários ideológicos, a assumirem-se monárquicos, no sentido também estreitamente unilateral desta palavra, como adeptos de uma soberania una, neste caso expressa na unidade nacional por que todos combateriam, considerada ameaçada justamente pelo partidarismo, aqui deliberadamente definido e confundido mediante as noções pejorativamente entendidas de opinião pública, democracia e partidocracia: E na Alemanha, – na Imperial República, – como interpretar a decisão do General Strecht, suprimindo a existência de todos os partidos, senão como um acto monárquico, em que a lei do interesse colectivo prevalece sobre a lei da opinião pública, base fundamental duma democracia?19

Continuando Sardinha, de forma retórica, a subverter os conceitos (prosseguindo seu abundante uso de autoridades ideológicas, neste caso, de Fustel de Coulanges) e, porventura inconscientemente, contribuindo mais para a explicitação das diferenças ideológicas do que para o encontro de sólidos pontos de convergência, afirma então que a monarquia é que seria Ed. cit., pp. 100-101. Recorde-se o facto de, na sequência da derrota da Monarquia do Norte, em 1919, os integralistas terem retirado o seu apoio a D. Manuel II e declarado a morte definitiva do Constitucionalismo Liberal. 18 Ed. cit., p. 101. 19 Ed. cit., p. 102. 17

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a verdadeira democracia, no sentido enunciado de regime mais conforme ao interesse colectivo: nós, integralistas, “almas republicanas”, defendemos a Monarquia como fecho e remate da nação organizada. No restante, pelo que toca às partes, e não ao todo, coincidimos sinceramente em muita solução com os “democratas” que figuram nesta trincheira ombro a ombro connosco. Anima-nos o mesmo fogo sagrado contra a barbárie dos tempos presentes20.

Não omitindo em sua exposição os elementos objectivos que facilitam a colaboração e propiciam o diálogo, como a convergência etária e geracional, a busca de uma unidade nacional supra-partidária, a comum pertença a uma elite intelectual e até a oportunidade publicística, porventura concitadora de almejadas simpatias, Sardinha prossegue: Chamaram por nós num brado de heróica mocidade. A esse brado respondemos, porque respondemos sempre a tudo que seja por Portugal e a que não falte o selo dignificador da inteligência. Demonstramos assim que não somos um partido. E se, como monárquicos, arde em nós o gosto sublime de servir, é servindo que as nossas “almas republicanas”, segundo a lição de Bonald, oferecem ao país dividido um exemplo de necessária e fecunda conciliação. Que lhe aproveite, e se volva num título de maior e mais ampla justiça para com o Integralismo!21

Em artigo do número seguinte, intitulado Lapsos e mal-entendidos22, Sérgio procede então à definição do que entende por alma republicana, concebendo-a de forma a nela caberem adeptos monárquicos. Teria assim uma alma republicana aquele indivíduo que se devota apaixonadamente à res publica (e não sobretudo à res privata, como sucede aos “conservadores”) e estrénuo defensor das liberdades da nação. […] nada decerto me ofenderiam os mesmos Integralistas, se, como desforra, me chamassem a mim “alma monárquica”, desde que designassem por estas palavras aquilo mesmo que dissemos, isto é, o entusiasta da res publica e das liberdades nacionais23.

Retoricamente esvaziado o conteúdo da acepção política comum das noções de monarquia e república, passa depois assim Sérgio a concluir que 22 23 20 21

Ed. cit. p. 103. Ed. cit. p. 103. Ed. cit. pp. 126-128. Ed. cit. p. 127.

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as divisões são muitas vezes causadas por mal-entendidos mais que por diferenças substanciais de ideias: Em considerável parte, é de palavras e de sentimentos, e não de ideias claras, a divergência entre os Integralistas e os membros da Seara Nova: – tanto os membros da Seara que se afirmam democratas e querem a República, como o que se afirma democrata e aceita a dita República (eu)24, por julgar possível definir as funções de um Presidente, e o seu modo de eleição, por forma tal que possa exercer aquele papel ponderador que os Integralistas dão ao Rei25.

Passando à enumeração das reais diferenças, Sérgio adopta agora um registo estritamente conceptual, assinalando uma oposição filosófica entre a sua posição que seria racionalista e relativista e a dos integralistas que assumiriam uma fórmula social definitiva, o que acabaria com a própria política:

Os percursos de Sérgio e Sardinha são de alguma forma especulares e inversos: Sérgio, enquanto militar, foi detido no 5 de Outubro, e Sardinha teve militância republicana antes de se ter convertido em monárquico e tradicionalista integral (ver nota 54). Lembremos ainda, para esclarecer esta subtil distinção entre militância republicana seareira e aceitação sergiana da república, que Sérgio declara em diversos passos fundamentais da sua obra que a questão formal do regime era secundária em relação à questão da organização económica, a qual é tida como determinante e fundamental. Sobre esta questão, veja-se, de MARTINS, Oliveira. Portugal e o Socialismo. 2.ª edição, Lisboa: Guimarães Editores, 1953 (1.ª edição, 1873), p. 33: “Que seja monárquica ou republicana a forma de governo, que se chame aristocrática ou democrática, isso importa, com efeito, pouco à classe dominante, porque isso não traduz para ela absolutamente ideia alguma. Ao lado de qualquer forma aparente e exterior de governo ela pode constituir-se como íntimo e verdadeiro governo; não chegou a sê-lo ainda na Idade Média? Não o foi depois com as monarquias? Não o é hoje? Para nós também é relativamente indiferente a forma aparente e exterior que o governo adquire, sempre que ela corresponda à época evolutiva em que existe; mas é-nos essencialmente importante que essa forma seja em si a forma íntima, a verdadeira expressão da sociedade, e não o manto exterior que cobre a oligarquia. A nossa antipatia é portanto íntima, orgânica, irremediável. Que seja monárquica ou republicana a forma de governo, isso importa com efeito pouco à banco-burocracia que nos governa; mas que o povo saia um dia do estado comatoso, que um grupo forte pela Ideia e suficientemente forte pelo número se imponha ao mundo actual e lhe retire das mãos as armas do seu predomínio, isso importará tudo à burguesia político-bancária portuguesa”. 25 Ed. cit., p. 127. 24

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Mas isso discutiremos na Seara Nova (e na Nação Portuguesa os Integralistas) se for preciso: porque esta tribuna dos Homens Livres é para as ideias que nos são comuns26.

II Para compreender com justeza a atitude de António Sérgio e António Sardinha, do projecto editorial dos Homens Livres e de outros projectos afins, congéneres ou adversos nas primeiras décadas do século XX, será necessário procurar os elementos fundamentais, antecedentes e concorrentes desta atitude, e assim deslocar o olhar, ampliá-lo e procurar estabelecer um quadro mentalitário27 que integre e justifique as intenções que atrás citámos, dissipando uma estranheza que terá sido sentida, mas que veremos ser apenas momentânea. Afinal, não é dado ao homem viver em estado de perplexidade permanente. O espanto é só momento inaugural do choque, do deslumbramento ou da acção a desenvolver. Recuamos em primeiro lugar até 1907-1909, à revista Nova Silva, onde Leonardo Coimbra, bastante jovem, advoga concepções libertárias (em que é nítida a marca vitalista de Guyau28) e em artigo intitulado “O homem livre e o homem legal” descreve um conflito entre o cidadão e o homem, nos seguintes termos: O cidadão é o homem mutilado. Cérebro livre no cárcere estreito e tenebroso da ignorância.

Esta posição parece-nos expressar uma mentalidade que vê as relações sociais como condições aprisionantes e não como estruturas necessárias à reprodução do viver humano, que cada geração encontra já dadas e nas quais terá de dilatar o campo de possibilidades de humanização e liberdade. Leonardo prossegue:

Ed. cit., p. 128. Para a necessária aclaração metodológica e epistemológica das distinções entre uma história das mentalidades, das ideologias, das ideias ou da filosofia, veja-se o importante estudo de MOURA, José Barata. Há uma História das Ideias? In: ______. Estudos de Filosofia Portuguesa. Lisboa: Ed. Caminho, 1998, pp. 13-36. 28 Este autor, muito lido e comentado nas primeiras décadas do século (Jaime Cortesão, Leonardo Coimbra, Manuel Laranjeira, José Marinho, Sílvio Lima), será objecto de um desenho de Cortesão nas páginas de A Águia. 26

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Ouvida a voz da consciência moral, o homem livre será a unidade bela da sociedade livre29.

E num outro texto, com o título “O pensamento e a liberdade”, publicado no periódico A Vida, de 1909: É pois o pensamento o criador da liberdade. Assim a educação é a máxima força de progresso e renovação30.

O seguinte passo, de Jaime Cortesão31, publicado no periódico A Ideia Livre, de 1911, também nos parece especialmente significativo. Lembremos que o seu autor terá longa e complexa acção política e cultural, sendo colaborador e até dirigente de múltiplos e diversos grupos cívicos, culturais, políticos e político-militares, sendo por fim, exilado: O termo livre, aposto à nossa ideia, qualificando-a, não significa tácita adesão a qualquer princípio de ordem política ou sociológica. Enganam-se os que tal supuserem. Nós não sabemos meter a Liberdade em gaiolas mesmo de ouro. Abominamos os Partidos e desprezamos as Seitas. Somos Livres32.

Jaime Cortesão, numa carta a Raul Proença, de Julho de 1911, matizando um pouco o radicalismo antes expresso, assume a sua vocação dinamizadora e associativa: Falei-lhe da necessidade de fundar uma Associação dos artistas e dos intelectuais portugueses com o fim principal de exercer a sua acção, isenta de facciosismos políticos dentro da actual sociedade. Acção social orientadora e educativa num meio como o nosso, onde não há grandes ideias, nem grandes homens que se imponham. Você sabe: são os burros que triunfam e portanto a burrice também.

Nova Silva, Revista ilustrada. Porto, ano I, n.º 1, 2 de Fevereiro de 1907, compilado nas Obras Completas de Leonardo Coimbra, volume I (1903-1912), tomo I, pp. 89-91, fixação do texto de Afonso Rocha, coordenação e introdução geral de Ângelo Alves, prefácio de Manuel Cândido Pimentel, Lisboa: INCM, Col. Pensamento Português, 2004. 30 COIMBRA, Leonardo. A Vida, Porto, ano V, série II, n.º 4, 24 de Janeiro de 1909, compilado em Obras completas, volume I (1903-1912), tomo I, ed. cit., pp. 127-129. 31 Cf. SANTOS, Alfredo Ribeiro dos. Jaime Cortesão: Um dos Grandes de Portugal. Prefácio de Mário Soares, Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 1993. 32 Ideia Livre, Porto, 1911, n.º 1, p. 1. 29

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Está claro que a Associação seria uma espécie de Maçonaria de Artistas e intelectuais, sem o carácter ridículo da outra33. Mas isso mesmo ajudaria a tornar a escolha mais rigorosa, de modo a que só entrasse gente da mais comprovada honestidade34.

Teixeira de Pascoaes apresenta o texto Renascença, como manifesto de apresentação da segunda série da revista A Águia, em 1912. O seu teor nacionalitário é característico: O sonho: impõe-se (…) o afirmarmos a união dos portugueses que vivam, além da sua vida egoísta e individual, a vida mais vasta e profunda, porque é abstracta e transcendente, da Pátria Portuguesa.

Isto é, na metafísica patriosófica de Pascoaes, a solidariedade nacional, mais do que um imperativo ético, corresponde à descrição de uma realidade ontológica, profunda, mas espiritualmente acessível: há um lugar em que todos os princípios e todas as ideias fraternizam. (…) esse lugar altíssimo, é para nós, neste momento, a vida da Nacionalidade (…). Sim: a alma portuguesa existe, e o seu perfil é eterno e original. Revelemola agora a todos os portugueses, na sua maior parte afastados dela pelas más influências literárias, políticas e religiosas vindas do estrangeiro. (…) E então um novo Portugal, mas português, surgirá à luz do dia, e a civilização do mundo sentir-se-á mais dilatada35.

Este foi contudo o segundo manifesto que Pascoaes escrevera. Antes havia escrito um outro, na sequência da reunião de Coimbra, de 27 de Agosto de 1911, que fora apresentado e recusado na reunião de Lisboa da Renascença Portuguesa, de 17 de Setembro de 1911. Na sequência dessa recusa, também Raul Proença propusera um outro texto de sua pena. Os dois primeiros manifestos só viriam a ser publicados no Jornal da Renascença Portuguesa, A Vida Portuguesa de 1914, dirigido por Jaime Cortesão. Opõem-se nisto: Pascoaes Neste mesmo ano, Cortesão tinha sido admitido na Maçonaria com o nome simbólico do filósofo Guyau. 34 Carta de Cortesão a Raul Proença, de 26 de Julho de 1911, publicada por OLIVEIRA, A. Braz. Catálogo da exposição comemorativa do primeiro centenário (1884-1984). Lisboa: Biblioteca Nacional, 1985, transcrita também por SANTOS, Alfredo Ribeiro dos. Jaime Cortesão, um dos Grandes de Portugal, ed. cit., pp. 52-53. 35 Vol. 1, 2.ª série, n.º 1, Janeiro de 1912, pp. 1-3, compilado por Pinharanda Gomes em Entre Filosofia e Teologia (Lisboa: Fund. Lusíada, 1992, pp. 154-155) como apêndice documental ao seu artigo A Tensão Doutrinal na Génese da Renascença Portuguesa, pp. 143-150. 33

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preconiza que se evitem as más influências estrangeiras enquanto Proença almeja colocar Portugal em contacto com o mundo moderno. Há todavia uma comum noção da possibilidade de uma renascença nacional impulsionada pela acção consciente de uma elite intelectual. No seu texto Raul Proença propõe: concentrar num bloco de renascença nacional tudo o que há aí de esparso – todas as boas vontades que têm esbarrado com a indiferença, todas as iniciativas que têm malogrado por falta de uma acção comum e persistente, todas as inteligências que se esterilizam no isolamento. Bloco sim, mas norteado pelo amor da colectividade, estranho a todas as facções políticas, religiosas e filosóficas e a todas as côteries literárias e artísticas; e tão largo que nele caibam todas as tendências mais variadas.

Embora Proença matize o que veria como um excessivo centramento em Portugal, por parte de Pascoaes, também na sua proposta se encontra o generoso projecto de abarcante encontro de facções e tendências, de interesses ou sensibilidades políticas, religiosas e filosóficas, desde que governados por uma boa vontade e um ímpeto renascente: Que fazer então? Pôr a sociedade portuguesa em contacto com o mundo moderno, fazê-la interessar pelo que interessa os homens lá de fora, dar-lhe o espírito actual, a cultura actual, sem perder nunca de vista, já se sabe, o ponto de vista nacional e as condições, os recursos e os fins nacionais.

Passando ao diagnóstico político da sua conjuntura, Proença prossegue: Os problemas são variadíssimos: educativos, económicos, morais, literários, artísticos, financeiros, militares, coloniais. A escola, o livro, a revista, o panfleto, o manifesto, a conferência, a exposição, o inquérito, a viagem de informação, de estudo – tais são os meios que temos ao nosso alcance. Por eles diligenciaremos criar em Portugal estas duas coisas absolutamente novas: uma elite consciente, uma opinião pública esclarecida36.

Aos variados tipos de problemas, de tipo económico, político, social, corresponderá uma intervenção cívica, de cariz cultural, pedagógica e publicística. Na verdade, é digno de nota que a constante referência à criação e promoção de um escol seja aqui feita por republicanos adeptos de uma democratização do país, que parece excluir o próprio povo. Parece ocorrer em Proença e Sérgio algo a que assistíramos em Oliveira Martins: como que uma adesão ou inovadora renovação de uma idealizada No seu n.º 22, pp. 10-11 e pp. 11-12, Porto, 10.02.1914, compilado por Pinharanda Gomes, ed. cit., p.152.

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mentalidade aristocrática, reinventando-se todavia o aristocratismo, retirando-lhe a legitimidade genealógica e substituindo-a por um alegado valor cívico, intelectual ou moral da elite renovadora e já não mantenedora da ordem, como no passado. Surgem então outros grupos, como a Liga de Acção Nacional (1918) ou o Centro Católico Português (1917), cujo órgão é o jornal A Ordem e onde voltamos a encontrar esta atitude de quem se define como fora e acima de todos os partidos e regimes.37 Como sabemos, alguns dos mais destacados membros destes grupos que se afirmam supra-partidários, e como que apolíticos, irão participar das discussões públicas com opiniões próprias e até participar em grupos parlamentares ou em soluções governativas. Atentemos no seguinte texto de Sérgio, escrito em 1917, em que se encontra a mesma concepção de uma renovação nacional promovida por uma elite moral e intelectual: A reforma (…) só começará quando (…) houver grupos [elites (na 1.ª edição deste texto)] de cidadãos [honestos] decididos a contar consigo próprios, dispostos a combater no seu cantinho a omnipotência das clientelas, a criar falanges [grupos (na 1.ª edição)] de reformadores que dirijam os serviços de geral interesse, repelindo o polvo do centralismo dos vários redutos de que se apossou. Criar o espírito descentralista, o gosto da iniciativa na vida social, o da actuação na cooperativa e na sociedade escolar, na oficina e no sindicato, na assembleia provincial e no município: eis o que importa (…) Sejamos cidadãos a todas as horas, [cooperadores económicos a todas as horas (na 1.ª edição)], por um esforço quotidiano de autonomia, no palmo de terra em que temos os pés: esse, ao cabo de contas, é o caminho seguro da liberdade. O remédio para os erros da liberdade é uma liberdade mais bem entendida, – [mais concreta, (na 1.ª edição)] mais espiritual, mais de raiz. Lamentemos sinceramente aqueles que por falta de generosidade – ou de inteligência – são incapazes de o compreender38.

Também na Liga de Acção Nacional, movimento afecto à revista Pela Grei39 em 1918, colaboram republicanos e monárquicos, integralistas e avançados. Citado por GOMES, Pinharanda. A Escola Portuense. Porto: Caixotim, 2005, p. 191. “A propósito dos «Ensaios Políticos» de Spencer”, na 2.ª edição [1956], do segundo tomo dos Ensaios, das Obras Completas de António Sérgio orientada por Castelo Branco Chaves, Vitorino Magalhães Godinho, Rui Grácio e Joel Serrão e organizada por Idalina Sá da Costa e Augusto Abelaira, Lisboa: Livraria Sá da Costa, Colecção Clássicos Sá da Costa – Nova Série, edição crítica de 1977, pp. 162-163. 39 GOMES, Pinharanda, A Escola Portuense, edita o texto de apresentação da revista Pela Grei, no seu n.º 1, 1918, pp. 1-9, às pp. 200-209, assim como uma antologia elementar 37

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Estão lá Raul Proença, Jaime de Magalhães Lima e António Sérgio a par de outros colaboradores de diversa simpatia política. Este movimento e esta revista também reivindicam e assumem uma atitude a-partidária ou suprapartidária. Uma atitude de proposta de soluções nacionais para a Nação, uma atitude de União e colaboração em torno de medidas urgentes destinadas à resolução de um conjunto de problemas graves que eram então sentidos como bloqueadores da sociedade portuguesa e obstaculizadores do seu progresso no plano político, financeiro e económico (agrícola e industrial), colonial, religioso e pedagógico. Pela Grei havia sido título de uma rubrica assinada por António Sérgio n’A Águia (em 1916, onde publicara prosa e poesia) e Sérgio adianta em carta a Álvaro Pinto que pretende utilizar o mesmo título para secção de um periódico novo, mensal, que se intitularia Revolução Construtiva, que seria complementar da revista A Águia. Este jornal partiria de um desafio dirigido por Sérgio aos poetas da Renascença: Estão dispostos a integrar a Renascença num vasto movimento social de verdadeira, positiva, esclarecida, ponderada, estudada e honesta regeneração nacional?40

Em 1918, surge então a revista Pela Grei, órgão da Liga de Acção Nacional, publicando, a abrir o seu primeiro número, um artigo programático intitulado: “Do intuito e natureza desta revista”: Fazer surgir da Nação uma ideia bastante nítida do problema nacional; determinar segundo essa ideia um plano coerente de reformas, fora de toda preocupação política partidária, criar com esse trabalho uma opinião pública consciente, com que possa colaborar qualquer governo, de qualquer partido, uma vez que seja honesto: eis uma tarefa que não discutimos se será fácil ou difícil, mas que afirmamos resolutamente ser necessária. O necessário impõe-se (…). (…) não existe, acima dos partidos, uma força moral na sociedade portuguesa, uma opinião pública, um tribunal, uma consciência da Grei, criada pela sua elite social em todos os campos de actividade (…) “A acção política de todos” não quer dizer, evidentemente, que todos ingressem num partido; bem pelo contrário, trata-se de organizar uma força política que esteja acima dos partidos e corresponda, por isso mesmo, ao significado filosófico da Política, que é o de doutrina dos fins sociais, do de textos sobre a Renascença Portuguesa. Cartas de António Sérgio para Álvaro Pinto (1911-1919). Introdução e notas de Rogério Fernandes. Lisboa: Revista Ocidente, 1972, p. 60. Citado por GOMES, Pinharanda, A Escola Portuense, pp. 172-173.

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conjunto de objectivos de uma comunidade. É essa a tarefa que se impõe agora. (…) É esse ponto de vista superior, fora e acima das classes e dos partidos (…) que nós desejamos que se manifeste, que tenha representantes e um órgão41.

Cerca de 1920, Jaime Cortesão escreve a Álvaro Pinto distanciando-se da Renascença Portuguesa e assumindo uma aproximação a Sérgio, o que antefigura a criação da Seara Nova: o que existe essencialmente entre nós é uma diferença de ideias. Penso, ao contrário de ti, que a missão da Renascença findou. (…) A Renascença, nascida antes da guerra, correspondeu a uma época do mundo e a uma idade nossa que passou. Sob o ponto de vista de ideias, que deram a célebre discussão entre Pascoaes e Sérgio, eu hoje pendo para o lado do último. No túmulo cheio de velhos miasmas, que é a Nação, devem entrar lufadas de ar distante e renovador42.

Já em clave abertamente nacionalista, vejamos como igualmente surge a mesma ideia, nos estatutos da Cruzada Nuno Álvares: Promover a unidade moral da Nação Portuguesa, refreando todos os ódios e as excessivas paixões de facção, estabelecendo assim uma verdadeira e definitiva atmosfera de paz e concórdia em todos os portugueses43. Referiremos por fim a Seara Nova, fundada em 1921 e que pretende44: Renovar a mentalidade da elite portuguesa, tornando-a capaz de um verdadeiro movimento de salvação; Criar uma opinião pública nacional que exija e apoie as reformas necessárias; Defender os interesses supremos da nação, opondo-se ao espírito de rapina das oligarquias dominantes e ao egoísmo dos grupos, classes e partidos; Protestar contra todos os movimentos revolucionários, e todavia defender e definir a grande causa da verdadeira Revolução;

GOMES, Pinharanda, A Escola Portuense, pp. 205-206, 208. Publicado em Ocidente, vol. XLII, n.º 167, Março, 1952, p. 85. Citado por SANTOS, Alfredo Ribeiro dos, op. cit., p. 118. 43 Estatutos de 13 de Julho de 1920. Capítulo 1.º, Artigo 1.º, Alínea – f). Este movimento é estudado (e aí reproduzido este e outros documentos) no volume de LEAL, Ernesto Castro. Nação e Nacionalismos. A Cruzada Nacional Nuno Álvares e as Origens do Estado Novo (1918-1938). Lisboa: Ed. Cosmos, 1999, p. 447 e ss. 44 Manifesto da Seara Nova, n.º 1, 15-10-1921. 41

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Contribuir para formar, acima das Pátrias, a união de todas as Pátrias – uma consciência internacional bastante forte para não permitir novas lutas fratricidas45.

III No tantas vezes estudado e citado prefácio da primeira edição do primeiro volume de compilação dos seus Ensaios, Sérgio responde a algumas críticas entretanto formuladas ao seu trabalho, replicando que elas derivavam, em geral, de uma incompreensão da sua atitude ensaística, esclarecendo e explicitando que esta consistiria numa crítica de métodos e de pressupostos, isto é, no esclarecimento crítico das condições subjectivas em geral, das mentalidades, entendidas como forma de consciência social, mais ou menos subterrânea ou patente: fundações, estruturas e nexos da vida colectiva do pensamento. Podemos designar esta atitude metodológica como crítica e propedêutica da cultura, segundo a expressão de José Marinho46. Esta deve ser mesmo entendida como condição do pensamento em geral, na medida em que visa esclarecer as condições de possibilidade, a anterioridade subjacente aos produtos culturais finais. Em vez de enfrentar o texto como documento acabado em si, e encerrado sobre si próprio, haveria que o integrar num prévio feixe complexo de relações contraditórias. Por um lado há que entender as suas manifestações, influência, repercussões: isto é, o nível da sua recepção – cuja análise será depois também condição e elemento do ajuizamento não só do texto em si próprio como das suas modalidades e mediações mais ou menos exteriores, independentes do texto e social e ideologicamente incontroláveis e inconscientes, que não devem ser vistas como condições que de fora o afectem, mas, sobretudo, como estruturas que de dentro o constituem. O que Sérgio nos diz é que, mais do que do valor literário de determinados autores ou obras, se procurou debruçar sobre o seu significado ideológico, podendo assim com justeza o seu método ser classificado como histórico-pedagógico ou sócio-crítico para edificação do

Coligido por CARDIA, Sottomayor, op. cit., p. 89. Não esquecer que Sérgio está no Brasil e só se junta ao grupo da Seara (Raul Brandão, Aquilino Ribeiro, Jaime Cortesão, Raul Proença, e outros) em 1923. 46 Consulte-se a secção “Os direitos da verdade (A propósito da polémica entre António Sérgio e António José Saraiva)”, pp. 177-212, de MARINHO, José. Da Liberdade Necessária e outros textos, volume VII da colecção de Obras de José Marinho, edição de Jorge Croce Rivera, Lisboa: INCM, 2006. Veja-se ainda MARINHO, José. Verdade, Condição e Destino no Pensamento Português Contemporâneo. Porto: Lello & Irmão, 1976, p. 200 e ss. 45

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indivíduo e para justa reforma da sociedade47, visando sobretudo o esclarecimento das condições de recepção das obras culturais, da significação ideológica dessas obras, nem sempre coincidente com a literalidade do seu conteúdo, como já referimos. Por outro lado, recuando um pouco, haveria que aceder ao nível da sua construção e procurar perceber que mesmo os autores que encetam rupturas, para além da criatividade que demonstram, que nunca é absoluta (ou seriam ininteligíveis), utilizam os métodos, os conceitos, os termos que encontram disponíveis no seu tempo: Até nos casos em que as crenças próprias são adversárias das de um Junqueiro, de um Teófilo, de um Oliveira Martins ou de um Fialho, é pelo seu vezo intelectual, pelos seus processos e pelos seus exemplos, que pensa a maioria, hoje ainda, dos literatos da nossa terra, monárquicos e republicanos, livre-pensadores e clericalistas, a mentalidade aparece a mesma; e como a mentalidade, e não as crenças, é o que na hipótese nos importa mais, impõe-se uma crítica de propedêutica aos métodos de pensar que nos legaram48.

A obra de Sérgio tem de ser também ela submetida ao método que ela própria utiliza e prescreve, assim apreciando e compreendendo o seu próprio pensamento e obra. E Sérgio passará de igual modo a ser visto como expressão cultural de uma sociedade historicamente determinada e de uma mentalidade situada. Dessa forma única se poderá validar o seu método. E por aí sobreviverá Sérgio, mesmo quando as suas crenças o não logrem. A revista dos Homens Livres apresentou-se como expressão de um Grupo dos Homens Livres e nela se anuncia ainda a criação da Associação de Artistas Portugueses, com actividades nas áreas da Música, Literatura, Artes Plásticas e Teatro49. Chamamos a atenção para esta característica, comum a outras revistas e periódicos coevos: assumirem-se como órgãos de grupos SÉRGIO, António. Prefácio. Ensaios, tomo I. 3ª edição. Edição Crítica das Obras Completas de António Sérgio, orientada por Castelo Branco Chaves, Vitorino Magalhães Godinho, Rui Grácio e Joel Serrão e organizada por Idalina Sá da Costa e Augusto Abelaira, Lisboa: Livraria Sá da Costa, Colecção Clássicos Sá da Costa – Nova Série, 1980, p. 84. 48 Ibidem, p. 85. 49 Já em 1926, irá Sérgio dinamizar, nas suas palavras, uma “série de manifestações culturais no salão do Teatro de São Carlos e organizara para ali uma série de conferências, promovidas por uma sociedade que constituíra, também, com o título de «União Intelectual Portuguesa», cujo núcleo saíra do que se chamava então «o grupo da Biblioteca Nacional» e que incluía em si, com liberalíssimo espírito, escritores e artistas de toda a cor política. O Jaime Cortesão, director da Biblioteca, apontara-me para a tarefa de realizar tudo aquilo”. SÉRGIO, António. Ensaios, tomo II, ed. cit., p. 14. 47

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e arautos de ideias ou concepções renovadoras, livres e independentes, regeneradores do país, da sua sociedade, cultura e mentalidade, órgãos de movimentos culturais e cívicos: vivos e novos. Recordemos que A Águia e a Vida Portuguesa são órgãos da Renascença Portuguesa, como o Pela Grei é órgão da Liga de Acção Nacional. Também do grupo da Biblioteca Nacional saíram expressões editoriais. É possível, por exemplo, atribuir a Sérgio a criação de Homens Livres em coerência com a sua anterior hesitação em relação à criação da Seara Nova (à qual contraporia o reforço de A Águia). A revista Homens Livres seria o retomar da atitude, ou intenção, supra-partidária já antes enunciada na revista Pela Grei50: reunir em tarefa comum personalidades de todos os quadrantes ideológicos, capazes de afirmação nacional autonómica face ao que percepcionavam como a ditadura dos poderes – os partidos e a finança – a partidocracia e a plutocracia51. Nos Homens Livres, seareiros e integralistas comungaram numa comum atitude de forte crítica ao ambiente político então vivido, fundando todavia essa crítica em distintos pressupostos e expressando objectivos bem diferenciados. Procurámos apenas registar e verificar a ocorrência de traços mentalitários comuns que permitiram a formação deste e de outros projectos igualmente ditos patrióticos, nacionais, supra-partidários, supra-classistas, independentes, livres e de escol: pela suposição de anterioridade da nação em relação às classes, partidos ou quaisquer outras divisões que no seu seio se manifestem, estabelecendo o primado da solidariedade nacional sobre os conflitos culturais, sociais, políticos ou económicos, e mediante a utilização do lema da renovação, regeneração e renascença ainda que esta se Veja-se a este respeito a síntese elaborada por LOPES, Fernando Farelo. A revista “Pela Grei” (doutrina e prática políticas). Análise Social, vol. XVIII (72-73-74), 1982, 3.°- 4.°- 5.°, pp. 759-772: ver esp. p. 768: “a revista Pela Grei […] partilha de alguns elementos significativos elaborados pela «geração de 90» no âmbito da crise europeia de fin-de-siècle. No entanto, o paralelismo fundamentou-se numa identidade de certos temas esparsos, faltando nomeadamente uma visão da unidade estruturada das características fundamentais e específicas do novo nacionalismo antiliberal […]. Com efeito, não basta dizer que o neonacionalismo se insurgia contra o individualismo «atomístico»; substituía o princípio da luta de classes pelo da solidariedade nacional; professava um socialismo nacional antimarxista; repudiava o partidarismo ineficaz; perfilhava uma concepção elitista da sociedade e do poder; e defendia o controlo da economia sem atacar a propriedade privada. E não basta porque a maioria dos temas invocados fazia de certo modo parte do património doutrinário comum da burguesia, numa época de profundos reajustamentos e crises de novas dimensões”. 51 Ver GOMES, Pinharanda, A Escola Portuense. Ver esp. o ensaio, aí incluído, intitulado “António Sérgio: Cisão e decisão: As revistas Pela Grei (1918-1919) e Homens Livres (1923)”, pp. 163-199, e a “Antologia documental” que se lhe segue, pp. 200-236. 50

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opere mediante a acção de uma elite, cuja noção se deveria problematizar. Os próprios intelectuais que se servem desse conceito muitas vezes não o definem, mas consideram-se implícita ou explicitamente seus membros. Qual o critério para recusar esse estatuto às clientelas instaladas, às facções e partidos que vão disputando o poder, aos ocupantes das instituições financeiras e políticas, assim como aos membros das classes proprietárias dominantes? Não será um critério moral que está implícito e subjacente a esta acepção do conceito, deslocando-o do sentido de uma plataforma política dotada de um projecto transformador ou de uma vanguarda cultural? Além do que já foi dito, também a consigna da liberdade deveria ser problematizada. Qual o significado da liberdade neste contexto? De que se quer ser livre? Quem pode ser livre? O que é não ser livre? Qual a componente política da liberdade, ou: em que medida é que o conceito de liberdade é político, social ou ético-metafísico? Em que medida é que o problema político e a questão nacional se sobrepõem à questionação especificamente filosófica dos problemas? De que modo é que uma noção filosófica, e por isso abstracta, de liberdade se manifesta meramente como reivindicação de uma autonomia moral? Para esclarecer estas questões ter-se-ia de percorrer os diferentes tratamentos da questão da liberdade em autores como Almeida Garrett e Alexandre Herculano, nos elementos da geração de 70, especialmente Antero de Quental52 e Oliveira Martins, mas também Teófilo Braga. Igualmente na geração de 90 se teria de verificar como se manifestou e desenvolveu este conceito. Será aqui notório o influxo de autores como Magalhães Lima, Guerra Junqueiro, Raul Brandão ou Sampaio Bruno. Haveria que aferir os elementos que os autores aqui estudados tinham ao seu dispor para proceder ao exercício do seu esclarecimento. Que leituras portuguesas, e não só, mais os teriam marcado (como Guyau e Proudhon, por exemplo)? Qual a relação desta reflexão (num meio literário) com o surgimento da primeira geração modernista (lembremos a inusitada 52

Antero de Quental é uma das chaves de compreensão da tensão doutrinal da Renascença Portuguesa e até do próprio António Sérgio, sendo no contexto de diversas interpretações que dele estabelece que acaba por enunciar o seu próprio pensamento (a este respeito, cf. LOPO, Rui. Antero de Quental, entre António Sérgio e José Marinho. In: AA.VV. António Sérgio, Pensamento e Acção, pp. 207-222.) Aliás, a concepção metafísica e pessimista de liberdade de Antero, segundo a qual as esferas de acção humana são consideradas relativas ou ilusórias (cf. o Ensaio sobre as Bases Filosóficas da Moral ou Filosofia da Liberdade [7.6]), não é contraditória com as posições ideológicas a que assistimos, antes parecendo até subjazer a algumas delas.

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reflexão de um Raul Leal, no ano de 1913, em A Liberdade Transcendente ou o livre jogo heteronímico de Pessoa)?53 Procurámos assim integrar este projecto num panorama de revistas temporal e geracionalmente próximas, revistas que saíram do tronco comum da Renascença Portuguesa ou – visto que em alguns casos tal afirmação pode parecer excessiva – daquelas cujos membros passaram pela Renascença54 (Nova Silva, Amigos do ABC, Ideia Livre, A Águia, Vida Portuguesa, Pela Grei, Homens Livres, Seara Nova). Interessou-nos assim aqui, para além da enumeração das pertenças a grupos diversos – ou da declaração de recusa de pertencer a grupos e facções – a detecção de tópicos epocais e geracionais comuns à intervenção de Jaime Cortesão, Raul Proença, António Sardinha, António Sérgio, Leonardo Coimbra ou Teixeira de Pascoaes. Na expressão de Sérgio, interessou-nos mais captar a mentalidade comum do que examinar as crenças individuais. E sem poder aqui aprofundar a complexa questão nacional ou a revisão da história a que esta geração procede55, assinale-se tão só a importância dos temas da elite que há que criar56, da opinião pública que há que esclarecer, da Para uma visão geral e antológica de diversas concepções de liberdade na cultura portuguesa, cf. A ideia da Liberdade no pensamento português. Selecção e prefácio de Romeu de Melo. Lisboa: DGCS, 1985. 54 SANTOS, Alfredo Ribeiro dos. A Renascença Portuguesa. Um Movimento Cultural Portuense. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 1990 e SAMUEL, Paulo. A Renascença Portuguesa. Um perfil Documental. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 1990. Os três manifestos estão também publicados por Pinharanda Gomes (em Entre Filosofia e Teologia), que igualmente organizou o volume A Saudade e o Saudosismo (Lisboa: Assírio & Alvim, 1988), a consultar para aferir da mundividência saudosista, que foi por alguns identificada como atitude “oficial” da Renascença Portuguesa. 55 Sobre o contexto cultural e as discussões nacionais e identitárias de então, em relação à qual apontámos aqui posições de diversos matizes, consulte-se a síntese elaborada por António Cândido Franco, a partir da polémica entre Sérgio e Pascoaes: FRANCO, António Cândido. António Sérgio e Teixeira de Pascoaes ou o Conflito Cultural Português. In: AA.VV. António Sérgio: Pensamento e Acção, vol. I, pp. 139-162. Concretamente sobre a renovação da historiografia operada por Sérgio e Cortesão, veja-se TORGAL, Luís Reis; MENDES, José Maria Amado; CATROGA, Fernando. A história da história de Portugal. Séculos XIX-XX. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, esp. p. 277 e ss. Concretamente sobre a operação de revisão da história levada a cabo pelo movimento integralista, veja-se o estudo de VENTURA, António. António Sardinha: Mitologia integralista e revisão da história de Portugal. In: ______. Estudos sobre História e Cultura Contemporâneas de Portugal. Lisboa: Ed. Caleidoscópio: CHUL, 2004, pp. 209-222. Este volume inclui um estudo sobre a fase republicana de António Sardinha (pp. 251-268). 56 Cf. MAGALHÃES-VILHENA, Vasco. Idealismo Crítico e Crise da Ideologia Burguesa. Lisboa: Cosmos, 1975 [1.ª edição, 1965], pp. 116-117: “[Sérgio] Afastado das massas, 53

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reforma da mentalidade a empreender, da atitude supra-partidária (na tripla acepção de que as suas propostas se apresentavam acima das partidárias a) pela sua altura moral, visando o interesse nacional e não particular; b) por serem técnicas e por isso estarem acima das paixões sectárias, ou c) por terem uma base metafísica, seja ela a Saudade, essência da raça, elemento fundamental da alma nacional que haveria que desocultar, ou a doutrina católica) e do tema da intervenção social do intelectual como chave do progresso, como elemento essencial de uma regeneração nacional. Este intelectual, todavia, é construtor da elite e da opinião pública e foi então – na sua almejada consciência esclarecida e autonomia de pensamento – o único a ser considerado livre numa sociedade acorrentada.

não é nelas que confia para a necessária transformação social, mas na capacidade das elites. Elites por ora inexistentes, é certo, mas que ele sempre, obstinadamente, tem tentado ajudar a criar”.

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Sobre a revista Homens Livres. O que é a liberdade dos livres?

O Grupo Seara Nova, a crise nacional e a “ilusão sobre os governos de técnicos”. Alguns aspectos (1921-1924) ERNESTO CASTRO LEAL Universidade de Lisboa

1. Consideração inicial João Telo de Magalhães Colaço, professor de Direito Administrativo na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, proferiu na sede lisboeta da Associação dos Advogados Portugueses, em 4 de Junho de 1925 – um mês e meio após o importante movimento militar revolucionário antiparlamentarista de 18 de Abril –, a conferência sobre “Algumas ilusões – Alguns votos”, publicada depois em livro, onde tipificou, com espírito analítico penetrante, as três grandes ilusões políticas manifestadas durante a I República Portuguesa1. Vieram a constituir-se, na verdade, em mitos políticos dinâmicos para relevantes segmentos das elites intelectuais, políticas e militares, quer das direitas, quer das esquerdas: 1) a ilusão sobre o poder das leis – “É da lei que tudo se espera entre nós! Neste maravilhoso país de desregrados a regra de direito tudo há-de operar. […] entre nós, todos querem que a lei preceda e crie as coisas, ocasione as circunstâncias e gere as instituições sociais […] A lei, a lei – sempre a superstição da lei!”; 2) a ilusão sobre os governos de técnicos, decorrente da “confusão manifesta entre a competência técnica e a capacidade governativa”, clamando que “o nosso mal são os políticos e que é necessário dar lugar aos técnicos para que governem as competências e especialmente, como é natural, os especialistas”;

COLAÇO, João Telo de Magalhães. Da Vida Pública Portuguesa. Algumas ilusões – Alguns votos, vol. I. Lisboa: Edição do Autor, 1925, pp. 16-44.

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3) a ilusão sobre as ditaduras, “para que os outros obedeçam”, mas o “maior mal está em que esses homens [os ditadores] se contentam em se convencer a si próprios, dispensando-se de convencer previamente a Nação. A verdade que possuem é tão alta que a não querem derramada pelos outros”. Quanto à periodização essencial das três ilusões políticas, tomando em consideração a sua projecção pública dominante, fácil é reconhecer a relação entre essas três ilusões (ou mitos políticos) e a seguinte temporalidade ao longo da I República Portuguesa: a ilusão sobre o poder das leis, na fase fundadora (1910-1914); a ilusão sobre os governos de técnicos, na fase de refundação (1922-1924); a ilusão sobre as ditaduras, na fase de colapso (1925-1926). Tal não impede a emergência de cada uma dessas ilusões noutros momentos do regime republicano. A ilusão sobre o governo de técnicos, no pensamento de Magalhães Colaço, atribuía uma superioridade aos “técnicos” (às “competências”, aos “especialistas”) na governação pública face aos “políticos”, sob a necessária presidência de uma individualidade de prestígio, que não tivesse nenhuma pasta ministerial para exercer um poder arbitral e representar uma vontade de conjunto governamental. Ora, para Magalhães Colaço, como em Portugal os “especialistas” são todos funcionários públicos do ministério a que pertencem, dever-se-ia concluir que os “Ministros de cada pasta” seriam, “ao mesmo tempo, funcionários no próprio ministério”. Distinguindo claramente entre o “pensamento e conselho” de qualificados técnicos, a “capacidade de administrar” e a “arte política de governar e conduzir homens”, afirmava Magalhães Colaço: “Fervorosamente desejo, como voto melhor ainda, que nunca o país seja governado por técnicos – enquanto eles não houverem demonstrado, na direcção de empresas ou na direcção do Estado, que são técnicos, também, na arte de governar os povos”, isto é, políticos. O primeiro número da revista Seara Nova saiu com data de 15 de Outubro de 1921 e quatro dias depois, a 19 de Outubro, ocorria uma revolução republicana radical, seguida da trágica “noite sangrenta”, cuja relação com essa revolução não está provada, onde foram assassinados, entre outros, António Machado Santos (o “herói do 5 de Outubro”), José Carlos da Maia, seu companheiro político e militar permanente, e António Granjo (presidente do Governo em exercício). Essas mortes traduziram, em parte, simbolicamente, uma espécie de “republicanicídio”, que marcará os últimos anos da atribulada I República Portuguesa, a qual, desde 1919, vinha evidenciando, através de relevantes

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intelectuais e políticos, uma forte vontade de reorganização do Estado e da Nação a fim de estabelecer uma Nova República, mais moderna e mais democrática2. Vários sectores políticos republicanos exigiam uma revisão constitucional (dotando com mais poderes o Presidente da República, em particular o de dissolução parlamentar), uma revisão do sistema eleitoral (alargando o poder de sufrágio), uma reorganização do sistema de partidos e uma formulação de um programa de desenvolvimento, com objectivos precisos e prioridades escalonadas3. Condições institucionais e políticas essenciais para uma nova governabilidade republicana ao serviço de um estruturado programa de Governo, que devia ser o mais consensualizado possível em virtude da grave crise nacional4. O corpus sujeito a análise crítica é constituído por cinco textos publicados na revista Seara Nova, os quais envolveram publicamente o Grupo Seara Nova: 1) Apresentação da revista (n.º 1, 15 de Outubro de 1921); 2) Programa mínimo de salvação pública (n.º 12, 15 de Abril de 1922); 3) Apelo à Nação (n.º 21, Março de 1923); 4) Nova apresentação da revista (n.º 22, Abril de 1923); 5) Carta Aberta dirigida ao Presidente da República (n.º 27, OutubroNovembro de 1923).

2. O Grupo Seara Nova e a crise nacional 2.1. Donde falam os seareiros? Na apresentação do primeiro número da revista Seara Nova, de 15 de Outubro de 1921, está bem clara a colocação do novo grupo cívico-político e cultural, dentro do ambiente da vida portuguesa após a I Guerra Mundial, para uma profunda reforma das mentalidades e dos costumes políticos:

Para leituras historiográficas recentes, cf. ROSAS, Fernando; ROLLO, Maria Fernanda (coord.). História da Primeira República Portuguesa. Lisboa: Edições Tinta-da-China, 2009. 3 LEAL, Ernesto Castro. Partidos e Programas. O campo partidário republicano português (1910-1926). Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2008, pp. 73-113. 4 Veja-se, por exemplo, o contributo reflexivo de JESUS, Quirino de; CAMPOS, Ezequiel de. A Crise Portuguesa. Subsídios para a política de reorganização nacional. Porto: Empresa Industrial Gráfica do Porto Lda, 1923. 2

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“A SEARA NOVA representa o esforço de alguns intelectuais, alheados dos partidos políticos mas não da vida política, para que se erga, acima do miserável circo onde se debatem os interesses inconfessáveis das clientelas e das oligarquias plutocráticas, uma atmosfera mais pura em que se faça ouvir o protesto das mais altivas consciências, e em que se formulem e imponham, por uma propaganda larga e profunda, as reformas necessárias à vida nacional”.

Desde o início, colocados, no ponto de vista político, na “extremaesquerda da República”, afirmam ser radicais, mas não jacobinos, e defender os métodos democráticos para o “triunfo do socialismo”. A reafirmação do ideal democrático-socialista ocorrerá na nova apresentação da revista, em Abril de 1923, aquando da entrada de António Sérgio para o seu corpo redactorial, ao lado de Câmara Reis, Faria de Vasconcelos, Jaime Cortesão e Raul Proença: “Continuaremos a ser republicanos de tendência socialista – quer dizer, a aceitar o princípio da intervenção do Estado na regulamentação das actividades, para pôr termo na medida do possível à anarquia económica, e estabelecer progressivamente a maior justiça distributiva compatível com as condições necessárias de todo o trabalho colectivo e os interesses da produção – o que é justamente o contrário do bolchevismo”.

2.2. Imagens da vida política O diagnóstico produzido sobre a vida portuguesa descrevia uma situação gravíssima, onde se misturavam os interesses das clientelas e das oligarquias plutocráticas, a mentira, a incompetência, as traficâncias, a corrupção, a deliquescência, o egoísmo ou os escândalos com os perigos externos, o regime de ministérios relâmpagos e o círculo vicioso das revoluções sem finalidade – estas formas qualificativas podem-se encontrar nos textos de Outubro de 1921 (apresentação da revista), Abril de 1922 (programa mínimo de salvação pública) e Março de 1923 (apelo à nação). Ao longo dos textos seareiros fundamentais, que são o nosso ponto de partida, exprime-se uma profunda crítica à considerada República oligárquica e uma defesa intransigente de novos processos mentais e políticos que conduzissem a uma República democrática-socialista, a partir de um mito político de refundação: “regressar ao 5 de Outubro”, “mas regressar avançando, caminhando numa direcção inteiramente diversa e numa atitude de espírito inteiramente nova”, regista-se na apresentação do primeiro número da revista.

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Essa ideia política e simbólica já tinha estado presente em três circunstâncias anteriores, que configuraram perspectivas republicanas diferentes: no período dos Governos de João Chagas, José de Castro e Afonso Costa, após o movimento revolucionário de 14 de Maio de 1915; durante o Governo de Sidónio Pais, entre Dezembro de 1917 e Dezembro de 1918; e no tempo do Governo de José Relvas nos meses de Janeiro a Março de 1919, depois da breve “Monarquia do Norte”. Para os seareiros, essa urgência refundadora só teria viabilidade com a responsabilização das elites nacionais, que deviam assumir a consciência activa do seu papel directivo na criação de uma “opinião pública esclarecida”. Recusando liminarmente o “espírito messianista”, fomentado largamente durante o Sidonismo e no pós-Sidonismo, propõem um esforço “heróico”, denominado ora de redenção nacional, ora de reorganização nacional, ora de salvação nacional: uma “profunda Revolução para redimir a Pátria”. A refutação do messianismo político, que se exprimia em vários tipos de nacionalismo, fundamentalmente antiliberais, decorria, no argumentário seareiro, da convicção de, acima das “Pátrias eternas”, dever existir uma “consciência internacional”, também entendida como o “arco-de-aliança duma humanidade justa e livre”, assim se pode ler no texto inaugural da revista de 15 de Outubro de 1921.

3. O Grupo Seara Nova e a solução política transitória 3.1. Tópicos programáticos Durante os anos vinte de Novecentos, os intelectuais seareiros reflectiram, praticamente, sobre todas as áreas da cultura, da economia, da sociedade e do Estado. Seguindo na trilha dos cinco textos tomados como base de reflexão, tenta-se elucidar, no que diz respeito à proposta de uma solução política transitória, o tópico respeitante ao sistema político. Face ao diagnóstico de uma gravíssima crise nacional, a solução só poderia ser uma “governação extraordinária”, através da formação de um “Governo nacional” ou “Ministério nacional”, composto por “competências” nas várias áreas da governação e constituído sob a autoridade do Presidente da República, com “poderes excepcionais e amplos” (autorizações legislativas), concedidos pelo Congresso da República, pelo “prazo indispensável” ao lançamento das bases da reorganização nacional (um “programa de salvação pública”), a realizar fora dos métodos parlamentares habituais. Estamos, por conseguinte, situados na ilusão sobre os governos de técnicos, de que falou João Telo de Magalhães Colaço.

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Poder forte e respeitado, dispondo de apoio decidido na “opinião pública”, o programa desse Ministério nacional devia consagrar alguns princípios políticos de base para a viabilidade de um programa reformador de desenvolvimento cultural, social e económico: 1) tolerância política e religiosa (o “respeito por todas as crenças, por todas as descrenças e por todas as afirmações adversas ao espírito da religião”); 2) combate ao revolucionarismo (acautelando também os perigos de uma ditadura militar, inspirada pela ditadura espanhola do general Miguel Primo de Rivera); 3) reforma da Constituição, assegurando a melhor separação dos poderes e a representação das competências técnicas (parlamento técnico consultivo) ao lado das competências políticas (parlamento político deliberativo, único órgão supremo do controlo e da vontade nacional), dotando o Presidente da República de poderes que o libertasse mais do Parlamento (sem se preconizar o “Presidencialismo puro”) e consagrando o referendo e a iniciativa dos cidadãos; 4) descentralização da administração pública; 5) reorganização ministerial (redução a oito ministérios – Interior, Justiça e Cultos, Finanças, Guerra, Marinha e Colónias, Estrangeiros, Fomento, Educação). 3.2. A União Cívica e o Ministério Nacional A necessidade de completar a acção doutrinária com a acção política surgiu em 1923, juntando alguns seareiros (Câmara Reis, Raul Proença, Jaime Cortesão, António Sérgio e Faria de Vasconcelos) com outras personalidades das elites nacionais (Basílio Teles, Ezequiel de Campos, Quirino de Jesus, Leonardo Coimbra, Raul Brandão, Augusto Casimiro, João Pina de Morais, Carlos Selvagem, Hernâni Cidade, Manuel Rodrigues Júnior, José Beleza dos Santos, general Bernardo de Faria, coronel Artur Ivens Ferraz, majores Pedro de Almeida e João Ferreira do Amaral, capitão João Sarmento Pimentel ou capitão de fragata Filomeno da Câmara), que assinariam o “Apelo à Nação” (com um “Programa governativo de reorganização nacional”), em Março desse ano, base programática de uma União Cívica, a qual devia estruturar uma rede nacional organizativa5. VENTURA, António. O Imaginário Seareiro. Ilustradores e ilustrações da revista “Seara Nova”. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1990, pp. 24-41; LEAL,

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Entre os conteúdos mais relevantes do extenso programa governativo, encontram-se os seguintes: organização de um ministério nacional de salvação pública; uso de faculdades excepcionais pelo poder executivo, durante o período necessário para se lançarem as bases da reorganização nacional; máxima tolerância religiosa, política e social; subordinação imediata da instrução pública à necessidade de concorrer melhor para a transformação económica e para o “robustecimento da raça”; criação da Junta de Orientação dos Estudos e Investigações Científicas; reorganização da força pública terrestre e marítima; equilíbrio orçamental, redução das despesas públicas, reforma tributária, reforma bancária com controlo estatal sobre a actividade; intensificação da vida colonial; reorganização do espaço rural com o alastramento do povoamento aos baldios, aumento da área de regadio e o incremento hidro-eléctrico para o transporte de electricidade; racionalização e desenvolvimento da produção industrial. 3.3. O Governo de Álvaro de Castro e o reforço do poder executivo Em 21 de Dezembro de 1923, na apresentação da declaração do seu Governo, onde estava o seareiro António Sérgio (ministro da Instrução Pública), Álvaro de Castro, membro do Grupo Parlamentar de Acção Republicana (dissidência de parlamentares do Partido Republicano Nacionalista ocorrida em 17 de Dezembro de 1923), referiu a urgência de revalorizar a função legislativa do poder executivo, mostrando um novo entendimento sobre as suas funções neste início dos anos 20, convergindo neste ponto com o Grupo Seara Nova, que se tinha expressado nesse sentido, quer no “Apelo à Nação” (Março de 1923), quer na “Carta Aberta dirigida ao Presidente da República” (Novembro de 1923): “A crise financeira do Estado atingiu um grau excepcional de gravidade. Deixou-se até hoje ao Poder Legislativo, quase exclusivamente, a responsabilidade de a resolver, quando é certo que os Parlamentos têm concedido ao Poder Executivo amplas autorizações para o atenuar. É outra orientação do Governo, que vai desde já usar dos meios legais ao seu alcance para efectivar, ao lado duma rigorosa diminuição de despesas, uma cuidadosa arrecadação de receitas, ficando ao Parlamento, claro está, o apreciar como entenda o uso desses meios se fizer […]”6.

De seguida, aludiu à necessidade de reforçar a autoridade do Estado e a disciplina da força pública, assim como ao início de articuladas reformas Ernesto Castro. Nação e Nacionalismos. A Cruzada Nacional D. Nuno Álvares Pereira e as origens do Estado Novo (1918-1938). Lisboa: Edições Cosmos, 1998, pp. 161-164. 6 Diário da Câmara dos Deputados. Sessão n.º 15, de 21 de Dezembro de 1923, p. 7.

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financeiras, económicas e administrativas. A 11 de Janeiro de 1924, o Governo de Álvaro de Castro passou na Câmara dos Deputados, com a oposição dos deputados do Partido Republicano Nacionalista, que se manifestaram pela voz de Francisco Cunha Leal. Atento ao desenrolar da política governamental esteve o católico centrista António de Oliveira Salazar, que, em artigo publicado cerca de quinze dias antes da exoneração do Governo de Álvaro de Castro, reflectiu sobre o sistema constitucional republicano, onde predominava o poder legislativo que oscilava, na sua opinião, entre “uma ditadura trágica e um Parlamento estéril”. Segundo ele, Álvaro de Castro pretendeu dar uma resposta a esse dilema, pois “faz ditadura com ar constitucional”, mas a verdade é que “julgamos que há ditadura sempre que o poder executivo usurpa poderes que constitucionalmente lhe não competem, substituindo-se ao poder legislativo na elaboração das leis ou excedendo as outorgações que para esse fim lhe foram concedidas”, sendo “perfeitamente indiferente” que o Parlamento esteja ou não a funcionar. Salazar concluía que o “hábil” Álvaro de Castro, usando largamente as autorizações concedidas pelo Parlamento, tinha apropriado por vezes competências do poder legislativo, incorrendo em várias inconstitucionalidades, perante algum alheamento dos deputados, em parte explicado pela cultura política dominante de se considerar que “fazer ditadura é ter encerrado o Congresso, e é prova concludente do mais puro viver constitucional ter o Parlamento aberto”. Terminava louvando a rara coragem de Álvaro de Castro e reconhecia a necessidade de capacitar o poder executivo com poderes legislativos em relação a “problemas urgentes de interesse nacional”7.

4. Consideração final O que se seguiu após 19 de Outubro de 1921 (golpe de Estado da esquerda republicana radical) até 28 de Maio de 1926 (golpe de Estado das direitas republicanas conservadoras e das direitas antiliberais, com a participação de elementos da esquerda republicana radical) revelou o aprofundamento das crises de legitimidade e de representação política do regime republicano parlamentar. Durante quatro anos e meio, foram nomeados catorze 7

Cf. O Governo Álvaro de Castro. Experiências políticas (artigo no Novidades, 18 de Junho de 1924). In: SALAZAR, António de Oliveira. Inéditos e Dispersos. Escritos político-sociais e doutrinários, 1908-1928, vol. I. Organização e prefácio de Manuel Braga da Cruz. Venda Nova: Bertrand Editora, 1997, pp. 339-345.

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Governos, terminou o mandato presidencial de António José de Almeida e tomaram posse dois Presidentes da República, Manuel Teixeira Gomes e Bernardino Machado. Face ao desgaste da imagem pública governativa dos “políticos”, desenvolveram-se os discursos apologéticos sobre “os governos de técnicos”, vindos da direita, através da Cruzada Nacional D. Nuno Álvares Pereira (propondo uma Aliança Nacional para um “governo de competências”), e vindos da esquerda, através do Grupo Seara Nova (propondo uma União Cívica para um “ministério nacional”)8. Numa pequena parte, a ideia “excepcional” e reformadora seareira plasmou-se, por pouco tempo, no Governo de Álvaro de Castro (18 de Dezembro de 1923 a 6 de Julho de 1924), onde esteve António Sérgio (ministro da Instrução Pública) até 28 de Fevereiro de 1924, o único ministro do Grupo Seara Nova que assinara o “Apelo à Nação” de Março de 1923, dado que Mário de Azevedo Gomes (ministro da Agricultura), próximo do Grupo Seara Nova, não constava como subscritor do referido documento, tendo saído também do Governo no dia de António Sérgio. Seguiu-se, a partir de 1924, o influente ciclo propagandístico e conspirativo político-militar, reintroduzindo na vida política portuguesa, com grande projecção, a ilusão sobre as ditaduras para a reorganização nacional, que terá o seu momento apoteótico na revolução de 28 de Maio de 1926, seguida pela Ditadura Militar e, após a Constituição de 1933, pela Ditadura Civil do “Estado Novo”.

LEAL, Ernesto Castro, Nação e Nacionalismos, ed. cit., pp. 143-165.

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O Grupo Seara Nova, a crise nacional e a “ilusão sobre os governos de técnicos”

As perspectivas educativas abertas por Faria de Vasconcelos na Seara Nova MANUEL FERREIRA PATRÍCIO Universidade de Évora

I António de Sena Faria de Vasconcelos nasceu em 1880 e morreu em 1939. Viveu, pois, 59 anos. Científica e pedagogicamente intensos. Foi uma vida curta para uma obra extensa e muito importante. É estranho que se fale tão pouco dele e que tão pouco se note a sua influência no meio pedagógico e científico-educacional português. Estamos perante a maior figura da pedagogia científica portuguesa no século XX, com grande reconhecimento internacional, tanto na Europa como fora dela – neste caso, sobretudo na Ibero-América. Como explicar este silêncio, que chega a fazer-nos suspeitar de silenciamento? A hipótese explicativa que encontra em mim maior ressonância interior é a de que não se nota no subsolo motivacional de Faria de Vasconcelos a presença da ideologia política. É o cuidado pela educação que o mobiliza inteiro, e pela educação cientificamente fundada e organizada, não o cuidado pelo enquadramento em qualquer clube político, ou espaço político militante. Como foi o caso de António Sérgio. Ideologia social, sim, essa encontramo-la desde o início, e sobretudo no período de arranque da sua intervenção académica, científica e educacional. É, aliás, surpreendente o tema e o propósito da sua dissertação para a décima cadeira da Faculdade de Direito. Explica ele, com a objectividade e clareza que vão ser uma marca do seu estilo de pensamento e de linguagem, que a publicação do opúsculo, que constitui um extracto dessa dissertação, exprime apenas o desejo de “divulgar a teoria do materialismo histórico que corresponde a uma instante necessidade intelectual do nosso tempo, já na sua substancialidade doutrinal, já na sua aplicação positiva e real aos factos sociais”1. O título completo do estudo de Faria de Vasconcelos é o seguinte: O Materialismo Histórico e a Reforma Religiosa do Século XVI. A data é 1900. Estamos, portanto, ainda em Monarquia e vem 1

VASCONCELOS, A. Faria de. Obras Completas – I. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986, p. 23.

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ainda relativamente longe a Revolução bolchevista de 1917. Ainda que a doutrina escolhida, e adoptada, para divulgação seja radical e o futuro lhe reserve um longo período de extensa aplicação revolucionária, a leitura do texto torna para nós evidente que ela representa, para Faria de Vasconcelos, uma doutrina social e sociológica, a que adere pela cientificidade que nela encontra. Ao contrário do que seria de esperar, nunca encontrei nenhuma referência reivindicativa de Faria de Vasconcelos para o espaço dos pedagogos e pedagogistas portugueses de raiz marxista-engelista. Seja, todavia, afirmado desde já que a obra propriamente pedagógica de Faria de Vasconcelos, nomeadamente a da sua maturidade, não acusa de facto qualquer base marxista, radicando-se claramente e inequivocamente no movimento da pedagogia científica e, especificamente, no Movimento da Escola Nova, nas duas importantes sedes do mesmo que foram Genève e Bruxelas e, de certo modo, Cuba e a Bolívia. Tomei conhecimento do Movimento da Escola Nova bastante cedo: entre 1957 e 1959, ou seja, no período correspondente ao Curso do Magistério Primário, que frequentei e concluí neste último ano na Escola do Magistério Primário de Évora. Em cadeiras fulcrais do Curso, nós éramos informados sobre o Movimento e sobre as teses pedagógicas principais da Educação Nova. Falavam-nos de Froebel, de Maria Montessori, de Ovide Decroly, de Adolphe Ferrière, de Pierre Bovet, de Édouard Claparède, de Kerschensteiner, de John Dewey. Iniciei, pois, o exercício da profissão – o que aconteceu na cidade de Lisboa, na Escola Primária n.º 142, junto à Alameda D. Afonso Henriques – em Outubro de 1959. Cumprem-se agora 50 anos. Creio que não tinha ouvido falar de Faria de Vasconcelos durante o Curso, mas ouvi falar dele mal cheguei à 142. Era um excelente corpo docente, o dessa Escola. Sobressaiu para mim desde logo a figura da professora Judite Vieira, que veio a adoptar-me como filho intelectual, a emparelhar com o Daniel Garcia Ferreira, que foi adoptado desde o momento em que nasceu, por motivos especiais de família. A Jita passou a dizer-se a minha “mãe de Lisboa”. No seu ver, o Daniel era o espartano (cujos interesses eram essencialmente de ordem material e técnica), eu era o ateniense (cujos interesses eram essencialmente de ordem intelectual e filosófica). A Jita era uma pedagoga excepcional, completamente integrada no Movimento da Escola Nova, que tinha então um Bureau International des Écoles Nouvelles, sediado em Genève, e Bureaux nacionais, um dos quais o português. A Jita pertenceu durante uns anos, se a memória não me atraiçoa, ao Bureau nacional. Fez o seu Curso na Escola Normal Primária de Lisboa, a que – pela qualidade extraordinária do seu corpo docente – chamavam a Sorbonne de Benfica.

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A figura maior que nela na época pontificou foi a de Adolfo Lima. Um mestre extraordinário, de quem ela e os seus e suas colegas de geração puderam beneficiar. O evangelho pedagógico da Sorbonne de Benfica era o da Escola Nova. O mesmo professava Faria de Vasconcelos na Escola Normal Superior de Lisboa. Foi esse evangelho que me foi militantemente dado a conhecer e aprofundar pela Jita. Foi nessa missionação que tomei conhecimento de Faria de Vasconcelos. Devo dizer que fiquei “apanhado” pelo seu ideário pedagógico, e pela linguagem em que ele o transmitia, desde o primeiro momento. Até hoje. A paixão que em mim surdiu e se desenvolveu levou-me a adquirir vários livros seus nos alfarrabistas do Bairro Alto, com relevo para a Calçada do Combro. Ainda hoje os tenho. Sobretudo os pequenos livrinhos que tratavam de questões didácticas particulares, integrados na “Colecção de Didácticas” e na “Biblioteca de Cultura Pedagógica”, entre 1934 e 19392. Passaram a ser referências e bases do meu trabalho com as crianças.

II No seu livrinho A pedagogia portuguesa contemporânea3, Rogério Fernandes incluiu um belíssimo capítulo sobre Faria de Vasconcelos (“Faria de Vasconcelos e a pedagogia experimental”), em que é lucidamente enfático no juízo de valor que nos deixa sobre o pedagogo. Põe em evidência a extraordinária realização que foi a Escola Nova de Bierges-Lez-Wawre, situada nos arredores de Bruxelas, a qual funcionou entre 1911 e 1914. Adolphe Ferrière considerou-a a segunda melhor Escola Nova do mundo, mostrando que ela realizou 28 pontos e meio dos 30 pontos da Escola Nova ideal. Rogério Fernandes apresenta uma magnífica síntese da estrutura, organização e funcionamento dessa Escola. Só agora podemos dispor facilmente do texto do livro, que a editora Delachaux et Niestlé publicou logo em 1915, na colecção Actualités Pédagogiques, com prefácio de Ferrière, sob o título A informação de que disponho para fornecer é a seguinte: Colecção de didácticas. Lisboa, 1923. Para a “Biblioteca de Cultura Pedagógica” (1934-1939), escreveu Faria de Vasconcelos as seguintes obras: O desenho e a criança; Como se ensina a escrever; O ensino da ortografia – problemas e métodos; Como se ensina a aritmética; Como se ensina a raciocinar em aritmética; A arte de estudar (2 vols.); As escolas de Wirth, de Hetherington, de Johnson e de Grundtwig; Os problemas da fadiga escolar à luz das investigações modernas; Para observar as crianças; A escolha da carreira para os nossos filhos; Delinquência e inteligência nos adolescentes; O valor físico do indivíduo; A inteligência, sua natureza e medição; A psicologia e a actividade militar. 3 FERNANDES, Rogério. A pedagogia portuguesa contemporânea. Lisboa: Instituto de Cultura Portuguesa, 1979, pp. 111-119. 2

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Une École Nouvelle en Belgique, graças à publicação das Obras Completas de Faria de Vasconcelos pela Fundação Calouste Gulbenkian, sob a direcção competente e clarividente do Prof. José Ferreira Marques. Encontramos esse texto no volume II das Obras Completas4. Rogério Fernandes, que foi director da Seara Nova, não esquece que Faria de Vasconcelos foi co-fundador do Grupo Seara Nova e da própria Revista5 e menciona especialmente os artigos publicados logo no primeiro período de existência da Revista (o que aconteceu ao longo de 18 meses, entre 1921 e 1922), sob o título de “Bases para a solução dos problemas da Educação Nacional”, os quais vieram a constituir, no essencial, a proposta de Lei de Bases da Educação Nacional apresentada pelo Ministro da Instrução Pública João Camoesas ao Congresso da República, aliás, sem sucesso. Eis como Rogério Fernandes sintetiza o seu alto apreço pelo pedagogo e a sua obra: “(…) a sua obra impõe-se a quem a procure. Apesar do esquecimento a que têm sido votados, os escritos de Vasconcelos estão próximos das preocupações didácticas dos professores e contêm ensinamentos ainda hoje úteis. Num país onde as ciências da educação tivessem na formação de professores o lugar que lhes é atribuído em qualquer nação culta, o nome de Faria de Vasconcelos figuraria com destaque entre os seus pedagogistas de primeira plana”6.

III É facto relevantíssimo para investir no conhecimento da obra de Faria de Vasconcelos a publicação das suas Obras Completas pela Fundação Calouste Gulbenkian. Como já referi, organiza-a e dirige-a cientificamente o Prof. José Ferreira Marques, com a competência que lhe é universalmente reconhecida, o zelo e o afecto que neste caso particularmente o movem. O volume I abre com um texto seu de “Apresentação da Obra de Faria de Vasconcelos”7, cuja leitura recomendo como indispensável e iluminadora. Dele, apesar de tudo, me permito nesta circunstância citar, quase na totalidade, o primeiro parágrafo: “Faria de Vasconcelos deixou um grande número de escritos, incluindo livros, artigos de revista, textos de conferências, artigos de jornais e muitos inéditos. É a obra de um vulto insigne das Ciências Humanas e VASCONCELOS, A. Faria de. Une École Nouvelle en Belgique. Genève: Delachaux et Niestlé, 1915. In: ______. Obras Completas – II. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000, pp. 1-144. 5 Faria de Vasconcelos é portador, de facto, de duas qualidades: co-fundador do Grupo Seara Nova e colaborador da Revista Seara Nova. 6 FERNANDES, Rogério, op. cit., p. 119. 7 VASCONCELOS, A. Faria de. Obras Completas – I, ed. cit., pp. VII-XVII. 4

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Sociais e que desenvolveu intensa actividade, durante as primeiras quatro décadas do século XX, como professor, especialista, investigador, conferencista, publicista, quer em centros universitários portugueses e estrangeiros, quer dirigindo-se a públicos mais vastos e diferenciados. Entre as áreas de conhecimento a que se dedicou, encontram-se o Direito, a Sociologia, a Psicologia, a Pedagogia e a Filosofia”8. Tal como Rogério Fernandes, também Ferreira Marques assinala o estranho facto do desconhecimento generalizado da obra de Faria de Vasconcelos: “A obra escrita de Faria de Vasconcelos é muito extensa e torna-se forçoso admitir que não se encontra hoje suficientemente divulgada em Portugal”9. Este Colóquio, conjugado com a publicação das Obras Completas, pode ajudar a corrigir esta grave falta10.

IV Nos primeiros anos da década de 80 do século passado, completamente envolvido na formação de professores dentro do paradigma das licenciaturas em ensino, senti necessidade de dar aos meus alunos da disciplina de Pedagogia Sistemática conhecimento das figuras maiores da pedagogia portuguesa contemporânea. Privilegiei os pedagogos vindos da I República (pedagogos ou pensadores pedagógicos). Escrevi, para o efeito, dois livrinhos, que intitulei, respectivamente, Figuras da Pedagogia Portuguesa Contemporânea I e II. O primeiro trabalho foi publicado pela Universidade de Évora, em 1984. O segundo, em 198511. Entre os pedagogos estudados, lá está Faria de Vasconcelos, ao qual dediquei um capítulo extenso e informativo. No texto escrito, procurei informar sobre o essencial da vida e obra do pedagogo, apresentando um quadro bastante amplo dos seus escritos – pedagógicos, psicológicos e didácticos. Os dois livros em que centrei a exposição do seu pensamento pedagógico foram, precisamente, os publicados pela Seara Nova: Problemas Escolares – 1.ª Série, de 1921; Problemas Escolares – 2.ª Série, de 192912. Os problemas foram Ibidem, p. IX. Ibidem, p. XVII. 10 Cf., também, na parte final do presente volume, o texto “A Seara Nova no itinerário pedagógico de Faria de Vasconcelos”, igualmente da autoria de Manuel Ferreira Patrício. [N. do E.] 11 Cf. PATRÍCIO, Manuel Ferreira. Figuras da Pedagogia Portuguesa Contemporânea – I. Évora: Universidade de Évora, 1984, pp. 58-79; Idem. Figuras da Pedagogia Portuguesa Contemporânea – II – Teixeira de Pascoaes. Évora: Universidade de Évora, 1985. 12 VASCONCELOS, A. Faria de. Problemas Escolares – 1.ª Série. Lisboa: Empresa de Publicidade «Seara Nova», 1921; Idem. Problemas Escolares – 2.ª Série. Lisboa: Empresa de Publicidade «Seara Nova», 1929. 8

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identificados e sobre cada um deles organizei a informação que me pareceu essencial, seguindo os livros página a página, visando a síntese. Ficaremos com uma ideia do elenco desses problemas mediante a sua simples identificação. São os que se seguem, na 1.ª série. As características da educação contemporânea; a inspecção médica das escolas; as enfermeiras escolares; o edifício escolar; as aulas; o “sentido da água”; as carteiras escolares, os pátios e campos de jogos; a pedagogia dos jogos; os play-leaders; os trabalhos manuais, vantagens que oferecem e fins que visam; o slöjd na Finlândia e a personalidade fundamental de Uno Cygnaeus; o slöjd na Suécia e o sistema de Nääs (Abrahamson e Salomon); o trabalho manual nos Estados Unidos e o sistema de Dewey e de Tadd; o sistema profissional; o que devem ser os trabalhos manuais na escola; os jardins escolares; as bibliotecas escolares; as excursões; as recapitulações; os trabalhos escolares em casa; horários, aulas e recreios; as classes rígidas, as móveis e as mistas; os sistemas de Mannheim, Charlottenburgo e dos Estados Unidos; os exames; as classificações escolares; a aplicação dos programas, a homogeneidade no ensino e a unidade na obra educativa; o sistema de concentração. São os que se seguem, na 2.ª Série. A significação biológica da infância; os deveres da sociedade para com as crianças (a Declaração de Genebra); o que é e o que deve ser a educação física; alguns preceitos essenciais de higiene na alimentação das crianças e dos adolescentes; as cantinas escolares; a higiene do sono das crianças e dos adolescentes; a ginástica rítmica de Dalcroze; o movimento dos «Camp Fire Girls» («As Jovens da Fogueira»); o que é e o que deve ser a educação mental; o Museu Pedagógico de São Luís, nos Estados Unidos; as cooperativas escolares; as exposições escolares; a selecção escolar; o movimento de introdução das provas de aptidão profissional e de selecção mental nas Escolas Comerciais e Industriais e nos Liceus de Lisboa; o “self-government” na escola; a educação sexual. Todos estes problemas analisei brevemente neste meu livrinho. É impossível fazê-lo na presente circunstância. Mas fica a referência e o apelo para que os participantes neste Colóquio se interessem por estes dois magníficos livros de Faria de Vasconcelos, publicados pela Seara Nova na segunda metade da década de 20 do século passado. Quando, no final da década de 80, elaborei no seio da Comissão de Reforma do Sistema Educativo o Projecto Escola Cultural, e depois o lancei e dirigi à escala do País já dentro do Instituto de Inovação Educacional, Faria de Vasconcelos – todo o seu pensamento pedagógico e todo o ideal realizado da Escola de Bierges-Lez-Wawre – era porventura a minha inspiração central. Continua a ocupar um lugar de eleição na minha cabeça e no meu coração.

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V A Escola de Bierges-Lez-Wawre foi considerada por Adolphe Ferrière – verdadeiramente (era o Directeur du Bureau International des Écoles Nouvelles) o Papa do Movimento da Escola Nova na época – a segunda melhor Escola Nova do Mundo. Realizava 28 pontos e meio dos 30 elencados e estruturados pelo ideólogo pedagógico de Genève para definir a Escola Nova ideal. Só a de Odenwald, na Alemanha, realizava exactamente os 30 pontos (traits caractéristiques, como escreve A. Ferrière no Prefácio ao livro Une École Nouvelle en Belgique)13. O que faltava à Escola de Bierges, o próprio Ferrière reconhecia que se devia à circunstância sócio-política da Bélgica e não a Faria de Vasconcelos. É tempo de sabermos quem ele foi, o que pensou, o que realizou. Entre 1921 e 1939, tivemo-lo por inteiro entre nós, onde ainda realizou imenso e encontrou os entraves com que nem a Bélgica, nem a Suíça, nem Cuba, nem a Bolívia lhe dificultaram ou bloquearam a frutificação do seu trabalho. Nesta comunicação, procurei em primeiríssimo lugar situá-lo no Grupo Seara Nova, de que foi um dos ilustres co-fundadores e em cuja Revista foi um dos mais lúcidos e reputados colaboradores.

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FERRIÈRE, Adolphe. Préface de M. Adolphe Ferrière. In: VASCONCELOS, A. Faria de. Obras Completas – II, ed. cit., pp. 3-11.

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A Seara Nova na actualidade ULPIANO NASCIMENTO Revista Seara Nova

A Seara Nova é um projecto rigoroso, combativo, em defesa dos valores cívicos, democráticos e culturais, espaço aberto ao diálogo e à reflexão, em toda a sua longa existência e que, desde logo, conquistou larga audiência. Logo no seu primeiro número, em 1921, se impôs, porque surgiu fortemente crítico e polémico, num quadro de intensas turbulências políticas, económicas e sociais, em que a qualidade e a razão das suas ideias e comentários se impuseram. E tal êxito deveu-se à temática do seu estatuto e à alta qualidade do grupo promotor da revista, formado por um conjunto de notáveis intelectuais da época como eram então Raul Proença, Jaime Cortesão e Luís da Câmara Reys, a que se juntaram Raul Brandão, Aquilino Ribeiro, Azeredo Perdigão e Augusto Casimiro e, dois anos depois, em 1923, António Sérgio, e com ele interessantes polémicas. Daí o prestígio e o respeito que a Seara Nova ganhou e soube manter, desde os anos 20 do século passado até aos nossos dias, quase um século de estimulante leitura, no domínio da literatura, das artes, do pensamento, da política e do social que, no dizer de António Pedro Pita, traduzia um profundo movimento de revitalização, em que a elite política e a elite intelectual se conjugavam a favor de uma harmoniosa e lúcida operação de diferenças, que fez distinguir a Seara Nova das várias revistas que com ela coexistiam, geralmente, por pouco tempo. Mas tenha-se presente que este êxito inicial foi algumas vezes interrompido por via das variações das condições exteriores existentes, que registavam períodos melhores mas outros piores para a Seara Nova. Por exemplo, no seu período inicial, republicano, estimularam-se as capacidades da Seara Nova, mas já no período seguinte, o de Salazar, notoriamente repressivo, limitaram-se bastante as virtudes da revista, sobretudo nos primeiros 30 anos daquela ditadura. A Seara Nova surgiu no período republicano. A agitação política e social que se vivia então estimulou as suas ideias e a sua voz passou a fazer-se ouvir de forma aliciante. E de tal maneira que falar hoje da Seara Nova dessa época é também falar e comemorar a República, em cuja defesa os seareiros desde logo se distinguiram, com reconhecido sucesso, ainda que depois se tivesse caído numa ditadura. Sem dúvida alguma, a mais penosa situação

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que a Seara Nova sofreu em toda a sua existência, foi a violenta fase em que a odiosa PIDE e a censura exerceram forte repressão sobre os seus redactores e textos, afectando naturalmente a função cultural, cívica e democrática da revista. No entanto, apesar de toda a violência do regime sobre a revista e dos assaltos a que a sua redacção era sujeita por parte daquela polícia, a Seara Nova conseguiu sobreviver, ainda que algo constrangida. Foi nesse longo período da Seara Nova que apareceram, nas suas páginas, as famosas polémicas entre os seus colaboradores, que não deixaram de marcar o seu nível cultural. Recordo aqui, entre outras, a polémica que se estabeleceu entre António Sérgio e Abel Salazar. Entretanto, a oposição ao regime ganhava, a pouco e pouco, força, em que a Seara Nova, em especial sob a vigência de Câmara Reys e de Manuel Sertório, reforçou a oposição em crescendo com novas ideias, que animaram, por exemplo, a candidatura do General Humberto Delgado. Que se tenha presente, também, que foi na sede da Seara Nova que muitos seareiros tiveram uma larga e valiosa participação nos dois Congressos Republicanos e no da Oposição Democrática de Aveiro, cuja documentação foi depois por si editada. Tudo caminhava para que a Revolução, sob pressão da Guerra Colonial, acabasse por surgir, impondo transformações profundas no País, defendendo novos interesses, políticas progressistas e democráticas, com forte incidência sobre a vida económica e social, notoriamente opostas às que se viviam sob o domínio de Salazar. E a Revolução tornou-se, por fim, uma realidade e, com ela, a liberdade conquistada, o que acabaria por provocar o abandono de muitos leitores que passaram a integrar os partidos e movimentos que, entretanto, se foram desenvolvendo. Não surpreende, assim, que a revista atravessasse, a partir daí, momentos de grandes dificuldades, praticamente de pré-falência. Nessa altura, surpreendentemente, talvez por ser economista, convidaram-me para ser director da Seara Nova, convite que não aceitei de imediato, o que efectivamente iria acontecer mais tarde, mas com uma condição: a de se respeitar o seu estatuto original, colegial, na esperança de um dia poder trazer outra vez as suas virtudes e brilhantismo aos portugueses. Era notório que a Seara Nova, no fim dos anos setenta, sobrevivia apenas à custa de muita dedicação e sacrifício, o que lhe permitiu, ainda, publicar mais dois números, porque a viabilidade económica e financeira em que se movia não lhe permitia mais. Mas, cinco anos depois, em consequência da instabilidade económica em que o País vivia sob o domínio de um liberalismo capitalista, com os valores éticos e morais a serem frequentemente

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ignorados, eu e alguns seareiros, preocupados com a situação, resolvemos, em 1985, fazer publicar regularmente a Seara Nova, na esperança de que, com a ajuda das suas intervenções, a revista voltasse a ser lida, escutada e respeitada. De facto, sentia-se de novo a necessidade de uma voz crítica e pedagógica como a da Seara Nova. Surgiu, então, a ideia de organizar um grupo, constituído por velhos e respeitáveis seareiros, como Aquilino Ribeiro Machado, Luís Francisco Rebello, Piteira Santos, Rui Grácio, Jacinto Baptista, Salgado Zenha, Luís Azevedo e por mim próprio. Grupo este que, para o efeito, formou uma cooperativa, tendo Salgado Zenha sido eleito presidente e eu director da revista, que continuou a respeitar o seu consagrado estatuto. Já agora, permitam-me que os informe das condições que me levaram a ingressar na família seareira. Fui convidado pelo próprio director da Seara Nova, Câmara Reys, para colaborar na sua revista quando fosse libertado da Cadeia de Caxias, onde cumpria, em 1958, uma pena de dois anos, juntamente com outros colaboradores da redacção da Revista de Economia. Esta publicação, no seu género, era importante no Portugal de então, especializada em matérias económicas e financeiras. Sendo objectiva e tecnicamente exigente nas suas análises, era bastante crítica quanto à política de Salazar, o que gerava intensas vigilâncias políticas e constante censura exercida sobre os seus artigos. Cuidados estes que se radicalizaram, através de uma ordem de prisão contra toda a redacção da revista e, com ela, o fim da publicação, o que, afinal, era o que se pretendia. Como é evidente, aceitei tão honroso convite. Aqui está a razão que me levou para a Seara Nova. A Seara Nova constituía a voz de uma frente comum contra a ditadura de Salazar, nomeadamente nas décadas de 60 e 70. Impôs-se, a partir de certa altura, como voz oficiosa de oposição democrática que foi importante, como se sabe, para o derrube do poder ditatorial. Logo que esse poder foi derrubado, as várias forças políticas que nela colaboravam no combate à ditadura, aproveitaram imediatamente as liberdades para promoverem as suas próprias publicações. Antes do 25 de Abril, a comunicação social não registava mais do que uma dezena de títulos, número este que, depois daquela data, explodiu, alcançando um número de títulos superior a cinquenta, ao mesmo tempo que a rádio e a televisão se potenciavam, inundando as casas dos cidadãos com variado noticiário e exposição de ideias. Estas novas condições obrigaram a cuidar de novo do projecto da Seara Nova. Tornou-se necessário procurar novos apoios, apoios que naturalmente se identificassem com o seu estatuto, o que se conseguiu graças à adesão da

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Associação Intervenção Democrática, através da qual foi obtida uma relação positiva, que permite manter viva a Seara por inteiro. Não fazia sentido que o grupo orientador da Seara Nova se assumisse como um espaço próprio de reflexão e com um projecto comum de intervenção social e cultural. Seria antes mais razoável fazer um esforço editorial que permitisse a convivência, nas páginas de uma mesma revista, de personalidades provenientes de famílias de pensamento diferentes. Mas com traços comuns: respeito pelas diferenças de opinião; identificação com ideais progressistas; seriedade dos pontos de vista; competência no tratamento das questões; vocação para a divulgação científica e cultural. No fundo, respeitando o verdadeiro espírito seareiro. Na coordenação da revista, nos exigentes trabalhos de planeamento e de elaboração de cada número, permitam-me recordar, em sequência temporal, aqueles que, em minha opinião, deram neste campo maior contributo ao projecto Seara Nova: Raul Proença, Câmara Reys, Augusto Casimiro, Rogério Fernandes e Sottomayor Cardia. Mas a Seara Nova foi sendo feita por um extenso número de colaboradores, para além do núcleo orientador ou redactorial, de um universo cultural muito amplo, que José Rodrigues Miguéis, em dado artigo, identificou como “amigos das ideias da Seara Nova”. Por um simples acto de justiça (e de injustiça relativamente a tantos que olvido), deixem­-me recordar alguns outros intelectuais mais constantes na sua colaboração em determinados períodos: Sarmento de Beires, Quirino de Jesus, Azevedo Gomes, Emílio Costa, Faria de Vasconcelos, Lopes Graça, Bento de Jesus Caraça, Keil do Amaral, Francine Benoit, Irene Lisboa, José Rodrigues Miguéis, Urbano Tavares Rodrigues, Augusto Abelaira, Rui Grácio, Armando de Castro, Victor de Sá, José Saramago, Nikias Skapinakis, Machado da Luz, Carlos Porto, Salgado de Matos, Gilberto Lindim Ramos. A Seara Nova da actualidade assume-se como herdeira do espírito seareiro, em defesa dos mesmos valores cívicos, democráticos e culturais, como de início referi. Continuando a tratar grande diversidade de assuntos, dedica, porém, maior espaço à área do social, face às condições concretas que o País vive. Cada número abre com um dossier sobre um tema específico de interesse nacional, havendo depois uma abordagem de questões nacionais e internacionais relevantes no período, incluindo actividades culturais. A Seara Nova, com um décimo da tiragem que alcançara no seu auge do início da década de 70 e com uma periodicidade trimestral, não tem hoje influência e projecção ao nível que atingira na maior parte do seu meio século de resistência antifascista. Mas prossegue, crescendo, um caminho empenhado de intervenção democrática, no respeito ao projecto seareiro

Ulpiano Nascimento

e aberto à discussão das grandes questões nacionais e internacionais. Foi este espírito que lhe permitiu ter a colaboração valiosa de mais de 250 intelectuais, sindicalistas ou cooperativistas nos últimos oito anos, no espaço de diálogo e reflexão que a Seara representa. Todos eles, com a sua valiosa participação, têm contribuído para que a Seara Nova actual não desmereça do espírito e ideais do seu núcleo fundador, sendo assim, também, como que uma homenagem a Raul Proença, Jaime Cortesão e António Sérgio.

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Raul Proença: Republicano e Panfletário DANIEL PIRES Centro de Estudos Bocageanos

Pretendo com o presente texto fazer uma breve análise da actividade panfletária de Raul Proença, enfatizar a importância da sua obra e realçar o paradigma cívico que ele constituiu para várias gerações. Do seu labor intelectual nasceram duas obras amadurecidas, pertinentes e inovadoras, que foram fulcrais para a cultura portuguesa: as Regras Portuguesas de Catalogação e o Guia de Portugal. A redacção da primeira teve início em 1918 e prolongou-se por dezasseis meses. Raul Proença, numa palestra realizada, a 28 de Março de 1921, na Biblioteca Nacional, evidenciou a sua pertinência: “Causa-nos vergonha, ante a espantosa desorganização da profissão bibliotecária, o exame da mais simples oficina industrial. Tudo ali é rigor, perícia, cálculo, oportunidade, divisão de trabalho; tudo aqui é destrambelho, acaso, confusão, espantosa infecundidade do esforço. Isto tem que mudar. Uma biblioteca tem que ser, custe o que custar, uma oficina inteligentemente montada!”.

Aquela obra, que esteve em vigor durante aproximadamente quatro décadas, contribuiu decisivamente para pôr fim ao caos biblioteconómico existente. Na esteira de Rafael Bluteau e de João Batista de Castro, autores de obras monumentais – Vocabulário Português e Latino e Mapa de Portugal Antigo e Moderno –, Raul Proença descreveu, analisou e inventariou de forma abrangente o nosso país, dando à estampa o Guia de Portugal. A arquitectura, a sociologia, a etnografia, a história, a geografia, a economia, a literatura e a arte constituíram o seu escopo. Para o elaborar, rodeou-se de alguns dos principais intelectuais portugueses de então, sendo alguns oriundos do “Grupo da Biblioteca”: Reinaldo dos Santos, António Sérgio, Silva Teles, José de Figueiredo, Afonso Lopes Vieira, Vitorino Nemésio, Aquilino Ribeiro, Egas Moniz, Jaime Cortesão, Raul Brandão, Júlio Dantas, Mário de Azevedo Gomes, Matos Sequeira, Raul Lino, Teixeira de Pascoaes, entre outros. O primeiro volume publicou-o em 1924, o segundo, já se encontrava no exílio, em 1927, deixando o

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terceiro em fase adiantada, não o concluindo devido a problemas de carácter psiquiátrico que o assolaram. Outras obras constam da extensa bibliografia de Raul Proença. Da sua pena laboriosa saíram ainda um dicionário de língua portuguesa, que ficou inédito, um ensaio intitulado A Biblioteca Nacional: breves noções históricas e descritivas, um outro sobre o Eterno Retorno – publicado, postumamente, em edição crítica por António Reis –, várias traduções, um livro sobre a pintura do Museu do Louvre e extensa colaboração em jornais e revistas. O escopo principal desta comunicação prende-se com a intervenção política de Raul Proença. Entre Outubro de 1921 e o 28 de Maio de 1926, foi o catalisador da Seara Nova: redigiu o seu emblemático programa e assinou a maioria dos editoriais e dos principais artigos nela publicados. Note-se que a empatia relativamente à revista foi de tal ordem que a sua periodicidade cedo passou de quinzenal para semanal. Este facto forçou Raul Proença a escrever mais frequentemente, em cima do acontecimento, sem distanciamento, sem ter tempo para uma reflexão mais aturada, tantas vezes para replicar a um adversário político mais contumaz e aguerrido, ou, na sua opinião, menos pertinente. Deste modo, uma parte substancial da obra política de Raul Proença é panfletária. Panfletária no sentido em que, de uma forma sintética, proclama princípios de carácter político e social e se manifesta contra uma doutrina, uma personalidade, uma instituição ou o poder constituído. Vejase a este propósito o paradigmático programa da Seara Nova. Panfletária ainda porque é contundente, arrasadora, fazendo apelo, por vezes, à ironia, outras ao sarcasmo, outras ainda ao ridículo. Eis, portanto, uma feliz aliança entre uma exposição racional e circunstanciada, uma dialéctica apurada e um estilo singular. Não surpreende deste modo que Raul Proença tenha cultivado o confronto directo: há cerca de vinte anos, inventariámos e editámos as suas polémicas, que ascenderam a cinquenta, rivalizando, neste domínio, com Camilo Castelo Branco, José Agostinho de Macedo, Homem Cristo e António Sérgio. A presença dos adversários nos seus textos era obrigatória. Só assim se explicam tantas e tão variadas polémicas. Aliás, Raul Proença admite-o num excerto de um panfleto: “Na luta está para mim já grande parte da felicidade […] encontro a felicidade nesta exuberância de vida, nesta exaltação da personalidade, no combate que empreendi a todas as potências maléficas”.

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E qual era o seu ideário político, aquele que, na prática, o conduziu à intervenção aberta na discussão da res nacional? Raul Proença era um republicano convicto, como se pode inferir da leitura dos seus textos de juventude, redigidos em jornais de Alcobaça, de Faro e no República, de António José de Almeida, periódico que veio a ser encerrado, em 1909, exactamente devido a um artigo de Raul Proença, considerado, pelas autoridades, ofensivo para o rei belga. Idêntica opção é visível na revista Alma Nacional, também de António José de Almeida, publicada em 1910, que deixou de vir a lume com o 5 de Outubro, por já ter desempenhado cabalmente o seu papel: contribuir para o derrube da monarquia. Dias depois da fundação da Seara Nova e de uma das maiores hecatombes da história de Portugal, a “Noite Sangrenta”, que culminou com o assassinato cobarde e misterioso de cinco tribunos republicanos, entre os quais se encontravam Machado Santos e José Carlos da Maia – dois dos principais agentes do 5 de Outubro – e o primeiro-ministro António Granjo, afirmava Raul Proença: “Uma República nova? Sim, uma República nova, mas que, ao contrário da de Sidónio Pais, se prepare em plena luz, e não na escuridão e no silêncio das alfurjas revolucionárias; viva do apoio dos republicanos e não do dos monárquicos; trabalhe para a realização das ideias radicais, e não das conservadoras; e seja enfim a salvação definitiva da República, e não a mise-en-scène da restauração monárquica”.

Acresce que Raul Proença era extremamente crítico relativamente à segunda geração de republicanos, no poder desde o assassinato de Sidónio Pais, em Dezembro de 1918: “Há republicanos (ou pseudo-republicanos) mais inimigos do futuro que os mais reaccionários integralistas”.

Mas não o era menos relativamente à primeira geração de republicanos, designadamente aos dirigentes do Partido Democrático. Com efeito, no número inaugural da Seara Nova, defendeu: “Quem não deve pagar as favas, repetimo-lo, são os monárquicos: eles não são responsáveis por Sidónio Pais ter feito uma república demagógica, nem por Afonso Costa e Bernardino Machado terem tornado possível Sidónio Pais”.

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O seu perfil político torna-se ainda mais evidente com a leitura do programa da Seara Nova, por ele redigido, no qual prescreve designadamente “a reforma da mentalidade da elite nacional”, “a criação de uma opinião pública esclarecida” e a “oposição ao espírito de rapina das oligarquias dominantes e ao egoísmo dos grupos, classes e partidos”. Propunha-se ainda a revista “protestar contra os movimentos revolucionários e todavia defender a grande causa da verdadeira revolução”. Por outro lado, Raul Proença, ainda no número um daquela revista, datado de 15 de Outubro de 1921, fez uma radiografia percuciente do país: “[…] uma abulia com grandes frases – tal foi o estado a que reduziram a nação os nossos intelectuais e educadores. A ausência mais absoluta de capacidade criadora; o amor pela retórica, pelo plano, pelo estardalhaço pirotécnico, com prejuízo da acção e execução das ideias directoras; a inconsciência profunda, em alguns, dos próprios males do país; a mais espantosa cobardia moral e o temor mais inconcebível das responsabilidades; uma lazeira do querer, um linfatismo, uma falta de audácia que faz supor que temos nas veias capilé de vintém; tudo isso e o interesse dos partidos, que não vivem para aferrolhar o erário público, mas para o consagrar ao engordamento sistemático das clientelas, à satisfação das suas menos confessáveis exigências, contando que as eleições sejam ganhas e o ministro suba em reputação, e lhe cresça o número das dedicações e amizades”.

Eis uma filosofia política ponderada, que é o corolário de um espírito crítico rigoroso e de ideais elevados. A actividade panfletária de Raul Proença foi exponenciada com o advento do 28 de Maio. Liberdades fundamentais coarctadas e a instalação de uma oligarquia militar sedenta de privilégios desencadearam no seareiro a necessidade aguda de intervir, de denunciar, de apontar alternativas. Recorro a uma carta inédita de Raul Proença, dirigida a Reinaldo dos Santos, que me parece elucidativa relativamente ao seu carácter e à sua práxis. Foi escrita durante uma das suas peregrinações pelo Portugal profundo, em busca de informação precisa e abrangente para o segundo volume do Guia de Portugal. A carta não apresenta data, porém, considerando o seu teor, a sua localização temporal não é difícil: 1926, eventualmente, Setembro. Eis um excerto: “Por desgraça, bailam-me no espírito uma porção de artigos para a Seara – que não posso fazer. A maior canseira exercida sobre a Seara é o Guia

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de Portugal. Se não fosse este, já teriam saído alguns artigos de sensação, ou já teria batido com os ossos na cadeia. Por mim, estou resolvido a não reconhecer a legitimidade da censura, e a publicar tudo o que entender, mesmo contra expressa determinação dela. Já vê o que me tem valido o Guia nestas alturas”.

A reacção ao Vinte e Oito de Maio, por parte das forças democráticas, tardou. Os libertários de A Batalha e Raul Proença foram dos poucos que condenaram, de imediato, de forma veemente e pública, aquele movimento. Na Seara Nova, a 10 de Junho, Proença afirmava: “Numa revolução preparada com tantos meses de antecedência, não se pensou sequer no ministério que deveria constituir-se. Nem ministros, nem planos, nem ideias. Além do bota-abaixo, não viram mais nada. Por fim, lá se improvisaram uns senhores ministros – que confessaram ingenuamente serem incompetentes ou ‘absolutamente leigos’, e não terem programa”.

As linhas-de-força do novo regime clarificaram-se com a condenação ao ostracismo de Gomes da Costa, o afastamento de Mendes Cabeçadas e a concomitante concentração de poderes em Óscar Fragoso Carmona. Por outro lado, de forma mais ou menos capciosa, a censura fez a sua aparição em cena, desencadeando a reacção da Seara Nova, que passou declaradamente à oposição. Teve então início a actividade panfletária clandestina de Raul Proença. Datam de 1926 vários artigos, aparentemente seus, publicados em jornais ilegais, isto é, que não foram sujeitos à censura, como O Libelo e O Pelourinho. De 10 a 20 de Novembro daquele ano, redigiu um contundente panfleto intitulado A Ditadura Militar: História e análise de um crime. Em epígrafe, encontra-se uma frase de Antero de Quental: “Se esta espada que empunho é coruscante, é porque ela é a espada da verdade”. E, no ponto prévio, Proença afirmava: “Não obedecerão estes Panfletos nem a periodicidade certa, nem a objectivo determinado. Surgirão no momento. Dirão as preocupações que me dominam – a minha reacção pessoal perante os factos, os homens e as ideias. De tudo terão um pouco: da análise fria e do sarcasmo, da doutrina serena e da polémica – claridade, protestos, vitupérios. Não recuarão perante nenhuma força: nem a dos músculos, nem a do número, nem a da tiragem, nem a das armas. Falarão aos outros como eu falo comigo mesmo. Será, pois, com sua licença, um temperamento que irá passar no écran. Decidi-me a viver. No perigo? Talvez. Mas acima de tudo na ânsia de me

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dar – no desejo de pôr sobre este charco imundo uma espada coruscante, uma chama a arder…”.

Naquela obra são severamente criticados os principais responsáveis pelo Vinte e Oito de Maio, bem como a sua práxis governamental e opções políticas. Raul Proença debruçou-se ainda sobre a natureza do regime: “Preferia ser cidadão da monarquia de antes do 5 de Outubro a sê-lo desta república de fachada, desta monarquia que não tem o espírito e a coragem de se confessar monárquica, que só se diz republicana por imbecilidade ou por cobardia”.

E numa nota final, que passou despercebida a alguns biógrafos, advertiu: “Muitos estranharão que eu não tenha aludido ao tão falado ‘perigo monárquico’. O mais leve vislumbre de pudor intelectual me impediria de o fazer. Tenho as responsabilidades do meu nome e da minha inteligência. Falar no perigo monárquico, quando de facto vivemos na pior das monarquias, seria recear o papão que está em cima do telhado, tendo um bandido na dispensa. Seria comungar no desprezível verbalismo de certos republicanos, para quem toda a realidade da República está nos dizeres de certa tabuleta e nas cores de certa bandeira. […] O que para aí está é tão torpe que a própria monarquia do Sr. D. Manuel não seria um perigo, mas uma esperança. Esta declaração não deve agradar a muitos republicanos, para quem a República é o regime que lhes garante os seus empregos. O ‘perigo monárquico’ é o perigo de os perder”.

Por outro lado, Raul Proença não deixou de assinalar os dirigentes republicanos que abriram a porta à Ditadura Militar, tendo excluído Álvaro de Castro e José Domingos dos Santos, tribunos cuja práxis governativa recebeu, em 1924 e 1925, o apoio da Seara Nova. Abra-se um parêntesis para recordar que este panfleto foi manipulado pelo periódico O Portugal, que, truncando e descontextualizando, tentou insinuar a adesão de Raul Proença ao regime recém-implantado. O mencionado libelo indignou as personalidades que se encontravam no poder. A polícia tentou então deter Raul Proença, que passou à clandestinidade, valendo-lhe então a solidariedade fraterna de Afonso Lopes Vieira, Cassiano Neves, Pulido Valente e de Reinaldo dos Santos. Em Janeiro de 1927, veio a lume o segundo volume daquele panfleto, que apresentava o seguinte título: Ainda a Ditadura Militar: demonstração científica da nocividade das ditaduras militares, e algumas amabilidades sobresselentes.

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Apresentava a mesma acutilância, o mesmo desassombro, evidentes na nota de abertura: “Enquanto durar a actual situação, os Panfletos só poderão ser distribuídos clandestinamente. A verdade, hoje, no nosso país, é clandestina”.

Este texto pauta-se ainda pela virulência relativamente ao novo regime. Nele narra a sua fuga às autoridades, a sua passagem à clandestinidade, assinala os espectros que o assolavam, vinca a sua determinação de declarar guerra à arbitrariedade. Em fins de Janeiro de 1927, Raul Proença redigiu um novo panfleto clandestino, Labéu de Traição, cujo escopo se prende com as acusações “infundadas” de traição, feitas pela imprensa governamental aos democratas que se opuseram ao pedido de empréstimo da Ditadura Militar junto da Sociedade das Nações. Entretanto, afigurou-se a alguns membros do “Grupo da Biblioteca” – Jaime Cortesão, Aquilino Ribeiro, Raul Proença – e a outros oposicionistas, que só uma revolução poderia restituir o país à pureza de ideais consignados no 5 de Outubro. Nos bastidores da Biblioteca Nacional preparava-se, metodicamente, o 3 de Fevereiro de 1927. Os revoltosos do Porto saíram para a rua, de armas na mão, tal como haviam feito, décadas antes, os de 31 de Janeiro. Um jornal clandestino da época, intitulado Avante, noticiava: “No Porto o entusiasmo é indescritível. O desassombrado jornalista Raul Proença, que faz parte dos grupos civis, percorre as ruas da cidade, falando ao povo e arrastando atrás de si centenas e centenas de voluntários, que se têm ido armar. Computa-se em 12 mil o número de civis armados na cidade do Porto”.

Porém, os revolucionários de Lisboa hesitaram. Raul Proença viajou para a capital, de traineira, exortando à sublevação. Tarde demais: quando decidem finalmente combater, a 7 de Fevereiro, já as forças da ditadura estavam de sobreaviso e se tinham preparado para a confrontação, que foi desastrosa para as hostes progressistas. Data desta época o panfleto de Raul Proença Perdoar não! Carta aberta ao director de O Século, João Pereira da Rosa, que, na sua opinião, distorceu por completo a natureza e os objectivos do 3 de Fevereiro. O negro pão do exílio esperava Raul Proença, com o seu cortejo de desgostos e de fracturas: a fome, as dissidências políticas, o falecimento de uma das filhas, Berta Proença – “o golpe mais cruel em toda a minha vida”, como confessou em carta a Ferreira de Macedo –, e a recusa, por

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parte da Ditadura, de o autorizar a estar presente no funeral. Por fim, a insanidade mental. No exílio, continuou, porém, a sua pugna pela liberdade. Permaneceu alguns meses em Madrid, seguindo posteriormente para Paris, onde foi co-fundador, em 1927, da Liga de Defesa da República, também conhecida por Liga de Paris. Redigiu então um arrasador panfleto, intitulado O Caso da Biblioteca, que se manteve inédito durante quarenta anos, só vendo os prelos em 19861. Constituiu uma resposta à sua demissão, bem como à de Jaime Cortesão, dos cargos directivos que exerciam na Biblioteca Nacional e ainda à sindicância, ordenada pela Ditadura, a qual se baseou num relatório preliminar de Fidelino de Figueiredo. De Paris, continuou a sua cruzada em prol da democracia: em 1927, colaborou nos jornais clandestinos Rebelião e A Revolta. E assinou um panfleto, Aos Apóstolos do 5 de Outubro, criticando a apatia dos republicanos perante a Ditadura Militar e Brito Camacho por se não ter dela claramente demarcado. Finalmente, em 1928, publicou na capital francesa três panfletos: Em legítima defesa, acusando o general Passos e Sousa de truncar um seu artigo, “O Perigo Bolchevista”, e de afirmar que ele propusera o fuzilamento de oficiais do exército português; Nota sobre as Finanças da Ditadura, que saiu anónimo; e A Luta pela Liberdade em Portugal: seu alcance universal. O que pretendem os liberais portugueses. Este libelo, embora seja da autoria de Raul Proença, é igualmente assinado por Afonso Costa, António Sérgio, Aquilino Ribeiro, Bernardino Machado, Álvaro Poppe, Jaime Cortesão e Sarmento de Beires. Neste panfleto, Raul Proença considerou Oliveira Salazar “um teórico fanático”, manifestou-se contra os impostos por ele decretados, por atingirem as classes mais desfavorecidas, e enumerou os atropelos aos direitos mais inalienáveis que tinham lugar em Portugal. Concluindo, o percurso existencial de Raul Proença foi, em grande medida, preenchido por uma luta estrénua pela concretização dos seus ideais de carácter humanista e republicano. O Homem, para ele, era a medida de todas as coisas, o capital mais precioso. Raul Proença, “um fanático da vida”, assim se auto-apelidava, será recordado pela sua obra, pela sua coragem e frontalidade e ainda pela sua autenticidade. Com pertinência, ele definiu a sua metodologia política: “Uma cólera fundada em razão – tal é a minha divisa de panfletário”.

PROENÇA, Raul. O Caso da Biblioteca. Organização, prefácios e notas de José Carlos González e Daniel Pires. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1986.

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A matriz socialista liberal no pensamento político de Raul Proença ANTÓNIO PEDRO MESQUITA Universidade de Lisboa

Diz-se que a soberania é o povo. Não: a soberania não é o povo. A soberania é o indivíduo. Raul Proença

1. Palavras de Intróito Já tive ocasião de declarar algures que o socialismo é “uma criatura heterogénea do mundo da política”. Justifica o gesto feio de me citar a mim próprio o facto de a mesma coisa se poder dizer, enfaticamente e a fortiori, do socialismo liberal. Neste caso, no entanto, não pelo carácter polimorfo da corrente, como sucede naquele, mas pela circunstância de a designação “socialismo liberal” ser habitualmente utilizada como mero sinónimo de “socialismo democrático” ou “socialismo reformista” (também de “social-democracia”), quando muito como sinal de uma peculiar atitude de espírito de certos socialistas, não, salvo em contextos muito específicos1, como etiqueta para um tipo determinado de pensamento adentro a grande galáxia que a multiplicidade de formas desta corrente admite. Ora, no sentido literal das expressões envolvidas, a designação “socialismo liberal” é susceptível de um enquadramento técnico, com a sua fundamentação própria e a sua própria natureza teórica. Em epítome, podemos dizer que a caracterizará a afirmação do primado do indivíduo, património do liberalismo, acompanhada pela consciência de que só a transformação da sociedade no sentido da igualdade e da solida-

Temos especialmente em mente, em Itália, o Partito d’Azione, hoje Partito d’Azione Liberalsocialista, aglutinador de diversas tendências socialistas e trabalhistas sedimentadas ao longo dos séculos XIX e XX, entre as quais o Movimento Justiça e Liberdade de Carlo e Nello Rosselli e o círculo socialista liberal de Guido Calogero e Aldo Capitini, a que, em determinado momento, pertenceu também Norberto Bobbio.

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riedade pode dar concretização prática e constituir garantia bastante para tal primado, como pretendem os socialistas. Vemos em Raul Proença a grande referência desta sensibilidade entre nós. Com efeito, em dois pequenos textos de juventude publicados sucessivamente na revista Alma Nacional em 25 de Agosto e 1 de Setembro de 1910, sugestivamente intitulados “Individualismo e Etatismo”2 e “Solidariedade”3, é de uma defesa de um ideário socialista e liberal, ou simplesmente socialista liberal, que, muito embora sem estes termos, se empreende. Eis o que justamente procuraremos mostrar e sustentar na presente comunicação, identificando, deste modo, o referido ideário in statu nascendi e não ainda com o pleno desenvolvimento que atingirá nos escritos de maturidade. Fá-lo-emos, atravessando as seguintes etapas: em primeiro lugar, procurando-nos situar dentro do contexto em que, no pensamento político de Proença, ocorre a sua determinação como, nos nossos termos, socialista liberal; depois, identificando sucessivamente, agora nos próprios termos do nosso autor, a matriz liberal e a matriz socialista do seu pensamento político, ou, talvez melhor, o “lado” liberal e o “lado” socialista (na acepção bem concreta em que se fala dos dois lados de uma moeda) do seu projecto socialista liberal.

2. O Contexto Se lhe perguntássemos directamente pelo critério para aquilatar do progresso de uma civilização, Proença responderia decerto que este se mede, muito simplesmente, pelo melhor que tal civilização conseguiu produzir, isto é, pelo grau de desenvolvimento material, moral, intelectual, cultural e espiritual a que logrou elevar o ser humano. Assim sendo, a literatura de Homero, de Camões, de Shakespeare, a música de Bach e de Schumann, a arquitectura das catedrais ou a de Gaudí, o teatro de Molière ou o cinema de Chaplin, serão, para este modo de ver, o único índice para avaliar a envergadura da civilização europeia. Porém, a democracia não o é menos. A noção de que não é digno do homem ser menos do que cidadão, que lhe pertencem como direitos inalienáveis a liberdade, a segurança, a livre expressão do pensamento, a tolerância, entre outros, e que, como tal, cada PROENÇA, Raul. Individualismo e Etatismo. Alma Nacional. Revista Republicana. Lisboa, 25 de Agosto de 1910. 3 Idem, Solidariedade. Alma Nacional. Revista Republicana. Lisboa, 1 de Setembro de 1910. 2

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homem precisa de ser auscultado na constituição da organização política da sua comunidade e para o exercício do poder como fonte de toda a soberania dentro do Estado, é uma grande realização do génio europeu, uma daquelas que unicamente dá a medida da sua grandeza. É por isso que, nesta perspectiva, a democracia é essencialmente um ideal, que nunca se reduz nem nada se degrada perante as formas imperfeitas de que se reveste no mundo das realizações históricas. Que importa, dir-se-ia, que, no domínio destas, ela seja apenas (o que já não é pequena coisa) o menos mau de todos os péssimos regimes políticos, para glosar a acarinhada expressão de Churchill? No domínio das ideias, no domínio dos princípios, ela constituirá a única organização da Cidade racionalmente concebível e o único sistema sob o qual vale verdadeiramente a pena viver. Que importa que, no mundo prático, a maior parte dos homens seja incapaz de escolher racionalmente e prefira inclusive ser escravo nutrido a livre famélico? A bondade das realizações humanas não se ajuíza pelo critério da fome, do medo, da ignorância, da superstição, mas pelo da razão. Como bem intuiu António Sérgio, na esteira de Kant, para se conhecer o bem da comunidade, há que elevarmo-nos ao universal e pensarmos como se o fizéssemos em nome de todos, em nome da vontade geral4. Eis o que, na polémica entre os defensores do dever-ser e os do primado dos factos, que, como é bem sabido, atravessou a geração seareira e a opôs a diversos movimentos culturais e políticos coevos, só aqueles, não estes, compreenderam bem. Daí a importância da reforma das mentalidades em que Proença, Sérgio, Cortesão e os demais obreiros da Seara Nova comummente se empenharam. Terá sido um mito, talvez, apenas mais uma utopia das muitas em que se deixaram confundir estes generosos idealistas, como inevitavelmente dirão aqueles que, de um modo ou de outro, objectivamente enfileiram com os prosélitos dos factos. Mas, se observamos a desproporção entre o ideal e o estado concreto em que, nas sociedades históricas, os homens se encontram, certo é que nenhum caminho parece ser possível que não o de ir diminuindo esse abismo pelo hábito e pelo exercício, isto é, pela educação. E, em abono desta tese, há que reconhecer que a verdade é que nenhum outro caminho, mais “realista” e mais “pragmático”, tem dado resultados. 4

Cf. SÉRGIO, António. Democracia. In: ______. Democracia. Lisboa: Sá da Costa, 1974, p. 88.

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Como os próprios agentes políticos hoje continuamente se lamentam, o sentido da intervenção cívica e o interesse pela participação social rareiam, deixando os destinos da República nas mãos de uma pequena oligarquia, não raro venal e corrupta, de políticos profissionais. Há que convir que, mesmo que não tivesse feito grande coisa, a reforma das mentalidades não teria decerto feito pior… Mas retomemos o ponto. Como quer que se encare concretamente o papel da reforma das mentalidades na transformação da sociedade, certo é que podemos assentar em que, para a perspectiva que estamos acompanhando, a democracia constitui, no que se refere à organização da sociedade, um ponto de chegada de desenvolvimento civilizacional, naturalmente ponto de chegada não no sentido de um termo fixo e definitivo, mas no de uma meta sempre a atingir e, portanto, sempre a permitir, e a exigir, a obra de cada um, ponto de chegada, pois, no sentido de um alvo como que plástico que não prescinde, mas requer, a participação dos homens para se realizar. Mas – dever-se-ia agora perguntar – democracia em que sentido? O que é, em boa verdade, uma democracia? O que é que faz de certo sistema político um sistema democrático? É aqui, bem entendido, que a questão pelas matrizes teóricas que norteiam cada democrata em concreto se torna decisiva. Como é aqui também que, como tivemos ocasião de explorar em outro local no que se refere ao caso português, se originou a deriva das duas orientações em que o campo constitucional se veio a fracturar em Portugal na primeira metade do século XIX5. Com efeito, sabemos todos bem que, em termos modernos, o que constitui um regime como democrático é simultaneamente o respeito pelos direitos individuais do homem – de cada homem – e uma determinada organização do Estado, fundada no reconhecimento da soberania popular e, logo, no sufrágio como algoritmo para a selecção dos magistrados. Mas, para o ponto em apreço, a questão que importa é antes a seguinte: será que o que funda em última instância uma democracia enquanto tal, aquilo para o qual ela existe e o que, sobretudo, e, em fim de contas, procura preservar, é a salvaguarda dos direitos individuais de cada homem ou, ao invés, aquela peculiar organização do Estado, fundada na soberania popular e no sufrágio maioritário?

Ver o nosso O Pensamento Político Português no Século XIX. Uma Síntese Histórico-Crítica. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2006.

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Esta a questão com que, debruçado sobre a definição da matriz do seu pensamento político nascente, vemos Proença defrontar-se no primeiro artigo que prometemos acompanhar e para o qual de imediato nos voltamos.

3. O Socialismo Liberal O tema de abertura deste artigo é imediatamente denunciador do dilema referido. Logo nas primeiras linhas, escreve Proença6: No conjunto dos sistemas políticos e das filosofias sociais, duas orientações, dois ‘modos de espírito’ perfeitamente se delimitam. Um é o que se pode chamar o ‘individualismo’; outro é o que chamarei ‘etatismo’, desde que a palavra ‘socialismo’, que ao princípio foi aplicada a certa ordem de concepções anti-individualistas, ultimamente tem tomado acepção muito diversa.

Ora, acrescenta7, o individualismo distingue-se do etatismo pelos seus fundamentos, pelos seus fins e até certo ponto pelos meios que põe em prática.

Acompanhemo-lo por momentos enquanto prossegue a análise destas duas atitudes segundo cada um dos três factores. No que se refere aos fundamentos, consideram os estatistas, qualquer que seja a sua obediência, segundo ele, que o indivíduo é apenas, no todo social, um átomo abstracto que só ganha realidade pela sua integração nesse mesmo todo. É, como refere expressamente, a posição bem conhecida de Comte e da tradição positivista que nele se revê, certamente destacada como exemplo pela pertença de alguns dos seus próceres nacionais ao quadrante ideológico e político em que o próprio Proença militava. Pelo contrário, para o individualismo, diz ele8, o indivíduo é a grande realidade viva e na sociedade não há mais realidade do que a soma destas realidades vivas.

Eis, pois, entre as duas orientações, uma perfeita inversão de prioridades: o que para uma é o pólo real e concreto, torna-se na outra o pólo abstracto e fictício e vice-versa. Coerente com esta dicotomia, também no que toca aos fins, o estatista há-de procurar sobretudo assegurar a preservação do PROENÇA, Raul, Individualismo e Etatismo, op. cit., p. 196. Ibidem. 8 Ibidem, p. 198. 6 7

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sistema, enquanto que para o individualista, ao invés, é sempre apenas cada indivíduo na sua unicidade e singularidade o fim último a prosseguir. Com efeito, diz ele9: O fim a que visa o individualista é (…) a mais alta dignidade e mais absoluta independência e a mais excelsa soberania da pessoa humana. Para ele, tudo quanto contribuir para fazer do indivíduo um autómato, ainda mesmo para a mais ampla satisfação económica, diminui o valor moral e o valor estético da vida humana. Porque a vida só vale na medida em que se expande, na medida em que afirma, na medida em que cria e se revolta. Todo aquele que abdica a sua liberdade nas mãos de um tirano, ou de um dogma, ou de uma maioria, perde com ela tudo o que constitua a sua qualidade e a sua dignidade de pessoa.

Também aqui, de modo claro, a presença daquilo a que António Reis correctamente chamou a “ética vitalista” de Raul Proença: “a vida só vale na medida em que se expande, na medida em que afirma, na medida em que cria e se revolta”; é esse, portanto, um critério não apenas para estimar a robustez de cada personalidade, como também para apreciar a saúde da existência social no seu todo. Duas notas não devem deixar de ser realçadas neste trecho: a menção da revolta como expressão privilegiada da individualidade e, neste sentido, o reconhecimento do que poderia chamar-se um “direito à revolta” como direito essencial do cidadão; e, numa primeira aparição do tema, a assimilação da vontade maioritária à do tirano, sempre que a sua deliberação venha transferida da do indivíduo, o que flagrantemente destoa do pensamento dominante a este respeito entre os seus correligionários republicanos e democráticos. Mas particularmente curioso é o que o nosso pensador tem a dizernos sobre os meios de que respectivamente lançam mãos o estatismo e o individualismo. Nas suas palavras10, os meios que em geral o etatismo põe em prática são meios exteriores: os meios legislativos.

Enquanto que11

Ibidem, p. 199. Ibidem. 11 Ibidem. 9

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os meios predilectos do individualismo, pelo contrário, são os meios revolucionários e os meios educativos: os meios que tendem a valorizar o indivíduo e a transformar a sociedade para seu bem.

Percebe-se, pois, que o mote da reforma das mentalidades, longe de meramente instrumental no pensamento de Proença, radica consistentemente na intuição liberal que está no coração do seu projecto cívico e político. Eis o que lhe permite retirar, a finalizar o artigo, alguns corolários importantes. Por motivos óbvios, destacamos sobretudo o seguinte12: Diz-se que a soberania é o povo. Não: a soberania não é o povo. A soberania é o indivíduo; o povo nada tem que ver com as minhas opiniões, com os meus gostos, ou com o meu modo de vida. A sociedade garante-me o direito de viver a vida ao meu modo, contanto que eu não impeça os outros de viverem ao seu.

De facto, continua ele13, a sociedade é um meio de garantia e não um processo de opressão,

como será sempre o caso quando se ponha o Estado ou a colectividade acima ou à frente do indivíduo, qualquer que seja o fim que deste modo se entenda promover – mesmo a democracia, mesmo o socialismo. A sociedade, prossegue14, não foi feita para impedir, para coarctar, para fazer obra de amputação. Mas para guardar como precioso dom e dádiva incomparável a autonomia sagrada das consciências e o direito sagrado da vida.

E, nos seus juvenis 26 anos de idade, conclui com esta tocante profissão de fé, com este arrebatador depoimento pessoal15: Mas poucos compreendam e amam uma liberdade assim. A maior parte faz-lhe restrições tão extensas, e compreende-a e ama-a intimamente tão mal, que podemos dizer que a única liberdade que se defende é a liberdade da opressão. Por isso eu farei dessa ideia a força dos meus artigos e considerá-la-ei, mais do que como uma ideia estritamente política – uma 14 15 12 13

Ibidem. Ibidem, p. 200. Ibidem. Ibidem.

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ideia central da vida. Porque, acima de tudo e além de tudo, eu fiz da vida o meu culto e fiz da liberdade uma paixão.

A fractura com a mentalidade republicana tradicional, sobretudo, mas não apenas, de feição jacobina e sobretudo, mas não apenas, de inspiração positivista, estava já aqui plenamente consumada. Correndo o risco de acentuar em excesso fracturas que são, na realidade, menos pronunciadas, veja-se como, em termos de sensibilidade profunda, aquilo a que Proença chamaria o “modo de espírito” individualista se divorcia da evidenciada pelos grandes nomes da tradição jacobina entre nós. Logo na Constituinte de 22, clamava Fernandes Tomás, o pai de todos eles16: Se a nação é soberana e independente, ninguém mais é soberano, ninguém mais tem direitos senão os que a nação lhe quiser dar.

E para quem imaginasse tratar-se de hipérbole motivada pelo representante visar aqui o Rei, como era manifestamente o caso, veja-se como, noutro momento, ele se refere à própria Nação17: Pois aos povos, depois de nos constituírem legisladores, ficou-lhes sombra de soberania? A obrigação do povo é obedecer. Quando ela gozou do seu direito, foi quando nos constituía seus legisladores; depois que fomos eleitos legisladores, a nossa autoridade é mandar e a do povo obedecer, não a nós, mas à lei; eles não obedecem aos deputados, obedecem à lei.

E uma infinidade de passos idênticos poderiam ser invocados. Ainda no mesmo diapasão, o setembrista José Estêvão, por ocasião do Setembrismo18: Definir o princípio da soberania popular é reconhecer que o povo é o único senhor de todos os poderes públicos, de todas as faculdades governativas; e sujeitarmo-nos às suas consequências é reconhecer que ele pode delegar o exercício destes poderes como quiser e em quem quiser. TOMÁS, Manuel Fernandes. A revolução de 1820. Recolha, prefácio e notas de José Tengarrinha. Lisboa: Caminho, 1982, pp. 82-83. Discurso de 26 de Fevereiro de 1821. Sublinhado nosso. 17 Idem. Discurso de 5 de Novembro de 1821. In: AZEVEDO, Luís Manuel Prado (org.). Discursos Parlamentares de Oradores Portugueses, vol. I. Porto: Escriptorio da Empreza, 1878, pp. 135-136. 18 ESTEVÃO, José. Discurso de 5 de Abril de 1837 sobre o Projecto da Constituição. In: ______. Obra Política, vol. II. Estudo introdutório, selecção e notas de José Tengarrinha. Lisboa: Portugália, 1963, p. 5.

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E ainda o seu correligionário Passos Manuel, na mesma ocasião, quando prefere o discurso justificativo de adesão à revolução19: Jurei a Carta sem escrúpulo e sem receio. Enquanto ela foi a lei fundamental, cumpria-a fielmente; e pedi que fosse cumprida até contra o Libertador. Mas esta Carta foi destruída por uma revolução popular. O povo quis e o povo podia. Todas as revoluções são legítimas. São um mal; mas um mal necessário, muitas vezes único e extremo dos males públicos20.

Seria desnecessário e fastidioso enveredar por um mais longo rol de referências. E o que se diz do pensamento jacobino diz-se a fortiori do jacobinismo positivista, expoente máximo, aliás no próprio texto de Proença, como vimos, da posição estatista. Numa caracterização esquemática, mas exacta, poder-se-ia dizer que onde estes põem a soberania popular coloca Proença a soberania do indivíduo, para ele o único motivo e a única razão de ser da sociedade, que é, ao invés, para eles o próprio motivo e razão de ser dos indivíduos. De novo nos termos do início, a democracia de Proença é sobretudo a dos direitos individuais de cada homem, enquanto que a dos outros é a da soberania popular e do sufrágio maioritário. Eis o que nos permitiria efectuar agora um exercício interessante. Em que família espiritual, poder-se-ia pôr assim, entronca verdadeiramente a sensibilidade individualista proenciana? É claro que não na jacobina. Será então na socialista, em particular na do socialismo idealista e generoso da geração de 70, em que pontificou Antero, o “santo Antero” tão da expressa devoção dos seareiros? Julgamos que não.

MANUEL, Passos. Discurso de 21 de Janeiro de 1837. In: AZEVEDO, Luís Manuel Prado (org.), op. cit., p. 193. Sublinhados nossos. 20 Assim também, de novo, José Estêvão, no jornal A Revolução de Setembro, n.º 1689, de 21 de Outubro de 1847 : “Não ocultamos o nosso pensamento: aconselhamos a urna como meio revolucionário. Não o há mais eficaz. As necessidades sociais exigem remédio. Se triunfarmos, dá-lho a urna; se o triunfo nos é impossibilitado pelas fraudes, demonstra-se o vício do sistema e os males que não acharam ali o seu remédio vão-no procurar por outra parte. Quando o sofrimento é grande, na sua gravidade está a solução – se se lhe tapa a porta legal, sai pela das revoluções” (Cf. ESTEVÃO, José. Obra Política, vol. I. Estudo introdutório, selecção e notas de José Tengarrinha. Lisboa: Portugália, 1962, p. 121). 19

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A despeito das aparências, Proença está muito mais perto de Herculano do que está de Antero. É, de facto, nas palavras do grande pensador liberal oitocentista que encontramos paralelos explícitos, por exemplo, estas em que o vemos exclamar21: Já vê, pois, que, para mim, o homem que, obedecendo aos seus irresistíveis instintos de sociabilidade, se acha convertido em cidadão é, ao mesmo tempo, origem e fim da sociedade; que, além dos seus direitos, tudo o mais é facto acidental, discutível, mudável. Dogmas, só o são os direitos que estão na consciência de todos e que, portanto, são de fé. Tudo o mais é disciplinar.

Ou também estoutras22: Para ele [para o liberal] a soberania não é direito: é facto – facto impreterível para a realização da lei psicológica, e até fisiológica, da sociabilidade, mas, em rigor, negação, porque restrição, nos seus efeitos, do direito absoluto, e cujas condições são, portanto, determinadas só por motivos de conveniência prática e dentro dos limites precisos da necessidade. Fora disto, toda a soberania é ilegítima e monstruosa. Que a tirania de dez milhões se exerça sobre um indivíduo, que a de um indivíduo se exerça sobre dez milhões deles, é sempre a tirania, é sempre uma cousa abominável.

Eis por que podia declarar, como Proença meio-século depois23: Absolutamente falando, o complexo das questões sociais e políticas contém-se na questão da liberdade individual. Por mais remotas que pareçam, lá vão filiar-se.

Todavia, se a presença de um liberalismo à maneira de Herculano é significativa e indesmentível no pensamento de Proença, quer ele o tenha de facto conhecido nos textos citados, e por eles conscientemente se deixado influenciar, ou se tenha antes tratado de pura congenialidade de feitios e mentalidades, ela não está isolada. Ao contrário, é apenas no que toca à matriz liberal do pensamento político proenciano que a proximidade com o grande historiador se detecta. HERCULANO, Alexandre. Carta de 10 de Dezembro de 1870 a Oliveira Martins. In: ______. Cartas, vol. I. Lisboa: Livraria Bertrand; Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, s.d., p. 213. 22 Ibidem, p. 214. 23 Ibidem, p. 212. 21

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A par desta, e ao arrepio da expressa rejeição de Herculano, vemos que o liberalismo de Raul Proença dá as mãos ao socialismo. Com efeito, como que desejando contrabalançar a profissão de fé liberal que havia feito em “Individualismo e Etatismo”, no número imediatamente seguinte da revista em que colabora, Proença faz sair um texto expressivamente intitulado “Solidariedade”, que pretende faça parelha com o precedente, estabelecendo ambos em conjunto uma única doutrina. Neste, começa por declarar24: Tendo assentado no último artigo o meu credo individualista, torna-se necessário esclarecê-lo, laminá-lo, por assim dizer, dando-lhe transparência e luminosidade, de maneira a não embaciá-lo qualquer confusão maléfica.

E elucida25: Efectivamente, o que é que eu fiz no meu último artigo? Defendi eu por acaso o Egoísmo? Neguei a Solidariedade? (…) Não. A nossa doutrina individualista é solidarista também. Ela difere nisto profundamente de certo pseudo-individualismo burguês, que é a liberdade que o indivíduo tem de não contar com a liberdade dos outros.

Por isso, continua26: Nós não defendemos o Eu, esta hipertrofia que quando se afirma oprime; mas o Cada um, esta realidade viva que quando se expande liberta. Dizer que somos individualistas é dizer que queremos a igualdade nos direitos individuais e que defendemos, em todas as suas manifestações, o direito à vida.

Trata-se, em suma, da aliança entre liberdade (individual) e igualdade (social), património teórico do ideário socialista. Sob este aspecto, não podia estar mais longe de Herculano, para quem27 as ideias democrático-republicanas tendem, pela sua índole, a apoucar o indivíduo e a engrandecer a sociedade, se é que eu as compreendo. É por isso que, nas trevas do seu pensar, a democracia estende constantemente os braços para o fantasma irrealizável da igualdade social entre os homens,

26 27 24 25

PROENÇA, Raul, Solidariedade, op. cit., p. 200. Ibidem, pp. 200-201. Ibidem, p. 201. HERCULANO, Alexandre, Carta de 10 de Dezembro de 1870 a Oliveira Martins, op. cit., p. 214.

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blasfemando da natureza que, impassível, os vai eternamente gerando física e intelectualmente desiguais28.

Para Proença, exactamente ao arrepio desta visão, é precisamente porque os homens são desiguais que a igualdade é um imperativo social. Por isso, quase como se respondesse a Herculano, vemo-lo declarar neste artigo29: Nós queremos o sacrifício dos fortes pelos fracos, porque para fundar a igualdade humana é preciso contrariar a desigualdade natural.

E acrescenta, numa típica tirada do seu nietzschianismo à rebours, sempre com muito de confessional e autobiográfico30: E para que sejamos iguais torna-se necessário o sacrifício dos melhores. Sacrifício – insistimos – que não os diminui, que não aniquila a sua alma criadora – mas que exerce a sua virtualidade de acção e que, despendendose, se fecunda a si própria.

Conclui, portanto, a curta série, resumindo que31 A solidariedade é (…) um ideal caracteristicamente individualista.

E reitera32: [O individualismo] não é o regime da liberdade animal. É o regime da igualdade na liberdade, da liberdade em sociedade – a única liberdade segura, a única liberdade humana.

Esta, nas suas próprias palavras, a essência do socialismo liberal de Raul Proença.

Mas veja-se também este trecho de “A Voz do Profeta” (HERCULANO, Alexandre. Opúsculos, tomo I: Questões Públicas. Política. Edição de Joel Serrão. Lisboa: Livraria Bertrand, 1983, p. 44): “A paixão da liberdade esmorece, porque a absorve e transforma a da igualdade, a mais forte, a quase única paixão da democracia. E a igualdade democrática, onde chega a predominar, caminha mais ou menos rápida, mas sem desvio, para a sua derradeira consequência, a anulação do indivíduo diante do Estado, manifestada por uma das duas fórmulas, o despotismo das multidões, ou o despotismo dos césares do plebiscito”. 29 PROENÇA, Raul, Solidariedade, op. cit., p. 203. Sublinhado nosso. 30 Ibidem. 31 Ibidem. 32 Ibidem. 28

A ideia de democracia em Raul Proença e António Sérgio ANTÓNIO BRAZ TEIXEIRA Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias

1. A ideia de democracia constitui, como é reconhecido, o fulcro da reflexão política de Raul Proença (1884-1941) e de António Sérgio (1883-1969), com particular incidência no período correspondente à Ditadura Militar instaurada após o golpe de Maio de 1926, em que o primeiro publicou, na Seara Nova, a série de dez artigos intitulada Para um Evangelho duma acção idealista no mundo real (1928-1930) e o segundo deu à estampa os Diálogos de doutrina democrática (1933?) e o opúsculo Democracia (1934), marcando, assim, ambos significativa presença num debate de ideias em que, na mesma linha social liberal, participaram também, activamente, Leonardo Coimbra1 e Sant’Anna Dionísio2 e, numa atitude crítica de concepção demoliberal da democracia, em contrapolar posição, intervieram, ainda Cabral de Moncada3 e os jovens promotores do movimento Renovação Democrática (Álvaro Ribeiro, Adolfo Casais Monteiro, António Alvim, António Lobo Vilela, Delfim Santos, Domingos Monteiro, Eduardo Salgueiro, Joaquim de Magalhães, Pedro Veiga e Rodrigues de Freitas)4. Este aparente paradoxo de o momento de mais intenso e criador debate em torno do conceito e formas de democracia ter ocorrido não durante os conturbados anos da I República mas na vigência de um governo de feição claramente ditatorial, com as sérias limitações da liberdade intelectual que, naturalmente, acarretou, parece explicável por duas ordens complementares de razões: por um lado, naquele momento da vida portuguesa, precisamente por se encontrar em crise ou em suspensão, a democracia constituía um problema que não podia deixar de desafiar a reflexão responsável, tanto dos que a defendiam como dos que se lhe opunham; por outro COIMBRA, Leonardo. O Problema da Educação Nacional. Porto: Marânus, 1926 (reeditado em COIMBRA, Leonardo. Dispersos, vol. V: Filosofia e Política. Lisboa: Verbo, 1994). 2 DIONÍSIO, J. Sant’Anna. Apontamentos. Cultura e Política. Porto: Renascença Portuguesa, 1931. 3 MONCADA, Luís Cabral de. Valor e Sentido da Democracia. Coimbra: Coimbra Editora, 1930. 4 AA.VV. A Organização da Democracia. Renovação Democrática. Lisboa: Editorial R.D., 1933. 1

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lado, até à consolidação do poder de Salazar e à sua institucionalização pela Constituição de 1933, tudo ou quase tudo se encontrava, de certo modo, em aberto, indefinidos ou indeterminados, sendo então ainda os caminhos do possível futuro político do País, embora o ambiente europeu e internacional fosse cada vez menos favorável às formas parlamentares da democracia liberal herdadas do século XIX. 2. De forma expressa, ou implícita, os vários sequazes da democracia parlamentar de feição liberal consideravam dever a reflexão acerca da ideia democrática distinguir nela três planos diversos: o referente ao conceito ou à essência da democracia como ideia ou ideal, o relativo à democracia considerada como regime político e o respeitante aos seus métodos ou processos técnicos de governação. Se Proença e Sérgio coincidiam em atribuir à democracia um conceito ou uma intrínseca dimensão ideal, cultural ou espiritual, radicada na dignidade da pessoa humana e na sua essencial liberdade, o que, para ambos, revelaria ter ela a mesma origem e a mesma inspiração do cristianismo, no relevo que os dois deram à igualdade, à justiça e aos aspectos sociais, numa visão de recorte ético do socialismo, muito distante do marxismo, no pensar que a democracia implicaria, necessariamente, o sufrágio popular, a representação da opinião pública e a sua fiscalização, no entanto, a teoria da democracia que cada um deles propunha não deixava de se individualizar por traços próprios, que lhe conferiam singular feição. Assim, para o atormentado exegeta e crítico da doutrina do Eterno Retorno, a democracia, porque era a “expressão de um modo idealista do espírito”, teria a sua essência no “respeito pela pessoa humana, dos seus fins próprios, da sua liberdade espiritual”, sendo, por isso, no direito individual e não no direito do número que residia a sua essência, visto ser ela “o regime que garante, no máximo, os direitos de todos os indivíduos, o que a leva, por definição, a caracterizar-se, desde logo, como igualitária”. Deste modo, para Raul Proença, a ideia central da democracia era a de liberdade, a qual implicava, implicitamente, a de igualdade, e não o ser ela a expressão da vontade maioritária, como pretendia Leonardo Coimbra, ou da vontade geral, como queria Sérgio. Para o filósofo, os que assim pensavam tomavam a parte pelo todo, uma aplicação necessariamente imperfeita da democracia pelo seu princípio essencial, reduzindo ao sufrágio, de modo arbitrário, o vasto campo de relações entre o indivíduo e o Estado, quando, em seu entender, a democracia estaria longe de se esgotar no momento ou no modo de elaboração das normas jurídicas, pois seria, acima de tudo, “uma maneira particularíssima

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de conceber as relações entre o indivíduo e a colectividade”, seria “o espírito vivo de todo o direito, a alma de todo o Estado”. Era, precisamente, por a ideia de vontade geral e a regra da maioria mais não serem do que um princípio derivado e uma aplicação imperfeita da ideia ou do princípio essencial da democracia – o do respeito da pessoa humana, dos seus fins próprios e da sua liberdade espiritual –, que Proença era levado a admitir que o indivíduo tinha direito de se rebelar contra o número ou a maioria, sempre que estes, menosprezando a autonomia das consciências, a liberdade espiritual, tentassem violar os seus direitos essenciais5. 3. Estreitamente associada a esta ideia encontravam-se duas outras, que desempenham decisivo papel na concepção que o malogrado pensador tinha da democracia: a de direito natural e a de contrato social. Reconhecendo, embora, o que considerava a pouca felicidade da expressão direito natural, no sentido de um direito anterior à sociedade, dado que apenas “em sociedade a consciência social se objectiva em forma de direitos”, sendo, por isso, desprovida de sentido qualquer concepção jurídica se não existirem, no mínimo, dois indivíduos associados, dada a intrínseca natureza bilateral e social do direito, Raul Proença não deixava de advertir que “se só em sociedade se põe o direito, e se só a sociedade o garante, não é ela que o põe nem é ela que o garante, é a consciência individual, a razão reagindo em face do facto social”. Daí que, para o filósofo português, fosse legítimo e necessário conceber um direito, não anterior à sociedade na ordem do tempo, mas que lhe é imposto pela consciência e que, por isso, não pode deixar de lhe ser anterior segundo o espírito, ou seja, um direito natural fundado nessa mesma consciência6. Quanto à ideia de contrato social como necessário fundamento da democracia, começava o autor de O Eterno Retorno por advertir que, de Hobbes a Rousseau, nenhum dos seus teorizadores o entendeu como um facto empírico ou como uma realidade histórica, mas sim como um modelo teórico, um símbolo ou uma simples concepção jurídica destinada a explicar e a fundar, racionalmente, a realidade da sociedade, do Estado e do poder. Com efeito, o que com a ideia de contrato social sempre se quis exprimir foi a de que, do ponto de vista racional e jurídico, na vida do Estado, tudo se passaria como se houvesse sido celebrado um “contrato” social entre os membros da sociedade política, sendo esta ideia a base “do único regime susceptível de dar um fundamento legítimo às obrigações sociais”. Assim, 5

PROENÇA, Raul. Páginas de Política, vol. I. Lisboa: Seara Nova, 1938, pp. 215 e 230-235. Ibidem, pp. 280-281.

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a vida social e o Estado teriam de pressupor um contrato tácito entre os membros da sociedade, pois toda a vida social implica, necessariamente, um mínimo de livre acordo e todo o homem, enquanto membro da sociedade, é titular de um sim desse contrato, o qual vale tanto como o de cada um dos outros, apesar das inegáveis desigualdades físicas e espirituais existentes entre os homens. Este contrato tácito ou implícito, decorrente, segundo o filósofo, da “razão ordenadora e finalista do homem e da lei moral”, imporia que as relações entre o indivíduo e o poder se regessem por duas cláusulas fundamentais: a primeira determinava deverem os detentores do poder exercê-lo para o bem comum e não no seu próprio interesse, enquanto a segunda dispunha que “todo o poder público supõe deveres desse poder para com os governados, como destes para com o poder público”7. Conexa com a ideia de contrato social encontrava-se, para Raul Proença, a de vontade geral, que o pensador não deixou de recusar criticamente. Contrapondo-se, expressamente, à concepção rousseauniana, segundo a qual, ao votar, cada um exprime, não a sua vontade individual, mas o seu juízo individual sobre a vontade geral, o pensador seareiro notava que de uma maioria de juízos só poderia resultar um juízo e nunca uma vontade total ou geral, pelo que seria forçoso concluir que a única maneira de exprimir a vontade de uma maioria seria através da expressão de cada uma das vontades individuais. A pretensa vontade geral do pensador genebrino, que se pretendia idêntica à de cada um dos membros da sociedade, mais não seria, para Raul Proença, do que “uma concepção mística que desconhece a contingência de toda a vontade e se revela apta a constituir-se em razão justificativa de toda a espécie de tirania”, pois, para Rousseau, o “pacto social dá ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus membros”8. 4. Bem diversa era, sobre este ponto, a posição sergiana, tanto no que se referia à definição de democracia quanto ao concernente ao conceito de vontade geral. O autor dos Ensaios, se não deixava de considerar também o ideal democrático como o da igual dignidade de todos os homens, vendo, por isso, o aspecto essencial da democracia na dignidade da pessoa humana, a qual seria incompreensível sem a liberdade, pelo que o seu núcleo seria constituído pela liberdade e pela justiça, pensava que, sob o ponto de vista Ibidem, pp. 237-239, 272 e 275-278. Ibidem, pp. 237-241.

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político, aquela deveria definir-se como o regime em que os governos são fiscalizados pelos representantes da opinião pública e em que estes votam as bases da legislação, visando, por esta via, a igualização de todos os membros da sociedade, noção que, segundo Sérgio, remeteria, necessariamente, para a de vontade geral, que tanto os legisladores como os fiscalizadores deveriam representar ou exprimir9. Para o futuro autor das Cartas de Problemática, a vontade geral não poderia ser entendida como “soma aritmética de vontades particulares de indivíduos”, nem como vontade do Estado ou de qualquer maioria, pois o seu conceito referir-se-ia, antes, à vontade de qualquer indivíduo que, logrando libertar-se da mera subjectividade da consciência sensível por meio da consciência intelectual, passe a reger-se pela intelecção do universo humano e pela consideração objectiva das relações sociais, adoptando um modo de pensar objectivo, racional, geral. Deste modo, como o ensaísta não deixava de notar, o que distinguia das vontades particulares a vontade geral, enquanto vontade do eu racional e não já empírico, era um critério qualitativo e não quantitativo. De acordo com este modo transcendental de entender a vontade geral, bem diverso do rousseauniano, que Raul Proença tão certeiramente criticara, aquela resultaria da ascensão do indivíduo a pessoa, de uma atitude objectiva e não já subjectiva do espírito, quando o homem passa a determinar-se pela regra kantiana que lhe ordena que proceda de tal maneira que a razão do seu acto se possa erigir em lei geral, universal10. 5. A adequada compreensão do conceito de democracia dos dois grandes vultos da Seara Nova implicaria, naturalmente, o esclarecimento do modo como entendiam as relações entre liberdade e autoridade e liberdade e igualdade, dada a dimensão intrinsecamente social do ideal democrático que perfilhavam. Quanto à relação necessária entre liberdade e autoridade, notava Proença só sob o domínio da lei e da disciplina poder haver liberdade para todos e não apenas para um ou para alguns, pois a liberdade é um produto da regulamentação social, ao contrário do estado da natureza, que, hipoteticamente, haveria precedido o contrato social, o qual seria “o reino da opressão e da violência”, o que significaria não haver nenhuma incompatibilidade entre liberdade e autoridade, sendo desta, através do direito, que depende a efectivação daquela11. SÉRGIO, António. Democracia. Lisboa: Sá da Costa, 1974, p. 87. Ibidem, pp. 88-90. 11 PROENÇA, Raul, Páginas de Política, vol. I, ed. cit., p. 73. 9

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Em idêntico sentido, lembrava Sérgio que se a liberdade e a autoridade fossem realidades incompatíveis, nunca a primeira poderia ser assegurada pelo poder político ou ser condicionada pela segunda, já que nada nem ninguém pode garantir ou condicionar aquilo com que é incompatível, dado negá-lo, destruí-lo, aniquilá-lo. Por outro lado, cumpria atender a que o condicionamento da liberdade de alguém decorre da necessidade de respeitar a de outrem, do que resultaria, então, que é a liberdade que condiciona a autoridade, sendo esta, por isso, um meio para a liberdade, a qual é o maior bem da pessoa humana enquanto ser espiritual. Deste ponto de vista, para o ensaísta, a democracia apresenta-se como “a limitação da autoridade pela livre opinião dos que obedecem a ela”12. 6. Também quanto à relação entre liberdade e igualdade havia essencial acordo entre os dois pensadores, que viam intrínseca dependência entre os dois conceitos. Para o autor de Para um Evangelho duma acção realista no mundo real, a igualdade, entendida como igualdade social, referir-se-ia, não a uma igualdade psicológica, a uma igualdade de funções ou de faculdades, mas a uma igualdade de direitos. A democracia, no seu modo de entendê-la, não poderia deixar de reconhecer as diferenças de capacidade entre os homens, sustentando, porém, que todas as diferenças sociais que não se baseiem em diferenças de capacidade são injustas e contrárias aos interesses colectivos, sendo, por isso, ilegítimas e anti-naturais todas as diferenças de tratamento jurídico-social que decorram de considerações alheias ou exteriores ao valor próprio dos indivíduos. Deste modo, as verdadeiras aspirações democráticas exigiriam que cada um fosse tratado ou considerado de acordo com as suas capacidades e cada capacidade em função das suas obras, o mesmo é dizer que os homens deveriam “ser tratados como iguais pelo que há neles de igual e como diferentes pelo que neles há de diferente”. Esta a razão por que, para Raul Proença, a igualdade seria ilusória se não tivesse em conta as diferenças entre os indivíduos e se não desse a todos igual direito de desenvolver a sua própria personalidade, tal como a liberdade seria, igualmente, ilusória, sempre que desse a muitos dos homens o direito de ser livre sem o poder de o ser, o que provaria que a liberdade só se torna realidade quando vai de par com a igualdade.

SÉRGIO, António, Democracia, ed. cit., pp. 20-21 e 26, e Ensaios, tomo VII. Lisboa: Europa-América, 1954, pp. 211-212.

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Assim, para o pensador republicano, liberdade e igualdade constituíram “as duas faces necessárias da mesma inspiração social, do mesmo desejo de criar na terra, para todos e por todos, uma vida inteiramente humana”13. 7. Deste modo de entender os conceitos de liberdade e de igualdade decorria a distinção que ambos os pensadores faziam entre, por um lado, liberalismo político e liberalismo económico e, por outro, entre democracia política e democracia económica. Quanto à primeira, sustentava Proença não ser o liberalismo económico uma consequência necessária do liberalismo político, mas, pelo contrário, algo que está em contradição com ele, enquanto concebe a liberdade económica como a que alguns têm de se oporem, “em nome dos interesses criados, à liberdade dos demais”. Ora, o verdadeiro liberalismo implicaria, necessariamente, “uma revolução nas formas de propriedade”, que pusesse termo aos privilégios e ao despotismo que decorrem do liberalismo económico. Para o pensador, a questão económica era uma questão moral, que só poderia resolver-se quando deixasse de haver ricos e pobres e a humanidade visse “multiplicar-se à superfície da terra as fontes de generosidade e de sacrifício” e o nosso mundo se convertesse “numa mansão inteiramente habitável para os que têm sede de bondade e de beleza”14. Por seu turno, para o autor dos Ensaios, a democracia política e a democracia económica ou social pressupunham-se reciprocamente, pelo que as imperfeições da primeira decorreriam em parte significativa da ausência da segunda, chegando a escrever que o fracasso da I República haverá resultado de “ter sido fundada por gente demagógica, que não fazia a mais pequena ideia dos fundamentos morais e dos alicerces económicos de tão rudimentar democracia”15. Assim, para António Sérgio, a instauração da democracia social pressupunha, necessariamente, as instituições da democracia política, tal como o funcionamento desta dependia de um certo grau de democracia social, sob pena de o modo como se desenvolve a vida económica vir a corromper, irremediavelmente, as instituições políticas. Procurando tornar claro o seu pensamento, o filósofo notava que por democracia social entendia o sistema de vida económica cujo objectivo final é a substituição da compra e venda pela mera distribuição de objectos úteis, produzidos por equipas de serviço cívico ou pelos sócio-trabalhadores das PROENÇA, Raul, Páginas de Política, vol. I, ed. cit., pp. 73-78, 251-254 e 258-270. Ibidem, pp. 248-249. 15 SÉRGIO, António, Democracia, ed. cit., p. 6. 13

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cooperativas de consumo e das régies cooperativas. Para Sérgio, seria a República Cooperativa que, ao substituir a hegemonia do produtor pela do consumidor, tornaria efectivo o domínio da vontade geral (tal como a entendia) e lograria realizar, plenamente, a democracia. Deste modo, o socialismo liberal, ou a democracia cooperativa, constituiria, para o ensaísta, a forma mais acabada daquela concepção democrática, idealista e crítica que propunha16. 8. Para os dois pensadores que estamos considerando, o ideal democrático, porque inscrito na consciência humana, seria algo de eterno ou de intemporal, como o próprio espírito, assim como o regime democrático seria, igualmente, algo de valor permanente, embora susceptível de ser adaptado ou afeiçoado às condições concretas de cada sociedade. Já os processos técnicos de governação democrática se apresentariam como realidade eminentemente histórica, em larga medida condicionada, na sua configuração concreta, pela situação social e pelas circunstâncias de cada comunidade política e de cada época, subordinados, contudo, à ideia de que só há verdadeira democracia onde houver representação da opinião pública e fiscalização do exercício do poder pelos seus titulares. A representação liga-se, por um lado, ao critério dessa mesma representação e, por outro, ao problema do sufrágio. Quanto ao primeiro aspecto do problema, e em vésperas de instauração de um regime que se autodenominava corporativo, não deixava António Sérgio de notar que tanto os legisladores como os fiscalizadores não deveriam ser representantes de classes ou grupos profissionais ou sociais que acabariam por exprimir, inevitavelmente, a vontade da respectiva classe, mas representar, antes, o interesse geral ou a vontade geral, tal como o autor dos Ensaios a pensava17. Também Raul Proença perfilhava uma visão idêntica, quando criticava as propostas integralistas de substituição da pura representação política, escolhida através do sufrágio popular, e com funções deliberativas por um organismo de representação de classes, recrutado, exclusivamente, no seio dessas mesmas classes para a representação dos seus interesses e dotado apenas de funções consultivas e não já deliberativas18. Relativamente ao sufrágio popular, inscrever -se -ia, segundo o mesmo Proença, entre o que pensava serem os “credos fundamentais da Idem, Democracia, ed. cit., pp. 91-94 e Ensaios, tomo VII, ed. cit., pp. 212-220. Idem, Democracia, ed. cit., p. 87 e Ensaios, tomo VII, ed. cit., pp. 217 e 219. 18 PROENÇA, Raul, Páginas de Política, vol. I, ed. cit., pp. 26-27. 16 17

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democracia”19. Entendia o pensador ser evidente que a liberdade pura não poderia deixar de exigir sempre a absoluta unanimidade, a qual, no entanto, tornaria impossível a existência do Estado. Daí a necessidade de uma técnica que torne possível a elaboração de normas jurídicas, não deixando, contudo, de assegurar o reconhecimento do igual valor, em conjunto, das pessoas, que, como vimos, constituía, para Proença, a base primeira da democracia. Deste modo, seria necessário que a parte de vontade com que cada um contribui para a formação da vontade geral não fosse, em caso algum, considerada como múltipla da vontade dos outros, o que só o método maioritário e o princípio das maiorias poderia garantir20. Outro aspecto fundamental que cumpriria assegurar, para evitar os abusos de poder, quer estes provenham do despotismo, quer resultem do aproveitamento dos meios de poder para vantagem ou proveito único dos governantes, quer decorram de exercício ilimitado desse mesmo poder, seria, por um lado, a sua limitação jurídica e, por outro, o achar-se o poder executivo subordinado sempre ao poder parlamentar e à sua permanente fiscalização21.

Ibidem, p. 54. Ibidem, pp. 232-233. 21 Ibidem, pp. 308-309 e 311. Cf. DIONÍSIO, J. Sant’Anna. O Pensamento Especulativo e Agente de Raul Proença. Porto: Seara Nova, 1949, pp. 57-102; PEREIRA, José Esteves. Percursos de História das Ideias. Lisboa: INCM, 2004, pp. 245-259; e TEIXEIRA, A. Braz. Conceito e Formas de Democracia em Portugal e Outros Estudos de História das Ideias. Lisboa: Sílabo, 2008, pp. 13-55. 19

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A ideia de democracia em Raul Proença e António Sérgio

Ordem e ditadura no pensamento de Raul Proença LUÍS BIGOTTE CHORÃO Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra

Todo o bom senso em política está num equilíbrio entre a Autoridade e a Liberdade (que não só não são incompatíveis, como, realmente, a condição uma da outra), entre a obediência aos poderes e o controle dos poderes. Raul Proença, Seara Nova, n.º 225, 6 de Novembro de 1930.

Quero antes de mais dirigir uma palavra de agradecimento aos organizadores deste Congresso e dizer-lhes o quanto me honraram com o convite para participar nestes trabalhos. É uma oportunidade muito grata para uma reflexão sobre um notável movimento da cultura portuguesa do século XX, cujo prestígio intelectual e cívico muito ficou a dever às singulares personalidades de Raul Proença, Jaime Cortesão e António Sérgio. Talvez em nenhuma outra ocasião académica tenha sentido, como nesta circunstância, a necessidade de fazer como que uma declaração de interesses, revelando-lhes, como ponto prévio, que não me apresento aqui apenas para falar de Raul Proença, em concreto sobre certas perspectivas do seu pensamento político, porque sinto ser verdadeiramente minha intenção, invocar o seu nome, o seu exemplo, apontá-lo mesmo como uma referência cívica. Aqueles que como eu valorizam, no domínio da investigação histórica, as pessoas, em concreto, e entendem até o seu labor como destinado primacialmente a revelá-las e ao seu pensamento, é natural que ao longo dos anos se tenham cruzado com personalidades com as quais, por esta ou aquela razão, criaram relações de particular simpatia. Mas tenho aqui que ser inteiramente sincero: com a figura de Raul Proença relacionei-me de um modo muito especial, tão especial que temo por vezes que a objectividade que me imponho como historiador seja beliscada pelos sentimentos de respeito e admiração pelo Homem e pela sua Obra. O meu contacto com Proença não se fez primeiramente a partir dos seus escritos, mas antes dos daqueles que o combateram; quer dizer, remei da Nação Portuguesa para a Seara Nova, e talvez por ter sido esse o percurso,

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a aproximação ao escritor político, ao homem de ideias, ao polemista, não me revelou só a exterioridade dum pensamento combativo, mas constituiuse num irrecusável convite à tentativa de compreensão do pensador, da sua personalidade, dos traços do seu carácter, do seu percurso pessoal e político, até da sua tragédia humana. Não acrescentarei por certo nada de particularmente valioso ao que outros muito melhor do que eu trouxeram e vão trazer a estes trabalhos, e naturalmente ao que está escrito, e tão bem escrito, nalguns casos, sobre a figura e a obra de Raul Proença, mas queria sublinhar, antes de mais, servindo-me até das palavras do nosso escritor, algumas marcas da sua personalidade que constituem chaves para a compreensão do seu pensamento activo. Refiro-me, por um lado, à exemplar coerência da sua vida, excepcionalmente ilustrada nas inspiradas páginas biográficas que António Reis dedica a Raul Proença1. Por outro lado, à sua aversão por tudo quanto dizia ser “anedótico e não visava ao essencial”, e, ainda, também, o que com a sua proverbial genuinidade disse Raul Proença ter constituído uma “lógica quase sempre inflexível” (entenda-se da sua obra), notando havê-la construído a partir de certos “postulados iniciais” que identificou com os valores da democracia liberal e socialista2. Creio que só compreendendo estas características fundamentais da sua personalidade, que se confundiram com as directrizes inflexíveis do seu pensamento, podemos entender a sua obra, a sua intervenção cívica, na qual não raro se desvenda o dramatismo das circunstâncias em que se desenvolveu, circunstâncias essas vividas, aliás, intensamente por Proença, e que determinaram, como não podia deixar de suceder, o modo grave e ideologicamente comprometido como reflectiu as realidades nacional, e também internacional. Na verdade, só neste quadro é possível apreender o que Proença escreveu, ou deixou nalguns casos apenas sugerido, sobre a ordem e a ditadura, temas de permanente actualidade ao longo de toda a sua vida activa, marcada (internamente) pela crise do modelo institucional da Constituição Política de 1911 – que acabaria por colapsar em 1926, abrindo passo à Ditadura Militar e ao Estado Novo –, mas, igualmente, pelas ameaças totalitárias cujo sentido arrasador das liberdades individuais foi claramente Cf. REIS, António. Raul Proença, Biografia de um Intelectual Político Republicano, vol. 1. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003, passim. 2 Cf. PROENÇA, Raul. Páginas de Política. 2.ª Série (1921-1923). Com um prefácio e notas do autor. Lisboa: Seara Nova, 1939, p. 8. 1

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pressentido por Raul Proença e tanto e tão justificadamente afligiram a sua escrupulosa consciência democrática. As páginas da Seara Nova constituem um rico repositório das ideias de Proença; foi nelas que definiu posições em momentos particularmente significativos da vida do país, e a revista, ou, talvez, melhor, o projecto de intervenção cívica que a tomou como instrumento, ele próprio, constituiu em si mesmo um apelo, um apelo em cuja génese se cruza uma assumida, diria mesmo desesperada consciência da crise, com a convicção benévola, porventura até, permitam-me que o diga, ingénua, de que a República era ainda politicamente reformável se as elites, como deviam, se comprometessem com a vida política nacional, sabendo interpretar e realizar o interesse geral que era no conceito de Proença o objectivo do Poder. Mas convém desde já afirmar que o pensamento de Proença da sua fase seareira não pode deixar de ser interpretado à luz do que ao longo dos anos deixara escrito, fosse na imprensa local ou regional ou nos jornais de mais vasta circulação. Mas também no que claramente se depreende da sua relação epistolar com António Sérgio, sobretudo no que à questão do regime respeitava, e nas dissensões profundas entre ambos na leitura da experiência política concreta, sobretudo dos primeiros anos da I República3. Aliás, julgo que esse diálogo epistolar com Sérgio – lamentavelmente truncado –, mas nem por isso imperceptível, é revelador da coerência essencial de Proença, cujo republicanismo parlamentarista o impediu sempre de tergiversar perante experiências como a da governação de Pimenta de Castro ou a ditadura Sidonista. Se havia sido claríssima a sua posição em face do franquismo, a coerência, porque de coerência se tratou, colocou-o necessariamente como tenaz opositor de todas as tentativas de subversão da ordem constitucional republicana. Tendo formado cedo as suas convicções, colocou ao serviço delas toda a combatividade do seu espírito independente e o seu patriotismo, não – para utilizarmos as suas palavras – um “patriotismo estéril”, mas 3

Cf. SÉRGIO, António. Correspondência para Raul Proença. Organização e introdução de José Carlos González, com um estudo de Fernando Piteira Santos. Lisboa: Publicações Dom Quixote: Biblioteca Nacional, 1987, passim. António Sérgio acusou Proença de espírito parti-pris, de fanatismo republicano: “Seria para mim um dia de felicidade aquele em que o soubesse já livre enfim dessas cadeias de papagaio em que prendeu um espírito para voar alto. Queria vê-lo tão liberto como eu da frioleira monárquica e da frioleira republicana, e tão disposto como eu a bem servir o seu país com qualquer tabuleta, contanto que nos chamados ‘dirigentes’ apareçam a inteligência e a decência bastantes para aproveitar os seus e os meus serviços” (Ibidem, p. 72).

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um patriotismo traduzido numa consciência cívica que nunca lhe deixou margem de manobra para compromissos com os “politiqueiros”, que dizia – isto ainda nos anos do fim da monarquia – tripudiarem “sobre um montão de inconsciências, numa reinata fresca de gente sem escrúpulos”4. Na degradação política e moral5 de um regime, Proença encontrava razões de esperança num Portugal republicano. Em resposta a Ribera y Rovira, Proença escreveu significativamente: O que o partido republicano pretende, em Portugal, é acordar esse montão de coisas, dar-lhes espírito, insuflar-lhes a vida, gerar-lhes o dinamismo das iniciativas, pô-las de pé, agitá-las, espicaçá-las, injectar-lhes – que diabo! – ferro hemoglobinizador nos vasos sanguíneos, e implantar enfim, sobre essa base legítima de vitalidade e sobre esse alicerce sólido de consciência uma República poderosa, poderosa não pela força dos seus soldados, mas pela harmonia inalterável do seu viver colectivo, pela superioridade incontradictável do seu governo democrático6.

Já anteriormente, o jornal Democracia do Sul publicara na íntegra um discurso de propaganda que Raul Proença proferira em São Martinho do Porto sobre o tema: “O que é a República”. Nessa confissão de republicanismo, esclarece a superioridade da República que define como a “forma de governo que substitui o princípio da hereditariedade […] pelo princípio da eleição”. Para Proença, nessa “proposição” residia “toda a diferença fundamental entre dois regimes”: A monarquia suprime a responsabilidade ao seu maior dignitário. A República não nega responsabilidades a ninguém, antes as pede no grau da sua importância social, porque a responsabilidade é a expressão pessoal da liberdade e da dignidade humana7.

Mas a República propagandeada por Proença era sobretudo uma República de liberdades: liberdade de pensamento, liberdade de manifestação, liberdade de religião, liberdade de cultos. Cf. PROENÇA, Raul. Polémicas. Organização, prefácio e cronologia de Daniel Pires. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1988, p. 166. 5 Tal como observa NATÁRIO, Celeste. O Pensamento Filosófico de Raul Proença. Lisboa: INCM, 2005, pp. 135-136, as “preocupações de índole ética e moral com vista ao aperfeiçoamento humano e sua dignidade não são esquecidas em momento algum do seu percurso intelectual, independentemente dos temas sobre os quais se debruçou e da época ou fase da sua vida”. 6 Cf. PROENÇA, Raul, Polémicas, ed. cit., p. 166. 7 Cf. Democracia do Sul, n.º 256, 2 de Março de 1907. Ainda o mesmo periódico: n.os 257 e 258, respectivamente de 9 de Março e 16 de Março seguintes. 4

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Um texto admirável dado à publicidade nas páginas de A Águia, em Julho de 1915, sob o título, Da ditadura à suspensão dos direitos políticos, é exemplar da censura de Proença à solução governativa encontrada por Manuel de Arriaga, qual foi a de chamar Pimenta de Castro para a presidência do ministério, com o consequente encerramento forçado do Parlamento. Mas esse artigo vale sobretudo pela desconstrução que Raul Proença faz dos alegados “méritos” da projectada acção do Governo, constituindo-se numa peça fundamental para a compreensão do seu pensamento sobre, em geral, o fenómeno ditatorial (entendido aqui naturalmente no sentido da chamada “interrupção da normalidade constitucional”)8. Certamente merecerá a pena lembrar que esse fenómeno, recurso habitual durante o constitucionalismo monárquico, acabou por determinar que a ditadura se tivesse transformado num expediente recorrente da vida política nacional, inscrevendo-a inclusivamente entre as matérias de estudo obrigatório dos alunos de Direito9. Curiosamente, entre as entradas na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, registadas por Jacinto Baptista, que foram atribuídas total ou parcialmente a António Sérgio, inscreve-se o vocábulo Ditadura10. Na coluna que lhe dedica, Sérgio sublinha as “notáveis variações de sentido” que o termo sofreu no decurso da história, encarregando-se de dar notícia, com certo detalhe, da “ditadura temporária” da República Romana. Mas referindo-se já à época contemporânea, escreveu: Porém, nos tempos que se seguiram à Primeira Grande Guerra de 1914-18, manifestou-se uma larga tendência para usar o termo ‘ditadura’ como sinónimo de poder incontrolado, autocrático. Na ditadura propriamente dita a suspensão de algumas garantias constitucionais tivera no passado por objectivo a salvação da própria constituição considerada na sua generalidade; nas chamadas ‘ditaduras’ do pós-guerra a governação constitucional foi na maioria dos casos totalmente abolida por vontade de uma parte da nação, dispensando as provas usuais do assentimento popular. Os parlamentos foram fechados ou modificados na sua natureza, condicionada a garantia dos direitos públicos e privados e concentrados Cf. A Águia. Porto, n.º 43, II série, Julho de 1915. O texto encontra-se reproduzido em PROENÇA, Raul. Antologia, vol. 2. Prefácio, selecção e notas de António Reis. Lisboa: Ministério da Cultura em colaboração com a Direcção-Geral da Comunicação Social, 1985, pp. 19-34. 9 Sobre o tema, cf. CHORÃO, Luís Bigotte. A Crise da República e a Ditadura Militar. Lisboa: Sextante, 2009, pp. 330-338. 10 Cf. BAPTISTA, Jacinto. António Sérgio Enciclopedista. Lisboa: Edições Colibri, 1997, p. 48. 8

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todos os poderes na pessoa de um ‘chefe’ a cuja autoridade não foi marcado qualquer limite de duração, ao contrário do que sucedia com as ditaduras dos Romanos11.

Esta alusão – ainda para mais com o benefício de ser ilustrada pelas palavras de Sérgio –, justifico-a com a imperiosa necessidade de na discussão do nosso tema não poder ser dispensada a consideração do quadro epocal em que certas afirmações e juízos foram proferidos, porque a “época” influi decisivamente na conformação do significado das realidades políticas. Fechado este parêntesis, e ainda a respeito do que considerou ser uma “miseranda ditadura” de um “homem sem ideias, sem planos, sem energia”, perguntou Proença: Fez o governo a pacificação nacional tão ardorosamente anunciada? […] Restabeleceu Pimenta de Castro o império da lei? […] Permitiu o governo ditatorial a expressão do pensamento individual com toda a amplitude legítima? Restaurou a ditadura, ao menos, a disciplina […] Conseguiu o governo do Sr. Pimenta de Castro integrar os monárquicos na República? […] Quis o governo da ditadura presidir a umas eleições libérrimas e imparciais?

A todas essas questões respondeu negativamente, para concluir, afirmando ser “absolutamente justificada”, contra uma ditadura “abominável”, a Revolução, até porque, notou, “era preciso dar uma lição a quem quisera estabelecer formas autoritárias absolutas numa democracia nascente”12. Para dois aspectos, em particular, nos permitimos chamar a atenção. Em primeiro lugar, na lógica argumentativa de Proença, a ditadura não satisfizera nenhum dos seus proclamados objectivos, nem “ao menos” restaurara a disciplina, tendo promovido, antes, a “indisciplina contra os vencidos”. Proença sublinhou, aliás, que o movimento que originara a ditadura fora “em si, um acto de indisciplina, e da pior”. A sua censura não se dirigiu apenas a Pimenta de Castro, visou, também, em geral, a solução ditatorial identificada no texto de A Águia com as referidas “formas autoritárias absolutas”, no juízo de Proença inaceitáveis, para mais, numa “democracia nascente”. O que afinal censurava Raul Proença à ditadura era, muito paradoxalmente, que não tivesse sabido realizar a democracia, tal como sempre a imaginara: imperiosa realização de uma República assumida, radical nos Cf. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. IX. Lisboa/Rio de Janeiro: Editorial Enciclopédia, pp. 160-161. 12 Cf. A Águia, n.º 43, ed. cit., e PROENÇA, Raul, Antologia, vol. 2, ed. cit., pp. 23-25 e 31. 11

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seus valores, mas ordeira, disciplinada, subordinada à lei, garantidora do exercício das liberdades, desde logo da de expressão – a cuja defesa e garantia se mostrou sempre tão sensível –, enfim, República legitimada por eleições livres. Diferentemente, Sérgio notou que lhe parecia haver algo de interessante na ditadura de Pimenta de Castro; falava a respeito no “indício de uma reacção da consciência dos melhores contra a tirania dos ‘parlamentares’ e dos facciosos”. Só o desalentava a figura do ditador que se revelara aos seus olhos, “uma bem mesquinha, pateta e insignificante pessoa para encarar tão nobre causa”13. Raul Proença não deverá ter-se impressionado com a posição do seu contendor epistolar, amigo querido e companheiro de tantos combates. Em Dezembro de 1912, Sérgio escrevera-lhe: Sem tirania governa-se e deve-se governar num país educado, constituído, organizado; mas temo bem que sem tirania não será possível meter na organização um país em que o governo, as classes dirigentes são uma súcia de bandidos, charlatães e parasitas, como entre nós. Eu peço a tirania, mas uma tirania trocada em miúdos. Em cada repartição, em cada escola, em cada quartel, em cada instituto, um pequeno tirano cheio de boa vontade e de saber concreto, capaz de resistir à força acumulada e asfixiante da imoralidade hereditária, que já deixou mesmo de ser imoral, de tal maneira entrou nos costumes14.

Para Proença, a sociedade era um meio de garantia e não um processo de opressão15; por isso se compreende que a defesa da democracia se lhe tenha apresentado como uma necessidade prévia16 e a liberdade como questão fundamental, fim supremo17. Se revelara já uma total incompreensão com Pimenta de Castro, Proença coloca-se naturalmente entre os adversários da “República Nova”. Sobre Sidónio e a “situação” saída do 8 de Dezembro, deixou Proença nas páginas da revista Pela Grei a sua posição. Em colaboração dedicada a “O Problema das Bibliotecas em Portugal”, desmentiu, ao contrário de outros, Cf. SÉRGIO, António, Correspondência para Raul Proença, ed. cit., pp. 136-137. Ibidem, p. 40. 15 Cf. Alma Nacional. Revista Republicana. Lisboa, n.º 29, 25 de Agosto de 1910, p. 463. Ainda, SANTOS, Fernando Piteira. Raul Proença e a “Alma Nacional”. Da colaboração com António José de Almeida à ruptura. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1979, pp. 196-200. (Estudos e Documentos, 156) 16 Cf. Seara Nova, Lisboa, n.º 158, 25 de Abril de 1929, p. 211. 17 Cf. Seara Nova, Lisboa, n.º 239, 19 de Fevereiro de 1931, pp. 354 e 367. 13

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que olhasse o momento político como uma qualquer “oportunidade”, logo clarificando a sua atitude: num país de revoluções, estava ainda por fazer a Revolução, e, no que às bibliotecas dizia respeito, não esperava senão, como disse, “retaliações políticas ou simples pirotecnia legífera”18. António Sérgio, que dirigia a revista, logo lhe escreveu: Recorro do Proença-partidário-furioso para o Proença-homem-lúcido-egentleman. Pode ser que Sidónio seja tudo quanto me diz e pior ainda; mas o director duma revista séria, órgão de uma sociedade complexa, não pode publicar ataques pessoais seja a quem for19.

Ao “Proença-homem-lúcido” não repugnava uma República nova, mas, conforme haveria de escrever, uma República nova que ao contrário da de Sidónio se preparasse em plena luz, e não na escuridão das alfurjas revolucionárias, que vivesse do apoio dos republicanos e não do dos monárquicos, que trabalhasse para a realização de ideias radicais e não conservadoras, e fosse “enfim a salvação definitiva da República e não a mise-en-scène da restauração monárquica”20. Na definição das directrizes duma acção cívica, que expressamente quiseram que se desenvolvesse sem se confundir com um partido político, os intelectuais do grupo fundador da Seara logo se declaram alheados dos partidos políticos mas não da vida política. Isso mesmo irá suceder. Dizendo pretenderem realizar “em nome de toda a elite portuguesa, o seu acto de contrição”, declararam como necessidade descer “até à corrente que transporta os gérmenes da sociedade futura”, para nela lançarem o seu próprio sangue. O que em suma se propunham era “uma violenta e sistemática atitude de protesto”, “perante a expoliação, a rapina, o egoísmo e a mentira nacionais”21. Em síntese, como ficou expresso no número primeiro da Seara: Longe, pois, de termos de retroceder até aos últimos dias de Setembro de 1910, como querem os monárquicos tradicionais, ou ainda mais para Cf. Pela Grei, n.º 3, 1918, p. 168. Referindo-se ao 5 de Dezembro de 1917, escreveu Proença: “Ainda há pouco ouvimos troar o canhão porque não havia verdade, nem liberdade, nem competência. E o que vemos? Que o critério de verdade e liberdade continua a ser unilateral, que tudo prossegue no mesmo regime de imprensa consentida, no mesmo regime de ficções, no mesmo regime de incompetências petulantes e ambiciosas”. 19 Cf. SÉRGIO, António, Correspondência para Raul Proença, ed. cit., p. 146. 20 Cf. Seara Nova, Lisboa, n.º 2, 5 de Novembro de 1921, p. 63. 21 Cf. Seara Nova, Lisboa, n.º 1, 15 de Outubro de 1921, pp. 1-3. 18

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além, como querem os monárquicos tradicionalistas, devemos regressar ao 5 de Outubro, mas regressar avançando, caminhando numa direcção inteiramente diversa e numa atitude de espírito inteiramente nova22.

Por trágica ironia, a Seara Nova deu-se a conhecer a escassos quatro dias da brutalidade do 19 de Outubro, em que uma coligação de interesses radicais parecia apostada na definitiva inviabilização do regime, precipitando o país num abismo sanguinário. O estupor desse momento expressou-o logo Raul Proença. Falou, então, na mais “perigosa das utopias” que levara o país à “epilepsia da desordem”, e sem conceder no que de “boas intenções” pudesse haver na orientação política do movimento, lembrou o que pela sua pena ficara categoricamente afirmado no número inaugural da Seara: Todos os processos de assalto revolucionário, em que o poder é tomado por surpresa, sem o esclarecimento prévio do país sobre as intenções dos seus dirigentes, só poderão esperar da nossa parte, e sejam quais forem os princípios de que pretendam inspirar-se, a mais formal e indignada condenação23.

Na ordem de prioridades de Proença no que respeitava à salvação do país, em primeiro lugar colocavam-se os objectivos, as condições prévias “duma renovação da mentalidade, dum vasto movimento democrático em que todas as soluções [fossem] debatidas, esclarecidas e vulgarizadas”24. Facto relevante, aquela lembrada passagem do programa da Seara aparecia sublinhada em itálico: e sejam quais forem os princípios de que pretendam inspirar-se. É que na verdade, a condenação dos assaltos revolucionários não visava apenas os inspirados pelo espírito das direitas, mas todos, como o demonstrará cabalmente Raul Proença em crítica implacável a Emílio Costa25. 24 25 22 23

Cf. ibidem, p. 3. Cf. Seara Nova, n.º 2, p. 36. Cf. ibidem, p. 36. Cf. PROENÇA, Raul, Polémicas, ed. cit., pp. 547-551. Já na Seara Nova, n.º 22, de Abril de 1923, p. 153, quando da remodelação da redacção da revista e da “adesão” a ela de António Sérgio, ponderou Proença: “Continuaremos a ser republicanos de tendência socialista – quer dizer, a aceitar o princípio da intervenção do estado na regulamentação das actividades, para pôr termo na medida do possível à anarquia económica, e estabelecer progressivamente a maior justiça distributiva compatível com as condições necessárias de todo o trabalho colectivo e os interesses da produção – o que é justamente o contrário do bolchevismo, pois que nem este admite qualquer espécie de ‘progressividade’, nem procura realizar, no fundo, a justiça distributiva, nem respeita as condições reais do exercício das actividades económicas”.

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Se os acontecimentos políticos acentuavam a pertinência cívica e cultural da Seara, ao mesmo tempo revelavam a sua insuficiência política prática. Num momento em que o apelo à Ordem, o apelo autoritário, denunciava perante a passividade de amplos sectores partidários, o carácter patologicamente irreformável do sistema político, Raul Proença esforçava ainda uma reacção crítica para denunciar que a ordem que vinha sendo exigida trazia sempre uma “revoluçãozinha engatilhada”, e esclarecia, quanto ao problema, o seu ponto de vista: […] damos talvez à palavra ordem um sentido diferente do que lhe dão os defensores oficiais da “ordem”. Para nós, em primeiro lugar, a ordem não é uma coisa estática, que existe, e não tem outra missão a realizar senão existir. A ordem é um princípio que se realiza dia a dia, por constantes aproximações, por um acréscimo constante de justiça. Em vez de opormos a ordem e o progresso, para os pretendermos conciliar, como na célebre fórmula comteana, para nós o verdadeiro progresso é o progresso da ordem. Em segundo lugar, nós não chamamos ordem à desorganização social e política; aos apetites sórdidos, à concupiscência sem princípios dos partidos; às oligarquias avaras do sangue da nação; à exploração sistemática do alto comércio, da alta finança, aos lucros de 100 por cento, à compreensão asfixiante do consumidor, ao regime da fome geral em proveito duma minoria pletórica. A isso tudo, e a muita mais, recusamonos a chamar ordem26.

A pouca distância do 28 de Maio, Raul Proença reafirmou a sua posição: A Ordem – a Ordem, que não pode conceber-se senão como um equilíbrio de vontades e pensamentos divergentes – como a afirmação duma Unidade espiritual na diversidade do Múltiplo – que não pode ser imposta violentamente aos espíritos sem se renegar – que só assegura o seu triunfo quando o meu direito e o direito do meu adversário são reconhecidos […]27.

Desde os alvores constituintes do regime que tinha sido chamada a atenção para o erro político de se inutilizar o Presidente da República, não lhe concedendo a faculdade de dissolução do parlamento. Criar-se-ia, entretanto, aparentemente, à volta do tema um amplo consenso, preconizando-se uma reforma constitucional destinada a evitar os perigos do balanceamento do regime entre a legalidade e a excepção. O que geralmente se afirmou como constituindo objectivo dessa reforma, Cf. Seara Nova, Lisboa, n.º 6, 14 de Janeiro de 1922, p. 161. Cf. Seara Nova, Lisboa, n.º 77, 6 de Março de 1926, p. 85.

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tinha por finalidade impedir que se repetissem experiências governativas como a de Pimenta de Castro ou derivas assumidamente anti-constitucionais como a do Sidonismo, tentando criar as condições de defesa do regime desde logo através da solução das “crises políticas” em estrita obediência às regras da Constituição. A vida vivida do regime demonstrou que ou este aceitava reformar-se ou a “revolução” se incumbiria de o condenar. A “obstinação no contrasenso”28 acabaria por lançar o país num caminho sem retorno, o que foi claramente intuído por Proença. Quando este redige o programa da Seara, assiste-lhe a autoridade de uma consciência profundamente democrática e profundamente republicana, mas absolutamente ciente das entorses político-institucionais do regime, a que acrescia o desfalecimento da consciência republicana, diagnosticando mesmo um “caso” de “inanidade mental do regime”29. Tendo-se afirmado sempre contra as tentações ordeiristas, nas quais viu geralmente desrespeito pela legalidade constitucional e descrendo da salvação do país por via de zaragatas triunfantes30, a Proença repugnava nessas aventuras o que elas traduziam, sobretudo de desconsideração pela instituição parlamentar. A consciência dos “perigos extremos da crise portuguesa” que conduziu à formulação do Programa mínimo de salvação pública, a esse proclamado “programa de governação extraordinária”, não implicava com a ordem constitucional, já que era aos partidos que a Seara deixava a incumbência de agirem politicamente, “aproveitando”, se desejassem, esse Programa, continuando a Seara a reservar para si o estatuto de “grupo de orientação doutrinária, formador de correntes de opinião”31. Não obstante, a reforma da Constituição surgia à cabeça imaginada com o propósito de assegurar a “representação das competências técnicas ao lado das políticas e a garantir mais eficazmente a separação de poderes”. Raul Proença explicaria que ao aludir o Programa à representação das competências técnicas ao lado das políticas, não tinha o propósito de se referir à função executiva, mas sim à parlamentar, já que condenava o prosseguimento do que se lhe afigurava um “pleonasmo absurdo” que consistia na existência de duas câmaras

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Cf. Seara Nova, Lisboa, n.º 9, 1 de Março de 1922, p. 217. Cf. Seara Nova, n.º 1, p. 6. Cf. Seara Nova, Lisboa, n.º 20, Dezembro-Janeiro de 1923, p. 125. Cf. Seara Nova, Lisboa, n.º 12, 15 de Abril de 1922, pp. 297-302.

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eleitas pelo mesmo corpo eleitoral, segundo o mesmo sistema de sufrágio e para os mesmos fins32. O Apelo à Nação aparecido nas páginas da Seara em Março de 1923 assentava na afirmação de que o país vivia uma “gravíssima situação”, que tornara de “urgência extrema” a “obra de reorganização nacional”, através de uma “governação excepcional”. Ora, de acordo com o Apelo, essa “obra” seria irrealizável, e por consequência irrealizável a “salvação pública” sem que um Governo “exercesse, durante certo período, poderes excepcionais e amplos”, parecendo aos patrocinadores do manifesto que o “melhor meio para isso consistiria em lhe serem concedidos estes pelo Congresso, com adiamento das sessões pelo prazo indispensável”33. Na Carta Aberta dirigida pelo grupo Seara Nova ao Presidente da República, o problema político é exposto, considerando-se “necessária” a reforma do regime parlamentar, tendo sido expresso o desejo de que o Presidente pudesse agir “mais liberto dos parlamentos”, não limitando a sua função ao de “máquina de assinar papéis”, por outras palavras que pudesse passar a “defender legalíssimamente a vontade da Nação” quando o parlamento e os partidos se divorciassem dessa vontade34. À questão central que estivera na origem do problema político da República chegava tarde a Seara. No que a Raul Proença respeitou, afigura-se-nos que a sua análise – e o que dela se reflectiu nos textos que subscreveu a título singular ou naqueles outros assumidos colectivamente –, foi sempre condicionada pela sua convicção parlamentarista. Na verdade, o repúdio do parlamento interpretou-o Proença como repúdio da essência da própria democracia, no sentido de que esta só poderia realizar-se num quadro de representação política, em que se destacasse maximamente a instituição parlamentar à qual, além de poderes legislativos, incumbiria exercer indelegáveis competências de fiscalização35. Esta perspectiva sobre a organização dos poderes do Estado democrático manteve-a coerentemente Proença ao longo do tempo, e em si mesmo constituiu uma prova inequívoca da sua oposição à ditadura, só mesmo admitindo o exercício de poderes excepcionais pelo executivo no caso de se verificar uma prévia autorização parlamentar. Cf. Seara Nova, Lisboa, n.º 14, 1 de Junho de 1922, p. 27. Ainda, REIS, António, Raul Proença, ed. cit., pp. 337-338. 33 Cf. Seara Nova, Lisboa, n.º 21, Março de 1923, pp. 129-135. 34 Cf. Seara Nova, Lisboa, n.º 27 (s.d., mas de Outubro-Novembro de 1923), pp. 51-54. 35 Cf. Seara Nova, Lisboa, n.º 54, 3 de Outubro de 1925, p. 117. 32

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Claro está que tal autorização não salvaria o exercício desses poderes de um juízo de inconstitucionalidade em face do que dispunha a Constituição Política vigente à época. Essa repulsa por parte de Proença em relação à ditadura, que eu me atreveria a qualificar de idiossincrática, justificou a posição expressa numa polémica com Filomeno da Câmara, em 1924, a respeito da Acção Nacional. Em carta dirigida ao director do Diário de Lisboa, que subscreveu juntamente com Câmara Reis, Jaime Cortesão, Raul Brandão e Sarmento Pimentel, a par do reconhecimento de que poderiam julgar imprescindível, como medida transitória de salvação pública, uma revolução nacional feita fora do parlamento ou sem o parlamento, nunca auxiliariam, porém, “directa ou indirectamente, qualquer movimento que tivesse como lema: o parlamentarismo, eis o inimigo, pois, como democratas de verdade, eram pelo prosseguimento do regime parlamentarista, sem o qual não concebiam sequer a existência duma democracia”36. Nessa circunstância, o grupo da Seara referiu ainda entender que o parlamento, tal como era constituído, não realizava a organização do Estado democrático e que devia haver, ao lado do parlamento político, que tinha por finalidade representar a opinião pública organizada, um parlamento técnico, que representasse a competência organizada, sendo além do mais necessário introduzir alterações fundamentais na Constituição Política, consagrando mais latos poderes ao Presidente da República37. Por coincidência, no mesmo número da Seara Nova que deu a conhecer essa posição do grupo, Raul Proença cuidou expressamente da Ditadura. Contraditando a ideia segundo a qual “só a ditadura nos poderá salvar”, que comparava a um “credo”, a um “padre-nosso de conto do vigário universal”, aludia ao que definiu por “boa ditadura”. Essa, em sua opinião, poderia vir um dia, mas não seria de um dia para o outro, “de arranco, de surpresa, como a sorte grande do Natal”. Por uma razão simples; é que essa “boa ditadura” se viesse, se tivesse que vir, já ninguém a estranharia, porque antes de ter tomado conta do Poder já teria tomado conta das almas. Só por ser utópica essa ideia de Raul Proença encontra coerência com a defesa do parlamento feita nesse mesmo texto e com o apelo à defesa dessa instituição contra o que definia como a “ameaça do desconhecido”, porque de uma coisa não tinha dúvidas: as ditaduras haviam sido entre nós mil vezes mais nefastas que os parlamentos38. Cf. Seara Nova, Lisboa, n.º 32, 1 de Março de 1924, p. 165. Cf. Seara Nova, n.º 32, p. 166. 38 Cf. ibidem, pp. 153-155. 36 37

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Esta mesma perspectiva está na base da censura de Proença ao golpe do general Primo de Rivera, em Espanha, às tentativas golpistas, entre nós, em 1925 e a sua reacção indignada às absolvições, sobretudo dos implicados no 18 de Abril. Do mesmo modo, quando em Março de 1926 reflectiu a respeito do fascismo e das suas repercussões, expressou a ideia fundamental de que não havia forma de suprimir a democracia em qualquer país civilizado da Europa senão pelo recurso permanente à repressão executória e criminal. “Estes regimes antidemocráticos – escreveu –, só podem manter-se, pois, nas actuais circunstâncias do mundo, por um permanente acesso de violência. A loucura, a criminalidade têm de estar no próprio coração do sistema”. Vindas de Proença, tais afirmações só podem ter um significado: o da recusa, por princípio, da ditadura, não obstante a reconhecida admissão, “em certos casos”, da sua “necessidade”, sempre, porém, “muito transitória” e inspirada permanentemente por um espírito que tivesse o sentido de “uma evolução para a Democracia”, quer dizer, nas suas palavras, “fazer evoluir os fins da democracia tornando-a mais justa e organizar os seus métodos, tornando-a mais eficiente”39. Em Maio de 1926, um antigo Ministro da Guerra do gabinete Álvaro de Castro, o coronel Ribeiro de Carvalho, cuja demissão tinha precipitado o abandono desse ministério por parte de António Sérgio e Azevedo Gomes, acompanha em Belém o Presidente Bernardino Machado. Encarregado por este de convidar Cabeçadas a constituir Governo, Ribeiro de Carvalho relatou a sua diligência, assim: Dei-lhe conta da minha missão, e ele [referia-se a Cabeçadas] aceitou naturalmente o encargo de formar governo. Disse-lhe em seguida que, sendo provável que o novo governo quisesse empregar métodos extraordinários para cumprir o programa revolucionário, o advertia de que o Doutor Bernardino Machado em nenhum caso se prestaria a praticar acto inconstitucional e sugeri-lhe então como coisa minha que havia maneira de conciliar tudo, que era ele pedir às câmaras plenos poderes para governar durante um período de 6 meses, por exemplo. Se as câmaras lho recusassem ficariam elas e não ele com as responsabilidades do que viesse a suceder.

E acrescenta: Ele aceitou prontamente a ideia, sem a menor relutância, antes pelo contrário, com manifesta satisfação, porque, segundo disse, ela o aliviaria

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Cf. Seara Nova, n.º 77, p. 85.

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de uma das suas principais preocupações, que era justamente o problema presidencial.

A verdade, porém, conforme notou o emissário de Bernardino Machado, “é que não deu, que se saiba, o menor passo nesse sentido, e que nem sequer tornou públicas as condições em que aceitara o poder”, ignorando, portanto, o País “em absoluto o compromisso importante que ele assumiu ao encarregar-se, em hora decisiva, de constituir governo, compromisso cuja efectivação podia ter mudado por completo a face das coisas”40. Facto muito interessante, o plano de Ribeiro de Carvalho, tinha correspondência com aquele que Raul Proença já deixara traçado nas páginas da Seara Nova e ficou consignado no Apelo à Nação. A reacção à Ditadura Militar, designadamente através dos Opúsculos, o envolvimento nos acontecimentos de Fevereiro de 1927, a sua passagem à clandestinidade, em suma, a sua luta contra uma “bota” (a Ditadura) que era “enorme e contundente”41, conferem a Proença um estatuto de herói cívico sintetizado numa local do jornal A Batalha, de sábado, 5 de Fevereiro de 1927: Raul Proença. O conhecido escritor e panfletário Sr. Raul Proença encontrase no Porto, tendo aderido à revolta. Anda armado com outros civis que colaboram no movimento.

E termino, citando-o: Como as nossas aspirações ficaram insatisfeitas, eu ergo-as cada vez mais alto […]. Para mim isto de ser republicano foi uma coisa séria: um ideal que resistiria a todos os embates, que se afirmaria sempre, mesmo contra as suas mistificações, que procuraria realizar-se através de todos os obstáculos, porque foi o ar que eu respirei, as promessas que fiz, a palavra que empenhei, a carne da minha carne e o sangue do meu sangue42.

Cf. CARVALHO, António G. G. Ribeiro de. Prelúdios duma ditadura. Lisboa: Edição do autor, 1957, pp. 28-29. 41 Cf. Seara Nova, n.º 91, 10 de Junho de 1926, pp. 363-365. 42 Cf. Seara Nova, n.º 61, 21 de Novembro de 1925, p. 14. 40

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Os valores em Raul Proença MÁRIO BARROSO Universidade Católica Portuguesa

Raul Proença (1884-1941) foi durante toda a sua vida um homem de acção, deixando um pouco de lado a perspectiva e o pensamento especulativos. Por isso e para isso, privilegiou um conjunto de regras e princípios dos quais nunca abdicou e que foram o leme de toda a sua vida. Valores como a coerência, a tolerância, a justiça, mas sobretudo a lealdade e a liberdade foram, para Proença, o farol de uma caminhada combativa e atribulada. Apesar das muitas discordâncias e polémicas exacerbadas em que se envolveu, nunca ninguém se atreveu a questionar o rigor e a inflexibilidade da defesa dos seus ideais, mesmo quando, aparentemente, discordavam daquilo que era a matriz do seu pensamento. Para o bem e para o mal. Em Abril de 1910, Raul Proença escreve na revista Alma Nacional um artigo com o título “A coerência”1. Nele, o pensador faz a apologia da vida activa e interventiva, da vida vivida com empenho e coragem. Imagine-se que agora, já com a nossa existência a decorrer, nos é ofertada a Vida, como se se tratasse de uma peça de puzzle que nos fazia falta e que nos completava. Agora, que fizemos uma parte do nosso percurso, o da aprendizagem das coisas elementares, fundamentais para a nossa subsistência; agora, que temos as ferramentas essenciais, é-nos entregue, em bruto, um “embrulho” a que, podendo chamar-lhe qualquer outra coisa, chamamos Vida. Entende Proença que existem duas maneiras de a receber. Por um lado, podemos recebê-la de uma forma fria, mecânica, automática, desinteressada. À semelhança dos que “aceitam uma moeda, não investigam se ela é falsa, e assim a vão passando de mão em mão”2. Por outro, existem aqueles que a recebem expectantes, prontos a olhar para ela e por ela, como algo de extraordinário e único. Fazem-no assumindo um acto de “vontade e de raciocínio”3, não a aceitando por aceitar, mas recebendo-a qual “químico PROENÇA, Raul. A coerência. Alma Nacional. Lisboa, n.º 11, 21 de Abril de 1910, pp. 174-176. 2 Ibidem, p. 174. 3 Ibidem, p. 174. 1

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que não recebe o produto”4 encomendado ”sem o analisar e lhe reconhecer o valor”5, sobretudo no que às noções morais diz respeito. A proposta de Raul Proença convida a que, naturalmente, nos identifiquemos com estes últimos. Devemos pensar e repensar tudo (tudo o que já foi pensado antes de nós, inclusive o impensado). Nada deve ser aceite sem ser submetido a um exame prévio. Todas as noções, todas as heranças, das mais simples às mais profundas, “as noções de família, de pátria, de caridade, de liberdade, de tolerância, de coragem”6, devem ser analisadas e dissecadas até ao âmago. Tudo deve ser dissecado. Devemos comportarnos como se de iconoclastas nos tratássemos. Devemos cometer todas as heresias, todos os sacrilégios, conquanto dessa forma, ponhamos a nossa vida de acordo com a nossa razão. A nossa vida foi-nos oferecida, nascemos de um acto de estranhos, para o qual não fomos ouvidos. Citando Proença, “é preciso fazermos dessa vida que outros fizeram, alguma coisa que nós fazemos; de criaturas tornemo-nos criadores”7. Não nos limitemos a receber a vida; façamos, também nós, alguma coisa por ela. Claro que para que isto aconteça, para que sejamos diferentes, a coragem é fundamental. Mas, no fim, o triunfo é este: “Em vez da vida automática e passiva que tantos vivem, viver de uma vida activa, de uma vida reflectida, de uma vida pensada”8, mais rica. Na verdade, diz Proença, devemos ser como aquelas donas de casa que têm uma balança para pesar a carne e os géneros alimentícios, a fim de verificarem se não são enganadas no talho e na mercearia. Também nós devemos ter uma balança no nosso íntimo que permita pesar as nossas noções morais, aquelas que nos são entregues. Esse trabalho deve ser feito ainda com mais empenho quando a opinião geral aceita universalmente uma doutrina. Nesse caso, se o mundo inteiro aceita essa doutrina como válida, mais facilmente acontece que todos se sugestionem e a aceitem, porque todos dizem o mesmo e por isso devem ter razão. É por isso que, nestas situações, maiores suspeitas devem ser levantadas e a nossa atenção deve estar mais desperta. Note-se que isto não significa que estejamos sempre contra tudo, não significa que estejamos em desacordo com tudo e com todos, numa atitude preconcebida. Proença defende que esse tipo de atitude – o estar sempre em desacordo com os outros por simples prazer 6 7 8 4 5

Ibidem, p. 174. Ibidem, p. 174. Ibidem, p. 174. Ibidem, p. 174. Ibidem, p. 174.

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– “é tão servil, tão dependente, tão pouco livre como a dos que estão de acordo com o mundo. Só é livre quem deixa falar a Razão”9. Na verdade, atitudes de total acordo são semelhantes às de total desacordo: ambas são, no dizer de Proença, “servidões morais”10. Assim, a atitude que se aconselha, não é a obsessão pelo paradoxo (opinião contrária ao comum), não é a vaidade idiota da originalidade, mas o “acto de respeito para com os outros e de dignidade”11 para connosco próprios. Muitos dos nossos erros, dos nossos defeitos, resultam mais da moralidade que já existe na sociedade e que nós absorvemos do que da falta de moralidade de quem os pratica. Muitas vezes, por condescendência para com preceitos estabelecidos, com normas institucionalizadas, por subjugação social, pela regra do conformismo, pela inacção e por não fazermos gesto algum, é que o erro surge. Acontece também, muitas vezes, que os nossos “erros” são sancionados pela moral social. Se olharmos bem, vemos, ao contrário, que nalguns casos – de ofensa, de mentira, até de assassínio – eles estão “moralizados” e até legalizados. Assume-se, pensa Proença, a selvajaria de brutos, tida como coragem, a briga de alguns vista como valentia, e basta que alguém não “nos meta a mão na algibeira para nos furtar o relógio”12 para logo se falar de carácter. É por tudo isto que o autor alerta para a necessidade da intervenção das “consciências individuais”13 e da necessidade de elas criarem “para si mesmas o seu meio moral”14. É este alerta que o pensador quer deixar como mensagem: que verifiquemos sempre as nossas noções, reconhecendo, sempre que seja o caso, a baixeza que existe na moral. Ainda em Abril de 1910, na revista Alma Nacional, Raul Proença publica um artigo com o título “A tolerância”15. A tolerância pode ser observada sob dois sentidos. Enquanto uma obrigação moral, uma consciência de um dever ou enquanto um movimento de simpatia, um sentimento de respeito. Embora entre os dois sentidos se possa considerar uma certa relação, são, no entanto, duas maneiras bem distintas de abordar a tolerância. Na verdade, são factos distintos, pois que se fundam em princípios diferentes, podendo ter-se a tolerância-dever sem se sentir a tolerância-respeito. Ibidem, p. 174. Ibidem, p. 174. 11 Ibidem, p. 174. 12 Ibidem, p. 174. 13 Ibidem, p. 174. 14 Ibidem, p. 174. 15 PROENÇA, Raul. A tolerância. Alma Nacional. Lisboa, n.º 12, 28 de Abril de 1910, pp. 189-191. 9

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Analisando a tolerância segundo o primeiro aspecto, diz o autor que “todas as crenças têm direito a revelar-se, a exercer-se, a actuar livremente”16. Em relação à segunda acepção de tolerância, diz-nos ele que devemos “respeitar todas as crenças, e a respeitá-las de duas maneiras diferentes: ou não as atacando, ou não escarnecendo delas”17. Raul Proença propõe-se, assim, discorrer sobre a melhor e mais avisada noção de tolerância. Surgindo-lhe, desde logo, a primeira dificuldade, que é a de saber qual a resposta a dar à pergunta: “Devemos nós (…) dar plena liberdade ao desenvolvimento de todas as doutrinas, por mais contrárias que elas realmente sejam às nossas convicções próprias ou aos sentimentos gerais?”18 Contudo, “debater este problema é debater o problema da liberdade de consciência”19. Para o pensador, a tolerância é, nesta perspectiva, a contrapartida da liberdade de pensamento. É o reconhecimento daquilo que nós queremos e exigimos dos outros para nós mesmos. É, segundo Proença, “aceitar nos diferentes um igual direito à vida”20. Se, por exemplo, o indivíduo A não aceita e não tolera as opiniões do indivíduo B é porque não reconhece em B a liberdade de pensamento, e por isso, conclui o nosso autor, A é um reaccionário. Para ele, “o direito de pensar livremente é a liberdade vista por dentro; a tolerância a liberdade vista de fora. Na essência, uma única e a mesma coisa”21. Logo, quem é contra a tolerância é contra a liberdade. Dito de outra forma: quem se disser defensor da liberdade, enquanto essa liberdade for a de defender as suas opiniões e de não tolerar as dos outros, é, no mínimo, incoerente. Para o seareiro, não é, então, possível separar a tolerância da liberdade de consciência sem haver contradição, restando, no entanto, investigar se esta tem de ser admitida em todos os casos. A resposta é claramente “sim”. Quer do ponto de vista teórico, onde a liberdade de pensamento se funda na dignidade da Razão, uma vez que esta não reconhece “nenhuma força exterior que a paralise ou oprima”22, quer do ponto de vista prático e social. Nesta perspectiva, é ainda mais importante a abertura à liberdade de consciência, porque, segundo Proença, são as vontades livres, todas, sem excepção, que formam as sinergias pelas quais se estabelece a verdade 18 19 20 21 22 16 17

Ibidem, p. 189. Ibidem, p. 189. Ibidem, p. 189. Ibidem, p. 189. Ibidem, p. 189. Ibidem, p. 189. Ibidem, p. 189.

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– “Ordem que não admite variedade é estagnação; verdade que não admite reforma é dogma”23. Verifica-se que todos os progressos (religiosos, morais, políticos e sociais) aconteceram porque existiram individualidades que souberam impor-se. Se, no tempo de Comte, por exemplo, existiam limitações à liberdade de consciência, para Proença elas já não faziam sequer sentido. Contudo, ao tempo do filósofo francês admitia-se que a tolerância sistemática só se podia exercer nas opiniões indiferentes ou duvidosas, porque se partia da premissa de que existiam princípios certos, absolutos, incontraditos (nomeadamente na astronomia, na física, na química) e, por isso, admitir nestes casos a liberdade de consciência seria admitir a subversão de toda a verdade. Proença serve-se precisamente desse argumento para contrariar Comte. Na verdade, não existem princípios certos nem verdades absolutas. Embora respeite Comte, está o autor português convencido de que a afirmação do “grande pensador” equivale à negação de todo o progresso. Afinal, a ciência sempre conviveu com “princípios certos” que, com o passar dos tempos, foram desmentidos – “Não há princípio certo do presente de que o futuro se tenha de não sorrir”24. Sorrir e não rir: “Não digo rir: o esforço original dos primeiros lutadores merece-nos demasiado respeito para que cometamos irreverências; no sorriso há uma simpatia irresistível ligada a uma discordância de vistas; rir é quase sempre não compreender; o riso foi feito para os parvos terem algum meio de se julgarem superiores”25. Na verdade, não há princípios absolutamente certos. O que existe são princípios que hoje se adequam aos factos e que amanhã, fruto de maior número de conhecimentos, já não se harmonizam inteiramente. Isto não significa que a ciência deixe de ter valor, nem que esteja à beira do descrédito e da falência. Falir significa não ter mais nada para dar. “Ora cada vez a ciência promete mais e mais oferece”26. Está viva e fecunda. Desconfiar dos princípios “ditos” certos, não representa um declínio de crença na Razão. Bem pelo contrário. É a crença que cada indivíduo possui de que alguma coisa pode ser vista melhor por nós, é a crença de que podemos descobrir um aspecto da verdade. Não devemos, portanto, considerar “débil a alma que cria, nem considerarmos inútil o nosso esforço”27. “Há 25 26 27 23

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Ibidem, p. 189. Ibidem, p. 190. Ibidem, p. 190. Ibidem, p. 190. Ibidem, p. 190.

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mais real grandeza numa alma que se abre, que se alarga, que se aprofunda [que se questiona, acrescentamos nós], do que nas alminhas satisfeitas que se contentam”28. A vida é dinâmica. A vida é mudança, transformação, revolução. A liberdade de consciência é, portanto, vital. Mas mesmo que fosse útil limitá-la, proibi-la, isso só traria resultados contraproducentes. Na verdade, não se pode proibir de pensar livremente, porque está na natureza humana ser livre no conceber e no realizar. Assim o diz Proença: “Impedi-lo é pois não só uma tirania, como uma loucura”29. “Negar a tolerância em qualquer campo da actividade raciocinativa do Homem é atentar contra o progresso, é proceder contra a Vida”30; “Pratiquemos pois a tolerância absoluta: a liberdade do erro é sagrada”31. Bom, temos a liberdade do erro. Mas será que temos o respeito do erro? Se entendermos por respeito “a não discussão, a não condenação”32, a tolerância não pode ser esse respeito – “O grande valor da tolerância é exactamente a livre contradição dos princípios”33. Acrescenta Proença ainda que “discutir é exercer um direito sagrado que não ofende ninguém”34. No fundo, o respeito é “a atitude digna e nobre do indivíduo que não ri de escárnio (…). Eu não concordo com o catolicismo de certas pessoas, mas respeito-as quando elas são sinceramente religiosas”35. Recapitulando, como diz Proença, “todas as opiniões são discutíveis. [¶] Destas, umas são condenáveis, porque desvalorizam o indivíduo, e outras são respeitáveis. [¶] Todas as opiniões serão livres, o que equivale a dizer: temos o dever de tolerar a franca expressão de todas as ideias”36. Sobre a liberdade escrevia Proença, em 1908, no jornal de Alcobaça, O Republicano, o seguinte : “Amemo-la muito (…), porque sempre que o homem deu um passo para diante, (…) ele praticou um acto de generosa e pujante liberdade”37. Servia-se ele da disputa, no parlamento de então, sobre os crimes anarquistas e da revogação de uma lei atentatória de “uma

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Ibidem, p. 190. Ibidem, p. 190 Ibidem, pp. 190-191. Ibidem, p. 191. Ibidem, p. 191. Ibidem, p. 191. Ibidem, p. 191. Ibidem, p. 191. Ibidem, p. 191. PROENÇA, Raul. Liberdade. O Republicano. Alcobaça, n.º 5, 2 de Agosto de 1908.

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compreensão limpidamente democrática da liberdade”38, para reflectir sobre tal conceito. Aos 24 anos, Raul Proença questiona o valor e o sentido da liberdade através daquilo que, já na altura, era para si um bastião da defesa e da legitimidade dos princípios e dos valores: a imprensa. No seu entender, a liberdade ou não tinha nenhum sentido, sendo apenas uma palavra oca e desprezível, da qual não sentiríamos qualquer falta, ou então, ao contrário, não seria “uma palavra vã, devendo-se dar-lhe toda a extensão que ela comporta”39. Chamava a atenção, desse modo, para a situação conturbada, confusa e pouco clara que então se vivia e onde a liberdade era fraca moeda de troca. Dentro do seu espírito de entrega absoluta, usava a imprensa como caminho e farol para mostrar a sua vontade pela proclamação da verdadeira liberdade, talvez até mais do que pela proclamação da própria República. A importância da liberdade de imprensa era como uma matriz, um alicerce, um pano de fundo, uma persecução, onde todo o futuro assentasse e partisse, dela recolhendo a sua força e o seu exemplo. Raul Proença tudo fazia depender dessa primária liberdade. O próprio desenvolvimento e progresso da nação dependiam dela, porque “sem liberdade de imprensa (…) não há moralidade governativa, não há elementos de civilização”40. Todos os problemas deviam ser passíveis de discussão, iluminados pelo “facho de Luz” da imprensa, que todos os dias era espevitado. Pelo crivo da imprensa, todos os acontecimentos, fossem de que natureza fossem, deviam passar, mas, sobretudo e naturalmente, os de ordem especulativa e polémica, como a discussão de todas as teorias e de todas as doutrinas. Para Proença, essa “luz” era o mais alto que se podia alcançar e esperar. O zénite da Razão e da Justiça (terrestre, acrescentamos nós). Ou, pelo menos, o mais próximo que delas se podia chegar. De qualquer maneira, a liberdade de imprensa era a medida pela qual se podia e devia regrar todo o pensamento que se considerasse livre, porque ela tinha como fins últimos “servir a causa nacional e contribuir para o progresso social”41, devendo apontar o caminho em que o cidadão comum devia prosseguir. Nada do que Proença preconiza e diz ser importante e indispensável, seria possível sem liberdade. Sem ela, era como se, numa sala de cinema, que representa a própria vida, se interpusessem entre o espectador e o 40 41 38

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Ibidem. Ibidem. Ibidem. Ibidem.

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ecran “figuras” que impedem de “ver” o filme. “Personagens” essas que Proença identifica e retrata como “um severo polícia de chanfalho ou um inquisidor de borla”42. Mas o pensador republicano alarga a sua “explicação” de liberdade até à própria ideia de governo e de regime político. Na sua perspectiva, um regime que não discuta é um regime morto, é um regime que se recusa a sair do limbo onde se colocou e que, por isso, se encontra numa posição propícia ao seu próprio fim. Naturalmente que este tipo de governos, os que recusam abrir-se à imprensa, só o fazem porque são governos fracos, que utilizam formas de actuar pouco “limpas” e que têm algo a esconder. Como escreve Proença, através do seu discurso veemente, impetuoso, ardente, arrebatado, um governo que assim age “não quer as janelas da imprensa abertas, porque não quer que cá para fora saia o cheiro revelador da estrumeira d’almas que lá dentro fermenta”43. A falta de liberdade de imprensa é, por isso, própria dos regimes e dos governos fracos que têm alguma coisa a temer. Ao contrário, a existência de discussão só pode servir os regimes fortes e vigorosos. Alimentam-se, aliás, dela. Precisamente porque é essa discussão que lhes permite, através dos prós e dos contras, promover os seus pontos de vista, mostrando-os válidos ou, ao invés, apontando a sua inutilidade – “Encaminhar para a verdade os cérebros que têm enveredado pelo erro”44. Quem tem a consciência tranquila, quem age de boa fé, quem tem “sinceros intuitos”, só pode lutar pela liberdade. É sempre, portanto, benéfico, no ver de Proença, ser-se discutido e criticado. Pois se houver erros, poder-se-ão corrigir e as calúnias mais facilmente serão desfeitas se chegarem à praça pública. É forçoso, pois, que tudo se diga, fale e comente. Nada pode deixar de ser dito em voz alta e o melhor meio para que alguma coisa seja escutada pelo maior número de pessoas é a imprensa. Imprensa que deve ser incentivada a tudo escalpelizar até ao mais ínfimo pormenor a fim de que, depois de tudo inexoravelmente dissecado, seja possível ajuizar o que deve ser considerado como boa ou má conduta, o que deve ser continuado ou deve ser emendado. Raul Proença não exclui da discussão nenhuma área da vida pública e, por isso, sujeita à possibilidade e ao dever de todos poderem ter opinião – “Nada escape ao seu exame: política, ensino, religião, economia, Ibidem. Ibidem. 44 Ibidem. 42 43

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administração, higiene, literatura, casamento”45. É também por poder opinar sobre coisas aparentemente tão dispares como as apontadas que a imprensa tem um papel crucial na compreensão da liberdade. Mais. É graças ao seu carácter efémero e volátil mas também constante, diário, proveniente de muitas fontes e por isso praticamente omnipresente e sempre renovado, que a imprensa escrita pode ser a âncora da vida clara, transparente e justa. Por tudo isto, são inimigos da liberdade, defende Proença, todos os que, de uma forma ou outra, tentam controlar, manipular a imprensa ou impedi-la de exercer a sua função de ser o grito inconformado contra “a impunidade dos criminosos”46, o silenciamento dos desfavorecidos, os desmandos dos governos e o impedimento da abertura a novas ideias. Ser inimigo da imprensa é ser um “ferrenho inimigo da civilização”47. Claro que, também aqui, encontramos o reverso da medalha. Na verdade, nem todos os jornalistas e jornais são sinceros, leais, justos e sobretudo fiéis ao relato dos acontecimentos e dos pensamentos. A calúnia toma muitas vezes a primazia sobre o correcto e o bom nome dos visados. A deturpação dos factos ocorre amiúde e a insinuação da vida privada de pessoas que a não pretendem expor, não raramente acontece. Nestes casos, sustenta Proença, o jornalismo é “redigido por homens cuja bagagem científica é nula e cuja competência (…) é ridícula”; “o jornalista é em geral um ignorante, (…) não é um director de consciências, é um dominado pelas paixões”48. Raul Proença tem consciência dos objectivos destes jornais, nos quais se destilam todos os ódios cobardes, encobertos de serem discutidos à luz do dia e de olhos nos olhos. É um jornalismo de “sarjeta”, onde o jornalista mostra toda a sua violência e a sua incapacidade de discernimento. Nele, a tranquilidade, a justiça serena e a combatividade leal e digna, inspiradas na razão, estão arredias. É, na realidade, o mais baixo a que o jornalismo pode chegar. Os instintos e o roçar da boçalidade transformam o homem civilizado num “canibal” e as notícias mais são uma “garra de bruto que quer rasgar”49, lembrando uma fera acoitada à espera da vítima indefesa, do que um discutir enaltecido e leal das ideias e dos factos.

47 48 49 45

46

Ibidem. Ibidem. Ibidem. Ibidem. Ibidem.

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Mas, ainda assim, Proença clama por liberdade para todos. Aliás, esse tipo de jornalismo deve ser incentivado a aparecer, pois será mais fácil confrontá-lo e combatê-lo, à luz do dia e aos olhos do público, do que na negrura da cegueira e na calada da noite. Que apareçam, então, para poderem ser levados a julgamento e condenados quer pela opinião pública quer pela lei dos tribunais. Sejam quais forem os tipos de abuso praticados, há castigo para todos eles. Não é censurando a imprensa, mas pugnando pela responsabilidade e pela liberdade jornalística, que os governos, sejam eles de que matriz forem, mais se legitimam e mais livre tornam a sociedade que governam, tornando possível o futuro. Precisamente porque o futuro só se constrói alicerçado na liberdade. Anos mais tarde, em 1930, já no exílio, Raul Proença, ainda a propósito da liberdade, escreve uma carta ao director da revista Liberdade que se constituirá em mais uma das inúmeras polémicas que manteve ao longo da vida, com as mais diversas personalidades. Neste caso, como em quase todos os outros, também a polémica se espraiou nas revistas da época. Na já citada Liberdade, mas também na Seara Nova, onde Proença fez publicar um artigo intitulado “Liberdade, fim supremo” que, tendo em atenção os anos entretanto passados e as vicissitudes acontecidas na sua vida, não deixa de mostrar uma coerência e uma linha de pensamento que sempre o acompanhou. Ora, nesse artigo, Raul Proença escalpeliza de uma forma sistemática um conjunto de temas que são marcantes no seu pensamento. De todo modo, a versão publicada na Seara Nova é aberta com um pequeno preâmbulo explicativo da razão e dos fins pelos quais foi escrito. Defende, então, o autor ser fundamental o conhecimento aprofundado das mais diversas teorias e doutrinas. Desde logo as que cada um defende, mas também aquelas contra as quais peleja. Só assim é possível, conhecendo a posição das partes, em consciência e na mais completa liberdade, criticar aquilo com que se não está de acordo. Só assim é possível ser-se completo e lúcido defensor daquilo em que se acredita. Quem assim não procede, não pode auto-intitular-se verdadeiro conhecedor e defensor daquilo em que diz acreditar. Impedir que diferentes argumentos vejam a luz do dia, calando-os ou censurando-os, é mostrar pouco respeito não só pelos outros, como por nós próprios. Daí que, quando num qualquer regime se instaura a Censura, ela é a “maior homenagem que ainda se prestou ao poder da Imprensa”50. 50

PROENÇA, Raul. Liberdade, fim supremo. Seara Nova. Lisboa, n.º 239, 19 de Fevereiro de 1931.

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A liberdade é um bem supremo e essencial para Proença e sem ela nada faz sentido. Explica, pois, o autor que o objectivo da governação é “realizar a paz social”51. Governação essa que deverá ser constituída pela vontade da maioria, isto é, por uma maioria aceite como necessária, embora não precise necessariamente assumir-se para todos e cada um. No fundo, essa maioria tem a função de promover a boa harmonia em termos colectivos, não podendo nunca ter a pretensão de ser um “desejo” unânime – “A maioria governa, mas não no juízo de cada um”52. O que acontece, não poucas vezes, é que os próprios defensores da liberdade não a utilizam na sua plenitude, exercendo “sobre si próprios uma censura muito mais rigorosa que a que lhes é imposta pelos delegados do poder”53. Esse aparente temor do uso da liberdade, como se a liberdade recebida fosse mais do que suficiente para a total satisfação dos seus desejos, conduz a um real perigo para o qual Proença chama a atenção: “Quando a liberdade não triunfa, ou é por falta de liberais, ou por culpa dos liberais. Toda a crise de liberdade exige uma cumplicidade da maioria. Nem há nenhuma ditadura que não seja consentida”54. Para Raul Proença, a moral fundamenta-se a partir da liberdade individual e da consciência de cada homem, recusando-se o pensador a aceitar que a moral resulta da actividade científica e do conhecimento racional. Na sua perspectiva, a ciência é “competente para averiguar do que é, mas não do que deve ser”55. Mas a única forma de se ser livre é “praticando” a liberdade, salienta Proença. Não há, aliás, outra forma de a conhecer. E esta, mesmo depois de alcançada, não pode nunca perder a sua capacidade de independência em cada um. Desiludam-se os que acreditam que a liberdade, mais cedo ou mais tarde, chegará pela mão de alguém ou, pior ainda, a partir de um qualquer regime de governo. Desiludam-se os que esperam, passivos e pacientes, pela chegada da liberdade. Ela é uma auto-conquista, pela qual cada um é responsável. A escola pode e deve ter um papel importante no desenvolvimento intelectual da juventude, apontando pistas e mostrando caminhos. Mas não uma escola qualquer ou uma escola de ensino direccionado. Por isso, opõe-se Raul Proença ao “ensino clerical”56. Como igualmente se opõe a 53 54 55 56 51

52

Ibidem. Ibidem. Ibidem. Ibidem. Ibidem. Ibidem.

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qualquer outro ensino, mesmo de cariz republicano, que seja direccionado ou condicionado, já que impede desde logo “o exercício da verdadeira liberdade, pois que, incapaz da autonomia de juízo e de espírito crítico, ela [a criança] ficaria, nesse ensino, à mercê do professor”57. De facto, Proença defende que a criança e a sua liberdade não devem ser subalternizadas a favor da vontade do pai ou do professor. Dar liberdade ao pai ou ao professor de decidirem e imporem quais os saberes e as ideias a ministrar, seria impedir a criança de poder escolher por si própria, quando a sua idade o permitisse, já que enquanto aluno do ensino elementar a criança estará sempre predisposta a “adoptar as ideias do mestre”58. À pretensa objecção que possa ser feita a propósito de a obrigação do ensino da liberdade ser uma forma de “impedir o exercício da liberdade da criança”59, Raul Proença responde que, na verdade, o ensino, nesta primeira fase da vida estudantil, não pode deixar de ser feita “por processos dogmáticos”60, já que a criança não tem ainda espírito crítico e capacidade para apreender a essência das doutrinas. Por isso, sugere o nosso autor que, nesta idade, o ensino deve constituir-se “como uma pedagogia, que deixe inteiramente livre a alma da criança”61. E Proença adianta que o que pode e deve ser ensinado, são conceitos e conteúdos que possam ser ministrados de uma forma objectiva, sem nenhuma ligação a ideias doutrinárias apreciativas, como seja o “que é um parlamento, uma eleição, de como se faz um orçamento”62. Só assim é possível preservar a criança até à idade em que possa reflectir por si, com conhecimento de causa, e escolher, encontrando por si própria, razões íntimas e profundas para a sua escolha. É a única forma do ensino elementar não se tornar pernicioso. De outro modo, o ensino direccionado não transmite necessariamente à criança os valores pretendidos, existindo muitas vezes situações de incongruência entre o que a criança aprendeu e o adulto em que se transformou. Por isso, reafirma Proença: “Só devemos acreditar na força das ideias que são por assim dizer redescobertas, que são o fruto de uma actividade espontânea do espírito, e não impostas por sugestão ou autoridade”63.

59 60 61 62 63 57

58

Ibidem. Ibidem. Ibidem. Ibidem. Ibidem. Ibidem. Ibidem.

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O perigo de uma influência perniciosa do professor sobre o aluno termina, no dizer do nosso seareiro, nos anos finais do ensino secundário, mas sobretudo no ensino universitário. Aí, já pouco importa a formação do professor e as doutrinas e teorias que defende e ensina. O risco de o estudante ser influenciado é muito pequeno. Proença assume que é, nessa fase da juventude, que o espírito “acorda para a reflexão”64 e que a rebeldia, própria da idade, leva a que se não aceitem pacificamente a voz e as ideias do professor. Existe uma natural tendência, por parte do aluno, para contrariar a imposição ou a simples sugestão, ainda que a título didáctico, de qualquer doutrina ou teoria, reagindo muitas vezes em sentido contrário. Na verdade, estabelecem-se posições opostas entre o corpo de professores e os estudantes. Correspondem às “leituras febris, do contacto com o mundo exterior, da penetração nos cérebros juvenis das ideologias contemporâneas”65. Dessa relação de forças, conclui Proença, “a experiência mostra que a influência do mestre sobre o discípulo é (…) inversa da que pretende exercer”66. É, portanto, a liberdade um meio. Um meio para o indivíduo poder realizar verdadeiramente a sua condição humana, com todos os desejos de melhoria e perfeição a ela associados. Nessa demanda, são fundamentais a moral e a justiça: “Não concebo moralidade sem liberdade” nem “justiça sem liberdade”67. A liberdade é, assim, um fim supremo, no qual devemos empenhar todos os esforços, porque nada se constrói nem conquista sem a sua presença. Mas a liberdade é também um fim para o Estado. Porque, como explica Proença, o Estado só se justifica na medida em que serve os interesses individuais de cada um. Ora, se enquanto pessoa, para a minha realização, é fundamental a liberdade, então, o Estado tem que a considerar como um dos seus fins, pugnando e garantindo a liberdade para cada um. Por outras palavras, diz Proença: “O Estado não pode ter fins superiores ao que é, para o indivíduo, um meio essencial”68, sendo sempre condenável, seja a que título for, qualquer pretensão de redução ou espoliação de liberdade individual. Naturalmente que o nosso autor ressalva a sua posição quanto à liberdade absoluta. Diz não ser defensável porque é um conceito contrário “ao verdadeiro conceito de liberdade”69. E isso porque o usufruto 66 67 68 69 64 65

Ibidem. Ibidem. Ibidem. Ibidem. Ibidem. Ibidem.

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de um direito obriga a respeitar “o mesmo direito em todos os outros”70. A liberdade de cada um, a necessária liberdade individual, tem limites, limites esses que não são definidos pelo Estado, mas sim pela liberdade de todos e de cada um. Conclusivamente, a liberdade é algo interior e próprio de cada homem. Não basta falar dela. É preciso senti-la, vivê-la, entendê-la. A liberdade não se diz. A liberdade vive-se como se respira. A liberdade é, para Proença, a possibilidade e o direito de, perante duas ou mais opiniões, podermos optar, podermos inclusive escolher a opinião contrária à liberdade. A liberdade é igualmente respeito. Respeito “de [por] todas as oposições, de [por] todas as minorias, de [por] toda a heresia política ou religiosa, de [por] todo o pensamento discordante”71. Num breve artigo publicado na Seara Nova, em Junho de 1931, com o título “Ainda a Liberdade”72, Proença esclarece que a liberdade é essencial para que tudo o mais se concretize. É certo que, por si só, ela não é suficiente, não serve para nada. No entanto, é o elemento indispensável e incontornável à volta do qual as coisas se tornam possíveis. Nada se realizaria se só tivéssemos liberdade, mas também nada seria possível se ela não estivesse presente. Ela é absolutamente necessária.

Ibidem. Ibidem. 72 Cf. PROENÇA, Raul. Ainda a liberdade. Seara Nova. Lisboa, n.º 251, 18 de Junho de 1931. 70 71

O heroísmo trágico em Proença como superação do positivismo PEDRO BAPTISTA Universidade do Porto

Sendo o cientismo positivista parte do caldo de cultura que envolve a formação de Proença, em particular do jovem Proença fascinado pela figura de Teófilo e a braços com a análise crítica de Malthus, a sua tendência para romper limites, surribar barreiras, voar consoante as reclamações ou os plexos da consciência reflexiva, é ingénita e por isso imprisionável nas grades de quaisquer doutrinas. Impulsionado, embora aparentemente, pela consciência reflexiva, a edificação do pensamento de Proença não é, para ele, um mero problema académico, profissional, científico, doutrinário ou de qualquer modo teórico, antes um problema vital, e vital stricto sensu, o problema da tragédia existencial que o absorve radical e absolutamente e, com o qual, ou contra o qual, quer desenhar um caminho de vida, mais do que encontrar uma saída. Assim surge a heroicidade que vem a ser, por um lado, um valor de uma nova moralidade a construir, por outro, a forma mais elevada da vitalidade existencial. É o instrumento salvador do eu que ao libertar-se, pela reflexão racional, das peias da moralidade social instituída, vai gizar ele próprio, e portanto em completa solidão, as coordenadas éticas do seu comportamento. Comportamento que será libertação porque resulta da atitude crítica em relação ao ambiente moral envolvente e será criação porque compartilhamos aquele momento histórico em que, de criaturas, nos tornamos os nossos próprios criadores. Se podemos aceitar que a obra nos foi oferecida à colaboração por estranhos, como diz o autor “em dia de júbilos ou em noite sagrada de amores”1, o nosso comportamento, a acção, a nossa acção auto-determinada e responsável, implica um rasgo no mundo que nos rodeia, assim nos criando ou, melhor, nos re-criando, réplica do terramoto nietzschiano, precursão 1

PROENÇA, Raul. A coerência. In: REIS, António. Raul Proença, estudo e antologia. Lisboa: Alfa,1989, p. 164.

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do pensamento existencialista com a existência a preceder a essência e o homem, tal como o havia de fazer Sartre, condenado à liberdade, a fazer-se em solidão. Comportamento que é também coerência, porque a verdadeira coerência não é a da identidade sucessiva dos actos, obrigando o homem a repeti-los por toda uma vida ou por grandes períodos da sua vida, mas antes a obrigação de harmonia entre o ser e o agir em cada época, sendo que o ser é constituído pela atitude reflexiva efectuada por cada um, não só em relação ao mundo que o rodeia e, portanto, aos outros, como em relação a si próprio. Sendo pois a coerência uma simultaneidade harmónica entre o fazer, o pensar e o sentir que, implicando sinceridade para com os outros, implica-a sobretudo consigo próprio, num radical culto do rigor, sejam quais forem as consequências, porque é trágica a dimensão da liberdade e a obrigação da autenticidade, sem qualquer opção ou escapatória. Neste sentido, para Proença, renegar o imperativo da coerência corresponderá a “assassinarmos o nosso eu”, a reduzirmo-nos à condição de escravos do outro, escravos do mundo, pela desistência de exercermos a soberania da razão que é a nossa razão e que é a nossa individualidade!2 A coerência é, finalmente, gesto, acto criador, afirmação da autenticidade pessoal, expressão do nosso eu no mundo, impressão indelével do que em nós cria e constrói no meio que nos rodeia, através da entronização da palavra, em princípio o meio basilar para lançar o nosso eu no mundo, conclamando o direito imprescritível do pensamento próprio a existir, não apenas como potência ou secreta e inócua permanência nos esconsos do eu, mas como força explícita e consequente, força activa, acção transformadora! Para o que é preciso algo mais do que teorias e discursos, são precisos “actos em que se revele competência, discernimento, audácia, capacidade criadora e perfeita dedicação ao país”3. Mas esta conquista da coerência só pode iniciar-se através de um primeiro passo dramático de todo o longo percurso trágico a encetar. Que é um acto de ruptura, é o acto corajoso de ser capaz de renunciar a qualquer tergiversação do caminho imperativo, o único consentâneo com a dignidade do ideal libertador. Por isso, Proença não hesita em criticar frontalmente o pretenso “exílio” de António Sérgio no Brasil onde pregaria a “salvação da pátria”,

Ibidem. Idem. Páginas de política. 2.ª Série. Lisboa: Seara Nova, 1939, p. 101.

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porque para salvar a pátria será preciso antes de tudo estar com ela, não abandoná-la, nela firmar “bem rijamente os pés na lama”4. A ruminação da vida corrente da massa ignara, arrebanhada em torno dos comportamentos tipos da moralidade vigente, significa a renúncia da vida interior. Proença propõe a rejeição dessa vida corrente, precisamente em nome do relampejo do interior vital, da afirmação explosiva e demiúrgica do eu no mundo, da existência consciente em passos movidos pela sua própria decisão livre, contra seja o que for se necessário for, porque mais vale alguns instantes de grandeza num clarão iluminante da tomada de consciência, da tomada de consciência da consciência, instantes ou instante de autêntica, e portanto superior, bondade, do que o arrasto triste de um corpo sem alma durante uma vida inteira, se a isso pudermos chamar vida. Esses instantes não se medem pela extensão temporal, mas pela intensidade a que nos elevam, único caminho que vale a pena para nos salvarmos da baixeza e da podridão. Epicuro, estudado por Proença, também rompe com a fundamentação da moral, feita pelas religiões institucionais, nos cumes do Céu, na miragem de futuras recompensas, na obstinação em recusar a morte como término da vida, procurando edificar uma moral alicerçada na vida orgânica, na essência de tudo o que sente e respira, virtudes justificadas como meios de um prazer entendido como um mundo inacessível à dor, um prazer sem desejo, a “calma dos lagos mortos” em que “não há a crispação da onda”, enfim a ataraxia, que não é mais do que o gozo da plenitude na dimensão da mediocridade dos que a nada de mais elevado aspiram…5 O que não é o caso do homem de elite, fruto directo e dilecto da rúptil opção proençana! Se todo o homem deve conduzir os seus passos pelo caminho da determinação da sua consciência reflexiva, Proença reserva ao homem de elite a função de missionário da necessária pregação dessa concepção de vida, assumindo antes de todos e de tudo as atitudes necessárias a funcionarem como exemplo, farol iluminante para que cada um procure, em si mesmo, também o seu caminho. A este homem de elite reserva-se e exige-se um papel particularmente activo, já que rechaçando a caquexia da moral epicureana, tem de colocar-se na primeira linha do combate, tanto na ofensiva prosélita de se distribuir e se multiplicar, como na defensiva de se assumir como um derradeiro Ibidem, p. 168. Idem. A filosofia de Epicuro e a concepção heróica da vida. In: REIS, António. Raul Proença, estudo e antologia, ed. cit., p. 171.

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bastião do prestígio e da esperança, elementos que a conjunção da espada, da cruz e do dinheiro, fizeram afundar no lodaçal do pós-guerra, feito por 15 milhões de cadáveres. Este homem de elite é o herói necessário, diríamos o autêntico revolucionário, quiçá o revolucionário de puro-sangue, um homem de vanguarda, funcionando como “célula ressonante e actuante”, por ser o que se dispõe mais prontamente para o combate, na medida em que também é o primeiro a sentir a injustiça e o que mais profundamente a sente, na guerra frontal e radical que proclamou contra todo o egoísmo!6 Querendo que o sigam e que todos venham a ser como ele, o homem de elite proençano é, todavia, na prática, uma pessoa especial, um homem cuja opção ética de liberdade o levou a uma hierarquização inteiramente diferente dos valores, desprezando a glória, mas ao mesmo tempo considerando a actividade política ao serviço da república como a mais nobre e bela das ocupações. O homem de elite não é o espoliador, mas o servidor. Ao contrário do comum dos mortais, o homem de elite só procura no comportamento generoso e coerente a satisfação da sua consciência! Mais uma vez, neste pós I Grande Guerra, parece surgir uma premonição da postura sartreana do pós II Grande Guerra, sobre o filósofo engagé, não só como aquele, civil ou académico, que se dedica à reflexão e conceptualização filosóficas, mas como um cavaleiro andante da luta reflexiva e comunicativa, retórica e prática, pela verdade e pela justiça, um homem sui generis na medida em que ao abraçar a condição de filósofo escolhe um modo muito especial de vida que passa pela abdicação e superação dos valores do homem comum. Claro que o homem de elite, como todo o homem que deixe assomar a consciência no clarear dos seus passos, procura um sentido para a vida, mas aquele sabe que só o pode obter de forma consistente e satisfatória, mais do que pela atitude reflexiva, pela “audácia generosa”, epifania pletórica da beleza e da generosidade, com tal elevação emocional que ilumina o sentido da vida, superando no seu esplendor as características existenciais da condição humana ou se preferimos o absurdo da condição humana! A vida não tem sentido enquanto o homem não lho atribuir, mas esse, por isso mesmo, só pode ser um sentido superior. Todavia, a audácia generosa é de tal forma exigente e ambiciosa que o leva a sentir a insuficiência de produções altamente emocionais ou espirituais como a produção artística. Para o homem de elite, caracterizado pela entrega audaz com que luta contra o egoísmo, não lhe basta fazer uma obra Ibidem.

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de arte, ele quer fazer da vida uma obra de arte, num processo permanente e interminável de edificação da consciência, das consciências. É um projecto revolucionário republicano, altamente crítico, exigente e salvívico, mas é também um projecto didáctico e pedagógico. E será o que tiver de ser, consoante as circunstâncias, os escolhos que for preciso ultrapassar, as barreiras que for preciso bombardear! Assim também será a vida de Proença, como não podia deixar de ser um exemplo de coerência, desde a pluma apologética dos seus elevados ideais, passando pelo cavaleiro justicialista intervindo em greves como a do Pevidém, em Agosto de 1910, pela abolição do chicote e da palmatória aos operários fabris menores7, até às armas na mão no assalto ao Forte de Monsanto ou em defesa do malogrado 3 de Fevereiro de 1927 contra a Ditadura, onde desempenhou o papel crucial, embora frustrado, de conseguir, sulcando os mares com Camilo Cortesão numa traineira, o levantamento militar em Lisboa que, como se sabe, só se veio a sublevar quando a metralha da tropa governamental já tinha obrigado o Porto de Jaime Cortesão, Sousa Dias, Jaime de Morais, Sarmento Pimentel, Alfredo Chaves, Pina de Morais, César de Almeida, Nuno Cruz, Jorge Falcão e de José Domingues dos Santos, à rendição!8 O homem de elite é, pois, o cultor radical da coerência, da generosidade e da audácia na luta pelo bem público, na liberta consciência de cada um! O seu combate será pela palavra quando pode ser pela palavra. Mas será pelas armas, outras armas, se tiver de ser pelas armas. Como será na clandestinidade ou no exílio se a isso for forçado pelas circunstâncias da opressão, como viria a ser com o sidonismo em que compartilhou com Leonardo Coimbra a enxovia do Governo Civil de Lisboa, ou a partir de 1927 e até 1932, na determinação de nunca abdicar do sentido do dever ditado pela sua consciência reflexiva, na busca quotidiana activa e permanente de elevação. Face aos principais problemas do mundo, o homem de elite, que cultiva mais do que qualquer outro a exigência radical do sentido da responsabilidade, desenvolve uma atitude heróica. Mormente em relação a Deus! Quem dera que existissem, tanto Deus como a vida eterna! Todavia, enfrenta a realidade da sua solidão, dispensa a muleta teísta para lhe dar um sentido à

SANTOS, Fernando Piteira. Raul Proença e a “Alma Nacional”. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1979. 8 FARINHA, Luís. O Reviralho, revoltas republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo. Lisboa: Estampa, 1998. 7

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vida. Muito menos a expectativa perversa de uma recompensa post-mortem pela qual se referenciaria a moralidade. O bem supremo afirma-se na autenticidade e grandeza, sem Deus nem vida eterna! Só liberto de interferências como a recompensa na eternidade, o homem pode assumir-se de elite, só pela pureza e radicalidade da autenticidade faz emergir à “plenitude da consciência, os seus desejos mais profundos”9. Mas onde está o homem de elite? Onde estão os homens de elite? A insatisfação proençana, existencial e política, projecta-se sobre aqueles a que cumpriria assumirem-se como superiores, que existindo entre nós, com toda a certeza, ainda não se revelaram todavia. Por isso, apela aos intelectuais que ainda não foram capazes de encontrar claramente uma verdadeira motivação para a vida, já que, eles mesmos, se têm deixado imergir no sopor epicurista. Eis o grande drama! O intelectual que deveria ser o despertador das consciências adormecidas, o despertador público das mentes alienadas, o excubitor, tal como o socrático moscardo que zine ininterruptamente aos ouvidos sonolentos, ou Zaratrusta descendo ao povoado para confrontar cada um com as suas responsabilidades, olha também para o passado eternizando o que está morto, fazendo da história uma repetição, quando a torrente da natureza, pelo contrário, imparável, clama por vida, por criação, por elevação, no combate contra o crime maior do egoísmo! O que só pode ser feito pela acção! É preciso acreditar, acordar toda a gente. A começar por nós próprios. É por isso que não pode deixar de, com cortesia e amizade embora, invectivar a atitude comodista de Sérgio de se resguardar no Brasil, emitindo sermões pretensamente transatlânticos, uma vez que exige que ele esteja presente entre os homens de elite, cuja condição é a “realização suprema do verdadeiro homem” e a quem não é admissível, em caso algum, a “renúncia” ou o “abandono”10. Mais do que ser uma inteligência, o homem de elite tem de ser um herói: o que fica quando todos fogem, o que resiste quando todos caiem, o que afirma quando todos negam! E pouco importam as suas pregações livrescas! Importam outrossim as pregações pelos actos. Ora o pedagogo que abandona Portugal, remata Proença mortífero, “dá ao seu país a pior lição de pedagogia”! O lugar de Sérgio é em Portugal, não no Brasil, exactamente porque aqui “quase tudo são espinhos”11. PROENÇA, Raul, A filosofia de Epicuro e a concepção heróica da vida, op. cit., p. 177. Idem, Páginas de política, ed. cit., p. 168. 11 Ibidem, p. 169. 9

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Já não se trata apenas de procurar conquistar uma forma mais elevada da vitalidade existencial. Com a natureza, com o rasgo no mundo feito pela audácia e pela vontade radical de libertação, incluindo a dor e o sofrimento sacrificiais, o homem pode ascender de um estádio elevado da sua existência para um estádio transcendental, busca da santificação que é, afinal, o sentido natural da vida, das coisas e dos homens, no sentido exacto das auríferas imagens celestes produzidas pelas palavras do seu companheiro Raul Brandão em Os Pobres ou em Húmus. O homem de elite que busca a elevação, através da audácia e do denodo, torna-se o homem transcendental, construtor de uma metafísica através da consciência generosa e da acção heróica! Paralelamente, o desideratum do homem de elite, da sua heroicidade imaterial, espiritual e transcendental, é a santidade! E é essa crença metafísica que vai permitir a exigência de ascensão ao maior heroísmo moral do homem. Porque sendo a morte definitiva e não havendo vida eterna é, no entanto, possível, fazer da vida heróica a eternidade na luta pela plenitude da consciência, até porque só a atitude ateísta contém todas as condições para fazer do homem um “ser eminentemente moral”. Mais, a crença na inexistência de Deus e da vida eterna é mesmo “condição sine qua non da moralidade pura”. Só assim teremos a aprovação e a aceitação do bem através da consciência solitária e portanto livre, ressoando não através de vozes supra-humanas desresponsabilizantes, mas através da consciência assumida de cada um12. O herói é o que aceita a tragédia da vida, o sacrifício sem paga, o divino sem Deus! O que ama, ama-o por si e em si, sem mais. O bem só é bem em toda a sua plenitude se não tiver utilidade nenhuma! Praticar o bem deixa de o ser, se procurar extrair do acto de bondade finalidade exterior a si mesmo, qualquer utilidade. Tal como em Sartre13, com a trágica responsabilidade decorrente da condenação à liberdade, também em Proença a sua doutrina exige do homem Idem. O Problema de Deus. In: REIS, António. Raul Proença, estudo e antologia, ed. cit., p. 179. 13 Referimo-nos ao Jean-Paul Sartre de L’Existencialisme est un humanisme, de 1946, ou seja, de mais de um quarto de século depois da produção dos textos de Proença sobre os quais nos temos vindo a debruçar. As noções do homem a fazer-se a si próprio, de não tendo sido ele a fazer-se, ter de ser ele a fazer-se, de que depende do homem dar um sentido à vida que será o sentido que escolher, de que, portanto, o destino do homem está nas suas mãos, de que o homem está condenado a inventar ele próprio a sua lei, de que, todavia, só se fará fora de si, ou seja, transcendendo-se, 12

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o máximo da sua dádiva, da sua capacidade de sofrimento, da sua erecção de consciência divinizada. Se o homem é o seu destino e constrói em liberdade o seu destino, este é a tragédia de ser sede de infinito e certeza da limitação, ânsia de eternidade e certeza da precariedade, mero átomo no imenso vazio que constitui o universo. Face ao que, nem religiões nem narcóticos! Olhar de frente a verdade na viril coragem de ser herói, homem de elite, aristocrata, senhor do sentir, do pensar e do agir, homem superior por que não afirmá-lo? No deserto universal, a consciência é o oásis, o canto virtuoso do nietzschiano aristocrata e senhor, que trava vitorioso este combate solitário. Como viria a ser em Albert Camus, o solitário é não apenas a condição do solidário mas implica-o, porque, em primeiro lugar, “se nós não somos, eu não sou”14, em segundo, a solidariedade precede sempre a felicidade sendo que, como é consabido, “é preciso imaginar Sísifo feliz”15. Do “Mito de Sísifo” a “A Peste”, o Eu faz-se Nós, porque não poderia existir sem este e porque evolui da revolta solitária à revolta solidária, como acontece com o Eng. D’Arrast que, na floresta amazónica, ajudando o esquálido pagador de promessas a levar um pedregulho para a Igreja da povoação, guina inopinadamente para a esquerda, descendo a ladeira e depositando-o na lareira do tugúrio que servia de habitáculo ao homem16. Também em Proença, longe embora dos contornos que viria a tomar o percurso camusiano aparentemente pouco atreito a heroicidades ou a santidades, o solitário eleva-se ao solidário, atingindo a pureza e a plenitude pelo sacrifício ao serviço do bem comum, por uma via emocional, portanto. Está aberto o caminho para que, a partir daqui, as coordenadas éticas do comportamento possam advir de referências transcendentais.

de desespero original, sendo um pouco indiferente a sua existência ou inexistência na medida em que nada pode salvá-lo de si próprio, que o filósofo francês expõe na referida conferência, são comuns, na crítica e na construção dos pontos de partida, às indicadas por Raul Proença, indiciando não só a ligação profunda entre o pensamento filosófico-político português e o francês, como a grandeza e a criatividade do pensador português. De notar ainda que também Sartre, no texto apontado, se preocupa com a demarcação com o positivismo comteano, considerando que o homem não é um fim, pois está em permanente construção, e que não podemos nem devemos render culto a uma humanidade que conduziria a um humanismo fechado sobre si mesmo e concomitantemente ao fascismo. 14 CAMUS, Albert. O homem revoltado. Lisboa: Livros do Brasil, 2003. 15 Idem. O Mito de Sísifo. Lisboa: Livros do Brasil, s.d. [1965], p. 116. 16 Idem. O exílio e o reino. Lisboa: Livros do Brasil, 2004, p. 127.

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No entanto, o homem de elite, o herói, entidade explicitamente salvívica e encarnação agnóstica do Redentor, não é, pelo menos literalmente, o Salvador Supremo. É uma entidade ascensional ao alcance de qualquer que se queira assumir como Senhor de si mesmo e queira seguir a via sacrificial da heroicidade, através da combatividade, para tocar a transcendência, construindo a sua própria metafísica que se há-de tornar, afinal, e é o que interessa, o grande alfobre das referências éticas. Se até 1921, nos textos proençanos, o homem de elite, o herói, parece aproximar-se do Salvador, ou pelo menos assumir-se sem peias como um salvador, queixando-se enfaticamente de que ainda não tinha aparecido um “grande mestre da acção moral”, já que Antero se havia suicidado e Herculano dedicado às oliveiras, mancando pois o exemplo do verdadeiro herói, o do que o é até ao fim, “o dos homens que saberão e quererão salvar Portugal e por isso o salvarão”17, anos depois, implantada a Ditadura, com o país prestes a ser enxameado pelas pagelas do Salvador da Pátria de Santa Comba Dão, encarnado no bronze que Soares dos Reis fundiu para o fundador da nacionalidade, Proença haveria de pedir a todos os Céus e a todos os Santos, que o livrassem seja de que salvador fosse, ciente do perigo dos missionários da utopia, reclamando a tranquilidade de saber que não mais será salvo por ninguém! Com o trágico irónico e cruel da história a esvaecer a sua mitosofia da elite heróica, Proença terá percebido que muito poucos estarão dispostos a seguir o difícil caminho para que desafia a todos e a cada um, em particular, claro, aos intelectuais. Proença terá percebido que poucos estarão dispostos. Poucos ou… nenhuns! A heroicidade proençana torna-se trágica, tal como a tragédia de toda a sua vida. Embora, afinal, bem feitas as contas, e feitas até ao fim, seja tão trágica como qualquer outra.

PROENÇA, Raul, Páginas de política, ed. cit., p. 169.

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Propagar ou divulgar mais cultura, mais instrução, criar uma opinião pública, a par de uma elite empenhada na renovação e transformação do País, exigia condições de ampla dimensão. Proença desempenhava funções nos Serviços Técnicos da Biblioteca Nacional desde 1911. Leonardo Coimbra era então Ministro da Instrução Pública, Jaime Cortesão, que saíra do “ninho da águia”, era nomeado director da Biblioteca ao mesmo tempo que Raul Proença era empossado no cargo de director da Divisão dos Serviços Técnicos, sendo ainda Aquilino Ribeiro o 2.º bibliotecário e Álvaro Pinto chefe dos Serviços Administrativos, depois substituído por Ferreira de Macedo1. A actividade cultural e intelectual que a Biblioteca Nacional empreendeu era de grande notoriedade. Raul Proença e Jaime Cortesão, dois “ex-renascentes” a que outros também estiveram ligados, traçaram um plano de actividades que tornaram a Biblioteca não só um verdadeiro centro aglutinador de intelectuais e artistas (com uma dinâmica vida cultural), como também ao nível da catalogação, produção e autonomia editorial, exerceram um trabalho inexcedível. Raul Proença, um dos maiores obreiros deste projecto de renovação, apesar do esquecimento a que o seu Esta substituição aconteceu na sequência do convite de António Sérgio a Álvaro Pinto, para seu assessor nas actividades editoriais que entretanto levava a cabo no Brasil. Ao que tudo indica, teria sido Raul Proença convidado para o cargo de director da Biblioteca Nacional, na sequência da demissão de Fidelino de Figueiredo. Raul Proença não terá aceitado o convite por entender que, no momento, era mais útil à reorganização técnica dos serviços da Biblioteca, que já havia iniciado. Por isso, ele mesmo convida o seu grande amigo Jaime Cortesão para desempenhar o cargo, ao que este responde afirmativamente. Contudo, e porque Jaime Cortesão nesta época enfrentava problemas de saúde causados pela Guerra, Raul Proença assume por longos períodos de tempo o papel de director interino da Biblioteca Nacional, que em nada desmereceu a instituição, graças também aos elevados conhecimentos de biblioteconomia que possuía, a que se aliava uma grande capacidade de organização por todos conhecida. Sobre este assunto, consulte-se REIS, António. Raul Proença: Biografia de um intelectual republicano. Lisboa: INCM, 2003, 2 vols.

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pensamento e obra foram votados durante muitos anos, viu a sua actividade desenvolvida na Biblioteca por todos reconhecida2. De igual modo, foi também reconhecido o seu papel de grande promotor e colaborador do Guia de Portugal. Contudo, o estudo sobre o Eterno Retorno, entre muitos outros textos dispersos por variadíssimas publicações, são a prova clara de que Raul Proença ultrapassou largamente o âmbito referido. Aliás, a intensa actividade editorial que se conhece nesta fase da Biblioteca foi marcada também pelo lançamento da segunda série da revista Anais das Bibliotecas e Arquivos, que, embora nominalmente tivesse como director Júlio Dantas, e Raul Proença como secretário de redacção, entre outros intelectuais a esta publicação ligados, o facto é que é Raul Proença que aí se destaca, principalmente pelos seus grandes conhecimentos nas áreas de biblioteconomia e arquivística, dando a conhecer em diversos artigos aí publicados não só notícias do que na Biblioteca Nacional se ia passando, mas também publicando artigos da especialidade biblioteconómica e levando a que a revista se afirmasse, logo desde o primeiro número, como uma das melhores da Europa. Contudo, os anseios de Proença iam mais longe e, por isso, não resiste à criação de rubricas como “Intermezzo” e “Notas e comentários”, excedendo os limites da especialidade da revista. Nestas rubricas, as suas reflexões de cariz ético, político, filosófico e educativo demonstram, além do mais, a preocupação com a formação de elites, acreditando que delas poderia surgir uma renovação das mentalidades3. Em simultâneo, para além de Aliás, antes de alguns estudiosos começarem a dedicar atenção ao seu pensamento, como Sant’Anna Dionísio, Joel Serrão, Sottomayor Cardia, mas sendo António Reis a pessoa que mais longe levou a divulgação e estudo da obra proenciana, Raul Proença surge-nos descrito de um modo geral, quer em dicionários ou histórias ou em algumas poucas obras em que se lhe faz referência, como o “bibliotecário” de grande prestígio que redigiu as “Regras para a redacção, impressão e ordenação dos catálogos e respectivos modelos”, assim como o principal responsável e autor do Guia de Portugal. Além destas duas situações, nada ou quase nada era referido em relação ao pensamento deste autor, a não ser, esporadicamente, a sua curta passagem pela Renascença Portuguesa e também pela Seara Nova, no que, como sabemos, e principalmente nesta última situação, a injustiça é flagrante. 3 Embora o tema das elites seja extenso e de grande importância no pensamento do autor, não é nosso objectivo desenvolvê-lo neste trabalho. Mesmo assim, pensamos poder afirmar que estas elites que Raul Proença gostaria de ver surgir através da educação e formação poderiam ser comparadas ao grupo de “Guardiões” responsáveis por uma sociedade mais humana, justa e responsável, assemelhando-se assim ao papel desempenhado pelos filósofos n’A República, de Platão, não esquecendo obviamente as diferentes épocas e respectivos contextos, assim como a própria evolução e concepção 2

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bibliotecário, Proença apresenta-se nestas rubricas, como noutros textos, enquanto um filósofo e teorizador de ideais sócio-políticos, onde uma dimensão vitalista e espiritualista se vai cada vez mais aprofundando. Porém, não sendo aqui nosso objectivo enveredar pelo desenvolvimento alargado que o tema das elites teve em Raul Proença, com uma maior aproximação ao tema da política e da ética, este não se pode dissociar do pensamento do nosso autor, pelo que apenas salientamos as ideias de Proença, para quem as elites teriam como missão servir as “massas populares”, no sentido de as orientar para o Bem e o bem-estar, o que não significava que essas “massas” tinham que ser igualmente educadas através de uma educação popular permanente, recorrendo para tal aos mais diversos meios, entre os quais as bibliotecas populares e itinerantes4. Em diversos artigos escritos na revista que reiniciara, Raul Proença teve consciência do difícil caminho para chegar ao modelo de elite “ideal”, principalmente num País como o nosso, onde a renovação mental que se pretendia não acontecia, uma vez que os próprios governantes no poder, de onde o exemplo deveria começar, eram o resultado de uma deficiente educação com mentalidades estreitas e cheias de vícios, tendo como consequência o descalabro em que o País se encontrava5. Como havia de ser possível formar uma elite se os próprios intelectuais e educadores – também eles – tinham sido vítimas de uma deficiente educação, e por isso mais vítimas que responsáveis? das ideias e teorias das elites (consulte-se BESSA, Marques. Quem Governa para uma Teoria das Elites. Tese de dissertação de doutoramento apresentada no ISCTE, entre muitíssimas outras obras sobre este tema). 4 Cf. PROENÇA, Raul. As bibliotecas populares e o mundo moderno, o que há a fazer em Portugal. Anais das Bibliotecas e Arquivos, 2.ª série, vol. 1, n.º 2, Abril/Junho de 1920, e Idem. O que pode fazer em Portugal uma grande biblioteca popular. Anais das Bibliotecas e Arquivos, 2.ª série, vol. 1, n.º 4, Outubro/Dezembro de 1920. 5 Cf. PROENÇA, Raul. O soldado desconhecido. Anais das Bibliotecas e Arquivos, 2.ª série, vol. 2, n.º 5, Janeiro/Março de 1921, e Idem. Tempestade produzida por umas pobres borboletas. Anais das Bibliotecas e Arquivos, 2.ª série, vol. 2, n.º 5, Janeiro/Março de 1921. A mentalidade “estreita, viciosa, troglodita” correspondia ao movimento da Cruzada Nun’Álvares, movimento que se intitulava apartidário e que surge durante o sidonismo em 1918. De timbre nacionalista, privilegiava sobretudo a superação do decadentismo nacional, tendo como princípios a ordem e a organização corporativa do Estado e onde o respeito pela ordem e tradição eram acentuados. Este movimento, que chegou a ser aceite por alguns republicanos, degenera em 1926 para uma extrema-direita. Aliás, sobre este movimento, tece Raul Proença, nas páginas da Seara Nova, fortes críticas. É também o integralismo lusitano um dos grandes combates ideológicos que Raul Proença leva a cabo nesta fase, no qual esse movimento “degenerou”.

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Como proceder à renovação mental do País? Como formar uma opinião pública nacional esclarecida e responsável? A resposta para algumas destas questões vamos encontrá-la escrita pela pena do bibliotecário reformador da Biblioteca Nacional, mas sobretudo pelo pensador no artigo intitulado “A filosofia de Epicuro e a concepção heróica da vida”6, onde a sua concepção de “verdadeiro homem de elite” é exposta de forma modelar em acordo com a sua concepção ética e política, alicerçada igualmente num projecto antropológico e existencial de grande lealdade e desafio. *** É na rubrica “Intermezzo” da mencionada revista – em que o bibliotecário dedicado vai criar também espaço para o pensador especulativo e inquieto – que o seu idealismo vitalista solicitava pelas exigências de formas de existência cada vez mais altas, onde estavam presentes o prazer e a dor (mas podendo esta ser criadora). O homem, e, de forma mais específica, o homem de elite, teria que acordar do “sono epicúreo”, onde a consciência estava adormecida, não sendo possível sem ela criar nenhuma nova mentalidade e muito menos aquela que Raul Proença desejava, isto é, uma mentalidade que tivesse como base uma revolução espiritual, aquela a partir da qual, acreditava, a vida se poderia afirmar e exceder e pela qual sempre lutou. Explanando e tentando clarificar a filosofia de Epicuro, de cuja moral se distancia porque, como afirmou: “Querendo fundar a moral, não nos preconceitos da ‘vã opinião’, mas na natureza das coisas, ele reconhece, com a escola cirenaica, que é o prazer o fim último de toda a existência”7. Epicuro, “um dos pensadores sobre que o vulgo nutre mais errados juízos”, “decerto esse perspicaz arengador dos jardins de Atenas, que apodava os outros filósofos de cabotinos e ignorantes e inventava uma filosofia para uso dos valetudinários”8, merece de Proença uma crítica atenta. Contra o que outros pensavam, a sua moral mostra que ele não é nenhum diletante do prazer, cultivando apenas no seu jardim as flores raras da sensação, nem como outros queriam, “o criador duma filosofia generosa, heróica, elevadora do tonus vital”9, porque para o nosso autor “os Idem. A filosofia de Epicuro e a concepção heróica da vida. Anais das Bibliotecas e Arquivos, 2.ª série, vol. 1, n.º 4, Outubro/Dezembro de 1920. 7 Ibidem, p. 309. 8 Ibidem, p. 309. 9 Ibidem, p. 309. 6

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mundos do prazer e da dor não são separados; comunicam a cada instante e a cada passo um se converte no outro”, aliás, “muitas vezes as coisas mais doces deixam um depósito de amargor incomparável”, contrariando assim Epicuro, para quem o prazer significava ausência de qualquer tipo de dor, fosse do corpo, fosse da alma. A posição de um mundo fechado à dor, que vê no prazer apenas a ausência da mesma, acabaria por anular o esforço, a insatisfação do espírito, o princípio da vontade criadora, condições que Proença entendia como fundamentais para uma verdadeira moralidade, apostando numa ética do heroísmo da vida e do progresso criador. A plenitude da vida, a plena dinâmica da vontade não pode encontrarse, escrevia: “Na calma dos lagos mortos, no fundo dos vales”, onde a “crispação das ondas” não existe. A vida é bem mais do que a “simples ausência de dor” ou o “prazer sem desejo”, “a ausência de inquietação” e a “serenidade de consciência”10. Ainda que, assim lhe chama Proença, o “utilitarismo egoísta” de Epicuro tivesse grande êxito, quando o mundo grego atingia a fase da decadência, entendendo que a vida não fazia sentido a partir do momento em que ela não pudesse ser – ou continuar a ser – fonte de prazer, também, por outro lado, para os estóicos, a morte teria que acontecer necessariamente a partir do momento em que a vida não pudesse continuar a ser uma fonte de virtude. Embora estas posições possam ser antagónicas, ambas seriam, segundo o filósofo português, de certo modo, defensoras do suicídio. E, assim sendo, onde é que se poderia encontrar o esforço criador? Onde estaria, afinal, a razão de ser da vida? Segundo Proença, pode ser que no mundo grego, ao entrar em decadência, Epicuro tenha sido “o Messias dos filisteus”, e por isso tenha contribuído para ajudar nessa época “os homens pequenos demais para poder suportar os terrores da morte e dos deuses”, contentando-se com certa mediocridade. Desinteressados da política, paralisado o “esforço criador”, a elite desapareceria seguramente porque perdidos estavam “os entusiasmos da vontade vitoriosa” e sem esta tornar-se-ia impossível qualquer elite. O epicurismo, no que concerne à moral do prazer que concebeu (e que não deve ser confundido, segundo Raul Proença, “com o que há de primordial e fundamental em toda a moral do prazer”), por mais que quisesse “fazer brotar as mais altas flores da vida das suas raízes mais profundas”11, enganou-se, porque não conseguiu encontrar um ponto de apoio sólido. Ibidem, p. 310. Ibidem, p. 311.

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Querendo construir uma moral com base no mais profundo da própria terra, “nas tendências mais elementares da vida orgânica, nos movimentos espontâneos de tudo o que sente e respira”, e fazendo “coincidir o círculo das virtudes com o dos interesses”, pretendendo convencer os homens da importância e do interesse próprio de praticar o bem, cai num egoísmo moral. Ora, se os meios poderiam eventualmente ser aceitáveis, os fins não o seriam certamente, porque, ao pretender descer às raízes da vida, não viu que essas mesmas raízes “mergulhavam mais fundo do que o prazer e a dor”. Por isso, no mais profundo da existência, acaba por negar depois o elemento primordial que, segundo o nosso autor, seria o desejo, isto é, “a tendência da própria vida a afirmar-se e a exceder-se exactamente na medida em que se afirma”12. O autor deste texto da rubrica “Intermezzo”, explanando ainda mais os prós e os contras de uma moral epicurista, claramente dela discorda, como seria de esperar, uma vez que “reduzir as torrentes da vida à quietude plácida dum pântano” – pese embora Epicuro não ter suprimido a sensibilidade – fê-la descer a um tal nível que Proença jamais subscreveria. Fiel ao seu vitalismo, Raul Proença só poderia discordar de uma moral que tinha como ideal supremo, na sua interpretação, “o sono descansado… o zero da escala afectiva”13, porquanto o espírito criador em acto e potência estagnara e, nessa perspectiva, a reflexão e meditação desapareceriam também14. No mais profundo de si próprio, o filósofo da Biblioteca Nacional – que na vida via um progresso, aspiração consciente, e na “ambição cada vez menos fechada e mais generosa a grande lançadeira que tece e trama a vida”15, onde o prazer e a dor se entrelaçam – acreditava por isso também que, na vida, o homem de elite teria que ser “uma das mais poderosas lançadeiras do progresso do mundo”16. Contrariamente à atitude de Epicuro, o homem de elite tinha de colocar-se firme em face dos homens, para que fosse possível ver a vida em posição de desafio e de combate. Assim, para o nosso autor, esse homem teria que ser “servidor”, viver “para se dar e se multiplicar, e não para receber e subtrair”17, pelo que o egoísmo só

Ibidem, p. 312. Ibidem, p. 312. 14 Será esta uma visão defeituosa, adulterada? Será que os que meditam, fazem-no eternamente? Não chegarão a um ponto, Omega ou Alfa, do seu pensamento? 15 PROENÇA, Raul, A filosofia de Epicuro e a concepção heróica da vida, op. cit., p. 312. 16 Ibidem, p. 312. 17 Ibidem, p. 313. 12 13

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podia ser “a mais grave lesão e amputação de nós próprios”, a que afinal a doutrina epicurista conduzira18. A “maior esperança do mundo”, “a célula ressonante e actuante do corpo social”, era, para Proença, “o verdadeiro homem de elite”, trabalhando para “a satisfação integral da sua consciência”, tendo que desprezar a glória e vendo na política “a mais nobre e a mais bela das ocupações do homem”. A existência, com todas as suas limitações e oposições, tinha que ser sentida pelo homem de elite para que as pudesse saber ultrapassar “pela beleza, pela força espiritual, pela audácia generosa”, porque só assim lhe daria sentido e valor, contribuindo para “fazer da vida a mais bela obra de arte”19. A vida não seria nunca obra feita, mas sim algo que se conquista “pela elevação gradual da consciência” e onde “as formas mais altas da vida são sempre fins em relação às formas inferiores”. O papel do homem de elite seria, acima de tudo, o de um herói, tendo como base da sua acção “o culto da responsabilidade” em que “o amor paterno” fosse para ele “uma das mais altas expressões dessa responsabilidade”. Na sua atitude heróica, que para o nosso autor é de um heroísmo ético, o homem de elite “desejaria infinitamente que Deus e a vida eterna existissem (com a condição sine qua non desta não importar o fim de todo o trabalho e de toda a actividade), mas não precisa de tal existência para dar um valor e um sentido à vida”, acrescentando ainda assim crer, sublinhe-se, que “é a diminuta probabilidade duma recompensa futura que dá todo o seu preço à moralidade”20. A propósito das modalidades e limites da ética moderna, Eduardo Soveral, abordando o vitalismo e epicurismo, criticava a teoria de Benthan relativamente à interpretação que esta fazia do epicurismo. A seu ver, a doutrina benthiana não passava “de uma versão burguesa e pouco ambiciosa do epicurismo”, pois, ao contrário de Epicuro, Benthan não libertava do medo da morte, não valorizava o amor, a amizade e “a fruição desinteressada da beleza…”, não chamando os homens à sua dignidade máxima de seres terrenos e mortais, “(assim a entendia o atomismo materialista clássico)”, pelo que “não advertia de que só eram legítimos, e, ao fim e ao cabo, de saldo positivo, os prazeres cuja fruição não fosse degradante, por trocarem a liberdade por tendências que aviltam”, e não atendendo às superiores exigências do espírito. Contrariamente a Benthan, Eduardo Soveral pensa que Epicuro acaba por dar importância àquilo que é específico na vida, existindo acima de tudo uma liberdade interior que não pode ser negada ou desatendida de forma alguma por ser uma exigência do espírito. Segundo este autor, Epicuro condenaria, por exemplo, o consumo de droga, uma vez que aos drogados não assiste essa liberdade interior de que, como sabemos, ficam desprovidos (Cf. SOVERAL, Eduardo Abranches. Modernidade e Contemporaneidade. Porto: ELCLA Editora, 1995, em especial pp. 27-30). 19 PROENÇA, Raul, A filosofia de Epicuro e a concepção heróica da vida, op. cit., p. 313. 20 Ibidem, p. 313. Porquê “a diminuta probabilidade duma recompensa…”? A ideia de uma evolução, no pensamento deste autor, nomeadamente no âmbito metafísico, está sempre presente. 18

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Raul Proença, admitindo aqui a existência de Deus e da vida eterna, reafirma contudo o seu ateísmo ético, pois entende que embora esse possa ser um desejo, o valor e o sentido da vida não podem ter como alicerce essa crença (nem que seja diminuta), sob pena de a moralidade deixar de ser pura para poder ter um preço. O homem de elite não precisa, segundo Proença, da crença “firme e robusta de que fala o poeta”, ou seja, “num Deus que há-de guardar por sua própria mão numa jaula de ferro, a alma de Locusta, num relicário de oiro, a alma de Platão”21, mas sim, “pelo contrário, o valor do bem supremo mesmo sem Deus supremo e sem vida eterna”22. Parece-nos ainda ser significativo que neste contexto, em que Proença apresenta o seu ideal de homem de elite, a questão de Deus e da vida eterna seja equacionada novamente. Volvidos cerca de quatro anos sobre o seu estudo dedicado ao Eterno Retorno, deixa claro que essa questão não ficara ainda resolvida, sendo certo que ela não era sequer resolúvel num pensamento da natureza do proenciano, como aliás de quase todos os pensadores portugueses que, no final dos séculos XIX e XX, tiveram esta matriz de pensamento. Mais uma vez Proença insiste nesta sua posição relativamente à impossibilidade de separar as suas preocupações, e em que, como afirmou António Reis, e de que partilhamos, elas constituem também uma resposta à sua ética de heroísmo23, que percorre todo o seu pensamento e lhe levanta, pensamos, grandes dificuldades, fundamentalmente a partir de 1927, questão a que voltaremos na parte final deste trabalho. Em nota de rodapé, no artigo a que nos vimos referindo, parece-nos também importante salientar o que o nosso autor nela escreve também a propósito de Deus e da Eternidade e que transcrevemos: “Se a vida eterna tem de ser o repouso à mão direita, ou à esquerda, do Deus Padre, eu peço a Deus que me não dê a vida eterna. Para que a quereria eu com efeito se ela teria todos os característicos da morte, com mais um – a consciência, a consciência da própria morte!”24 Foi esta consciência da morte, presente Ibidem, p. 313. Ibidem, p. 313. 23 Cf. REIS, António, op. cit. Aliás, o problema deste ateísmo de Raul Proença é sempre, ou quase sempre, o mesmo, ou seja, é o seu ateísmo ético de grande aposta no homem e na vida, na sua liberdade e responsabilidade, que o coloca naquilo que nos parece ser o seu grande problema de ordem filosófica e existencial. 24 PROENÇA, Raul, A filosofia de Epicuro e a concepção heróica da vida, op. cit., p. 313. Não será esta consciência da morte o que fez de Proença o pensador reflexivo e o levou ao estudo do Eterno Retorno? Embora o centro das atenções fosse a transformação das elites com vista a uma transformação política, social e cultural, este centro tinha epicentros. 21

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na vida e no pensamento de Proença, que colocou este homem perante as maiores inquietudes existenciais e nos levou a inseri-lo no panorama do pensamento filosófico em Portugal. A sua luta, a sua suprema vontade de viver, de viver tudo com a ansiedade e também com a coragem que lhe conhecemos, prova bem que o ser “infinitamente complexo” e “ser para morte” não consegue, apesar dos esforços, e porque sendo leal à sua consciência – como o foi Proença –, passar por cima daquele grande problema filosófico que o pensador considerou decisivo, ou seja: “Saber aquilo com que, eternamente, podemos contar”. Um pensamento, e uma consciência que o nosso autor pretendia “límpida” e digna, levou-o assim a confrontar-se com todas as realidades que se lhe revelavam. Foi o amor pela vida e pela ideia em que acreditava que o fizeram caminhar na sua luta, nesta fase da vida, centrando a sua atenção na transformação das elites e no modo de o conseguir, para que fosse possível “encarnar uma moral vitalista do heroísmo do dever ao serviço dos valores da Liberdade, da Justiça e do Progresso”25. Porém, Raul Proença estava consciente da grandeza da tarefa e das suas dificuldades, uma vez que se acreditava existir o homem de elite, reconhecia também que ele não se tinha revelado ainda “em toda a sua grandeza e fecundidade”, porquanto a plenitude da consciência e os seus desejos mais profundos ainda estavam adormecidos. Por isso, aquele que devia ser “o apóstolo duma nova crença, o fermento duma nova vida, o ‘acordador’”26, vivia ainda “imerso no sono epicúreo”, nele se aniquilando e, assim, não percebendo que o egoísmo a tudo e todos ofende, porque, eternizando “as coisas mortas, parar a vida, fazer da história uma repetição”, não daria a possibilidade de ver que é “no progresso mesmo da vida a tradição mais iniludível – e a mais nobre”, que o seu sentido se deve procurar27. O ano de 1920 foi para Proença de grande importância no que respeita à abertura de novos caminhos. Algumas das tentativas – Liga de Educação Nacional, da própria Renascença Portuguesa, e Liga de Acção Nacional, assim como a chamada Cruzada Nun’Álvares – apenas serviram como atitudes mais ou menos profilácticas. Mas onde e como encontrar e formar uma nova elite capaz de reformar espiritual e culturalmente a sociedade que em Portugal carecia, segundo o nosso autor, de uma orientação e, mais importante ainda, de educação? Será que hoje, como então, a história se repete?

REIS, António, op. cit. PROENÇA, Raul, A filosofia de Epicuro e a concepção heróica da vida, op. cit., p. 313. 27 Ibidem, p. 314. 25

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Raul Proença: a moral epicurista e o homem de elite

A leitura de Raul Proença do “Eterno Retorno” em Nietzsche PAULO BORGES Universidade de Lisboa

A mais destacada obra filosófica de Raul Proença, O Eterno Retorno, só postumamente publicada, constitui, como nota o seu editor António Reis, um “vastíssimo e praticamente exaustivo estudo” sobre o tema, que assume a sua formulação nietzschiana como “ponto de partida” e de “chegada”1. Proença interessa-se pelo tema por ver nele uma tentativa de resposta à indagação fundamental do homem acerca do seu destino e do destino do mundo, fruto da sua preocupação essencial e prática com “saber aquilo com que eternamente podemos contar. Que posso esperar para mim, e para os outros e para todos? Eis o problema capital da filosofia”2. Vê na doutrina nietzschiana do “Ewige Wiederkunft” a solidarização íntima dos dois destinos e a pretensão de os explicar conjuntamente3, recordando a centralidade e importância que ela assume no filósofo alemão, que a confessa no Ecce Homo como a “Grund-Konzeption” do Assim falava Zaratustra e que se lhe refere como o seu “Hauptgedanke, o seu pensamento capital”4. Se Proença vê o Zaratustra como “O Poema do Super-Homem e do Retorno”5, respectivamente simbolizados pela Águia e pela Serpente, “os dois animais de Zaratustra”, destaca na verdade o último como o “leit-motiv fundamental”, que se repete e progressivamente avoluma nesse “grande poema musical”, “sinfónico” e “wagneriano”6, até assumir a sua expressão central no início da terceira parte da obra, no capítulo intitulado “Da Visão e do Enigma”. Liberto do anão que lhe pesava sobre os ombros, o qual, proclama, não conhece e não pode suportar o seu “pensamento abissal [abgründlichen Cf. REIS, António. Introdução. In: PROENÇA, Raul. O Eterno Retorno, vol. I. Introdução, fixação do texto e notas de António Reis. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1987, p. 29. 2 PROENÇA, Raul, O Eterno Retorno, I, p. 58. Na mesma página, o autor interroga-se: “Em que medida a escatologia e a cosmologia são conexas ou independentes?” 3 Cf. ibidem. 4 Cf. ibidem, p. 60. 5 Cf. ibidem, p. 62. 6 Cf. ibidem, p. 63. 1

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Gedanken]”, Zaratustra detém-se junto de um portal (Torweg, que também significa literalmente “portão louco”), em cujo frontão está inscrito o nome “instante”, onde “se reúnem dois caminhos” frontalmente opostos, que ninguém ainda seguiu “até ao fim”: um estende-se para trás, o outro para diante e ambos duram uma eternidade. Formula então perguntas que simultaneamente se respondem: “Se alguém, todavia, seguisse por um destes caminhos, sem parar e até ao fim, julgas […] que […] se oporiam sempre?” Contemplando o caminho eterno que se estende para trás, não deverá tudo o que é capaz de correr já o haver percorrido pelo menos uma vez? E não deverá tudo o que pode suceder já haver assim sucedido? Se tudo já foi, não devem também aquele portal, a aranha que rasteja ao luar, o luar, Zaratustra e o anão já haver existido? E não estará tudo tão intimamente interligado que aquele instante não arraste atrás de si todas as coisas futuras, incluindo a si mesmo? Não deverá tudo o que pode correr ter de percorrer uma vez mais o longo caminho que se estende para diante? Não será assim necessário que Zaratustra, o anão e todos percorram esse “longo e temível” caminho futuro e do passado regressem àquele mesmo instante?7 Ao dizer isto, Zaratustra falava “em voz cada vez mais baixa”, com medo dos seus “próprios pensamentos e da sua oculta intenção”, quando ouve uivar um cão. Tudo se desvanece e encontra-se só perante um jovem pastor que se contorce, com o rosto desfigurado pela repugnância e pelo terror, pois uma poderosa cobra negra se lhe introduziu na boca, mordendo-lhe a garganta. Começa a puxar pela serpente, sem sucesso, até que uma voz grita pela sua boca: “Morde! Morde! / Arranca-lhe a cabeça! Morde!” Ao gritar, “espanto, ódio, nojo, piedade”, tudo o que em si “trazia de melhor e de pior”, jorrava “num único grito”. Aqui, Zaratustra interrompe a narrativa para pedir a todos, “exploradores” e “aventureiros” ou não, que lhe decifrem o enigma daquela visão” que é simultaneamente “previsão”: “Que vi então em imagem? E qual é o que deve chegar um dia?”; “Quem é o homem em cuja garganta se introduzirá assim o que há de mais negro e de mais pesado no mundo?”8 Retomando a narrativa, Zaratustra conta que o pastor morde firmemente a cabeça da serpente e cospe-a para longe, levantando-se “com um salto”. Já não é então pastor nem homem: “transformado, transfigurado Cf. NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falava Zaratustra. Tradução de Alfredo Margarido. Lisboa: Guimarães Editores, 1964, pp. 174-175. Afastamo-nos por vezes da tradução portuguesa, consultando o original alemão: Also sprach Zarathustra. Frankfurt am Main: Insel Verlag, 1976, pp.159-160. 8 Cf. NIETZSCHE, Friedrich, Assim Falava Zaratustra, pp. 175-177; Also sprach Zarathustra, pp. 158-159. 7

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[“Umleuchteter”, iluminado?], ria”, ria como nenhum homem o fez antes na terra. E o capítulo termina com a confissão: “Ó meus irmãos! Ouvi um riso que não era um riso humano, e agora devora-me uma sede, uma ânsia/saudade [Sehnsucht] que nada aplacará. A minha ânsia/saudade [Sehnsucht] daquele riso devora-me; oh!, como posso tolerar ainda a vida! E como tolerar agora a morte!”9

Mais adiante, na segunda parte do capítulo “O convalescente”, Zaratustra, ao mesmo tempo que se assume como “o advogado da vida, o advogado da dor, o advogado do Círculo”, volta a invocar o seu “pensamento abissal”, o seu “abismo [Abgrund]”, que então lhe fala, como num trazer para a luz a sua “última profundidade”. Esta experiência, ambígua na simultânea expectativa de salvação e rejeição que gera, é demasiado intensa e Zaratustra desaba como morto, assim permanecendo sete dias10. Quando volta a si, os seus animais exortam a que se erga e saia da sua caverna, pois “todas as coisas” por si “suspiram” e o mundo aguarda-o “como um vergel”. Logo com ele conversam, formulando claramente a doutrina do Eterno Retorno: “Tudo vai e tudo volta, roda eternamente a roda do ser. Tudo morre e tudo torna a florir; eternamente se desenrola o ciclo da existência. Tudo se quebra, tudo se reajusta; eternamente se edifica a mesma habitação do ser. Tudo se separa, tudo volta a encontrar-se; o ciclo da existência conserva-se eternamente fiel a si mesmo. A existência começa em todos os instantes; em volta de ‘aqui’ gravita a esfera ‘acolá’. O centro está em toda a parte. A senda da eternidade regressa pelo seu próprio caminho”11.

É então que Zaratustra, afirmando que os seus animais bem sabem “o que se realizou” ao longo daqueles sete dias, se confessa como o próprio pastor que teve de morder e cuspir da boca a cabeça do “monstro”12. Do mesmo modo, após proclamar ser ainda demasiado mesquinho o que o homem tem de pior e de melhor, proclama que isso que o sufocava era precisamente, por um lado, “o enfado […] do homem”, e, por outro, as “palavras do Profeta: «Tudo é igual, nada vale a pena, o saber abafa-nos»”13. Idem, Assim Falava Zaratustra, p. 177; Also sprach Zarathustra, p. 160. Idem, Assim Falava Zaratustra, pp. 243-244; Also sprach Zarathustra, pp. 218-219. 11 Idem, Assim Falava Zaratustra, pp. 245-246; Also sprach Zarathustra, p. 221. 12 Idem, Assim Falava Zaratustra, p. 246; Also sprach Zarathustra, p. 221. 13 Idem, Assim Falava Zaratustra, pp. 246-247; cf. também p. 248; Also sprach Zarathustra, pp. 221-222. 9

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Refere-se Nietzsche às palavras do Eclesiastes: “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade”; “O que foi, será, / o que se fez, se tornará a fazer: / nada há de novo debaixo do sol!” (1: 2-9)? Proença compara-os, numa passagem muito fecunda14. Seja como for, o capítulo termina com a proclamação de Zaratustra, pelos seus animais, como “o profeta (Lehrer) do eterno Retorno”, aquele que ensinará “que todas as coisas regressam eternamente e nós com elas”, que nós e elas existimos e existiremos “um número infinito de vezes”, que “há um grande Ano do devir”, como ampulheta que se vira e revira sem cessar, e que o próprio Zaratustra, com aquela águia e aquela serpente, aquele sol e aquela terra, regressará eternamente para aquela mesma vida (não “nova”, “melhor” ou “parecida”), “com todas as suas grandezas e todas as suas misérias”, para voltar a ensinar o mesmo Eterno Retorno, “para voltar a anunciar o grande Meio-dia da terra e dos homens, para voltar a anunciar […] o Super-homem”15. Segundo Raul Proença, ao morder e cuspir o que o sufoca, precisamente o tédio do homem e do Eterno Retorno dele e de tudo, Zaratustra sai triunfante da sua “terrível crise”, como um “afirmador” que diz “amen” à “infindável repetição da existência”, não enquanto “Moralista”, mas sim “como um Artista, que à inteligibilidade e à plena grandeza das concepções escatológicas do cristianismo e da verdadeira moral religiosa, substitui o gozo, a ebriedade das emoções estéticas, do espectador e do contemplador”. Encontrando na beleza a “justificação da vida”, conferindo “eternidade ao momento fugaz”, teria posto fim ao “drama”, evitado “para sempre a tragédia” e iniciado o “ditirambo” dionisíaco16, onde culmina a terceira parte da obra: “Oh, como não hei-de eu arder com o desejo da Eternidade, o desejo do anel dos anéis, o anel nupcial do Regresso! “A obra-prima de Nietzsche é, pois, mais do que o poema do Super-homem, o poema do Retorno. Na história da literatura do mundo, Zaratustra ocupa o pólo oposto do velho Eclesiastes. Ambos eles afirmam a seu modo a eterna repetição das mesmas coisas, ambos eles negam um sentido, um verdadeiro sentido, à vida humana e à vida universal. Mas perante a monotonia da existência, ante a vertigem do eterno rodopio, este abre na árida planície da Judeia um largo bocejo de enfado e de amargura, enquanto aquele levanta nas verdes alturas de Engadina, por sobre o mundo, um clamor de triunfo e de alegria. Este é o poema elegíaco do Retorno, aquele o seu poema ditirâmbico. Zaratustra é o nihil sub sole novum do Eclesiastes transposto em optimismo”. PROENÇA, Raul, O Eterno Retorno, I, p. 86. 15 Cf. NIETZSCHE, Friedrich, Assim Falava Zaratustra, pp. 249-250; Also sprach Zarathustra, pp. 223-224. 16 Cf. PROENÇA, Raul, O Eterno Retorno, I, pp. 70-71. 14

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Ainda não encontrei a mulher de quem quisesse ter filhos, a não ser esta mulher a quem amo, porque te amo, ó Eternidade!”17

Isto se confirma, segundo Proença, na quarta parte da obra, em “O canto da Embriaguez”, onde se exalta uma alegria (Lust) que, ao contrário do mal e da dor, “não quer filhos nem herdeiros”, mas apenas “a si mesma, […] a eternidade, o Regresso, e que tudo continue eternamente igual a si mesmo”. Dizer sim a esta alegria é dizer simultaneamente sim a todas as dores e a tudo, pois “todas as coisas estão encadeadas, misturadas, amorosamente enlaçadas”. “A alegria quer eternidade”, “a eternidade de todas as coisas, […] uma profunda, profunda eternidade”18. Esta é a alegria, como bem nota Proença, que “quer tudo, mesmo a dor […], pois ela é, essencialmente, uma afirmação de vida”, que diz sim e uma vez mais e por toda a eternidade”19. Se, quanto à expressão, o Assim Falava Zaratustra, segundo o próprio Nietzsche, deve ser classificado como “Música”, já quanto aos motivos Proença classifica-o como “Libido”, nas suas três formas de saber, poder e sentir, avultando aqui a ânsia saudosa, a “Sehnsucht”. Nesta perspectiva, escreve, a obra “prende-se à mesma raiz voluptuária, ao mesmo pathos, que o Tristan und Yseut de Wagner e o Il Piacere, Il Fuoco e Il Trionfo della Morte de d’Annunzio”20. Raul Proença mostra um entendimento profundo do pensamento nietzschiano, ao considerar que, na bênção e glorificação de um único “instante de profunda e exaltada alegria”, abençoamos e glorificamos toda a nossa existência e a existência de todo o universo, com todas as suas e nossas “dores” e “amarguras”, pois em Nietzsche, tal como no estoicismo, “todas as coisas” estão entretecidas. Uma vez que “cada instante da nossa vida” resulta “de toda a nossa existência anterior e de toda a anterior existência universal”, influindo ao mesmo tempo sobre o “nosso futuro” e o “futuro de tudo”, na justificação de um único instante da vida se justifica a sua totalidade. Todavia, num outro nível de leitura, mais profundo, não só se justifica, indirectamente, toda a série causal dos instantes da vida numa só das suas unidades, mas é a própria vida que directamente no mesmo instante é abençoada e justificada, pois é “toda a vida” que em cada um dos momentos “está totalizada e realizada”, presente, vivendo-se a si mesma, tal “oceano do tempo a bater, para nosso prazer Cf. NIETZSCHE, Friedrich, Assim Falava Zaratustra, p. 262; Also sprach Zarathustra, p. 236. Cf. idem, Assim Falava Zaratustra, pp. 362-364; Also sprach Zarathustra, pp. 326-328; PROENÇA, Raul, O Eterno Retorno, I, pp. 72-73. 19 Cf. PROENÇA, Raul, O Eterno Retorno, I, p. 74. 20 Cf. ibidem, pp. 75-76. 17

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indizível, na praia do instante”21. Neste sentido, há em Nietzsche o radical “optimismo” de uma “bênção universal”, a transposição das “fronteiras da nossa personalidade” na aceitação da “dor universal” que no mesmo acto a transfigura, pois “todas as coisas” nesse instante encontram o que as legitima, justifica e “absolve de ser”22. É na verdade esse instante, o “Maior Instante”, o Instante da suprema Alegria que a tudo assume e afirma, qual cume e apoteose da existência universal, que justifica e absolve, pela sua eterna repetição, a mesma eterna repetição de todas e das mesmas dores e alegrias: “Tudo se passa como se ele fosse a causa final e o remate supremo da existência, como se toda a Vida nele desaguasse, nele se perdesse, e nele se justificasse. Por este momento, por este único momento, ainda uma vez mais! Eis a afirmação mais radical do optimismo nietzschiano”23. Raul Proença não concorda todavia com o autor do Ecce Homo, não vendo mais razão para “abençoar a vida, por um só instante de prazer magnífico”, do que para a “amaldiçoar, por um único momento de dor incomportável”. Além de não dar uma “solução geral” ao “problema do valor da vida”, que ficaria refém das modalidades das vidas particulares, a visão nietzschiana suporia um sempre contestável “optimum absoluto” na mais elevada alegria de cada indivíduo24. Mais decisiva, na refutação de Proença, é todavia a confusão do “prazer” – “Freude”, “Lust”, “Vergnügen” – com a “felicidade” – “Glück”, “Glückseligkeit” –, o que é “agudo e instantâneo com o que é grave, perfeito, pleno”. A intensidade do prazer, pela sua própria natureza efémero, e tanto mais quanto mais intenso, contrastaria radicalmente com a felicidade, a única a poder ser plena e eterna. A própria fugaz intensidade do prazer, que não deixaria senão o vão “desejo de repetição”, poderia ser o maior obstáculo à verdadeira felicidade25. Cremos que Proença não presta aqui plena justiça à “alegria” nietzschiana, mais complexa do que a mera fugacidade da gratificação sensual, objecção que aliás considera em nota26. Seja como for, considerável parte da sua extensa obra sobre o Eterno Retorno é dedicada a mostrar as contradições internas do pensamento nietzschiano, mormente em torno da tese do Eterno Retorno: “Zaratustra está em contradição com Nietzsche, Zaratustra e Nietzsche em contradição consigo próprios, o conjunto da sua 23 24 25 26 21

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Cf. ibidem, p. 80. Cf. ibidem., p. 81. Cf. ibidem. Cf. ibidem, pp. 82-83. Cf. ibidem, pp. 83-84. Cf. ibidem, p. 98, nota 76.

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obra em contradição com a sua obra ‘mais pessoal’, e o seu Hauptgedanke em contradição com todos ou quase todos os seus outros pensamentos”. Em particular, haveria um conflito entre Zaratustra, enquanto contemplativo que goza o arrebatamento perante a realidade que o arrasta, e o “filósofo da vontade de poder”27. Proença desenvolve uma extensa análise dessas contradições no penúltimo capítulo da obra, antes de a terminar, rejeitando a doutrina do Eterno Retorno pelas suas consequências pragmáticas. Segundo Proença, as contradições de Nietzsche não derivam da “natural evolução das ideias” ao longo do tempo, verificando-se antes “não só de período para período, de obra para obra, mas no decurso do mesmo período, através das páginas da mesma obra, no mesmo capítulo e até na malha discursiva da mesma série de raciocínios”. Isso seria evidente na Vontade de Poder, onde na exposição mais sistemática do Eterno Retorno se justaporiam as teses mais incompatíveis: “Necessidade, acaso, lei do férreo determinismo, lances de dados, princípio da razão suficiente e da causalidade universal, negação da necessidade e da simples ideia de lei”, junto com o “elogio da boa vontade, mas da boa vontade do círculo e do rodopio”28. Haveria em particular uma “contradição insanável” entre a doutrina da vida como devendo sempre exceder-se a si mesma e a eterna repetição de tudo, ou seja, entre não menos que “as duas Hauptlehre”, as “doutrinas principais”, do “livro máximo” de Nietzsche, o Zaratustra, que aí se pretendem completar: perante isto, questiona-se Proença se os dois animais simbólicos de Zaratustra, “a águia e a serpente”, “não se lançarão uma de encontro à outra e se não sufocarão na luta”29. Não obstante a pertinência da sua análise, no confronto com os textos nietzschianos, que mostram sempre um pensamento em busca de si mesmo, Proença havia já indicado um possível caminho resolutivo da contradição, ao constatar que Nietzsche “aceita o eterno retorno com um espírito inteiramente diferente” dos seus predecessores, reconhecendo que a doutrina assume em Nietzsche uma eficácia operativa de uma mutação da consciência e do agir, entendida mesmo como o decisivo factor de diferenciação e apuramento moral da humanidade. Segundo o que já se encontra no aforismo 341 de A Gaia Ciência, perante um “demónio” que revelasse a Cf. ibidem, p. 78. Cf., também, p.76. Cf. idem. O Eterno Retorno, vol. II. Introdução, fixação do texto e notas de António Reis. Lisboa: Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987, p. 227. Cf., também, p. 238. 29 Cf. ibidem, pp. 239 e 246. 27

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cada homem que iria ter de recomeçar a sua existência, tal como a leva e levou, “sem cessar” e “sem nada de novo”, uns lançar-se-iam por terra, rangendo os dentes e amaldiçoando-o, enquanto outros, a partir de um por si vivido “instante prodigioso”, o exaltariam como se nunca tivessem ouvido nada de mais divino. Escreve Nietzsche que, se este pensamento dominasse o homem, talvez o transformasse e talvez o aniquilasse. O “peso mais pesado” pesaria sobre si, o peso de questionar “a propósito de tudo: «Queres isto? E quere-lo outra vez? Uma vez? Sempre? Até ao infinito?»”. A única alternativa a essa sensação de esmagamento exige, segundo Nietzsche, amar-se a si próprio e à vida para “nunca mais desejar outra coisa além dessa suprema confirmação”30, a confirmação de que se quer para sempre o que agora se faz e se vive, tal qual se faz e se vive. Se aqui, glosando uma famosa afirmação nietzschiana – “O que não me mata torna-me mais forte” –, o que a uns mata, a outros torna mais fortes, o decisivo, todavia, é ser possível introduzir uma diferença fundamental, uma alteração, no modo como se vive e se reproduz a eterna repetição do acontecer. Há assim uma tensão, no mínimo, entre a eterna e mera repetição mecânica de tudo, a repetição infinita de todas as combinações possíveis de forças finitas31, e a suposição, na visão de Nietzsche e na própria interpretação de Proença, de que o homem pode inscrever na repetição eterna o modo como viva cada instante, de forma a que, “assumindo cada momento da nossa vida um valor de eternidade”, confira um “valor absoluto” “à mais insignificante das […] acções”. Vendo o homem como o escultor, em cada um dos seus actos, de um “bloco de eternidade”, Proença desvenda afinal no pretenso esteta imoralista, e agora, por sua vez, em flagrante contradição com o que atrás havia dito32, um pensador em quem o “valor moral do eterno retorno” supera o cosmológico, sobrevivendo à sua eventual falsidade: “No fundo importa relativamente pouco que haja uma volta eterna do momento actual; o que importa é proceder de forma como se o momento actual tivesse de ser repetido eternamente”. Onde Kant formula o seu imperativo como “procede de forma que tivesses de erigir o teu procedimento em regra de procedimento universal”, Proença vê Nietzsche substituí-lo por “A minha doutrina declara: vive de tal maneira que devas desejar reviver”; “Não olhar para felicidades Cf. NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. 2.ª edição. Tradução de Alfredo Margarido. Lisboa: Guimarães Editores, 1977, pp. 227-228. 31 Cf., por exemplo, idem. La Volonté de Puissance, vol. I. Texto estabelecido por Friedrich Würzbach; traduzido do alemão por Geneviève Bianquis. Paris: Gallimard, 1995, pp. 334-343. 32 Cf. PROENÇA, Raul, O Eterno Retorno, I, pp. 70-71. 30

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e para bênçãos e para desconhecidas graças longínquas; mas viver de tal maneira que quiséssemos viver ainda e reviver assim eternamente. A nossa tarefa surge diante de nós a cada instante”33. Aqui se pode divisar a superação do que parecia a “contradição insanável”34 entre as doutrinas do Eterno Retorno e do Super-homem. Se o Eterno Retorno é também o retorno eterno da possibilidade de viver o instante do modo pelo qual se o deseje eternizar, se o Eterno Retorno é também o retorno eterno da possibilidade de exercer a vontade como aceitação e criação, o Eterno Retorno é também o retorno eterno da possibilidade da Vida se exceder a si mesma, nesses instantes e ápices de plenitude que deseja inscrever na recorrente eternidade. A eterna circularidade do Mesmo é assim permeada da possibilidade de que, a cada momento, cada um desses momentos seja convertido num instante de Alteridade que – pois que se elege para todo o sempre, de uma vez por todas – logo se integre na Mesmidade, sobrelevando-a e transfigurando-a. A eterna circularidade do anel do devir é composta de pontos que podem ser de mutação transcensora e qualificadora, mostrando a espiral como a possibilidade e o dinamismo interno do aparente círculo da repetição sem auto-excedência. Gianni Vattimo diz que o instante que o homem quer sempre de novo é o instante “imenso”, sem nenhuma referência a uma transcendência extrínseca, em que existência e significado coincidem plenamente, em que o tempo já se não vive na angústia da “tensão” para uma “culminação sempre por vir”. O eterno retorno é assim o modo próprio do Super-homem habitar a terra35 e, diríamos, porventura o modo próprio do homem não só suportar a dissipação de referências e o sentimento de errar “como através de um nada infinito”, gerados pela morte de Deus, mas reconhecer-se ainda, autotranscendido e transfigurado, no pujante íntimo desse mesmo “espaço vazio”36, enfim livre dos conceitos com que o preenche a mente, religiosa, metafísica ou não. Cf. ibidem, pp. 260-261. Cf. idem, O Eterno Retorno, II, p. 246. 35 Cf. VATTIMO, Gianni. El sujeto y la máscara. Nietzsche y el problema de la liberación. Tradução de Jorge Binaghi (com a colaboração de Edit Binaghi y Gabriel Almirante). Barcelona: Ediciones Península, 2003, pp. 317-318. Para outras leituras do Eterno Retorno, cf., entre outros: FINK, Eugen. La filosofia de Nietzsche. Tradução de Andrés Sánchez Pascual. Madrid: Alianza Editorial, 1980; LÖWITH, Karl. Nietzsche. Philosophie de l’éternel retour du meme. Tradução de Anne-Sophie Astrup. Paris: Hachette Littératures, 1998; DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la philosophie. Paris: PUF, 2007. 36 Cf. o discurso do “louco” em NIETZSCHE, Friedrich, A Gaia Ciência, pp. 143-144. Preferimos a nossa tradução dos excertos utilizados do original alemão: NIETZSCHE, 33

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A transcensão da asfixia pela eterna repetição do mesmo, em livre eleição do modo de viver o instante que se quer para sempre repetido, é o morder a cabeça da serpente, cuspi-la da boca, saltar e rir transfigurado. É disso que há saudade (Sehnsucht) e é isso que, afinal, une e transcende a serpente e a águia. A serpente que morde a própria cauda, símbolo urobórico da vida mortal que se renova e repete, devorando-se sem cessar, súbito ganha asas e, Serpente Emplumada, acede a nada mais repetir senão o seu incessante e “novo começar”, como na final metamorfose do espírito em “criança”: “Inocência e esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma roda que gira por si própria, primeiro móbil, afirmação santa”37.

Friedrich. Werke, vol. II. Die Fröhliche Wissenschaft. Munique: Carl Hanser Verlag, 1966, p. 127. 37 NIETZSCHE, Friedrich, Assim Falava Zaratustra, p. 31.

E7/2060, 2061, 2062 LUÍS PRISTA Escola Secundária José Gomes Ferreira

O início do projecto do Guia de Portugal, de Raul Proença, quase coincide com os começos da Seara Nova. Em 1922, já Proença assediava possíveis colaboradores; em 1923 saía o espécime, Guia de Évora e seus arredores, que prometia para o ano seguinte os dois volumes que se previa constituíssem todo o Guia. A Biblioteca Nacional de Lisboa, que Cortesão e Proença dirigiam, seria a editora da obra, tipografada nas suas excelentes Oficinas Gráficas. No Convento de São Francisco, não era aliás difícil encontrar boa parte dos colaboradores, alguns profissionalmente ligados à Biblioteca. E há alguma sobreposição entre Seara Nova e Guia de Portugal também no que respeita a intervenientes1. Além do próprio organizador, foram autores de artigos no primeiro volume do Guia, relativo a Generalidades – Lisboa e Arredores e publicado em 1924, Jaime Cortesão, António Sérgio, Aquilino Ribeiro, Raul Brandão, Luís da Câmara Reis, Afonso Lopes Vieira, Teixeira de Pascoaes, Júlio Dantas, Pina de Morais, Silva Teles, Reinaldo dos Santos, Matos Sequeira, Nogueira de Brito, Raul Lino, José de Figueiredo, entre outros. O segundo volume, sobre Extremadura, Alentejo, Algarve, convoca de novo vários daqueles escritores e ainda, por exemplo, José Rodrigues Miguéis, João Barreira, Brito Camacho, Carlos Selvagem, Hernâni Cidade. Saiu do prelo no fim de 1927, quando o autor-coordenador estava já exilado em Paris. Haveria que investigar se a clandestinidade a que Proença se vira forçado a partir de Dezembro de 1926 condicionou a revisão do volume. Em 1932, o regresso a Portugal, mas para o internamento no Hospital Conde de Ferreira. Operado cinco anos depois, parece ir recuperando, com intermitências. Em 1939, retoma o trabalho para o Guia de Portugal, tendo-se conseguido promessas de apoio institucional à edição. Durante Um diagrama, concebido por António Braz de Oliveira, sobre o chamado “Grupo da Biblioteca” põe na intersecção entre Guia e Seara Nova Proença, Cortesão, Sérgio, Aquilino, Câmara Reis, Brandão; e haveria mais colaboradores comuns. O sociograma está em: BAPTISTA, Jacinto (coord.). Jaime Cortesão, Raul Proença. Catálogo da Exposição Comemorativa do Primeiro Centenário (1884-1984). Lisboa: Biblioteca Nacional, 1985, p. [325].

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estes anos últimos, o Guia terá funcionado como estímulo, incentivado por familiares e amigos, e talvez também, por parte de Proença, como pretexto para reivindicar a saída do hospital2. O terceiro volume, sobre Beira Litoral, Beira Baixa e Beira Alta, foi publicado em finais de 1944, já depois da morte de Proença, em 1941, e na sequência de compromisso firmado com o Estado por escritores amigos, ainda em vida do idealizador do Guia. São novidade como colaboradores Amorim Girão, Orlando Ribeiro, Eugénio de Castro, João de Barros, Hipólito Raposo, Ferreira de Castro, Vitorino Nemésio, Agostinho de Campos, Rodrigues Lapa, Agostinho da Silva, Tomás da Fonseca, Samuel Maia, etc. O volume foi ultimado por Sant’Anna Dionísio, que durante o breve retorno de Proença o assessorara. Nos anos sessenta, a série do Guia de Portugal foi assumida pela Fundação Calouste Gulbenkian e por Sant’Anna Dionísio, com vicissitudes a que pouco me reportarei. Mas vale a pena reter que os tomos que vemos nas livrarias ou são reedições (pela Fundação Gulbenkian, com preâmbulo e algumas notas, prescindíveis, do reeditor) dos três volumes publicados primitivamente na Biblioteca Nacional ou pertencem à continuação da série, volumes dirigidos por Sant’Anna Dionísio, ambos em dois tomos e logo de início saídos na Gulbenkian (IV, Entre Douro e Minho, [1964] e 1965, e V, Trás-os-Montes e Alto Douro, [1969] e 1970). Cingir-me-ei aos volumes de 1924 e 1927, os seguramente de Proença. GdP-I e GdP-II servem de siglas, seguidas das páginas (na 1.ª edição [na 2.ª edição]). O espólio de Raul Proença na Biblioteca Nacional de Portugal (Arquivo de Cultura Portuguesa Contemporânea) é o BNP Esp. E7, que tratarei pelo hipocorístico E7; o BNP Esp. D2 é o espólio de Raul Brandão, doravante D2, que esteve depositado na Biblioteca Nacional, onde há um seu microfilme, e passou recentemente para a Sociedade Martins Sarmento; Cartas e outros escriptos abrevia Cartas e outros escriptos dirigidos a Afonso Lopes Vieira, VII, correspondência a Afonso Lopes Vieira, na Biblioteca de Afonso Lopes Vieira, Biblioteca Municipal Afonso Lopes Vieira, em Leiria. Tarefa colectiva, livro compósito, de índole ao mesmo tempo prática e literária, enquanto objecto de decisões filológicas o Guia tem aliciantes que não se concentram em outras obras. Autoria dos artigos é indicada por fórmulas heterogéneas. Darei exemplos, do rodapé de GdP-I, dispostos num contínuo cujos limites são Para este período: REIS, António. Raul Proença. Biografia de um intelectual político republicano, vol. II. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003, pp. 170-209.

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a assinatura individual do colaborador e a assinatura pelo organizador também sozinho. Em grau crescente de responsabilidade de Proença: “Por Silva Teles”; “Por Matos Sequeira e Nogueira de Brito”; “Êste parágrafo é da pena de Reinaldo dos Santos”; “Nota de Raúl Brandão”; “Notas fornecidas pelos srs. Mário de Azevedo Gomes e Walter Oates”; “Por Raúl Proença. O primeiro parágrafo da descrição é quási todo da pena de Raúl Brandão”; “Descrição por José de Figueiredo; parte histórica por Raúl Proença”; “O princípio é de Raúl Brandão; o final de Raúl Proença”; “Por Teixeira de Pascoais e Raúl Proença”; “Por Raúl Proença”. Há que contar ainda com a parte não subscrita por um autor em particular, implicitamente redigida por Proença. Matizada ou não, a assunção da autoria não impediu que os textos se sujeitassem a uma conformação, a cargo de Proença e assentida pelos colaboradores. Numas Instruções para uso dos colaboradores – “Guia de Portugal” – 3.º e 4.º volumes, de 25 de Dezembro de 1939, detalha-se o protocolo entre autores de artigos e organizador: “O escritor sujeita-se à condição prestabelecida de que o organizador da obra se considera, para os efeitos adiante indicados, como colaborador do trabalho a efectuar. São êsses efeitos: harmonização de todos os textos, de maneira que a obra pareça o menos possível uma cerzidura de vários fragmentos, absolutamente desligados uns dos outros; supressão de tôdas as afirmações já contidas noutros pontos mais adequados; colocação do artigo no lugar do Guia mais conveniente, segundo o plano adoptado; uniformização da ortografia; permissão conferida ao organizador para dividir excepcionalmente o trabalho em duas ou mais partes, consoante as vantagens da descrição topográfica; assim como de sacrificar uma ou outra frase ou palavra que lhe pareça destoante do espírito da obra”. Este trato entre autores e organizador está abonado desde o início, na correspondência epistolar, em depoimentos posteriores de ambas as partes, no volume experimental Guia de Évora e seus arredores. Nos autógrafos enviados ao organizador, parte deles no E7, podem ter de ser discriminadas, e decifradas, várias mãos. É o que acontece com o manuscrito da “Introdução etnográfica”, de Aquilino Ribeiro, E7/2115, em que semelhança e coincidência de instrumentos de escrita dificultam a seriação das intervenções: Aquilino, Proença-1, Sérgio-1, Sérgio-2, Proença-2, Proença-3.3

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PRISTA, Luís. Quem escreveu um texto de Aquilino? In: Actas do 7.º Encontro da Associação Portuguesa de Linguística (Lisboa, 1991). Lisboa: Associação Portuguesa de Linguística, 1992, pp. 342-360.

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É também singular a brusca mudança do campo bibliográfico. Originalmente, o Guia não recusava cumprir funções utilitárias, turísticas, hoje é sobretudo interessante como antologia literária. Porque tentou recuperar aquele primeiro objectivo, numa infeliz e logo recolhida reedição do volume I (Guia de Portugal, I, tomo I (Generalidades – Lisboa), Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, [1975]), Sant’Anna Dionísio reescreveu alguns trechos, com resultados risíveis4. Entretanto, na razão inversa da obsolescência enquanto acessório de viajantes, a valorização da face literária do Guia legitima a reconstituição dos originais dos escritores que Proença coordenou e dos do próprio organizador. Enfim, as diversas condições dos artigos constituem amostra razoável das situações que procura resolver a crítica textual aplicada a manuscritos modernos. Em trabalho anterior, estudei colaborações de Afonso Lopes Vieira, António Sérgio, Jaime Cortesão, Raul Brandão, Teixeira de Pascoaes, e propus estratégias de edição para cada uma5. Nesta comunicação, regressarei a Brandão, editando autógrafos de que não me ocupei então. Para ilustração de como se processavam redacção e editoração dos artigos dos dois primeiros volumes do Guia, Raul Brandão é uma boa escolha. Aceita com bonomia, solicitando-o até, o copy editing de Proença. Os seus artigos atestam todo o espectro de explicitações de autoria a que aludi. A cursividade da letra põe dificuldades que não se experimentam com a maioria das outras colaborações, quase sempre muito decifráveis. Nos manuscritos, lápis ou caneta cruzam-se com os da mulher, D. Maria Angelina. Inábil nos desígnios funcionais do Guia e com carta branca para enviar o que lhe aprouvesse, os textos de Brandão foram dos que o coordenador mais terá tido de cerzir, acrescentar, desaproveitar. Picante final, pela mesma época Raul Brandão ia concebendo as duas obras que rivalizam com o Guia de Portugal no campo da literatura de impressões de viagem, Os Pescadores e As Ilhas Desconhecidas6. Estas idiossincrasias reflectiram-se no que editamos a seguir. Três desses textos de Brandão não aparecem assinados no Guia. Dois dos manuscritos, da mão de Maria Angelina, têm sido atribuídos erradamente a Jaime

Idem. Dionísio que editava Proença que editava Sérgio que editava Sérgio. In: Actas do 6.º encontro da Associação Portuguesa de Linguística (Porto, 1990). Lisboa: Associação Portuguesa de Linguística, 1991, pp. 271-289. 5 Idem. Para a edição do Guia de Portugal. Dissertação de mestrado. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1992. 6 BRANDÃO, Raul. Os Pescadores. Paris-Lisboa: Aillaud & Bertrand, 1923; BRANDÃO, Raul. As Ilhas Desconhecidas. Notas e paisagens. Paris-Lisboa: Aillaud & Bertrand, 1926. 4

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Cortesão. Nas nossas transcrições ficaram mais cruzes e asteriscos do que conviria. Quanto a características redaccionais, entreveremos dois ou três Brandões. A maioria dos textos no primeiro documento exibe o desprendimento que se costuma atribuir ao processo de escrita do autor de Húmus: algumas emendas imediatas (mas sem manifestarem hesitações de sintaxe, antes opção por palavra da mesma classe: arvores magestosas; esta pobreza; degraus são escavados; etc.) e uma releitura global apressada (escassas emendas mediatas; lapsos evidentes; agramaticalidades esquecidas), como se Brandão considerasse as descrições antetextos de artigos que Proença ainda elaboraria. Já toda a primeira parte de “[Ericeira]” está mais revista, em termos que parecem desmentir o Brandão espontâneo e improvisador: serão de novo relativamente insignificantes as emendas em curso de escrita, mas há bastantes emendas mediatas (por substituição e por adição)7. Nos dois textos ditados a Maria Angelina, as emendas “em curso de escrita”, como é natural, são desinteressantes, e há uma revisão leve, após releitura ou reaudição, que recorre sobretudo à adição de segmentos e faz poucas substituições ou supressões: o texto ditado já era uma versão revista do que Brandão ia lendo dos seus apontamentos. Excluindo cartas, há quatro autógrafos de Raul Brandão no espólio de Raul Proença, os documentos E7/2060, 2061, 2061-A e 2062. O E7/2061-A, aproveitado no artigo “[S. Pedro de Alcântara, panorama]” (GdP-I, 320 [326-327]), que leva a assinatura “O princípio é de Raúl Brandão; o final de Raúl Proença”, já foi estudado e editado8. São os três outros documentos que nos ocuparão. Como o E7/2060 reúne quatro conjuntos diferentes, descreverei cada um deles isoladamente (“[Aos Capuchos, pela estrada da Pena]”; “[Ericeira]”; “Adraga”; “[Setúbal]”); seguem-se o E7/2061 (“Praia da Rocha”) e o E7/2062 (“[Descida do Guadiana]”). Para os seis trechos proceder-se-á de modo semelhante: tentativa de reconstituição da história do texto, apoiada na correspondência; leve comparação com o Guia; descrição material simplificada; edição genética. Não se chega a fazer um aparato com a variação relativamente ao impresso, até porque não se trata de editar o Guia, mas autógrafos de Raul Brandão mais ou menos encomendados para o Guia. Sobre emendas imediatas, ou em curso de escrita, e mediatas, ou de revisão: CASTRO, Ivo. Introdução. In: BRANCO, Camilo Castelo. Amor de Perdição. Edição genética e crítica de Ivo Castro. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2007, pp. 9-121, 71-85. 8 PRISTA, Luís. Para a edição do Guia de Portugal, pp. 117-142. 7

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Ficam transcritos todos os textos de Raul Brandão para o Guia de que há autógrafo no espólio de Proença. No GdP-I temos ainda “[Cascais, algumas notas]” (599-604 [618-623]), assinado “Por Raúl Proença. O primeiro parágrafo da descrição é quási todo da pena de Raúl Brandão”, cujo original brandoniano não encontrei; e “Costa da Caparica” (616 [636-637]), assinado “Por Raúl Brandão” (na edição actual, este pé-de-página ficou com uma nota, das tais desnecessárias, de Sant’Anna Dionísio, o que provocou a omissão da assinatura e a atribuição a Raul Brandão do artigo seguinte, na verdade de Proença, “Ao Seixal”), que aproveita muito literalmente, apenas com a ordem trocada, dois parágrafos de Os Pescadores (248-250; o original de imprensa hão-de ter sido recortes de um exemplar do livro, como para outros passos do Guia se atesta pelos próprios fragmentos colados). Do GdP-II, só para “Berlenga” (583-587 [583-587]), que leva a assinatura “A descrição (salvo as informações de ordem prática) é de Raúl Brandão”, não se encontra autógrafo de Brandão, mas também terão servido, embora entremeados por frases de Proença, recortes dos Pescadores (205-211). É altura de explicar o código usado nas transcrições genéticas. Os parênteses esquinados (< >) delimitam os segmentos cancelados por Raul Brandão ou, sendo o texto ditado, por Maria Angelina. Os parênteses rectos ([ ]) delimitam acrescentos nas entrelinhas ocorridos já depois de fechado o texto dessa linha, pelo menos. Trata-se de segmentos lançados ao cimo de outros entretanto cancelados ou segmentos inseridos na entrelinha (neste caso, em geral com recurso a um vê ou a uma espécie de chaveta). Não estamos perante expressões acrescentadas em curso de escrita. Note-se que há segmentos que não implicaram ocupação de entrelinha, embora, por diferenças de matiz da tinta ou pela compressão do espacejamento, se perceba terem sido inseridos depois de a linha já estar preenchida, sendo portanto verdadeiros acrescentos, contidos também dentro de parênteses rectos. Ao contrário, não cabem nesta figura as situações em que um segmento lançado a seguir a uma expressão cancelada fica ligeiramente encavalitado sobre o trecho riscado anterior, descendo depois, de tal modo que se percebe ter sido a alteração engendrada quando o resto da linha ainda estava livre. Os parênteses esquinados seguidos de barras (< >/ \) significam que aos segmentos contidos nos parênteses esquinados o autor sobrepôs o que fica entre barras. Não é obrigatório que se trate de emendas em curso de escrita, mas, a não ser com palavras curtas ou desinências, este redesenho das letras não é um expediente adequado a reformulações depois de o texto estar todo lançado. É mais comum a sobreposição acontecer no momento

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em que a palavra está a ser inscrita. Muitas vezes, o objectivo é definir melhor a caligrafia, para desfazer ambiguidades na leitura. Em outros casos, e aí é que a figura pode servir emendas diferidas relativamente à primeira campanha, procede-se à revisão de grafemas (minúscula-maiúscula, por exemplo), pontuação, morfemas, palavras gramaticais, cuja correcção se tornou necessária dadas outras alterações. Vejamos os signos que não descrevem o processo de escrita mas insuficiências de leitura: † marca segmento que não foi possível decifrar. /* / delimita partes lidas com insegurança, incluindo, no final de E7/2061, a conjectura de partes de palavras necessárias por deterioração do papel. Todos os sinais acima explicados são usados na edição crítica de Fernando Pessoa9. Porém, prescindimos das setas que costumam indicar a posição do acrescento. Em compensação, usamos agora dois signos específicos, necessários por causa das intervenções de Raul Proença no primeiro texto do E7/2060: As chavetas ({ }) delimitam segmentos da mão de Proença, sempre na entrelinha superior. São clarificações de palavras pouco legíveis ou mal grafadas no original. O sublinhado marca as partes sublinhadas por Proença. Frequentemente, são as mesmas palavras que decifraria na entrelinha. (As palavras sublinhadas por Brandão passam a itálico, conforme o uso tipográfico comum.) O rasurado marca as canceladuras efectuadas por Proença a texto de Brandão. Não se estranhem as agramaticalidades, devidas, por vezes, a ter Raul Brandão alterado parte do texto, esquecendo-se depois de verificar as concordâncias (da monte; pinheiros manso; planicie esverdeadas; terra escalvadas; nas fenda; pelo aguas; o a abobada); erros de ortografia (conheco; buchos; vejetação; Macãs; horisonte; e por é); trocas e omissões de sílabas (capiluto; movimenta, por movimentada); repetições de palavras aquando da mudança de página (esta || esta praia; quando || do); etc. São evidentes lapsos, que corrigiríamos se se tratasse de fixar um texto crítico, mas que conservámos numa transcrição que se pretende seja apenas instrumental. 9

Sobre estes símbolos: CASTRO, Ivo. Editar Pessoa. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990, pp. 49-55; CASTRO, Ivo. Metodologia do Aparato Genético. In: SIMÕES, Manuel G.; CASTRO, Ivo; CORREIA, João David Pinto (orgs.). Memória dos Afectos. Homenagem da Cultura Portuguesa a Giuseppe Tavani. Lisboa: Colibri, 2001, pp. 69-80.

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Mostram que Raul Brandão escrevia descontraidamente, com o respaldo de que tudo seria ainda revisto, ou reescrito, por outrem. E que não tinha boa ortografia. Além de corrigir lapsos provocados por revisões sem releitura posterior, o texto crítico conteria o que está na edição genética, subtraídos apenas os segmentos dentro dos parênteses esquinados e, como é óbvio, todos os caracteres específicos da transcrição (parênteses rectos, barras e os próprios esquinados). Manter-se-iam as cruzes relativas às palavras indecifradas que não tivessem sido ultrapassadas por acrescentos do autor, bem como os asteriscos nas palavras conjecturadas.

E7/2060, primeiro conjunto, “[Aos Capuchos, pela estrada da Pena]” Há vários testemunhos de que Raul Proença estimava particularmente este texto de Raul Brandão. Numa entrevista para promoção do Guia, refere-o enquanto bom exemplo, contrastado com Os Pescadores: “No capítulo sôbre os Capuchos, Raul Brandão, por exemplo, conseguiu dominar as suas tendencias, um pouco romanticas e subjectivas (vêr, por exemplo, o que no seu belo livro dos Pescadores, escreveu sobre as Berlengas), para nos dar um belo modelo de descrição classica, a que não falta um calido estremecimento de emoção”10. Uns meses antes, num bilhete postal de 21 de Setembro de 1924, lembrava a Afonso Lopes Vieira, que elogiara colaborações de Reinaldo dos Santos e Raul Lino, precisamente o mesmo artigo: “Quanto ao valor comparado dos artigos de Sintra, não deve esquecer o Raul Brandão (os Capuchos estão muito bem, é aquilo mesmo)” (Cartas e outros escriptos). Numa carta do dia seguinte, insiste, restringindo àquele texto o elogio da adequação de Brandão ao exacto estilo do Guia: “[Na parte de Sintra há páginas] de literatura absolutamente conforme com o nosso ponto de vista, que é a do Raul Brandão nos Capuchos (apenas nos Capuchos)”. Nessa mesma carta a Vieira, de 22 de Setembro, umas linhas à frente e reportando-se a “Monserrate”, de Jaime Cortesão, e ao artigo dos Capuchos: “Trêchos como êsses, recebo-os com ambas as mãos, e não recebo com mais, para não fazer concorrência aos meus inimigos” (Cartas e outros escriptos). E, na fase de divulgação da obra, trechos dos Capuchos é que são distinguidos com reprodução em jornal11. Na Biblioteca Nacional. Uma laboriosa oficina de cultura. Como foi feito, por quem e com que intuitos o Guia de Portugal, segundo Raul Proença. O Século. Lisboa, 14 de Janeiro de 1925, p. 1. 11 Uma obra monumental. Do Guia de Portugal que a Biblioteca Nacional acaba de lançar ao público transcrevemos alguns excertos das suas 700 paginas. Diário de Lisboa. 19 de Janeiro de 1925, p. 3. 10

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Antes de passarmos ao manuscrito e espreitarmos por que fases o texto passou, comparemos o seu estado final com a lição do impresso (“Aos Capuchos, pela estrada da Pena”, GdP-I, 515-518 [530-533], por Raul Brandão). Além dos dois segmentos que já riscara no autógrafo, Proença pouco suprimiu: apenas um ou desnecessário; creio que e julgo que (para impessoalizar); parece que se volta para traz e os três últimos períodos (para apagar subjectividade); esta pobreza (numa série que terá considerado demasiado enfática); de (d’ali > ali); n’este dia (que ficava inútil depois de barrado de sol contemplativo e doirado); a marca de plural de esverdeadas (agramatical). Não elenco o que foi acrescentado, matéria informativa, curtas indicações concretas (haverá uma excepção: de harmonia > de harmonia e de mistério). É mais irregular o que foi substituído: se transforma > muda; descobre-se > descobrimos; mar que não tem fim > mar azul; do norte > sombrios; curva > encurva; diante > em frente; avista-se > temos; de Cintra… > da encosta sul da serra, tôda eriçada de picos a que subiram os marcos geodésicos.; por um lanço > após um lanço; terraço > terreiro (duas vezes); esquerda > direita; direita > esquerda; subo > suba-se; ter ao quarto > dar ao quarto; capiluto > capítulo; uma > outra; o caminho > a vereda; do mundo > da terra; velho monarcha > poderoso monarca; conheco > há no mundo. Visa-se corrigir factualidade, afinar gramática e léxico, alterar enunciação (embora nem sempre no sentido da impessoalização). Percebe-se que houve também trocas por má leitura da letra de Brandão em dois ou três pontos do manuscrito: formava > formam; está en/*/c\ru/stado > estão enquistados; e talvez ainda em enc/*rus/tad/a\ > encantada. Continuando a recuar, chegamos ao autógrafo. São catorze folhas, não estando numerada a primeira; 18,5 × 13,7 cm, como as de mais dois conjuntos no E7/2060. Só o rosto das folhas tem texto. Foram utilizados dois instrumentos de escrita: tinta preta, por Raul Brandão; lápis, por Raul Proença12. Diferentemente dos outros manuscritos de Brandão no E7, estas folhas têm, a lápis, notas do punho de Raul Proença. São sublinhados a assinalar a dificuldade de leitura, ou a ilegibilidade, de palavras ou a dúvida sobre a sua pertinência (parece que se volta para traz já se viu ter sido suprimido no

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Este primeiro conjunto de E7/2060 está descrito em vários catálogos: BAPTISTA, Jacinto (coord.). Jaime Cortesão, Raul Proença, p. 157; MENDES, Maria Valentina; DOMINGOS, Manuela D.; GARCIA, Maria da Graça; GARCIA, Maria Madalena (coords.). Do Terreiro do Paço ao Campo Grande. 200 anos da Biblioteca Nacional. Exposição. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1997, p. 87; DUARTE, Luiz Fagundes; OLIVEIRA, António Braz de (orgs.). As mãos da escrita. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal, 2007, p. 211.

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impresso; da /m\onte seria corrigido; caminho daria lugar a vereda; sae ficaria se sai). Nas sobrelinhas respectivas, Proença decifrou várias dessas expressões sublinhadas (numa delas, mal grafada, explicitou a dúvida: decorativos?; e terá lido mal a letra, realmente difícil, de desconjuntados, que traduziu como desagregados). Surgem também, lançados ténue e displicentemente, riscos, aparentes canceladuras; e, com efeito, esses três segmentos barrados ao de leve não aparecerão no impresso. Duas advertências acerca da transcrição. Desdobrámos em lições riscada e acrescentada ([a nota utilitaria duma pequena horta cultivada e o esplendido panorama da planicie e do mar]) um trecho que aparece uma única vez. Brandão limitou-se a circunscrever e a marcar com 2 e 1 os dois sintagmas principais da lição supostamente riscada, óbvia indicação para reordenar. De um ponto de vista topográfico, a nossa representação não é fiel por não reproduzir os exactos gestos de escrita; no entanto, é adequada à descrição dos estados textuais de que aqueles gestos foram mero instrumento. Neste mesmo passo, Proença sublinhou utilitaria, tendo depois cancelado a sublinha com pequenos traços verticais. Transcrição genética |[1]| Sabe bem caminhar pelo mac-dam seco da estrada sempre a subir, sempre atravez da mata cultivada. Mas ha um ponto em que ela se bifurca e a paisagem se transforma: não acabam de todo os muros, mas sente-se menos a mão do homem. As arvores são selvaticas, as pedras afloram a superficie da /m\onte e atravez d’um rasgão inesperado descobre-se de quando em quando |2| do, ao mesmo tempo que uma lufada d’ar nos enebria as povoações esparsas na planicie esverdeadas, as casinhas da /pr\aia das Macãs, e o mar [que não tem fim.] É Manique, Azenhas do Mar, Nafarros.[…] Um momento e logo a vejetação se adensa e fecha impenetravelmente o horisonte. Passa se por quintas ou parques — o chalet da Condessa d’Edla, junto |3| a alguns pinheiros do norte, que deixam [tombar] os ramos decortativos {decorativos?} e cansados, o parque de Vale Flor com um tunel de verdura e ao pé d’um macisso de pinheiros manso cujas copas se unem no alto em ondas aveludadas… Os muros são mais velhos, as arvores enchem se de musgo, a solidão augmenta e os grandes parques parecem abandonados |4| e adormecidos n’este dia de sol contemplativo e doirado. No ponto em que a estrada se curva aparece entre o verde da vegetação um pincaro theatral de pedras sobrepostas que se acastelam até ao céo. O sitio é mais / er\rmo {ermo} e mais escalvado. Bate-nos na cara o ar do mar e como a estrada coleia succedem-se sempre os motivos decorativos e imprevistos.

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A certa altu- |5| ra parece que se volta para traz e diante dos nossos olhos est/a\ticos avista se o esplendido pano de fundo de Cintra… A terra ao lado só dá pedras. Toma se por um lanço de estrada nova. Mais dois passos e a esquerda [ escondem-se] {escondem-se} os Capuch/os\ entre um grupo de grandes arvores magestosas. É uma coisa ao mesmo tempo cheia de humildade e de grandeza — desterro para poetas e construido por poetas. Fica ao cabo |6| do mundo [suspenso] entre o a abobada [do céo] e a planicie ilimitada. Descobre-se d’ali tudo quanto há de grande aqui em baixo — o céo, a terra, o mar /,\ /se\m deixar de ser recolhido e intimo {íntimo}. Duas grandes fragas encostadas uma á outra formam-lhe a entrada. Toca se a sineta, abre-se a cancela rustica e dá-se de cara com a cruz. [Alguns] / degraus\ de pedras e [entra se] [no] terraço encantad/o\. A esquerda ha um banco, a direita uma fonte {fonte} escorre sobre uma taça entre dois resguardos de pedra em restos de azulejo — e dois bancos cobertos de |7| musgo. Silencio, arvores desgrenhadas — ao fundo um telheiro que é o adrosinho {adrozinho} do convento. Isto a bem dizer é muito pouco, mas não há dinheiro {dinheiro} no mundo que seja capaz de nos dar esta solidão [tão recolhida] onde estremecem fios de sol — esta pobreza – este fio dagua que sae d’um velho tronco duas vezes centenario; onde está en/*/c\ru/stado o nicho e a fonte. Lá para cima fica a ramaria, o monte, os grandes rochedos decorativos. Subo ao adro |8| revestido de cortiça. Uma /S\enhora dorme /enc/*rus/tad/a\ entre conchas e azulejos que revestem ingenuamente {ingenuamente} a moldura de pedra e pouco e pouco vão cahindo. Duas portas lateraes, uma para a capelinha do Senhor dos Passos e outra para a Egreja cuja abobada e um grande penedo. Duas rochas formam arco: aproveitaram nas para a abrir a sachristia. Todo o convento foi aberto no /m\onte, casado com o monte e está unido ao monte. Os degraus são escavados na pedra, os tectos revestidos de |9| cortica. Sobe-se no [coração] d’uma fraga para o corredor onde estão as celas minusculas como tumulos: as portas são buracos, para onde se entra de gatas. Lá dentro uma janelinha de palmo. Sufoca se. Aqui está o refeitorio, onde uma grande lasca de pedra rugosa {rugosa} serve de meza, a cosinha, o quarto do prior um pouco mais amplo. Outras escadinhas e vae-se ter ao quarto dos doentes, a casa do capiluto com um banco de cortiça em roda e uma Senhora no seu nicho — tudo tão frio, |10| tão fora do mundo que habitamos, que /s\e sae com alegria para o segundo terraço, onde os cedros, os sobreiros, os buchos enormes rodeiam uma taça dagua. Á esquerda grandes blocos sobem pelo monte acima, entre a vegetação rustica, á direita [a nota utilitaria duma pequena horta cultivada e o esplendido panorama da planicie e do mar] É daqui que melhor se apanha /o\ aglomerado de casinhas que formava o convento, tão bem /*fundido/ |11| com as arvores e monte que parecem naturalmente ter ali nascido e crescido/—\ tudo coberto de ve/l\ho musgo, tudo penetrado de silencio, tudo n’um abandono um pouco triste, mas cheio de harmonia /.\ Fica aqui a Capelinha do Senhor Morto, com um portal d’[mosaico florentino>, e /É\ daqui que sae para a mata, com outras capelas esparsas/e\ arvores que morrem de velhice. Um velho castanheiro derrubado sobre o caminho teima em viver/—\ outros |12| erguem a copa para o ceo. O caminho serpenteia e leva-nos ou a buracos cheios de sombra, ou a pontos donde se descobre o horisonte ilimitado. Trepa-se por degraus desconjuntados {desagregados} — e avista se [inesperadamente] a varze/a\ de Colares. A mata torna a fechar-se: é a selva. Desce-se lá para o fundo para o buraco negro onde o beato Honorio viveu debaixo de penedos e está-se a vêr que elle nos vae surgir de barbas |13| hirsutas e olhos coruscantes. — No meu reino possuo — dizia Filipe II. — [o convento] mais rico e o mais pobre do /m\undo, o Escurial e os Capuchos. — Creio que o velho monarcha não e/x\primiu bem o seu pensamento. Este convento não é pobre. Ao contrario julgo que este sitio humilde é um dos mais ricos em pensamento que conheco. É poetico. Faz-nos scismar e eleva-nos. Obriga-nos a pensar n’outro mundo |1/4\| e n’outra vida — de que nos separam /*legoas de /espes\sura/.

E7/2060, segundo conjunto, “[Ericeira]” Este conjunto é o primeiro, de três, dentro de uma segunda camisa do documento, intitulada “[Restos]”. Foi aproveitado em “Ericeira” (GdP-I, 553-555 [569-571]), apesar de só o parágrafo final, “Nota”, ser aí atribuído a Raul Brandão. Copiamos essa parte principal do artigo que no Guia ficou sem atribuição, realçando a negro o que vem do original de Brandão: A Ericeira, vila de 2.651 hab., do conc. de Mafra, é uma linda praia de mar muito azul, onda alterosa, larga orla de arribas e o mar mais salino porventura de tôdas as praias portuguesas. Quando o vento sopra de oeste, e seja qual fôr o ponto da vila onde poisarmos, sempre nos entra pela bôca e pelas narinas a forte respiração do mar. E nos dias mais luminosos, a côr das águas chega a atingir o azul-turquesa. A Ericeira fica apinhada no alto da falésia, ennovelada em meia dúzia de ruazinhas de piso áspero, com uma pequena praça (Jôgo da Bola) e vários côrregos que abrem inesperadamente para o oceano em dois ou

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três terraços maravilhosos. Duas praias de banhos, a do Norte e a do Sul, aquela de mar mais batido, esta mais agasalhada e mais tépida, e entre elas o portinho da Ribeira, com os cais em declive onde varam os barcos, e do cimo de cuja plataforma, escarpa de uns 40 m. de alt., se observa um espectáculo cheio de côr e movimento, quando as embarcações voltam da pesca, no meio dos alaridos e dos gritos, que chegam a amortecer a voz potentíssima do mar. Sobranceiro à praia um velho Forte edif. em 1706 por D. Pedro II, de cujo varandim se domina um soberbo panorama de terra e mar. Por trás as casinhas tôdas brancas, de que chegavam outrora a caiar os telhados, juntas como um bando de grazinas apanhando os últimos raios de sol. Para o sul a formidável arriba côr de bronze e o espinhaço violeta da serra de Sintra, que se arqueia até vir afundar-se, com majestosa imponência, nas águas azuis do Atlântico. A certas horas, isto chega a ser voluptuoso: a serra parece construida por um decorador de génio, os estilhaços das pedras são ruínas, e o mar largo embebe-se dum azul imaterial… A Praia do Sul, pela sua amenidade, a mais freqüentada dos banhistas, fica num côncavo da costa, onde se dependuram já algumas casas vistosas (entre elas as dos srs. Ulrich, Drs. Rivotti e Eduardo Burnay), com socalcos abertos na rocha. Nela deve notar-se ainda a Pedra Furada e, sobranceira ao areal, o edifício das Águas de Santa Marta. Entre a Praia do Sul e a da Ribeira as furnas, produzidas pelo desabamento da costa e pela cólera das águas. É na fenda dos grandes penedos, na serração, como lá dizem, que os pescadores teem os seus viveiros de lagostas. Acima da Praia do Norte a de S. Sebastião, vasta e com arribas dum amarelo tostado, cuja vista se estende para o N. até ao forte de Milregas e à foz da ribeira de Ilhas (p. 555), sítio deserto em que a terra parece mais escalvada e o mar mais áspero e mais trágico.

De qualquer modo, há diferenças nos tipos de variação entre autógrafo e impresso encontráveis na parte que saiu sem assinatura de Brandão, a que reproduzimos em cima, e na “Nota” assinada. A primeira parte implicou reordenação de trechos, substituição de frases, inserções mais extensas, embora de teor informativo. Na “Nota” o texto foi muito menos mexido: suprimiram-se três segmentos talvez julgados subjectivos (Está-se em terra e isolado/e\ está-se no mar [alto.]; Entra-se n’uma e n’outra casinha; e os dois períodos finais do autógrafo), substituiu-se ilimitado por abismo (na primeira parte, já um outro ilimitado, recorrente em Brandão, fora trocado por oceano) e banco por barco (erro de decifração de Proença), pôs-se anos por palavra que não se lê bem no autógrafo (uma arca poida /*dos †/), inseriu-se matéria nitidamente informativa; pouco mais. Enquanto a variação relativa à primeira

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parte obriga a que tenha havido um autógrafo intermediário, entre o nosso manuscrito e o Guia, em que Proença reescrevesse o texto brandoniano, para a parte da “Nota” quase poderiam ter servido de original de imprensa as três últimas folhas do autógrafo de Raul Brandão, com as emendas a serem feitas já em provas de granel. O que não sucedeu, porque não há nas folhas marcações para compositor nem vestígios de passagem por tipografia. O conjunto tem seis folhas numeradas, escritas só no rosto e mais oblongas (25,6 × 12,3) do que as restantes do E7/2060, como os linguados que viu Nemésio sobre a mesa do escritor, no Alto13. Só há um instrumento de escrita, tinta preta, por Raul Brandão. Até à parte que não foi reconhecida no impresso como brandoniana, a meio da f. 4, o autógrafo distingue-se de todos os outros por estar mais emendado. A diferença resulta da quantidade de intervenções já na fase de releitura, constituídas por substituições (cancelamento de um segmento, acrescento de outro na entrelinha) e adições (intercalando texto novo). O último parágrafo, correspondente à parte subscrita por Brandão no impresso, está tão limpo de incidentes como o habitual. Transcrição genética |1| De Cintra á Ericeira são … kilometros, atravez de campos aridos e sem arvores. O que eu nunca vi foi tanto muro de pedra solta/!\ Fica se com a [idêa] de que a melhor e talvez a unica producção desta terra bravia, seja[m] os murosinhos seccos que a dividem e retalham… Mas a terra acaba [ali] bruscamente — e entranos pela bocca e pelas narinas a [forte] respiração do mar. Avista se a [Ericeira] [apinhada] no alto da falesia, enovelada em meia duzia de ruasinhas, de pi/s\o aspero, com uma praça [solitaria] e outr/os\ [córregos] que abrem inesperadamente para o ilimitado em dois ou três terraços maravilhosos. Para mim o mais bélo é o |2| varandim que fica ao pé do velho forte. Por traz a[s] [casinhas] toda[s] branca[s], onde outrora até os telhados se [caiavam] [juntos e imoveis] como um bando de grazinas apanhando os ultimos raios de sol; — para o sul a [] [formidavel] arriba cor de bronze até á serra de Cintra 13

NEMÉSIO, Vitorino. Sob os signos de agora. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1932, p. 213: “Como não há aqui outros petrechos de escrita, utilizo-me dos seus: uma caneta com anilha de borracha para evitar o calo do escrivão; pena lanceolada — e não de alumínio, como as de que eu gosto, — e um frasco de tinta da China retintamente preta, que me lembra o tinteiro de um pequeno de escola da aldeia. Os linguados também são os dêle, oblongos e iguais, linguados que o escritor adapta — diz-me a espôsa — a fôlhas de papel de carta”.

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recortada de proposito em /roxo\ e terminando pelo cabo da /R\oca que entra [majestoso ] pelo [aguas]; cae em baixo a praia movimenta da Ribeira, onde os pescadores encalham os barcos [e que acaba] [dum lado] pelo forte e [do outro] /por\ [uma] ponta em estilhaços . Isto, a certas horas, chega a ser /v\oluptuoso — /a\ [serra] parece |3| construida por um [decorador] [de genio] — os estilhaços das pedras [são] ruinas, e o mar largo imbebe-se d’um azul [ideal] que enebria e encanta. Nas extremas da povoação ficam as duas praias de banhos da Ericeira: ao norte a praia de S. Sebastião vasta [] e com as arribas d’um amarélo tostado, /s\itio deserto, de perdição, [em que] a terra parece mais escalvadas e o mar mais tragico; [e] n’um concavo da costa, onde se penduram [já] algumas casas vistosas, com socalcos abertos no [rocha], a /P\raia do /S\ul, mais agazalhada e [mais] [te/pi\do] e … Entre /es\ta |/4\| esta praia e a Ribeira /estam\ [as] furnas, produzidas pelo desabamento da costa e pela colera das aguas. É nas fend/a\ dos grandes penedos — na serração, como lá dizem, que os pescadores têm viveiros /de\ [] lagostas . A Ericeira é uma [terra] de pescadores pobres que só conseguem viver alugando no verão as suas casas muito limpa/s\ aos banhistas, e de maritimos reformados, que, depois de terem percorrido o mar a bordo dos navios de Lisbôa, acabam sempre por voltar á sua terra natal. Escolhem então uma cas/a\ /na\ arriba/,\ |5| n’esta rua estr/e\ita e comprida, construida no extremo da penedia/e\ pendurada sobre o ilimitado. Está-se em terra e isolado/e\ está-se no mar [alto.]. Trazem um oculo, algumas recordações, um painel com os signaes e as bandeiras de todos os pa/iz\es, e instalam-se para a vida e para a morte. Entra-se n’uma e n’outra casinha: um grande banco de madeira, uma arca poida /*dos †/, uma meia comoda — e lá ao fundo a cosinha [esfumaçada]. Por cima o sobrado, com o quarto de dormir, onde, mesmo da cama se vê o mar, como pela vigia d’um barco. Nas paredes uma |6| imagem/ou\ um navio em alto relevo — a barca, o hiate, a escuna, o lugre em que navegaram… E assim morrem com os olhos presos n’aquela agitação infinita, cheia de tempestades e de perigos, a que liga/ra\m para todo o sempre a vida — porque na verdade só [ha] talvez [no mundo] uma coisa mais béla, o céo. E ainda assim não sei, porque o céo está muito longe, e o mar vive na nossa companhia.

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E7/2060, terceiro conjunto, “Adraga” No livro, a “Praia da Adraga” (GdP-I, 543-544 [559]) não vem atribuída a Raul Brandão, ficando dentro de zona, assinada por Proença, sobre as Praias de Almoçageme. Porém, o parágrafo inicial inspirou-se nestas folhas de Brandão. Copio esse parágrafo, marcando a negro o que já vinha no manuscrito. Logo na fenda em que desemboca a estr., a Praia da Adraga (C. C3), com um côncavo doirado de areia entre dois morros formidáveis. De um destaca-se uma pedra enorme caída no mar e o outro parece um monstro petrificado. O que aqui é interessante é o contraste entre as falésias cortadas a pique e a areia onde o mar banzeiro se espraia. O que aqui é admirável é a onda dum verde translúcido, que se despedaça em rolos de escuma sôbre as patas do monstro ante-diluviano. Do meio da praia a ilusão é perfeita. Vêem-se-lhe nitidamente a cabeça, os olhos, as ventas, o focinho aguçado, a bôca enorme que mergulha na água – como se a fera sedenta tivesse descido há séculos da montanha e houvesse ficado ali a tragar o oceano para tôda a eternidade.

Que foi cortado no impresso? Uma descrição dos morros formidáveis; um período decerto tido por demasiado literário (Ninguem. A maior, a mais completa solidão.); uma parte subjectiva (como nunca vi em outra praia), aliás acrescento de Bandão em segunda campanha; a adjectivação de mar (escumante) e das patas do monstro (curtas e grosseiras). Que foi substituído? A ligação com o artigo anterior; os dois últimos períodos, embora se mantenha o tópico do monstro sedento; rolos de brancura deu lugar ao mais denotativo rolos de escuma. São três folhas numeradas e, como a maioria dos conjuntos neste documento, de 18,5 × 13,7 cm. Foi usada tinta preta, sempre por Raul Bandão. Só a segunda folha tem também texto autógrafo no verso, que constituirá a p. [4]. No topo da primeira página, centrado, o título: Adraga. No verso da f. 3, a lápis, a interrogação Raul Brandão?, por Teolinda Proença. Além do título, o manuscrito tem duas outras palavras sublinhadas, que transcrevemos em itálico. Brandão deve ter querido assinalar repetição de palavra, marcando a necessidade de reformular o texto. O que veio a fazer: suprimiu a primeira frase com falesias e trocou petrificado por assim. Transcrição genética |1| A praia da A/d\raga fica perto de … É preciso descer uma estradinha para se chegar á fenda, com um concavo [doirado] d’areia, entre dois morros formidaveis, o da direita aci/n\ze/n\tado e onde [o sol] a esta

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hora da tarde bate de chapa; /o\ da esquerda d’um vermelho enegrecido e cheio de sombra. São ambos imponentes. Mas destac/a\-se uma pedra |2| enorme cahida no mar escumante /—\ o outro parece um monstro petrificado. Ninguem. A mai/or\, a mais completa solidão. O que aqui é interessante é o contraste entre as falesias cortadas a pique e a areia onde o mar [banzeiro] se espraia. O que aqui é admiravel é a onda d’um verde translucido [como nunca vi em outra praia] e que se despedaça em |3| rolos de brancura sobre as patas curtas e grosseiras do monstro antidiluviano que [assim] bebe para toda a eternidade |[2] v| com as duas patas grossas e curtas [enterradas] na areia e metendo o focinho brutal no mar para estancar a sêde inexgotavel. Vem a onda, passa-lhe pelo arco das /p\atas e entra lá para dentro para a †, vae a onda e o monstro continua a beber todo o mar salgado, imovel e d’um vermelho côr de sangue…

E7/2060, último conjunto, “[Setúbal]” São duas folhas, de dimensões idênticas a três dos quatro conjuntos deste documento, ambas só com texto no rosto, numeradas 2 e 3. Faltará apenas uma página inicial. A última sílaba dessa presumível primeira folha era decerto ar[vores]. Só há tinta preta, com a letra de Raul Brandão. Este excerto não foi aproveitado no Guia, embora o trecho inicial da “Impressão geral de Setúbal” (GdP-I, 632 [655]), incluído na parte subscrita por Elói do Amaral, retome pelo menos uma expressão do autógrafo brandoniano, “a [sua] luz admirável que nos transporta”. E há uma citação de Brandão, “um mar que, segundo Raul Brandão, não tem o verde do norte, nem o azul cobalto do Algarve, mas que é poeira e luz”, tirada porém de Os Pescadores (244-245). (Num relance, o autógrafo de Elói do Amaral destinado a esta parte do Guia, o E7/2054, parece ter poucas semelhanças com o texto publicado. De qualquer modo, a parte inicial, quase toda a impressão geral, estaria em folhas que não se conservaram nesse documento.) Transcrição genética |2| vores [metalicas que] cercam a casaria — e principalmente com a luz admiravel que nos transporta. Da grande Avenida á beira d/a\ agua não se vê a bahia — mas dois passos adiante seguindo a esplendida estrada para Outão logo o amplo panorama — que não tem identico em Portugal — se desenvolve |3| e o viajante começa a vêr desenrolar se em successivos planos, a agua azul, a serra d’Arrabida, /a\

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cidade e os multiplos pontos pitorescos que fazem de Setubal e dos seus arredores uma das mais bélas regiões de Portugal.

E7/2061, “[Descida do Guadiana]” Na capa que o envolve, o documento é atribuído a Jaime Cortesão, decerto por causa do lapso acerca da peça E7/2062, explicado à frente, cuja mão principal é evidentemente a mesma. Um bilhete-postal de Raul Brandão a Proença, remetido de Caxias a 1 de Julho de 1923, deve ter que ver com esta “Descida do Guadiana”: “Querido amigo || E o calor? e o dinheiro? Um carro, um gazolina e outras extravagancias?!! Se o homem paga então acompanho-o — se o homem paga, é claro, o navio para irmos pelo rio abaixo e o transporte para a cidade — porque o caminho de ferro pagamo-l-o nós. É assim? || Estou cheio de trabalho — mas vou ahi sexta feira conversar comsigo” (E7/316). Sabemos que era habitual Maria Angelina Brandão encarregar-se de copiar a limpo os apontamentos que o marido lhe ia ditando e que era então que ele melhorava o que apontara antes: “A sua obra escrevia-a com ímpeto, em apontamentos, e compunha-a na ocasião em que, ditando-ma, eu a escrevia antes de ir para a tipografia”14. E pode relacionar-se com este autógrafo, ou com o E7/2062, uma carta, sem data, que confessa a ajuda de Maria Angelina e convida Proença a exercer as prerrogativas de coordenador: “Ahi vae o que pude fazer e para isso recorri á minha mulher. E que mais hei-de fazer? Numeros, factos exactos — não sei, nem posso. Só o meu amigo pode agora pôr essas coisas, que estão feitas, umas adiante das outras, á sua vontade, cortando o que quizer” (E7/335). O texto foi publicado no GdP-II (213-214 [213-214]), onde está subscrito “Por Raúl Brandão”. Entre o texto do impresso e o do autógrafo há um tipo de variantes que estranhamos, por irem na direcção contrária da das intervenções habituais do organizador. São três lugares em que o texto original era mais denotativo do que a lição do volume: lagos > lagos dormentes; encanto selvatico > encanto melancólico e selvático; em luz e amplidão > em amplidão luminosa. É de admitir que estas três variantes resultassem da intervenção de Brandão sobre provas? Nesse caso, ficaria mais legitimado o recurso ao impresso para se colmatar o texto da folha em falta no autógrafo. A restante variação segue o padrão habitual entre Rauis. Como requeria o próprio Brandão, adicionaram-se partes informativas (sobretudo, um parêntese inicial com sete linhas), foram suprimidos três períodos talvez 14

BRANDÃO, Maria Angelina. [Nota preambular]. In: BRANDÃO, Raul. O Pobre de Pedir. Lisboa: Tipografia da Seara Nova, 1931, pp. 3-5, 3.

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excessivamente digressivos (o terceiro e o último do primeiro parágrafo; o antepenúltimo), esbateram-se marcas pessoais (vão-nos > vão; mim > nós; sinto > sente-se; ofuscar-me > ofuscar-se; tenho > tendo; aperta… > aperta mais), procedeu-se a insignificantes alterações gramaticais (até a > até; vê-se > vêem-se; infinitivo impessoal preferido ao infinito pessoal). São quatro folhas, 27 × 16,5 cm, escritas apenas no rosto. Só a primeira não está numerada e falta a que seria a terceira. Papel tem vincos por as folhas terem estado dobradas em quatro, o que é coerente com a possibilidade de o texto ter sido remetido com a carta E7/335, com vincos idênticos e dimensões semelhantes (26 × 18). Foi usada caneta de tinta preta, pela mão de Maria Angelina, e há emendas por Raul Brandão, a lápis e a tinta preta. A tinta preta de Maria Angelina vai-se renovando depois de percorrida a extensão aproximada de uma linha, apresentando a página dois matizes: acinzentado e, de cada vez que a caneta vai ao tinteiro, preto retinto e quase borrado. Tal como acontece com E7/2062, há indícios de que a passagem do texto por D. Maria Angelina foi mediada por audição de um ditado feito pelo marido, que leria os seus apontamentos, e não decorre de leitura de papéis directamente, em cópia de rascunhos. Arriscamos ver comprovação deste processo na grafia refelecte (erro mais facilmente induzido por exposição à correspondente fonia do que explicável por uma cópia); na hesitação no uso de maiúscula em /A\lamos (só depois de ouvido mais um nome próprio ficaria claro que era para escrever com A); no inicial esquecimento da conjunção em solitarias [e] envoltas. Quanto às emendas de revisão, é altura de dizer que não tenho a certeza de quem passou a tinta o que Brandão emendara a lápis, se o próprio escritor se a mulher, e que nem estou seguro da autoria material das restantes emendas mediatas a tinta. Não é relevante, já que essas adições e substituições – não há supressões sem mais – serão sempre da autoria de Raul Brandão, por indicação oral, por indicação a lápis ou em revisão convencional a tinta. Como a nossa transcrição não pretende ser, digamos, topográfica e contenta-se com a descrição da cronologia do texto, a dúvida não tem implicações. É mais melindroso o pequeno e ténue traço a lápis que menciono a seguir. O lápis que acrescentou uma vírgula depois de E o barco segue será de Brandão, apesar de parecer mais fino que o outro e de ter ficado esquecida a passagem a tinta, mas também poderia ser de Raul Proença se não fosse estranho ter-se este então limitado a uma emenda, mais ainda quando não faltam divergências entre o autógrafo e o que veio a ser impresso.

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Transcrição genética |[1]| Do Pomarão para baixo o Guadian/a\ corre esverdeado entre montes abruptos e sevéros. E á medida que o barco navega vão-nos surgindo [sempre] uns atras dos outros/—\ á esquerda a Hespanha á direita Portugal/—\ os nossos mais pacificos e ás vezes cultivados até ao rio, os dos visinhos au/s\teros, pedregosos e bravios — grande uniformidade deserta, onde aparece aqui e ali, isolada e perdida no formidavel scenario uma casinha colmada. Do lado d/i\reito a esta hora os montes envolvem-se em grandes sombras azuladas, que /o\ [rio] refelecte na sua imobilidade pe/t\rea. Mas tenho deante de mim a agua que anima tudo isto, lisa e unida á prôa do vapôr, com veios [longinquos] mais quietos e riscos que estremecem á superficie; e naquela braveza de fragas e vegetação quasi negra das encostas, irrompe de quando em quando uma amendoeira, |2| que se entreabre em milhares de pequeninas flores como se toda ela creasse azas. Para o longe avistam-se mais serras, serras d’esta Hespanha que d’aqui se nos afigura esfarrapada e concentrada. Caso extraordinario: é a propria natureza que nos indica onde acaba o nosso paiz e começa o vizinho. Basta [ás vezes] olhar a terra para se comprehender os costumes, a historia e a vida. E o barco segue[, a lápis] e os montes seguem-nos, encerrando o rio n’uma serie de lagos, que teem um grande encanto selvatico. Ás vezes afigurase-nos que vamos tocar n’aquela tremenda barreira lá do fundo, mas o vapôr dá uma volta á procura do canal, e entramos n’outro lago rodeado de encostas cortadas quasi a pique [sobre acrescentado a lápis, acrescento que foi depois repassado a tinta] á agua. Outra volta, outro lago, este mais amplo, luminoso e azul, cujas margens se entreabrem para nos desvendarem um cantinho cultivado e rustico — a casa, o espigueiro, [algumas arvores e] o campo de |falta uma página| |/4\| maram-se em colinas verdes. Repetem-se com mais frequencias as terras cultivadas na nossa margem e ás vezes na de Hespanha. Quando o monte não acaba a pique vê-se sempre na faixa á beira rio alguns pés d’oliveira, a negra alfarrobeira e a vinha baixa que se estende até á agua. Estamos no Tôrno da Pinta. D’aqui em deante as curvas do rio [são menos] acentuadas e começam a distinguir-se os bronzes imoveis da serra d’Alcoutim. As povoações [surgem] mais proximas, /A\lamos, Guerreiros — sempre na nossa margem — e o rio ganha em luz e amplidão. O ceu esbranquiçou perdendo o esmalte do Alemtejo. O calôr aperta… Outra povoação, a Foz junto do ribeiro de Odeleite, e quasi logo na nossa frente uma grande superficie liquida entre terras que fôram sucessivamente baixando, d’um

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lado solitarias [e] envoltas [em farrapos a lápis, por Brandão, antes de passado a tinta, por Brandão decerto também], do outro mais humanas e mais ternas, com um ar de contraste e mansidão. Olho o grande lago translucido, rôxo lá para o fundo, |5| doirado e azul na agua muito lisa. Sinto na cara a viração do mar. Todo o rio estremece em escam/as\ /de\ luz até aos grandes plainos verdes [indecisos]. Á esquerda começa a ofuscar-me a grande brancura voluptuosa de Ayamonte; tenho á mão direita a interessante vila de Castro Marim, apertada por duas fortificações com um grande ar do passado. Já Villa Real t/*re/meluz e aparece na linha baixa e con/*fu/ sa, mergulhada na agua, perdida na n/*e/blina e afogada em sol.

E7/2062, “Praia da Rocha” O documento está identificado como “Cortesão, Jaime | Praia da Rocha, 4 f.”. A atribuição errada tem origem num apontamento a lápis, por Teolinda Proença, no verso da última folha: “Jaime | Cortesão | escrito pela | mulher”. Dever-se-ia escrever “Raul Brandão, escrito pela mulher”. Para a confusão terá concorrido haver de Cortesão até mais textos no GdP-II do que de Brandão; também o terem ambos acompanhado Proença em digressão pelo Algarve preparatória do volume. Na introdução à 2.ª edição, “Ainda duas palavras simples” (III-X, VII-VIII), Sant’Anna Dionísio relata peripécia que lhe contara Proença, aliás “um pouco avesso a lembranças anedóticas”, acerca dessa jornada com Brandão, Cortesão e Câmara Reis, “num dos típicos carroços abaulados”, “pelas cercanias de Alvor e Praia da Rocha”. Resumo o episódio, que não tem assim tanta graça: cansados, esfomeados, os quatro amigos reconheceram que “não deveria ser exclusiva a deglutição do céu azul” e souberam pelo homem que conduzia a traquitana que havia perto asseada estalagem com bom marisco e peixe fresco; Raul Brandão, ao chegar, logo chamou pela “Senhora Maria”, o que intrigou Proença; já estivera ele ali?; que não, mas que se via que tinha sempre de ali haver alguma Senhora Maria; que logo apareceu15. Uma carta de 13 de Setembro de 1925 confirma que Brandão entregara a Proença um artigo sobre a Praia da Rocha. Ao incentivar o amigo a fazer mais textos, Raul Proença avisa-o de que preterira a colaboração da Rocha: “Eu cá continuo trabalhando no Guia, que deve ser a minha coroa… de martirio. E o meu amigo, não nos dá mais uma página para êle? Repare que só figura neste volume com o Rio Guadiana. A Praia da Rocha remodelei-a inteiramente, 15

Também reportado em: REIS, António. Raul Proença. Biografia de um intelectual político republicano, vol. I. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003, p. 403.

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porque voltei lá e vi que havia muito mais a dizer sôbre o Vau e João de Arém” (D2/503). No impresso, a parte sobre a Praia da Rocha (GdP-II, 274-277 [274277]) está assinada por Raul Proença apenas. No entanto, são aproveitados alguns trechos do primeiro parágrafo do manuscrito de Brandão. O início de “Praia da Rocha” (GdP-II, 274-275), em que marquei a negro o que já vinha no texto de Raul Brandão, descartando as diferenças de grafia e pontuação, dará ideia da importância, ou não, do contributo brandoniano: Praia da Rocha, larga varanda aberta dum lado para o deslumbramento do oceano e do outro para o azulado vulto de Monchique, que lhe barra o horizonte numa perspectiva incomparável. A Praia da Rocha estende-se do forte de Santa Catarina, que domina a O. a entrada da barra, até o Buraco da Avó e os leixões dos Castelos, no caminho do Vau e de João de Arém, com a casaria nova suspensa à beira da arriba, um hotelzinho com janelas abertas para o mar, onde se come peixe sempre fresco, e um grande hotel em construção, que há de vir a ser porventura o maior de todo o país. Se há talvez exagêro em chamar-lhe a mais bela praia de Portugal, é, porém, uma das mais extensas e mais planas, a de areia mais fina e mais doirada, e, pelo desenho e colorido dos leixões e dos fraguedos, certamente a mais estranhamente decorativa. Quem vai ao Algarve deve deter-se pelo menos algumas horas diante da magnífica scenografia formada pelo terreno cortado a pique com a praia lá no fundo, e pelo ilimitado mar azul, donde emergem penedos avermelhados — «tudo acabado de pintar», diz Raul Brandão, «por Manini agora mesmo». As tintas ainda escorrem frescas, e o panorama abrange um vasto espaço, que vai desde a ponta do Altar, a E., até o esfumado da ponta da Piedade, já no extremo da grande baía de Lagos. Nada mais agradável do que pisar essa areia tão resistente e tão finamente batida, procurar a sombra húmida das cavernas e das furnas, com os pés metidos na água plácida e transparente, passar duma para outra praia sob os túneis e os arcos das grutas — admirando aqui os Três Ursos, que se diriam dançar em frente ao oceano unidos pelos braços; mais além um pórtico escavado pelas ondas, a modo de arco de triunfo; o Buraco da Avó, que estabelece comunicação, na maré baixa, com a vizinha praia dos Castelos; e as Rochas Furadas, os Dois Irmãos, o leixão da Atalaia, as Pirâmides, o Rochedo Caraça — que tais são os nomes sugestivos que o povo deu a essas rochas tão fantasiosamente recortadas e decorativas. Quando o sol explude e morre lá para o fundo, ensangüentando as pedras, o efeito do azul, do doirado, dos negrumes e contrastes, atinge a fantasmagoria…

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Como se vê, Proença chega a referir Brandão, acolhendo uma frase do manuscrito e citando-a aspada: «“tudo acabado de pintar”, diz Raul Brandão, “por Manini agora mesmo”». Já se percebeu que o autógrafo tem quatro folhas, de 28 × 13,5 cm, com texto nos rostos, não estando numerada a primeira página. Nesta, ao cimo e centrado, o título Praia da Rocha. Há dois (ou três) instrumentos de escrita: tinta preta, por Maria Angelina; lápis, decerto por Brandão, em emendas depois assumidas a tinta por Maria Angelina (ou pelo próprio Raul Brandão?). Um exemplo: quando se acabar de fazer quando acabar de [se] fazer quando acabar de [se] fazer quando [o] acabar[em] de fazer

lançado por Angelina, a tinta revisão de Brandão, a lápis passagem a tinta, por Angelina (ou Brandão) correcção a tinta, por Angelina (ou Brandão)

As alterações apenas a tinta, da mão de Angelina, ou são pouco mais que instrumentais, acontecendo à medida que ia ouvindo o texto ditado pela primeira vez (são imediatas, “em curso de escrita”, mas da escrita de Angelina), ou ocorreram quer numa segunda leitura em voz alta que o marido fosse fazendo quer numa leitura em voz alta por Angelina, para confirmação do que já lançara e interrompida sempre que alguma coisa o marido quisesse acrescentar (são emendas mediatas e em ambiente oral). As emendas a lápis resultam já de leitura com o papel à frente e foram sempre do marido (são mediatas mas com o suplemento de atenção revisora que propicia a visão da página). Como em E7/2061, certas grafias podem dever-se à situação de escrita filtrada por audição: a minúscula lançada até que Maria Angelina pudesse perceber tratar-se de nome próprio em /M\anine e /C\astelos; o esquecimento do artigo em [a] amplidão; má recepção de “e quieta” em gôrda/e\ quieta (mais provável será a confusão por Angelina do que a decisão por uma lição exactamente contrária à inicial por parte de Raul). Ainda a tinta, provavelmente por Maria Angelina, cruzes (de dubitação? para inserções?), sob ilimitado e sob a vírgula depois de doirada. Em 4v, a nota já referida, a lápis, por Teolinda Proença. Um lápis que não conseguimos identificar (de Raul Brandão?; de um dos Proenças?) envolveu os dois primeiros períodos do texto num semicírculo pouco firme, involuntário ou cedo arrependido.

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Transcrição genética |[1]| A monotona Portimão, embriada na vara do Arade, tem felizmente a dois passos uma larga varanda aberta para o deslumbramento do oceano. É a praia da Rocha, que se estende do forte de S.ta Catarina até ao Vau e á Praia de João Arrais, com a casaria nova suspensa á beira da falésia. Quem vae ao Algarve deve deter-se, ao menos durante algumas horas deante da magnifica scen/o\grafia formada pelo terreno cortado a pique com a praia lá no fundo/—\ duas angrasinhas de areia doirada, — e pelo ilimitado mar azul d’onde imergem penedos avermelhados, os /C\as telos — tudo acabado de pintar por /M\anine agora mesmo. As tintas ainda estão frescas, e o panorama abrange um vasto espaço, de mar, céu e terra, que vae desde a ponta do Altar entrando decidida pelas aguas até a[o] [esfumado da] ponta da Piedade, no outro extremo da grande bahia formada pela costa. A terra chega ali e acaba de repente — esbo- |2| rôa-se: deante de nossos olhos extasiados só ha luz e côr e sonho sem limites. Quando o sol expl/ud\e e morre lá para o fundo ensanguentando as pedras, o efeito do azul, do doirado, dos negrumes e contrastes, atinge a fantasmagoria… A praia começa no vélho forte innutil com uma guar/ni\ção de veteranos e uma peça que já perdeu a ferocidade e está ali para dar sinal aos navios arribados. Para completar o encanto [/há\] [n’]este arremêdo de defesa uma ermidinha abandonada, onde Sta Catarina parece uma fresca rapariga da aldeia, sorri[ndo] [indiferentemente] a toda a gente, entre flôres de papel recortado. [Sae-se das muralhas e] /l\ogo começa a [grande] rua, casas d’um e d/’\outro lado, chalets, palacios, fantasias, e um grande hotel em construção que [ha-de vir a ser] /o\ maior do paiz quando [o] acabar[em] de [ acrescento e canceladura depois de, também a lápis, Brandão ter acrescentado a mesma palavra] fazer. [Por agora temos de nos contentar com uma amavel hospedaria de provincia] As mais felizes d’estas habitações são as que olham para o mar, algumas em situação pitoresca, |3| agarradas á extremidade do rochêdo, outras banaes e outras interessantes e simples. A nosso vêr a praia da Rocha é uma das mais belas de Portugal. Mas não a mais bela. É justo não esquecer o Baleal no centro e o Molêdo no Norte do paiz, que não sendo na verdade tão decorativas tem maior intimidade e encanto, constituindo a segunda um panorama [quasi] ideal. Também tem [a Rocha] o grande defeito de ter sido improvisada. Falta-lhe agua que vem de Portimão em bilhas de barro vermelho, falta-lhe carne, apesar de têr um talho magnifico com azulejos reluzentes…

Luís Prista

Para lá chegar toma-se uma carrinha em Portimão. São dez minutos de caminho, e quasi logo, atravéz da nuvem de pó, se descobre com alivio e espanto, sentindo os pulmões dilatarem-se, as casas apinhadas, a costa em [sucessivos] recortes, contrastando com a agua azul, gôrda/e\ quieta |4| e a amplidão, [a] amplidão do céu e mar que não teem fim, e que nos fazem estacar maravilhados.

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A enfermidade que abateu Raul Proença ANITA VILAR Assembleia Distrital de Setúbal da Ordem dos Médicos

Travei conhecimento com a revista Seara Nova quando tinha 20 anos e foi, através dela, que tive a oportunidade de conhecer Raul Proença, de quem me tornei admiradora. Confesso que, durante muitos anos, apenas a obra de Raul Proença suscitou o meu interesse. Há cerca de 20 anos, quando li as Polémicas1 que o Dr. Daniel Pires, seu organizador e prefaciador, me ofereceu, senti um primeiro estremecimento na leitura da cronologia e vi referida a Esquizofrenia de que teria padecido Raul Proença. Anos passados, voltei às Polémicas e achei um pouco estranho que o autor tivesse sofrido de uma tal afecção. Hesitei entre ir ou não fazer o estudo sobre a patologia de que ele teria sofrido. O tabu, ainda existente na nossa sociedade, de que a doença psiquiátrica pode ser uma desqualificação para qualquer figura notável, veio ao de cima e talvez um certo pudor meu em desvelar uma situação que seria certamente dolorosa para mim. Quero afirmar que a minha profunda admiração por Raul Proença saiu reforçada deste confronto. Revelou-se-me todo o sofrimento que o atingiu. Aquele homem arguto, de uma perspicácia enorme, percebeu demasiado bem o que lhe acontecera. “Aquele fanático da vida”, como se definiu, teve momentos em que desistiu de viver, pensando no suicídio e, percebendo a sua infelicidade, passou a ter quase sempre uma conduta que poderei definir como suicidária na recusa alimentar persistente que o enfraquecia. A consulta do processo clínico existente no Hospital Conde de Ferreira2, permitiu-me verificar de imediato que o diagnóstico inicial fora modificado, ainda em França, para Psicose Paranóide. Contudo, cerca de um mês depois do internamento, é referido, nas notas clínicas, o desinteresse que Raul Proença sentia por tudo: visitas, livros, estudo. Quando questionado sobre isto, o próprio respondeu: “Não sinto interesse”. Continuava a recusa alimentar que é atribuída a ideias PROENÇA, Raul. Polémicas. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1988. Processo Clínico de Raul Proença. Sem número, data de admissão de 17 de Março de 1932, 2.ª classe. Porto: Hospital Conde de Ferreira. Cf. também Espólio de Raul Proença, E7. Lisboa: Biblioteca Nacional, pp. 986-1007.

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de envenenamento, mas também é referido a dificuldade em o levar ao balneário e em lhe mudar a roupa, tido como comportamento negativista do doente. Em 30 de Abril de 1932, as notas referem-se a uma carta que terá escrito para as filhas, carta onde transparece uma grande tristeza, senão mesmo amargura. Em Maio, sobre uma notícia acerca dele num jornal, que referia um artigo seu sobre uma individualidade política em destaque, “mostra-se arrependido e mesmo auto-acusa-se, afirmando que hoje não voltaria a escrever aquilo e que se visse a pessoa lhe pediria desculpa, lhe pediria perdão”. “Mostrou total desinteresse por um exemplar do 1.º fascículo da publicação Estradas de Portugal, da autoria do doente. Disse-me apenas que lho mandasse pôr no quarto”. Numa carta, datada de 31 de Março de 1932, de Luís Proença a Câmara Reys3, pode ler-se que aquele recebeu uma carta do irmão: “A carta não indica nenhum desarranjo mental. Pede-me para o autorizarem a viver fora das casas de saúde, pois isso parece-lhe essencial para o seu restabelecimento”. Mantém este estado de desinteresse ao longo de 1933, 1934 e 1935. Nunca mais foi referida a actividade delirante, a excitação e a agressividade. Em 1933 ou 1934, Câmara Reys e José Rodrigues Miguéis tentam visitá-lo no Hospital. Eis como José Rodrigues Miguéis recorda esta visita: “O director consentiu apenas que o observássemos através de um ralo disfarçado numa porta enquanto ele e Raul Proença passeavam juntos… O Câmara Reys recuou, soluçando e em lágrimas. Pude então ver (mal) aquele homem possante e corajoso, que todos amávamos enraizadamente – curvado, pálido, envelhecido, acabrunhado –, submisso”4. Por essa altura, escreveu o médico: “Aproximei-me dele no salão, onde estava deitado sobre as cadeiras e, como sempre, com o chapéu carregado sobre os olhos. Levantou-se à minha aproximação e esquivou-se para o parque, mal respondendo ao que lhe perguntei”. Em 1936, morre de tuberculose a filha mais nova, Ilda, com 15 anos, e nada é referido nas notas clínicas do Hospital. Não se sabe se lhe deram a notícia. Entretanto, foi observado pelo Professor Egas Moniz e, face à situação, foi proposta a leucotomia pré-frontal, sendo Proença sujeito a tal intervenção em Abril de 1937, em Lisboa.

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Espólio de Câmara Reys, M-SER-967, 970, 972. Porto: Biblioteca Pública Municipal. Espólio de José Rodrigues Miguéis, E132. Lisboa: Biblioteca Nacional, pp. 1-3; MIGUEIS, José Rodrigues. Uma Flor na Campa de Raul Proença. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1985, pp. 9-27.

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Após a leucotomia, esteve em Évora com a família, e Luís Proença, numa carta a Câmara Reys, refere as melhoras consideráveis que o irmão apresentava: “Afectuoso, amável, conversando e rindo” e ainda “as quatro manias principais consistiam na repulsa em não comer, lavar-se, ler e escrever. As três primeiras venceram-se, pois já come regularmente, lava-se e vai buscar livros que lê por pouco tempo. Escrever é que não havia meio! Porém hoje, respondeu a um bilhete do Dr. Egas Moniz. Note V. Ex.ª que há 5 anos não escrevia! Redacção e ortografia absolutamente igual à do antigo director da Seara Nova. Raul Proença!” Refere, contudo, que ele tem períodos de abstracção e de meditação e o olhar melancólico. Volta para o Hospital em 31 de Maio de 1937. Não consegui perceber o motivo, mas prende-se, provavelmente, com o receio, por parte da família, que pudesse vir a ter crises semelhantes às que teve em Paris, as quais foram, certamente, muito traumáticas para quem as viveu. Em Julho, “já se apresentava mais deprimido e respondia apenas ao que lhe perguntavam e pelo menor número possível de palavras”. “Prometeu fazer uma tradução do alemão ao Dr. Baía. Fez a tradução do alemão que lhe fora pedida, apesar de ter dito que levou mais tempo devido à dificuldade que sentiu na tradução dos termos médicos. E começou a escrever notas que em Agosto já perfaziam 16 páginas. Continua a manter o comportamento de recusa alimentar, chegando mesmo a afirmar que gostaria que não o obrigassem a comer”. Em 3 de Março de 1938, Luís Proença escreve a Sant’Anna Dionísio, comunicando-lhe que o irmão discorda do teor do artigo publicado na Seara Nova: “Uma dificuldade preliminar no pensamento de Raul Proença” e que lhe irá responder. Em 2 de Abril de 1938, escreve o artigo “Sobre a teoria do Eterno Retorno”, em resposta ao referido artigo de Sant’Ana Dionísio. Em 24 de Outubro desse ano, escreve novamente a Sant’Anna Dionísio, pedindo-lhe todos os volumes da Seara Nova até 1932, para seleccionar os artigos que farão parte do 2.º volume das Páginas de Política. Afirma que espera sair do hospital dentro de uma semana e que tem lido Kant. Quanto ao seu estudo sobre o “Eterno Retorno”, tem lido vários livros e põe a hipótese de o publicar, depois de ler Meyerson, Bergson, Cournot, Lalande, Boutroux e Nietzsche. Ainda numa carta para Carlos de Passos5, datada de 6 de Outubro de 1938, agradece-lhe a forma como foi recebido e tratado na casa do mesmo. Acrescenta: “Passei aí uns dias que me puseram de relativa boa saúde”.

Espólio de Carlos de Passos, M-CP-478, 494. Porto: Biblioteca Pública Municipal.

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A 16 de Novembro do referido ano, escreve a Sant’Anna Dionísio, informando-o de que contactou Lello e Câmara Reys para propor a publicação do 3.º volume do Guia de Portugal. Pede-lhe que lhe envie livros de Boutroux, de Guyau, Hamelin, Poincaré, Höffding e Renouvier. Reitera o seu pedido de todos os volumes da Seara Nova até 1932. Escreve vários artigos, entre os quais “O direito da crítica”, só publicado em 1956. Em Novembro de 1938, começa a apresentar alguma excitação e revolta. Um dia, no seu quarto, segundo a descrição, estava em grande gesticulação, em solilóquio e voz alta a dizer: “Andam milhares de pessoas a falar de mim para fazer pouco…” “Houve uma redução da sua actividade, mas traz os livros e parece ter lido alguma coisa”. Por esta altura, começa a insistir com frequência que quer sair do Hospital. Teve autorização para uma saída provisória. A visita a Carlos de Passos correu um pouco mal, tendo o doente regressado por sua iniciativa mais cedo ao Hospital. Um dos aspectos que Carlos de Passos referiu foi que ele não conversava com a mulher nem com o filho e que teria sido indelicado para com eles. Além disso, Raul Proença não se lavava nem observava quaisquer cuidados de higiene. A 5 de Fevereiro de 1939, escreve a Sant’Anna Dionísio: “Tive a ideia de descansar uns oito dias desta vida do Hospital, num pequeno hotel ou casa de saúde dos arredores do Porto”. Comunica ainda que o tenciona visitar em Vila Real. De 10 de Fevereiro a 3 de Março de 1939, voltou a sair, tendo estado em casa de Carlos Pina, de onde saiu mal-humorado e exaltado ao 4.º ou 5.º dia. Manteve aí a falta de higiene. Quando saiu da casa de Carlos Pina, foi para Vila Real, para casa de Sant’Ana Dionísio, onde pareceu ter estado bem de 14 ou 15 de Fevereiro a 3 de Março. Há uma nova saída entre 24 de Abril e 28 de Abril. Não há notas sobre esta saída. Deve ter estado no Luso com o irmão, onde parece ter estado bem. Ainda durante o ano de 1939, tem uma saída provisória, de 3 de Setembro a 22 de Outubro. Não há referências, no processo clínico, onde e com quem esteve, mas pela correspondência trocada com Jaime Cortesão6, pode-se deduzir que esteve com a família. A 4 de Junho de 1939, escreve a Sant’Ana Dionísio, comunicando-lhe que analisou o seu estudo sobre o “Eterno Retorno” e que redigiu algumas propostas de alteração. Em carta de 14 de Junho, escreve ao mesmo: “Vai-se

Espólio de Jaime Cortesão, E25. Lisboa: Biblioteca Nacional, pp. 853-871.

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fazer o 3.º volume do Guia. Vou para o Luso. Quero fazer a coisa em 4 meses”. Convida-o a colaborar nesta obra. Em 21 de Julho de 1939, escreve a Jaime Cortesão, pedindo-lhe colaboração para o Guia de Portugal. Diz ainda: “Exílio cá, exílio lá. Há longos anos que me andam a tratar, e mal por vezes ou quase sempre – mal e creio que errado: portanto, nos dois sentidos mal”. Numa carta de 26 de Outubro de 1939, escreve a Carlos de Passos: “Escrevo-lhe do Porto, onde vim para ver se ingressava numa casa de saúde do Norte, por conselho do Dr. Egas Moniz, e graças à má vizinhança que encontrei em Évora, em casa do meu irmão, e em Lisboa, na minha própria casa, nos últimos dias que lá estive. Uma vez aqui, tive de vir fazer uma estadia no Hospital para, segundo o Dr. Baía, regularizar a minha situação, pois creio que me querem atar ao Hospital constantemente por um cordelinho, e que lá fora sou um dependente e servo do Hospital. Julgo aliás que, por ora, esta estadia não irá além duns oito a dez dias, como me augurou o Dr. Baía”. E continua a escrever sobre o Guia de Portugal de forma coerente, lúcida, organizada e revelando uma memória notável. Numa carta a Carlos de Passos, datada de 8 de Novembro de 1939, queixa-se de que o “tratam como uma criança pequena que pode escrever para o público, mas não pode aparecer em público senão pelo braço de um homem ou mesmo de uma mulher”. Tenho aqui de falar de uma reacção de Raul Proença que tenho dificuldades em interpretar: a agressividade que lhe desencadeava a tosse e o cuspir das pessoas, fossem doentes, enfermeiros ou empregados. Logo em Abril de 1932, quando ouviu um enfermeiro tossir, terá dito: “Andam todos com muita tosse”. E o médico acrescenta que disse isto com um sorriso significativo. Depois nada mais é referido sobre este assunto nas notas clínicas até Novembro de 1938. Nesta altura, é referido que Raul Proença terá dito para a mulher, depois de um empregado ter tossido: “Vês? Até aquele empregado faz pouco de mim. Escarram para fazer pouco de mim, até nos carros eléctricos fazem isso”. A partir daqui, tem frequentemente crises de irritação e de mau-humor sempre que alguém tosse, chegando mesmo à agressão física. Em Março de 1939, há a seguinte nota do médico: “Pede para falar comigo e, pela primeira vez, fala-me sem aquele ar de submissão e atencioso do costume, reclamando sacudidamente a sua saída do Hospital, porque aqui não se cura e não pode suportar mais estas tosses; porque a gente tosse só para fazer pouco dele e o achincalhar. Procurando fazer-lhe ver que não há propósito de lhe quererem fazer mal, etc., responde: ‘Eu sei

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que não é por mal, será até para meu bem, mas é um processo terapêutico que eu não quero, etc.’.” Em 1940, pouco mais é referido sobre ele, senão as cenas de revolta, de gritos e de agressividade que ele apresentava quando alguém tossia ou cuspia. Partia mesmo a louça, onde eram servidas as refeições, quando tal acontecia. Um dia, não atirou as louças, apesar de terem tossido e alguém se admirou com o facto. Raul Proença disse: “Não atirei, porque são de alumínio”. Passou a proferir obscenidades quando se exasperava com a tosse e o cuspir. Em Junho, “apresentou-se muito alegre, pedindo para ir lá fora com alguns empregados para beber vinho verde (‘beber até cair’ – disse). Depois, exaltando-se, gritou: ‘Quero sair daqui para fora, quero ir beber vinho verde!’.” “Em consequência dos esforços que fez ontem e hoje (pois chegava a desnudar-se da cinta para cima, virando-se para a janela do jardim a gritar a plenos pulmões), está um pouco cansado e enfraquecido e pede para ficar na cama. Pede perdão ao pessoal e doentes a quem ainda há pouco maltratava. Raul Proença gritava abaixo a ditadura, abaixo o Carmona, abaixo o Salazar”. Em 3 de Julho, “levanta-se logo de manhã e pede para sair porque a família – diz – o esperava lá fora”. “Tem-se alimentado melhor nestes últimos dias, indicando o ‘menu’ que deseja, o que, desde a sua entrada, nunca fez. Pouco depois de jantar, preparava as malas e percorreu todos os quartos a fim de se despedir dos outros doentes e do pessoal, intimando depois o empregado para lhe abrir a porta de saída, pois – dizia – o cunhado esperava ali fora com o carro para o levar para casa”. Acalmou durante uns dias em que não protestou contra a tosse e pediu sabão e água para se lavar. Mas rapidamente voltou aos protestos em altos gritos contra a tosse e o cuspo. O seu estado foi-se agravando, mostrando-se cada vez mais revoltado com o facto de estar ali encarcerado, como escrevera em Janeiro. Pediu novamente à mulher para sair do Hospital. Há uma carta de 6 de Abril de 1940, a Casais Monteiro7, na qual Raul Proença mostra uma extraordinária lucidez e coerência de discurso, falando sobre o Guia de Portugal. Afirma ainda: “Na minha casa – ou antes, no que foi a minha casa, porque agora a minha casa é o inferno…” Mas as notas clínicas afirmam: “Mostra grande instabilidade de humor. Passou a abrir a janela a qualquer hora do dia para gritar abaixo a ditadura, abaixo Salazar, Espólio de Adolfo Casais Monteiro, E15/2845. Lisboa: Biblioteca Nacional.

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quero boa fruta, boa manteiga, boa água, bom pão branco. Alimenta-se cada vez pior”. A partir de Maio, não há mais notas clínicas sobre o seu estado, morrendo a 20 de Maio de 1941, vítima de uma broncopneumonia. A análise deste longo período de internamento permite afastar a hipótese de esquizofrenia e a evolução da sua doença não confirma o diagnóstico de Psicose Paranóide. O delírio de ciúme nunca mais foi referido e a relação com a mulher parece ter-se normalizado. Julgo que será razoável pensar-se ser estranho que o doente nunca mais se tenha queixado do comportamento da mulher. E, excepto a irritação e a agressividade que lhe provocavam a tosse e o cuspir, nunca houve referências a qualquer outra sintomatologia paranóide. O que sobressai dessa evolução é um quadro depressivo, de tipo inibido, verificando-se que até fazer a leucotomia pré-frontal esteve mergulhado nessa melancolia ansiosa, diagnóstico que Egas Moniz fez. Após a intervenção cirúrgica, assiste-se a uma melhoria que lhe permite voltar a interessar-se pela escrita, pelos livros e pela correspondência que mantém. As cartas são lúcidas, coerentes, com projectos vários e chega mesmo a escrever artigos que são publicados. Penso que continuou a ser olhado como um paranóide, senão mesmo como um esquizofrénico, porque, muitas vezes, em Psiquiatria, depois do diagnóstico feito, todos os comportamentos e decisões se limitam a confirmá-lo. A análise da sua biografia é uma parte importante para a compreensão da doença. Em 1909, morte do Pai em Janeiro. Em 15 de Agosto, numa carta a Bernardino Machado, refere que vive uma crise horrível naquele momento. Estaria um pouco deprimido? Da leitura de muitas das suas cartas, ficou-me a ideia de que ele utilizava as palavras crise horrível quando estava deprimido, porque a vida dele foi sempre muito difícil em termos económicos, com necessidades praticamente constantes. Em Setembro de 1911, numa carta a Jaime Cortesão, queixa-se da situação dificílima em que está – oito pessoas de família, a mulher doente há quatro meses, irmão doente do peito, ele também adoentado, ganhando vinte e tantos mil reis e com gastos de 65.000 reis que só podem vir dum trabalho constante. Em Fevereiro de 1912, numa carta onde anuncia a Jaime Cortesão o nascimento da sua filha Berta, mostra sentimentos depressivos claros, quando escreve: “Como é belo ser pai! Mas como é triste ter uma Pátria destas para dar a uma filha! Minha filha ao nascer encontrou isto tão feio,

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tão negro (…). Ainda tem confiança em alguma coisa? Eu não. Tenha pena de mim”. Em Dezembro do mesmo ano, encontra-se na Ericeira em tratamento de helioterapia (na altura, recomendado como tratamento para a depressão). António Sérgio8, numa carta, escreve: “Muito me desolou a notícia que me dá do seu estado de espírito e saúde”. Preocupado com o estado de saúde de Proença, Sérgio recomenda-lhe descanso, mas Proença responde-lhe que não precisa de descanso, Sérgio insiste: “Peço-lhe que trate a valer da sua saúde e se não deixe desanimar”, carta de Dezembro de 1912. E acrescenta Sérgio: “Tudo o que diz é naturalíssimo no estado em que está agora. Todos nesses períodos se sentem incapazes, inferiores à média, sem razão de actuar, sem talentos”; “Não perca, por tudo lhe peço, a fé em si, a confiança modesta, mas segura, no seu valor bem real”; “Que não seja por desânimo ou desconfiança que deixe de fazer o muito que pode fazer por capacidade”. Este estado depressivo parece ter-se prolongado até princípios de 1913. Em Janeiro de 1919, sofre de uma “crise de exaltação” à qual se refere Sant’Anna Dionísio nestes termos: “Crise decerto provocada pela hesitação do comando republicano em desencadear o assalto às posições inimigas. Simples manifestação do seu temperamento colérico e impaciente ou já sintoma da sua doença?” Em Dezembro de 1927, em carta a Ferreira de Macedo9, afirma que a morte da filha “foi o golpe mais cruel de toda a minha vida – eu que tenho sofrido tanto nestes últimos tempos”. Em Maio de 1928, por sua vez, em carta a Carlos de Passos, escreve: “A minha vida tem sido uma dura prova. Enfim, numa palavra: acabou a alegria para todos os dias da minha vida”. Estas afirmações permitem pensar que também terá reagido com uma depressão à morte da filha, embora não tão intensa como a de 1912 e, como mais justificada, não terá chamado tanto à atenção. Ao longo dos dois anos seguintes, parece ter estado bem, pois desenvolveu uma intensa actividade, desdobrando-se em artigos, trabalhou no Guia de Portugal, em francês, e foi nomeado para uma Comissão Internacional de Catalagoção. Publicou Les Guides Bleus. Contudo, em Maio de 1930, no encontro com Rodrigues Miguéis, este descreveu-o como um homem fatigado e deprimido ao extremo. Sabe-se que, em Julho, terá piorado, tendo sido aconselhado pelos médicos a ir para a Sabóia por ser uma região de meia altitude e ter um clima seco. Por essa altura, aliás, Manuel Teixeira Gomes, aconselha-o a descansar, felicitando-o pelas suas melhoras. Espólio de António Sérgio, E70. Lisboa: Biblioteca Nacional. Espólio de Ferreira de Macedo, E17/203, Lisboa: Biblioteca Nacional.

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Depois de regressado a Paris, ao fim de 2 meses, mantém a sua actividade normal. Em 1931, novamente em Julho, volta a adoecer e, em Agosto, há um agravamento da doença, sendo aconselhado a observar o máximo repouso. Foi para Paramé, na Bretanha, onde permanece durante 3 meses. Corresponde-se, entre outros, com Câmara Reys. Há uma carta, datada de 19 de Outubro, em que Raul Proença mostra um misto de humor baixo e elevado: “O dinheiro vai-me entrar pelas janelas dentro. A glória vai sorrir-me. Simplesmente peço às mulheres que não me perturbem mais do que elas já me perturbam…” E a seguir: “Por ora, sob o ponto de vista financeiro, a situação tem sido extraordinariamente má. Tenho exigido aos meus nervos o máximo. Olhe que isto tem sido belo: da parte de todos. Da mãe às filhas. Temo-nos achado por vezes reduzidos aos últimos cêntimos. Fazemos várias pilhas classificadas: 5, 10, 25 e 50 cêntimos. E pomo-nos a olhar para aquela fortuna – a rir! Sim, a rir, Câmara Reys! Nós não perdemos a coragem do riso! E isto não me espanta por mim. Espanta-me por minha mulher, pelas minhas filhas. Decididamente, nós estamos à prova da catástrofe”. Numa longa carta de 26 de Outubro, afirma que os três meses passados em Paramé foram de uma rara intensidade e cita o imenso trabalho que fez, somando a tudo isso a ameaça de nos faltar o pão em casa. Refere que fez exames de consciência e que teve noites de suplício. E faz uma confissão a Câmara Reys sobre os seus defeitos e pede-lhe total reserva sobre o que escreve. Refere-se aos conflitos dramáticos, às noites pungentes, aos exames de consciência, aos sonhos atormentados, afirmando que um dia lhe abriria o coração. Mantém diversas polémicas, a última das quais foi em Outubro, com António Ferro. Em 9 de Novembro de 1931, é internado. Verifica-se que, ao longo da vida, Raul Proença sofreu de perturbações depressivas notórias, de gravidade desigual, que o incapacitaram meses seguidos. Também apresentou momentos de elevação de humor, pelo menos, em dois momentos da vida. É difícil saber se a crise que motivou o internamento foi uma depressão ansiosa grave com agitação psicomotora ou um misto de depressão e de mania, o qual se caracteriza por agitação, insónia, alteração do apetite, características psicóticas e ideação suicida. Isso explicaria não só a agitação que o levou a atirar com objectos pela janela e a força que demonstrou nessa altura, sendo necessários 4 homens para o imobilizarem no colete de forças, mas também as ideias paranóides de envenenamento e de ciúme

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da mulher, as tentativas de suicídio feitas e até o misticismo de que falava António Sérgio numa carta a Câmara Reys. Ainda internado, em 26 de Dezembro, escreve para Câmara Reys, onde diz que o isolamento a que foi forçado o levou a reflectir em toda a sua vida passada e a uma profunda crise de consciência. Também lhe pede permissão para fazer o repúdio de todas as doutrinas que hoje lhe pareciam erradas, a serem publicadas na Seara Nova: “Meu caro Câmara Reys: Desculpe escrever-lhe neste papel. Não tenho de momento outra coisa à disposição para lhe escrever. Como naturalmente sabe, estou há cerca de mês e meio numa casa de saúde. O isolamento a que me tenho visto forçado levou-me a reflectir em toda a minha vida passada. Vejo, em toda ela, uma sincera intenção, um grande desinteresse e lealdade de processos; mas vejo também erros profundos e faltas de visão lamentáveis”. Estas palavras são mais de um homem deprimido do que de um paranóide. A própria depressão poderá explicar as alterações de doutrinas, nomeadamente, as referentes a Deus. Para concluir: 1) A evolução da doença no Hospital, após um mês de internamento, foi a de uma depressão grave que melhorou significativamente após a leucotomia pré-frontal e permitiu ao doente voltar a retomar uma intensa actividade intelectual que foi diminuindo, apenas a partir de 1940. Raul Proença fora perdendo também a esperança de sair do Hospital e isto poderá explicar o comportamento que começou a apresentar no final de 1938 e que indiciava uma grande revolta. A leucotomia também pode ter provocado alterações, mas não parecem ter sido a causa dos comportamentos que passou a ter.

A sua reacção à tosse poderá ter a ver mais com uma fobia ou obsessão, pois não se pode esquecer os vários membros da família que tiveram e morreram de tuberculose, inclusive, duas das filhas, e não sabemos também até que ponto Raul Proença se sentia culpado, pois, numa carta a Câmara Reys, ele agradece o envio de dinheiro e diz que nunca procurou trabalho, porque estava convencido que a ditadura cairia rapidamente.

2) A sua biografia permite concluir que sofreu de várias crises depressivas ao longo da vida, de gravidade diferente, tendo recuperado totalmente, excepto da que teve em 1930.

Anita Vilar



Também parece ter tido um episódio fugaz de hipomania, o tal período de exaltação descrito por Sant’Anna Dionísio e um outro período de alguma exaltação do humor, hiperactividade e insónias em Paramé. As alterações que apresentou em Junho de 1940, podem ter sido devidas também a uma elevação do humor.

3) As dificuldades económicas sempre presentes, o excesso de trabalho, os desgostos sofridos e o exílio foram factores importantes no desencadear das crises e, nos últimos tempos de vida em Paris, penso que nunca recuperou totalmente, acabando por adoecer gravemente. 4) A enfermidade que tão cedo nos levou Raul Proença foi a que hoje se classifica como uma doença bipolar, sendo difícil dizer se foi do tipo I ou do tipo II, doença caracterizada por períodos depressivos e de excitação ou exaltação do humor que variam muito de doente para doente*.10

* Os meus agradecimentos à Santa Casa de Misericórdia do Porto; ao Professor Marques Teixeira, na altura, Director Clínico do Hospital Conde Ferreira; e à Dra. Regina Andrade, na altura, responsável pela Biblioteca do mesmo Hospital. Agradeço também à Biblioteca Municipal do Porto pela colaboração prestada.

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António Sérgio, a primeira Seara Nova e a República Moderna. Algumas notas GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS Centro Nacional de Cultura

1. Originário de uma família culta e fidalga do liberalismo, tendo sido seu avô ajudante de campo do rei D. Luís e governador-geral do Estado da Índia, António Sérgio de Sousa desde cedo revelou qualidades intelectuais e cívicas, que caracterizariam o seu percurso de vida. Depois de ter estado em Angola, para onde seu pai foi destacado em missão, foi aluno do Colégio Militar e alistou-se na Armada, seguindo a tradição familiar. Após o curso da Escola Naval, foi para Macau (1905), viajou para Newcastle (1906) e foi colocado na Estação Naval de Cabo Verde (1907). Em Junho de 1910, casou com Luísa Estefânia Gerschey da Silva, que, pela sua cultura e sensibilidade, teria uma influência decisiva no percurso de seu marido. Nesse tempo, Sérgio visita Paris, e aquando da implantação da República defronta-se com um dilema moral, agravado pelo suicídio de um seu grande amigo, Frederico Pinheiro Chagas – ou seguir a actividade intelectual, para que sente inclinação e gosto, ou continuar na carreira das armas, por tradição familiar. Optará pela actividade de publicista e depois de pedagogo, começando por dirigir a revista Serões (1911) e aproximando-se da Renascença Portuguesa e de Jaime Cortesão e Raul Proença. Na revista A Águia, publicará, aliás, um conjunto essencial de ensaios, que reunirá no volume Educação Cívica, onde é nítida a influência de John Dewey, Kerschensteiner, Schleiermacher, Wilson Gill, autores que ligam a pedagogia à actividade cívica e à construção da Democracia. Dedicado à actividade editorial e interessado pelos estudos educativos, vai afastar-se (exprimindo publicamente as razões da sua crítica) do magistério saudosista de Teixeira de Pascoaes em A Águia – sem deixar de respeitar o talento de artista do autor de Arte de Ser Português. A polémica tornar-se-á, aliás, um dos terrenos por excelência em que Sérgio se afirma. Depois da derrota do sidonismo (1917-18), no qual o ensaísta acreditou,

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dirigindo a revista Pela Grei, órgão da Liga de Acção Nacional1, regressa ao estrangeiro (Brasil e Suiça). Raul Proença desafia-o, porém, a vir e a entrar na Seara Nova (“Para que salvemos a Pátria, necessário é que a não abandonemos nos piores momentos, que firmemos bem rijamente os pés na lama” – escreveu Proença no número 3 da Seara Nova, de 20 de Novembro de 1921, dirigindo-se-lhe). E António Sérgio aceita o repto, pensando poder ser útil para a definição dos novos destinos de Portugal. A primeira metade da década de vinte será, assim, de intensa participação política, sendo o autor dos Ensaios Ministro da Instrução Pública, fugazmente, no governo presidido por Álvaro de Castro (1923-24). Os seus textos na Seara Nova, neste período, correspondem às preocupações que tem nesse momento: havia que encontrar um caminho de regeneração de Portugal, para o que se tornava imperioso lançar pontes para diferentes grupos, de modo a criar uma República moderna, pluralista e aberta. Quando apresenta, em Dezembro de 1923, a revista Homens Livres, que congrega seareiros e integralistas, dirá ao Diário de Lisboa: “Na verdade, a grande linha de separação política, hoje em dia, não é aquela que nos reparte em monárquicos e republicanos; é, sim, a que distingue os reformadores dos conservadores. Uns querem conservar o que aí vemos, e conservar-se no que aí vemos; outros querem purificar, regenerar e progredir. (…) Uns e outros são anti-conservadores; uns e outros são radicais; uns e outros regionalistas; uns e outros defendem a criação de uma assembleia representativa das classes e categorias sociais e intelectuais (com a diferença de que os primeiros só desejam essa e os segundos a combinam com um parlamento político); uns e outros atacam a plutocracia da sociedade portuguesa; uns e outros querem uma educação primária trabalhista e regional, etc.”2. Depois do 28 de Maio de 1926, intervirá activamente na oposição ao novo regime, designadamente na Liga de Paris (Liga de Defesa da República, 1926-1932), sempre preocupado com a necessidade de construir uma República moderna, baseada em instituições legítimas centradas nos cidadãos. Regressado a Portugal, iniciará um longo magistério cívico, apesar de estar na incómoda posição de ser contestado pela direita e pela esquerda. E em 1945, no fim da Guerra, parece que as novas circunstâncias oferecem uma oportunidade ao ensaísta e activista político, que tem papel muito activo na tentativa de criação de uma oposição Cf. LOPES, Fernando Farelo. A Revista Pela Grei (Doutrina e Prática Políticas). Análise Social, vol. XVIII, n.os 72 a 74, 1982, pp. 759-772. 2 A afirmação foi produzida em entrevista ao Diário de Lisboa, em Dezembro de 1923, e é desenvolvida no editorial do primeiro número da revista em MEDINA, João. O Pelicano e a Seara, A Revista Homens Livres. Lisboa: Edições António Ramos, 1978, p. 39 e ss.

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social-democrática3. A candidatura do General Humberto Delgado será, aliás, resultado de uma intervenção decisiva de Sérgio4… Fiel às suas ideias de sempre, o fundamental para regenerar Portugal exigiria a congregação de esforços de gentes de diversos horizontes. Por isso, em 1958, julga chegado o momento de ir buscar alguém que provém do Estado Novo e que poderá estar em condições de concretizar o fim da “frente nacional” em que Oliveira Salazar se tinha baseado na sua acção. Há, deste modo, uma coerência no pensamento do ensaísta que o acompanhará durante toda a vida, e que se manifesta de um modo muito especial no período 1921-1926, durante o qual o grupo da Seara Nova pensa poder haver condições favoráveis a uma mudança reformadora. 2. O pensamento filosófico de António Sérgio, desde a juventude, situa-se na reacção ao cientismo naturalista, seguindo na esteira de Antero de Quental e da Geração de Setenta, desde o anti-positivismo à busca de um programa cívico e pedagógico. Contudo, é o idealismo crítico de raiz neokantiana (que vai evoluindo ao logo do tempo) que constitui o elo durável entre as diversas intervenções filosóficas. A sensibilidade empírica da actividade mental, o conhecimento do mundo exterior, a espontaneidade da actividade mental organizadora, por comparação de conceitos e noções e a realidade mental que precede a ciência levam à posição idealista que permite considerar a faculdade mental como a própria unidade da consciência. E a razão torna-se, por definição, especulativa, espiritual e prática. Mas esta razão não pode esquecer as preocupações éticas – daí o carácter não egoísta do individualismo sergiano e a consideração do carácter de “uno unificante” que a razão possui5. O ensaísta procura, assim, permanentemente, um A 1 de Maio de 1947 profere a célebre Alocução aos Socialistas, na qual surge a tentativa de criação de um pólo oposicionista demarcado da posição comunista e centrada na influência trabalhista e social-democrata. O Directório Democrato-Social foi criado em 1950, por António Sérgio, Jaime Cortesão, Mário de Azevedo Gomes. Acácio Gouveia, Armando Adão e Silva, Carlos Sá Cardoso, Raul Rego, Artur Cunha Leal, Nuno Rodrigues dos Santos foram membros do grupo, tendo a partir de 1956 Mário Soares feito parte do mesmo em representação da Resistência Republicana e Socialista. 4 Cf. DELGADO, Frederico. Humberto Delgado, Biografia do General Sem Medo. Lisboa: Esfera dos Livros, 2008. O papel de António Sérgio fica bem evidenciado. Foi uma causa em que o pensador se empenhou activamente, esperando sucesso. O desfecho da tentativa terá contribuído para o desalento e a depressão finais do escritor. 5 Leia-se SÉRGIO, António. Explicações para os que entendem a língua que eu falo. Vértice, n.os 36 a 39, Junho de 1946; idem, Ensaios, tomo VII. Lisboa: Editora Sá da Costa, 1974, pp. 191-194. Leia-se TEIXEIRA, António Braz. António Sérgio Filósofo. In: AA.VV. António Sérgio – Pensamento e Acção, vol. I. Lisboa: INCM, 2004, pp. 15-30 e, do mesmo 3

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sistema completo capaz de responder universalmente aos anseios da humanidade, o que obriga à consideração da ligação intrínseca entre liberdade e justiça social. Como “intelectual comprometido”, António Sérgio considera que as diversas facetas da modernidade constituem desafios permanentes de carácter cívico e ético. De facto, o pensador acredita na capacidade de reformar para reeuropeizar a cultura portuguesa, na linha dos intelectuais de 1870, e recusa uma técnica sem mundivivência filosófica – contrapondo a visão histórica do isolacionismo à perspectiva do cosmopolitismo e da abertura. Por isso, gostava de citar Goethe, para quem a História seria um meio de nos livrarmos do passado, e, desde muito cedo, insistia no facto de no caso português haver mortos que era preciso matar, para os enterrar definitivamente. Não sendo historiador de profissão, usou a História para tentar desvendar os mistérios da inércia colectiva e para descobrir caminhos no devir. Assim, era fundamental compreender os portugueses, que mantiveram a sua ligação à modernidade europeia, apesar do isolamento do país à custa do auto-exílio ou de uma acção semi-clandestina em Portugal, e o “escol (de intelectos, não de minorias sociais privilegiadas, como Sérgio insistia) que ainda antes do isolamento colheu ensinamentos necessários à expansão e que deve servir de exemplo para o escol ambicionado por Sérgio (diz Carlos Leone) para, em termos similares, se formar do exterior do país, para depois retornar a ele e contribuir para a sua modernização, sinónimo de europeização”6. Note-se que Sérgio funda a ideia de uma República moderna (e de uma Educação Republicana) menos num programa pormenorizado a aplicar às instituições e mais numa orientação moral e pedagógica, daí a sua preocupação com o elemento formativo, desenvolvido em Educação Cívica, e com a proposta de algumas medidas específicas: redução do número de partidos políticos, obrigação dos proponentes de moções de censura ao governo apresentarem um programa e um governo alternativos (moção de censura construtiva), criação de um período posterior a uma moção de

autor, Sobre a Noção de ‘uno unificante’ na filosofia de António Sérgio. In: AA.VV. Poiética do Mundo, Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves. Lisboa: Edições Colibri, 2001, pp. 365-374. Veja-se ainda MESQUITA, António Pedro. Aspectos do ideário sergiano em ontologia. Prefácio a SÉRGIO, António. Notas sobre Antero de Quental, Cartas de Problemática e Outros Textos Filosóficos. Lisboa: INCM, 2001; e CARDIA, Mário Sottomayor. O pensamento filosófico do jovem Sérgio. Cultura – História e Filosofia, vol. I. Lisboa: INIC, 1982. 6 LEONE, Carlos. O Essencial sobre António Sérgio. Lisboa: INCM, 2008, p. 60.

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censura em que os proponentes ficassem inibidos de reincidir na iniciativa, reforço de um sistema de freios e contrapesos7. 3. Nesta linha de pensamento, e considerando a história portuguesa e a sua evolução, a noção de “estrangeirado” assume, de modo claro, em António Sérgio, uma pertinência não pela mentalidade mas pelo carácter educativo e não histórico, reformista das práticas e não só dos princípios. E é assim que o ensaísta, ao contrário de algumas simplificações, matiza a oposição, designadamente entre fixação e transporte. De facto, estes dois conceitos revelam-se fundamentais. Não são inéditos, uma vez que estão subjacentes ao pensamento de Antero na conferência do Casino sobre as Causas e seguem as concepções fundamentais da geração do poeta de Odes Modernas ou de pensadores como Basílio Teles. O decisivo está na concepção de Portugal como país moderno, capaz de condenar a inevitabilidade do sebastianismo. Na linha de Herculano ou de Oliveira Martins, Sérgio recusa os providencialismos e o fatalismo do atraso. A decadência nada tem a ver com um factor externo ou com uma conspiração anti-nacional, sendo sim o resultado de uma série de opções comummente adoptadas. O fechamento não é uma opção atribuível a um agente ou pequeno conjunto de agentes. É a Portugal, como um todo, que Sérgio atribui as raízes da decadência – isto é, à renúncia voluntária à modernidade a que deveria pertencer. Portugal é corrupto por se ter corrompido, e não por ter sido corrompido. Daí a necessidade de uma auto-responsabilização colectiva. Nesta perspectiva, o verdadeiro veículo da mudança social não é a alteração das leis, mas a sua remodelação económica. E assim, fiel a Antero, considera a economia 7

Cf. PEREIRA, José Esteves. António Sérgio Político. A Ideia de Democracia. In: AA.VV. António Sérgio – Pensamento e Acção, vol. I, p. 87 e ss. O autor salienta, neste texto fundamental, que para Sérgio a democracia é o regime em que os governos são fiscalizados pela opinião pública, através dos seus representantes, visando a liberdade e a igualdade dos cidadãos, no entanto, as instituições políticas e administrativas devem ter um valor instrumental, daí que as reformas das instituições devam ir ao económico e social. Daí a importância da orgânica corporatista ou do cooperativismo, em que o pedagogo activo se empenha. Para que a opinião pública fosse actuante, haveria que apostar na educação, a fim de formar uma elite interessada, informada, conhecedora e empenhada na defesa da grei. Assim, democracia torna-se demopedia, isto é, no princípio e no fim, acção, e formação para essa acção. O pedagogo activo é, assim, fundamental, devendo tornar-se dispensável, de modo a que (na linha de Dewey) sejam os cidadãos os verdadeiros actores da mudança, a partir do impulso educativo. Espíritos lúcidos e organizadores, criadores pacientes e reflectidos. Relativamente às questões económicas, leia-se ALMODOVAR, António. António Sérgio Economista? In: AA.VV. António Sérgio – Pensamento e Acção, vol. I, p. 103 e ss.

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um instrumento com intuito moral. Temos de saber lidar com “as duas políticas nacionais” e com os dois países que coexistem em Portugal – um conservador e isolacionista e outro moderno e aberto ao exterior8. Uma vez que estamos perante faces de uma mesma identidade, é indispensável compreender os dois aspectos e matizá-los, pela acção pedagógica, para que a perspectiva aberta e cosmopolita possa prevalecer de modo estável… Como afirma Manuel Ferreira Patrício: “Ainda hoje não é possível entender, compreender e discutir a questão educativa nacional sem conhecer o pensamento pedagógico de António Sérgio”9. Assim, a persistente tentativa de levar a República moderna a executar uma política educativa eficaz, revendo os métodos pedagógicos, articulando ensino e vida económica, incentivando o sentido crítico do conhecimento da história, organizando a República escolar, integrando internacionalmente o ensino superior e a investigação científica, conduz Sérgio numa linha de acção que coloca as transformações educativas no cerne da reforma nacional. Daí que a leitura do pensamento pedagógico de António Sérgio seja um exercício fundamental para a melhor compreensão da sua obra e do seu alcance. Deste modo, insista-se em que O Problema da Cultura e o Isolamento dos Povos Peninsulares (1914), o já citado Educação Cívica (1915), Considerações Histórico-Pedagógicas (1916), Cartas sobre as Educação Profissional (1916), A Função Social dos Estudantes (1917), O Ensino como Factor de Ressurgimento Nacional (1918) e Sobre Educação Primária e Infantil (1939) são textos de leitura obrigatória10. Afinal, temos de voltar a ouvir António Sérgio a pôr-nos de sobreaviso nas Considerações Histórico-Pedagógicas: “Nós mantenhamos o santo horror ao palavreado nacional, lembrando-nos do estrangeiro que muito seriamente afirmou que a causa da decadência dos povos peninsulares – era a retórica”… 4. O ensaísta foi sempre um “homem político” e um “pedagogo activo”. Tudo o que lemos do seu pensamento decorre desta dupla assunção. Aliás, o homem político decorreu, naturalmente, do cidadão e do pensador. Se há, no século XX português, um exemplo de intelectual comprometido e empenhado na coisa pública, em coerência com o seu pensamento, apesar de todas as adversidades e nunca numa perspectiva de exercício imediato SÉRGIO, António. As Duas Políticas Nacionais. In: ______. Ensaios, tomo II. 2.ª edição, Lisboa: Publicações Europa-América, 1957, pp. 85-122. 9 PATRÍCIO, Manuel Ferreira. Prefácio a SÉRGIO, António. Ensaios sobre Educação. Lisboa: INCM, 2008, p. 11. 10 Cf. ibidem, passim. Vd. tb. SÉRGIO, António. Autobiografia inédita de António Sérgio [Livre D’Or do Instituto Jean-Jacques Rousseau, Genève, 1915]. Recuperado por Daniel Hameline e António Nóvoa. Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º 29, Fevereiro de 1990. 8

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de poder, esse é o de António Sérgio de Sousa. E se digo sem uma perspectiva imediata do poder, é porque quer no final da Primeira República quer durante a oposição a Oliveira Salazar, Sérgio manteve-se fiel àquilo que Julien Benda tratou em La Trahison des Clercs e que o ensaísta traduziu deste modo: “Está bem, a meu ver, que os intelectuais se interessem pela vida pública: mas devem fazê-lo todavia para tentarem submeter a acção política a um pensamento universal e des-subjectivado, a um ideal de racionalidade o mais pura possível – e não para formularem justificações sofísticas das paixões de preconceitos de qualquer facção” (como afirmou em entrevista à Vértice, em Junho de 1956)11. O fundamental estaria, pois, na procura de um princípio universal, um ideal de racionalidade (ou não fora ele um idealista) demarcado da lógica oportunista do imediato. Tanto quando foi Ministro da Instrução Pública com Álvaro de Castro (1923-24), como quando animou a candidatura do General Delgado, encontramos o mesmo desejo – realizar um ideal de uma Democracia de cidadãos livres e unidos por um desígnio de cooperação. 5. “Poucos países há, certamente, em cuja história seja tão sensível, de ponta a ponta, o influxo do facto económico, como este nosso: poucos há também cuja história económica fosse tão desprezada; e será acaso dos maiores obstáculos ao ressurgimento da nossa pátria a falta geral de conhecimentos sólidos das condições económicas em que se evolucionou”12. Afinal, Sérgio segue o ensino de Antero de Quental: “A moralidade colectiva é um facto, em grande parte, de ordem económica, ainda que esta afirmação pareça paradoxal”. Por quê? Como diz em 1924 a Jaime Magalhães de Lima: “O exemplo do santo é adjuvante; o de homem de carácter, necessário; nenhum deles é o factor suficiente da prosperidade social. Só frutificam, ambos eles, pela acção educativa da formação particularista”. Por isso insistirá em que: “A nossa futura pedagogia deverá ser, essencialmente, uma pedagogia de trabalho e da organização social do trabalho”13. Economia e dignidade humana são faces da mesma moeda. Não se entende a satisfação das necessidades sem a consideração da moralidade e vice-versa, ideias e coisas relacionam-se intimamente. Não se pense, pois, que há compartimentos estanques na reflexão de António Sérgio. Há, sim, uma ligação íntima entre a interpretação histórica e económica, a concepção filosófica e a intervenção cívica e política. Tudo se articula. Afinal, para o ensaísta “a Vértice. Coimbra, n.º 153, Junho de 1956, p. 270. Cf. Antologia dos Economistas Portugueses. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1924, p. III. 13 Lusitânia. Revista De Estudos Portugueses. Lisboa, fasc. I, vol. II, Setembro de 1924, p.126. 11

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pátria é um ir sendo pela vontade e pela consciência”. Alexandre Herculano e a melhor reflexão historiográfica oitocentista estão bem presentes, prolongando-se para a intervenção transformadora. E vem à baila a ideia de “fixação”: Adoptei a palavra fixação para designar o investimento dos lucros do transporte em fainas produtoras nos territórios nacionais em vez de deixarmos que os ditos lucros passassem todos a gente estranha para pagamento do muito que nós importávamos. Se a ideia de política de fixação não supusesse a existência de transporte, chamar-lhe-ia política de produção, e não política de fixação (a ideia de fixação – ao que me parece evidente – pressupõe a de um algo que se está movendo, que está sendo transportado)”14. Mas, para António Sérgio é preciso saber quem é o sujeito da História, enquanto ser livre, actuante e racional. Daí a noção do “terceiro homem” – “O homem do Libertarismo auto-disciplinado e reformador”. É o “Homem apegado à liberdade cívica, sim, mas com a plena consciência de que a liberdade é difícil, com exigências de correlativa responsabilidade estreita, com o desejo de providências de disciplinação rigorosa, com práticos anseios de justiça social”15. E, ao reler reflexões como esta, Joaquim Montezuma de Carvalho, que incansavelmente procurou revelar-nos quem foi António Sérgio na dimensão múltipla do seu labor de filósofo, de historiador, de pedagogo activo e de doutrinador do cooperativismo, afirmou magistralmente: “Sérgio realiza entre nós a apoteose de unidade. Ética, Estética e Ciência são a unidade na diversidade. Depois dos gregos, a dispersão, o homem unilateral. Sérgio prolonga na modernidade o pitagorismo dos versos de ouro: sem unidade não há orientação, sem auto-domesticação não atingimos a imortalidade dos deuses. Sérgio é helénico por excelência. É o homem integral”16. 6. A ideia de “República Moderna” para António Sérgio, no fundo, não era encarada como um tema de regime político, mas como de construção da Democracia – regime em que os governos são fiscalizados pela opinião pública, através dos seus representantes, visando a liberdade e a igualdade dos cidadãos. Nesse sentido, o ensaísta manteve-se fiel às preocupações de seu mestre Antero de Quental e da sua geração. Como pedagogo activo, Cf. SÉRGIO, António. Ensaios, tomo VIII. Lisboa: Sá da Costa, 1960, pp. 144-145. Idem. Cartas ao Terceiro Homem. In: ______. Democracia. Lisboa: Sá da Costa, 1974, pp. 149-150. 16 CARVALHO, Joaquim Montezuma de. António Sérgio, a Obra e o Homem. Lisboa: Arcádia, 1979, p. 485. A obra é de um grande interesse, pelo percurso que faz pela produção multifacetada de António Sérgio, constituindo um bom “vademecum”, sem pretensões analíticas, sobre o muito que disse o ensaísta. 14 15

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ligou sempre a construção da Democracia à Educação – deixando claro que as instituições políticas e administrativas deveriam ter um valor instrumental, já que as mudanças económicas e sociais teriam de estar na primeira linha das preocupações reformadoras. A Educação para a cidadania constitui, assim, um caminho de emancipação, de modo que os cidadãos, desde as idades mais jovens, ganhem sentido de responsabilidade que permita um exercício efectivo da liberdade e o assumir da igualdade. Daí a crítica à mera alfabetização, ao ler, escrever e contar, e a ligação que António Sérgio sempre fez a uma educação profissional. Por outro lado, a doutrinação e a orgânica cooperativistas inseriam-se na necessidade de reorganizar a sociedade a partir da máxima responsabilidade de todos. Por exemplo, nas Cartas ao Terceiro Homem nota-se uma insistência particularmente evidente na autonomia individual, na inserção desta numa ideia dinâmica de “vontade geral” (diferente da de Rousseau), na ligação entre democracia e acção e na defesa de um paradigma (que é associado à figura de José Xavier Mouzinho da Silveira, por contraponto à de António Maria Fontes Pereira de Melo) de criação e “fixação” de riqueza, em contraste com os “melhoramentos materiais”, baseados no mero “transporte” das riquezas. O dualismo das “duas políticas nacionais” é, assim, recorrente em Sérgio, vindos dos anos vinte aos anos cinquenta. E só haveria Democracia se essa mentalidade estivesse enraizada e fosse assumida por uma elite interessada, informada, conhecedora e empenhada naquilo que António Sérgio designa como “defesa da grei”. E diz-nos o próprio ensaísta: “Se o leitor meditou um pouco sobre a definição que aqui demos de vontade geral como sendo a vontade de um qualquer indivíduo quando ele procede segundo uma concepção objectiva, universalista, do acto que vai praticar, desprendendo-se do seu ponto de vista de indivíduo para se colocar no ponto de vista espiritual da reciprocidade de relações com os demais indivíduos; se meditou sobre tal definição, dizemos nós, concluiu decerto que há duas maneiras bastante diversas de conceber a Democracia, a uma das quais poderíamos chamar a maneira passional e materialista, ao passo que à outra – à nossa – caberia a designação de idealista e crítica”17. A actualidade do testemunho de António Sérgio fica, deste modo, salvaguardada, uma vez que, se é verdade que está preocupado com os problemas imediatos, e com a crítica política desde a Primeira República ao Estado Novo, o certo é que não se perde na formulação de propostas circunstanciais, centradas no funcionamento das instituições. A coerência é, assim, um dado SÉRGIO, António, Democracia, p. 99. O texto aqui citado, intitulado Democracia, foi publicado em opúsculo, em 1934, pela Seara Nova. Seguimos a 3.ª edição, de 1937.

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marcante no percurso sergiano. O longo prazo, a economia e a sociedade, a indispensabilidade de superar os factores de atraso, tudo isso preocupa o escritor de Ensaios, que usa a História, a Economia e a Filosofia para lançar pistas de reforma para o país. E se muitas vezes há quem se surpreenda pela dispersão de energias do pensador ao longo da vida, não podemos esquecer que foi o ânimo pedagógico que o levou a preferir a maiêutica e a polémica, à mera teorização. Daí a sua extraordinária influência até aos anos cinquenta nos mais diversos domínios (em especial no da História económica e social). E um certo apagamento nos últimos anos não pode fazer esquecer a força e importância do seu método bem como a actualidade da sua reflexão. Como pedagogo activo, antes de tudo o mais, Sérgio viu cumprido aquilo que sempre defendeu – a cidadania activa deve afirmar-se por si, desenvolver-se, singrar pelos seus próprios pés. Questão diferente é a da actualidade do sentido crítico do ensaísta. Continua a haver sinais preocupantes de atraso. Continua a prevalecer o curto prazo e a falecer o sentido da criação e do desenvolvimento. A “República moderna” e a Democracia continuam na ordem do dia.

António Sérgio e os nacionalismos SÉRGIO CAMPOS MATOS Universidade de Lisboa

Dos finais do século XIX ao final da II Guerra Mundial, a Europa viveu um tempo marcado pelo exacerbar dos nacionalismos, pelo sentimento de crise de civilização e crise do próprio sistema liberal. Tempo de afirmação de nacionalismos tradicionalistas, conservadores, de matriz étnica que, em Portugal, se exprimiram, entre outras vozes, no movimento do Integralismo Lusitano. Os anos que antecederam a I Guerra Mundial e depois toda a devastação provocada pelo conflito mostraram aquilo que os sociólogos do final do século XIX e homens como Darwin, Nietzsche ou Freud vinham revelando –o instinto, o irracional, a pulsão de morte, enfim o lado oculto da natureza humana. Na sequência da Grande Guerra, a Europa e o panorama internacional mudaram drasticamente. O velho continente, agora dividido, perdeu o domínio do mundo (lembre-se a emergência a leste da URSS). A guerra prolongou-se ainda em conflitos regionais alargados (Grécia-Turquia; Irlanda-Grã-Bretanha, Guerra Civil Russa) e aprofundaram-se as clivagens entre sistemas políticos e doutrinários radicalmente opostos. À oposição entre a ideia comunista e a doutrina liberal veio somar-se no pós-guerra o aparecimento dos movimentos fascistas que depressa alcançaram o poder na Itália (1922) e depois na Alemanha (1933). Revoluções de direita, comandadas pela ideia de raça ou a ideia de império – por oposição ao sistema liberal, considerado decadente, e ao conceito de classe que, por seu lado, marcava os movimentos socialista e comunista. “Guerra civil europeia” foi a expressiva designação dada por alguns historiadores a todo o período que se estenderia até 1945 e em que se situa também a Guerra Civil espanhola (1936-39). Vivia-se numa época dominada por sistemas deterministas de explicação do mundo, muito marcados por positivismos de diverso teor, por teleologias da história e pela convicção na previsibilidade do futuro. Estabeleciam-se conexões consideradas necessárias entre fenómenos – incluindo os acontecimentos sociais e humanos – e acreditava-se ainda em relações unilineares de causa-efeito. Mas se a ciência se tornara uma fé e as espantosas conquistas tecnológicas e materiais continuavam a deslumbrar, também

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é verdade que ainda no século XIX o cientismo suscitara forte resistência patente numa reacção idealista, mística e espiritualista, que se exprimira nas artes e nas ciências humanas, na sua propensão para manifestar e compreender o irracional. Eça de Queirós viu bem esta tendência em Paris, no final de Oitocentos1. Entre atracção e repulsa, a modernidade revelava o homem como um ser problemático, em sociedades mais secularizadas, em que as crenças religiosas tradicionais encontravam novos concorrentes. É o caso do culto das nações e dos nacionalismos. Por outro lado, a figura de Deus parecia tornar-se distante ou refluir para os recessos da consciência individual. E não tardaria muito que os totalitarismos ocupassem todo o espaço público e invadissem até o espaço privado. Neste contexto os nacionalismos exclusivistas e expansionistas viviam-se como novos credos religiosos, integradores e totalizantes. António Sérgio viveu numa época em que se confrontaram o nacionalismo liberal e o nacionalismo tradicionalista e conservador. Este último, durante o Estado Novo, ganharia um cariz exclusivista. No confronto, para além da dimensão política, tiveram função relevante as argumentações históricas. Crítico do Integralismo Lusitano mas também do republicanismo no poder, o ensaísta construiu uma teoria europeísta e universalista do percurso histórico nacional que, em larga medida, justifica a sua posição em relação à I República e, depois, aos regimes de ditadura. A crítica daqueles nacionalismos não o levou, como de resto sucedeu com Jaime Cortesão e Raul Proença, a enjeitar in limine todo o conceito de nacionalismo e de patriotismo. Como se posicionou António Sérgio face aos nacionalismos? Que conceitos adoptou de nação, nacionalismo e patriotismo2? No tempo do ensaísta e dos seus companheiros da Seara Nova, nação e nacionalismos eram grandes referentes identitários colectivos que, desde as revoluções liberais, estruturavam o imaginário das sociedades europeias. Tendo em conta a proliferação da bibliografia sobre estas temáticas, importa à partida estabelecer uma precisão conceptual. Entendemos o nacionalismo não QUEIRÓS, Eça de. Positivismo e idealismo. In: ______. Notas Contemporâneas [Texto de 1893]. Lisboa: Livros do Brasil, s.d., pp.185-196. 2 Não pretendo aqui revisitar as polémicas que manteve com outros intelectuais e políticos portugueses – de resto já bem estudadas. Veja-se, entre outros, MACEDO, Jorge Borges de. Significado e evolução das polémicas de António Sérgio. Revista de História das Ideias, n.º 5, t. II, Coimbra, 1983, pp. 471-531; FERREIRA, Olga da Cunha. António Sérgio e os Integralistas. Idem, pp. 427-469; e FRANCO, António Cândido. António Sérgio e Teixeira de Pascoaes ou o conflito cultural português. In: AA.VV. António Sérgio: pensamento e acção, vol. I, Lisboa: INCM, 2004, pp. 139-161. 1

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apenas como ideologia que visa a autonomia e afirmação de uma nação, mas como movimento político e social que envolve uma doutrina sobre o Estado e até uma antropologia (E.Kedourie, K.Minogue, A.Smith)3. Creio ser vantajoso estabelecer a distinção teórica entre nacionalismo e patriotismo, entendido este último como amor à pátria, lealdade em relação às suas instituições, empenho na sua defesa (E.Kedourie). Seguindo estes conceitos, estamos a falar de tendências modernas, que se afirmam com as revoluções liberais, embora com raízes muito anteriores. Ficamos assim mais habilitados a compreender as posições de António Sérgio e dos seareiros a este respeito.

É necessária a nacionalização cultural dos portugueses? No primeiro número da Seara Nova (Outubro de 1921), já no contexto do pós-guerra, pela pena de Raul Proença, a nova revista revelava-se muito crítica em relação aos nacionalismos, invocando a necessidade de uma “consciência internacional” (lembre-se que a Sociedade das Nações, a primeira instituição supranacional fora criada em 1919). E declarava abertamente o combate a “todas formas de nacionalismo, essas doutrinas antihumanas que pretendem erguer em volta de cada país um círculo espesso de muralhas da China”4. Manifestava-se também contra as revoluções políticas e militares. A memória da Grande Guerra ainda sangrava – lembre-se que Raul Proença nela tinha combatido como voluntário e que Jaime Cortesão tinha aí servido como médico, deixando esse livro notável que constitui as memórias em que relata a sua experiência no conflito5. Numa atitude moderna, a Seara Nova reagia também contra a mentalidade historicista e retrospectiva então dominante: “O GRUPO SEARA NOVA não se limita a prosternar-se perante as glórias passadas da Pátria: quer criar para a Pátria uma nova glória; (…) não olha o Passado, marcha resolutamente para o futuro” (n.º 1, 15-10-1921). A divergência com os cultores do tradicionalismo integralista logo se tornavam evidentes. Contra uma atitude de fechamento na tradição e de sobrevalorização do nacional, os seareiros afirmavam uma posição ecuménica, de fraternidade entre as nações – um internacionalismo6 KEDOURIE, Elie. Nacionalismo. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1988; MINOGUE, Kenneth R. Nationalism. Londres: B.T.Batsford, 1967 e SMITH, Anthony D. Theories of nationalism. 2.ª ed., Londres: Duckworth, 1983. 4 PROENÇA, Raul. Apresentação da Seara Nova (n.º 1, 15-10-1921). In: ______. Páginas de Política, vol. II. Lisboa: Seara Nova, 1972, p. 77. 5 CORTESÃO, Jaime. Memórias da Grande Guerra. Lisboa: Livros Horizonte, s.d. 6 REIS, António. Raul Proença, António Sérgio e a Seara Nova. In: AA.VV. Seara Nova. Razão, Democracia, Europa. Porto: Campo das Letras, 2001, p. 236. Sobre o universalismo e o nacionalismo no pensamento dos seareiros, veja-se também AMARO, António 3

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que não pode todavia ser confundido com o internacionalismo comunista, assente na ideia de classe. Como se define o conceito de nação dos seareiros? Quer Raul Proença quer Jaime Cortesão – figuras de proa da doutrinação seareira nos seus primeiros anos –, admitem um conceito essencialista de “pátrias eternas”. Acima destas é que deveria construir-se a consciência internacional. Proença e Cortesão eram republicanos, democratas herdeiros da filosofia iluminista do progresso. Mas, como é bem sabido, não se coibiam de adoptar um ponto de vista crítico sobre a experiência política da I República. Uma das clivagens mais marcadas na sua crítica ao sistema partidário vigente estabelece-se em torno da oposição nação/facção, o que, deve dizer-se, já se verificara no confronto muito anterior entre a primeira geração liberal (caso de Almeida Garrett) e os legitimistas (absolutistas), no prolongado debate sobre a legitimidade de D. Pedro ou de D. Miguel (1828-33). Para os seareiros, perfilhar um ponto de vista nacional e não de facção, não partidário (não dependente de interesses particulares de grupo), tornar-se-ia uma das suas imagens de marca. Daí a invocação do conceito de “vontade geral da nação”, expressa pelo parlamento, mas esclarecida pela competência dos melhores7. Embora, como se sabe, Proença e Sérgio fossem críticos do conceito de vontade geral teorizado por Rousseau. Há muito os tópicos pátria, nação, patriotismo e nacionalismo marcavam a cultura política nacional e a própria afirmação dos intelectuais no espaço público8. Oliveira Martins e depois Eça de Queirós (este na célebre polémica com Pinheiro Chagas, em 1880) tinham mostrado bem que, na sua retórica, os intelectuais e políticos do Portugal da Regeneração recorriam frequentemente a estes termos, visando a sua promoção pública. Mas mais do que isso, tratava-se de temas centrais na formação das elites Rafael. A Seara Nova nos anos vinte e trinta. Viseu: Universidade Católica Portuguesa/ Instituto Universitário de Desenvolvimento e Promoção Social, 1995, pp. 70-82. 7 PROENÇA, Raul. Seara Nova. Seara Nova, n.º 22, Abril de 1923, também reproduzido em PROENÇA, Raul. Páginas de Política, vol. II. Lisboa: Seara Nova, 1939, pp. 255-260. 8 Vd. Fernando Catroga. Ensaio respublicano. Lisboa: Fundação Francisco M. dos Santos, 2011, pp. 9-35 e A geografia dos afectos pátrios. As reformas político-administrativas (sécs. XIX-XX). Coimbra: Almedina, 2013 (especialmente a parte IV), e os meus estudos “Nación”. In: Diccionario político y social del mundo iberoamericano (dir. de Javier Fernández Sebastián). Madrid: Fundación Carolina-Sociedade Estatal de Commemoraciones Culturales e Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2009, pp. 953-966, e “A linguagem do patriotismo em Portugal: unidade e conflito, da crise do Antigo Regime à I República”. In: Linguagens e fronteiras do poder (José Murilo de Carvalho et al. ed.). Rio de Janeiro: FGV Editora, 2011, pp. 36-54.

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(nomeadamente através da escola) e na disputa do poder cultural9, de especial acuidade nessa época. Ora, António Sérgio foi porventura a figura da Seara Nova que mais longe foi na teorização crítica em relação ao nacionalismo e ao patriotismo dominantes. Que concepção adoptou a este respeito? Destaque-se, à partida, um momento marcante na sua teorização (embora, cronologicamente, não o primeiro): refiro-me à sua distanciação crítica em relação ao diagnóstico de desnacionalização que Teixeira de Pascoaes e Jaime Cortesão aplicavam à sociedade portuguesa, nos primórdios da I República. No âmbito da sua campanha saudosista, levada a cabo no contexto da Renascença Portuguesa, Pascoaes via na acção da Companhia de Jesus e nas influências culturais estrangeiras factores de desnacionalização e decadência da sociedade portuguesa. Importava, a seu ver, contrariá-las no campo do ensino, cultivando a alma nacional e uma educação lusitana. Por essa época, Jaime Cortesão estava muito próximo desta posição, preocupado que estava em renovar a consciência nacional com recurso ao ensino da história. Compreende-se assim que, no seu curso de História Pátria na Universidade Popular do Porto (iniciativa da Renascença Portuguesa), Cortesão introduzisse um tópico sobre “Desnacionalização actual”, logo seguido de um outro, “Necessidade de nacionalização. Importância dos estudos históricos para esse fim”10. Ora, António Sérgio estava longe deste tipo de intenções. Reconhecia a relevância da disciplina de História nos cursos secundários, não como instrumento político mas como meio de cultivar o espírito crítico. Compreende-se que se opusesse à ideia de uma educação lusitana: procurava, em alternativa, uma escola voltada para o trabalho e para o self-government, sugestão que colhera no contacto com a pedagogia anglo-saxónica e suiça. E que estivesse longe de considerar o povo português num estado de desnacionalização. Antes, pelo contrário, este talvez estivesse menos desnacionalizado do que os outros, pois a seu ver tinha estacado no progresso11. Donde, se não estava mais desnacionalizado do que outros povos, não fazia sentido acentuar o seu processo de nacionalização. Vd. CATROGA, Fernando. As vanguardas culturais, da Geração de 70 à Seara Nova. In: AA.VV. Seara Nova. Razão, Democracia…, pp. 41-60. 10 A este respeito, o meu estudo A Renascença Portuguesa – consciência histórica e intervenção cívica (1911-1914), comunicação apresentada no Congresso Pensamento, Memória e Criação no I Centenário da Renascença Portuguesa (no prelo). 11 SÉRGIO, António. Golpes de malho em ferro frio. A Vida Portuguesa, n.º 16, 2-08-1913, p. 124. Note-se contudo que o conceito de nacionalização de Cortesão não excluia uma expressão cosmopolita e ecuménica. 9

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A centralidade da problemática pedagógica é bem evidente nos primeiros anos da República entre a elite política e intelectual. António Sérgio não perde de vista a intenção de construção de uma consciência de res publica nos estudantes através da educação cívica e uma escola nova, voltada para as actividades produtivas e para a autonomia dos educandos12. Mas a educação tem no seu pensamento uma marca filosófica que o distingue claramente dos pedagogos republicanos (caso de João de Barros), sem a qual seria impossível compreendê-la num sentido profundo. A sua pedagogia é indissociável da filosofia racionalista que desde cedo perfilha: educar significa, para o ensaísta, “favorecer o crescimento da capacidade de racionalização, de espiritualização, de universalização, de superação dos limites vários que confinam o indivíduo numa pátria ou grupo, numa localidade ou época”13. Torna-se assim evidente que para o autor dos Ensaios a ideia ideal de formação do ser humano se situava nos antípodas dos particularismos nacionais e dos nacionalismos. Há, a este respeito, uma distinção relevante que estabelece entre o antigo patriotismo, que anulava a liberdade individual e aspirava à “expansão política da comunidade”, com o patriotismo moderno. Distinção que se afigura do maior interesse, pois para o ensaísta há um patriotismo que não se limita ao espaço da pátria mas aspira ao universal (caso do de Camões n’Os Lusíadas). Explica ele, interpretando Camões: “Há um aspecto moderno neste amor da pátria, pelo qual se avantaja ao de um figurino de hoje: e é que o patriotismo, aqui, não se apresenta como nacionalista, não fica na pátria como ideal humano, não pára nela; o seu objecto é o universal; e o seu fim, a sociedade católica, quer dizer: a da doutrina verdadeira (para Camões) onde só é possível a salvação das almas. Como concretização do universal é que ele ajuíza do valor da pátria. Um patriotismo, em suma, que é um meio de catolicidade; uma pátria que se torna digna na própria medida em que se faz divina, universal, unificadora, chamando todos – povos e homens – ao mesmo culto do Pai celeste”.

E mais adiante: “Como o moderno, pelejava o patriota da Antiguidade por certos interesses fundamentais: dominava-o, porém, um patriotismo nacionalista, passional e instintivo, o deus da grei, a voz da ‘raça’; para o cidadão SÉRGIO, António. Educação cívica. Pref. de Vitorino Magalhães Godinho. 3.ª ed., Lisboa: Ministério da Educação, 1984. 13 SÉRGIO, António. Educação e filosofia. Ensaios, t. I. 3.ª ed., Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1980, p. 160. Sublinhado meu. 12

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moderno a voz suprema é a da liberdade e da justiça, e a defesa da sua pátria tende a confundir-se com a da pessoa moral, com a independência do seu espírito”14.

A este conceito moderno de pátria associa-se um conceito racional de nação cívica, baseada no ideal de um “pacto cívico”, de livre adesão, de auxílio mútuo. Uma pátria ideal acima das pátrias contingentes. Acima das diferenças étnicas, linguísticas, sociais e culturais, António Sérgio situava a humanidade como comunidade da razão. É aqui ainda evidente o distinguo que Sérgio estabelece entre, digamos, um patriotismo ideal (o moderno) e um patriotismo nacionalista (que se prende ainda com o antigo). Actualmente, em ciência política e em história, esta dissociação não fará sentido: há diferentes ideais de patriotismo como há diferentes nacionalismos (liberal, conservador, fascista, comunista, cívico, étnico, etc.). Mas à época, e tendo em conta a filosofia racionalista e neo-iluminista do autor, ela é bem compreensível (a esta luz, compreende-se bem que não tivesse concordado com as sugestões dos seus antigos companheiros da Renascença Portuguesa que iam no sentido de nacionalização dos portugueses). Vivia-se então o tempo dos grandes confrontos imperialistas e nacionais que atingiu um dos seus zénites na I Guerra Munidal. Não supreende pois que no prefácio dos Ensaios I (1920) dedicasse especial atenção crítica ao tópico do nacionalismo. Aí, o autor definia-se sobretudo por oposição a um nacionalismo tradicionalista e conservador, voltado para o passado e, a seu ver, em larga medida de importação francesa (Charles Maurras, Maurice Barrès). Mostrava-se implacável em relação aos poetas portugueses dos finais do século XIX – Junqueiro, António Nobre e Alberto de Oliveira – e ao seu “romantismo nacionalista” (no caso dos dois últimos neo-garretista), que idealizava a raça lusitana. Em nome de uma atitude clássica e universalista que visava a harmonização de sentimento e razão (Fúria e Ordem), submetia o nacionalismo “estético” da chamada Geração de 90 a uma crítica cerrada, procurando estabelecer um estreito nexo entre essa estética nacionalista, que, a seu ver, vivia de instintos e paixões, e o tradicionalismo em política. Mas, por outro lado, António Sérgio demarcavase em termos críticos da tendência que designava de “Insurreccionismo de 71” (a chamada Geração de 70), que em larga medida responsabilizava pela voga de diversos mitos na opinião pública, entre eles os de raça e sebastianismo – referia-se sobretudo a Teófilo Braga e Oliveira Martins, Idem. A educação cívica, a liberdade e o patriotismo antigos e modernos [texto publicado originalmente em 1917]. Ensaios, t. I, pp. 221 e 223.

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mas também a João de Deus. Reconhecendo o brilhantismo de alguns autores desta geração, que, de resto, muito o marcaram (caso de Oliveira Martins), distanciava-se contudo do carácter abstracto da sua doutrinação desordenada e não construtiva. António Sérgio procurava um caminho alternativo à prática política do republicanismo que chegara ao poder em 1910 e ao tradicionalismo que a ele se opunha. Célebre ficou a sua auto-definição: “Democrata, mas antijacobino; anticlericalista, mas respeitador do Catolicismo; partidário da instrução democrática, mas inimigo (…) da superstição do abc”15.

E explicava que a sua distanciação em relação àquelas duas correntes assentava em três tendências suas: o método racionalista, a subalternização da questão formal do regime (monarquia ou república) e a crítica ao conceito de patriotismo então dominante16. Note-se, no que respeita aos dois últimos pontos, o quanto era devedor de Oliveira Martins e de Herculano.

O legítimo nacionalismo Durante a I República, o ensaísta situava-se assim numa posição crítica intermédia entre republicanismo e tradicionalismo (monárquico ou republicano). Significa isto que rejeitasse todo e qualquer nacionalismo? De modo algum. No seu entender tinha todo o cabimento o que qualificava de “legítimo nacionalismo”, que identificava com uma atitude universalista e cosmopolita: “O nacionalismo bem entendido é o estudo e elaboração das realidades nacionais feitos sob os métodos e finalidade de um espírito universal”17.

Ora, a seu ver, aqui haviam falhado os intelectuais da Geração de 70 ao adoptarem uma cultura de importação. E, no entanto, o legítimo nacionalismo de António Sérgio alguma coisa tinha de comum com o “patriotismo dos patriotas” que Eça de Queirós esgrimira contra Pinheiro Chagas. Estava voltado para a nação do presente e não para o passado, para o pensamento mobilizador da acção e não para a retórica passadista. O “legítimo” nacionalismo prendia-se pois com uma atitude reflexiva e racional. Significa isto que deixasse então de assumir um carácter doutrinário para adoptar um discurso analítico, reflexivo, próprio do discurso Idem. Prefácio. In: ______. Ensaios, t. I, p. 60. Ibidem, pp. 60-61. 17 Ibidem, p. 64. 15

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científico? A resposta é evidentemente não. Na revista Pela Grei, que António Sérgio dirigira em 1918-19 durante o regime de Sidónio Pais (em relação ao qual manteve algumas expectativas), a sua intervenção centrara-se muito no objectivo de um ressurgimento nacional e de regeneração da Pátria por via de uma acção supra-partidária e independente, voltada para a formação das elites e da opinião pública. Esse era o espírito da Liga de Acção Nacional, presidida por Pedro José da Cunha (Reitor da Universidade de Lisboa), fundada à data da publicação do primeiro número de Pela Grei, órgão desse efémero grupo de pressão de que António Sérgio era secretário-geral. Propósitos de resto coincidentes com os de Raul Proença, na Renascença Portuguesa, em 191118. O ponto de vista de António Sérgio era o nacional, contra facções e interesses particulares, tal como viria a ser o da Seara Nova, que integraria só em 1923 por se encontrar a viver no Brasil. No quadro deste ideário, compreende-se a sua rejeição do conceito de luta de classes, então muito em voga, e a distinção que estabelece entre uma “Pátria ideal”, de carácter universalista, e as pátrias contingentes19. António Sérgio idealizava todo um percurso histórico para a nação portuguesa: o que deveria ter sido e não o que foi. O que deveria ser, em sintonia com o seu humanismo racionalista, o modo de ser do português e a vocação histórica de Portugal no mundo. Importa por isso lembrar que António Sérgio viu na história uma finalidade pragmática e de pedagogia cívica. É sabido que não se considerava historiador. E que ao invés de um historicismo nacionalista que sempre combateu, adoptava uma posição presentista: parte-se sempre de problemas do presente, o presente é que empresta significado ao passado. Uma história prospectiva20, sem dúvida, mas também – e por isso mesmo – uma história que não existe “em si”, é uma construção que resulta de um processo categorial e universalista21. Um olhar sobre o passado comandado pelos problemas que o ensaísta via no presente. Daí na sua insistência na crítica sistemática às intromissões do nacionalismo retrospectivo na história, o seu combate contra os “espectros” (termo que herdou de Antero de Quental), contra a “tirania do passado”22. Para António Sérgio, PROENÇA, Raul. Ao povo “A Renascença Portuguesa”. A Vida Portuguesa, n.º 22, 10-2-1914, pp. 11-12 [o texto é de 1911]. 19 SÉRGIO, António, Ensaios, t. I, p. 224. 20 SERRÃO, Joel. O lugar da história no pensamento de António Sérgio. Homenagem a António Sérgio. Lisboa: Academia das Ciências, 1975, p. 47. 21 CUNHA, Norberto Ferreira da. História e método em António Sérgio. In: AA.VV. António Sérgio: pensamento e acção, vol. I, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2004, p. 61. 22 SÉRGIO, António. Espectros. In: ______, Ensaios, t. I, p. 184. 18

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os nacionalismos dominantes constituíam limitações intelectuais, estavam do lado do instinto por oposição à necessidade de uma compreensão racional dos problemas históricos. Já Alexandre Herculano e Oliveira Martins tinham chamado a atenção para a necessidade de separar as águas entre historiografia e patriotismo: havia que evitar a contaminação do trabalho dos historiadores pelo sentimento patriótico. Os heróis do passado não se repetiam no presente, lembrava Martins. Contra o que sugerira Auguste Comte, os mortos não deviam comandar os vivos. Na sua oposição ao nacionalismo historicista, António Sérgio chega a uma afirmação radical de que “não há histórias nacionais no rigor do termo”23. Isto porque a compreensão da parte é indissociável do todo – da Europa, do mundo. Neste sentido, a seu ver, só existia uma história da civilização dominada pelo ponto de vista universalista. Pode pois perguntar-se se, neste seu combate crítico e actualista contra os mitos nacionalistas em história, não caiu o ensaísta noutros pré-conceitos, por exemplo, na sua teoria segundo a qual a formação de Portugal na Idade Média teria sido uma “obra de estrangeirismo”24, produto da presença de outros povos no seu território (cruzados, mercadores italianos e flamengos, colonos do Norte da Europa, judeus, árabes, etc.), ou de aspirações de uma alegada burguesia comercial europeia; a adopção do discutível conceito de “estrangeirados”25, ou a tentadora ideia do pendor dos portugueses para o transnacionalismo e a aculturação26, apropriada não apenas de autores portugueses como Oliveira Martins e Teófilo Braga mas de Gilberto Freyre, ou a própria noção do carácter universalista da nação e do seu cosmopolitismo. Mas este pendor cosmopolita dos portugueses ter-se-ia distanciado do espírito europeu no século XVII, e estes não puderam realizar o seu tipo ideal: a seu ver “só é profundamente português o que for como tal um cidadão do mundo”27.

Cit. por SERRÃO, Joel, O lugar da história no pensamento de António Sérgio, pp. 47-48. Cf. também, a este respeito, de António Sérgio, as relevantes Divagações proemiais ao jovem leitor sobre a atitude mental que presidirá a este ensaio. In: SÉRGIO, António. Introdução geográfico-sociológica à História de Portugal. Lisboa: Sá da Costa, 1973 (1941), p. 13. 24 Vd. o meu estudo “António Sérgio europeísta?” In: MATOS, Sérgio Campos (coord.). A Construção da Europa, problemas e perspectivas. Lisboa: Colibri, 1996, pp. 143-162. 25 MACEDO, Jorge Borges de. Estrangeirados, um conceito a rever. Sep. de Bracara Augusta, Braga, 1973. 26 SÉRGIO, António. Para a definição da aspiração comum dos povos luso-descendentes. In: ______. Ensaios, t. VI. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1980 (1.ª ed., 1946), pp. 172-173. 27 Idem. Breve interpretação da História de Portugal. Lisboa: Sá da Costa, 1974 (1.ª ed., 1928), p. 146. 23

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Ora, é sintomático que António Sérgio identificasse como característica do filósofo a “busca da universalidade”, pois só no plano universal se encontraria o Bem28. O seu próprio percurso biográfico, levara-o de uma infância em Damão, então Índia portuguesa, a múltiplas vivências em África, Portugal, Inglaterra, Brasil, Suiça, França e Espanha (nestes dois últimos países em que esteve exilado de 1926 a 1933). Vivências em quatro continentes que decerto lhe proporcionaram uma considerável abertura de horizontes intelectuais, também patentes num percurso que o levou das ciências experimentais e da matemática na Escola Politécnica, às Humanidades, que sempre cultivou. Cidadão do mundo, sem dúvida, pelas suas vivências, mas sobretudo pela sua atitude. Seria tentador aproximar o seu humanismo crítico e universalista da ideia ideal que construiu da história nacional – também ela impregnada de universalismo até ao desvio histórico do século XVI29 e depois disso no pensamento de figuras destacadas das suas elites. Ora, sabe-se – e os estudos históricos ao longo do século XX comprovaram-no largamente – que, a par da mercantilização da sociedade portuguesa, localizada em torno de alguns centros urbanos, grande parte do território nacional e da sua população permaneceram até muito tarde mergulhados numa economia tradicional de Antigo Regime. É certo que António Sérgio não empregava a expressão “carácter nacional” – o que se compreende se tivermos em conta o seu pioneiro combate ao determinismo étnico e à psicologia da raça em voga ainda no seu tempo, especialmente ao celtismo de Teófilo Braga e de Oliveira Martins. Mas acabava por aproximar-se de uma teoria essencialista sobre a nação, não obstante exprimisse dúvidas a esse respeito já nos anos 50: “Duvido da realidade de uma maneira de ser portuguesa, unitária, indiscutível; há sim portugueses, diferentes entre si, sendo que a mente de cada cidadão português me não parece ser uma coisa rígida (…) mas sim uma actividade em evolução contínua, que se modifica com a sua experiência, com o novo saber que ganhou”30.

António Sérgio responde ao nosso inquérito. Vértice, vol. II, fasc. VII, Maio de 1946, p. 161. 29 SÉRGIO, António. O Reino Cadaveroso ou o problema da cultura em Portugal. In: ______. Ensaios, t. II. 2.ª ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1977 (1926), em que retomava, corrigindo-a, a sua crítica ao isolamento histórico e “purificação”, que se teriam seguido aos descobrimentos e conquistas ultramarinas. 30 Idem. Sobre cultura portuguesa. In: ______. Ensaios, t. VII. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1974 (1.ª ed., 1954), p. 112. 28

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Seja como for, evidente é que, para o ensaísta, o melhor do percurso histórico nacional tinha-se cumprido na relação com os outros povos, nessa alegada vocação universalista. Note-se que, ao invés dos republicanos, não falava de missão civilizadora nem, tão pouco, como os nacionalistas conservadores, de missão evangélica dos portugueses. Também não perfilhava qualquer ideia de federação europeia, federação dos povos latinos ou dos povos ibéricos – propostas que tanto circularam desde os finais do século XIX entre os republicanos federais (caso de Sebastião de Magalhães Lima). Tudo isto, na verdade, o distancia dos nacionalismos dominantes: o liberal-republicano e o conservador.

Um atributo universal do Homem Mas a posição de António Sérgio face aos nacionalismos não se reduz ao plano crítico da intervenção cívica e política bem como à sua apologia de um nacionalismo ecuménico ou de um patriotismo ideal. Noutros textos da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, identificados por Jacinto Baptista31 como sendo de sua autoria, encontramos uma perspectiva histórica do nacionalismo que torna mais clara a sua posição e, noutro plano, o ponto de vista da sua filosofia racionalista. Ao invés do que poderia supor-se, nessa extensa colaboração na Grande Enciclopédia, o autor exprime o seu pensamento filosófico e até opiniões pessoais. Aí, o ensaísta estabelece uma distinção entre um conceito político de nação, relacionado com a construção do Estado-nação nos seus primórdios (1815-1880), e um conceito étnico e cultural que pode não se identificar com um estado (embora possa aspirar a isso). E prolongando esta tipologia ainda hoje frequentemente adoptada e discutida, António Sérgio identifica dois nacionalismos bem distintos: o nacionalismo liberal, político e cultural, dominante na Europa e na América no período que vai de 1815 a cerca de 1880, inspirando muitos processos políticos e sociais nessa época, e o nacionalismo tradicionalista que se afirma a partir dos finais do século XIX, distanciando-se dos princípios liberais, “cada vez mais reaccionário, imperialista e intolerante” (e dava como exemplo deste último a doutrina da Action Française, em que a seu ver convergiam três componentes: o positivismo comtiano, o tradicionalismo de De Bonald e a teoria do élan vital bergsoniana)32. Não menos interessantes se afiguram as considerações que desenvolve na entrada “Patriotismo” da referida Enciclopédia. Assente numa 31

BAPTISTA, Jacinto. António Sérgio enciclopedista. Lisboa: Colibri, 1997. [SÉRGIO, António]. Nacionalismo. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. XVIII, Lisboa/Rio de Janeiro: Ed. Enciclopédia, s.d., pp. 336-337.

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diversificada bibliografia, compreende a pluralidade de elementos que o fenómeno assumiu na cultura política e histórica ocidental: do amor à terra, às tradições de ascendência comum, passando pela glorificação dos heróis, “a ideia de uma missão cultural do próprio país em relação a todos os outros” e a “dedicação a uma comunidade política” (este último seria, a seu ver, o uso mais geral do termo). Este patriotismo político só teria ressurgido nos primórdios da estruturação do Estado-nação e só posteriormente ter-se-ia associado ao nacionalismo (interpretação que não se afigura em consonância com a distinção que estabelecera entre nacionalismo liberal e nacionalismo conservador, na entrada “Nacionalismo” atrás referida e decerto anterior). Para além desta discrepância, refiram-se dois outros aspectos que se afiguravam comuns nos estudos sobre esta temática no período da guerra (caso de Carlton Hayes e Hans Kohn): 1) o patriotismo como força de coesão e, por outro lado, como força de divisão da humanidade; 2) a identificação de uma forte componente de patriotismo e de nacionalismo na doutrinação comunista, não obstante fosse teoricamente oposta ao nacionalismo na sua apologia do internacionalismo proletário. Procurando compreender os nacionalismos do ponto de vista das ciências humanas e assente numa considerável bibliografia, neste texto posterior à II Guerra Mundial33, o ensaísta deixava contudo trair os seus ideais: por um lado, distanciando-se dos juízos de valor radicais a favor ou contra o patriotismo, admitia que este “é um atributo universal do Homem em sociedade” (e grafava homem em maiúscula; sublinhado meu); por outro, dando conta que “as escolas idealistas inglesas sustentavam (…) que um genuíno patriotismo pode ser compatível com um rígido respeito das obrigações internacionais e com uma política que subordine os interesses nacionais imediatos a interesses nacionais de maior alcance, favorecidos por uma cooperação internacional para a manutenção da paz. De facto, a atitude militarista é tão pouco essencial ao patriotismo que o maior dos pacifistas pode ser um bom patriota, sustentando que a guerra traz irremediáveis males – morais, culturais, intelectuais, económicos – ao seu país”34.

Um patriotismo prospectivo Voltamos, pois, ao ponto de partida. Para António Sérgio, nacionalismo e patriotismo só seriam “legítimos” ou “genuínos” – e estes atributos são 33

Na bibliografia, constam os Ensaios VI do autor, cuja 1.ª edição surgiu em 1946. [SÉRGIO, António]. Patriotismo. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. XX, p. 634.

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bem significativos da sua exigência ética normativa – se se situassem num ponto de vista da relação harmónica entre o nacional e o universal, entre a parte – a nação – e o todo – a Humanidade. Tal como procedeu em relação a outros princípios que considerava imanentes à consciência humana e eternos, como Justiça, Democracia ou o Bem, o ensaísta erigia os conceitos de nacionalismo e de patriotismo em categorias universais, fora do tempo e da história. Em contraste, evidentemente, com os nacionalismos e os patriotismos contingentes, não controlados por um Dever Ser moral e pelas exigências éticas do seu racionalismo idealista: os nacionalismos jacobino, o tradicionalista, o fascista ou o nacionalismo soviético. Sublinhe-se que o racionalismo que legitimava esta posição crítica não era apenas de método, não envolvia apenas uma epistemologia, mas também uma ética, um “ideal de harmonia íntima”, expressão imanente do Bem platónico35. Contra todas as formas estreitas destes movimentos que, nesse tempo atribulado, tinham levado aos dois devastadores conflitos mundiais de 1914-18 e 1939-45, o ensaísta subordinava nacionalismo e patriotismo aos imperativos de um Dever Ser racional, uma razão teórica e prática universal. Contra as atitudes de radical enraizamento e apego a tradições míticas nacionais (caso do tão difundido pressuposto de uma unidade étnica nas origens de Portugal, que vai de Teófilo Braga a António Sardinha e aos seus herdeiros), apregoava a necessidade de abertura e estreitamento de relações com outras nações. Contra o nacionalismo historicista dominante na cultura portuguesa até meados do século XX, sustentava um patriotismo aberto à cidadania do mundo, um patriotismo prospectivo comandado pela atitude universalista que era, afinal, coincidente com a dos seareiros – em especial a do seu amigo Raul Proença. Na verdade, a par da crítica a um nacionalismo estreito, o autor das Páginas de Política fazia convergir patriotismo e cosmopolitismo, afirmando já em 1910: “Amamos tanto mais a nossa pátria quanto mais nela pomos de universal”36. Proença era muito crítico em relação ao patriotismo “retrospectivo e sensibilista” que vivia tão só do culto das glórias passadas e da tradição – exemplo disso eram as comemorações do 1.º de Dezembro de 1640, incentivadas pela I República, e que, a seu ver, eram totalmente estéreis37. PEREIRA, Miguel Baptista. O neo-iluminismo filosófico de António Sérgio. Revista de História das Ideias, Coimbra, vol. 5, t. I, 1983, p. 65. 36 Cit. por AMARO, António Rafael, A Seara Nova nos anos vinte e trinta, p. 80. 37 Na sua crítica frontal ao comemorativismo nacionalista dominante, muito próxima aliás da que Oliveira Martins tecera em 1880 ao centenário de Camões e à Comissão 1.º de Dezembro, Proença chega ao ponto de considerar que Portugal não precisava de mais comemorações. Cf. PROENÇA, Raul. A semana portuguesa e o nacionalismo 35

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Embora não fundamentado nos mesmos termos e com os mesmos argumentos, também António Sérgio era adepto de um patriotismo prospectivo. Neste sentido se pode dizer que, sendo um clássico alheio a modas do seu tempo, na sua atitude de radical ruptura com o passado (e várias vezes disse que era um homem sem passado), António Sérgio esteve do lado da modernidade. Mas a par dos princípios a priori do seu racionalismo, essa atitude de ruptura transportada para o domínio da história levou-o a adoptar conceitos abstractos, que remetem mais para as exigências da razão teórica do que para os problemas concretos dos homens do passado. Em nome de um futuro ideal de harmonia e de paz entre as nações, o passado só interessava na medida em que se pudesse inscrever nesse ideal de futuro. E todavia – como é complexo o pensamento sergiano – por diversas vezes o ensaísta notou a imprevisibilidade do futuro, distanciando-se também aqui dos historicismos que dominaram o seu tempo.

antipatriótico. In: ______. Páginas de Política, vol. 2. Lisboa: Seara Nova, 1972 (texto publicado originalmente na Seara Nova, n.º 1, 15-10-1921). Cf. também a sua crítica à Cruzada Nun’Álvares, em O manifesto da Cruzada Nun’Álvares. In: PROENÇA, Raul, Páginas de Política, vol. 2, p. 139 (texto de Dezembro de 1921).

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A doutrinação económica em António Sérgio − algumas notas de leitura ANTÓNIO ALMODOVAR Universidade do Porto

Introdução Um dos grandes temas em debate no período em que António Sérgio se iniciou na doutrinação económica dizia respeito à evolução do capitalismo. Esta discussão deu origem a diversas orientações, indo desde aquelas que defendiam de forma mais ou menos intransigente senão as virtudes pelo menos o carácter “natural” e inevitável desse sistema, até às propostas para a sua eventual substituição por um outro modelo de organização económica e social, passando por diversas tentativas de delinear reformas pontuais de alguns aspectos vistos como indesejáveis. De acordo com as designações convencionais, esse debate travava-se basicamente entre liberais e socialistas, sendo que cada um destes grandes grupos albergava vários tipos de sensibilidades − e de propostas concretas − no seu interior. Ora, é importante não o esquecer, os grandes protagonistas deste debate, quer do lado liberal quer do socialista, foram por via de regra oriundos dos países mais desenvolvidos à época. A sua atenção estava por isso mesmo fundamentalmente centrada na evolução da realidade económica e social dos seus próprios países e na análise dos fenómenos decorrentes do desenvolvimento e da modernidade. Quer os sucessos, quer os insucessos do capitalismo, eram identificados em países como a Inglaterra ou a França, e não através de exemplos retirados de países digamos que menos representativos. Podemos por isso dizer que a reflexão económica e o debate doutrinal se desenvolviam em dois planos que, apesar de interligados, eram ainda assim bastante diferentes. Num primeiro plano, tínhamos as análises construídas sobre a evidência fornecida pelos países mais desenvolvidos. Noutro, tínhamos as análises elaboradas pelos pensadores dos países menos desenvolvidos, a quem coube a difícil tarefa de procurar acompanhar a evolução do primeiro debate, e de fazer um esforço adicional no sentido de dele ir retirando as ilações mais apropriadas para as suas próprias realidades nacionais − realidades essas que eram

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comparativamente diferentes, e que em certos casos mereciam inclusivamente ser classificadas como “atrasadas”. É este o pano de fundo em que pretendemos posicionar a obra de doutrinação económica feita por António Sérgio, perspectivando-a como uma obra de intermediação cultural entre as doutrinas económicas oriundas dos países mais desenvolvidos e a realidade de uma economia nacional atrasada. Esta abordagem, que enquadra o trabalho deste autor numa tradição de que ele próprio deu conta, ainda que de forma parcelar, tem quanto a nós a vantagem de permitir uma percepção mais clara dos elementos de continuidade e dos aspectos mais originais da doutrinação económica que foi levada a cabo por António Sérgio.

A intermediação doutrinária em Portugal Não há lugar a qualquer dúvida sobre o facto de que António Sérgio considerava Portugal como um dos países atrasados, e também é indiscutível o facto de que considerava ser seu dever servir como intermediário entre o debate de ideias prosseguido nos países mais desenvolvidos e a nossa realidade nacional, por forma a criar as condições para promover o desenvolvimento do país. A sua atitude era assumidamente pedagógica, e estava baseada na convicção de que o trabalho de difusão de bons exemplos era uma actividade imprescindível para a desejável alteração de práticas e mentalidades. A este nível genérico não há, portanto, na sua obra qualquer novidade digna de registo. Desde os inícios do século XIX que os economistas portugueses tinham começado a abandonar a ideia de decadência e a falar preferencialmente do nosso atraso, esforçando-se ao mesmo tempo por definir as linhas mestras de uma política capaz de nos aproximar dos níveis de desenvolvimento verificados noutros países. A intermediação por eles realizada consistia por via de regra na identificação de práticas e instituições bem sucedidas, e num trabalho subsequente e complementar de difusão das doutrinas económicas que eventualmente as tinham inspirado. É isso que encontramos, por exemplo, no agrarismo das Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, ou no industrialismo das obras de José Acúrsio das Neves e de António de Oliveira Marreca. Uns e outros estribavam as suas propostas em exemplos concretos, prosseguidos por grandes estadistas, referindo-se apenas de uma forma relativamente secundária ao aval científico que lhe era dado pela economia política. Para estes autores, uma parte do nosso atraso residia − ou pelo menos manifestava-se − na nossa própria ignorância científica. Compreende-se, por isso, que as tentativas de difusão de boas práticas se estribassem nos

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exemplos concretos, e que a argumentação puramente teórica não fosse por eles vista como uma estratégia verdadeiramente capaz de persuadir os governantes. E compreende-se também que todos eles fossem favoráveis a uma reforma dos estudos, por forma a que a economia política pudesse vir a ser ensinada e difundida entre nós. Isso acabou por se verificar em 1836, passando-se a ensinar economia política aos estudantes de Direito na Universidade de Coimbra. Com esta medida, deu-se naturalmente um passo importante no sentido da criação de melhores condições para que se pudessem analisar com maior atenção os aspectos teóricos e doutrinais. Passava agora a existir uma base institucional ao mais alto nível, a partir da qual se poderia proceder à selecção e difusão de conceitos e sistemas científicos, valorando os economistas estrangeiros mais pelos seus contributos analíticos do que pelo eventual sucesso das políticas económicas por eles defendidas. Com o estabelecimento do estudo da economia política ao nível académico, a intermediação doutrinal passou, portanto, a ser feita por duas vias distintas. A tradicional, protagonizada pelos publicistas, continuava a procurar e a destacar exemplos práticos de sucesso, fazendo a sua apologia junto de governantes e da opinião pública em geral. A outra, oriunda fundamentalmente da Universidade de Coimbra, trabalhava no sentido de desenvolver a cultura económica das elites nacionais, mantendo-as a par do que lá fora se ia produzindo. Para o fazer, os professores da Universidade de Coimbra levaram a cabo um trabalho notável, filtrando a literatura existente, e difundindo entre nós os contributos internacionais das principais escolas de pensamento económico. Os seus beneficiários mais directos eram os bacharéis de Direito, mas a sua influência atingia igualmente as escolas politécnicas e os liceus, onde o ensino da economia política veio a encontrar guarida um pouco mais tarde. Com o avançar do século XIX, estas duas linhas de intermediação foram de certa forma convergindo, seja pela maior familiaridade que a opinião pública adquiriu em relação às principais doutrinas económicas, seja devido à participação de alguns professores de economia no debate público sobre as grandes linhas de orientação de política económica. Gradualmente, o debate público e o académico mudavam de teor. No início do século, os debates centravam-se fundamentalmente sobre os modos mais apropriados para fazer progredir uma economia capitalista e assegurar o seu desenvolvimento económico e social. Nos finais do século XIX, a discussão tinha-se alargado, uma vez que para além das tradicionais oposições entre

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livre-cambismo e proteccionismo, ou entre agrarismo e industrialismo, já se debatia agora igualmente a eventual necessidade de optar por uma evolução para outros tipos de organização da vida económica. Discutiam-se as virtudes do associativismo e do mutualismo como contraponto necessário para uma concorrência desenfreada e socialmente insensível, e os ideais socialistas e cooperativistas começavam a fazer o seu caminho entre nós1.

As duas teses de António Sérgio Tendo em vista o que acima dissemos, parece muito adequado o retrato que António Sérgio de si próprio fez, descrevendo-se “como que irmão já tardio, miudito e desgarrado pelo fluir dos tempos” de uma ilustre família de socialistas portugueses “que se realçaram pelo anseio de uma mutação no económico, pelo brado de protesto contra a organização social, e também pelo desprezo, fundamentado e lúcido, para com a mera ideia de uma alteração política”2. Mas também é verdade que logo a seguir é acrescentado que, nessa família socialista, só Oliveira Martins se havia de facto “consagrado aos estudos propriamente económicos”, quedando-se os restantes dois (Antero de Quental e Eça de Queirós) por uma defesa convicta mas pouco especificada da necessidade de uma “alteração visceral da ordem económica”3. A existência de lugar em aberto − e a função a ser prioritariamente desempenhada nesse lugar – era, portanto, justificada pela necessidade de dotar a família socialista de uma visão fundamentada e lúcida sobre a mutação a realizar no económico. Para tal, havia pois que aprofundar os conhecimentos económicos, seja por forma a ter uma percepção correcta da ordem económica existente e da sua evolução, seja para construir em bases sólidas um programa de efectiva melhoria dessa mesma ordem. Ora, do ponto de vista das ideias económicas, julgo que há um acordo generalizado sobre o facto de que António Sérgio se notabilizou fundamentalmente pela defesa publica de duas teses. A primeira diz respeito à existência de duas grandes orientações de política económica que teriam ditado a sorte dos povos a partir do século XVII – uma dita de fixação e outra de transporte. Quando prosseguida a primeira, ter-se-ia assistido a um processo de desenvolvimento económico e social; quando se optou Veja-se COSTA, Fernando Ferreira da. Doutrinadores cooperativistas portugueses. Lisboa: Horizonte Universitário, 1978. 2 SÉRGIO, António. Ensaios, t. VIII. Lisboa: Guimarães Editores, 1958, p. 191 (itálico no original). 3 Ibidem, pp. 192 e 194. 1

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pela segunda, os países estagnaram e ter-se-ia instalado uma situação de atraso. Esta primeira tese é obviamente uma simplificação, um instrumento conceptual útil que permitiria a António Sérgio poder vir a chamar a atenção para um vasto conjunto de factores cuja presença explicava os processos de desenvolvimento bem sucedidos, e cuja ausência explicava as situações de atraso e de bloqueio económico, político e social. É, assim, uma tese relativa ao desenvolvimento histórico da ordem económica do capitalismo. A segunda tese diz respeito às virtudes do cooperativismo, sendo este apresentado não como uma prática destinada a minorar algumas das dificuldades económicas das classes operárias, mas antes como um modelo de organização económica e social susceptível de vir a substituir de forma gradual e vantajosa o modelo de organização capitalista. Uma vez que é atribuída essa dimensão ao cooperativismo, compreende-se que se trata de uma tese complementar da primeira, agora sobre a construção de um futuro visto como possível e desejável. É, portanto, a partir destas duas teses que António Sérgio estrutura a sua doutrinação económica, desenvolvendo-as em vários momentos da sua vasta obra, e utilizando-as de forma persistente para tentar corrigir e esclarecer a forma como se reflectia sobre a realidade portuguesa, particularmente no âmbito da sua família socialista.

A teoria do capitalismo e do socialismo Uma forma expedita de ilustrar a forma como esse trabalho foi feito consiste em continuar a acompanhar o longo prefácio que António Sérgio fez para a reedição do Portugal e o Socialismo e da Teoria do Socialismo, de Oliveira Martins. Neste texto, a tese relativa ao desenvolvimento histórico da ordem económica do capitalismo é explicada em dois passos. O primeiro passo consiste em chamar a atenção para o facto de que “nos cumpre não repelir a ideia de que o capitalismo é evolutivo por natureza própria; a de que ele é ‘uma série de revoluções no modo de produção’, pelos termos com que se exprime um manifesto célebre”4. Em segundo lugar, surge a preocupação de especificar claramente em que reside na realidade o elemento dinâmico e progressivo do capitalismo: “Sem dúvida, o mais eficaz acicate dessa evolução do regime não é propriamente o que possui capitais, o detentor do dinheiro, o que dá o nome ao sistema, senão que sim a personagem do inovador crematístico; não Ibidem, p. 198.

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o comum empresário, mas o que verdadeiramente inova. Labutam no regime social capitalista os meros exploradores desta estrutura económica, os simples empresários, palmilheiros por veredas que estão já traçadas; mas aparecem também, ademais desses homens, os pioneiros inventores de soluções inéditas (de processos mais baratos, de melhores métodos de venda, de qualquer novo artefacto), descobridores audazes do que se pode chamar sobrelucros, − ou «extra-rendimento», pelo modo de falar de Martins”5.

Quanto à segunda tese, relativa agora à determinação de um futuro desejável para a ordem económica capitalista, dá igualmente lugar a uma exposição feita em duas etapas. Na primeira etapa, que me parece decisiva do ponto de vista do próprio autor, António Sérgio cuida de demarcar-se daqueles que utilizavam um argumentário baseado em razões “naturalistas” e “mecânicas” para anunciar uma inevitável evolução do capitalismo para uma forma de organização socialista: “Digo que o socialista rigorosamente idealista (o de norma moral que é imanente à consciência, racionalista e apriórico) não ataca o capitalismo porque traz o declínio em si próprio, mas somente por um ditame da sua consciência ética, por um juízo da razão que é teórica e que é prática; não fundamentado no que ele comprova que é, mas naquilo que pensa que deveria ser. (…) Seria sempre socialista, pois, ainda que no sistema do liberalismo económico não houvesse essas crises e esses choques íntimos, que se assegura levarem-no por uma feição automática a uma «crise final» que virá a ser decisória e de onde um bem imarcescível há-de florir para o Mundo”6.

Para António Sérgio, a opção pelo socialismo deveria ser necessariamente o resultado de uma verdadeira escolha, inspirada por um desejo de “esclarecimento intelectual do povo, com dignidade para as almas, com libertação do espírito”7, e devidamente estribado numa reflexão filosófica autêntica. Esta declaração de princípios, que indicia claramente a prioridade da reflexão filosófica sobre a doutrinação económica, é subsequentemente confirmada: “A ciência procura a intelecção do que é, ou a dedução de consequências de postulados prévios: não pode apontar-nos o que deve-ser. Um regime Ibidem, p. 199. Ibidem, pp. 202-203, itálico no original. 7 Ibidem, p. 238. 5

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de economia, para o estudioso social, representa o papel de um postulado prévio. Aí, a ponderação e escolha do postulado prévio é um acto da alçada do moralista político: cai fora da competência do investigador científico. Ao que me quer parecer, a economia política dos defensores do capitalismo é a ciência do funcionamento de um certo regime de economia, que é aquele que adopta por postulado básico os intangíveis «direitos da propriedade», com a consequente «exploração do homem pelo homem»; e a economia social dos preconizadores do socialismo é a ciência do funcionamento de um outro regime de economia, que é o que toma por postulado o direito de todos a um nível mínimo de vida humana, − desoprimida e culta. Com objectos ou assuntos que são bem diversos, tanto ciência é uma como é ciência a outra”8.

Uma vez esclarecido este primeiro aspecto, e estando, portanto, explicada a opção pelo socialismo, faltava agora justificar o porquê da opção pelo cooperativismo. Uma vez mais, este texto que temos vindo a acompanhar oferece-nos uma resposta detalhada a este problema, ao enumerar as vantagens que o autor encontrava na via do socialismo cooperativista quando comparado com outras vias de alcançar o socialismo: “Em quanto concerne à revolução económica, o método político é o de substituir destruindo: é o do apossar-se do Estado, ou por eleição ou por armas; e, uma vez empolgada a grande máquina do Estado, nacionalizar as empresas industriais e a terra, aniquilando o capitalismo por uma legislação conveniente, apoiada na força de quem está no mando. Por outra banda, o método económico − ou seja o cooperativista − segue o caminho de destruir substituindo: criar cooperativas na matriz do capitalismo, desenvolvê-las e federá-las progressivamente, para fazerem a produção segundo um plano, − e absorverem por fim dentro do seu próprio âmbito a imensíssima maioria de toda a produtividade de um povo”9.

O raciocínio seguido é pois passível de ser resumido desta forma: o capitalismo, de inspiração liberal, tem a virtude de ser uma ordem dinâmica que permitiu indiscutivelmente o progresso da humanidade, nomeadamente porque criou um espaço de liberdade onde a figura do inovador se desenvolveu. Porém, os postulados de base desse mesmo capitalismo não deram a importância devida ao direito de todos a um nível mínimo de vida humana. Daí a necessidade sentida por alguns que, tal como António Sérgio, entendiam ser possível e desejável avançar para uma organização socialista Ibidem, p. 207, itálico no original. Ibidem, p. 256.

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mais perfeita. E, a este nível, o cooperativismo aparecia como a melhor via para alcançar a desejada ascensão moral de todos − uma via construtiva, de genuína auto-ascensão, feita de uma forma pacífica e gradual.

Portugal, o capitalismo e o socialismo O conjunto de citações que escolhemos para ilustrar o ponto anterior destacam fundamentalmente os aspectos gerais das duas grandes teses de António Sérgio sobre o capitalismo e o socialismo. Por isso, correspondem apenas a uma das fases do processo de intermediação doutrinal, concretamente àquela que diz respeito à escolha de um conjunto de ideias de autores estrangeiros para discussão − e que no caso do texto que acompanhámos inclui referências explícitas às ideias de Marx, Proudhon, Hegel, Lassalle, Platão, Owen, Ricardo, Say, Du Pont de Nemours, De Bonald, Carlyle e Ruskin. Importa agora completar a nossa análise, verificando a forma como essas teses gerais foram aplicadas à análise do caso português. Neste plano, a primeira questão que importava esclarecer era o porquê do atraso do capitalismo português. Essa explicação é dada através de uma chamada de atenção para a ausência entre nós do factor dinâmico fundamental desse tipo de ordem económica: “O mal do constitucionalismo português não foi o de introduzir o liberalismo económico (o que era fase necessária do nosso processo histórico, onde a parte de Mousinho é de fulgor sem par), mas sim o de nos trazer uma estrutura liberalista em que teve de predominar o capitalista passivo, − esterilizador, parasita, − com ausência da mentalidade do capitalista empresário, criador de riqueza (e portanto também da do inovador crematístico): um capitalismo caracterizado pelo ocioso rentista, pelo intermediário pantagruélico, pelo vampirismo do agiota, pelas aventuras corruptoras dos jogadores na Bolsa, esquecendo Martins que desse desvio da rota tinha culpa o ambiente da tradição histórica, − a força de inércia, em suma, a orientação de espírito daquele antigo regime, que se pretendeu cassar, sustentado pelas Índias e logo depois pelo Brasil”10.

Essa ausência, que como se pode ver é explicada pela longa prevalência de um ambiente mental malsão e muito difícil de erradicar, coloca obviamente problemas de difícil resolução11. Como proceder a uma mudança de

Ibidem, p. 229. Recorde-se que António Sérgio já havia referido detalhadamente os esforços análogos − e igualmente frustrados − desenvolvidos por um conjunto de economistas portugueses do Setecentos. Ver SÉRGIO, António. Antologia dos economistas portugueses. Século XVII.

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mentalidades? Onde encontrar os apoios necessários para promover essa mudança necessária? A resposta a estas questões é aqui dada fazendo um paralelo implícito entre a situação vivida por Antero de Quental e Oliveira Martins e a que o próprio António Sérgio continuava a ter que enfrentar: “De que maneira prática (através de que gentes) reagir contra o capitalismo no Portugal do tempo? Antero de Quental esperou sempre a reforma da acção moral da classe operária: mas quando existiria nesta nossa terra uma classe operária preparada para ela? Parece que o corolário que tal situação implicava era pois o de limitar a aspiração socialista a uma tarefa de educação da nossa gente obreira, desistindo ele de assistir (o Martins, digo eu) ao espectáculo da realização da sua própria ideia. «Mal dos políticos ao mesmo tempo apóstolos!», como pronunciou noutro livro (História de Portugal, I, 2, 1); «mal dos apóstolos ao mesmo tempo políticos!», poderia também ter pensado”12.

Repare-se que esta conclusão se aplica quer a um programa de reforma e melhoria da mentalidade capitalista existente entre nós, quer a um programa de verdadeira revolução das mentalidades, destinado a instilar a revolucionária ideia do socialismo cooperativista. A solução para o atraso nacional seria pois a mesma em qualquer dos casos: na ausência de uma mentalidade adequada nas gerações presentes, a única esperança passaria inevitavelmente pela educação das gerações vindouras. Entronca aqui, portanto, o manancial de preocupações e de iniciativas pedagógicas características de António Sérgio, preocupações essas que, no fundo, vão moldar de forma bastante sensível a sua forma pessoal de intermediação doutrinal. O seu trabalho seria então fundamentalmente o de “Pensar com clareza e catequizar tenazmente, realizando a tarefa da educação dos espíritos, que prepare as veredas aos reformadores futuros. Mas catequizar que pessoas? Catequizar a juventude que frequenta as escolas e os obreiros que constituem o genuíno escol popular, quer dizer: os trabalhadores capazes de encaminhar os outros pela obra quotidiana de criação positiva, nos sindicatos operários e nas associações de consumo”13.

Lisboa: Publicações da Biblioteca Nacional, 1924. Ver igualmente SÉRGIO, António. Ensaios, t. II. 2.ª edição. Lisboa: Publicações Europa-América, 1957, pp. 87-122. 12 Idem, Ensaios, t. VIII, p. 226. 13 Ibidem, p. 245.

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Esta dependência que é assumida em relação às gerações futuras teve, ao que julgamos, a consequência de levar António Sérgio a relegar para um segundo plano o enunciado de todo o conjunto de reformas que poderiam ser feitas ao capitalismo português14, apostando preferencialmente na divulgação da via revolucionária que deveria vir a ser prosseguida por essas mesmas gerações vindouras. É, portanto, esta aposta no futuro que leva a que a doutrinação cooperativa – onde avultava a importância do cooperativismo de consumo15 − ganhe um crescente destaque na sua doutrinação económica. Para além disso, parece igualmente claro que António Sérgio acreditava que a via cooperativa era particularmente apropriada para conseguir ultrapassar vários dos bloqueios característicos da sociedade portuguesa: “A acção cooperativa dos consumidores associados começa desde logo a fazer socialismo, sem ter que esperar por intervenções políticas, no ambiente do capitalismo e fora do Estado, por livre iniciativa dos cooperadores, − e por isso mesmo de maneira pacífica, essencialmente criadora, experimentalista e provida (…). O método da cooperativa, por outro lado, é um processo pedagógico por excelência, porque pede a colaboração dos que beneficiam dela. O cooperador contribui para o seu próprio bem em todos os seus actos a favor do próximo, abolindo toda espécie de competição económica, de lutas de classes: porque destrói pela raiz todas as distinções de classe. Não espera que o beneficie um senhor governante, um Estado-providência, um esforço alheio. Se o vício principal do regime capitalista é o que pode chamar-se a «alienação do homem», cumpre que não vamos para outra ordem económica em que se dê igualmente uma alienação das pessoas. E não a há no método dos consumidores associados. Pelo contrário: é o todo que se estriba na exaltação das almas, na libertação perfeita. O cooperativismo é um movimento de ascensão moral, de retoma social, que se serve, como instrumento, das necessidades económicas dos homens”16. Ainda assim, António Sérgio foi dando um apoio − pontual e selectivo − a algumas propostas contemporâneas de índole reformista. Veja-se, por exemplo, as referências ao pensamento económico de Ezequiel de Campos e de Basílio Teles em Sérgio (SÉRGIO, António. Ensaios, t. II, pp. 116-121). Veja-se igualmente a recensão do livro Para a Ressurreição de Lázaro, de Ezequiel de Campos, incluída em Idem. Ensaios, t. III. 3.ª edição. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, pp. 203-214. 15 Sobre as várias modalidades de cooperativismo e respectiva hierarquia no pensamento deste autor, veja-se SÉRGIO, António (org.). O cooperativismo. Objectivos e modalidades. Lisboa: Edição do Autor, s.d., pp. VII-XLI. 16 Idem, Ensaios, t. VIII, pp. 255-256. 14

António Almodovar

Faça-se uma inventariação sumária das dificuldades encontradas pelos reformistas portugueses: alegadamente, todos esbarraram na falta de apoio − quer do Estado quer da sociedade civil − para as medidas que propunham. Ora, o cooperativismo não necessitava, para poder começar a ser praticado, de um apoio político e social significativo. De facto, podia ser posto em prática muito rapidamente, através da acção de um número relativamente reduzido de indivíduos, por uma elite de pioneiros. Estes serviriam de exemplos para os restantes, desempenhando assim uma função pedagógica fundamental, ensinando pela prática e pelo exemplo o caminho para a ascensão moral das massas, nelas desenvolvendo o espírito de autogoverno. Outro obstáculo de monta era também a mentalidade do “ocioso rentista”, do “intermediário pantagruélico”, do “vampirismo do agiota”. Também aqui o cooperativismo permitia a implantação de uma alternativa imediata, nomeadamente porque no seu seio se premiava o trabalho e a iniciativa individual ao mesmo tempo que exigia o desenvolvimento de laços fraternais entre os participantes. Com o desenvolvimento gradual da mentalidade própria ao cooperativismo, erradicar-se-iam gradualmente os vícios da mentalidade tradicional, sem ter necessidade de os afrontar directamente. Tudo somado, chegava-se então à conclusão de que o cooperativismo, quer enquanto ideário de uma nova ordem económica e social, quer enquanto método de mudança, tinha por si as enormes vantagens de ser pacífico, democrático, e exequível no imediato.

Notas finais Para podermos dar por concluída a análise a que nos propusemos neste ensaio, falta-nos apenas responder à questão que colocámos no início: tendo presentes as grandes linhas da doutrinação económica prosseguida por António Sérgio, e tendo igualmente presente a forma como este autor actuou enquanto intermediário entre o pensamento económico estrangeiro e a realidade portuguesa, há ou não lugar a que se possa falar de originalidade? A resposta − que desde já se adianta que é pela afirmativa − merece ser justificada. O que pretendemos determinar não é a originalidade deste autor no plano internacional, mas sim e tão-somente no plano que lhe atribuímos, de intermediário doutrinal. Se olharmos para as duas grandes teses que estruturaram essa doutrinação, devemos ter presente que a primeira delas – as duas políticas económicas – corresponde, no fundo, a uma glosa da ideia de que o desenvolvimento requer que se invista (capitais, trabalho) em actividades que permitam um aumento regular do produto

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anual. O capitalismo bem sucedido é isso que faz, sendo esse processo de investimento regular (e rotineiro) particularmente bem sucedido quando estimulado pelo surgimento de inovações. Estas ideias estão presentes nos fisiocratas e nos economistas clássicos, tendo Jean-Baptiste Say sido um dos autores que se destacaram no elogio do papel desempenhado pelos empresários inovadores. Ora, o facto é que qualquer destas ideias já tinha sido previamente difundida entre nós. E outro tanto se pode dizer quanto à tese relativa ao cooperativismo, cujos doutrinários portugueses anteriores a António Sérgio são fáceis de identificar. O que de facto é original, peculiar, na sua obra de doutrinação económica é a forma como retoma esses temas. Refiro-me concretamente não a uma questão de estilo pessoal, mas sim à atenção e ao rigor que António Sérgio procura dar à fundamentação filosófica das doutrinas económicas que difunde. Essa preocupação é claramente visível nas críticas que dirige a Oliveira Martins (e aos autores em que este se inspirou) ao longo do texto que tivemos ocasião de utilizar. Mas essa preocupação também é facilmente identificável se atentarmos na aparente facilidade com que António Sérgio conseguiu articular de forma coerente a sua mensagem doutrinal ao longo de uma extensa obra: a forma como as virtudes e os males do capitalismo são identificados é coerente com os remédios socialistas que são propostos; a preocupação pedagógica, a importância da difusão de ideias é coerente com a importância atribuída às mentalidades e à consequente aposta na educação das gerações vindouras; a liberdade e o auto-governo são compatíveis com a criatividade e a mudança. A originalidade de António Sérgio reside pois no filtro filosófico que utilizou para seleccionar as ideias económicas, escolhendo aquelas que eram susceptíveis de se ajustar e de servir a uma matriz filosófica de base. Foi esse o seu critério de leitura, e foi assim que entreteceu e transmitiu, entre nós, um conjunto de ideias retiradas dos economistas clássicos e socialistas, cuidando de lhes criticar os “desvios naturalistas”. Foi esse também o critério com que retomou os ideais cooperativistas, cuidando de lhes especificar um sentido revolucionário preciso através da atribuição de uma dimensão inequivocamente idealista – voluntária, criativa, pacífica, e democrática − de ultrapassagem da ordem económica capitalista.

O idealismo de António Sérgio: Sobre algumas considerações cartesiano-espinosistas ROMANA VALENTE PINHO Universidade Federal de Uberlândia Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

É a dúvida metódica, camaradas e amigos, a primeira das lições a tomar do Descartes. Ora, o propagandista, por definição do género, tende a não duvidar de coisa alguma. Não vos esqueçais de que o labor filosófico, antes de constar de uma discussão de teses; antes de nos dar uma investigação de problemas, antes de consistir numa apresentação de doutrinas –, é uma atitude e uma disciplina do espírito. E qual disciplina? – A disciplina crítica. A filosofia é uma ascese; e não fará obra de divulgação filosófica – mas sim de divulgação antifilosófica – quem não se empenhe em responder à dúvida por meio de uma exposição explicativa e crítica. Propaganda é uma coisa; filosofia é outra. António Sérgio, Cartesianismo Ideal e Cartesianismo Real.

Tem-se difundido amiúde que António Sérgio é medularmente cartesiano. Todavia, concordar com tal afirmação implica analisar em que aspecto o ensaísta o é, já que a maioria do seu pensamento filosófico não coincide com o do filosófo francês. No entanto, poder-se-á afirmar que Sérgio, em absoluto, é metodicamente cartesiano. Não temos muitas dúvidas de que, desde os primeiros textos filosóficos, datados de 1909, até aos últimos que escreveu na sua vida, a grande meta de António Sérgio fosse a disciplina crítica. E dizêmo-lo com esta convicção não só porque, em muitos dos escritos, o ensaísta sublinha tal objectivo de uma forma veemente, mas também porque, na grande maioria dos casos, o que Sérgio realmente faz, mais do que tecer um sistema filosófico, é autoprovocar-se criticamente e incitar os seus leitores a criticarem e a duvidarem. É num texto publicado na revista Seara Nova, no ano de 1937, que António Sérgio destrinça o cartesianismo real daquilo que considera o seu cartesianismo ideal. Tal conceituação fa-lo-á aprofundar a sua visão do idealismo que, há muito, vinha já sendo estruturada. Em Cartesianismo Ideal e Cartesianismo Real, António Sérgio não se limita, portanto, somente a

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diferenciar cartesianismo, platonismo ou kantismo ideal de cartesianismo, platonismo ou kantismo real, estabelece outrossim todas as linhas que tecem a sua proposta idealista e criticista. Além da metodologia cartesiana, reconhecemos na obra de Sérgio a herança de um idealismo proposto por Descartes no século XVII, embora livre e voluntariamente adaptado pelo director da Seara Nova. Nesse aspecto, António Sérgio é idealmente mais cartesiano do que o próprio Descartes, no entanto, e por outro lado, a leitura facciosa que o nosso autor faz do filósofo seiscentista, enaltecendo determinados conceitos, desprezando outros com os quais não concorda e propondo hermenêuticas paralelas, fazem dele um intérprete arguto, astuto e peculiar. Segundo a perspectiva sergiana, Renée Descartes foi propositadamente obscuro, ambíguo e infiel ao seu próprio pensamento em muitos excertos das suas obras com o objectivo de se mascarar e fugir das ameaças da Inquisição. O trabalho, ao fim e ao cabo, que Sérgio se propõe fazer, é ler nas entrelinhas e sistematizar a base do pensamento cartesiano com o sentido de detectar incoerências e ambiguidades. Avisa, porém, de antemão e contraria muitos daqueles que criticaram a falência e a nebulosidade do sistema cartesiano, que Descartes sabia tudo1, ou seja, que “enxergou a pleno (se não digo asneira) certas ideias que se concluíam das características fundamentais da sua obra; mas… Mas não lhe convinha, evidentemente, revelar que as via; e o que nos deu, segundo imagino, foi uma mistura do cartesianismo ideal com umas tantas crenças tradicionais e rígidas que se achavam nas bases da teologia católica”2.

A leitura que António Sérgio propõe, então, nas páginas de Cartesianismo Ideal e Cartesianismo Real reflecte um Descartes ideal, limpo das impurezas históricas que, por vezes, maculam a obra filosófica de um autor; um cientista revolucionário; e um crítico atroz do sistema aristotélico. Ora, seguindo estes parâmetros, António Sérgio não é medularmente cartesiano, é, por sua vez, ideal e metodicamente cartesiano. A admiração que o ideólogo dos Ensaios sentia pelo filósofo seiscentista francês sustentava-se, acima de tudo, no facto de Descartes ter promovido uma verdadeira reforma na Filosofia. Para além de ter colocado em causa a debilidade do sistema aristotélico quer no campo da Física e da Ciência Cf. SÉRGIO, António. Cartesianismo Ideal e Cartesianismo Real. In: ______. Notas sobre Antero, Cartas de Problemática e outros textos filosóficos. Lisboa: Imprensa NacionalCasa da Moeda, 2001, p. 188. 2 Ibidem, pp. 188-189. 1

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como um todo, quer na sua relação com a teologia católica (aristotelismo e tomismo tinham-se aliado há muito), segundo Sérgio, o autor de O Discurso do Método realizou uma verdadeira reformação filosófica. O que significava dar uma atenção a Platão como nunca antes havia sido dada e contestar a sedimentação que a ciência aristotélica havia construído. Uma das principais propostas que Descartes faz neste âmbito, diz respeito, tal como Sérgio tão eficazmente relembra, à apologia de uma filosofia espiritualista, geométrica e matemática, lançando um novo olhar sobre a tradição filosófica que, à sua época, estava instituída. A partir do momento em que António Sérgio faz a apologia do cartesianismo ideal em detrimento de um certo cartesianismo real, o autor coloca em questão alguns dos principais conceitos cartesianos, a saber: res cogitans, res extensa, matéria ou imaginação, por exemplo. A bem da verdade, quando o autor dos Ensaios sustenta a superioridade do seu cartesianismo ideal face ao cartesianismo real ou de direito, está a contestar um conjunto de ideias que Descartes difundiu e que, tomadas em absoluto, não implicam directa e objectivamente a defesa de um cartesianismo de facto. Só é possível postular um cartesianismo ideal depois de Espinosa, Malebranche e Huyghens, por exemplo, terem concebido uma metafísica idealista. Ou seja, o cartesianismo de Sérgio é, pois, neste sentido, um cartesianismo essencialmente espinosista e malebranchista. Ou, em duas palavras, idealista e metafísico. Só por esse motivo, aliás, é que se compreende que, a partir das teses de Renée Descartes, e levantando a bandeira de uma idealismo cartesiano, o nosso autor proponha a edificação de uma ciência física baseada na Geometria e arredada, portanto, da intuição sensível e do figurativismo. Na concepção de Sérgio, o filósofo francês tinha o objectivo de transformar a Física em Geometria e esta, por sua vez, em Matemática pura, em ciência do espaço inteligível e uno, liberta de quaisquer influências sensoriais, imaginativas e figurativas. No entanto, e realmente, estas inferências não procedem de uma leitura imediata das teses cartesianas, até porque, como é sabido, as hipóteses físicas que Descartes sugere são de natureza imaginativa e figurativa, na medida em que são visionáveis e promanam da impressão sensível. Não obstante o autor de O Discurso do Método tivesse tido a intenção de reduzir a Física à Geometria (“toute ma physique n’est autre chose que géométrie”), o certo é que a Geometria a que ele se refere não é de natureza algébrica ou matematicamente pura, tal como Sérgio gostaria. A Geometria cartesiana ainda é de índole figurativa e imaginativa, não é extensão puramente mental. A defesa desta concepção leva-nos a crer que, para

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além de Descartes ter objectivado estabelecer uma clareza tanto para o intelecto como para a intuição sensível, tanto para a res cogitans como para a res extensa, visou igualmente fundir elementos contrários. Se, a priori, o filósofo francês alerta para o perigo de se confiar plenamente na intuição sensível, nos dados que nos chegam por meio dos sentidos, se constata a vulnerabilidade dos corpos, por outro lado, acredita que, após um exame efectuado pelo intelecto e dissipadas todas as dúvidas, os sentidos podem ser úteis para o conhecimento verdadeiro, assim como o corpo, por mais perecível e deteriorável que seja, está unido ao espírito (elemento que o orienta e conduz) por via da glândula pineal. Afinal, por mais elementarmente diversos que sejam, corpo e alma estão reunidos num só ponto, fazendo com que ambos se misturem, com que cada um, em específico, se torne fundamental para o outro. Partindo desse princípio, o cartesianismo de facto não convence o Sérgio que escreve, em 1937, o artigo Cartesianismo Ideal e Cartesianismo Real. Todavia, poderia ter convencido o Sérgio que, vinte e oito anos antes, em Notas sobre os Sonetos e as Tendências Gerais da Filosofia de Antero de Quental, escrevera “Separar o sentimento da inteligência ou o facto da ideia, é uma ilusão na vida e um erro na especulação. O próprio trabalho científico pressupõe um amor e um ideal, ainda que mascarado ou inconsciente. Fazer ciência não é só especular, mas sentir, actuar, produzir”3;

Ou o Sérgio de Educação e Filosofia, quando assentara que “doutrina intelectualista, talvez, a que vos proponho nestas páginas; [mas de um intelectualismo que vê no intelecto, não a faculdade de abstrair e o depositário das ideias gerais, mas sim o construtor do Universo concreto, pelas relações inteligíveis que ele próprio cria;] e se me opuserdes a ela o sentimento e o instinto, respondo-vos que a Razão, por sua vez, é um sentimento e um instinto [, também criadora e também intuitiva (…)]”4.

Em 1909 e em 1920, portanto, o cartesianismo real convenceria inteiramente António Sérgio. Só o amadurecimento intelectual do autor, sobretudo uma leitura mais detalhada de Espinosa e Malebranche, conduzi-lo-á a Idem. Notas sobre os Sonetos e as Tendências Gerais da Filosofia, de Antero de Quental. In: ______. Notas sobre Antero, Cartas de Problemática e outros textos filosóficos, p. 142. 4 Idem. Educação e Filosofia (Princípios de uma Pedagogia Qualitativa de Acção Social e Racional). In: ______. Ensaios, t. I. 3.ª ed. Edição crítica de Castelo Branco Chaves, Vitorino Magalhães Godinho, Rui Grácio e Joel Serrão; org. Idalina Sá da Costa e Augusto Abelaira. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1980, p. 140. 3

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postular um cartesianismo ideal que, em lato senso, assentará numa reunião entre os aspectos idealistas de Descartes e os pontos fulcrais da metafísica espinosista e malebranchista. O que realmente interessa a António Sérgio é o modelo científico, revolucionário5 e sapiencial em que Renée Descartes se constitui. Isto é, importalhe a sua metodologia gnosiológica e o seu potencial idealismo. No fundo, interessa-lhe o Descartes arquetipal. Tal como lhe interessará o Espinosa e o Malebranche arquetipais. Até porque a sua proposta se baseia precisamente no que, em potência, estes autores comportam em termos metafísicos e idealistas. O Descartes que Sérgio reverencia é o Descartes da Ideia, o Descartes do Cogito. Ou seja, o cogito ergo sum, na sua opinião, é mais do que, tal como estabelece Antero de Quental, a carta de alforria da inteligência moderna6, é, igualmente, o modelo mais acertado das teorias gnosiológicas. Por um lado porque se fixa a unidade e a autonomia do princípio pensante, por outro porque se associa pensar e ser, pensar e existir. É o cogito que implica a existência, é a partir do cogito que se define o ser. Ora, esta identificação com o cogito cartesiano não implica, para o pensamento e para o projecto educativo e cultural de António Sérgio, nenhum desvirtuamento. Muito pelo contrário. A defesa de uma metodologia cartesiana pode abarcar a apologia de uma filosofia puramente intelectualista. E, no caso da proposta sergiana, tal é possível. A bem da verdade, a aplicação, por parte de Sérgio, de uma metodologia que se baseia na dúvida metódica, na crítica e na explicação filosófica dialoga com a doutrina do cogito ergo sum, com a explanação de uma filosofia de viés idealista. Para além disso, assenta como uma luva no projecto sergiano como um todo. A sua intenção de formar uma sociedade mais consciente, mais livre, mais autónoma e mais crítica passa, absolutamente, por assumir as principais coordenadas do idealismo cartesiano: através do bom uso do intelecto, da Razão (na medida em que estes são tão-só dinamismos inventores e criadores), poder-se-á edificar uma sociedade e uma elite político-social mais responsável moralmente. Neste sentido, não podemos dissociar, na obra de António Sérgio, as suas intenções filosóficas das suas intenções morais. Elas estão estritamente relacionadas. Como, aliás, também estavam no corpus filosófico do seu Mestre Renée Descartes. António Sérgio escreve até, possivelmente identificando-se com a figura de Descartes em alguns aspectos, que “se sou revolucionário, é por ser idealista”. Idem. Prefácio da Segunda Edição. In: ______, Ensaios, t. I, p. 44). 6 Cf. idem, Notas sobre os Sonetos e As Tendências Gerais da Filosofia, de Antero de Quental, p. 123. 5

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Em uma só palavra, o que une Sérgio a Descartes é a metodologia. A obra magna de Espinosa foi uma das primeiras de cariz filosófico que o nosso autor leu (com apenas 18 anos) e que, por consequência, o despertou para a descoberta da tradição da Filosofia Ocidental. Como o próprio afirma, depois da Ética, leu “sem método Descartes, Pascal, Leibniz, Berkeley, Kant, Schopenhauer, Comte, Taine, Stuart Mill, Spencer, Guyau, Fouillée”7. Ora, esse primeiro contacto com os escritos de Espinosa, não só será fundamental para o alicerce intelectual de Sérgio, como para a interpretação que fará do pensamento deste filósofo. Espinosa instigará intelectual e metafisicamente o pensador português. Aliás, são as leituras sistemáticas da obra daquele autor que clarificam e condicionam a interpretação final que António Sérgio fará de um Platão ou de um Descartes, por exemplo. Espinosa é, no nosso entender, uma chave nodal para a interpretação de todo o corpus literário do autor dos Ensaios. Em Considerações sobre o Problema da Cultura, António Sérgio escreve que foi a Espinosa quem “coube erigir nos modernos tempos o primeiro exemplar de um pensar metafísico suficientemente fiel à mentalidade europeia, isto é, à mentalidade racionalista que definiu a Europa”8. Esta citação revela que, apesar da importância que Descartes teve para a evolução do pensamento científico da modernidade, o filósofo seiscentista francês não se emancipou a ponto de desbravar o seu potencial idealismo e de se libertar do realismo e do substancialismo escolásticos. Para além disto, quer Sérgio dizer ainda que a mentalidade racionalista que caracteriza a mentalidade europeia e, especificamente, a mentalidade de Espinosa, é uma mentalidade metafísica. Para tal contribui a proposta de um noção de substância que se revela inédita e particularmente abrangente, sobretudo depois do que Descartes, tempos antes, havia sugerido a esse respeito. O que interessa, portanto, a António Sérgio, a partir da leitura de Espinosa, é a ideia de uma substância9 não corpórea, livre das qualidades Idem. Autobiografia inédita de António Sérgio [Livre D’Or do Instituto Jean-Jacques Rousseau, Genève, 1915]. Recuperado por Daniel Hameline e António Nóvoa. Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º 20, Fevereiro de 1990, p. 15: “Je lis alors (19-26 ans) sans méthode Descartes, Pascal, Leibniz, Berkeley, Kant, Schopenhauer, Comte, Taine, Stuart Mill, Spencer, Guyau, Fouillée”. 8 Idem. Considerações Sobre o Problema de Cultura. In: ______. Ensaios, t. III. 2.ª ed. Edição crítica de Castelo Branco Chaves, Vitorino Magalhães Godinho, Rui Grácio e Joel Serrão; org. Idalina Sá da Costa e Augusto Abelaira, Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1980, p. 50. 9 ESPINOSA, Baruch de. Éthique, vol. I, I, def. III, trad. Charles Appuhn, Paris: Éditions Garnier Frères, s.d, p. 19 (ESPINOSA, Bento de. Ética. Trad. Joaquim de Carvalho, 7

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sensíveis, e que tem a capacidade de se expressar una, infinita, indivisível e universalmente10. E desenganemo-nos se pensamos que a denominação de tal substância enquanto Natureza ou Deus11 incomoda a sensibilidade sergiana. Até porque, se outras premissas não existissem, talvez bastasse para convencê-lo aquela que afirma: “Deus é uma coisa pensante”12. Ora, para além deste postulado, existe ainda aquele outro que sustenta que “Deus é uma coisa extensa”13. Ambos permitem, assim, que Sérgio conclua que as teses espinosistas se caracterizam por uma radicalidade de tal ordem que é capaz de abalar a herança aristotélico-tomista e fomentar o idealismo cartesiano. Afinal, é do primado da Ideia que se trata e também, como o nosso autor tão bem observa, de uma dialéctica que nos permite “subir dos sentidos à razão, da razão à intuição, – do primeiro ao segundo e ao terceiro género do conhecimento, – e atingir assim a ideia do Pensamento universal, infinito, absoluto”14. É nesse sentido, igualmente, que António Sérgio constata que a compreensão das coisas nos aproxima da compreensão de Deus15. É a partir destas premissas que António Sérgio se entusiasma pelo pensamento de Espinosa, afinal, o que está em causa, tendo como meio a matemática e a geometria puras, é o alcance do ser supremo, isto é, da substância que tudo une, unifica e explica. No fim de contas, no entender de Sérgio, o autor da Ética está a referir-se, ainda que por outras palavras, ao Pensamento universal e eterno, ao seu Uno unificante. São argumentos

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Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1992, p. 100: “Por substância entendo o que existe em si e por si mesmo é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não carece do conceito de outra coisa do qual deva ser formado”). Ibidem, I, prop. VIII, p. 27 (trad. portuguesa, p. 111: “Toda a substância é necessariamente infinita”); Ibidem, I, prop. XIII, p. 43 (trad. portuguesa, p. 120: “A substância absolutamente infinita é indivisível”). Ibidem, I, apêndice, pp. 103, 105 (trad. portuguesa, p. 169: “…pelas demonstrações em que fiz ver que tudo o que existe provém de certa necessidade eterna e da suma perfeição da Natureza”); Ibidem, I, prop. XXIX, escólio, p. 81 (trad. portuguesa, p. 151: “…deve entender-se por Natureza naturante o que existe em si e é concebido por si, ou por outras palavras, aqueles atributos da substância que exprimem uma essência eterna e infinita, isto é, Deus, enquanto é considerado como causa livre”). Ibidem, II, prop. I, demonstração, p. 119 (trad. portuguesa, p. 199: “É por isso que o Pensamento é um dos atributos infinitos de Deus, o qual exprime a essência eterna e infinita de Deus, isto é, Deus é uma coisa pensante”). Ibidem, II, prop. II, p. 121 (trad. portuguesa, p. 199). SÉRGIO, António, Notas sobre os Sonetos e As Tendências Gerais da Filosofia, de Antero de Quental, pp. 124-125. Cf. ibidem, p. 125.

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como estes, aliás, que permitem a António Sérgio afirmar que, na filosofia espinosista, “a alma humana é em Deus eternamente”16, ou, em outras palavras, que o pensamento dos homens é coincidente com o Pensamento universal e eterno; que toda a realidade, no fim de contas, se encontra “não fora ou acima do intelecto, mas no mais profundo e no mais íntimo do nosso acto de intelecção”17. Se seguirmos uma interpretação que minimiza os argumentos paradoxais de Espinosa, tal como propõe o autor dos Ensaios, podemos enveredar por uma linha de pensamento que sustenta que a prática da Razão não só concede conhecimento e sabedoria, como também salva. Até porque, partindo dos pressupostos do próprio filósofo holandês, ao pensar-se inteligentemente, poder-se-á chegar a Deus18. No fundo, o que as teorias de Espinosa parecem evidenciar é que, além de todas as outras dimensões que caracterizam a actividade racional, há uma outra que pode igualmente ser apontada: a dimensão salvífica. Se os homens conseguirem realizar, por meio do seu pensamento, o Pensamento divino em si mesmo, não só conhecerão (a) Deus instantaneamente (acederão à plenitude do Ser), como serão, de igual modo, salvos de um pensamento inferior e de uma realidade equivocada. Para a visão de Sérgio, esta argumentação configura-se fundamental na medida em que um dos seus principais objectivos consiste em formar uma sociedade mais racional, mais consciente e mais livre.

Ibidem, p. 125. Ibidem, p. 125. 18 ESPINOSA, Baruch de. Éthique, vol. II, IV, apêndice, cap. IV, trad. Charles Appuhn, Paris: Éditions Garnier Frères, s.d, p. 147 (trad. portuguesa, p. 431: “É que a beatitude não é outra coisa que o contentamento do espírito que provém do conhecimento intuitivo de Deus. Ora, aperfeiçoar a inteligência também não é outra coisa que conhecer a Deus”). 16 17

A percepção em António Sérgio: do sensível ao inteligível LUÍS LÓIA Universidade Católica Portuguesa

O título desta reflexão enuncia o plano da inquirição que intentamos ao longo desta exposição. De facto, procuraremos aquilatar o estatuto epistemológico do conceito de percepção no pensamento de António Sérgio. Procurar-se-á demonstrar como, a partir da sensação, dos sinais-sentires, se formam os constructos percepcionais, e como, a partir destes, a actividade criadora da mente “inventa” constructos formais sob os quais constrói a ciência. Verificar-se-á se o sensível é condição prévia para a descoberta (construção) da inteligibilidade da Physis e se essa inteligibilidade, postulada que está a unidade formal da ideia, só é reconhecida e confirmada no confronto, na verificação, no sensível pela experimentação. Importa pois esclarecer o estatuto epistemológico da sensação, da percepção e das actividades superiores do intelecto ou, se quisermos, importa compreender em que consiste o nível sensorial, o nível percepcional e o nível formal ou, se quisermos ainda, o plano dos sentires, o plano dos constructos percepcionais e o plano dos constructos formais. Há, desde logo, uma diferença a assinalar: pela forma como os distintos planos são nomeados, podemos verificar que, no plano dos sentires, parece não estar envolvida uma actividade construtora ou criativa da mente, como se parece verificar no plano dos constructos percepcionais e no plano dos constructos formais. Começando pelo primeiro – e primeiro aqui não é inocente –, é no nível sensorial, segundo António Sérgio, que se dá o encontro entre nós e o chamado mundo material ou físico, que, num dado momento, é afirmado como sendo de natureza e existência independente da nossa mente. Para o autor: “(…) o estímulo da sensação não provém da psique: sim, é o que vos digo; vem de algo independente da nossa psique; vem do Mundo físico, cuja existência eu afirmo, e que suscita em nós os sinais sensações (…).

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A percepção em António Sérgio: do sensível ao inteligível

A sensação é o degrau inferior da consciência (…). Sensação é um algo, estímulo é outro; a sensação é da consciência; o estímulo da Físis, que é o exterior ou interior ao nosso próprio corpo, mas não exterior à nossa actividade mental, porque o exterior à psique não faz sentido (…)”1.

No seu aspecto presentativo, o mundo ainda não é posto pela actividade da mente, mas a natureza desse mundo físico é já concebida como actividade (como se identifica essa actividade? Pelos sinais que compõem a sensação – não são coisas, são sinais que nos estimulam). É dizer que a sensação acontece por via do impulso da Physis, como estímulo. Aí, parece-nos, o autor sustenta que é o mundo físico que age sobre a mente, recebendo esta, passivamente, tais estímulos, tais sentires. Sendo, como afirmado neste momento, a sensação da consciência e o estímulo da Physis, concebe, pois, o autor, uma instância anterior à própria sensação, um momento prévio de recepção do estímulo, de estímulos originados na actividade desse mundo que é exterior (aquilataremos a coerência desta afirmação). Ora, para António Sérgio, a experiência do mundo sensível não se funda no contacto de um sujeito com um objecto, de uma consciência com um algo que se lhe apresenta como estando diante de si, opondo-se-lhe. A experiência do mundo, segundo o autor, é, desde logo, criação por antecipação do intelecto, pois é o intelecto, na sua actividade judicativa, que confere conteúdo aos dados da sensação. É o intelecto que cria a percepção, que opera a construção mental prévia ao enquadramento dos dados sensíveis e, só aí, no conteúdo perceptivo ou, como refere o autor, no constructo perceptivo, só aí, se origina a experiência2. Assim sendo, torna-se difícil compreender em que consiste a sensação. Parece que o autor reduz a sensação a um mero mecanismo bio-fisiológico, privando-o de qualquer conteúdo sugestivo, pois este só será dado pelo intelecto ao tornar actual o conteúdo perceptivo. Ou seja, não faz sentido falar de um objecto da consciência que possa estar situado fora da consciência; o mesmo será dizer, o objecto não tem realidade além da consciência. Assim o afirma: “Não há objecto situado fora, para além do intelecto; o objecto em

SÉRGIO, António. Cartas de Problemática. Lisboa: Ed. Inquérito, 1952-1955, Carta 2, p. 4. SÉRGIO, António. Migalhas de Filosofia. In: ______. Ensaios, t. VII, 1.ª ed., Lisboa: Sá da Costa, 1974, pp. 203-204: “(…) o percepto é já uma construção da inteligência. (…) nenhum percepto existe para os sentidos se não for construído pela inteligência (…). A percepção pressupõe um raciocínio, a antecipação mental do percepto a obter (…)”.

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si, e a experiência em frente da inteligência, são meros fantasmas”3 – ora, tal parece contradizer o acima afirmado. Fará sentido conceber esse mundo independente da nossa actividade mental? Ao acontecer o estímulo, não estamos já a pressupor, necessariamente, que uma estrutura é estimulada por se confundir, disseminar, pelo corpo, nesse mundo? Tais sentires-sinais não o são apenas quando são sinalizados e sentidos mas também significados? Bem certo que possamos admitir uma instância anterior à significação; no entanto, o mundo do estímulo ocorre já em nós e, neste sentido, interrogamos: será o estímulo em si já significativo? Diz-nos o autor que o primeiro dos três níveis sucessivos do funcionar do intelecto é o nível sensorial, constituído por farrapos de sensação, por sentires, e aí, nesse nível, não há ainda espaço, nem polarização da psique em sujeito objecto, em não-eu e eu. Mas como conceber o sentir sem diferenciar, desde logo, o que sente daquilo que é sentido? À parte da dificuldade em delimitar conceptualmente esta noção de sensação, importa compreender que é sobre os impulsos, ou acção da Physis, que se projecta o dinamismo mental criador, isto é, o acontecer dos sinais-sentires é ocasião para a construção mental, inventiva, em ordem ao conhecimento, à ciência. Aí se dá, segundo o autor, o trânsito do sensorial ao percepcional. Aquilo que era mero sinal, sentir, é agora matéria-prima para a actividade criadora da mente, é agora o conteúdo dos constructos percepcionais, dos perceptos. É, então, no nível percepcional que o mundo exterior acontece significativamente em nós; onde se dá a polarização da psique em sujeito e objecto, entre eu e não-eu, entre eu e a Physis. No nível percepcional, a mente selecciona e combina os dados, o datum, da sensação; tal selecção é já do domínio da experiência que se faz das coisas que são assim criadas. Por essa unificação dos sinais e por essa atribuição de significados, a actividade mental inventiva constrói o objecto, impõe a coisa e fá-lo ajuizando, isto é, atribuindo predicados a sujeitos, acidentes a substâncias4. Assim se inaugura a ciência, pois a ciência não

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Cf. ibidem, p. 187. Ibidem, pp. 209-210: “Um objecto, ao que tenho suposto, é sempre um objecto do pensamento, criado no pensar e pelo pensar, com o conhecimento e pelo conhecimento; quando digo ‘objecto’, por conseguinte, não digo uma coisa inteiramente dada, fora e independente do nosso pensar. Todo o objecto, seja ele qual for, ‘está no pensamento como ideia’ (…). Repito: um objecto é sempre do pensamento; é sempre, afinal, um tecido de ideias; é, por isso mesmo, a ‘parcial representação’ de qualquer outro objecto – de qualquer outro objecto do pensamento. (…) a verdade, portanto, não é o

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é senão elaboração da razão especulativa que intenta estabelecer relações compreensivas entre os fenómenos. Como afirma: “(…) a inteligência – vá de repeti-lo – não é para nós a faculdade de realizar abstracções, extraídas de percepções que nos sejam dadas, mas a de criar as percepções e concepções do Universo – do Universo concreto – por síntese de impressões e de relações inteligíveis”5.

Ora, esta polarização acontece, segundo António Sérgio, pelo facto de sermos capazes de unificar os sinais da sensação, de atribuirmos significado ao que é sentido. Fazemo-lo projectando as nossas categorias compreensivas sobre a disparidade do datum dos estímulos, estabelecendo correlações segundo “regras de correspondência” e “processos de construção”. Tais regras e processos fundam o juízo, que unifica os sinais da sensação num objecto unitário – constructo percepcional – e fornece a matéria-prima para a elaboração dos constructos formais, para a actividade superior do intelecto; o conteúdo do fazer ciência6. Com efeito: “(…) acima dos constructos percepcionais, ou perceptos, encontramos os constructos formais ou científicos, inventados com o fim de inteligir ou explicar (com base no postulado da universal unidade, do Bem intelectual) os fenómenos do mundo das percepções”7.

As formas que surgem nos constructos percepcionais ligam-se entre si, correlacionam-se, permitindo que, a partir deles, se deduza, ou se verifiquem, as mesmas relações que acontecem na Physis. A Physis surge como impostamente ordenada a partir de operações do intelecto. Assim, se denotam dois sentidos para o fazer da ciência: por um lado, a criação intelectiva dos constructos formais, por outro lado, a verificação ou “imposição” dessas estruturas no mundo da física, no mundo exterior. acordo da ideia com a coisa (porque não há o absoluto da dita ‘coisa’), é uma harmonia progressiva de ideias”. 5 SÉRGIO, António. Educação e Filosofia. In: ______. Ensaios, t. I. 1.ª ed. Lisboa: Sá da Costa, 1971, p. 152. 6 Idem, Migalhas de Filosofia, p. 207. “Para mim, porém, o essencial do conceito não é imagem: é a relação; o conceito, segundo creio, não precede o acto do juízo, mas resulta, pelo contrário, da actividade judicatória do nosso espírito; e é esta actividade judicatória da mente (e não a imagem ou a representação) o que está no ponto de partida e arranque do operar efectivo do saber científico”. 7 Idem, Cartas de Problemática, Carta 3, p. 3.

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“A Forma, desde que a inventaram, não somente unifica no seu próprio seio as constatações dispersas do saber empírico (que agora se deduzem como consequências dela) senão permite adivinhar fenómenos que não foram observados até à data, de que ninguém até aí se tinha dado conta”8.

O que aqui se pressupõe é que, do mesmo modo que o nível sensorial fornece a matéria para a constituição e efectivação do nível percepcional, este não mais é do que a ponte entre aquele e o nível formal do intelecto. “[É necessário] distinguir, naquilo a que demos até agora o nome de inteligência, o intelecto propriamente dito e a razão especulativa, sendo o primeiro a função do espírito pela qual ligamos as percepções em sintéticas unidades, em sistemas coerentes [graças à invenção de relações que as unam]; e a segunda, a série de princípios incondicionais que se impõem ao conhecimento, como os de identidade, [de não-]contradição, de terceiro excluso, e, finalmente, o princípio da universal inteligibilidade”9.

Pretende, assim, o constructo formal compreender e explicar quer os fenómenos mentais, quer os fenómenos do mundo percepcionado. Mas serão os constructos formais, formados pela actividade inventiva do intelecto, que explicam e permitem compreender, pois que os organizam por sua actividade também inventiva, os constructos percepcionais? António Sérgio pressupõe uma correlação entre a actividade do intelecto e a natureza que é exterior ao ser pensante. No fundo, o que se afirma é que essa realidade exterior ao pensamento, que em si é acção – actividade  –, configura-se com a actividade do próprio pensamento10. No entanto, é o pensamento que põe essa realidade exterior, é o constructo formal que esclarece, compreende, conhece e diz do ser do mundo da Physis. Ora, é no mínimo discutível que possa ser uma realidade pensante, que admite uma existência independente de si, dizíamos, que possa ser essa realidade pensante a outorgar, por si só, o critério absoluto de verdade ao que lhe é exterior e independente, sem que essa outorga não se funda, ela própria, num outro diverso de si. Se assim não fosse como se poderia avaliar da qualidade do constructo formal? Como se poderia conceber que a capacidade inventiva e criadora da mente estivesse sempre ordenada à correcta Idem, ibidem, p. 6. Cf. idem, Educação e Filosofia, pp. 136-138. 10 Idem, Migalhas de Filosofia, p. 206: “O facto sensível, desde o princípio, é uma espécie de entroncamento de relações actuantes, que o pensar determina cada vez mais, ligando ao conjunto cada vez mais ideias. Não é o abstracto, mas sim o concreto, que a mente fabrica por operações sucessivas” [itálicos do autor]. 8

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explicação e compreensão do mundo da Physis? Mais ainda, concebendo, como o autor o faz, que o mundo da Physis é compreendido por nós como actividade ou Acção, como é que o intelecto conhece, a cada momento, os resultados e as possibilidades das relações novas e constantes que os fenómenos tecem entre si? O autor afasta-se assim de qualquer concepção, mesmo idealista, que possa admitir que a estrutura da consciência seja também moldada pelo contacto continuado com a realidade e, de outro modo, que a realidade externa tenha qualquer tipo de racionalidade intrínseca à qual a razão se possa adequar ou descobrir. Pelo que afirma, podemos deduzir que são os princípios a priori da razão que tornam inteligível a realidade e esta só é aquilo que é quando é fundada pela razão. Deste modo, e como reconhecido pelo próprio autor, a afirmação do seu pensamento filosófico faz-se pela oposição ao empirismo ou, melhor dizendo, a alguns princípios específicos da teoria empirista do conhecimento. O seu racionalismo idealista não admite a possibilidade da existência de um mundo exterior à mente que se apresenta aos sentidos com qualidades e características próprias. Tais qualidades ou características, mais do que descobertas, são dadas pela razão. Isto significa que a impressão sensível não traz à mente quaisquer qualidades específicas e a sua correspondente ideia não é uma mera representação, reprodução, cópia ou imagem desse objecto na mente11. No universo empirista a que António Sérgio se refere, parece que esta crítica se dirige, em particular, a Locke, para quem a imaginação não tem mais do que uma função criadora de imagens que são cópias dos objectos sensíveis; no entanto, em David Hume, a imaginação é mais do que isso – é a faculdade combinatória das ideias simples que cria ideias complexas. Logo nas páginas iniciais da sua obra primeira, na primeira referência explícita à imaginação, David Hume admite a excepção de que as ideias podem ser formadas sem relação com as impressões que se originam nos sentidos e fá-lo em dois sentidos; por um lado, parece admitir um princípio criador que a imaginação possui para, por si só, produzir ideias; por outro lado, embora as ideias se originem a partir de impressões, a imaginação, ainda assim, tem o poder de formar ideias, ditas secundárias, a partir, já não de impressões, mas de ideias que resultaram de impressões. No segundo caso, poderemos sempre afirmar que há sempre um resíduo da impressão que deriva dos sentidos; de qualquer modo, a actividade da imaginação não se debruça, aqui, sobre matéria que resulta directamente dos sentidos, não Cf. ibidem, p. 190.

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trabalha com os dados imediatos da sensação, senão com o conteúdo já percepcionado. Ora, o que aqui é relevante é que a imaginação se assume como uma faculdade que já não é apenas reprodutora de imagens, que opera com os conteúdos das impressões, mas que, para além disso, é também uma faculdade criadora de ideias e, desse modo, criadora de conteúdo do conhecimento, isto é, uma faculdade do conhecimento12. Opondo-se ainda ao princípio empirista da causalidade, que se funda no hábito e no costume, isto é, na forma constante como os fenómenos aparecem aos nossos sentidos, associados uns com os outros, para António Sérgio, a causa é sempre uma criação da mente a partir do conhecimento dos efeitos. Se os fenómenos ou efeitos são conhecidos a partir dos conteúdos da percepção, já a causa resulta de uma inferência produzida pelo intelecto sem qualquer conteúdo sensível – o mesmo se poderá dizer das operações de relação entre os fenómenos, seja por semelhança, conexão ou contiguidade13. No limite, António Sérgio afirma: “A criação do saber é uma criação completa; no limite, não recebe nada, e cria tudo. A consciência científica, portanto, não consiste num prolongamento da consciência perceptiva, mas, muito ao contrário, numa reacção contra ela. (…) O espírito só chega à ‘luz’ racional pela ruptura da ‘treva’ da intuição sensível”14.

O recurso à crença num postulado de uma Unidade comum é inevitável. “(…) o pressuposto básico da busca da inteligibilidade e da investigação científica: o princípio ou postulado da Unidade dos muitos pela participação desses muitos numa Forma comum. (…) é essa faculdade de vaticinar

HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, pp. 34-35: “E agora pergunto se será possível essa pessoa, usando a sua imaginação, suprir esta deficiência para alcançar a ideia dessa cambiante que os seus sentidos jamais lhe transmitiram? Julgo que poucas pessoas serão de opinião que não é possível, e isto pode servir de prova de que as ideias simples nem sempre derivam das impressões correspondentes: contudo o caso é tão particular e tão singular que quase não vale a pena notá-lo e não merece que, só por causa dele, modifiquemos a nossa máxima geral. Mas, além desta excepção, talvez não seja descabido notar aqui que o princípio da prioridade das impressões sobre as ideias deve entender-se com outra limitação, a saber: que assim como as nossas ideias são as imagens das nossas impressões, assim também podemos formar ideias secundárias que são imagens das ideias primárias…”. 13 Cf. SÉRGIO, António, Migalhas de Filosofia, pp. 191-192. 14 Cf. ibidem, p. 196. 12

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coisas novas que julgo eu uma característica do saber científico, derivado do seu dom de unificação formal”15.

De qualquer modo, o postulado não se confina às mais altas operações do intelecto; ocorre, desde logo, na formulação do juízo que permite dizer algo sobre esse mundo sentido, que permite ordenar os sinais, os estímulos da sensação. Ocorre, desde logo, ao nível da percepção, pois os modos de unificação dos sinais são já categoriais, são já informados pelos constructos formais de que, a cada momento, no fazer ciência, dispomos. Assiste-se a um desenvolvimento progressivo na actividade inventiva da mente em ordem a essa Unidade da Ideia postulada16. É esse Uno Formal possível à actividade intelectiva? Poderemos estar a caminhar para os limites da Física e para o fim da ciência? Se assim não for, o Homem fica, como sempre, situado entre dois mundos de que não é senhor – o mundo da Physis e o Mundo da Unidade Formal da Ideia. Aí, talvez os princípios epistemológicos da teoria da probabilidade se possam constituir como regras gerais para o estabelecimento de uma metodologia que permita avaliar a criação e a revisão do conhecimento científico.

Cf. SÉRGIO, António, Cartas de Problemática, Carta 7, pp. 7-8. Idem, Migalhas de Filosofia, p. 203: “Se procuro entender as coisas, é porque parto do princípio a priori de que elas devem ser inteligíveis”.

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“Uma filosofia para as Alforrecas”: Sérgio crítico de Bergson MAGDA COSTA CARVALHO Universidade dos Açores Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

A leitura das páginas de reflexão que António Sérgio dedicou à obra de Henri Bergson constitui, porventura, um dos maiores desafios que se apresentam aos intérpretes do autor francês. O tom irreverente das suas críticas contrasta com a profundidade das reflexões apresentadas e consideramos que, sendo o crítico mais veemente de Bergson em língua portuguesa, Sérgio foi o autor luso que o leu com maior minúcia exegética1. Um pouco à margem do que acontecia com outros colegas geracionais, António Sérgio dedicou-se mais ao estudo da obra bergsoniana propriamente dita do que ao bergsonismo enquanto orientação especulativa, o que confere à sua escrita um momento único de diálogo directo com os pressupostos e com as teses expressas por Bergson em obras como o Essai sur les données immédiates de la conscience (1889), Introduction à la métaphysique (1903) ou L’évolution créatrice (1907). Próximo da retórica divulgada em França pelo feroz anti-bergsonista Julien Benda, Sérgio desconcerta o leitor através do tom provocador dos comentários com que tempera os momentos da escrita de maior abstracção argumentativa: Bergson é apontado com epítetos como “o autor filosófico mais preso ao banco da Caverna platónica”2, um “filósofo para donzelinhas”3 ou o “escravo da tirania da Imaginação”4. O seu pensamento é descrito como “pirotécnica argumentação”5,

Nas palavras de Vasco de Magalhães-Vilhena, a crítica sergiana ao anti-intelectualismo bergsoniano constitui a mais vigorosa e lúcida de quantas existem em qualquer língua. MAGALHÃES-VILHENA, Vasco. António Sérgio: o idealismo crítico e a crise da ideologia burguesa. Lisboa: Edições Cosmos, 1975, p. 35. 2 SÉRGIO, António. Em torno da «ilusão revolucionária» de Antero. In: ______. Ensaios, t. V. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1981, p. 156. 3 Ibidem, p. 145. 4 Ibidem, p. 144. 5 Idem. Cartas despretenciosas a um anti-intelectualista bergsoniano. Carta sexta. Seara Nova, Revista de Doutrina e Crítica, Lisboa, n.o 381, 22 de Março de 1934, p. 328. 1

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“prestidigitação vocabular”6 ou uma “filosofia para Alforrecas”7 – expressão que escolhemos como título da nossa reflexão e a cujo sentido regressaremos. A irreverência desta hermenêutica verifica-se sobretudo em momentos como estes em que, justificando os seus invulgares dotes de prosador, Sérgio afirma de modo contundente sobre Bergson que “quem o come em uvas, não o bebe em vinho”. E, contudo, Sérgio não recusa a degustação. A nossa reflexão centrar-se-á numa sistematização dos principais aspectos da posição do pensador português perante o legado de Bergson, evidenciando o que nos parecem ser o alcance e os limites da sua análise. Ressalvamos desde já que não pretendemos esgotar o teor das críticas de Sérgio, pelo que encaramos a nossa contribuição como um convite para que os textos e temas que iremos abordar sejam revisitados. Dividimos a exposição em três momentos distintos: começaremos por uma brevíssima introdução à recepção do bergsonismo em Portugal; abordaremos depois as circunstâncias gerais da aproximação de Sérgio a Bergson; e, por fim, apresentaremos as posições críticas sergianas propriamente ditas.

1. A recepção do bergsonismo em Portugal É hoje claro o importante papel que a obra de Henri Bergson desempenhou junto da formação de determinadas orientações do pensamento filosófico português do século XX. Numerosos foram os autores lusos que incluíram contributos do filósofo francês nas suas reflexões, sedimentando determinadas mundividências com recurso a conceitos e perspectivas vincadamente bergsonianos. Contudo, estas perspectivas presentes no pensamento português são de carácter plural – compostas por diversas e diferentes linhas de leitura –, não tendo existido no nosso País o que se pudesse caracterizar como uma “escola bergsoniana”. O que encontramos nas páginas dos pensadores portugueses é sobretudo um diálogo com ideias e modos de filosofar entendidos como sintomas de uma renovação especulativa que se pretendia trazer para a cultura nacional. Em traços muito gerais e sinópticos, podemos dividir a recepção portuguesa da filosofia de Bergson em três núcleos distintos: as primeiras sintonias de pensamento, implícitas e explícitas, com a mundividência

Idem. Cartas despretenciosas a um anti-intelectualista bergsoniano. Carta segunda. Seara Nova, Revista de Doutrina e Crítica, Lisboa, n.º 381, 15 de Fevereiro de 1934, p. 243. 7 Idem, Em torno da «ilusão revolucionária» de Antero, p. 168. 6

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bergsoniana; a influência directa de Bergson na filosofia criacionista de pendor leonardino; e a oposição e crítica às principais ideias bergsonianas. No primeiro núcleo, incluímos a obra de Sampaio Bruno, cuja ausência declarada de referências a Bergson contrasta com a proximidade a temas e perspectivas relacionadas, por exemplo, com o modo bergsoniano de pensar a temporalidade, a dinâmica evolutiva da existência ou a contestação da hegemonia positivista. Por outro lado, em termos de primeiras sintonias explícitas, reportamo-nos concretamente ao estudo de psicologia A dinâmica do pensamento, publicado em 1919 por António Aleixo de Sant’Anna Rodrigues, assistente na Faculdade de Medicina de Lisboa, responsável pela primeira tradução para o português de excertos da obra Matière et Mémoire, publicada por Bergson em 18968. No segundo núcleo da exegese portuguesa, reportamo-nos à obra e ao magistério de Leonardo Coimbra, cuja concepção dinamista da Vida e do Espírito promoveu uma forte aproximação ao pensamento de Bergson, quer em termos da importação de modos de leitura da realidade, quer também em tom de acurada crítica. Pensadores da linhagem leonardina como José Marinho, Álvaro Ribeiro ou Delfim Santos – este último protagonizou um importante encontro com Bergson, em Paris, em 19359 – assumiram nas suas obras determinadas posturas de cunho bergsoniano, sobretudo no que respeita a uma leitura metafísica dinâmica cuja relevância impunha ser continuada e desenvolvida. Mais do que um corpo discipular, estes autores viam-se como promotores e continuadores de um legado filosófico para o qual a obra e a figura de Bergson constituíam incontornáveis pontos de referência. É neste sentido que consideramos que os pensadores da órbita leonardina se identificavam mais com o bergsonismo enquanto movimento filosófico, em O estudo de Sant’Anna Rodrigues representa um importante cruzamento entre determinadas teses da filosofia bergsoniana e estudos provenientes de ciências da vida como a psicologia. Esta inter-relação era, aliás, um dos principais objectivos que animou a obra de Bergson, tendo o filósofo investido largamente no estudo positivo dos fenómenos vitais. Contudo, os principais leitores e comentadores de Bergson em língua portuguesa deixaram por explorar esta via, centrando-se essencialmente na dimensão gnoseológica e metafísica do seu pensamento. É ainda curioso ressalvar que Sant’Anna Rodrigues enviou um exemplar de A Dinâmica do Pensamento a Bergson, que consta ainda hoje no espólio do filósofo depositado na Bibliothèque Littéraire Jacques Doucet, em Paris. Bergson respondeu ao autor português numa pequena carta onde agradece o gesto, cf. BERGSON, Henri. Correspondances. Paris: Presses Universitaires de France, 2002, p. 892. 9 Veja-se a este propósito o nosso estudo “Delfim Santos e Henri Bergson: proximidade e divergências”. Philosophica. Revista do Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, n.o 30 (2007), pp. 245-275. 8

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especial na sua transversal importância no todo da filosofia contemporânea, do que propriamente com análises exegéticas verticais das obras de Bergson. No terceiro e último núcleo da hermenêutica lusa que a nossa análise sistematiza, referimo-nos concretamente a dois críticos: o P.e Diamantino Martins, jesuíta que contesta sobretudo os fundamentos gnoseológicos da perspectiva bergsoniana; e António Sérgio, cujas críticas assentam na dupla perspectiva que engloba uma dimensão metafísica, aposta ao que considerava ser uma excessiva valorização do dinamismo do real em detrimento da permanência, e uma dimensão gnoseológica preponderante, dedicada sobretudo à crítica da concepção bergsoniana de inteligência. Importa ainda referir que o conceito de inteligência constitui um dos aspectos da obra bergsoniana que mais censuras sofreu por parte dos autores portugueses, encontrando-se a sua crítica quer nas análises de António Sérgio e Diamantino Martins, quer nas leituras de Leonardo Coimbra ou de Delfim Santos. Sem nos querermos antecipar no que respeita às nossas considerações acerca das críticas sergianas, avançamos apenas que este facto nos parece derivar da imposição hermenêutica ao texto de Bergson de uma matriz filosófica cartesiana. Regressaremos a esta ideia na devida ocasião.

2. A aproximação de António Sérgio a Henri Bergson António Sérgio tece considerações sobre Bergson em diversos momentos da sua vasta e dispersa obra. Contudo, são três os momentos em que privilegia o desenvolvimento da sua crítica: o diálogo “Em torno da «ilusão revolucionária» de Antero”, publicado pela primeira vez na Seara Nova, em 1934, e reformulado para integrar os Ensaios, dois anos mais tarde; uma série de sete textos em forma de cartas, saídos no mesmo periódico, também em 1934, intitulados “Cartas despretenciosas [sic] a um anti-intelectualista bergsoniano”; e, por último, duas reflexões de 1935, igualmente na Seara Nova, “Em torno da teoria bergsoniana sobre o instinto e sobre as suas relações com a inteligência”. São estes os textos que orientam a nossa reflexão. De acordo com o que António Sérgio nos relata em 1955, no Prefácio da segunda edição ao tomo V dos Ensaios, a sua escrita aproximou-se da obra de Bergson por via indirecta, na sequência de um pedido que lhe foi formulado para que escrevesse uma crítica a um estudo publicado sobre Antero de Quental. Tratava-se da obra Antero: algumas notas sobre o seu drama e a sua cultura, publicada em 1934 por Sant’Anna Dionísio e que referenciava a teoria bergsoniana da inteligência. Mas o interesse de António Sérgio não era puramente teórico ou especulativo. Como ele próprio afirma, não sem uma dose considerável de ironia

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e mordacidade, movia-o também um motivo “cívico” (que caracteriza como social, moral, educacional e humano10). Sérgio considerava necessário esclarecer que não se orientava por uma estrita inclinação polemista, antes encarava a crítica a Bergson como uma espécie de missão em prol da própria filosofia portuguesa. Em seu entender, a aversão lusa à clareza de pensamento e a sua excessiva proximidade a uma “literatura fácil” encontrava na obra bergsoniana um reforço evidente. Criticar Bergson seria, então, uma espécie de nobre missão pedagógica à escala nacional. (Julgamos escusado proceder aqui a uma contestação detalhada destas imponderadas afirmações que, de tão pouco fundamentadas, desconsideram quer o pensamento filosófico português, quer a própria obra de Bergson. Consideramos que o tom imponderado que exalam é, sobretudo, fruto da retórica sergiana). Sérgio visava, então, sobretudo os pensadores próximos da mundividência leonardina, e as suas posições acerca do pensamento bergsoniano surgiam como mais um estandarte de batalha das polémicas públicas travadas entre si e aqueles outros filósofos nacionais. Em bom rigor, Sérgio afirma que tropeçara à força em Bergson durante duas décadas, convivendo com “discípulos sectários” que o confrontavam com a necessidade de se manifestar acerca do bergsonismo. O convite para a recensão crítica surgido em 1934 apresentara-se, então, como a oportunidade de aceitar o desafio há tanto tempo adiado. “Não sei escrever senão provocado – confirmava mais tarde –, mas custa-me a não escrever quando me incitam”11. Conforme avisa o leitor em diversos momentos da sua escrita, a análise de António Sérgio não visava o pensamento de Bergson na sua totalidade, mas apenas a sua dimensão gnoseológica. Assim sendo, começa por dirigir-se à primeira obra de Bergson, o Essai sur les données immédiates de la conscience (1889), estudo que apresentava uma leitura dinamista da vida interior da consciência individual e criticava determinadas orientações da psicologia da época. Bergson expunha uma contestação clara às teses associacionistas que aceitavam o enquadramento espacial dos fenómenos psicológicos, tratando-os com os mesmos mecanismos de estratificação e solidez característicos do modo de pensar as coisas materiais exteriores. Era esta “psicologia bergsonista” que impregnava, no entender de Sérgio, o estudo de Sant’Anna Dionísio sobre Antero, o que explica que o poeta-filósofo açoriano ocupe apenas um terço do diálogo sergiano que, a SÉRGIO, António. Prefácio da segunda edição. Ensaios, t. V. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1981, p. 5. 11 Idem. Em torno da teoria bergsoniana sobre o instinto e sobre as suas relações com a inteligência. Seara Nova, Lisboa, n.º 434, 11 de Abril de 1935, p. 19. 10

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julgar pelo menos pelo título – “Em torno da «ilusão revolucionária» de Antero” –, lhe deveria ter sido integralmente dedicado. Antero parece-nos, por isso, apenas o pretexto para que Sérgio exponha uma exegese das ideias e do texto bergsoniano que há muito fermentava, aguardando apenas a ocasião propícia para se manifestar. Contudo, independentemente dessas circunstâncias polémicas de aproximação de Sérgio à obra de Bergson, e apesar do tom polemista que a situação assumiu12, é inegável que o pensador português construiu uma importante e incontornável interpretação do pensamento bergsoniano e é dela que daremos nota de seguida.

3. A posição crítica de António Sérgio 3.1. A perspectiva gnoseológica da crítica sergiana: uma epistemologia com virtude hipnótica António Sérgio situa-se, então, no ponto de vista gnoseológico, a partir do qual procura denunciar o efeito “hipnótico” que detectava em certos leitores menos avisados de Bergson. O autor dedica-se a evidenciar na noção bergsoniana de inteligência uma série de inconsistências e fragilidades. Como vimos, em Portugal a crítica a esta noção não foi exclusiva do pensador dos Ensaios, encontrando-se mesmo em autores que, de um modo geral, se identificavam com o pensamento de Bergson. Aliás, sobretudo nas primeiras décadas do século XX, o conceito de inteligência constava entre as apreciações dos maiores críticos do bergsonismo ao nível internacional. Em França, por volta de 1900, racionalistas como o já mencionado Julien Benda ou Léon Brunschvicg entreviam nas obras de Bergson um perigoso irracionalismo a combater e situavam precisamente na inteligência o núcleo das dissidências. Começamos por entender esse movimento crítico generalizado como sinal dos desafios decorrentes da inovação trazida pela obra do filósofo francês. É o próprio Bergson que aponta para o trabalho filosófico como uma espécie de via dolorosa de inversão das inclinações naturais do pensamento, o que – tal Em 1935, um ano após a publicação na Seara Nova das “Cartas despretenciosas a um anti-intelectualista bergsoniano”, Delfim Santos promove um encontro em Paris com Bergson. Na primeira carta que lhe dirige, datada de 6 de Outubro, informa-o de que existiam em Portugal alguns “discípulos” que ensinavam e publicavam sobre a sua obra, e que se envolviam em polémicas na defesa das suas ideias. Esta e outra carta de Delfim Santos a Bergson são pertença do espólio do filósofo francês e estão depositadas na Bibliothèque Jacques Doucet em Paris, tendo sido por nós encontradas em 2007. Está já prevista a sua inclusão na reedição da publicação da correspondência de Delfim Santos, da responsabilidade do Prof. Doutor Filipe Delfim Santos, filho do filósofo português.

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como prenunciado figurativamente por Platão na sua famosa alegoria – naturalmente acarreta uma violenta resistência e, até, uma categórica recusa por parte do seu auditório: “O nosso espírito […] pode instalar-se na realidade móvel – afirmava Bergson –, adoptar a sua direcção constantemente variável, enfim captá-la intuitivamente. Para isso será necessário que ele se violente, que contrarie o sentido da operação pela qual pensa habitualmente, que regresse ou antes recrie continuamente as suas categorias. […] Filosofar consiste em inverter a direcção habitual do trabalho do pensamento”13. Pois que melhor forma de atestarmos o cumprimento deste desiderato por parte da obra bergsoniana do que o surgimento das reacções acaloradas acerca do conceito de inteligência por parte de críticos como Benda, Brunschvicg ou Sérgio? Procuraremos, então, enunciar de modo breve e conciso como entendia Bergson o conceito de inteligência, de forma a compreendermos posteriormente o teor das críticas do pensador português. Esta foi uma noção que se consolidou no percurso bibliográfico do filósofo: no Essai, de 1889, era entrevista essencialmente como a função prática do pensamento, a faculdade encarregue de conceber fenómenos no espaço. Será em 1903, no artigo “Introduction à la métaphysique”, que Bergson irá desenvolver o que entende por “função prática”: a inteligência está vocacionada para o conhecimento da matéria, pelo que funciona mediante “percepções sólidas” e “concepções estáveis”, pontos de apoio seguros para que a nossa actividade seja capaz de fazer uso do que a cerca em proveito de uma integração bem sucedida do indivíduo no meio exterior14. Quatro anos mais tarde, em L’évolution créatrice, o filósofo contextualiza esta explicação no seu evolucionismo metafísico, identificando a inteligência com o modo biológico da acção humana: a função prática da inteligência está na base da inserção de cada indivíduo, enquanto corpo, no meio que o rodeia. Ao traduzir as relações existentes entre as coisas exteriores, a inteligência traça uma espécie de mapa de coordenadas que permite ao sujeito preparar e orientar a sua acção. Assim sendo, em termos propriamente evolutivos, a inteligência compõe uma das três direcções que a vida adopta ao manifestar-se (sendo as restantes o torpor vegetativo e o instinto animal), sendo preponderante na nossa constituição assim como o instinto o é nos animais e o torpor nas plantas. A inteligência é, portanto, a sede da actividade fabricadora humana

BERGSON, Henri. Introduction à la métaphysique. In: ______. La pensée et le mouvant. Paris: Presses Universitaires de France, 2009, p. 213. Sublinhados do autor. 14 Ibidem, p. 212. 13

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(a faculdade de fabricar utensílios para fabricar utensílios15). A partir de L’évolution créatrice (1907), a inteligência irá ser sempre conotada pelo filósofo com a percepção da estabilidade material, da regularidade com que o pensamento caracteriza a solidez exterior das coisas que nos cercam e que serve de base aos procedimentos gnoseológicos das ciências de pendor matemático16. Mas onde a posição bergsoniana se torna verdadeiramente polémica é no facto de Bergson retirar como consequência da função prática da inteligência a sua limitação em termos de compreensão do fundo íntimo da realidade movente. Recorrendo à célebre imagem do cinematógrafo – que reproduz o movimento pela justaposição exterior de diversas imagens –, para Bergson, a inteligência apenas nos poderá fornecer uma aparência ou ilusão do dinamismo último do real que, em si mesmo, só é apreendido pelo esforço mental intuitivo. É esta a origem do suposto, e muito contestado, “anti-intelectualismo” do autor. António Sérgio não aceita o estatismo de uma concepção que, em seu entender, confundia “imaginação sensível”, no sentido declaradamente cartesiano de representação de imagens na extensão sensível17, e “inteligência”, ou seja, a faculdade dinâmica e criadora18 de juízos mediante a interpenetração e a interdependência de ideias. No seu entender, enquanto actividade por excelência, onde cada ideia apenas vive pela vida inteira da organização mental19, a inteligência caracteriza-se por um dinamismo constitutivo cuja actividade está longe de se resumir à justaposição exterior de partes desconexas. Assim sendo, a tese bergsoniana segundo a qual o intelecto reconstruiria visões da realidade mediante uma colecção avulsa de partes sobrepostas é, no entender de Sérgio, a mais absurda das considerações. Na verdade, continua o autor, os juízos não se reduzem à junção de partes nem são o resultado da conjugação de conceitos atomisticamente concebidos, antes existe uma anterioridade mental do todo em relação às partes: Idem. L’évolution créatrice. Édition critique sous la direction de Frédéric Worms, dossier critique par Arnaud François. Paris: Presses Universitaires de France, 2007, p. 612. 16 António Sérgio tece igualmente uma série de considerações acerca do modo como Bergson articula uma noção estática de inteligência com uma leitura parca e insuficiente dos procedimentos científicos no que respeita à compreensão da essência da realidade. Porém, dado o âmbito desta reflexão, não nos deteremos na sua análise. 17 SÉRGIO, António. Cartas despretenciosas a um anti-intelectualista bergsoniano. Carta Quinta. Seara Nova, Lisboa, n.º 380, 15 de Março de 1934, p. 311. 18 Idem. Cartas despretenciosas a um anti-intelectualista bergsoniano. Carta Terceira. Seara Nova, Lisboa, n.º 377, 22 de Fevereiro de 1934, p. 261. 19 Idem. Cartas despretenciosas a um anti-intelectualista bergsoniano. Carta Sexta. Seara Nova, Lisboa, n.º 381, 22 de Março de 1934, p. 332. 15

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“[…] quando nós emitimos qualquer juízo – por exemplo: «a gaivota voa» –, não existe nesse acto […] primeiro a ideia da gaivota mais a ideia de voadora, só depois conectadas por tal juízo; não, nada disso: partimos da percepção de um todo concreto, que se desenvolve em objecto de tal juízo quando nós o dividimos nas duas partes: gaivota, voo. (Assim como o todo precede as partes, a actividade relacionante precede os termos). O juízo não é uma associação de conceitos, ligados numa frase de predicação: o conceito é que é um produto do juízo”20.

Aliás, Sérgio contesta qualquer leitura discursiva do modo de ser próprio da inteligência, afirmando que por se exprimir em discurso não significa que se exerça intimamente como tal21. Quanto a si, seria essa a fonte de erro que levara autores como Bergson a considerar que o pensamento intelectual constrói o todo com as partes, quando o que sucede é um procedimento a dois tempos: a inteligência começa por ir do todo às partes, apresentando um modo de compreensão holístico, para que posteriormente o discurso religue os diversos termos na actividade relacionadora central. Na leitura sergiana, Bergson teria, então, resvalado para o vício associacionista que a sua leitura da psicologia da época pretendera inicialmente combater. Daí que, ao contrário do que o filósofo francês queria fazer crer, a inteligência não se encontra limitada pelo plano espacial sensível, procurando referenciar todos os seus conteúdos ao modo artificial e inflexível de entender a matéria, mas projecta as ideias para lá dessa forma limitada e atomista de percepcionar o real. Para Sérgio, Bergson ficara refém da dimensão imaginativa dos procedimentos intelectuais e, se bem que seja certo que as imagens são elementos fundamentais no processo de formação das ideias, a actividade mental não pode ser reduzida ao seu âmbito. Apesar de alguns dos conteúdos da inteligência incidirem sobre dados imagéticos, há ideias que ultrapassam meros registos sensíveis espacializados, considera o autor. Assim sendo, a inteligência é uma faculdade apta a conceber o dinamismo próprio da realidade22, já que opera com base na interdependência e acção recíproca das ideias entre si. Ao contrário do que afirmara Bergson, a Idem, Em torno da «ilusão revolucionária» de Antero, p. 141. Idem. Em torno da teoria bergsoniana sobre o instinto e sobre as suas relações com a inteligência. Continuação do n.º 434 da Seara Nova. Seara Nova, Lisboa, n.º 437, 30 de Maio de 1935, p. 74. 22 António Sérgio afirma que é possível inteligir cientificamente o movimento, uma vez que uma lei ou uma equação são relações entre variáveis e não entre sólidos. Cf. Em torno da «ilusão revolucionária» de Antero, p. 138. 20 21

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inteligência não é o domínio do estático e do sólido, mas do movimento por excelência. Sérgio vai ainda mais longe: o pensamento apenas reconhece o modelo organizacional nos fenómenos vitais por analogia com o seu próprio modelo relacional23, já que o movimento da inteligência é entendido pelo autor como o paradigma de qualquer outra forma de movimento. A crítica de Sérgio à concepção bergsoniana de inteligência insistia ainda numa falha de coerência interna no raciocínio do filósofo francês: pois como poderia Bergson atribuir à inteligência a função prática de nos orientar na acção exterior, se a sua função é projectar num conjunto de dados estanques uma realidade em permanente mudança? Se tudo é movimento, concluía António Sérgio, o sólido inerte apresentado pelo intelecto é uma tradução falsa e ilusória do real que, consequentemente, terá grandes limitações no que respeita a situar com sucesso prático a actividade do indivíduo24. Enquanto intérpretes das reflexões bergsonianas e sergianas, consideramos que o cerne do debate reside, então, no confronto entre duas formas de entender a organização da vida mental. Bergson pugna pela defesa de uma actividade psíquica que tem na inteligência a apetência para o material e cuja expressão máxima se encontra num modo de conhecimento intuitivo; Sérgio, recusando qualquer tipo de conhecimento extra-intelectual25, identifica a inteligência com a expressão por excelência da vida mental, considerando que o dinamismo que a caracteriza lhe permite, por si só, conhecer a realidade. Em primeira instância, parece-nos que os dois correlatos do conceito de inteligência não coincidem em termos de âmbito semântico, pelo que as posições dos dois autores não se nos afiguram como irredutivelmente contrárias ou incomunicáveis. Sérgio alarga à inteligência algumas das apetências que Bergson opta por conceder à intuição: quando o autor português apresenta a actividade intelectual como um pensamento primacial do todo que, apenas num segundo momento, referencia as partes a esse todo, parece-nos bastante próximo do modo como Bergson se refere à relação entre o conhecimento intuitivo e os dados da inteligência. O pensador francês considerava que a “simpatia espiritual” intuitiva, pela qual o sujeito coincide interiormente com a realidade, só se torna possível mediante uma “camaradagem” com as manifestações exteriores inteligíveis dessa realidade26. Idem. Em torno da teoria bergsoniana sobre o instinto e sobre as suas relações com a inteligência. Seara Nova, Lisboa, n.º 434, 11 de Abril de 1935, p. 24. 24 Idem. Em torno da teoria bergsoniana sobre o instinto e sobre as suas relações com a inteligência. Continuação do n.º 434, Seara Nova, n.º 437, p. 70. 25 Ibidem, p. 74. 26 BERGSON, Henri. Introduction à la métaphysique. In: ______. La pensée et le mouvant, p. 213. A intuição é uma forma de conhecimento imediato, sensível e temporalmente 23

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Ou seja, os conhecimentos materiais são bases indispensáveis para que o esforço intuitivo se torne possível27 e, assim sendo, no nosso entender o que diferenciaria neste ponto Sérgio e Bergson seria o sentido do movimento que vai de uma a outra forma de conhecimento: para Sérgio, começamos por conhecer o todo, para Bergson chegamos lá através da familiaridade com as partes28. Em segundo lugar, consideramos que as leituras de Sérgio, de assumido tom cartesiano, incorrem num certo estatismo hermenêutico ao sujeitarem o texto de Bergson a uma metodologia analítica que não se lhe adequa29. Em bom rigor, Bergson inscreve-se numa linha radicalmente distinta daquela que Descartes havia cunhado alguns séculos antes com a imagem da mathesis universalis como paradigma do conhecimento filosófico. O autor de L’évolution créatrice propõe um novo modelo de inteligibilidade especulativa, já não à imagem das ciências matemáticas, mas escolhendo como paradigma as várias ciências da vida que, no início do século XX, haviam já afirmado a sua credibilidade. Se a filosofia se torna, então, ciência à imagem da biologia, isso implica privilegiar a inteligibilidade dinâmica dos factos positivos em detrimento dos procedimentos demonstrativos rígidos e impassíveis. Sem abandonar o rigor, o critério de inteligibilidade é agora o de uma “metafísica positiva”30 que procura importar para o campo da metafísica a positividade



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situado, é uma visão directa das realidades singulares pela consciência individual. Para Bergson, o conhecimento intuitivo é um esforço, correspondendo ao instinto tornado desinteressado, consciente, capaz de reflectir sobre o seu objecto e de o ampliar indefinidamente. Cf. L’Évolution créatrice, p. 178. Não se pode negligenciar o facto de que a expressão superior da vida psicológica é, para Bergson, a intuição, que não é imediatez nem espontaneidade, antes fruto de um trabalho interior árduo e contínuo. Um dos aspectos que não teremos ocasião de desenvolver em termos de proximidade entre os dois autores prende-se com uma não consideração estática das faculdades mentais: Sérgio encontrava-se mais perto de Bergson do que explicitamente aceitava ao apresentar o Espírito enquanto actividade (e não “coisa”), no seio do qual não faria sentido falar de “inteligência” ou de “instinto”, mas de “actividade intelectual” e de “movimentos instintivos” (SÉRGIO, António. Em torno da teoria bergsoniana sobre o instinto e sobre as suas relações com a inteligência. Continuação do n.º 434 da Seara Nova, Seara Nova, n.º 437, p. 74). Ora, conforme tão bem desenvolveu Leonardo Coimbra, o cerne da filosofia bergsoniana consiste precisamente numa consideração “anti-cousista” da realidade mental. António Sérgio segue não apenas o modelo cartesiano, mas, de um modo geral, o pendor especulativo do racionalismo moderno, referenciando autores como Malebranche, Espinosa e Leibniz. BERGSON, Henri. Mélanges. Paris: Presses Universitaires de France, 1972, pp. 463-464, 652. A fusão que esta expressão convoca entre as dimensões positiva e espiritual da

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científica dos fenómenos vitais. Conforme afirma Henri Gouhier, o bergsonismo representa, em primeira instância, o fim da era cartesiana31. Para além disso, António Sérgio isola a dimensão gnoseológica ou epistemológica da obra de Bergson, tecendo sobre ela as suas considerações críticas, quando na realidade não existe uma gnoseologia bergsoniana como tal. O autor francês considera não ser possível conceber uma teoria do conhecimento desligada de uma teoria da vida: a teoria do conhecimento sem a teoria da vida não chega a compreender como foram evolutivamente constituídas as estruturas gnoseológicas humanas, nem a forma de ultrapassar os seus limites; a teoria da vida sem a teoria do conhecimento não opera a necessária crítica do modo como a inteligência lê a realidade, ficando presa aos seus esquemas estáticos e cristalizados32. Essencialmente a partir de L’évolution créatrice (1907) não é possível conceber a inteligência fora dos quadros positivos evolutivos, uma vez que o que interessa ao pensador é precisamente a génese desta faculdade integrada na sua teoria da vida: a matéria surgiu como um imenso órgão ao dispor dos vertebrados mais complexos que, para dela desfrutarem, foram dotados com a inteligência. Para Bergson, o intelecto é a própria vida que se olha de fora, exteriorizando-se de forma a colocar os seres vivos em pleno uso da materialidade. Assim sendo, quer esta ausência de contextualização da teoria do conhecimento numa teoria da vida, quer a proximidade de António Sérgio ao paradigma filosófico cartesiano provocam por vezes no leitor alguma apreensão, como se uma violência hermenêutica fizesse estalar o texto bergsoniano, dificultando qualquer frutífera hipótese de cooperação entre as duas perspectivas. Por seu lado, o modo como Bergson caracterizou a inteligência, insistindo na sua insuficiência e parco alcance gnoseológico, permitiu que se instalassem em diversos meios as críticas contra o seu pretenso “anti-intelectualismo”. E é curioso o modo como em 1934, no mesmo ano em que Sérgio se debatia nas páginas da Seara Nova com as suas “Cartas despretenciosas”, Bergson escreve numa carta a H. Gouhier:

realidade – roçando quase os limites do paradoxo ou até mesmo do oximoro –, tem como principal objectivo a importação da positividade científica para o campo da metafísica e a consequente certificação universal da última como uma ciência rigorosa, ao lado de saberes como a matemática, a física ou a biologia. Veja-se o nosso estudo Natureza criadora: o projeto bio-filosófico de Henri Bergson. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2012. 31 GOUHIER, Henri. Introduction. In: BERGSON, Henri. Œuvres. Édition du Centenaire. Textes annotés par André Robinet. Paris: Presses Universitaires de France, 1959, p. XIV. 32 BERGSON, Henri. L’Évolution créatrice, p. IX.

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“[…] foi por um erro que me classificaram entre os detractores da ciência e da inteligência; mas talvez eu seja um pouco responsável por este erro, porque insisti sempre no domínio da intuição, conhecimento do espírito pelo espírito, que me parecia ter sido negligenciada pelos filósofos, enquanto que me alarguei menos sobre o que era admitido por toda a gente acerca do conhecimento da matéria, sobre a ciência propriamente dita, sobre a inteligência. Desde a Évolution créatrice, contudo, expus extensamente que a inteligência, dirigida para a matéria, podia, neste domínio, atingir o absoluto; fui, então, tão longe neste ponto no sentido intelectualista como «todo o mundo», mais longe mesmo; coloquei a ciência mais alto do que o fizeram, ou farão algum dia, a maior parte dos cientistas”33.

Neste ponto da obra bergsoniana, teríamos, então, que colmatar a letra com o espírito do texto, de modo a compreendermos as reais intenções do seu autor34. Não terá sido por acaso que, essencialmente a partir do final dos anos 20, autores como o racionalista Brunschvicg invertem o sentido das suas críticas ao anti-intelectualismo, exaltando desta feita a concepção bergsoniana enquanto denúncia de uma leitura falsa da inteligência35. Aliás, um dos filões da exegese bergsoniana tem sido a insistência na tese de que considerar Bergson como anti-intelectualista será uma ilegítima consideração do seu pensamento36. O próprio Bergson explicitou numa outra carta que a sua opção semântica pelo conceito de inteligência foi fruto de uma escolha consciente que visava englobar apenas as faculdades discursivas

Idem, Correspondances, p. 1470. É Delfim Santos que, numa das páginas do seu Diário Íntimo, inédito – que tivemos o privilégio de conhecer pela amabilidade dos seus herdeiros, Prof. Filipe Delfim Santos e Dr.ª Manuela Pinto dos Santos –, afirma que Bergson teria evitado muitos inimigos se tivesse feito a distinção entre a “inteligência espiritual” e a “inteligência material”. 35 Sobre as alterações na recepção de Bergson em França, veja-se AZOUVI, François. La gloire de Bergson. Essai sur le magistère philosophique. Paris: Gallimard, 2007, pp. 249-250. 36 Remetemos neste ponto para os argumentos de Léon Husson no estudo L’intellectualisme de Bergson. Genèse et développement de la notion bergsonienne d’intuition, de 1947, que considerava que Bergson tinha optado por circunscrever o sentido do conceito de inteligência à aptidão para decompor e recompor a materialidade, dissociando-a da reflexão do espírito sobre si mesmo, como forma de solucionar os desvios advindos à filosofia pela inclinação natural do pensamento para utilizar os procedimentos da acção como norma da actividade reflexiva. No entender deste autor, através da clara separação entre agir e reflectir, por um lado, e da introdução operativa da intuição, por outro, Bergson conseguira defender a ideia de uma inteligibilidade do real e, consequentemente, a confiança de que o espírito humano se encontra apto a captar essa inteligibilidade. Nesse sentido, Husson concluía pelo “intelectualismo” bergsoniano. 33

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do espírito originariamente orientadas para pensar a matéria37. Tratou-se, portanto, de um sacrifício conceptual em nome da clarividência do seu projecto especulativo, facto que não nos parece dever ser negligenciado. Desta feita, talvez toda a celeuma em torno da epistemologia bergsoniana de “virtude hipnótica”, para a qual alertava António Sérgio, mais não fosse do que um conjunto de ruídos ou interferências de comunicação, cuja solução passaria pela sintonização adequada entre comprimentos de onda que, afinal, não se encontravam tão distantes. 3.2. A perspectiva metafísica da crítica sergiana: “uma filosofia para as Alforrecas” A contestação de António Sérgio das concepções propriamente metafísicas do pensamento bergsoniano constituem uma pequena parte das suas análises já que, como vimos, o autor está sobretudo interessado na crítica aos processos mentais da inteligência. Contudo, nalguns momentos o pensador português expõe importantes objecções e dúvidas acerca de questões metafísicas que nos ajudam a contextualizar a sua posição geral perante o pensamento bergsoniano. Terminaremos com elas a nossa reflexão. É num pequeno excerto do diálogo “Em torno da «ilusão revolucionária» de Antero” que Sérgio recorre à sua típica retórica provocadora para desferir golpes críticos contra o pensamento bergsoniano. Pela voz do arrebatado e impetuoso Reinaldo, apresenta a sua mais curiosa – e, quanto a nós, cómica – apreciação crítica de Bergson: “Mas que é a psicologia do Sr. Bergson, senão a psicologia das Alforrecas? Que é a liberdade do Sr. Bergson, senão a liberdade das Alforrecas? Que é a filosofia do Sr. Bergson, senão uma filosofia para as Alforrecas, e que a todos os apresenta como Alforrecas?”38

O que teria, então, movido o pensador português para tão arrojada, e aparentemente despropositada, imagem? O fragmento citado surge no contexto de um protesto contra a concepção bergsoniana do fundo último da vida e do próprio homem. Para Sérgio, a imagem do élan vital resumia a realidade à variação e ao fluxo permanente, faltando-lhe estrutura estável e organização vertebral. Nesse seguimento, a ordem psíquica saldar-se-ia na inconsistência e na falta de identidade interna, no inconsistente e no fugidio. Nas suas palavras, o ideal de homem BERGSON, Henri. Correspondances, p. 906. SÉRGIO, António. Em torno da «ilusão revolucionária» de Antero, p. 168.

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supostamente apresentado por Bergson seria limitado aos protótipos da menina histérica, do cavalheiro instável, do salta-pocinhas, numa só palavra, do invertebrado. Sérgio visa, então, salvaguardar “o que é vertebrado e viril”39, levando a sua argumentação ao absurdo: “Por muito variável que seja a gaivota, é sempre gaivota: não se muda em pombo. É vê-los de aqui, – as gaivotas e os pombos. As gaivotas do rio são as gaivotas do rio, e os pombos da praça são os pombos da praça. Voejam as gaivotas em torno dos barcos; os pombos, da estátua de D. José. Repara como às vezes se abeiram os bandos, e como, até, eles se tocam; mas não se misturam; e nunca uma gaivota se transformou em pombo, e jamais um pombo se tornou gaivota…”40

Encontramo-nos no coração da fina ironia sergiana, no cerne de uma argumentação com fins dialécticos que coroa a consideração da filosofia de Bergson enquanto pensamento exclusivo do devir. A alforreca enquanto animal de aparência gelatinosa seria, então, a imagem máxima da falta de consistência, do que é falho em esqueleto e fisionomia “de carne e osso”, da radical variabilidade. Esta crítica é, aliás, recorrente, não apenas na exegese contemporânea dos textos do pensador francês, mas desde as suas primeiras publicações. A imagem do élan enquanto esforço íntimo de vida que perpassa todos os fenómenos naturais, princípio de mudança que se transmite evolutivamente ao nível germinal dos indivíduos, foi amiúde conotado com o puro devir, originando leituras des-substancialistas do pensamento bergsoniano. De tal forma que Bergson se viu obrigado a esclarecer os seus leitores, clarificando no opúsculo “Introduction à la Métaphysique” (1903) que a consideração da realidade enquanto mobilidade – significando que não existem coisas feitas, mas estados que mudam –, não exclui a substância. “Afirmamos, pelo contrário, a persistência dos existentes”, insistia Bergson, não compreendendo como poderia o seu pensamento ser comparado a doutrinas como as de Heraclito41. Bergson identifica a realidade com um princípio de mobilidade: na sua perspectiva, não existem coisas feitas, mas apenas coisas que se fazem, estados em permanente mudança. A realidade é mudança e a mudança não é mais do que a substância mesma das coisas Na segunda edição do diálogo, publicada nos Ensaios, Sérgio substitui o adjectivo “viril” por “moral”. Julgamos que o autor ter-se-á dado conta do exagero da primeira versão, porém não desenvolve a que se refere com essa menção à moralidade. 40 SÉRGIO, António. Em torno da «ilusão revolucionária» de Antero, p. 169. 41 BERGSON, Henri. Introduction à la métaphysique. In: ______. La pensée et le mouvant, p. 211. 39

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ou duração42. Todavia, a mudança não implica ausência de identidade, conforme Sérgio fazia crer com a analogia das gaivotas. Para além disso, poderíamos ripostar que até mesmo as pobres alforrecas, malgrado serem constituídas por cerca de 98% de água, têm alguma consistência e a sua identidade permanece. Assim sendo, quando Sérgio reclama a co-presença de variação e permanência na explicação da vida geral do espírito, assim como na constituição própria do homem, não estará mais perto de Bergson do que à primeira vista quer dar a entender?43 Concluímos, então, a nossa análise reiterando a pertinência – e até mesmo por vezes a impertinência – da hermenêutica sergiana. Abordar António Sérgio enquanto crítico de Henri Bergson constitui para o leitor um exercício estimulante, quer pelo acentuar de determinados aspectos menos privilegiados na obra do filósofo francês, quer por nos obrigar a regressar aos textos e a repensar as questões num debate vivo que sempre deve constituir o autêntico exercício do pensamento filosófico. Por esse motivo, arriscamos dizer que Sérgio terá sido discípulo de Bergson, no sentido conferido à expressão por Étienne Gilson. Numa homenagem póstuma ao filósofo de L’évolution créatrice, Gilson afirmava: “Ao perguntarem-se onde estão hoje os vossos discípulos, alguns cometem o erro de procurarem filósofos que repitam o que vós dissestes. No entanto, os vossos verdadeiros discípulos esforçam-se antes por agir como vós”44. A nosso ver, o inconformismo e o permanente questionamento da realidade, numa procura incessante pela forma mais adequada de a dizer, permanecem como atitudes constantes nos dois autores.

Para Bergson, a substancialidade das coisas é a sua própria “duração”, ou seja, tudo subsiste nessa realidade fundamental que é simultaneamente “o fundo do nosso ser” e “a substância mesma das coisas com as quais estamos em comunicação”. Cf. L’Évolution créatrice, p. 39. A duração é por diversas vezes apresentada por Bergson como “o estofo da realidade”, ou seja, não nos encontramos aqui perante uma filosofia que supunha um substrato imutável da realidade, oposto à sua dimensão material ou sensível. Pelo contrário, o fundamento da realidade, o que a suporta e envolve intimamente (o seu “estofo”), consiste precisamente naquilo que a nossa percepção interior capta, ou seja, a duração substancial das coisas. A substância é movimento e mudança e estes, por sua vez, assumem um carácter substancial. 43 Sérgio conhecia bem o texto da “Introduction à la métaphysique”, de que cita excertos nas suas “Cartas despretenciosas”, o que vem sublinhar a nossa interpretação destas considerações como puro artifício de retórica. 44 GILSON, Étienne. Hommage public a Henri Bergson. Panthéon, le jeudi 11 mai 1967, Paris: Typographie de Firmin-Didot et Cie, 1967, p. 4. 42

Inspirações para um ensaio: O Considerações sobre o problema da cultura JOÃO PRÍNCIPE Universidade de Évora

Há na formosura e na música certos lineamentos ou debuxo da razão cujo ofício e louvor é pôr em sua conta todas as coisas; e como a formosura e a música constam de ordem e proporção, por esta sombra do racional deleitam mais ao homem, pois nelas sente oculto parentesco e lhe sabem à sua origem; assim que tudo que deleita é por benefício da razão. Manuel Bernardes

0. Interesse, problemática e método “Intervêm ainda na invenção condições gerais respeitantes à produção de novidade… em primeiro lugar repertórios de representações, de operadores, de soluções adquiridas”1.

Uma narrativa histórica deve ser interessante (Paul Veyne). Assim também na História das Ideias, da Cultura e na História filosófica da Filosofia. Sérgio será tanto mais interessante quanto mais capazes formos de lhe dar grandeza, isto é, de o “medir” diversamente, de o comparar com “padrões” vários. A analogia inspiradora de investigações novas, onde ferramentas conceptuais se forjam em efectividade, é fundamental. O avanço da investigação implica detectar dificuldades, hipóteses inconscientes (Poincaré), obstáculos epistemológicos (Bachelard) e usar da reflexividade, da auto-análise vigilante dos saberes (Bourdieu). Fernando Gil nota que “a problematização de uma dificuldade dá-lhe forma, estabilizando-a, integrando-a num quadro conceptual e operatório”2. Quem foram os interlocutores, em vida, de Sérgio? Obviamente todos os que ele visou, na sua acção pedagógica, cívico-política. Na interacção intelectual directa, eles são os colegas de jornada, os “discípulos” que o frequentam, e aqueles com quem debate, raramente estando aí envolvidos GIL, Fernando. Mimésis e negação. Lisboa: INCM, 1984, p. 266. Estas breves reflexões iniciais resultam da discussão havida no Colóquio e muito devem à pertinência das questões levantadas pelo Professor Leonel Ribeiro dos Santos. 2 Idem, p. 246. 1

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apenas problemas da esfera da razão pura. Vestígios disso nos restam para os estudos feitos – os textos impressos e alguma correspondência. Aqui, o publicista-escritor escreve em situação, usa a argumentação, retórica e tópica. Os seus intermezzi filosóficos, sugerem um pensador a(anti)-sistemático, ensaísta por excelência (Sílvio Lima) que acaba desiludindo alguns leitores atentos (José Marinho) e cria dificuldades a discípulos brilhantes que tentarão reconstruir o seu pensamento (Magalhães-Vilhena; Magalhães Godinho). No seu melhor, atendo-nos ao impresso, Sérgio será um honesto seguidor de Montaigne e, decerto, um grande animador de ideias. Não lhe havendo cabido em sorte um discípulo-Platão, ele é também um Sócrates, cuja voz se perde para a posteridade. Merecidamente para alguns (Carrilho). Aliás, porque de novo mestre dispomos (Eduardo Lourenço). A eficácia do “mestre da polémica”, ou do mestre reconhecido do racionalismo crítico, detectar-se-á porventura na paixão, ligada ao anedotário, dos intérpretes. Sérgio interpela-nos hoje no encontro de uma nossa auto-estima lúcida. Somos herdeiros da ferida colectiva em revisitação de cinza quente. Esquematizo, no simplismo de manifesto, características e limitações da literatura existente, notando a proliferação recente e louvável, sob a pressão dos curricula: abundante análise dos textos impressos e das polémicas a partir de pontos de vista extrínsecos à filiação filosófica de Sérgio, dominando a preocupação com o contexto nacional. A “retórica”, que não cumpre função filosófica, ora é salientada, ora esquecida por irrelevante; mas não tem sido analisada à luz da teoria da argumentação. Igualmente, pouco interesse tem merecido o enquadramento numa análise sociológica do campo intelectual português. Falta detalhar os diferentes períodos da actividade intelectual de Sérgio. A reflexão metodológica rareia, até porque há homogeneidades entre os que, movidos de boa vontade, apesar da impossibilidade de facto de internacionalizar os resultados da pesquisa, persistem. Em suma, falta projecto colectivo interdisciplinar que forneça uma visão de conjunto e uma boa biografia (intelectual). A determinação de influências de pensadores, frequentemente não citados nos textos impressos, e a reconstrução de muitos dos argumentos filosóficos apresentados por Sérgio (com excessiva brevidade e alguma redundância), não têm sido acompanhadas da análise atenta das obras lidas e trabalhadas por Sérgio, e que se encontram na sua biblioteca. Creio que a seguinte hipótese, devidamente meditada, pode criar novas problemáticas e sugestões de trabalho. Sinteticamente: Em Sérgio, o leitor

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é mais rico que o publicista. Esta hipótese é imanente; Sérgio afirmou: “Tenho um pensamento de recreação interna, que se vaza para dentro do meu próprio espírito e nele fica, só se exteriorizando quando me dão um golpe – que, na mor parte dos casos (ou em muitos deles), não tem nada de polémico”3. Exemplos de problemáticas/temáticas onde creio que esta hipótese pode fazer avançar os estudos sergianos e não só: Inscrição do seu pensamento pedagógico num quadro internacional (anos 1910); Sérgio leitor de Antero de Quental e de Oliveira Martins, pensamento estético sergiano, crítica ao anti-intelectualismo bergsonista (anos 1930); evolução do seu platonismo ideal e sua interacção com implicações filosóficas da Física Moderna; Sérgio assiste ao declínio de uma das escolas que marca a sua formação – o neokantismo francês – como reage ele e qual é pois a actualização do seu pensamento? Em seguida exemplificarei brevemente um possivel caminho novo4.

1. Um campo intelectual a determinar Em 1935, G. Le Gentil, na sua obra La littérature portugaise, ao considerar ‘Le mouvement nationaliste (1890-1934)’, descreve o campo intelectual português do princípio do século XX. Considerando o campo da crítica portuguesa, ele afirma: La critique objective s’était déjà imposée, au temps d’Eça de Queirós, avec Moniz Barreto. On ne saurait affirmer que, depuis, elle a rompu toutes ses attaches avec les partis de gauche (Sampaio Bruno) ou de droite (António Sardinha). Il est possible, d’autre part, qu’elle subisse l’influence des essayistes espagnols, Ganivet, Unamuno, Ortega y Gasset, Eugenio d’Ors. Mais elle tend vers une sorte d’équilibre. On a vu collaborer à Lusitânia (1925-1927), excellente revue de culture, des écrivains partis de camps opposés. Maintenant, si l’on excepte Teixeira Gomes, brillant prosateur impressioniste, c’est la spécialisation qui semble prédominer: histoire de l’art (António Arroyo, José de Figueiredo, Reynaldo dos Santos); histoire littéraire (Luis de Almeida Braga, João de Barros, Câmara Reis, Castelo Branco Chaves, Hernâni Cidade, J. de Magalhães Lima, A. Pimenta, J.

RÉGIO, José; SÉRGIO, António. Correspondência (1933-1958). Carta de António Sérgio a José Régio, de 21.09.1936. Apresentação e notas de António Ventura, Portalegre: Câmara Municipal de Portalegre/Centro de Estudos José Régio, 1994. 4 Este caminho surge mais amplamente tratado no meu recente livro Quatro Novos Estudos sobre António Sérgio. Com um posfácio de Hermínio Martins. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2012. 3

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Providência Costa, Ricardo Jorge, J. M. Rodrigues, M. Rodrigues Lapa, Santana Dionísio, Agostinho da Silva, Vitorino Nemésio, etc…); philosophie (Joaquim de Carvalho, Raul Proença). On se ferait une idée assez complète des tendances actuelles en étudiant l’oeuvre de Agostinho de Campos, le meilleur guide en matière d’éducation, de goût, de style, de Fidelino Figueiredo, l’historien le plus qualifié de la littérature… enfin d’António Sérgio, logicien et constructeur, orienté vers la pédagogie sociale et dont les Essais (1920-1934) ont inauguré, contre le vague de la pensée et le flou de l’expression, une vigoureuse réaction intellectualiste5.

Le Gentil valoriza António Sérgio enquanto ensaísta e nota a sua posição particular, a qual não corresponde a uma simples especialização. O meu propósito, no que segue, será o de ilustrar o cosmopolitismo do ideário sergiano, estabelecendo uma relação com o espírito inicial da Revue de Métaphysique et de Morale, precisando assim o que Le Gentil queria significar ao falar da “vigorosa reacção intelectualista” sergiana6. António Sérgio parte para Paris em 1926. Em fins de 1928, Joaquim de Carvalho convida-o para escrever a conferência inaugural da “Semana da Cultura”, a realizar entre 20 e 25 de Maio de 1929. Esta conferência, Considerações sobre o problema da cultura, é escrita no meio de imensos outros afazeres ligados à sobrevivência material, à organização da oposição no exílio, etc. Apesar de António Sérgio se desculpar perante os destinatários directos da conferência devido ao carácter desordenado e não original das considerações, o certo é que o texto abrirá os Ensaios III7.

LE GENTIL, G. La littérature portugaise. Paris: Collection Armand Colin, 1935, cap. XVI, “Le mouvement nationaliste (1890-1934)”, pp. 176-177. Uso a noção de campo intelectual de modo informal; inspiro-me, por exemplo, em BOURDIEU, Pierre. Homo academicus. Paris: Éditions Minuit, 1984; mas noto que a possibilidade de sua estruturação, no caso concreto dos intelectuais portugueses do início do Estado Novo, digamos da sua “vectorialização”, em torno, por exemplo, de noções de poder e de capital intelectual, é-me desconhecida. Um estudo recente, nesta linha, é o de DESVIGNES, Ana Isabel Sardinha. António Sardinha (1887-1925): Um intelectual no século. Lisboa: ICS, 2006. 6 Ver SOULIÉ, Stéphan. Les philosophes en République, l’aventure intellectuelle de la Revue de Métaphysique et de Morale et de la Société française de philosophie (1891-1914). Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2009 (coll. Histoire). Também DUCLERT, Vincent. La pensée de Spinoza et la naissance de l’intellectuel démocratique dans la France du tournant du siècle. Archives juives, n.° 36, 2003, pp. 20-42. 7 SÉRGIO, António. Considerações sobre o problema da cultura. In: ______. Ensaios, t. III, 1.ª ed. de 1932 (Porto: Renascença Portuguesa), 2.ª ed. de 1937 (Lisboa: Seara Nova). 5

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2. Inspirações contemporâneas directas Quando Sérgio chega a Paris em 1926 é já um pensador maduro, adepto de um racionalismo neokantiano, intelectualista e não dogmático. Ele vai mergulhar directamente num meio onde a participação dos intelectuais na vida pública, na política e no poder, é assinalável. A questão religiosa – a tensão entre laicismo e igreja católica, o caso Dreyfus (anti-semitismo), as questões morais levantadas pela Grande Guerra, estavam bem presentes. O debate e as polémicas frequentes transbordavam largamente para além do campo das questões mais puras, internas às disciplinas e saberes8. Em 1927, Julien Benda publica, na Nouvelle Revue Française, o seu panfleto La trahison des clercs, obra que adquire rapidamente uma visibilidade imensa na França. Benda, ao se interrogar sobre qual deve ser o estatuto do intelectual e ao defender a tese de que “les hommes dont la fonction est de défendre les valeurs éternelles et désintéressées, comme la justice et la raison, ont trahi cette fonction au profit d’intérêts pratiques”, visa directamente os intelectuais pertencentes à Action française. Como nos diz Michel Winock: La trahison des clercs consiste non pas à s’engager dans une action publique… mais à subordonner l’intelligence à des partis pris terrestres. Selon Benda, les clercs de jadis se détournaient de la politique par l’attachement qu’ils avaient à une activité désintéressée (Vinci, Malebranche, Goethe)…, ou alors ils prêchaient sous les noms d’humanité ou de justice, en faveur d’un principe abstrait, supérieur et directement opposé aux passions politiques (Érasme, Kant, Renan…)… Julien Benda illustrait ainsi à sa façon…la théorie des deux pouvoirs, le pouvoir temporel et le pouvoir spirituel, qui était dans la pensée de Saint-Simon, d’Auguste Comte, et de son contemporain Alain. Il faut dans toute société, en face des puissants, un pouvoir spirituel, intellectuel, honoré selon une autre hiérarchie, qui rappelle les principes éternels sur lesquels est fondée cette société9.

Um clerc, mantendo-se atento à vida da cidade, deve-se consagrar essencialmente à sua vocação primeira, à reflexão, ao conhecimento desinteressado, ao amor do belo, ao que o distingue de um faccioso dominado pelas paixões partidárias. No Considerações sobre o problema da cultura, António Sérgio alude a esta obra de Benda, sem citar o seu nome, ao referir os obstáculos que encontra na sociedade do seu tempo ao avanço da espiritualidade: Ver WINOCK, Michel. Le siècle des intelectuels. Paris: Seuil, 1997. BENDA, Julien. La trahison des clercs. 2.e édition. Paris: Grasset, 1946, cit. do “avantpropos”. WINOCK, Michel, op. cit., pp. 196-197 e 201.

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O quarto [obstáculo] é aquilo que um filósofo e escritor françês denunciou há pouco como “traição dos clérigos”, isto é, o facto de uma parte dos escritores europeus… haverem desertado ignominiosamente do reduto do ideal e dos valores da cultura, dedicando-se à faina de torcer o espírito para o pôr ao serviço dos interesses de classe, de partido, de patriotismo e de conservação social, fazendo-se pioneiros da mentalidade bárbara, e sacrificando a Verdade aos oportunismos da Acção10.

O primeiro autor contemporâneo explicitamente referido por António Sérgio no Considerações sobre o problema da cultura é o britânico Clive Bell (1881-1964), autor do livro recentemente publicado Civilization11. Civilization não é livro facilmente resumível. Para que haja civilização, no sentido espiritual, deve existir uma elite com tempo para se dedicar desinteressadamente à Cultura. Essa elite “desocupada”, que deve ser mantida pela sociedade e ser suficientemente numerosa, deve ter capacidade de apreciar as criações nos vários campos da Arte e da Ciência. Ela deve possuir um conjunto determinado de características, para que a civilização, a sociedade global, possua o senso dos valores e entronize a Razão. Os membros da elite devem ter espírito cosmopolita, baseado no individualismo tolerante, boas maneiras e humor, uma atitude objectiva e anti-simplista que pressupõe a ideia do Homem Universal. Eis algumas passagens de Bell, sublinhadas por António Sérgio e anotadas a lápis pelo seu punho [em itl]: The essential characteristic of a highly civilized society is not that is creative, but that is appreciative [isto é capaz de criar ideias críticas (p. 71)]. [Ser civilizado é ser capaz de criar com alto e intenso espírito crítico (p. 71)] [O bem supremo é a cultura; a política é um meio para a cultura; sacrificar bens culturais (como a clareza das ideias, a objectividade científica) à propaganda de qualquer política, é praticar um absurdo e fazer acto de selvajaria (p. 91)… Pode dizer-se que um homem é tanto mais culto quanto mais intensamente aprecia o valor supremo da liberdade (p. 80)] He who possesses a sense of values cannot be a Philistine; he will value art and thought, and knowledge for their own sake, not for their utility. When I say for their own sake, I mean, of course, as direct means to good states of mind which alone are good as ends12… [Um homem é civilizado na medida em que é capaz de procurar SÉRGIO, António. Considerações sobre o problema da cultura. In: ______. Ensaios, t. III. Lisboa: Sá da Costa, 1972, § 24, p. 41. 11 BELL, Clive. Civilization. London: Chatto and Windus, 1928. 12 Bell e o Bloomsbury Group a que pertencia, e entre os quais se contavam vários pintores, escritores, literatos, e J. M. Keynes, foram muito influenciados pela leitura do 10

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bons estados de espírito por meios puramente espirituais, ou antes, pelos meios mais directos para o prazer espiritual] (p. 91) It is the mark of a barbarian – a philistine – that, having no sense of values, failing to discriminate between ends and means and between direct means and remote, he wants to know what is the use of art and speculation and pure science… (p. 92) [Assim, por exemplo, a ordem social, para o homem culto, é um meio e não um fim; a ordem social é desejável na medida em que concorre para a liberdade de espírito (p. 92) meios: a ordem, a instrução, o Estado (p. 94)] The specialist is never completely civilized13 (p. 97) He [who possesses a sense of values] aims at complete self-development and complete self-expression: and these are to be achieved only by those who have learnt to think and feel and discriminate, to let the intellect play freely round every subject…. Knowledge in addition is needed; for without knowledge the intellect remains the slave of prejudice and superstition, while the emotions sicken on a monotonous and cannibalistic diet (p. 98)… A tendency toward cosmopolitanism, based on individualism, a movement of liberation from the herd-instinct, is the unfailing accompaniment of an advance of civility… [amor da verdade – individualismo – cosmopolitismo – anti-simplismo] But a civilized man sympathizes with other civilized men no matter where they were born or to what race they belong (p. 104)14.

António Sérgio sublinha, na sua leitura, o valor do espírito critico e do individualismo. Já no Educação e Filosofia discordava da existência de uma “psique social independente dos indivíduos e superior a eles”, isto é, do que considera a concepção hegeliana do Estado como origem suprema da lei moral. Ora, o Cristianismo havia introduzido, com a separação entre o que é de César e o que é de Deus, a ideia do “valor incomparável da consciência humana”, ideia que o Iluminismo ampliaria15.

3. Espinosa e Fichte no centro de Considerações sobre o problema da cultura O carácter solto das Considerações esconde uma estrutura complexa. A um dado nível de organização, a sistematicidade encontra-se nas três Principia Ethica, de G. E. MOORE, em particular do cap. VI, “O Ideal”; ver em particular o seu §113; há edição portuguesa da Gulbenkian, tradução de Maria M. R. Santos e de Isabel p. dos Santos (1999). 13 Ver o que António Sérgio disse a este propósito em texto de 1918: SÉRGIO, António. Da opinião pública e da competência em democracia. In: ______. Ensaios, t. I. Lisboa: Sá da Costa, 1971, p. 234 e ss. 14 BELL, Clive, op. cit., cap. IV, “The sense of values”. 15 SÉRGIO, António. Educação e Filosofia. In: ______. Ensaios, t. I, pp. 144-145.

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grandes questões sobre o problema da cultura que António Sérgio formula: 1.ª – O que se entende por cultura, ou melhor o que é ser-se culto? 2.ª – Quais são os obstáculos actuais à cultura? e 3.ª – Como é que se pode promover a cultura? Mas, para além destas, há como que dois planos que se vão cruzando. No primeiro está a actualidade, os livros de Bell e de Benda, a análise histórico-sociológica, o enunciado das virtudes e atitudes do indivíduo culto. Estas virtudes encontram o seu fundamento num segundo plano, que é o daquela Filosofia, onde as noções essenciais de interioridade, de imanência, de entusiasmo e de Amor, são meditadas. Neste plano encontramos a genealogia filosófica de Sérgio: Platão, Espinosa, Kant e Fichte. No início de Considerações sobre o problema da cultura, afirma-se que o ponto fundamental para nos orientarmos relativamente ao problema da cultura é o reconhecimento de que “a realidade para nós é o nosso espírito”; e os únicos fins e os únicos bens são os do espírito, “isto é, os bons estados de consciência”. Já no ensaio Explicações a um catedrático de Direito, António Sérgio parte da irredutibilidade da Consciência unificadora que formula um dever-ser, o qual é simultaneamente prático e teórico, e da existência de um Eu Absoluto identificado à Razão. A Razão (total) – o “Eu Absoluto que se eleva acima do Eu empírico” – é a actividade ordenadora dos factos da consciência que incluem o representativo (razão especulativa), os impulsos, os sentimentos e o proceder, sendo essa mesma Razão que orienta a acção16. Espinosa e Fichte são os filósofos implicitamente convocados desde o início do ensaio. Nas Notas sobre Antero, publicadas em 1909, António Sérgio refere Fichte muito brevemente. A Espinosa é dedicada uma das Notas. Eis um excerto: Tudo o que existe existe em Deus. Um modo da extensão e a ideia desse modo são a mesma coisa expressa de duas maneiras. Sem dúvida não é o nosso pensamento que é idêntico ao Ser, mas o Pensamento absoluto. Ora, a dialéctica permite-nos subir dos sentidos à razão, da razão à intuição – do primeiro ao segundo e ao terceiro género de conhecimento, – e atingir assim a ideia do Pensamento universal, infinito, absoluto. A compreensão das coisas aproxima-nos da compreensão de Deus, e podemos fazer que todas as ideias sejam referidas à sua ideia… A passagem do pensamento ao ser reduz-se à passagem de um pensamento inferior a um pensamento 16

Publicado em 1925, na Seara Nova; incluido depois em SÉRGIO, António. Ensaios, t. VII. Lisboa: Sá da Costa, 1974, pp. 145-166. Outros ensaios anteriores de António Sérgio importantes para a noção sergiana de cultura são: Ciência e Educação (A Águia, 1917), publicado em Ensaios, tomo I; Divagações pedagógicas (1923) e O clássico na educação (1926), publicados em Ensaios, tomo II.

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superior, mas imanente. A eterna realidade é idêntica ao pensamento eterno, e achá-la-emos, não fora ou acima do intelecto, mas no mais profundo e no mais íntimo do nosso acto de intelecção17.

A necessidade da ascensão aos níveis superiores do pensamento, onde a inspiração da alegoria da caverna platónica está implícita, a natureza imanente das ideias e o primado do Todo, e ainda a ideia da extensão como objecto da inteligência que salienta o carácter de unidade e de interioridade do verdadeiro pensamento, constituirão alicerces constantes do pensamento sergiano. Em Considerações sobre o problema da cultura, António Sérgio fornece vários argumentos em favor da tese de que “a realidade para nós é o nosso espírito”. Recorrendo à psicologia experimental, mostra o carácter subjectivo da sensação: o estímulo não é condição necessária à sensação, caso da alucinação; a presença de estímulo não é suficiente, caso da anestesia térmica devido a lesão na espinal medula. António Sérgio conclui que a característica última que fica do mundo externo é o ser espacial, isto é, extenso. Inspirando-se de Espinosa, lido por Léon Brunschvicg (Spinoza, de 1894), o nosso autor abrevia uma suposta demonstração de que o espaço deve ser concebido como criação do pensamento: o distintivo do pensamento será o colocar o todo antes das partes e o infinito como anterior ao finito; a ideia do espaço como um todo, independente das suas partes, equivale a supor o espaço concepção do espírito. A conclusão espinosista é de que o “espacial subsiste lado a lado do mental, sendo-lhe no entanto inteiramente homogéneo, sendo susceptivel da mesma intelectualidade, da mesma interioridade: a unidade e a indivisibilidade do pensamento tem por corolário a unidade e a indivisibilidade da extensão”18. SÉRGIO, António. Notas sobre os sonetos e as tendencias geraes da philosophia de Anthero de Quental. Lisboa: Livraria Ferreira, 1909 (há reedição pela INCM), Nota XXXV (dedicada a Espinosa). 18 BRUNSCHVICG, Léon. Spinoza et ses contemporains. 5.e édition. Paris: PUF, 1971 (1.ère édition: 1923), p. 291. Cito Brunschvicg: “Si l’on considère l’objet de la pensée, qui est l’univers, l’étendue apparaît comme un attribut de la substance, parce que l’étendue est à la fois une et infinie. Il est vrai que cette conception de l’étendue nous est très difficile, parce qu’il appartient à l’entendement seul de se la représenter sous cette double catégorie d’unité et d’infinité [Eth. I, 15 Sch; I, 52. Cf. Lettre XII (29) à L. Meyer; II, 42]. Or c’est l’imagination qui s’attache d’abord à l’étendue; naturellement elle ne la saisit que par parties, et ces parties, elle les pose comme son objet immédiat; elle les abstrait donc de ce qui est leur origine et leur raison. L’imagination conçoit l’étendue comme composée de parties qu’elle peut à son gré ajouter les unes aux autres, et comme il est impossible d’assigner une limite à l’addition mutuelle de ces parties, 17

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António Sérgio afirmará, na sequência: “É-nos necessário cogitar do Espírito, não como de uma cousa defrontando as cousas, mas sim como de um acto criador da extensão [do espaço]. Este acto mental criador da extensão [do espaço] é o que gera o binário do eu e do não-eu; e estes dois correlativos do eu e do não-eu são pois criaturas do nosso pensar [da nossa actividade pensante]”19. O carácter libertador deste ideário era óbvio para António Sérgio, tal como o valor de Fichte neste movimento da filosofia ocidental de tomada de consciência da espontaneidade do Eu e do significado da interioridade: O mal do Europeu, se não estou em erro, é que a mente idealista e o pensar reflexivo – a pura interioridade do racional – não logrou libertar-se da sua escravidão à imagem sensível, às crenças mitológicas tradicionais [espectros], à religiosidade grosseira da gente comum, ao rude instinto, materializador… Homens houve em que a mentalidade europeia se revelou de maneira mais intensiva, mais característica, mais radical. Por exemplo: um Sócrates, um Descartes, um Espinosa, um Fichte… A revolução de Kant foi um novo impulso para uma filosofia da consciência e da reflexão, – revolução que culminou, poder-se-á dizer, na primeira fase da doutrina de Fichte. Até hoje, porém, o idealismo racional do verdadeiro Europeu não se inseriu ainda no viver social, não entrou nas almas, não modelou a escola, não logrou transformar-nos à sua própria imagem20.

4. O espírito da Revue de Métaphysique et de Morale O Espinosa de António Sérgio inspira-se bastante de suas leituras dos franceses Victor Delbos (1862-1916) e Léon Brunschvicg (1869-1944). Estes e Xavier Léon (1868-1935) interessaram-se muito por Fichte. A Revue de Métaphysique et de Morale é fundada em 1893 por jovens que, nascidos cerca

elle en conclue que l’étendue est infinie. Ainsi se substitue à la conception intellectuelle et vraie de l’infini une conception purement imaginaire. De cette confusion naissent les absurdités où se débat la pensée vulgaire et dont elle ne sort qu’au prix d’absurdités plus grandes encore… Le nombre étant un instrument pour la mesure du fini, vouloir prolonger ce qui mesure au-delà de toute mesure, concevoir le nombre comme infini, c’est proprement, dit Spinoza, délirer avec l’imagination… L’étendue apparaît toujours à l’imagination finie, divisible et multiple; pour l’intelligence, elle est infinie, indivisible, unique”. Ibidem, cap. III, “Dieu”, § 7, pp. 41-42. Neste raciocínio de Espinosa-Brunschvicg-Sérgio, considera-se absurdo que a união de um número infinito de agregados, cada um deles sem extensão, seja uma extensão; este raciocínio é nitidamente pré-cálculo infinitesimal. 19 SÉRGIO, António, Considerações sobre o problema da cultura, § 9, p. 31. 20 Ibidem, §§ 29-30, p. 44; §39, p. 50.

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de 1870, iniciavam suas carreiras em Paris: L. Brunschvicg, X. Léon e Élie Halévy (1870-1937), antigos alunos de Alphonse Darlu (1849-1921) no Liceu Condorcet. O propósito expresso ao criar a revista é o de defender a tradição filosófica contra o positivismo. Os criadores da revista, embora próximos de Renouvier, Lachelier e de Boutroux, reclamaram-se preferencialmente de Platão, Descartes, Espinosa, Leibniz, Kant e Fichte, procurando aperfeiçoar o pensamento desses mestres clássicos. A Revue de Métaphysique et de Morale tem, desde o início, grande abertura editorial: Poincaré, Bergson, Durkheim, nela publicam. Mais do que por uma doutrina unificada, ela caracteriza-se por um “espírito”. Mas a clivagem entre o intelectualismo dos seus fundadores e o bergsonismo era bastante clara21. Embora Xavier Léon falasse de “idealismo crítico” ou de “espiritualismo racionalista” , Stéphan Soulié considera que o conceito que melhor traduz o espírito da Revue de Métaphysique et de Morale é o de “intelectualismo”: Le mot “intellectualisme” est peut-être celui qui réunit le mieux la majorité des fondateurs de la Revue de Métaphysique et de Morale dans une commune posture… Dans la controverse avec Bergson et son libre disciple Édouard Le Roy, ou encore avec Maurice Blondel, le philosophe de l’action, c’est d’abord le primat de l’intelligence, de la conscience claire qui est en jeu. Rationaliser, c’est faire entrer toujours plus de clarté et d’intelligence dans la connaissance réflexive de l’esprit ainsi que dans l’action et ne jamais perdre de vue l’exigeante quête de la “vérité”… Cet intellectualisme est d’abord un rationalisme inquiet devant le pouvoir de séduction des fulgurances de l’intuition et horrifié par l’idée “pragmatiste” que la vérité puisse être, en quelque sorte, subordonnée à l’action. Mais c’est également un rationalisme de la raison en acte, vivante et progressive, ennemi de toute scolastique desséchante, méfiant devant les architectures rigides, les systèmes figés22.

António Sérgio subscreveria tais palavras e no Considerações sobre o problema da cultura insiste no valor da posição intelectualista. Para os fundadores da Revue de Métaphysique et de Morale ao se cultivar a filosofia mais pura, é-se necessariamente conduzido à cidadania; aquela permite fundamentar o empenho em causas públicas. Vincent Duclert

A oposição a Bergson foi notada por D. Parodi, destacado colaborador da Revue de Métaphysique et de Morale, em PARODI, Dominique. La philosophie contemporaine en France. Paris: Alcan, 1919, que António Sérgio leu. Ver também SOULIÉ, Stéphan, op. cit., p. 13. 22 SOULIÉ, Stéphan, op. cit., p. 14. 21

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nota que eles se inspiraram em Espinosa para construir o seu ideal do intelectual democrata: [Spinoza] est le modèle des jeunes gens qui ont fondé la revue… Le contenu de la revue et ses orientations révèlent la formation spinoziste de ses jeunes créateurs et leur volonté de poursuivre l’approfondissement de sa philosophie vers la définition d’une morale, synonyme de pouvoir intellectuel sur l’ordre politique et social… À lire le futur Alain (Émile Chartier) qui ne cessera de rendre hommage à Spinoza… on comprend le rôle que le philosophe joue auprès des jeunes gens de la revue. Il est celui qui unit en lui la philosophie la plus exigeante et la conscience politique la plus forte23.

A filosofia deve pensar criticamente a ciência e fundar uma moral na qual se pensam as condições de desenvolvimento da democracia. Delbos e Brunschvicg são dos primeiros a reflectir sobre Espinosa nas páginas da Revue de Métaphysique et de Morale. Fichte, que é especialmente estudado por Xavier Léon, é visto como um dos “philosophes relais assurant le lien avec Spinoza”24.

5. O lugar do filósofo: Espinosa e Antero A influência de Antero e o ideal espinosiano do homem livre estão na origem dos ideais democráticos de António Sérgio. Alain, no seu Spinoza, disse, “Toute idée claire que nous formons diminue notre esclavage et augmente notre liberté”, e António Sérgio escreveu a propósito de Espinosa: “O conhecimento claro, que consiste na consciência imediata e intuitiva da unidade de todas as coisas com a substância, conduz… necessariamente à liberdade do espírito”25.

DUCLERT, Vincent, op. cit., pp. 28 e 30; ver também p. 33 e ss. Ibidem, p. 28. Uma das primeiras vezes que António Sérgio cita Brunschvicg, em 1918, fá-lo num óbvio contexto de intervenção cívica; o francês afirma: “A pátria é uma ideia, e cumpre que a cada hora ela seja criada de novo pela vontade colectiva dos cidadãos. Ela só verdadeiramente subsiste quando eles são verdadeiros patriotas, isto é, quando eles renunciam a perpetuar os erros e os abusos do passado donde tiram vantagens pessoais, quando conformam o seu proceder com o ideal, que a razão lhes propõe, de justiça universal e de integral liberdade” – Revista Pela Grei, dirigida por António Sérgio, p. 106, sem outra referência que o autor. 25 SÉRGIO, António. Entrada “Espinosa” da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. ALAIN. Spinoza. Paris: Gallimard, 1996 (1.ère édition de 1900), p. 95; SÉRGIO, António, Considerações sobre o problema da cultura, p. 35. 23

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O ideal do homem livre que António Sérgio partilhava pode ser reconstruído a partir de comentadores de Espinosa. No livro de Paul-Louis Couchoud sobre Espinosa, Sérgio sublinhou criteriosamente: Dans les Passions de l’âme de Descartes… le type que reprendra Spinoza est déjà fixé. C’est “l’homme généreux”, sa marque est d’avoir une grande passion… sans mélange, qui emplit seule la capacité de son cœur et à laquelle toutes les autres ploient et obéissent (p. 235). La grande passion, pour Descartes, ne s’oppose pas à la raison. Elle est tout intellectuelle… A mesure que s’accroît la netteté de l’esprit, la passion grandit (p. 236). “Tirer de la joie de tout” est le mot qui termine le traité des Passions. Tant que l’esprit reste limpide… toutes les passions s’ennoblissent… L’homme généreux de Descartes devient l’homme “libre” de Spinoza (p. 237). L’homme libre… ne fait pas la différence entre le futur, le présent, le passé, mais entre le réel et l’imaginaire (Eth. IV, 62 et sc.: a). Pour lui, une chose réelle passée, une chose réelle à venir, ont autant d’existence qu’une chose présente (p. 240)26.

A comunhão da razão com o desejo de viver e as suas implicações para a vida comunitária são também evidenciadas por Couchoud. António Sérgio sublinhou: La raison, c’est-à-dire la loi d’unité dans la vie de chaque homme et principe d’union entre tous les hommes ( p. 241). L’élément fondamental de la passion: le désir de vivre, se confond avec la raison. Il est à la fois un principe d’unité dans la vie de chaque homme, d’union entre tous. Vouloir vivre n’est pas une idée confuse, mais une idée concrète adéquate (Eth. IV, th. 23 e th. 25), l’essence même de l’âme individuelle. Et les désirs humains se trouvent d’accord de si juste façon que suivre son désir propre, c’est faire le bien des autres hommes. Plus chacun désire ce qui lui est utile, plus les hommes sont réciproquement utiles les uns aux autres; c’est la doctrine que Spinoza veut établir contre Hobbes. Elle est seulement esquissée dans l’Éthique; elle sera développée dans le Traité de Politique (p. 243). La fraternité humaine… n’a rien de mystérieux; c’est une façon positive, intelligente, pour chacun d’entendre son intérêt propre. De là suit la théorie essentielle du quatrième livre, l’accord de la vertu, c’est-à-dire du désir avec la raison (p. 244)27.

COUCHOUD, Paul-Louis. Benoit de Spinoza, Ouvrage couronné par l’Académie française. Paris: Félix Alcan (1924, 2.ème édition revue, 1.ère éd. de 1902); P.-L. Couchoud (18791959), ENS, agrégé de philosophie. 27 Ibidem.

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A Razão que é comum a todos os homens, tendo cada um a sua personalidade, a sua essência irredutível, se a ela se souberem elevar pelo amor à verdade, permitirá a real fraternidade. Espinosa escreveu: “Só a verdade é capaz de unir profundamente os sentimentos diversos e as almas diversas”. E Alain afirmou: Il y a donc une nature humaine réellement commune à tous les hommes, et qui est la Raison même. Et c’est pourquoi il n’y a rien au monde qui soit aussi utile à un homme raisonnable qu’un homme raisonnable… Les hommes ignorants, même lorsqu’ils sont unis les uns aux autres par la crainte, sont toujours divisés par la convoitise; cela vient de ce qu’ils sont portés de tout leur désir vers les choses matérielles que nul ne peut posséder sans en priver les autres. L’homme raisonnable, au contraire… ne désire rien autre que comprendre, et le souverain bien pour lui, c’est de connaître Dieu. Seule parmi tous les biens, la vérité peut être toute à tous28.

Brunschvicg nota como Espinosa decidiu escrever o seu Tratado de Teologia e de Política para apoiar a acção política de Jean de Witt, mostrando assim a conformidade da sua acção cívica com a da sua filosofia da liberdade: Spinoza, d’autre part, n’avait pas voulu que sa science et sa philosophie demeurassent inutiles pour la cause de la liberté politique… Fort de l’appui du grand pensionnaire [Jean de Witt], au lendemain de l’emprisonnement et de la mort d’Adriaan Koerbagh, il publia le Traité de théologie et de politique. Ce n’est pas seulement une revendication des droits de la pensée et de la critique… c’est aussi l’effort le plus profond pour assurer la paix religieuse entre les hommes, en la fondant sur une conception toute spirituelle de Dieu. Le sanctuaire du vrai Dieu, ce ne sont, dit Spinoza, ni les pages altérées des livres d’autrefois, ni les chênes des forêts, ni les entrailles des victimes; c’est ce qu’il y a de plus noble dans la nature, l’esprit de l’homme qui a conçu l’idée de Dieu, c’est là qu’est le temple où la vérité se révèle éternellement (Theol. Pol., XII; I)29.

O socialista libertário Antero de Quental termina o seu ciclo “A Ideia” com aqueles mesmos versos que Sérgio citou também em Considerações sobre o problema da cultura: O Paraíso e o templo da Verdade, – ó mundos, astros, sóis, constelações! – nenhum de vós o tem na imensidade… 28

ALAIN, op. cit., p. 96. BRUNSCHVICG, Léon, op. cit., p. 145.

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A Ideia, o sumo Bem, o Verbo, a Essência, só se revela aos homens e às nações no céu incorruptível da Consciência!

A ligação deste soneto às reflexões sergianas sobre política é demonstrável. Em Considerações sobre o problema da cultura, o ideal democrático não é explicitamente mencionado, o que se deve provavelmente ao contexto político de então. Os diálogos de doutrina política, não publicáveis durante a ditadura, escritos cerca de 1933, mostram como António Sérgio fundava na filosofia as suas teses políticas: O ideal democrático, o sistema das ideias: esse é eterno, porque deriva da estrutura da consciência humana. A razão exige-o como um fim; a experiência depois selecciona os meios, aperfeiçoa os orgãos (p. 7). O verdadeiro religioso não pode senão ser democrata. Os corolários do cristianismo estão necessariamente na ala esquerda (p. 19). Para nós, os idealistas, o essencial é a dignidade da pessoa humana, inconcebível sem a liberdade (p. 41). Quem despreza o idealismo dos bons “filósofos” – chega facilmente e com perfeita lógica às mais horríveis das monstruosidades… e a Democracia, no aspecto moral, é a vontade de resistir às monstruosidades do mando [O poder corrompe; o espírito é incompatível com o menor poder] (p. 57). Para nós, como te disse, a política é um instrumento da cultura, o estadista é um obreiro da moral; e a nossa moral, por seu turno, vem de uma revelação da consciência: A Ideia, o sumo Bem, o Verbo, a Essência, só se revela aos homens e às nações no céu incorruptível da Consciência! Escreveu o nosso Precursor em um soneto. Dessa revelação da consciência é que procedem as teses da democracia, e os conceitos de pessoa e de cidadão, os quais se opõem aos conceitos de classe, de grémio, de Corporação… Noto, porém, que as tendências realistas do teu espírito te tornam difícil de compreender a dedução filosófica e idealista, que leva da análise da consciência até à política da democracia (p. 76)30.

A influência de Antero no pensamento político e filosófico do jovem Sérgio foi decisiva: “Sem embargo de ser democrata (e sobretudo democratasocial), [António Sérgio] discordou da concepção que tinham da democracia os tribunos republicanos do tempo da propaganda (1906-1910); cedo

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SÉRGIO, António. Democracia. Lisboa: Sá da Costa, 1974 (col. Clássicos). As citações são excertos das falas do Libertário, sendo o Estadista seu interlocutor.

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adoptara uma orientação contrária ao puro liberalismo económico, incutida pela leitura de um dos seus predilectos entre os autores portugueses, Antero de Quental”. No panfleto de 1918, “Da opinião pública e da competência em Democracia”, António Sérgio começa por citar Antero e nota que a tendência democrática contemporânea, entre outras fontes, resulta do desenvolvimento espiritual da humanidade e do progresso da ideia de dignidade humana. António Sérgio afirma que é dever dos intelectuais ajudar a constituir a opinião pública, que necessita de elites organizadas, sem cuja fiscalização é impossível haver democracia31. Que Espinosa está no fundamento dos conceitos sergianos de democracia atesta-o o espírito geral dos seus escritos. Uma prova concreta resulta de comparar o seu texto Democracia, de cerca de 1934, com declarações suas sobre o pensar de Espinosa. Aí afirmou: Ser experimental, com efeito, e essencialmente criadora nos seus métodos, é o carácter distintivo da concepção democrática, idealista e crítica… Se a lei é imperfeita – e nasce toda a obra com imperfeições, só as perdendo por correcções sucessivas, ditadas pela experiência… O verdadeiro pensamento democrático é um pensamento não dogmático, e a maneira experimental de proceder é a única maneira não dogmática… a política experimental, que é uma maneira essencialmente crítica de fazer as coisas.

Portanto, o desenvolvimento prático da democracia comporta a atitude crítica, experimental, ou seja, científica. Ora, para António Sérgio, que sempre valorizou o fundamento metafísico da acção do pensar, a imanência do Deus de Espinosa correspondia a esse fundamento que justifica aquela atitude, como se vê na passagem seguinte, que tomada em si é algo críptica: do cogito salta Descartes para o Deus transcendente, – não construindo, por isso, uma metafísica do labor científico, adaptada à mentalidade de quem faz ciência… Somente em Espinosa é que vamos ver – com o Deus

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Entrada “Sérgio” da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. “Da opinião pública…” foi publicado em Janeiro de 1918 na revista fundada por António Sérgio, Pela Grei (Da opinião pública e da competência em Democracia. Pela Grei, Revista para o Ressurgimento Nacional. Pela Formação e Intervenção de uma Opinião Pública Consciente. Lisboa, Oficina do Anuário Comercial, n.º 1, 1.º ano, 1918, pp. 46-53), sendo integrado no tomo I dos Ensaios (1920); António Sérgio afirma aí que “quem faz a opinião pública são os intelectuais e os homens de elite de cada classe”, p. 232 da edição da Sá da Costa.

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imanente da sua Ética – uma metafisica adequada a um experimentalismo radical32.

Para Sérgio, havia um lugar na cidade para o poeta-filósofo, um lugar que se conquista, mesmo, ou sobretudo, fora da Universidade.

Conclusão Sérgio bebe de diversas tradições, tal como antes o fizeram Camões, Herculano, Antero, para citar alguns daqueles que, nascidos em solo pátrio, muito o inspiraram. Ele não pode ser lido atentamente sem se atender à sua vasta cultura, sem se considerar as inspirações do seu ideário filosófico, manifestas nas suas leituras, as quais importa reconstruir. Estas remetem para os grandes mestres e para seus “comentadores”; a leitura destes, penso em particular nos franceses, está, tal como em Sérgio, condicionada pela sua acção, pelo seu empenho político. O Espinosa e o Fichte, tal como o Platão de Sérgio, são certamente mediados pelas leituras dos fundadores da Revue de Métaphysique et de Morale. A história filosófica da filosofia e a história da cultura não parecem ter ainda ocupado o lugar a partir do qual a historicidade das leituras, do discurso, e acção dos homens-filósofos sobre seus antepassados, surge claramente iluminada.

SÉRGIO, António, Democracia, pp. 94, 95, 98. A passagem sobre Espinosa encontra-se no texto “O Reino cadaveroso ou o problema da cultura em Portugal”, conferência lida em Coimbra, em 1926, integrada no tomo II dos Ensaios, p. 43 da edição da Sá da Costa.

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Sérgio e Einstein: Aspectos de uma empatia intelectual* JOÃO MARIA DE FREITAS BRANCO Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa

António Sérgio de Sousa, de seu nome completo, e Albert Einstein não só foram contemporâneos como também pertenceram ambos a uma * O trabalho de investigação científica que serviu de base à redacção deste ensaio foi realizado com o apoio da FCT-Fundação para a Ciência e a Tecnologia. O autor expressa aqui, publicamente, o seu agradecimento por esse importante apoio. O presente ensaio, concluído em Março de 2010, é o resultado de um estudo pioneiro iniciado em 2009. Daí resulta que algumas referências feitas a um inédito de Vasco de Magalhães-Vilhena perdessem actualidade, já que a partir de Maio de 2013 aquilo que à data da redacção deste ensaio era uma fonte inacessível, um escrito inédito, passou a ser texto publicado (MAGALHÃES-VILHENA, Vasco de. António Sérgio. O idealismo crítico: Génese e estrutura. Raízes gnoseológicas e sociais. Estudo de história social das ideias. Edição, prefácio e notas de Hernâni Resende. Lisboa: Edições Colibri, 2013). Contudo, o texto agora revelado não contém novidade no que concerne ao essencial da visão interpretativa de Magalhães-Vilhena e, também por isso, em nada me força a rever as conclusões da investigação realizada. Estas não perderam actualidade. Assim sendo, optei por não efectuar nenhuma alteração – nem mesmo na nota onde se refere, e se agradece, a generosa colaboração prestada por um amigo entretanto desaparecido, o Eduardo Chitas, que nos deixou no dia 18 de Março de 2011. Ao leitor, solicito agora que considere a data da redacção do ensaio (2009/2010) e não a data da edição. Desejo ainda prestar um esclarecimento adicional. Ao escrever o presente ensaio tinha há muito conhecimento da existência de um longo texto inédito e inconcluso, redigido por Vasco de Magalhães-Vilhena e destinado à preparação de um seu novo livro dedicado ao pensamento filosófico de António Sérgio, obra que seria um significativo desenvolvimento do pequeno volume publicado em 1964, com a chancela da Seara Nova. Tentei várias vezes, a partir de 1993 (ano da morte de Magalhães-Vilhena), obter autorização para consultar esse material, depositado no espólio entretanto entregue pela família de Magalhães-Vilhena ao Partido Comunista Português. Por motivos vários, nem sempre entendíveis ou respeitáveis, mas estranhos à minha vontade, nunca foi possível realizar a desejada consulta directa do texto. No entanto, por especial gentileza dos professores Hernâni Resende e Eduardo Chitas, as duas pessoas que, muito mais tarde, já na altura em que realizava a investigação para este meu ensaio, estavam a ultimar o espinhoso trabalho de dar o acabamento possível à amálgama de textos (manuscritos e dactilografados) existentes no espólio, foi-me possível não só obter alguma informação útil para a minha investigação como também a autorização para revelar, pela primeira vez de forma pública, o título do livro em preparação.

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mesma geração e quando o nosso filósofo-ensaísta nasceu, em Damão, no ano de 1883, apenas quatro anos depois do nascimento de Einstein – que já habitava o planeta desde a manhã de sexta-feira, 14 de Março de 1879 –, quem possuísse bola de cristal para ler o destino desse ser recém-chegado ao mundo seria capaz de prever, com mágica exactidão, que a figura e a obra do criador da Teoria da Relatividade, uma das mais magníficas expressões da arquitectura de pensamento, iria atrair fortemente a atenção do futuro filósofo de lusa nacionalidade. Nem mesmo o obstáculo da distância geográfica entre a Índia portuguesa, ou a Lisboa capital de império colonial, e a Ulm, cidadezinha de uma Suábia então recentemente integrada no Reich alemão, podia – até mesmo nesse tempo pré-Internet, de um mundo ainda longe de estar globalizado – impedir a familiaridade intelectual justificativa deste nosso estudo. Desde logo porque como genuíno neokantiano, António Sérgio sempre encarou a filosofia como sendo algo umbilicalmente associado à ciência. Na sua óptica neokantiana, afim da de um Natorp ou de um Ernst Cassirer, mas também associada ao pensador francês Léon Brunschvicg – autor caído no esquecimento mas que muito influiu no conteúdo e na forma do ensaísmo sergiano1 –, a filosofia apresenta-se como sendo essencialmente um espaço de reflexão sobre a ciência, obedecendo, até por isso, às mesmas exigências de rigor, de racionalidade extreme, de travejamento lógico convocadas pelo espírito científico que subjaz à acção de quem trabalha no domínio da física, como Einstein, ou no de qualquer outra das chamadas ciências duras. Logo nisto António Sérgio se singularizava numa paisagem nacional afectada de neblinas sebásticas, não só, nem preponderantemente matinais, em que de modo persistente a filosofia (o trabalho filosófico) foi sendo entendida como romance de ideias. Daí que sempre ele tenha criticado a localização do ensino da filosofia ou da educação para o filosofar (para assim obedecermos a forma mais kantiana) em espaços académicos como o que acolhe este nosso Colóquio. As denominadas Faculdades de Letras. A Filosofia, por definição, pode estar, com plena legitimidade, em qualquer faculdade, seja ela de letras ou de ciências. Em minha opinião, Brunschvicg (1869-1944) exerceu particular influência na filosofia francesa do final do século XIX e até à Segunda Grande Guerra, nomeadamente através da sua colaboração na notabilizada Revue de Métaphysique et de Morale e da sua actividade docente na Sorbonne – entre 1909 e 1939, ano em que foi interrompida em virtude da guerra. Se relermos Brunschvicg em paralelo com alguns ensaios de António Sérgio, a proximidade entre os dois autores torna-se evidente. Ambos terão sido “vítimas” das modas filosóficas que se foram instalando ao longo do século XX e que não geravam ventos muito favoráveis ao neokantismo.

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e talvez incorrendo em alguma dessintonia com a visão sergiana, numa universidade desenvolvida ou, se se preferir adoptar linguagem ao gosto do nosso pensador, na universidade ideal todas as faculdades deviam albergar a disciplina de Filosofia. Mas para a formação específica dos profissionais da Filosofia, a ter que haver uma escolha, ela deveria recair na Faculdade de Ciências. É na companhia das ciências, numa permanente proximidade com elas, que deve estar o ensino da Filosofia, a preparação para o trabalho filosófico. Sérgio sempre insistiu neste ponto. Uma tecla percutida ao longo de toda uma vida com perseverança recorrente que até pode parecer pecar por excesso. Mas creio que só a considerará verdadeiramente excessiva quem desconheça a ambiência pátria com a qual o filósofo-ensaísta estava confrontado e que tanto o agredia e desgastava. Só a clara percepção dessa realidade nacional intelectualmente debilitada, despida ou privada do hábito do elevado filosofar sistemático, do autêntico pensar filosófico, deficitária de uma tradição de alta cultura, só essa percepção nos pode levar a compreender a causa profunda de ser o sergismo uma filosofia de combate. Algo que, aproveite-se para o dizer, não se pode, nem deve, separar da forma ensaística do seu discurso filosófico, do figurino do seu filosofar. Sem mágica bola de cristal, mas com a confortável perspectiva histórica de quem, no tempo, observa da frente para trás, do presente para o passado realizado, estamos em condições de poder afirmar com inequívoca segurança que António Sérgio não só investiu, generosamente, tempo e inteligência no cuidado estudo do pensamento de Albert Einstein, como também desejou conhecê-lo pessoalmente. Estar em directo contacto com o arquitecto da Relatividade. Vontade essa que no caso vertente adquire significância particular, transbordando o espaço da vulgar atracção pelas celebridades. Sabe quem teve a felicidade de poder privar com Sérgio ter sido ele pessoa pouco dada a essa comum inclinação; era, pelo contrário, muito selectivo no convívio social, evitando quem não lhe despertava interesse, fosse qual fosse a importância social da personagem. Atitude desde cedo exibida. Recorde -se, a título de exemplo, o facto de já na sua adolescência se ter recusado a ser apresentado à família real. Recusa, note -se bem, de quem era filho de um oficial da armada de alta patente, conselheiro e ajudantede-campo honorário do rei, o Vice-Almirante António Sérgio de Sousa. Mas em relação à pessoa desse Albert passou-se o contrário, porque os seus “deuses” eram desse tipo: terrenos, falíveis, imperfeitos, nada omniscientes nem omnipotentes, mas admiravelmente criativos na sua humana imperfeição, na sua humana grandeza. Disso mesmo era

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Einstein paradigmático exemplo. Por essa razão, mas não só, pareceme existirem fortes motivos para acreditar que o nosso filósofo tenha expressado a alguns amigos a vontade de conhecer o celebrado físico; e em primeiro lugar àquele que era simultaneamente seu dedicado amigo e não menos afectuoso amigo de Einstein: refiro-me a Paul Langevin, de quem António Sérgio tinha em casa, na Travessa do Moinho de Vento, uma fotografia autografada, afectuosa e respeitosamente colocada sobre o tampo da sua secretária. O ilustre físico francês teve, como é sabido, papel proeminente na apresentação científica, defesa e ampla divulgação da Teoria da Relatividade, nomeadamente no nosso país, quando em finais do ano de 1929 aqui realizou um conjunto de conferências nas universidades de Lisboa, Porto e Coimbra, inteiramente dedicadas à teoria einsteiniana e em que, para além da óbvia vertente científica (as questões de física), não deixou de dar particular relevo às suas implicações filosóficas. No plano das quatro conferências proferidas em Lisboa, na politécnica, como então se dizia referindo a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, um dos temas indicados era: Valor filosófico da Teoria da Relatividade. Temática que por certo várias vezes marcou presença nas conversas pessoais do sábio francês com Sérgio, muito embora este nos surpreenda com um comento aposto numa das Cartas de problemática sobre a sensibilidade filosófica do cientista seu amigo e amigo de Einstein; podemos aí ler o seguinte: “O meu grande amigo Paulo Langevin foi um mestre estupendo de ciência física, mas não lhe senti interesse filosófico profundo”2. Estas conferências, embora não tendo sido o principal motivo da deslocação do físico francês a Portugal3, tiveram bom eco na imprensa da época (em O Século e Comércio do Porto) e constituíram um marco no demorado processo de integração da Relatividade no nosso meio académico e cultural. Como afirma Augusto Fitas no seu importante estudo “A Teoria da Relatividade em Portugal (1910-1940)”: “Esta visita e o início da chegada de alguns físicos, bolseiros da Junta de Educação Nacional em países europeus, constituirão o estímulo para que o tema Relatividade comece, lenta e esporadicamente, a ser, não só incluído no ensino da Física, como SÉRGIO, António. Cartas de problemática dirigidas a um grupo de jovens amigos, alunas e alunos da Faculdade de Ciências. Carta n.º 2. Lisboa: Editorial Inquérito, 1952-1955, p. 6. Citarei esta obra sempre a partir da sua primeira edição. 3 Langevin deslocou-se a Portugal na qualidade de representante oficial do Collège de France para participar nas cerimónias do III Jubileu da Academia de Ciências de Lisboa, visita que contou com o apoio do Instituto Francês de Portugal. 2

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também objecto de conferências universitárias, já que, tanto quanto se saiba, na época, nunca foi alvo de qualquer tentativa de investigação por parte dos físicos”4. António Sérgio não pôde presenciar nenhuma das palestras de Langevin. Estava então impedido de entrar no seu próprio país. Tinha-se exilado em Paris três anos antes. Porém, isso não o impediu de se manter informado sobre a forma como decorreu a visita e, posteriormente, sobre os efeitos intelectuais dela. Para além do “relatório” que o amigo Paul Langevin se terá generosamente apressado a fazer-lhe chegar, nesse que foi o período de mais intenso convívio pessoal entre ambos, há que supor que, incansável escritor epistolar como era, Sérgio tenha recebido informação também através da correspondência mantida com alguns amigos ou conhecidos que, vivendo em solo pátrio, puderam participar nas sessões académicas realizadas nas principais cidades do país. Além disso, nessa altura já estava criado o triângulo relacional Sérgio-Langevin-António da Silveira. Este último tinha chegado a Paris pouco tempo antes, solicitando o apoio de Sérgio5, que por seu turno o apresentou e recomendou a Langevin com o objectivo de obtenção de um posto de trabalho como investigador científico no Collège de France. Importa talvez dizer desde já que nas acesas controvérsias em torno da Relatividade, bem como perante os duros ataques, incluindo os de natureza extra-científica, desferidos contra a pessoa do autor da teoria, António Sérgio sempre esteve na barricada dos defensores; não na dos críticos e menos ainda na dos acanhados, odiosos e bárbaros inimigos de inspiração anti-semita (fossem eles cientistas, académicos, gente cultivada, ou meros esbirros partidarizados). Findo o seu primeiro exílio, em meados dos anos 30 do século XX, não deixará ele de se integrar, directa e indirectamente, no movimento cultural que por esse então, no acanhado meio cultural lusitano, fez da Relatividade bandeira contra a mentalidade anti-modernidade/modernização (tanto material como espiritual), contra

FITAS, Augusto. A Teoria da Relatividade em Portugal (1910-1940). In: FIOLHAIS, Carlos (coord.). Einstein entre nós. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2005, p. 28. 5 Muito embora não o conhecesse pessoalmente. Só nessa altura começou a germinar uma amizade que se manteria até o fim da vida do filósofo e teve relevantes reflexos na prosa sergiana sobre física. Em particular sobre temas relacionados com a mecânica quântica. Silveira actuou como conselheiro científico, sugerindo, a pedido do próprio Sérgio, exemplos concretos, como elementos justificativos e corroborantes da argumentação filosófica. 4

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o salazarento horror ao progresso. Acção essa que teve nas páginas da Seara Nova, de O Diabo, de o Sol Nascente alguma da sua melhor expressão pública6. Não por acaso, quando em 1937 se reacende a polémica da Relatividade nas páginas da Seara Nova com a intervenção do Almirante Gago Coutinho (adversário da teoria e que já em 1925, no Brasil, ouvira, com desaprovação, Einstein discursar sobre o tema) – polémica que tinha tido os seus primeiros episódios precisamente no seguimento das palestras de Langevin (em 1930) –, alguém pertencente ao núcleo pró-Einstein, insurgindo-se “contra o acolhimento dado pela Seara” aos textos do Almirante, logo declarou “[ser] preciso escrever uma carta ao Sérgio”7. Regressemos ao desejo de conhecimento pessoal. Na verdade, bem podia tê-lo conhecido alguns anos antes, em 11 de Março de 1925, quando o já célebre físico fez escala em Lisboa a caminho da América do Sul. Acontece que por cá ninguém soube nem se apercebeu da presença do ilustre visitante. Algo que diz bastante sobre o estado de saúde cultural do país. E não se tivesse dado o caso de o viajante ter lançado nas páginas do seu diário de viagem as vivências lisboetas, provavelmente nada saberíamos ainda hoje sobre essa curta permanência do autor da Teoria da Relatividade na nossa capital, onde pôde circular entre o Castelo e os Jerónimos, onde se extasiou com o claustro, sem ser notado por ninguém. Pouco tempo depois da indiferença lisboeta, o Brasil recebia-o de modo bem diferente: os jornais do Rio noticiavam a visita “do maior génio que a humanidade produziu depois de Newton”. Outra ocasião em que Sérgio podia ter estado na companhia de Einstein e que teria constituído para si momento particularmente marcante, foi quando este visitou a capital francesa no ano de 1922, aí proferindo conferências que ficaram célebres também em consequência do espaço institucional que as acolheu e, principalmente, pela singular qualidade das plateias reunidas. Para mais, o seu amigo Langevin foi um dos principais promotores. Foi ele, coadjuvado pelo astrónomo Charles Nordmann (do Observatório de Paris), quem acompanhou Einstein desde a sua chegada à fronteira, protagonizando rocambolescos episódios tendentes a evitar incómodos ao ilustre, mas polémico, convidado germânico, uma vez que, para além do assédio de Estes periódicos de índole cultural albergaram também o discurso anti-Relatividade, abrindo assim espaço para a polémica que, nas suas melhores concretizações, foi controvérsia bem informada e fundamentada. 7 Ver SILVEIRA, António da. Recordando António Sérgio. In: AA.VV. Homenagem a António Sérgio. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa - Instituto de Altos Estudos, 1976, p. 24. 6

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jornalistas e fotógrafos, se temiam manifestações de repúdio logo à chegada a Paris, organizadas pelos nacionalistas franceses8. Considerando esta grande oportunidade desperdiçada, quase chegamos a lamentar que a ida de Sérgio para Paris, como exilado político, não tivesse ocorrido uns anos mais cedo. É fácil supor ter ele próprio expressado esse lamento ao escutar da boca de testemunhas directas os racontos das lendárias conferências de 1922. Mas esse exílio só se concretizou em consequência das mudanças políticas de orientação anti-republicana operadas pelo golpe de Estado militar de 28 de Maio de 1926, instaurador da ditadura. Algum tempo antes de ter sido esmagada a revolta “reviralhista”, iniciada no Porto a 3 de Fevereiro de 1927, Sérgio fora avisado de que iria ser detido, resolvendo então abandonar o país (em finais de 1926). Permanecerá sete anos em Paris, até o ano de 1933. Aí manteve contacto com outros cientistas da área da física, bem como com pessoas do mundo da ciência em geral, incluindo pessoas que embora não vivendo na cidade luz por aí passavam. Cumpre destacar o nome do psicólogo suíço Eduard Claparède, nome grande da psicologia experimental e fundador do Instituto J.J.Rousseau de Genève, em cuja Escola de Educação Sérgio se inscreveu em 1915, tendo sido nessa época que se desenvolveu a relação de amizade com Claparède. Mas entre as sumidades, sabe-se ter havido também um encontro com Émile Borel; e um comentário publicado sobre a forma como Louis de Broglie se exprimia na sua cátedra sugere observação directa9, sendo de qualquer modo improvável não ter havido, em outras circunstâncias, contacto pessoal através de Langevin que, recorde-se, tinha integrado, em 1924, o júri da tese de doutoramento do Louis de Broglie e era um dos seus mentores no meio académico10. Não se olvide, por ser relevante para o nosso contexto temático, o indisfarçável gosto com que Sérgio dizia: “Tenho sempre vivido em comunicação com cientistas, com os quais eu me entendo muito melhor que com líteras”11. Leia-se a este propósito, e entre outras obras, a extensa biografia da autoria de CLARK, Ronald W. Einstein – the life and times. London: Hodder and Stoughton, 1979, p. 276 e ss. 9 É num artigo datado de 1937 que se pode ler o seguinte comentário depreciativo: “Luiz de Broglie […] exprime-se com embaraço na sua cátedra” – SÉRGIO, António. Notazinha ao artigo de Abel Salazar. Seara Nova, Lisboa, n.º 515, 26 de Junho de 1937, p. 210. 10 Foi inclusivamente o próprio Langevin quem ficou incumbido da tarefa de redigir o parecer final do júri da tese de doutoramento. 11 SÉRGIO, António. Ensaios, t. II. Lisboa: Sá da Costa, 1972, p. 235 – página em que cita os nomes de Langevin e Claparède como membros do seu círculo de amigos. Doravante, todas as citações e referências aos Ensaios reportam-se à edição crítica orientada por Castelo Branco Chaves, Vitorino Magalhães Godinho, Rui Grácio e Joel 8

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Esta frase confessional é só por si demonstrativa do quanto o nosso filósofo-ensaísta gostaria de ter privado com Einstein. Este período de exílio parisiense parecia ser o mais propício a que se tivesse materializado algum tipo de contacto directo. Tanto mais que talvez não seja totalmente descabido dar como verosímil a hipótese de Lagevin, o amigo comum, ter feito uma qualquer referência ao nosso ensaísta em algum contacto tido com Einstein. É provável que disso nunca venhamos a ter confirmação, seja porque na realidade nunca aconteceu, sendo por isso hipótese falsa, seja porque se perdeu eventual fonte confirmadora de tal hipótese. Uma coisa é certa: não há conhecimento de nenhum escrito de Einstein, nem de nenhum dito que lhe tenha sido atribuído que sequer sugira ter o célebre físico obtido a mais pequena notícia da existência desse português seu admirador. E quanto a um hipotético encontro, a verdade é que no já referido artigo de 1937, em que Sérgio tece algumas considerações sobre a capacidade ou a incapacidade revelada por alguns grandes cientistas quando são chamados a comunicar conteúdos científicos da sua especialidade, é afirmado que até essa altura nunca teve oportunidade de ouvir Einstein nem de com ele falar, pelo que se abstém de comentar os seus eventuais dotes de comunicador. É também neste contexto que refere ter conversado com Émile Borel em apenas uma ocasião12. Será que a clara vontade de conhecer Einstein se veio a concretizar mais tarde? A acreditar no que Agostinho da Silva me transmitiu, dir-se-ia que sim. O encontro teria acabado por se efectivar durante uma outra estada de Sérgio no estrangeiro. Mas, admitindo a realidade da ocorrência, esse alegado contacto pessoal terá sido, com toda a probabilidade, de natureza bastante semelhante ao que teve com Émile Borel no tempo do exílio em Paris e de que nos deixou notícia; ou seja, um encontro em que o diálogo não extravasou os limites do circunstancial, da mera troca de palavras de cortesia, mesmo que tradutoras de sinceros e profundos sentires. Tivesse havido diálogo mais prolongado incidindo em temática científica ou filosófica, e não teríamos deixado de ter citação dele em uma qualquer prosa sergiana de pública índole. É certo que nas conversas com amigos e conhecidos, Sérgio gostava de evocar Einstein, fazendo-o com frequência. E nessa evocação coloquial havia familiaridade, afecto, como se longamente tivesse privado Serrão e organizada por Idalina Sá da Costa e Augusto Abelaira. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 8 tomos, 1971-1974. Indica-se, para além do título geral, o tomo (em numeração romana), seguido do respectivo número de página. 12 Cf. Idem, Notazinha ao artigo de Abel Salazar, pp. 208-211.

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com o cientista. Compreende-se. É o sentimento de proximidade, ou até de intimidade, gerado por uma profunda admiração pela grandeza do espírito científico, pela monumentalidade da força criativa, pela generosa honestidade intelectual, pela autenticidade da inteligência extrema, pela bondade elevada e aristocracia de sentimentos, pela sinceridade do humanismo com que se apresentava no mundo exercendo a cidadania, enfim, para tudo resumir em poucas palavras, pela admirável riqueza/beleza interior que Albert Einstein exibiu ao longo de toda uma vida. Exactamente aquilo que o filósofo-ensaísta, admirador de Antero, mais prezava na pessoa humana, no outro, no tu, e que no seu próprio eu cultivava. Isto, porém, não pressupõe ter havido, de facto, conhecimento pessoal. Se tivesse havido esse contacto, mesmo que em uma única ocasião, e tivesse ele tido significativa expressão de conteúdo, quase impossível seria não o ter Sérgio manifestado no espaço da convivência interpessoal de modo a ficar na memória dos que com ele privaram. Porém, também de tal não há notícia. Agostinho da Silva, amigo de Sérgio e membro do seu círculo de intimidade intelectual, é respeitável fonte, não existindo, em princípio, razão para dela duvidarmos. Para mais, guardo remota memória de leitura de escrito sergiano contendo, en passant, breve referência a um encontro pontual com Einstein. Memória essa não sustentada por nenhuma das minhas fichas de leitura, nem pelas consultas feitas tendo em vista a redacção deste estudo que, muito embora tendo origem na conferência proferida em Novembro de 2009 (no âmbito do Colóquio), não a reproduz, uma vez que essa comunicação oral foi improvisada – como tenho por hábito fazer. Sinto agora o dever intelectual de confessar que ao prosseguir a investigação, na caminhada da oralidade para a escrita, se me acenderam as dúvidas agora formuladas em relação à veracidade do testemunho de Agostinho da Silva e até à própria pessoal memória de investigador que reforçava a informação proveniente de fonte fidedigna mas falível, porque humana, e, por isso, neste caso, talvez contaminada de equívoco eventualmente (e involuntariamente) causador de engano, de falsa certeza. Ao cabo de contas, é este o destino de quem faz filosofia: caminhar para a dúvida, libertando-se de supostas certezas. E isso mesmo faço, sem deixar de me penitenciar pelo facto de ter sido momentaneamente seduzido por infundada “certeza”. Neste contexto, talvez importe recordar que este meu trabalho se reveste de pioneirismo, uma vez que constitui o primeiro esforço focalizado tendo em vista conhecimento dos contornos precisos da relação de António Sérgio, assim como do seu idealismo epistemológico, com Einstein e o pensamento deste sobre ciência. Por opção metodológica, mas também

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por razões a que não são alheias as limitações de espaço inerentes a um estudo como o agora presente, não cuidarei da vertente político-ideológica, onde a convergência de ideias entre os dois autores não deixa de se fazer notar, desde a incondicional defesa da Liberdade e do apego ao espírito democrático, até o posicionamento face aos conflitos bélicos de inaudita dimensão que lhes foram contemporâneos, passando pelo ideal de transformação social ligado ao socialismo e pelo posicionamento de ambos em relação aos políticos e ao poder. Sobre muitos aspectos da vida de António Sérgio, em particular no que se refere aos períodos em que esteve afastado da pátria, e nomeadamente sobre o relacionamento pessoal, que aqui muito importa, com figuras do mundo científico, esbarramos com um enorme deficit de informação. Forte razão justificativa, talvez, de não ter havido ainda ninguém a aventurarse na feitura de uma biografia de referência, colmatando lacuna que o andar do tempo vai tornando cada vez mais incómoda, para já não dizer inaceitável. Sem pretender desvalorizar em absoluto um hipotético encontro entre Sérgio e Einstein – tanto mais que o estar face a face com figura da grandeza de um Einstein, alguém a que, sem quaisquer reticências, se aplica o adjectivo génio, é coisa que nunca pode ser destituída de significado para o vivenciador do acontecimento –, sem pretender desvalorizá-lo, tendo a crer que, mesmo que tivesse ocorrido, não haveria aí especial relevância cultural, nem epistemológica ou filosófica, em geral, nem mesmo biográfica, pelo que a atenção se deve centrar em outros aspectos. Importante seria, por exemplo, conseguirmos perceber qual foi a efectiva relação pessoal e intelectual do autor dos Ensaios com cientistas próximos do autor da Relatividade nos anos de mais acesa polémica, de contestação da física einsteiniana, de esforço de afirmação da mundividência relativista, determinando, do mesmo passo, de que forma e em que medida essa relação influiu na estruturação do sergismo. Por exemplo, no caso da relação com Paul Langevin, é inequívoco ter existido uma forte relação de amizade. Sérgio incluía o ilustre francês no grupo dos seus melhores amigos. Mas como se processava o intercâmbio de ideias? Qual o conteúdo científico-filosófico das conversas mantidas ao longo de anos? Em que medida essa proximidade com um grande homem de ciência influiu na formação intelectual, no pensamento ou na acção do nosso ensaísta? Que outras pessoas pertencentes ao círculo do cientista estiveram em contacto com o amigo português? Ou que outros profissionais das ciências duras se cruzaram com ele nos meios parisienses que frequentou?

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O esforço de buscar resposta para estas e outras interrogativas esbarra com uma dificuldade: a ausência de fontes ou a inacessibilidade das eventualmente existentes. Obstáculo maior é o desconhecimento que se vai perpetuando de grande parte da vastíssima correspondência. Não existe nenhuma carta de Paul Langevin para o seu amigo português que tenha chegado ao nosso conhecimento. Nem epístola inversa. Porém, Sérgio era um compulsivo redactor de cartas. Não creio ser excessivo dizê-lo. Chegava a escrever cerca de duas dezenas de missivas em um só dia. Ele próprio disso nos dá conta, precisamente em algumas cartas. Por exemplo, quando diz a João de Barros que a carta que lhe escreve já foi antecedida de 16 outras (!) endereçadas a outras tantas pessoas; ou quando em outra missiva, datada de 1933, e endereçada a Ferreira de Macedo, confessa com visível determinação: “Terei de escrever hoje, pelo menos, umas quinze cartas”. Pelo menos… Daí que Jacinto Batista não tenha pecado por excesso quando referiu a existência de “milhares de escritos pequenos ou grandes (e alguns são verdadeiros ensaios)”13 que, tendo sobrevivido ao desbaste do tempo, por aí se encontram, esquecidos e dispersos “por incontáveis arquivos particulares”14. Um efectivo esclarecimento das dúvidas antes enunciadas sobre o relacionamento com personalidades do mundo científico e o que aí possa ter havido de significativo relativamente ao influir einsteiniano, é coisa que passa pelo conhecimento desse imenso acervo de prosa epistolar. Outra eventual fonte de informação é o também ainda inédito (e ao que parece inacessível) texto de Vasco de Magalhães-Vilhena15. Isto admitindose ter havido entre o filósofo-ensaísta e esse dedicado investigador do seu pensamento (que, aliás, também com ele manteve relação de amizade, não obstante a grande diferença de idades e as divergências de teor políticofilosófico) algumas conversas pessoais esclarecedoras. A verdade é que António Sérgio era pouco dado a cavaqueiras desse tipo, centradas no relato de episódios pitorescos passados na estranja. Inclusive, no diálogo directo com outros, falava pouco dos próprios lugares distantes onde tinha vivido. Agostinho da Silva queixava-se de nunca lhe ter ouvido dizer nada de significativo sobre o Brasil, confessando não entender esse silêncio do amigo. Algo que sem dúvida o chocava. Não alimento, por isso, grande BAPTISTA, Jacinto. António Sérgio enciclopedista. Lisboa: Edições Colibri, 1997, p. 18. O quase inédito epistolar que adiante referirei disto é claro exemplo. 14 Disso mesmo sou eu próprio exemplo, com um arquivo pessoal de que faz parte o manuscrito da importante carta-ensaio, que adiante comentarei. 15 Ver nota inicial. 13

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esperança de encontrar no inédito de Magalhães-Vilhena alguma revelação que concorra para o cabal esclarecimento das nossas dúvidas presentes. As informações que até hoje pude recolher junto das pouquíssimas pessoas que conhecem o texto nada sugerem em contrário16. Portanto, tendo em consideração os obstáculos actuais e sem pretender menosprezar a vertente biográfica, parece-me que neste nosso contexto temático importa mais pôr em evidência o Sérgio leitor e estudioso da obra do grande físico. A biblioteca de António Sérgio, se bem que não tenha sobrevivido incólume às agressões do tempo, dá-nos ainda hoje uma imagem clara da dimensão do investimento de leitura feito pelo seu proprietário-utilizador, tendo em vista o cuidado estudo da física relativista e suas consequências, a vários níveis. Um estudo que se incrementou não só através dos textos assinados por Einstein e seus directos colaboradores, como também com recurso aos melhores comentadores, analistas e divulgadores (no mais nobre 16

Ao Eduardo Chitas [ver nota inicial], que neste momento tem entre mãos o espinhoso trabalho de revisão integral do texto inédito de Vasco de Magalhães-Vilhena (já em versão informatizada), desejo aqui agradecer toda a informação que me facultou, correspondendo generosamente às minhas solicitações. Quero também agradecer ao Hernâni Resende, responsável pela edição, o ter-me autorizado a divulgar aqui, em primeiríssima mão, o título da obra inédita que se encontra em fase final de preparação e revisão do texto, mas ainda sem editor. Aqui fica a referência bibliográfica possível: V. de Magalhães-Vilhena: António Sérgio. O idealismo crítico: génese e estrutura – Raízes gnoseológicas e sociais. Estudo de história social das ideias. Edição, prefácio e notas de Hernâni Resende. Projecto realizado com o apoio da Fundação Internacional Racionalista, Cátedra da Razão. De acordo com o que me foi transmitido por Eduardo Chitas, o texto completo, com as novas notas e o prefácio, tem cerca de 500 páginas. Se tivermos presente que a obra base, editada pela Seara Nova em 1964, sob diferente título (António Sérgio. O idealismo crítico e a crise da ideologia burguesa), tinha menos de duzentas páginas impressas, fica-se com uma ideia da ampliação que o autor deu a este seu estudo. Isto confirma o que Magalhães-Vilhena pessoalmente me transmitiu em 1983/84: que, depois de 1964, tinha continuado a investigar e a escrever sobre a obra do Sérgio com o objectivo de publicar um estudo de muito maior fôlego, pois considerava ser esse o seu mais importante contributo como investigador filosófico. Mas por razões de saúde tinha resolvido «pôr um ponto final na sua actividade intelectual», deixando assim inconcluso esse livro. Se bem interpreto as palavras que então me foram ditas, a importância maior atribuída a este seu trabalho derivava do facto de considerar ter sido ele o primeiro a chamar a atenção para a verdadeira grandeza de António Sérgio enquanto pensador filosófico. Tinha, portanto, esse valor acrescido: o da revelação. [Eduardo Chitas morreu no dia 18 de Março de 2011; pelas razões apresentadas na nota inicial, optei por não fazer nenhuma alteração ao texto da presente nota, redigida em 2009, que testemunha a factualidade de um generoso gesto.]

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sentido do termo) da Teoria da Relatividade. Ao folhearmos esses volumes já enrugados pelo tempo, observando o tipo de sublinhados, as chamadas de atenção, as anotações na margem das páginas, as por vezes longas notas de reflexão em torno de uma ou outra ideia, sente-se a intensidade do uso, os sinais de revisitação, o afã da genuína leitura crítico-analítica. Amealham-se os acenos ainda pairantes da densidade do trabalho intelectual que ali se gerou. É o caso de clássicos como L´évolution des idées en physique, de Einstein e Léopold Infeld. E cito o título da autorizada tradução francesa feita por Maurice Solovine a partir do inglês (aliás, também ela revestida de dimensão clássica) porque foi essa a edição utilizada por Sérgio, nomeadamente quando citou partes da obra em escritos de sua lavra. Os textos de Einstein foram por ele lidos quase sempre nas edições francesas e inglesas, ou então em eventuais traduções portuguesas feitas a partir do francês ou do inglês. Nesse exemplar constante da biblioteca pessoal, é ainda visível o tipo enérgico de anotação do leitor empenhado no autêntico estudo, em que se pressente o esforço do estudioso, assim como as marcas da revisitação do texto (valor do reler). Para além dos sublinhados impetuosos, feitos sem auxílio de régua, aí encontramos, logo nas páginas de abertura, algumas anotações dignas de registo e onde parece haver a intenção de fixar uma forma de redacção que pudesse depois ser, com alguma facilidade, transposta para um escrito público; o que comunica a este tipo de anotação uma certa dimensão de rascunho. Numa dessas notas, em que se apresentam duas hipóteses de redacção, duas formas de iniciar a frase (exemplificando o que acabo de afirmar), lê-se o seguinte sobre a ideia de matéria e que é bem sugestivo do que Sérgio aí achou ser boa água para o seu moinho: “Aventuro-me a / Creio que poderei considerar como resultado da evolução da Física o destronamento da ideia de Substância ou de Matéria em proveito das ideias de Actividade e de Forma, ou, se preferido, de Energia e de Estrutura”17.

No que toca a obras sobre Einstein e a Relatividade, como também sobre mecânica quântica, encontramos na Biblioteca numerosos títulos, mas que são apenas uma parte do vasto conjunto de obras constitutivas do acervo original, pelo que muito se enganam aqueles que tomarem o agora existente pelo todo.

Anotação manuscrita nas páginas iniciais do exemplar de L’évolution des idées en physique, existente na Biblioteca António Sérgio, n.º 5432.

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Nessa vertente da bibliografia encontram-se obras de carácter muito diverso, contemplando abordagens de vários níveis de profundidade, desde o da melhor divulgação até o da erudição académica, tanto filosófica como científica. Disso são exemplo títulos como o Albert Einstein do Leopold Infeld ou La relativité de Paul Couderc (ambos incluídos na prestigiada “Que saisje?”, da editora Presses Universitaires de France, sendo o segundo “couronné par l’Académie des Sciences”), os numerosos escritos de Louis de Broglie, ou ainda The nature of physical reality, de H. Margenau (um dos livros com maior densidade de anotações à margem) e o Essay in physics do Viscount Samuel (Herbert Samuel). Em todos estes livros é muito interessante verificar como a anotação é fortemente comandada pelo sergismo, isto é, pelo idealismo crítico do anotador. Podia não ser assim: o que um leitor sublinha não tem que ser forçosamente aquilo com que concorda. Pode ser, e é muitas vezes, um assinalar de tese alheia, discordante da visão de quem lê e anota. Mas no caso vertente, com frequência, ele sublinha, anota, destaca o que lhe parece corroborar, confirmar, demonstrar ou até provar no plano da ciência feita a justeza da sua filosofia. Da sua Weltanschauung. Por exemplo, no texto de Infeld sublinha entusiasticamente a seguinte frase: “Os grãos de energia luminosa, os fotões, substituem os corpúsculos de Newton. Segundo Einstein, a luz é formada por uma chuva de fotões e o fotão é o quantum elementar de energia”18 – (As palavras “energia” e “corpúsculos” são contempladas com duplo sublinhado). A isto adiciona o motivado leitor a seguinte nota, escrita no topo da página: “Na teoria de Einstein, os corpúsculos de Newton deixam de ser corpúsculos, de ser coisas”19. Nesta mesma página, destaca, com riscos verticais colocados na margem do texto, a passagem: “[…] achar uma determinada fórmula: a da relação da energia das radiações com o comprimento de onda e a temperatura. Isto foi, na verdade, feito de uma forma extraordinária”. No exemplar da obra de Couderc, deparamos com extensas notas redigidas na própria página de rosto e nas que se seguem, mas estas anotações são já quase ilegíveis20.

Página 140 do exemplar existente na Biblioteca António Sérgio. Citado a partir da nota manuscrita no exemplar antes referido. 20 Numa pátria em que a cultura é quase invariavelmente a última das preocupações governamentais, estas valiosas anotações manuscritas (muitas vezes escritas a lápis) estão em vias de se tornarem completamente ilegíveis. Por escassez de recursos, nenhuma medida absolutamente eficaz pôde ser tomada no sentido de as preservar, não obstante os pedidos de ajuda formalizados pelos responsáveis pela Biblioteca António Sérgio. 18

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O Essay in physics, exemplar também generosamente anotado, inclui no fim uma importante carta de Einstein para o autor, e aí o dedicado leitor sublinha logo no primeiro parágrafo originalmente escrito em inglês: “Your book […] is for me a new illustration of the fact that the philosophic outlook has – under present circumstances – a strong influence on the views in physics”21. A carta passa depois a ser redigida em alemão, mas o nosso leitor segue a tradução inglesa de F. H. Heinemann onde, mais adiante (p. 137) e de modo bem significativo, sublinha a seguinte afirmativa: “[…] intellectual construction, which proceeds completely free and arbitrary”. É este, no dizer de Einstein, o único caminho das vivências, dos dados da consciência, para a “realidade” (“Von den Erlebnissen zu der ‘Realität’ gibt es aber nur den Weg der intellektuellen Konstruktion (bewusst oder unbewusst), die – rein logisch betrachtet – völlig frei und willkürlich verfährt”). Nenhuma anotação é colocada no texto original (em alemão), mas sim e só no da tradução; até mesmo quando esta é menos fiel, como não deixa de ser o caso da passagem agora citada, em que o “rein logisch” é ignorado pelo tradutor, tratando-se, no entanto, de elemento muito importante para a consideração de uma possível clivagem entre o pensamento do autor da carta e o do leitor anotador. Este apego à versão inglesa em detrimento do original, face a uma publicação bilingue, é bem revelador da familiaridade e do desconhecimento linguístico. No Essay de Samuel, a anotação de António Sérgio é reveladora de anuência relativamente à ideia de determinação dos fenómenos físicos apresentada pelo autor com recurso a uma citação de Bertrand Russell. Sérgio parece aqui inclinar-se mais para o lado da concepção de Einstein em detrimento da interpretação da Escola de Copenhaga. O Viscount Samuel faz notar que a aceitação de que certos fenómenos não possam ser determinados (determined) “in the sense of ascertained or measured” não implica que esses fenómenos não sejam determinados “in the sense of caused, in accordance with the laws of nature”22. No topo das páginas 26 e 27, em que também figura uma citação de Planck em defesa do princípio da causalidade estrita (the principle of strict causality), Sérgio redige a seguinte nota: “Creio que na física os fenómenos são determinados, embora nem sempre possam ser quantitativamente previsíveis por nós. Na esfera do humano, creio que são determinados, mas imprevisíveis, por desconhecimento prévio de todas as

P. 135 do exemplar existente na Biblioteca António Sérgio (n.º 410). Oxford: Basil Blackwell, 1951. 22 P. 26 do exemplar existente na Biblioteca António Sérgio (n.º 410). 21

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circunstâncias que importam”23. Posição, esta, que manterá até o fim da vida intelectual activa (1960) e que claramente o afasta de Niels Bohr e o aproxima de Einstein. Na derradeira prosa pública sobre a mecânica quântica, contrariando a ideia de causalité sans déterminisme que Louis de Broglie associa à física quântica, Sérgio afirma: “Não direi ‘causalidade sem determinismo’ […] direi ‘causalidade sim; determinismo, sim; mas nem sempre com perfeita previsibilidade por nós’”24. No dizer de Bertrand Russell (citado por Samuel na p. 27), “the Principle of Indeterminacy has to do with measurement, not with causation”. O comentário crítico ao texto de Louis de Broglie (citado no ensaio) remete para uma importante nota em que a influência de Einstein me parece notória e em que Sérgio reafirma o seu apego à hipótese de um determinismo a que chama “determinismo de direito”. E, estabelecendo correspondência com a microfísica, diz haver duas concepções possíveis: “a) a da existência de um determinismo de direito unida à de parâmetros que não são mensuráveis; b) a de que aquilo a que se refere a função de onda é um algo colectivo, e não individual, o que impossibilita prever qual dos elementos do colectivo se manifestará ao observador pela intervenção do aparelho”25. Regressaremos a estes conteúdos. No meu pessoal entendimento, e nisto insisto desde há muito26, toda a obra de António Sérgio gravita em torno de uma intuição filosófica, como Bergson gostaria de dizer. Há uma convicção de natureza filosófica que serve de ponto de apoio ao sergismo no seu todo. Nos Ensaios, sejam eles dedicados à temática literária, a um qualquer episódio ou assunto da História de Portugal, a questões de pedagogia, sociologia, política, arte, a um determinado autor (poeta, romancista, historiador, político, etc.), a um tema geral de cultura ou à própria noção de cultura, como acontece com o magnífico Considerações sobre o problema da cultura, inserido no tomo III, a argumentação tece-se quase invariavelmente a partir de uma essencial fundamentação filosófica. Quero com isto afirmar também que António Sérgio é essencialmente um filósofo, e um filósofo de corpo inteiro – coisa Citado a partir da nota manuscrita nas pp. 26 e 27 do exemplar existente na Biblioteca António Sérgio (n.º 410). Ed.cit. Os sublinhados são do próprio Sérgio. 24 Nota manuscrita no topo das pp. 26 e 27 do Essay in physics existente na Biblioteca António Sérgio (n.º 410). 25 SÉRGIO, António. Ensaios, t. II, p. 261 (anotação F anexa ao ensaio Notas de esclarecimento, reportando-se à p. 251). 26 BRANCO, J. M. de Freitas. Forschungsprojekt über das philosophische Gedankengut António Sérgio. Berlin: Humboldt Universität, 1986. (Brochura dactilografada) 23

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ainda não completamente percepcionada pelos seus conterrâneos, incluindo os poucos que se têm dedicado ao estudo do seu ensaísmo. O sergismo é, na sua essência, uma forma de idealismo epistemológico crítico-racional. Consiste ele na declaração do primado do entendimento sobre a coisa, da consciência sobre a materialidade, do sujeito cognoscente sobre o objecto. Dito de outro modo, trata-se de uma filosofia que decreta a superioridade da actividade ordenadora do espírito sobre a matéria, ou sobre a coisa. Todo o discurso sérgico se estrutura, se arquitecta a partir desta base. Ora, o que acontece é que Sérgio vê em Einstein uma confirmação, uma espécie de prova científico-intelectual da sua própria filosofia, isto é, do idealismo epistemológico, do idealismo crítico constitutivo do racionalismo sergiano. Mas existirá de facto, no essencial, essa identidade de pontos de vista? Essa perfeita convergência? Na opinião do próprio Sérgio a resposta a estas interrogativas é clara e inequivocamente afirmativa: sim, existe! Referindo-se à posição assumida por Einstein relativamente à construção do conhecimento científico, Sérgio diz: “Esta posição é exactamente a minha”27. E na versão deste mesmo ensaio dada à estampa, em que escreve depois de extensa citação de Out of my later years: “Isto afirma o Einstein, e harmoniza-se com o que eu disse há uns dez lustros já”28. Para que possamos esmiuçar esta tão francamente declarada harmonia de ideação, esta consonância de pensares, pretendo chamar à colação um escrito filosófico importante, mas desconhecido dos filósofos por efeito das circunstâncias em que foi trazido à luz do dia. Trata-se de uma carta-ensaio escrita por Sérgio no ano de 1957 e que se pode considerar um semi-inédito. Mas antes disso, importa assimilar aquilo que constitui os primeiros patamares dessa tal consonância de pensares. Num plano muito geral, a familiaridade intelectual com o autor da Relatividade desponta em torno da comum inclinação para o esforço de problematização filosófica centrada na ciência. Se António Sérgio é um filósofo que elabora na esfera de influência, ou sob a égide de algumas grandes referências do racionalismo  – Platão, Descartes, Espinosa, Kant –, Einstein, por seu turno, é um físico que faz filosofia, por vontade SÉRGIO, António. Notas de esclarecimento. Com forçados lances de olhos sobre o moi haissable e alegações enjoativas pro domo mea. Portucale. Revista de Cultura. Porto, 1950 (reeditado em Ensaios, t. II, p. 49). 28 Idem, Ensaios, t. II, p. 241. O texto antigo que é referido data de 1909 e intitula-se Notas sobre Antero de Quental. 27

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própria e tendo também como referência, em particular, esse mesmo Espinosa e também, embora com maior distanciamento crítico, o mesmo Kant. Resta saber se a partir de determinado nível de desenvolvimento do trabalho científico, quando alcançados os patamares mais elevados da criatividade científica, o fazer filosofia não devém uma necessidade incontornável. Os casos de Galileu, Newton, Buffon, Darwin, Planck, Einstein, Heisenberg, para apenas citar alguns dos exemplos maiores, parecem sugerir uma resposta. Seja como for, no respeitante ao físico de Ulm o peso filosófico do seu pensamento sempre lhe tem conferido justa e indiscutida presença nos principais dicionários de filósofos, como acontece com o prestigiado Dictionnaire des philosophes, dirigido por Denis Huisman, que lhe dedica sete longas páginas, espaço muitíssimo maior do que o concedido ao nosso filósofo-ensaísta, a quem é destinado apenas um curto parágrafo29. Mas para além deste factor de proximidade, de ordem geral, existe à partida um essencial ponto de dupla convergência entre o luso filósofo e o físico alemão: o racionalismo e a inteligibilidade do real. Isto é, por um lado, a afirmação do primado da Razão, o postulado da universal racionalidade do Real (dever-ser racional), e por outro, o postulado da universal inteligibilidade do real (dever-ser inteligível, coerência lógica). Veja-se como Sérgio nos elucida sobre o que é a Razão: “[…] a razão pode ser definida […] como o instinto da inteligibilidade, da ordenação e da harmonia. […] a Razão é o instinto, a fé, o pré-conceito, da penetrabilidade das coisas pela lucidez mental”30.

E logo no primeiro tomo dos Ensaios encontramos a seguinte afirmação: “[…] a inteligibilidade do universo não é uma conclusão da ciência, mas a pressuposição que a faz nascer; […]”31.

Einstein dizia que a única coisa ininteligível no universo era o facto de ele ser inteligível. Para ambos, o racionalismo apresenta-se também como sendo uma atitude, uma forma de estar na vida: “O racionalismo não é um sistema, Cf. HUISMAN, Denis (dir.). Dictionnaire des philosophes, vol. I. Paris: PUF, 1993, p. 908 e ss. 30 SÉRGIO, António. Romantismo e equilíbrio. Seara Nova, Lisboa, n.º 459, 5 de Dezembro de 1935, p. 46. 31 Idem. Educação e Filosofia. In: ______. Ensaios. Tomo I. Lisboa: Sá da Costa, 1971, p. 139. 29

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mas um método”, escreve Sérgio32; “vejo a Razão manifestar-se na vida”, diz Einstein33. O primado da razão é repetidamente afirmado pelo filósofo-ensaísta. A forma como este racionalista extreme concebe a ciência e o acto de explicar que lhe é inerente sintoniza, também ela, no essencial, e independentemente da especificidade da terminologia utilizada – de cunho bem pessoal e em que a presença da influência platonista é notória –, com a concepção do físico “creator of worlds”. Retenham-se, a título de exemplo, as seguintes passagens, começando por uma já citada: “[…] a Razão pode ser definida […] como o instinto da inteligibilidade, da ordenação e da harmonia. […] a Razão é o instinto, a fé, o pré-conceito, da penetrabilidade das coisas pela lucidez mental”34. “[Racionalismo é] a doutrina que sustenta a irredutibilidade da razão à percepção sensível […] afirma a existência no nosso espírito de uma actividade ordenadora, superior à percepção sensível. Opõe-se a sensualismo e a empirismo, e é muito afim de idealismo, metafísico ou epistemológico (doutrina idealista: a que busca a razão de ser do processo cósmico na realização do racional, da consciência, do espírito; no sentido epistemológico, a afirmação de que a realidade do mundo externo é a sua perceptibilidade)”35. “Explicar […] não é subsumir sob uma fórmula geral, mas urdir o tecido de relações entendíveis que ligam cada aspecto da realidade estudada ao todo relacional a que se encontra unida”36. “A ciência é a relacionação inteligível dos factos, por meio de criação de Formas que a actividade-do-Mundo, pela experimentação, confirma”37. “Ciência [é a arte] da criação das sinfonias da relacionação entendível”38.

Idem. Carta-prefácio a DIAS, Carlos Malheiro. O Desejado. Lisboa: Livrarias Aillaud e Bertrand, 1924, p. X. 33 EINSTEIN, Albert. Comment je vois le monde. Paris: Flammarion, 1989, p. 10. 34 SÉRGIO, António, Romantismo e equilíbrio, p. 46. 35 Idem. Tréplica a Carlos Malheiro Dias sobre a questão de O Desejado. Lisboa: Ed. Seara Nova, 1925, p. 56. 36 Idem. Explicação e subsunção sob fórmulas gerais. Aqui e Além, Revista de Divulgação Cultural, Lisboa, n.º 3, Dezembro de 1945, pp. 18-22. 37 Idem. Nota sumária sobre as minhas “heresias” epistemológicas. Lusíada, Revista Ilustrada de Cultura – Arte – Literatura – História – Crítica, Porto, vol. 1, n.º 1, Primavera de 1952, p. 19. 38 Ibidem, p. 19. 32

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Estabelecendo uma aproximação (logo ela de sabor einsteiniano) entre ciência e arte, o filósofo-ensaísta apresenta-nos esta última definição que por certo teria deliciado o físico violinista, caso este a pudesse ter lido. E nas Cartas de problemática volta a clarificar a sua noção de ciência, insistindo desta feita no papel que cabe à experimentação no processo de construção do conhecimento científico, procurando assim mostrar a importância que ele próprio atribui à experiência, contraditando assim o opinar dos que o supõem anti-experimentacionista: “Não poderemos, pois, definir a ciência como sendo a inteligível unificação dos fenómenos por meio da livre criação de Formas que a Actividade-doMundo posteriormente confirma, através dos resultados da experimentação rigorosa? Como vedes, sou experimentacionista… mas não empirista”39.

Resta saber se, e até que ponto, o seu modo de ser experimentacionista (o sergiano concebimento da experimentação) converge com a noção einsteiniana. Mas para já interessa perceber que no quadro deste racionalismo epistemológico a realidade física materialmente presente (anteposta) ao sujeito cognoscente é sempre entendida como actividade. Sérgio desenvolve aquilo a que poderemos chamar teoria dos sinais, em que os sentires são concebidos como sinais da Actividade-Físis que a consciência acolhe. O Mundo é Actividade-Mundo40. Sendo o mundo físico um tipo de actividade, esses sinais são o único dado, formando o primeiro nível, o nível inferior, do processo da vida intelectual. Fazendo uso de exemplo estimado pelo filósofo-ensaísta41, pode-se perguntar: o electrão é uma coisa? É coisa carregada negativamente? A resposta sergiana pode enunciar-se assim: a noção de coisa-electrão (ou de electrão-coisa) é absurda. O electrão não é, nem pode ser uma coisa com carga eléctrica negativa; é sim uma actividade eléctrica negativa. E assim sendo, que sentido pode ter falar-se de contacto sensorial directo com o electrão? Nenhum. Essa ideia de contacto sensorial não passa de uma pura fantasia. Não há contacto sensorial com o objecto, no sentido que os físicos dão ao termo – objecto físico. Se do micro saltarmos para o macro (da microfísica para a macrofísica) e indagarmos se a Lua, Marte ou o Sol são coisas (coisa-planeta, coisa-estrela), somos levados pelo pensamento racional à mesma conclusão de absurdo. A sensibilidade apenas fornece Idem, Cartas de problemática, n.º 3, pp. 7-8. Recordem-se as anotações que já aqui dei a conhecer sobre a passagem da noção newtoniana de corpúsculo para a noção einsteiniana de fotão. 41 Exemplo dado no texto semi-inédito já antes evocado e que adiante referirei. 39

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sinais e não a actividade-físis Lua ou Sol, não havendo por isso possibilidade de contacto sensorial directo com o fenómeno. Com o objecto. Daí que, no plano da ciência não haja coisas, mas sim Formas insensíveis. Por exemplo: o frio é um sinal dado pela sensibilidade; mas a temperatura (nível científico) é uma Forma insensível, não-sensorial. Dá-se uma des-coisificação, uma des-sensorialização. Nisso consiste o processo do conhecimento. Reacção ao sensível, desprendimento com respeito aos sinais. É neste contexto de problematização que desejo aproveitar a circunstância para revelar à comunidade filosófica o já referido texto epistolar que tem permanecido na penumbra, ignorado pelos profissionais da filosofia. Chamo-lhe carta semi-inédita. Carta-ensaio – (penso ser esta a mais apropriada designação) escrita em Sintra, no dia 16 ou 17 de Agosto de 1957,42 no seguimento de uma longa conversa pessoal com o musicólogo João de Freitas Branco, pessoa que Sérgio considerava ser seu sobrinho por afinidade, pelo facto de ter casado com a filha do seu amigo fraterno Pedro Nascimento. Por iniciativa do destinatário, essa carta foi publicada em 1984 num volume de homenagem a Jacinto do Prado Coelho, ostentando o título de Afecto às Letras, obra colectiva editada pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda e não muito amplamente distribuída no mercado livreiro. Estas circunstâncias ditaram o desconhecimento que antes referi. Em boa verdade, nem a obra nem o autor do “capítulo”, ou parte do livro, em que a epístola inédita foi então integralmente citada sugeriam relevância filosófica. Só o título do contributo de João de Freitas Branco para a justíssima homenagem ao insigne literato nos conduzia à filosofia sergiana: “Dados para um possível ensaio sobre António Sérgio e as artes”. Com o já confessado propósito de transportar para o círculo filosófico a carta de 17 de Agosto de 1957 – missiva que insisto em classificar como semi-inédita por ser de facto desconhecida dos investigadores filosóficos ou, pelo menos, até este presente totalmente ignorada43 –, com esse propósito A carta não está datada. O carimbo do correio é de 17 de Agosto. Só Vasco de Magalhães-Vilhena conhecia o texto, em virtude de J. de Freitas Branco lhe ter fornecido fotocópia da carta-ensaio já vários anos depois da morte de António Sérgio (em Janeiro de 1969). Porém, por atenção ao ofertante, nunca a quis utilizar em escrito seu ou em outro tipo de intervenção pública, deixando ao proprietário do manuscrito inédito a iniciativa da publicação. Tenho agora conhecimento, já depois de concluída a redacção do presente estudo, e por informação que Eduardo Chitas gentilmente me fez chegar, de que Magalhães-Vilhena deixou indicação para que, caso se procedesse a uma edição póstuma do seu segundo livro sobre o idealismo crítico sergiano (versão revista e muito aumentada do volume editado em 1964), a carta-ensaio fosse publicada em anexo. A edição preparada por Hernâni Resende com

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em mente, dela aqui faço extensa citação. Mas para que o seu conteúdo seja totalmente inteligível, talvez se torne útil, se não mesmo necessário, dar a conhecer as cogitações originadoras desta prosa epistolar ensaística. António Sérgio decidiu, sem prévio anúncio, dar resposta escrita a um conjunto de dúvidas que o “sobrinho” lhe tinha colocado no decorrer de uma das habituais, e informais, conversas sobre temas elevados que eram do interesse de ambos. Neste caso, o diálogo teve lugar em Sintra, onde Freitas Branco então residia44 e onde Sérgio gozava umas férias, e incidiu sobre implicações da mecânica quântica na esfera das artes, de aí brotando interrogações “relacionáveis com a percepção, a inteligência, a teorização, a axiologia, a criação e a interpretação de ordem estética, nos domínios das diferentes artes”. Isto mesmo dá a conhecer João de Freitas Branco45 na apresentação que fez em 1984, quando tomou a iniciativa de publicar a carta, acrescentando o seguinte: “Submeti a Sérgio as minhas principais dúvidas sobre o que tudo isso podia ser, se a experiência humana tivesse limites muito diversos dos que efectivamente tem, nos troços do sensível. Cogitações desencadeadas pelo conhecimento dos abalos da mecânica clássica resultantes da extensão do experimentalmente verificável a velocidades muito superiores às máximas até então disponíveis, e a valores de outras dimensões físicas, muito abaixo do que se supusera fronteira ínfima da sensibilidade”46. A resposta do interlocutor chegou em menos de 48 horas, e boa parte do seu conteúdo é de grande relevância para a problematização que aqui nos ocupa. Leia-se então: “Meu querido ‘sobrinho’. Parece-me que não podemos distinguir entre contactos sensoriais directos e indirectos, e que a existência de uma sensibilidade microfísica não modificaria em nada o problema da partícula. Essa o apoio da Fundação Internacional Racionalista, e que agora aguarda o interesse de uma casa editora, respeita a vontade expressa pelo autor. 44 Mais precisamente no Casal de S. José, que fazia parte da grande quinta da Baronesa de Bougard, em Ranholas, onde, com grande probabilidade, teve lugar a referida conversa (como várias outras do género), no meio de bonita paisagem bucólica. Há, aliás, fotografias inéditas de Sérgio neste local nesse preciso ano de 1957. 45 Talvez não seja desimportante lembrar que o musicólogo João de Freitas Branco (meu Pai) era Licenciado em matemáticas, tendo sido também professor de matemática. O seu grande interesse pela revolução científica despoletada pela Relatividade einsteiniana e pela mecânica quântica situava-se para lá da mera curiosidade geral do homem de cultura. 46 BRANCO, J. de Freitas. Dados para um possível ensaio sobre António Sérgio e as artes. In: MOURÃO-FERREIRA, David et al. (orgs.). Afecto às Letras. Homenagem da literatura portuguesa contemporânea a Jacinto do Prado Coelho. Lisboa: INCM, Lisboa, 1984, p. 284.

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sensibilidade microfísica apenas nos daria sinais (como a sensibilidade que temos) a partir dos quais criaríamos construtos: construtos percepcionais (coisas) ao nível percepcional, e construtos formais (ideias, Formas) ao nível formal ou científico. Ao nível científico não há coisas: só há Formas, como sejam a dimensão espacial, a massa, a temperatura, o potencial, a função-de-onda, a carga eléctrica, a frequência, o campo, a entropia, o exponencial, o vector, a √ -1, o spin, etc., etc. […] A ideia de contacto sensorial é uma fantasia, uma construção da nossa inventiva. Para a nossa consciência, só há directa a sensação, o sinal. A partir de aí, criamos construtos percepcionais e construtos formais. Com liberdade absoluta. E com que critério de selecção? Com o critério da coerência, da sustentação recíproca dos construtos. Às vezes aparece um sinal novo que nos obriga a remodelar a geringonça de Formas em sustentação recíproca que havíamos armado. Dado só há a sensação, o sinal; tudo mais é criado por nós, a partir dos sinais. Qualquer modificação na nossa sensibilidade não nos faria sair de aqui. As partículas continuariam a ser construtos, invenções do nosso intelecto para explicar os sinais que essa nova sensibilidade nos fornecesse”47.

Como se pode ver, António Sérgio define três níveis (hierarquizados) constitutivos da vida intelectual: o nível sensorial, que é o dos sinais, o dos simples sentires; o nível percepcional, o dos perceptos; o nível formal ou científico, que é o das formas científicas48. Momento último de des-coisificação. Contrariando a visão tradicional de uma caminhada do concreto para o abstracto, assim como a própria oposição concreto/abstracto, insiste-se aqui na ideia de construto (construtos percepcionais e formais). Sérgio opõe-se desta forma à existência de um processo de abstracção na criação científica e repudia o uso do termo “abstracto”, substituindo-o por “formal”. Partindo do postulado do dever-ser-uno, a Unidade estabelece-se pela deduzibilidade. É essa a função dos constructos formais inventados pelo intelecto. Eles unificam (unem) o que se apresenta desunido no patamar do empírico. Nas Cartas de problemática, dá-se como exemplo dessa função da Forma, função unificante e teórica, a ideia de onda avançada por Huygens (acto de invenção), que, não podendo ser dada em nenhuma experiência, representa uma clivagem com os estudos da luz feitos pelos antigos filósofos SÉRGIO, António. Carta para João de Freitas Branco. Sintra [17 de Agosto de 1957]. Citado a partir do manuscrito. 48 Ver também Idem, Nota sumária sobre as minhas “heresias” epistemológicas e Idem, Cartas de problemática, n.º 3. 47

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gregos. O constructo de Huygens representa um salto qualitativo na esfera da cognição; é o momento unificador, o passo científico por excelência. Momento, esse, que não resulta de um processo de abstracção, mas sim de construção de Unidade. “Ao contrário daquilo que se tem admitido, supondo que a característica feição do intelecto não é de modo algum a faculdade de abstrair, mas muito ao contrário a de criar constructos […] que permitem a concretização progressiva, a suplementação, a síntese”49.

Concretização é tornar concreto o que antes não o era. Portanto, para o autor das Cartas de problemática, o autenticamente concreto é a Unidade. O objecto concreto é o resultado da unificação dos sentires (dados na experiência elementar). É fruto da síntese operada pelo intelecto – síntese das qualidades sentidas. De toda esta concepção do processo cognitivo, retira-se uma tese absolutamente central: a da absoluta incompatibilidade do idealismo advogado com o empirismo, seja qual for a sua aparência. Digamos que, na óptica sergiana, eles se excluem mutuamente. António Sérgio opõe-se energicamente a todo o ideário ou atitude de espírito que reduza a iniciativa do intelecto, que limite a liberdade da mente, conferindo-lhe papel de passiva receptividade; que amorteça o poder criativo da inteligência e/ou secundarize a livre actividade ordenadora do espírito. Daí que para ele qualquer forma de empirismo, aliás, como também todo o materialismo, representa forçosamente um decaimento filosófico e intelectual. Toda a filosofia empirista e toda a filosofia materialista é, de alguma maneira, expressão de menoridade filosófica. Há aí, em tais sistemas, uma inferioridade essencial, de raiz, que deriva da limitação de liberdade – no plano da criatividade intelectual, da espontânea e emancipada criatividade do espírito. Há aqui uma primordial relação que até hoje me parece não ter sido percebida ou, pelo menos, cabalmente entendida. Refiro-me à relação entre o juízo sergiano sobre o materialismo, o empirismo, o sensualismo e o totalitarismo político-social. Há, a meu ver, uma atitude que se manifesta a dois níveis: o teórico e o prático, do agir singular e colectivo dos seres humanos espacio-temporalmente situados no interior de uma estrutura societal. Se preferido, digamos que se dá um salto do terreno da epistemologia para o espaço da filosofia social e política, o do viver concreto de um ser eminentemente social. Para António Sérgio, o materialismo ou o empirismo, nas suas várias formas de expressão, resvalam sempre, tendencialmente, 49

Idem, Cartas de problemática, n.º 3, p. 7.

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para o dogmatismo, favorecendo desse modo a concretização de práticas sociais totalitárias. Esta relação desatendida é reforçado fundamento de um juízo crítico acutilante que atribui a essas correntes de pensamento um rótulo de filosofias de série B, de pensamento filosófico de segunda qualidade. Em virtude da sua própria natureza (por determinação essencial), essas filosofias resvalam, necessariamente, para a promoção da passividade receptiva, para o acto de instituir a mente passiva (receptáculo de dados independentes, ou “exteriores”) em detrimento da concepção da mente activa – ideação da criatividade livre. Representam também, consequentemente, uma valorização da exterioridade. O instituir do primado do objecto sobre o sujeito, do material sobre o espiritual, do desordenado e caótico sobre a ordenação que a racionalidade promove mas que também exige como condição da sua própria operacionalidade. Perante o que ficou dito, sabendo-se da precoce influência de Ernst Mach no pensamento do autor da Teoria da Relatividade, elo tão persistentemente evocado e apregoado por gente de variegados quadrantes, somos assaltados por uma perturbadora mas não menos pertinente dúvida: não terá havido grave equívoco sergiano ao sentir familiaridade com um cientista contaminado de empiriocriticismo? E se lhe adicionarmos o influxo do empirismo de David Hume – pensador que o próprio Einstein confessava ter provocado em si tão grande impressão, através da leitura do Tratado da natureza humana, que até talvez não tivesse chegado a edificar a sua teoria na ausência dos elementos inspiradores por ele legados –, então o hipotético equívoco parece adquirir maior verosimilhança. Mas estou em crer que o engano se localiza em outra latitude. É inegável que estes autores marcaram forte presença na formação intelectual de Albert Einstein, logo a partir dos tempos da Olympische Akademie (a Academia Olímpica), essa paródia geradora de um esplêndido espaço de alta cultura em que, na boa e enriquecedora companhia de Maurice Solovine e de Conrad Habicht, se levava a cabo a leitura colectiva assim como a viva discussão de alguns grandes textos, com particular incidência em obras galvanizadoras do diálogo ou da intersecção da ciência com a filosofia, ou vice-versa. Livros com conteúdo “weltanschaulich”, como lhes chamava o Einstein. A admiração por Mach – que Einstein conheceu pessoalmente em 1911, em Viena, num único encontro já próximo do fim da vida do físico-filósofo – está centrada no valor científico da crítica aos conceitos newtonianos de espaço absoluto e tempo absoluto, bem como na concomitante argumentação sobre a inércia, partindo de uma profunda e muito pertinente reflexão sobre a célebre experiência mental descrita por Newton no terceiro livro

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dos Principia. A experiência do balde. Isso levá-lo-á a falar de um “princípio de Mach”, que procura associar à Teoria da Relatividade. Einstein nunca deixou de considerar “brilhante”50 a análise dos fundamentos da mecânica desenvolvida por Mach em Die Mechanik in ihrer Entwicklung. Por outro lado, há a enérgica cruzada contra a validade de conceitos totalmente divorciados do observável, do empiricamente vivenciado, situando-se para além de qualquer descrição possível de fenómenos experimentados pelo sujeito cognoscente. Conceitos como o de éter ou de espaço absoluto são, no dizer do próprio Mach, “coisa puramente pensada, que não pode ser registada experimentalmente”. Uma argumentação que não deixa de retomar os esforços de Hume no século XVIII e que não podia deixar de agradar a quem, como o físico de Ulm, se preocupava com profunda sinceridade intelectual com o “existir realmente na natureza”51. Daí que ele próprio tenha escrito: “Essa linha de raciocínio exerceu grande influência nos meus esforços, especialmente Mach e, mais ainda, Hume, cujo Tratado da natureza humana estudei com avidez e admiração pouco antes de descobrir a teoria da relatividade”52. O equívoco ou erro que, a meu ver, tem subsistido na mente de muitos é o de não diferenciar o efeito da leitura einsteiniana do Mach físico da leitura do Mach filósofo. O que influi no pensamento de Einstein é aquele e não este. Objecto de permanente admiração é o cientista estudioso da mecânica e crítico de Newton. Não a gnosiologia de Mach. É pelo trabalho no domínio da mecânica que Einstein elege o autor de Die Mechanik in ihrer Entwicklung como um dos quatro físicos que mais admira, ao lado de Newton, Lorentz e Planck. A filosofia não merece a mesma aprovação. A alegada influência da filosofia de Ernst Mach é puro mito perpetuado por alguns opinadores de serviço. Desde cedo, a admiração pela sua Mechanik coabita, sem alteração significativa, com a desconsideração pela sua filosofia. Como afirmou em Paris, em 1922, perante ilustríssima assembleia de filósofos (com Henri Bergson na plateia), e respondendo a uma pergunta de Émile Meyerson num francês apoiado na muleta do amigo Langevin: “Autant Mach fut un bon méchanicien, autant il fut un déplorable philosophe”53. Cf. Carta a Mach de 25 de Junho de 1913. In: MACH, Ernst. Die Mechanik in ihrer Entwicklung. Berlin: Akademie-Verlag, 1988. 51 Cf. EINSTEIN, Albert. The collected papers of Albert Einstein, vol. 3. Translated by Anna Beck Don Howard, Consultant. New Jersey: Princeton University Press, 1993, p. 421. 52 Citado por Walter Isaacson em Einstein. A sua vida e universo. Lisboa: Casa das Letras, 2008, p. 84. 53 Citado por Abraham Pais em Subtle is the Lord. Trad. port. Subtil é o Senhor. Lisboa: Gradiva, 1993, p. 348. 50

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Também o reputado físico e biógrafo norte-americano Abraham Pais desvaloriza a influência filosófica de Mach em favor da admiração einsteiniana pela sua mecânica, que esteve na base de uma estima intelectual que o tempo nunca apagou nem desgastou. “No seu esboço autobiográfico, Einstein mencionou que o raciocínio crítico exigido para a descoberta da relatividade restrita foi incrementado decisivamente pela leitura dos escritos filosóficos de Mach54. Eu arriscaria que, neste ponto, Einstein, mais uma vez, tinha em mente a mecânica de Mach”55.

Abraham Pais escreve este comentário, com intenção de sublinhado pessoal, fazendo valer toda a sua autoridade de destacado biógrafo do cientista-filósofo e de quem com ele intensamente privou durante os últimos nove anos de vida, no período do pós-guerra. Mas, para além de tudo isso, há um outro sinal bem visível de uma consideração não alterada: quando Mach morreu, Einstein interrompeu todo o seu labor para se dedicar à redacção de um importante artigo sobre o cientista que acabava de desaparecer e em que logo nas primeiras linhas afirma a sua grande influência no pensamento científico do seu tempo e na investigação da natureza (“der auf die erkenntnistheoretische Orientierung der Naturforscher unserer Zeit von grösstem Einfluss war”). Artigo datado de 14 de Março de 1916 e publicado na Physikalische Zeitschrift, e que agora aparece incluído nas melhores edições de Die Mechanik…56. Opção editorial que simboliza a forte ligação intelectual estabelecida entre os dois homens de ciência e a consideração do mais novo pelo mais velho. Embora estando a anos-luz do empiriocriticismo de Ernst Mach, que faz coincidir a representação sensível com o mundo exterior, António Sérgio, para além da óbvia e necessária anuência à denegação dos absolutos newtonianos, não deixa de ser sensível à reacção de desconforto e de oposição crítica à conceptualização etérea, que escapa à experimentação por pairar em um algures para lá de tudo o que é passível de ser observado. Daí o empenho em declarar-se “experimentacionista”. Além disso, também se perfilou contra a filosofia da fórmula geral abstracta, à maneira de um

Relativamente ao esboço autobiográfico aqui mencionado por Pais, veja-se SCHILPP, Paul Arthur (ed.). Albert Einstein: philosopher-scientist. New York: Tudor, 1949, p. 21. 55 PAIS, Abraham, Subtil é o Senhor, p. 348, nota 24. 56 Veja-se a esplêndida edição da Akademie-Verlag, que inclui as quatro cartas de Einstein para Mach e o referido artigo de 1916: MACH, Ernst, Die Mechanik in ihrer Entwicklung, ed. cit. Textos de Einstein nas páginas 679 e ss. 54

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Hegel, e contra o concebimento das Formas como “universais” – “Espécie de perceptos reduzidos a esqueleto”. Opõe-se à ideia de explicação entendida como sendo o subsumir sob uma forma geral, de noções abstractas, “defeito de todas as metafísicas por combinação de conceitos”57. A esse defeito vai Sérgio antepor a sua concepção do gesto científico dilucidativo, do esforço racional concretizador do explicar e que é a do urdimento do “tecido de relações entendíveis”. É the intelligible thread de que Darwin falava – expressão que Sérgio muito estimava e amiúde citava. Concepção que o filósofo-ensaísta reencontra nos escritos de Einstein, em clara dessintonia com a visão de Mach, como fez notar I. B. Cohen, segundo o qual a crença no valor da invenção de critérios científicos, bem como na construção teorética operada a partir deles, entendidos como propriedades criativas da mente humana, é convicção einsteiniana típica, mas precisamente “oposta à de Mach, porque este supunha que as leis da ciência eram apenas um processo económico de descrever uma grande colecção de factos”58. Ao ler o que o autor da Relatividade diz ser a ciência e o hipostasiar científico, Sérgio revê-se. Frui o conforto do reencontro com a essência do seu pensar. É a expressão do esforço racional congregador (unificador), bem como da liberdade criativa do intelecto. Assim se chega a essa noção chave do sergismo que é a de Uno-Unificante. Algo que considera estar em perfeita sintonia com o pensamento do físico de Ulm e, claríssimo está, com o idealismo de Platão. Então, como diria Antero, na óptica do autor de Ensaios, Einstein pertence, indiscutivelmente, à sua irmandade e não à dos empirismos, nem à dos materialismos, pois também ele coloca na base de todo o afã científico isso que na pessoal terminologia criativa sérgica se designa por Uno-Unificante. Uma convicção onde ambos, Sérgio e Einstein, vão encontrar a dimensão de religiosidade. Ou seja, a convicção que serve de base a todo o trabalho científico, à pesquisa científica, é em tudo semelhante ao sentimento religioso. É esse sentimento encrostado na alma do autêntico homem de ciência segundo o qual há uma Razão que se manifesta no real. Postulado da universal racionalidade do real a que antes se aludiu. O fundamento último da ciência é o princípio da consciência, isso a que o ensaísta chama “a unidade legal do múltiplo”. A consciência é actividade unificante. É isso que torna possível a ciência.

SÉRGIO, António, Explicação e subsunção sob fórmulas gerais, op. cit., p. 18. I. B. Cohen em Scientific American, Julho de 1955, p. 69. Citado em PAIS, Abraham, Subtil é o Senhor, p. 348.

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Amealhemos então algumas citações de prosa einsteiniana em que Sérgio completamente se revê, sendo por isso mesmo instituidoras de irmandade anteriana. “[as hipóteses científicas são] criações livres do intelecto”. “[Os princípios fundamentais que sustentam um sistema de física teórica] são criações livres do intelecto humano”59. “Ciência é esse centenário esforço para congregar através de um pensamento sistemático os fenómenos perceptíveis deste mundo numa associação tão perfeita quanto possível”60.

Adicione-se ainda a seguinte passagem de Mein Weltbild citada pelo próprio Sérgio em francês: “Il est certain qu’à la base de tout travai scientifique un peu plus délicat on trouve une conviction, analogue au sentiment réligieux, que le monde est fondé sur la raison et peut être compris […] un sentiment profond d’une raison supérieure, qui se manifeste dans le monde… ”.

Depois de fazer esta citação, Sérgio conclui: “Einstein […] tem crença de que o Uno Unificante existe e de que o Mundo se amolda à unificação pelo Uno”61.

No ensaio intitulado Notas de esclarecimento (1950), volta a convocar Einstein como advogado do seu ideário: “La science […] est une création de l’esprit humain au moyen d’idées et de concepts librement inventés”62. Que há convergência de ideias, que há fundamentais concepções comuns sobre o trabalho científico entre os dois autores que aqui prendem a nossa atenção, parece coisa inequívoca em face do agora citado. Mas o perscrutar tem que ir mais além. É nosso dever indagar até onde vai essa harmonia. Será que o ideário sergiano, o seu idealismo gnosiológico coincide

EINSTEIN, Albert. Mein Weltbild (1934) – Conferência no âmbito das Herbert Spenser Lectures, 10 de Junho de 1933. In: ______. Como vejo a ciência, a religião e o mundo. Lisboa: Relógio d’Água, 2005, pp. 95 e 97. Doravante, Como vejo a ciência…, seguido de indicação do número de página. 60 EINSTEIN, Albert. Ciência e Religião, Parte II (1939/1941). In: ______. Como vejo a ciência…, p. 274. 61 SÉRGIO, António. Explicação para os que entendem a linguagem que eu falo. Vértice, Revista de Cultura e Arte. Coimbra, n.os 36 a 39, fasc. 8, Junho de 1946, pp. 214-232. 62 Citado em Idem, Ensaios, t. II, p. 240.

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plenamente com o einsteiniano modo de conceber o processo cognitivo em que a ciência se estrutura? Se tivesse podido ler a prosa ensaística do seu admirador português, Einstein teria certamente acolhido com agrado a expressão Uno-Unificante, tanto na vertente do conteúdo significante como na da forma do dizer. Como escreveu o físico Silvan S. Schweber em livro recentemente vertido para o nosso idioma, “a busca da ‘unidade’ foi uma constante em toda a obra de Einstein, como se tivesse adoptado o dito de Heraclito, ‘O que é sábio é uno’, como princípio orientador”; e a isto acrescenta a citação de uma passagem da conhecida carta endereçada por Albert ao seu amigo Marcel Grossmann no ano de 1900, ainda no seu tempo de estudante, em que o futuro gigante da física afirma ser “uma sensação gloriosa reconhecer a unidade de um complexo de fenómenos que parecem orientar as percepções dos sentidos como coisas bastante distintas”63. Com o objectivo de prosseguir a nossa indagação sobre a amplitude da convergência de pensamento, detenhamo-nos agora em outra passagem de um dos mais notabilizados textos do físico, texto esse em que o nosso ensaísta claramente se revê. O que passo a transcrever é, certamente, não por acaso, uma das mais longas citações feitas por Sérgio de um texto de Einstein64. Aparece ela, em língua francesa, no ensaio Notas de esclarecimento (incluído no tomo II de Ensaios) e trata-se de uma passagem da obra Evolução das ideias em física: “La science n’est pas une collection de lois, un catalogue de faits non reliés entre eux. Elle est une création de l’esprit humain au moyen d’idées et de concepts librement inventés”65.

Se até aqui o texto podia perfeitamente ter sido escrito pelo nosso filósofo-ensaísta, já o mesmo não acontece com o período seguinte desta mesmíssima prosa. Mas esse não é citado. É omitido. O acto de citação prossegue com um salto no texto (devidamente indicado pela colocação EINSTEIN, Albert. Carta a Marcel Grossmann, citada por Silvan S. Schweber em Einstein & Oppenheimer. O significado do génio. Lisboa: Bizâncio, 2010, pp. 302-303. Ver também HOLTON, Gerald. Einstein and the goal of science. In: ______. Einstein, history, and other passions. Massachusetts: Addison-Wesley, 1996. 64 Se considerarmos que a ela se seguem imediatamente duas outras, em inglês, extraídas de Out of my later years, é este o escrito de Sérgio em que encontramos o mais abundante recurso à citação de textos de Einstein. Todas estas citações são invulgarmente extensas. 65 Cf. SÉRGIO, António. Ensaios, t. II, p. 240. Os sublinhados são de António Sérgio (passagem já antes aqui parcialmente citada).

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de reticências)66. Ora acontece que, nessa passagem desconsiderada pelo citador, é dito, de modo claro, que as “construções mentais” têm que estabelecer um elo, uma ligação com o mundo das impressões sensíveis. Afirmação de capital relevância gnosiológica que o autor não se cansou de reiterar nas suas incursões no terreno da filosofia da ciência. Se revisitarmos a importante carta endereçada ao honorável Viscount Samuel (e a que regresso também com o intuito de a tornar menos desconhecida neste nosso meio lusitano), aí encontramos o mesmo sublinhado evidenciador desta relação gnosiológica e epistemologicamente essencial. Também aqui se justifica citação extensa. “[the concept ‘table’,] like all other concept, is of a speculative-constructive kind. Otherwise one cannot do justice to those concepts which in physics claim to describe reality, and one is in danger of being misled by the illusion that the ‘real’ of our daily experience ‘exists really’, and that certain concepts of physics are ‘mere ideas’ separated from the ‘real’ by an unbridgeable gulf [‘blosse Ideen’, die von dem Realen durch einen unüberbrockbaren Abgrund getrennt sind]. In fact, however, positing the ‘real’”.

Recorrendo à terminologia utilizada em outra prosa do mesmo autor (texto anterior ao agora citado), há esforço intelectual permanente no sentido de denunciar a metafísica entendida como forma de “palavreado oco” – colocando-se ao lado de Hume e outros – e de, ao mesmo tempo, delatar o absoluto banimento da metafísica através daquilo que apelida de “medo da metafísica” (um medo criado por Hume) – caminho que suspeita, e teme poder ser, em parte (“nas entrelinhas”), o de Bertrand Russell. É a crítica a Hume permanecendo com Hume. A posição de Einstein torna-se porventura mais clara nesse escrito de intenção crítica, datado de 1944, e motivado pela leitura de Meaning and truth, de Russell. Refiro-me ao texto “Observações sobre a teoria do conhecimento de Bertrand Russell”67, onde se lê a partir da reprodução da crítica de David Hume à conceptualização não deduzida da experiência:

Ibidem: “Les concepts des nombres purs 2, 3, 4… […] sont des créations de l’eprit pensant […] la physique a commencé réellement par l’invention de la masse, de la force et d’un système d’inértie. Tous ces concepts sont des inventions libres”. O que acima foi citado voltou a ser prosa que bem podia ter saído da pena sergiana. Abreviei a citação. Os sublinhados continuam a ser de António Sérgio. 67 Incluído em SCHILPP, Paul Arthur (org.). The library of living philosophers, vol. V, 1944, e também em Mein Leben (EINSTEIN, Albert. Autobiographical Notes. Edição de Paul Arthur Schilpp. Chicago: Open Court, 1949). 66

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“[…] um pensamento só adquire conteúdo material através da sua relação com essa matéria sensorial [a matéria-prima sensível]. Esta última proposição parece-me absolutamente verdadeira, mas considero falsa a norma de pensamento que nela se baseia. […] § A fim de que o pensamento não degenere em ‘metafísica’ […] é necessário apenas que existam suficientes proposições do sistema conceptual ligadas com suficiente firmeza a experiências sensoriais […]. [Mas Hume criou também um grave perigo] já que a sua crítica deu azo a um fatídico ‘medo da metafísica’ que acabou por se converter numa doença da filosofia empirista [que é] a contrapartida daquele primevo filosofar nas nuvens, que acreditava poder negligenciar e dispensar os dados dos sentidos”68.

A carta endereçada a Herbert Samuel encerra-se com dura crítica ao idealismo físico dos entusiásticos adeptos da interpretação de Copenhaga. Com a satisfação de ver Samuel do seu lado, Einstein concluiu, reafirmando a sua convicção capital: “The possibility of a theory which is able to give a complete description of reality, the laws of which establish relations between the things themselves [zwischen den Dingen selbst] and not merely between their probabilities”69.

Reafirmação do seu realismo. Zwischen den Dingen selbst, note-se bem. Portanto, como se pode verificar, o que Sérgio deixa desatendido na citação feita em Notas de esclarecimento (um dos seus mais relevantes ensaios de conteúdo puramente filosófico) não é questão menor. É sim aspecto central no concebimento do processo de construção da ciência – do conhecimento objectivo. E em particular de um momento crucial em todo esse processo: o da experimentação. Aqui, neste importantíssimo passo reflexivo, o discurso de Einstein já não sintoniza com o idealismo epistemológico sergiano. Surpreendente é o facto de o filósofo não se aperceber dessa essencial diferença. A hipótese de a omissão ser ditada por intencional propósito de mascarar ou de construir a ilusão de uma convergência de pensamento como forma vaidosa de atribuir a si próprio, às suas ideias e concepções, pomposa importância, pondo a funcionar o velho mecanismo do efeito de autoridade, é algo que redundaria em acto de pura desonestidade intelectual. Coisa que só pode inquietar os que, por completo, desconheçam quem foi António Sérgio, o homem e o autor filósofo. Para os EINSTEIN, Albert. Como vejo a ciência…, p. 167. Ver também nota anterior. Idem. Carta a Herbert Samuel, 11 de Outubro de 1950. In: SAMUEL, Herbert Louis. Essay in physics. Oxford: Basil Blackwell, 1951, pp. 139 e 145.

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que não estejam afectados dessa ignorância, ou encalhados em erróneo juízo de carácter (bem ou mal intencionado, pouco importa), essa hipótese está descartada ab initio. António Sérgio foi sempre, em todos os momentos da sua riquíssima intervenção intelectiva e cívica, modelar exemplo de honestidade. De verticalidade ética. Por isso mesmo, por ter sido magnífico caso de honestidade intelectual, a justificação para a referida omissão não pode achar-se aí, em um vulgar e reles decaimento ético. A fraqueza aqui, se a há, é de outro teor. Se muito não erro, afigura-se-me haver incompreensão ditada pelo entusiasmo acendido por uma leitura de reencontro com o seu íntimo pensar. Nessas Notas de esclarecimento – repare-se como o próprio título do ensaio é significativo, como ele nos fala neste contexto de inquirição –, a preocupação do autor está toda ela centrada na vertente em que há de facto convergência ideativa. Estamos num contexto de esforço de esclarecimento do próprio pensamento de quem escreve. Um esclarecer que é auto-esclarecimento. Ou seja, a preocupação não está centrada na epistemologia einsteiniana, senão que no idealismo epistemológico do ensaísta. A citação, longa, de um excerto do livro Evolução das ideias em física é comandada por essa vontade preocupada de dilucidação do seu próprio ideário. Afã, aliás, bem típico de Sérgio em virtude de desgastante e permanente confronto com uma ambiência intelectual adversa, em que repetidamente via serem-lhe atribuídas, serem ilegitimamente coladas concepções, ideias, opiniões que de modo algum reconhecia como suas, sendo até, por vezes, antípodas do seu ver. Quem desconheça esta nefasta característica do meio que o circundou terá tendência a achar que existe exagero ou até uma certa forma de obstinação na atitude do nosso bom Sérgio. O seu singular talento de prosador de ideias – no plano da literatura mundial – confere ainda mais força e veemência ao esforço de elucidação do pensamento próprio. Coisa que produz estranheza e a tal sensação de exagero, de preocupação incontinente, junto de quem observa a partir de outra geografia cultural. Amiúde disto me apercebi nos meus esforços para dar a conhecer fora de portas, a colegas alemães, ingleses ou franceses, a obra sergiana. Não têm o hábito de lidar com o fenómeno da leitura distraída e romanceada do ensaísmo filosófico – para descanso de suas almas. Não foi essa, porém, a sorte deste pensador nascido na distante Índia, mas quase obsessivamente mergulhado na realidade pátria que directamente o afectava e que sistematicamente tentou transformar no sentido da criação de novos e elevados hábitos, mais consentâneos com a alta cultura do espírito. Talvez importe fazer notar que a omissão em que nos temos centrado tem a dimensão de exemplo paradigmático. Não se trata de mera ocorrência episódica. Se assim fosse, talvez não se justificasse determo-nos nela tão

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longamente. O referido salto na citação é expressão de uma continuada e basilar “omissão” no plano da elaboração teorética. É isso que justifica, e até nos obriga à convocação da melhor vigilância. Se o que acaba de ser dito nos faz perceber as razões da supressão ou as causas de uma notória indiferença em relação a uma ideia deixada de lado no acto da citação de escrito alheio, a verdade é que não apaga um defeito exegético muito relevante, se não mesmo fundamental. Por isso mesmo, nele entendo ser necessário centrar a atenção indagativa com o propósito de o pôr em evidência, como se diria em linguagem matemática tão do agrado do nosso filósofo. Em minha modesta opinião, e se muito não me engano, António Sérgio nunca chegou a compreender verdadeiramente o que Einstein entendia por exterioridade e experimentação. E, em consequência, qual a função epistemológica destas noções. Ora, é precisamente em torno destas duas noções basilares que se desenvolve, a meu ver, essencial divórcio entre a epistemologia sergiana e a einsteiniana. Ponto de clivagem entre o idealismo físico e o materialismo físico. O que em nada belisca os entendimentos, as familiaridades não menos essenciais que aqui fomos observando. Nesta área de problematização, importa talvez trazer à presença uma outra ideação convergente e muito atractiva. A da proximidade da ciência com a arte. Ou, dito de outro modo, o entendimento de que, na esfera do espírito (do funcionamento da mente humana), o processo de realização do trabalho criativo em ciência não diverge do gesto criativo do artista, antes converge, na medida em que trata, no essencial, de um mesmo tipo de afã espiritual, ou de elaboração mental. Esta outra importante visão comum materializa-se também ela em declarações onde se pressente com alguma clareza a possibilidade de o dito por um ter podido também ser dito pelo outro. É o que se sente quando o filósofo-ensaísta confessa sempre ter olhado as criações da ciência (as teorias científicas) como sendo uma obra de arte: “Vi sempre na Ciência uma obra de arte”70.

Numa observação feita em 1923, e que nos chega pela mão de Archibald Henderson, o físico-filósofo afirma a sua convicção de que “after a certain high level of technical skill is achieved, science and art tend to coalesce in esthetics, plasticity and form. The greatest scientists are artists as well”71. SÉRGIO, António. Resposta a um inquérito. Ler – Jornal de Letras, Artes e Ciências, Lisboa, n.º 18, Setembro de 1953. 71 Cf. CALAPRICE, Alice (org.). The new quotable Einstein. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2005, p. 230. 70

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Esse Albert que assim pensava tinha por hábito olhar para os entes humanos tomados de um qualquer fanatismo, olhar para os espíritos sectários, ou seja, para as pessoas com formatação mental não-científica ou anti-científica, como sendo criaturas incapazes de escutar a música das esferas. Profunda e subtil observação, esta, de quem, sendo físico, e grandíssimo, nunca deixou de ser também músico violinista, possuidor de uma fina sensibilidade artística que não permitiu que ficasse de fora, posta entre parêntesis, no acto de fazer ciência – acção tão eminentemente criativa quanto a do artista músico, pintor, romancista ou poeta. O sectarismo, o dogmatismo, o fanatismo ideológico são, digo agora eu crendo-me em sintonia com ambos os autores em estudo, formas de deficiência intelectual – mais inata, em certos casos, mais adquirida, em outros. E a esses deficientes intelectuais sempre estará vedada a possibilidade de fazer Ciência e Filosofia de valia. Mesmo na ausência de todo e qualquer constrangimento externo. Só os que sabem «viver numa alvorada eterna» conseguem caminhar de modo consequente em tais acidentados terrenos72. Tudo isto é reforçado pela observação cuidada do modo como Einstein fez ciência, e da melhor cepa. Um modo de proceder que delicia todo o sergiano, a começar, obviamente, pelo próprio António Sérgio. É que no seu labor científico, o físico-violinista não definia como ponto de partida nenhum dado experimental concreto. O ponto de partida não era de natureza empírica. Como poderia o idealista Sérgio não prezar essa desafectação ao sensorial, bem como, consequentemente, à platónica intuição sensível? Einstein teve a preocupação de reiterar essa negação de um processo de construção teórica baseado em dados experimentais, nomeadamente ao afirmar, referindo-se à construção da Teoria da Relatividade geral, que nenhum conjunto de factores empíricos pode conduzir directamente às equações complexas que a integram. As suas experiências mentais tornaram-se famosas. E em resposta à inquirição de Max Wertheimer, psicólogo interessado em conhecer o modus operandi da sua mente singular, afirmou que raramente pensava com palavras na fase inicial do processo. Primeiro surgia o pensar com ou em imagens e, só depois, num segundo momento, o pensar com palavras. “Os pensamentos – dizia – surgem-me e só depois é que talvez tente exprimi-los por palavras”73. Esse pensar imagético, esse fantasiar de Pena não terem estes dois autores desenvolvido uma reflexão mais sistematizada sobre as similitudes entre ciência e arte, assim como sobre a estética da ciência e a função do belo na edificação do conhecimento científico. 73 Relatado por WERTHEIMER, Max. Productive thinking. New York: Harper, 1959, p. 214. 72

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experiências, pensar sem palavras – algo que não podemos separar do forte poder imaginativo/inventivo que também o caracterizava –, parece guardar extraordinária proximidade com a arquitectura mental do artista plástico, ou até do músico, no relativo ao pensar sem recurso à palavra. Há paridade com o modus operandi da mente do criador de arte. Do meu pessoal ponto de vista, a relevância desta forma de pensar não pode deixar de ser trazida à colação no momento de se analisar a profunda controvérsia mantida com o Bohr, o Heisenberg e todos os simpatizantes da chamada interpretação de Copenhaga. Einstein resiste ao abandono de uma Anschauung clássica. Einstein considerava também existir uma essencial razão comum justificativa da vontade humana de levar a cabo actividades artísticas ou científicas, justificativa do desejo de estar com a arte e com a ciência. Discursando em homenagem a Max Planck, em 1918, disse: “[…] eu acredito, como Schopenhauer, que uma das mais fortes razões que levam os homens a dedicarem-se às artes e à ciência é a ânsia de fugir da vida de todos os dias, com a sua pungente crueza e a sua insipidez inevitável”74.

Como afirma Walter Isaacson, “costumava partir de postulados que abstraía da sua compreensão do mundo físico, tais como a equivalência entre gravidade e aceleração. Essa equivalência não foi uma coisa na qual ele pensou pelo facto de estudar dados empíricos. A sua maior força como teórico era ter uma capacidade mais aguda do que outros cientistas para criar aquilo que chamava de ‘postulados e princípios gerais que funcionam como ponto de partida’”75. “[…] enquanto não se descobrirem os princípios que servem de base para o processo dedutivo, o facto empírico individual não possui qualquer valor para o teórico”76.

Mantendo bem presente o que acaba de ser dito sobre o entendimento da proximidade entre ciência e arte (incluindo a dimensão estética da ciência) e a forma einsteiniana de fazer ciência, proponho que regressemos agora

EINSTEIN, Albert. Discurso de celebração do 60.º aniversário de Planck. In: ______. Como vejo a ciência…, p. 25. 75 ISAACSON, Walter. Einstein, p. 292. É claro que, neste contexto, a expressão “ponto de partida” não pretende referir o início do conhecimento humano em geral, mas sim o do processo de construção de teorias científicas. 76 EINSTEIN, Albert. Princípios de física teórica. Discurso inaugural perante a Academia Prussiana de Ciências (1914). In: ______. Como vejo a ciência…, p. 19. 74

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à consideração de duas noções chave no pensamento epistemológico dos dois autores em apreço. Refiro-me à noção de exterioridade e à noção de experimentação. Como antes já se viu, António Sérgio sempre esteve convencido da existência de concordância entre o seu próprio ideário e o do célebre e por si tão admirado físico alemão. Uma comum concepção gnosiológica e epistemológica. Mas será isso verdade? Estará a epistemologia einsteiniana em tão perfeita harmonia com o idealismo epistemológico sergiano? Quando, por exemplo, ambos põem em evidência e enaltecem o papel da experimentação será que estão a falar do mesmo? Ou, talvez melhor, a pensar o mesmo? Para se entender a conceptualização sérgica da exterioridade e da experimentação (experiência científica), é indispensável começar por perceber em que consiste o idealismo; qual o gesto intelectual que o institui. Dito de outro modo, trata-se de determinar qual a ideia que preside a toda a genuína filosofia idealista. E para tal temos que ir ao encontro de Fichte. Modelo paradigmático. António Sérgio respeita fielmente a fundamentação fichteana. A primeira pedra do sergismo, essa que o faz ser uma pura filosofia idealista, é legado de Platão, é certo, mas também, e não em menor medida, de Fichte77, pois que, na Idade Moderna, é de facto nele que encontramos o mais perfeito paradigma da démarche inauguradora do idealismo. Aquilo a que tenho por hábito chamar o procedimento instaurador do idealismo. Eis o que Fichte nos diz na sua Wissenschaftslehre: “Nós temos que procurar o princípio absoluto-primeiro, pura e simplesmente incondicionado, de todo o saber humano” (“Wir haben den absolut-ersten, schlechthin unbedingten Grundsatz alles menschlichen Wissens aufzusuchen”)78.

Esse absolut-ersten Grundsatz é expressão da Tathandlung – a acção absoluta inauguradora. O ser é posto pelo Eu-activo que é fundamento de si próprio. O Euactivo, em contraste ou em oposição ao não-eu, ao nicht-ich, é espontaneidade absoluta. Sendo pura negação, o nicht-ich é desprovido de autonomia ontológica, ou seja, em si mesmo não possui realidade; “é simplesmente Se bem que essa influência tenha sido muitas vezes omitida ou, pelo menos, menorizada pelos seus leitores e até por investigadores do seu pensamento até os dias de hoje. Deficiência a que talvez o próprio não seja totalmente alheio, pois nem sempre referiu o nome de Fichte em momentos textuais em que enumerou os nomes dos pensadores que nele mais influíram. 78 FICHTE, Johann Gottlieb. Wissenschaftslehre, I, §1. In: ______. Werke, vol. I. Edição de I. H. Fichte, Berlin: Gruyter, 1971, p. 91. 77

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posto pelo Eu” (“ist schlechthin durch das Ich gesetzt”). É assim instituído o primado do Ser posto pelo Eu-activo, antecedendo a matéria e a própria relação sujeito-objecto. Através deste procedimento, a realidade material aparece destituída de fundamento próprio. O seu fundamento vem de fora; provém da esfera do Eu. Por outro lado, a questão fundamental do unificar ou da unificação, superando a estrutural incapacidade da sensibilidade para anular, para se libertar, da Mannigfaltigkeit, da diversidade. Portanto, e tal como já antes se observou no modo como Sérgio concebe os constructos percepcionais e formais, é ao intelecto, é à Razão que cabe a função de unificar, libertando-nos do múltiplo, da diversidade caótica a que o sensorial (a experiência sensível) condena. Daí que, para Sérgio, em absoluta concordância com Fichte, que lhe serve de fonte de inspiração, seja inimaginável e inadmissível a hipótese de a unidade do Real poder consistir na sua materialidade. Isso não passa de uma espécie de aberração filosófica. Experimente-se agora o sabor indisfarçavelmente fichteano do discurso sérgico em torno da ideia central de Uno-Unificante: “[Quem for como eu] percebe com clareza extrema a necessidade da existência de um Uno-Unificante, isto é, de certa Origem das origens das nossas hipóteses científicas (‘criações livres do intelecto’, segundo o dizer de um Einstein). Da necessidade, digo, de um acto absoluto de pensamento efectivo; de uma actividade originária de pronunciar juízos, de pôr um Eu (transcendente ao objecto, transcendente às classes, transcendente à época, transcendente à imagem), sem o qual a noção do ajuizar exacto, e a distinção do verdadeiro e do não verdadeiro – e ainda o intuito de investigar da verdade – não assumem realmente sentido algum”79.

O acto absoluto de pensamento efectivo é a Tathandlung fichteana. Só isso confere sentido ao empreendimento cognitivo a que chamamos ciência. Este procedimento instaurador do idealismo vai determinar e condicionar a concepção sergiana de exterioridade, assim como de experimentação. Por alguns opositores dogmáticos terem tentado colar ao seu ideário o rótulo de solipsismo80, repetidamente – e, a meu ver, exageradamente –, Sérgio afirmou não duvidar da existência do mundo exterior de que faz parte SÉRGIO, António. Explicações para os que entendem a linguagem que eu falo. Vértice, n.os 301 a 303, Outubro-Dezembro de 1968, p. 864. 80 A desatenção, o deficit de cultura filosófica, o modo preconceitual como Sérgio chegou a ser lido, levou a que houvesse quem dele pretendesse fazer um Berkeley lusitano, sem entender ser ele exactamente o oposto. Aliás, como o próprio teve o cuidado de afirmar: “Eu e o Berkeley, como vós percebeis, estamos em pólos absolutamente opostos” (SÉRGIO, António, Cartas de problemática, n.º 2, p. 2). É a distância filosófica 79

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o nosso próprio corpo. Mas ao fazê-lo, denunciou uma confusão que lhe está associada e que consiste na tendência para associar, como se fossem termos sinónimos, “independente” e “exterior”. Entendendo sempre a consciência como actividade psíquica (ou mental) e não como substância (substância-alma), Sérgio afirma não fazer sentido supor que um objecto existente fora de nós (por exemplo, uma mesa ou um copo) se considere exterior à consciência, porque “a relação de exterioridade não se aplica ao inextenso”81. A mente não é um objecto ocupando um qualquer lugar no espaço. Há, portanto, uma adjectivação inadequada que redunda num nonsense. Ou, como diz o crítico, numa “trapalhada”. A mesa ou o copo são corpos independentes da actividade mental, mas não exteriores a ela – exteriores à consciência. São, isso sim, exteriores ao nosso corpo. Assim sendo, os estímulos provenientes da actividade-físis (Mundo físico) suscitam na actividade psíquica os sinais-sensações. Mas a intuição sensível jamais é a própria actividade-físis. É sim e apenas um sinal dessa actividade: “O elemento sentir não é o real: é um simples sinal da realidade física”82. Esses estímulos da sensação são por isso independentes da psique, mas não exteriores. A sensação não se pode identificar com o estímulo. “Sensação é um algo, estímulo é outro; a sensação é da consciência; o estímulo, da Físis, que é exterior ou interior ao nosso próprio corpo, mas não exterior à nossa actividade mental”83.

É de lamentar ter Sérgio descorado o facto, hoje em dia tão acentuado pelas neurociências, de a actividade psíquica ocorrer na base da actividade-físis cérebro e corpo (totalidade da nossa estrutura corpórea), não sendo esta, portanto, elemento activo e interveniente apenas no processo da cognição sensitiva, da apreensão sensorial do mundo material. Esse descorar pode fazer supor, erroneamente, que no nível superior do pensar, em que se dá a construção teórica, a actividade-físis deixa de marcar presença. Há que não perder de vista este modo de entender o sinal-sensação e a associada reflexão sobre a ideia de exterioridade, ao entrarmos agora na análise crítica da noção sergiana de experimentação. que separa o idealismo empirista do idealismo anti-empirista. Onde Sérgio se enganava era no “vós percebeis”… Nem todos perceberam. 81 SÉRGIO, António, Cartas de problemática, n.º 2, p. 4. 82 Idem, Ensaios, t. II, p. 246. Ou ainda, na p. 233 do mesmo ensaio: “A sensação não passa de um sinal do Mundo”. 83 Ibidem.

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O autor das Cartas de problemática sempre insistiu (como já antes se teve oportunidade de verificar) em declarar-se “experimentacionista”. “Não se me afigura que seja coisa possível o ser-se mais experimentalista do que eu próprio sou”84.

Ou seja, em seu entender, não há ciência completa na ausência de confirmação prática das conclusões teóricas “através dos resultados da experimentação rigorosa”. Impõe-se, por isso, um regresso à ActividadeFísis, à Actividade-do-Mundo, como também lhe chama. A livre criação de Formas (processo unitivo) não basta. Então, dizer que “todo o conhecimento da realidade começa e termina na experiência” parece ser declarativa com inequívoco perfil sergiano. Tanto assim é que, no ensaio intitulado Notas de esclarecimento (1950), deparamos, mais do que uma vez, com frase em tudo semelhante mas não colocada entre aspas85. É, no entanto, frase saída da pena do físico de Ulm e pronunciada em conferência realizada no âmbito das Herbert Spencer Lectures, a 10 de Junho de 1933. Uma afirmativa que, ao contrário do que possa parecer, em nada contraria o antes afirmado sobre o modo einsteiniano de fazer ciência, uma vez que “o começo” não é aqui o mesmo (este antecede o início do trabalho científico propriamente dito). Esta enfática declarativa é ladeada por duas outras que a corroboram: “O puro pensamento lógico não nos pode dar nenhum conhecimento do mundo empírico. […] As proposições a que chegamos através de meios puramente lógicos são inteiramente vazias no que diz respeito à realidade”86. A valoração da experiência parece ser indiscutível elemento comum. Mas como é que um e outro a concebem? O recurso a um mesmo termo não garante que haja absoluta convergência de ideias. Que entende Sérgio por experiência científica? Se, como bom neokantiano, Sérgio não admite haver experiência à revelia do objecto, pois que o estímulo é condição da sensação (do sinal-sensação, como lhe chama), se assim é, a verdade é que a experimentação pressupõe a unidade de que antes amplamente se falou. Ora, como sabemos, essa unidade ou unificação só se dá, só se concretiza plenamente ao nível dos constructos formais. Não há experiência sem juízos, sem encadeamento de ideias, sem construção ideativa. Assim sendo, a experiência científica é posta na esfera Idem, Notas de esclarecimento, p. 210. Ibidem: “Penso, no que toca à física, que tudo começa pelo experimentador minucioso e que tudo acaba pelo experimentador minucioso. Experimentalismo constante desde ponta a ponta”. Ver também p. 233. 86 EINSTEIN, Albert, Mein Weltbild, p. 94. 84 85

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exclusiva da actividade psíquica, ou, talvez melhor, é concebida como se o que é independente da psique perdesse influência, deixasse de pesar. Logo na primeira carta de problemática é-nos dito, no contexto de uma referência muito elogiativa a Wilhelm Wundt e de valorização da atitude de fidelidade “a um experimentalismo extreme”, que “para os homens que realmente pensam, a experiência é uma só, e toda ela psíquica”87. É de notar a forte e directa influência do fundador da psicologia experimental88. Portanto, uma vez concluído o procedimento instaurador do idealismo, o objecto anteposto, o Gegenstand, a intentio objectiva encontra o seu fundamento fora de si, no Eu-activo, no pensar. O Gegenstand, o “objecto exterior” (denominação defeituosa, em seu parecer, mas que por força da tradição nem por isso deixa de utilizar frequentes vezes) é algo mediato, e não algo imediato; assim também a prática, em que a experimentação se inscreve, é estrutura de ideias. A experiência, sendo única, comporta, no entanto, diferentes aspectos. O primeiro é, no dizer sergiano de wundtiana inspiração, o aspecto perscrutativo. Só a este corresponde uma intentio objectiva, um “mundo exterior”, no uso de uma terminologia filosófica clássica ou tradicional, aqui recusada em favor da Actividade-do-Mundo ou Actividade-Físis. Conclui então António Sérgio ser óbvio o seguinte: “[…] ao passo que o aspecto presentativo da experiência é algo imediato como a mesma experiência, o “objecto exterior” é pelo contrário mediato: é um quê postulado (ou suposto, ou inferido) a partir do aspecto presentativo da experiência”89.

E em outro momento de escrita ensaística sobre a experimentação, afirma algo porventura ainda mais revelador do perfil idealista da sua concepção: “As hipóteses científicas, essencialmente, são hipóteses de trabalho, instrumentos de investigação. […] A rigor, a própria verificação é provisória, e põe à prova a nova ideia e também as outras a que está ligada; reduz-se à coerência de um sistema de ideias; e pode, por esse facto, ser mais tarde modificada por observações mais completas, suscitadoras de ideias novas. SÉRGIO, António, Cartas de problemática, n.º 1, p. 2. Tenha-se em consideração, neste contexto, um escrito de juventude pouco conhecido: SÉRGIO, António. Da natureza da afecção. Ensaios de psicologia e pedagogia. Separata da Revista Americana, Rio de Janeiro, ano IV, n.º 9, 1913. 89 SÉRGIO, António, Cartas de problemática, n.º 1, p. 2. 87 88

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[…] A prova da hipótese […] é o grau de clareza com que nos faz ver as coisas, a unidade inteligível que introduz nos factos, nos testemunhos variados, nas percepções havidas. É essa a prova, e essa só”90.

E na página seguinte deste mesmo ensaio, deixa claro o que entende por objectividade: “Toda objectividade é uma questão de direito, e funda-se numa coerência intelectual intrínseca”91.

Muito significativo é também o que Sérgio escreve na carta semiinédita que antes extensamente transcrevi, comentando, e que útil será ter presente. Também nela é clara a insistência no critério da coerência, a redução da verificação (da prova) a um processo de sustentação recíproca de ideias no âmbito da actividade da psique92. A comparação, o confronto da hipótese, ou da teoria, com a actividadefísis, que a experiência (prática experimental científica) promove, redunda então numa comparação de constructos, num verificar se uma dada estrutura de ideias se coaduna, se encaixa, em uma outra estrutura de ideias gerada por diferente conjunto de estímulos da sensação. A verificação consiste na coerência das ideias. Não há, nem pode haver, à luz deste idealismo epistemológico, encaixe de uma ideia com um facto (fenómeno natural, realidade externa/independente). Esta conclusiva edifica-se a partir de fundamental interrogativa, assim enunciada a propósito de Berkeley: “Como saber que um sentir é imagem, que ele é representação de uma coisa incógnita, que nós não podemos sentir como tal?” Idem, Ensaios, t. IV. Lisboa: Sá da Costa, 1972, p. 207 (ensaio intitulado “Repercussões duma hipótese: Ceuta, as navegações e a génese de Portugal”, que reúne três textos redigidos em diferentes alturas; dois deles inicialmente publicados na Lusitânia, em 1925, e o terceiro, agora aqui citado, escrito em Paris muito mais tarde, em 1932. São bom exemplo de como a filosofia está no cerne, na base, de todo o seu ensaísmo. As ideias estruturantes do seu idealismo epistemológico estão sempre, ou quase sempre, activamente presentes. Mesmo quando o título nada indicia nesse sentido). 91 Ibidem, p. 208. 92 Independentemente do seu carácter semi-inédito, este escrito epistolar tem também particular relevância por datar dos últimos anos de vida intelectual activa (1957). Recorde-se que em virtude de doença psíquica, Sérgio deixa de ter uma vida intelectual activa a partir do final desses anos 50 do século passado. Veja-se, a propósito, o rascunho manuscrito de uma carta de Luísa Sérgio, dirigida a um casal de amigos não identificados, que se encontra no espólio de Sérgio e que data muito provavelmente do final do ano de 1959, antecedendo a morte da sua autora em Fevereiro de 1960. Parcialmente citado por Jacinto Baptista em António Sérgio enciclopedista, pp. 36-37. 90

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E prossegue dizendo: “A frase de uma coisa imagem de uma outra, ou representativa dessa outra, somente assumirá significado efectivo se nos for possível a operação mental de nos apresentarmos a nós mesmos as duas coisas, a fim de as podermos comparar entre si. Ora, como nos apresentaremos essa matéria abstracta, para por aí a compararmos com um nosso sentir? A operação mental é aí impossível”93.

Vasco de Magalhães-Vilhena, no seu pertinente e certeiro comentário a esta passagem (que também cita no seu estudo pioneiro de 1964), declara que no idealismo sergiano “a marca da realidade de um mundo objectivo, o critério da realidade objectiva é a coerência de um sistema de relações inteligíveis, e esta apenas; pois todo além-do-pensamento é necessariamente ignoto”94. Neste idealismo epistemológico e crítico, a experimentação (operação manual) “inclui sempre o sentir” (nela é sinal o sentir), mas “a sensação é […] criação da psique, e não uma reprodução da Actividade-mundo”95. “Sem relações inteligíveis que a nossa mente cria […] não alcançamos um Mundo, mas tão-só sentires, e não passa o existente de uma colecção de sentires”96.

Desloquemo-nos agora para junto de Einstein. É certo não nos ter ele deixado nenhuma obra exaustiva, de reflexão filosófica sistemática, claramente reveladora dos contornos precisos do seu pensamento epistemológico. A isso não estava obrigado. Foi físico e não filósofo de profissão, o que de qualquer modo, como sabemos, não retira à sua obra dimensão filosófica de monta. Mesmo assim, na ausência dessa sistematização, já antes amealhámos suficientes evidências, ou, no mínimo, indícios fortes, de ser a concepção einsteiniana de experimentação incompatível com este sérgico concebimento idealista. À luz daquela, há uma relação, para a qual o célebre cientista repetidamente chama a atenção, entre o sistema de relações inteligíveis e o “mundo exterior”. Entre a coerência e a actividade-físis (sendo que esta não é a sua pessoal SÉRGIO, António. Notas a Jorge Berkeley. Três diálogos entre Hilas e Filonous em oposição aos cépticos e ateus. Coimbra: Atlântida, 1948, p. 174. Sérgio traduziu, prefaciou e anotou esta obra de Berkeley. 94 MAGALHÃES-VILHENA, Vasco de. António Sérgio – o idealismo crítico e a crise da ideologia burguesa. Lisboa: Seara Nova, 1964, p. 58. 95 SÉRGIO, António, Ensaios, t. II, p. 217. 96 Idem, Prefácio a Três diálogos…, p. XXXIII. 93

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terminologia). Daí brota o seu apego a expressões como “existir realmente na natureza”, utilizada, por exemplo, na referência à incomodidade das descontinuidades presentes na teoria de Planck. Em vivo contraste com Niels Bohr (com o último Bohr, o pós-modelo de visualização imagética do átomo, a atomic theory de 1913), e ainda mais com Werner Heisenberg, para ele a física é a descoberta do como a natureza é, na sua realidade objectiva, independente do sujeito cognoscente, do pensamento, da actividade mental. A tese, tão intimamente associada ao cubismo de Metzinger – ou, talvez melhor, à descrição e teorização estética que o artista faz do cubismo97 –, e tão cara aos cientistas subscritores da interpretação de Copenhaga, a tese segundo a qual a forma como se olha determina o que é o observado (“how you look at it, that is what it is”)98, era algo insuportável para a sensibilidade científica de Albert Einstein. Qualquer coisa de incompatível com a sua Weltanschauung. Ora, é a partir desta essencial incompatibilidade que se solidifica a sua divergência com o idealismo. Com o andar dos anos, o modo acima descrito de encarar o empreendimento científico não esmorece, senão que, pelo contrário, se viu revitalizado. A célebre controvérsia com Niels Bohr e restantes intérpretes de Copenhaga reforçou essa posição. Facto que decisivamente contribuiu para um certo isolamento, dado que a sua posição deixou de estar de acordo com o pensamento científico em voga. Utilizando linguagem artística, Einstein deixava de ser um cientista avant-garde. Como diz Walter Isaacson em obra cientificamente muito actualizada, “durante a sua maturidade, Einstein acreditou com mais firmeza na existência de uma ‘realidade’ objectiva, quer esta pudesse ser observada ou não. A crença num mundo externo independente da pessoa que o observa, repetia ele muitas vezes, era a base de toda a ciência”99. Esta concepção, a que é inerente o referido apegamento à relação (fundamental) com a exterioridade, aparece-nos, porventura até melhor explícita, em outros contextos de problematização. É o que acontece, por exemplo, na conversa sobre religião tida no Verão de 1930 com o místico, poeta e também músico indiano Rabindranath Tagore. Nessa ocasião Einstein disse o seguinte: Cf. GLEIZES, Albert; METZINGER, Jean. Du cubisme. Paris: Éditions Présence, 1980, p. 68 e ss. (entre outras). (1.a ed.: Paris: Figuière, 1912) 98 Bohr tinha em sua sala, na habitação que lhe foi cedida nos anos 30 pela Fundação Carlsberg, o quadro La femme au cheval, da autoria de Jean Metzinger (pintura que data do início dos anos 1910). 99 ISAACSON, Walter. Einstein, p. 279. 97

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“There are two different conceptions about the nature of the universe: (1) the world as a unity depending of humanity; (2) the world as a reality independent of the human factor. […] I cannot prove scientifically that truth must be conceived as a truth that is valid independent of humanity, but I firmly believe it. […] If there is a reality independent of man, there is also a truth relative to this reality”100.

Tenho sempre a tentação de ver na atitude de Einstein alguma similitude com a dos músicos compositores e pintores do século vinte que se recusaram a enveredar totalmente pelo vanguardismo da atonalidade (no caso da música) ou pelo do completo abstraccionismo (no caso da pintura). Casos como os de Igor Stravinsky, Benjamin Britten, Paul Hindemith, Pablo Picasso, Fernand Léger, este principalmente na fase pós-cubista, de afirmação do seu carácter pessoal em obras inspiradas na mecânica. No seu excelente estudo comparativo da força criativa manifestada em Einstein e Picasso, Arthur I. Miller diz, referindo-se a essas duas figuras maiores da cultura dos anos Novecentos, que “each of them lost touch with the advances they created”101. Há verdade nesta interessante conclusão; mas será toda a verdade? Não será ela exemplo das sempre perigosas meias-verdades? Vimos antes a importância da visão imagética na elaboração mental do criador da Relatividade; no entanto, não creio que ele tivesse permanecido refém de uma visualização associada aos modelos da realidade macrofísica, de uma visualização formatada com base na realidade que nos é familiar, consentânea com os fenómenos constitutivos da vida quotidiana (do mesocosmo) e do macrocosmo. Não me parece que Einstein possa ser acusado de uma tal ingenuidade. A sua incomodidade é para com uma ordem subjectiva, imposta ao real pelo sujeito observador, que, por exemplo, através da proclamação de um indeterminismo essencial ou da instituição da primazia do observador sobre o real observado, tende a substituir a ordem pelo caos, o racional pelo irracional, a realidade objectiva por uma realidade subjectiva. Representações como o diagrama de Feynman, em que o muão anti-neutrino interage com um electrão através da troca de uma partícula Zº – um tipo de representação que corrobora a ideia de Platão (tão adorada por Sérgio) Conversa com Rabindranath Tagore, publicada no New York Times Magazine, 10 de Agosto de 1930. Sublinhado meu. 101 MILLER, Arthur I. Einstein, Picasso: Space, time, and the beauty that causes havoc. New York: Basic Books, 2001, p. 262. Isto porque, na opinião de Miller, “in their own ways Einstein and Picasso were intent on extending classical figurative science and art”. Ibidem, p. 259. 100

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de ser a matemática a chave para a visualização da natureza –, não ferem, nem são incompatíveis com a Anschauung einsteiniana, ao contrário do que Arthur I. Miller declara, ao considerar que Einstein está aprisionado a uma ciência figurativa, uma visual imagery clássica, isto é, “a visual imagery abstracted from phenomena and objects we have experienced in the daily world”102. Não creio, repito, que esta acusação de ingenuidade seja justa. E também não é nessa vertente que Einstein é menos platónico. É sim no distanciar-se do idealismo – do procedimento instaurador do idealismo. Se muito não me engano, erra quem, após os avanços da mecânica quântica, olhar para a atitude einsteiniana como sendo expressão de puro arcaísmo. A inclinação que confessei, a de ver semelhança entre a evolução do conhecimento científico e o que se foi passando no domínio das artes, contém perigos não de pequena grandeza. Ciência e arte não são uma e a mesma coisa. O que numa, por exemplo, se entende por progresso, não é o mesmo que se apresenta na outra. O modelo atómico concebido como réplica do sistema Solar é um arcaísmo científico, não podendo ser tolerado no seio da actual mecânica quântica; no entanto, em arte, seria crime cultural rejeitar a possibilidade de um criador virar costas à mudança instituída por uma vanguarda artística. Como se poderia considerar esteticamente ilegítimo o acto criativo de um Rachmaninov com partituras novecentistas como as Variações Corelli e os seus dois últimos concertos para piano e orquestra (n.º 3 e n.º 4), ou o gesto criativo de um Richard Strauss ao compor uma obra orquestral como Metamorphosen em 1945, em pleno século da atonalidade? Como se poderia admitir que as referidas obras musicais, aqui nomeadas a título de exemplo, fossem tratadas do mesmo modo que a ciência hodierna trata as antigas representações teóricas do átomo (incluindo a antes referida teoria atómica de Niels Bohr)? Há por isso que ter as maiores precauções no estabelecer de analogias ou de similitudes entre o domínio da ciência e o das artes. Eddington nem sempre teve essa prudência, sendo exemplo dos que se deixaram e deixam levar por entusiasmos românticos causadores de desfigurações do empreendimento científico que acabam por cometer o assassinato intelectual da objectividade e violentar a Razão científica. Contra isso se erguia o Albert, dedicado físico-filósofo de Ulm. Albert Einstein não era tão sergiano quanto Sérgio supunha. No confronto intelectual entre o idealismo físico e o materialismo físico, confronto entre duas Weltanschauungen (duas concepções do mundo), Einstein inclina-se para o lado desta última em detrimento daquela. O procedimento Ibidem, p. 259.

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instaurador do idealismo era-lhe alheio. Embora não sistematizada, nem afirmada nestes termos, a ideia de que a unidade do real se fundamenta na sua materialidade (mundo exterior) parece estar longe de ser coisa ausente no quadro do seu pensamento. Uma potencial conclusão que arrepiaria o nosso bom Sérgio até às entranhas, pois que, em sua óptica, uma tal ideia só pode conduzir directamente às filosofias menores e vetustas. Ao decaimento filosófico. O fundamento desta convicção parece-me já ter aqui ficado esclarecido. A objectividade, no conceber sergiano, é fundada na consciência, na actividade da psique; a objectividade, no conceber einsteiniano, é, pelo contrário, fundada no “mundo exterior”, na realidade material. Em António Sérgio, a ordem é posta pelo sujeito cognitivo. Enquanto, em Einstein, a ordem é pertença da própria realidade objectiva, independentemente da acção intencional do sujeito cognoscente – é essencial característica da Natureza. Estranho que António Sérgio não tenha dado maior atenção à histórica controvérsia Einstein-Bohr em torno da mecânica quântica, com Einstein a opor-se à interpretação de Copenhaga, representativa do idealismo físico. Por que não escreveu ele um ensaio de análise crítica dessa apaixonante controvérsia tão central no pensamento científico do século XX? É claro que há textos como as Cartas de problemática, assim como vários outros em que, a partir da década de 30 do último século, a mecânica quântica é objecto de séria atenção crítica. A questão do indeterminismo despertou-lhe particular interesse, como aqui se viu nomeadamente através da citação de anotações inéditas manuscritas em exemplares pessoais das obras que versam o tema da física quântica. A questão é que a controvérsia Einstein-Bohr representa o confronto de duas interpretações incompatíveis uma com a outra, para não dizer opostas, em que uma advoga um indeterminismo essencial, afirmando-se completa, e a outra defende a possibilidade de descrição causal dos fenómenos físicos, insistindo na ideia de uma realidade física (material) objectiva, independente do sujeito observador. É a exuberância desta diferença que parece obrigar, impelir o crítico, ou todo aquele que sobre ela opina com alguma profundidade e fundamento, a tomar partido, a assumir clara posição em favor de uma ou de outra. Como sabemos, Einstein perfila-se na primeira linha de combate intelectual em defesa desta segunda interpretação. Mas Sérgio, algo surpreendentemente (para mais atendendo à sua personalidade de lutador, de intrépido pelejador e opugnador ideológico), embora assumindo posição favorável ao determinismo, não se declara partidário de nenhuma das duas interpretações. Quer estar com

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todos os grandes cientistas, fazendo passar imagem de familiaridade, de harmonia, de convergência do seu idealismo epistemológico e crítico com as grandes correntes do pensamento científico contemporâneo. Procura não se distanciar de nenhuma das autoridades científicas em presença. Pressente-se o cuidado de não se colocar em oposição frontal a personalidades da ciência, evitando que alguém possa vir a terreiro evocar uma figura maior da ciência como estando em contradição com o seu ideário. Não deixo de ver nisto o sintoma de alguma fraqueza a que, se não me engano, não será estranha o nacional e pitoresco ambiente de confronto com os líteras, gente despojada de cultura científica. Uma acareação que ao longo da vida o atormentou e muito desgastou – se bem que, diga-se em abono da verdade, tenha acabado por desempenhar papel determinante no original desenho do perfil interventivo do filósofo, nomeadamente no que diz respeito à forma ensaio, ao estilo ensaístico do seu filosofar. Seja como for, se tivesse prestado maior atenção à controvérsia (às diferenças), ou, para sermos talvez mais justos, se tivesse podido conhecer melhor os seus meandros – dado que muita informação não estava disponível nos anos 1950, e antes de 1960, quando, por razões de saúde, cessa a sua vida intelectual activa, talvez António Sérgio se tivesse apercebido de que Einstein não estava tão concordante com o seu idealismo quanto ele próprio supôs. Mas, como pudemos observar, uma desarmonia capital coabita com harmonias não menos essenciais, sendo que uma destas se traduz, em meu entender, em um muito fecundo contributo para a reflexão profunda sobre o velho problema (ou talvez dilema) da relação entre a ciência e a religião. Entre a Razão e a Fé. Se trouxermos à memória a antes referida tese, sergiana e einsteiniana, da associação da religiosidade com a ciência, isto é, de que existe, na base de todo o afã do homem de ciência, uma convicção pertencente à família do sentimento religioso, convicção essa traduzida pela ideia de Uno-Unificante – na pessoal terminologia sérgica –, se recordarmos esta tese, e se a ela adicionarmos o agnosticismo clara e inequivocamente assumido por ambos, vemos estruturar-se um muito atraente caminho de reflexão consequente sobre o efectivo contributo da ciência para o futuro das religiões. Enquanto admirador de Albert Einstein e de António Sérgio, enquanto estudioso do pensamento de ambos, encontro riquíssimo material de pensamento para que os seres humanos possam superar um infantilismo intelectual de graves consequências teóricas e também práticas. O que se traduz na vetusta crença em um Deus pessoal, omnipotente, omnisciente

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e interferente. A minha dupla convicção de que 1) a religião estribada na crença em uma divindade pessoal é incompatível com a ciência – sendo o discurso conciliador pura expressão de ignorância, de cobardia intelectual ou, no pior dos casos, de desonestidade intelectual; e de que 2) as religiões só terão futuro intelectualmente próspero se lograrem afastar-se da espiritualidade crente, libertando-se da ideia de um ente demiúrgico, parece-me ter saudáveis raízes no pensamento dos autores que aqui foram objecto de estudo comparativo, se bem que nenhum deles tenha enunciado a minha tese pessoal, nem desenvolvido até às últimas consequências algumas das ideias que nos legaram. Sei quanto isto horroriza muitíssimas almas (uma gorda maioria de humanos); sei quantas angústias causa, quanta indignação semeia. Sei também, por o sentir na pele, os custos e perigos que comporta, em particular quando se fala dentro das fronteiras de uma Nação ajesuitada. Mas num tempo pós-Darwin, posterior à descoberta da molécula do DNA e depois dos mais recentes legados cognitivos no domínio das neurociências, alargando em muito o conhecimento do cérebro, após tudo isto (e mais ainda desse património da Razão científica que por agora prescindo de evocar), não ter coragem de denunciar o arcaísmo da crença é, em última instância, um decaimento mental que nos conduz directamente ao terreno da falta de honestidade intelectual. Conclusão que é directo efeito da ciência que hoje temos. É mais amigo da religião quem, como eu, abertamente o declara, do que quem persiste no enaltecimento de um pensar cadaveroso, ou de quem se acobarda, refugiando-se no silêncio ou na sombra da ambiguidade discursiva. Mas com isto não estou a admitir que a questão seja simples. Muito pelo contrário. E não o é, em particular para quem, dentro das instituições religiosas, tem na mão a vara do mando. Para além de que, como todos sabemos, nunca é simples o processo de abandono de uma crença profunda, associada a uma longuíssima tradição de pensamento. A relação intelectual sincera e afectuosamente profunda que mantive com um líder jesuíta, o meu saudoso Mestre padre Manuel Antunes, está no âmago desse ser amigo da religião, ou, como prefiro dizer, amigo da religiosidade. Estatuto que, por estranho que soe, provém directamente da essencial condição de amigo da Razão. Mas falando como Nietzsche, tudo isto só se tornará absolutamente claro para o homem do futuro. Porém, não me impede isso de afirmar que há em Einstein e António Sérgio uma religiosidade ateísta. Com generosa inteligência, ambos souberam compreender que a superação da crença, da fé tradicional, não pode ser

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trazida pelo pseudo-ateísmo da crença na não existência de deus ou de deuses demiurgos. O progresso intelectual superador da crença denega, do mesmo passo, as religiões existentes e o ateísmo sectário, porque ambos laboram no mesmo erro. Ambos estrebucham no pântano em que o intelecto se mantém refém da crença. Há que edificar uma religiosidade de novo tipo: a religiosidade ateia ou agnóstica (termos para mim sinónimos). Tal como se impõe denunciar o ateísmo sectário e dogmático, contaminado pela crença negativa – esse que classifico de pseudo-ateísmo ainda dominante –, construindo o ateísmo religioso. Se muito não erro, terá sido algo parecido com este meu entendimento o que levou Einstein a afirmar: “Science without religion is lame, religion without science is blind”103.

Frase originalmente escrita em inglês e incansavelmente citada por crentes de forma descontextualizada, ignorando, convenientemente, os parágrafos seguintes do texto, em que de modo inequívoco o autor declara ser para si inaceitável a ideia de existência de um deus pessoal, à maneira das três grandes religiões em actividade. Coisa a que não hesita chamar infantilidade espiritual, elemento pertencente ao “período juvenil da evolução espiritual da humanidade”. A associação do sentimento religioso (da religiosidade) ao trabalho científico e até mesmo, acrescento eu, à atitude científica em si mesma, é, na minha óptica, um dos mais fecundos pontos de convergência entre o idealismo crítico-epistemológico sergiano e a epistemologia realista ou tendencialmente materialista de Einstein. Causando espanto e até incontida indignação em trincheiras supostamente antípodas, Sérgio afirmou acreditar ser a atitude religiosa inconciliável com a dogmática, acantonando-se assim ao lado da autêntica atitude científica – crítico-racional, denegadora, por definição, do dogmatismo. Em esforço dilucidatório perante crentes religiosos e ateus, acrescentava, não sem sentido de humor poético: “A atitude dogmática leva sempre ao mal – à intolerância, à violência, à tirania, ao ódio. Por isso, na humildade da problemática há o seu quê de divino”104. “Mas balbucio tudo isto (como é meu costume) muitíssimo humilde e problematicamente, com perfeita consciência da complexidade das coisas. […] Racionalismo radical, – ou misticismo racionalista, se assim

EINSTEIN, Albert. Science and Religion, Address at the Conference on Science, Philosophy, and Religion, New York, 1940. Trad. port.: EINSTEIN, Albert. Como vejo a ciência…, p. 276. 104 SÉRGIO, António, Cartas de problemática, n.o 8, p. 8. 103

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preferirem. Em mim (pode dizer-se) há um racionalismo radical que tem seu quê de místico, de vida unitiva, de moral fraterna”105.

Mas tudo isto é temática tão vasta quanto fascinante, merecendo por isso ser objecto de estudo exclusivo que por enquanto se adia, mas não sem deixar um lamento: pena que António Sérgio não nos tenha legado ensaio inteiramente dedicado a esta problemática, e que também Albert Einstein, embora com maior grau de generosidade, se tenha quedado pela produção de curtos, se bem que muito relevantes e preclaros textos de reflexão crítica sobre o tema. Posicionando-me no terreno da irmandade de pensamento em que eu próprio me inscrevo (por estar para lá das implicâncias filosóficas que me apartam de Sérgio mais do que de Einstein), concluo com uma frase do pai da Relatividade que é verbo soando como acorde perfeito final numa partitura; forma de representação simbólica de uma convergência de pensares, inspirada na musical harmonia amada pelo físico tangedor, pelo filósofo melómano e pelo escriba filosófico de serviço com umbilical cordão ligado à arte dos sons. Eis esse acorde final em que nos reconhecemos e nos irmanamos: O que há de mais belo na nossa vida é o sentimento do mistério106.

Idem, Ensaios, t. II, p. 262. Embora, como disse, a frase seja de Einstein, propositadamente omito as aspas, pois que tanto Sérgio como eu próprio dela desejaríamos ter sido autores se para tal tivéssemos tido inspiração, engenho e arte. Será o banimento das aspas um disfarce do puro ciúme intelectual? O sentimento do mistério, acrescentava Einstein, “é a emoção fundamental que gera a verdadeira arte e a verdadeira ciência”. EINSTEIN, Albert. Ideas and opinions. New York: Crown Publishers, 1954, p. 9.

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Jaime Cortesão – Pensar e cantar “a vida intensiva e expansiva” (Entre Guyau e a voz que falava baixo a S. Francisco) JOSÉ CARLOS SEABRA PEREIRA Universidade de Coimbra

1 Na trajectória do jovem Jaime Cortesão a caminho da Seara Nova, ressalta a adesão a uma mundividência de evolucionismo idealista, a uma antropologia espiritualista (sem dependência de escatologia transcendente), a um projecto moral de acção benigna no quadro de uma ética sem prémio nem sanção, à especulação epistemológica e estética cedo conducente a uma concepção anti-determinista da criação artística, a uma poética neo-romântica de ternura sensível, de sonho galvanizante e de eloquência mobilizadora. Ao mesmo tempo, numa criatividade também muito dotada para o desenho e a ilustração, avulta a profusa produção lírica (por vezes de tensão heróica, se não de atitude épica), cantando “a vida intensiva e expansiva” e buscando uma nova bucólica e uma nova erótica na feição pessoal dada a vectores decisivos do Neo-Romantismo saudosista (dinamismo cosmológico, sincretismo ôntico, aventura espiritual…) e à assombrosa produção ensaística, historiográfica e crítica, congruentemente estruturada por idêntica convergência do legado de Guyau com o franciscanismo (promoção do cosmos pela pietas e pela caritas, simbiose com a libertação da candura ôntica, indiscernível da valorização saudosista da condição infantil, aferição e rectificação gnoseológica e ética do Homem de acordo com a Natureza, influxo decisivo do magistério de S. Francisco e do exemplo dos seus fraticelli e das ousadias dos “irmãos espirituais” na “mística dos Descobrimentos”). Enfim – antes e depois do advento da Seara Nova, antes e depois do Estado Novo –, o cidadão interventivo e o homem de cultura, que Jaime Cortesão indissociavelmente foi, distinguem-se pela posição anti-redutora que não abdica de conciliar liberdade e portugalidade contra maniqueísmos de todos os quadrantes, tal como pela coerência orgânica dos interesses e dos vectores na obra poliédrica.

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Jaime Cortesão – Pensar e cantar “a vida intensiva e expansiva”

De facto, o cidadão interventivo, o mentor cívico, o político republicano e o proto-historiador estão sempre presentes no período em que Jaime Cortesão mais se destaca como poeta, tal como o poeta e o ensaísta de temas literários voltarão periodicamente a evidenciar-se de modo a notar-se mesmo um reacentuar desses interesses na última fase da vida (com artigos e ensaios parcialmente reunidos nos livros Eça de Queirós e a Questão Social, 1949, e O Humanismo Universalista dos Portugueses, 1965). Por outro lado, pela fronteira porosa dos vários tipos de discurso, que ao longo da vida cultiva, passam os mesmos grandes tópicos de mundivivência e vocação, os mesmos vectores de nobilitação e embelezamento da Vida universal e do Homem português. As grandes questões que se nos deparam como objecto de estudo, motivo de exaltação e fonte de influência, em certa fase da trajectória intelectual e artística de Jaime Cortesão, descobrimo-las já como temas e situações que canta ou encena, enaltece ou problematiza em fases precedentes. Ao evocar as pesquisas documentais que fizera para preparar a composição do seu drama em verso O Infante de Sagres (1916), Jaime Cortesão declara, por 1959, que a sua “vocação de historiador” deve ter despertado então. De facto, a vocação de historiador como forma nobre de exercício de cidadania, a predilecção pela Expansão marítima como objecto formal de pesquisa e de discurso historiográfico, até a concepção anti-positivista da “interpretação actual do passado” e as incidências da valorização do Volksgeist lusíada e do culto d’Os Lusíadas como Bíblia da nacionalidade e de Camões como personificação cimeira do génio português (humanista, patriota e heróico), manifestam-se já nos escritos juvenis, no magistério liceal e, depois, em cursos e conferências na Universidade Popular do Porto, no quadro da acção educativo-cultural promovida pela Renascença Portuguesa nos ínicios da segunda década do século XX – tempo que o protohistoriador henriquino já chama “Hora do Infante”, considerando que nele reemerge o espírito da nacionalidade e se difunde pela voz inspirada dos Poetas. E se o apego àqueles valores nacionais em óptica neo-romântica, bem como o culto camoniano permanecerão vívidos e manifestos (desde “Luís de Camões glorificado pelos Poetas da nossa terra”, 1924, até aos estudos recolhidos no volume O Humanismo Universalista dos Portugueses, 1965, passando pelos Ensaios Camonianos saídos, em 1953, na brasileira Anhembi e pela conferência “Camões e o Descobrimento do Mundo”, em 1943/1944), também são reveladores quer a temática dos primeiros trabalhos historiográficos antes dos exílios (1922: A Expedição de Pedro Álvares Cabral e o Descobrimento do Brasil), quer o empenhamento na investigação e na

José Carlos Seabra Pereira

exegese em plena situação de fuga e exílio em Espanha e França, a autoria da Introdução histórica ao Guide du Portugal (Paris, Hachette) em 1929, o curso leccionado em Sevilha em 1932, etc.

2 Nos anos de formação (científica e humanista) e de impetuosa afirmação juvenil, que são os da primeira década do século XX, são mais do que sintomáticas as afinidades com a corrente de Neo-Romantismo vitalista e emancipalista e as buscas alocêntricas que a trajectória de Jaime Cortesão denuncia na dinâmica de um campo literário então hegemonizada por aquela corrente. Sinais de percepção grupal de que uma nova “literatura de intuitos” poderia partir do mesmo campo de indignação social, de irridência política e de progressismo mental sem abdicar de uma atitude de crítica refontalizante e de superação totalizante perante a modernidade urbano-industrial e a ideologia cientista, perante o agnosticismo positivista e o jacobinismo político, tornam-se notórios com o advento da Nova Silva que, em 1907, com Leonardo Coimbra, Cláudio Basto e Álvaro Pinto, Jaime Cortesão lança no Porto – depurando sob a divisa Libertas o que, em conluio com João de Barros e Vaz Passos, Alfredo Pimenta e Ângelo Jorge, vinham difundindo no semanário A Vida, onde o espírito acrata bafejava as suas intervenções doutrinais, polémicas e poéticas. Com efeito, é na Nova Silva – revista ilustrada onde a exuberância da veia poética de Jaime Cortesão só tem paralelo nas manifestações do seu talento para o portrait-charge –, bem como nas iniciativas do clube satélite, de organização e propaganda política e cultural, Os Amigos do ABC – empenhado na difusão da “Ideia” libertária (engagement que Cortesão evocará na Portucale e que talvez possamos ver cordialmente ironizado no magnífico conto O Veiga, de António Patrício) –, que se esboça a busca de inédita síntese neo-romântica (ainda que destinada a quedar-se, uma e outra vez, pelo sincretismo), quando o protesto e a utopia sócio-políticas se extremam, mas exigem integrar-se, enquanto “fogo de amor”, no “impulso libertário do Universo”, ou quando se canta sem inibições “o poder da carne reveladora”, num erotismo sublime que é indiscernivelmente “Amor místico”, ou quando se deixar intuir que “o seu olhar para o Futuro” se ergue pela recognição da “unidade original e eterna”. Uma forte componente de intervenção e de divulgação doutrinária com índole acrata emerge nas considerações iniciais de Leonardo Coimbra, sobre a contraposição de “O Homem livre e o homem legal”, e de Álvaro

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Pinto, sobre a almejada “Palingenesia social”; e daí irradia para sucessivos artigos de crítica às instituições familiares e educativas (que, na sequência da Questão Académica de 1907, Cortesão ecoará como orador e como autor dos textos e desenhos do número-único Can Can, 1908). Coonestando-a literariamente por lugares selectos da poesia militante de Antero de Quental e de Gomes Leal, a Nova Silva não descurava o espaço da congénita criação lírica; e nesta ninguém levava a palma a Jaime Cortesão, que ali dava a conhecer “Meu irmão rouxinol”, “Boa vizinha”, “Canção da Carne”, “A fonte e a borboleta”, “Olhos nos olhos”… Experiência efémera, a Nova Silva verá quase todo o corpo de colaboradores e quase todo o quadro de intenções transitar, em torno a um Jaime Cortesão ainda mais prolífico como poeta, para o magazine portuense Ilustração Popular (1908-1909) – num projecto que ao mesmo tempo obriga a coabitar com mais heterogéneas tendências estético-ideológicas e com mais concessivas funções institucionais em ordem à integração social do magma neo-romântico. Mas, nessa passagem de testemunho, a Nova Silva já garantira o valor de referência para certo espírito acrata que subsistirá, intercadente, na carreira inicial do grupo da Seara Nova – não como realização política da tentação sediciosa (sem embargo dos pontos de vista anarco-sindicalistas que Emílio Costa defenderá), mas como exigência de um horizonte de radical liberdade de pensamento e de auto-determinação.

3 Como seria de esperar de uma tal personalidade de jovem intelectual no contexto ideológico-social dos alvores do século XX em Portugal, a conjugação de religiosidade franciscana heterodoxa, de generoso compromisso emancipalista e de espírito combativo cedo levou Jaime Cortesão ao seio da Maçonaria. Mas foi temporária, intermitente e acidentada essa integração, de que porventura fica como facto mais significativo a adopção do nome simbólico Marcus Guyau – pois, por detrás do nome de um pedagogo menor, muitos então leriam alusão ao nome do malogrado e influente filósofo e poeta Jean Marie Guyau, indiciante de adesão àqueles princípios de orientação metafísica e antropológica, ética e estética, que liminarmente apontámos como distintivos da compleição mental e da realização existencial do jovem Cortesão. Não é por acaso que um Manuel Ribeiro, ainda em juvenil fase anarcosindicalista, ao intervir na polémica suscitada pelo primeiro grande Inquérito Literário do século XX – conduzido por Boavida Portugal nas páginas do República em 1912 –, atacando com incompreensiva virulência

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o “saudosismo” e os “lunáticos” da Renascença Portuguesa, mas de tudo isso desejando separar Jaime Cortesão, o fazia sob o signo deste programa: “Queremos que a arte seja (…) uma fonte de rejuvenescimento moral, uma gloriosa expansão da vida como o divino Guyau a entendia, e que ela seja também (…) um instrumento de reivindicação social”. Pesem embora os equívocos da crítica e a divergência dos caminhos posteriores, esse programa mínimo convém ao que sempre será a poética heterotélica e o lirismo de profecia e acção de Jaime Cortesão (tão louvado pelo vitalista João de Barros). Aliás, entre outros textos consonantes (como a famosa “Carta a Raul Proença”, no advento da Renascença Portuguesa), o jovem Jaime Zuzarte Cortesão produzira já, em circuito intelectual mais restrito, notável documento de especulação epistemológica e estética que, como António Pedro Pita deduziu de modo lapidar, ganhava contextualmente o valor de intervenção “em prol da substituição do naturalismo e do positivismo como referências centrais da arte e da filosofia republicanas”. Com efeito, em Dezembro de 1910, Jaime Cortesão apresentou à Escola Médica de Lisboa a tese A Arte e a Medicina – Antero de Quental e Sousa Martins, com uma concepção anti-determinista da criação estética (da Arte “essencialmente criadora”) e uma quase pioneira defesa da inteligibilidade imanente ao universo de sentido e mistério a que cada obra de arte dá vida. E, em contraste com a refutação de Max Nordau e com a matizada recepção de Nietzsche, é justamente sob a égide de Jean-Marie Guyau que Jaime Cortesão coloca as mais fortes e peculiares asserções da sua dissertação, em especial quando trata de propugnar a nada inócua autonomia axiológica da criação estética: “A arte verdadeira (…), sem possuir exteriormente um objectivo moral e social, tem em si mesma a sua moralidade profunda e a sua profunda sociabilidade, que fazem a sua saúde e a sua vitalidade”.

4 Jaime Cortesão adere ao Partido Republicano Português e colabora na preparação do advento do novo regime; depois, tendo concebido e lançado a Renascença Portuguesa, revela-se pendular congraçador das díspares tendências e personalidades nas tensões matriciais do empreendimento, para logo depois se impor como seu membro proeminente e figura de proa das suas publicações e das suas extensões em iniciativas várias de acção cívico-cultural (em particular, como um dos professores mais activos da Universidade Popular do Porto, célebre pelas lições de história pátria). Do mesmo passo, torna-se elemento destacado do republicanismo nãopositivista e não-jacobino e esforça-se por “dar um conteúdo renovador

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e fecundo à revolução republicana”, na linha de “um renascimento pelo regresso à própria realidade essencial da grei, pela exaltação da alma portuguesa, do espírito da raça”, em ordem a restaurá-la em facho civilizador (como sintetizaria no importante “Prefácio a modo de memórias”, da 4.ª edição, 1960, de O Infante de Sagres). Nesse período que vai até ao eclodir da Grande Guerra, além de dirigir A Vida Portuguesa (1912-1915), quinzenário de “inquérito à vida nacional” em que a Renascença Portuguesa desdobrava a acção cívico-cultural d’A Águia, Jaime Cortesão publica com frequência poemas na Nova Silva, na Ilustração Popular, n’A Vida, na Rajada, n’A Águia, na Ilustração Portuguesa, n’O Século, etc. Nesses periódicos, sobretudo n’A Águia, entremeia artigos programáticos, ora de índole estético-literária (como “O Poeta”), ora de âmbito mais vasto (como “A Renascença Portuguesa e os seus intuitos”). Durante todo este trajecto, Jaime Cortesão via-se reconhecido como poeta situado na dianteira de um dos movimentos estético-literários decisivos – o chamado saudosismo – e louvado quer pelas figuras então consagradas (como Pascoaes e Leonardo Coimbra), quer pela nova estrela então ainda não visível como tal (Fernando Pessoa). E, em verdade, além de autor de um desconcertante livro de contos, Daquém e Dalém Morte (1913) – que Óscar Lopes estudou como ficcionalização de alguns dos melhores símbolos ou das expressões mais agudas quer dos fundamentais sentimentos de vida do escritor, quer do saudosismo d’A Águia –, e dos dramas O Infante de Sagres (1916), Egas Moniz (1918), Adão e Eva (1921) – que modulavam nas vertentes histórica e social, mas sempre em registo poético e mitogenésico, o tema do sacríficio de todos os laços afectivos pessoais à prossecução heróica de um ideal aferido pelo Volksgeist lusíada e por uma antropologia heterodoxamente religiosa e libertária –, Jaime Cortesão foi um dos poetas mais prolíficos e representativos do primeiro quartel do século XX. Desde a Nova Silva, os poemas subscritos por Jaime Zuzarte Cortesão integram o protesto e a utopia sócio-política, enquanto “fogo de amor”, no “impulso libertário do Universo!”, entoam apoteoses à pletora da Natureza e à beleza da expressão artística (tão natural como os seus modelos não-humanos – “Meu irmão Rouxinol!”), que culminam em postulações idênticas às do amor sublime e irredutíveis à mecânica transformista. Desde então, esses poemas de Jaime Cortesão buscam a síntese eufórica e dignificante da erótica hedonista, cuja desinibição genitalizará o amor sublime saudosista e dialecticamente o distinguirá de outras idealizações neoromânticas (“Canção da carne”) e do ascenso angélico, que dialecticamente

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distinguirá o mesmo amor sublime de outras libertações neo-românticas do desejo (“Olhos nos olhos”). E logo depois, na impressionante produtividade lírica que alardeia na Ilustração Popular (1908-1909), Jaime Cortesão ilustra outros aspectos nucleares da sua perseguição artística de um novo humanismo progressista: a energia espiritual em “A alavanca de Arquimedes”, a ontologia do heróico em “O canto das águias”, o paradoxo amoroso em “Cinzas”, etc. Não admira, pois, que no número inaugural da primeira série d’A Águia (saído intencionalmente no 1.º de Dezembro de 1910), caiba a Jaime Cortesão o privilégio de erguer, em exaltante prosa poética, o perfil paradigmático e insofismavelmente neo-romântico de “O Poeta”. Profeticamente anunciado (“Quando o meu Deus sobre mim desce a sua sarça de inspiração ardente”, “sinto atrás de mim o ruir das catadupas, (…) o sangue do meu corpo arde e corre como a chama, (…) o meu pensamento é ágil como a asa, a flecha, o vento, o raio”), o Poeta é um possesso sacral, para ser o condutor sublime das energias múltiplas que se descobre ou convoca – “Não sou a carne, sou a essência; não sou o lábio, sou o grito; não sou a lenha, sou o fogo; não sou a sede, sou a fonte”» – e actuar como grande adunador cósmico: “Meu ser comunga o ritmo dos astros, atravessa-o um arrepio de Infinito e Eternidade, e embebido, encharcado, diluído num luar de sonho, sinto afluir à minha boca numa aluvião tempestuosa de gritos, vozes e hinos formidáveis, todas as vidas do Universo”. Decantador dionisíaco das mais profundas experiências e aspirações humanas, o Poeta libra-as depois em dimensão profética e vocação de Absoluto: “Poeta é o que faz dentro de si as novas experiências do Amor e do Mistério, para depois trazer ao Mundo uma mais alta verdade”. Nem admira que seja a propósito do seu livro A Morte da Águia que, em 1910, Leonardo Coimbra tenha começado a delinear o cânone neoromântico dessa “corrente de paganismo espiritualista” que constituía já a mais alta manifestação da literatura coeva. Nem admira, igualmente, que na Primavera de 1911 caiba a Jaime Cortesão propor na figura de “O Poeta Teixeira de Pascoaes”, além de exemplo da “personificação do génio da Raça” (ao lado de Camões, Antero e Junqueiro), uma primeira síntese da poética e do cânone saudosistas – como proposta que literariamente melhor corresponde à corrente de pensamento moderno que opõe o “idealismo da livre metafísica e duma vasta e individualizada religiosidade” ao materialismo e ao positivismo que “já lá vão…”. Nem admira ainda que, na imediata fase áurea d’A Águia e do movimento saudosista (e sem abdicar da “transposição simbólica da exaltação da Liberdade”, nem menorizar o

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canto programático de “humanização da Natureza”), seja Jaime Cortesão o poeta mais relevante no que concerne a certos temas – v.g. no tratamento do amor – e a certos estilemas – v.g. o anseio do “verbo escultural”.

5 Com o período desencadeado pela Grande Guerra – e antecipando a corajosa participação no Front como médico voluntário e capitão miliciano que, gaseado, recebe a Cruz de Guerra, bem como o combate político nas crises da República democrática (desde a Junta Revolucionária do Porto, em 1915, contra a ditadura de Pimenta de Castro, até à União Cívica de 1923, passando pelo encarceramento como conspirador anti-sidonista) e, ao tempo da entrada para a Academia das Ciências de Lisboa, o pronunciamento patriótico, com conhecimento de causa, sobre a problemática do desenvolvimento integrado da África portuguesa –, veio a direcção do “diário democrático” O Norte, no qual colabora Raul Proença, e a campanha em prol da beligerância de Portugal, com a redacção de uma Cartilha do Povo, a fim de tornar a mobilização para a Grande Guerra motivadora para os soldados e compreensível ao cidadão comum. Entre o declínio da Renascença Portuguesa e o advento da Seara Nova, quando o movimento saudosista se vê eclipsado no segundo grande Inquérito Literário do século XX – conduzido por Álvaro Maia no Diário de Notícias –, Jaime Cortesão é excepcionalmente convidado a depor. Não desperdiça então a oportunidade para, em contexto de preia-mar do regionalismo e do nacionalismo integral, manter a apologia do “sentido universalista”, na sua optimista avaliação da “era nova da humanidade”, aberta pela Guerra, e da “era neo-camoniana” que postulava na literatura portuguesa – e em que, decerto, queria antever a almejada implementação da Pátria republicana, que entre Teófilo Braga e Ricardo Severo era glosada por João de Barros e seus companheiros de estro militante (à imagem recuperada de um Junqueiro como coincidência de “o vate nacional” e “o vate da República”) e a cuja equação entre a suposta ancestralidade republicana da Nação e a configuração nacional(ista) da República, Jaime Cortesão virá dar novas razões com os seus ensaios sobre os factores democráticos na formação de Portugal. Entretanto, o erudito que devassa os segredos de bibliotecas e arquivos nacionais e estrangeiros – em função propedêutica do seu labor historiográfico, mas também em consonância com o historicismo que anima a sua obra de ficção dramática e de efusão poética – é o mesmo autor que estuda, recolhe e difunde, em pedagogia cívico-cultural, mas também em

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consonância com o etnografismo lírico de alguns dos seus versos e contos, um Cancioneiro Popular (Porto, 1914) – antologia precedida de “Estudo Crítico” –, um florilégio de Cantigas do Povo para as Escolas (Porto, 1914) e, mais tarde, no Brasil, O que o Povo canta em Portugal (Rio de Janeiro, 1942) – todos correspondendo à convicção exaltada n’A Águia de que o “Poema do Povo” é o “maior Poema nacional” e que nele, além de viver o espírito da grei, se exprimem “os casos de alma mais transcendentes e opostos” e “notas de uma vida espiritual subtil ou intensa”. De igual modo, o escritor que vai instaurar nos seus ensaios da historiosofia, como na sua obra poética e teatral, uma dimensão de problemática ontológica, cosmológica e epistemológica, é o mesmo que cultiva a literatura infantil, com O Romance das Ilhas Encantadas (1925) e Cantos para Crianças (depois, vol. IV das Obras Completas) – em fundamental consonância, que então a muitos passaria despercebida, com a valorização saudosista e franciscana do ver em inocência e do ser infantil.

6 Por esses anos, a densa e tensa maturidade de Jaime Cortesão vai evidenciar-se na direcção da Biblioteca Nacional. Importa aqui destacar, entre o mais, que, chamando já Raul Proença à mais estreita colaboração, Cortesão anima o chamado Grupo da Biblioteca, no qual congraça, em autêntica e fecunda concórdia intelectual, um escol de pensadores, eruditos e escritores de diferentes orientações ideológicas. Num contexto em que a geração positivista do republicanismo cedia terreno num espaço público cada vez mais assediado pelo tradicionalismo integralista e pelo anarco-sindicalismo, ou por iniciativas matizadamente contra-revolucionárias como a Cruzada Nun’Álvares, e tendo entretanto o projecto da Renascença Portuguesa perdido fulgor, o Grupo da Biblioteca mais se evidencia como centro de poder cultural, com forte potencial de intervenção política. Com efeito, pelo gabinete de Jaime Cortesão passavam três núcleos diferenciados do chamado “Grupo da Biblioteca”: o dos “avançados” anarco-sindicalistas, encabeçado pelo técnico tipográfico Alexandre Vieira; outro, mais vasto e politicamente heterogéneo, congregando nomes sonantes da literatura, das artes e da ciência (Afonso Lopes Vieira e Agostinho de Campos, Raul Brandão e Pascoaes, Francisco de Lacerda e Viana da Mota, António Arroio e Raul Lino, José de Figueiredo e Reinaldo dos Santos, José Leite de Vasconcelos e José Maria Rodrigues, Quirino de Jesus e Silva Teles, etc.), de onde derivaria, em 1924, a Lusitânia – Revista de Estudos Portugueses e boa parte dos colaboradores de Raul Proença no

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Guia de Portugal; finalmente, o núcleo de colaboradores mais directos de Cortesão e Proença na Biblioteca e de outros “intelectuais políticos” de republicanismo proto-seareiro: Aquilino Ribeiro e David Ferreira, Faria de Vasconcelos e Ferreira de Macedo, Câmara Reys e Azevedo Gomes, etc. Neste último núcleo, forjará Cortesão a decisão grupal de fundar uma “revista de doutrina e crítica” e organizar uma secção editorial, com base comercial numa empresa de publicidade – todas sob a designação Seara (sugestão de Aquilino) Nova (sugestão de Câmara Reys). A desenganada visão das condições políticas na viragem para os anos 20, leva Jaime Cortesão a desvincular-se do PRP / “Partido Democrático”, para passar a intervir como independente. Daí decorre, com a União Cívica de permeio, a evidenciação no núcleo promotor da Seara Nova e a tentativa de absorver nela a Renascença Portuguesa ou, pelo menos, de com ela concertar uma acção ainda cultural mas agora mais política no espaço público. Sem evolução das convicções filosóficas e literárias, nem dos valores cívico-culturais, mas com alteração da escala de prioridades na crise global dos parâmetros oitocentistas no pós-Guerra (“A Renascença, nascida antes da guerra, correspondeu a uma época do mundo e a uma idade nossa que passou”), Jaime Cortesão assumirá papel relevante em toda a primeira fase da revista, como criador literário e como militante ideológico, tão capaz de propor caminhos de liberdade construtiva nas famosas Cartas à Mocidade, como de arbitrar com “Soluções políticas” de síntese sucessivos “mal-entendidos” entre os discursos de outros seareiros (por exemplo, entre a prioridade proenciana da frente educativa e a prioridade ezequeliana da frente económica) ou de ser porta-voz do Grupo no lançamento ou no desenlace das sucessivas “experiências convergentes” (como, em 1922, com o episódio do Grupo de Propaganda e Acção Republicana). Mas o escritor Jaime Cortesão, além de publicar as Memórias da Grande Guerra (Porto, 1919) e a crónica de viagem Itália Azul (1921), continua presente como poeta n’A Águia, na Atlântida, na Ilustração Portuguesa. Não será forçado atribuir à sua peça Adão e Eva – com a encenação, logo em 1921, e com os debates críticos que a sua configuração estética e as suas implicações mundividentes suscitam – o valor contextual de manifesto literário da emergente Seara Nova, no seu idealismo humanista enaltecido por Raul Proença (mas que, sintomaticamente, Almada Negreiros declarava “não interessar à sua geração”). Sem a originária e persistente intervenção deste discípulo franciscano de Guyau e poeta lusíada da acção que foi Jaime Cortesão, o legado da Seara

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Nova não transmitiria o mesmo ideal de humanismo universalista sobre fundo de generoso patriotismo.

7 O ânimo optimista e activo que preside a toda a obra de Jaime Cortesão não permite que a sua poesia enfatize os estigmas de dissídio ôntico e existencial que em tantos outros neo-românticos alastram e pesam. Mas idêntica condição tensional, a ser superada, não deixa de transparecer quando, num passo de Glória Humilde, onde converge com outros tópicos de poética neo-romântica – Poesis in Natura e representação saturnianoiluminada do Poeta –, a Terra é contemplada como modelo da criação artística, possessa e oracular, e logo é figurada à beira da cisão: “Lira, que o Vento pulsa desgarrada, / Quando os Pinhais descantam à porfia, / A Terra é uma sibila desgrenhada, / Ébria de inspiração e profecia. //…// Por isso a sua voz geme de rastros / E para logo se ergue e se extasia… / Evocações do Azul, memórias d’astros, / Toda a história do Céu, feita harmonia”. Essa transposição de antropologia que não se quer agónica já não se verifica quanto à ânsia melancólica, que se desprende do enleamento no vago anteriano e se empolga em Sehnsucht. Quando logo em A Morte da Águia nos deparamos com uma encarnação paradigmática da aventura espiritual em proposições epicizantes, em abertura de planos vastos e em imagens de grandeza e impetuosidade, não custa reconhecer que o impulso fundacional é essa retoma neo-romântica da Sehnsucht, que fustiga, com o látego das reiterações, a sensibilidade vibrátil e o espírito insatisfeito: “Que tumultuoso e arrebatado anseio!… / Trazemos a rugir dentro do seio. / Duma contínua fúria, insatisfeita / O coração raivoso do Mar largo!”, “Para além, para além!… Ó cumes solitários, / Somos as vossas sentinelas”, “Para além, para além! Fúrias do imenso, / Fogo que nos abrasas…!”, “Para além, para além!… Só no mais alto cume d’altos montes / Estais abrindo os largos horizontes / Aos nossos valorosos corações!”, “a espiral de fogo e de delírio / Para o seio da Luz a arrebatava. // Sentiu correr-lhe o sangue de roldão, / Como se cada artéria fosse o leito / Dum rio caudaloso; / E o largo, entumecido coração / Batia-lhe de encontro ao forte peito, / Como na costa dura o Mar iroso”. Essa figuração do Homem empolgado conjuga-se, nesta poética neoromântica de Jaime Cortesão, com uma gnoseologia que respeita o primado do sonho, do sentimento e da sensibilidade na realização do ser de excepção que é o Poeta saturniano e iluminado. N’A Morte da Águia, aproxima a grandeza ideal da “desvairada” árvore e o poder cognitivo da loucura; busca um

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saber e uma voz oraculares, ou “o canto das Sibilas” que uma e outra vez promana dos elementos naturais; e insere o “inspirado delírio dos Poetas” no quadro do visionarismo profético e do intuicionismo religioso, numa apoteose da sustentação do Universo pelas obscuras forças espirituais e do seu poder de revolução cósmica: Anjos anunciadores, Espíritos alados e videntes, Messias, Visionários, Precursores, Ei-los que passam lívidos, trementes, Pisando toda a Terra a largos passos E deixando no pó rastos ardentes; ………………………………………………. Ei-los mais longe, além, ao largo, ao fundo… Envoltos já nas brumas do mistério, Erguendo em peso, arrebatando o Mundo; E logo cheios dum esforço etéreo Aceleram-lhe o giro até lhe dar O primitivo resplendor sidério.

O bardo de Glória Humilde a um tempo se retrata como vítima propiciatória do sacrifício ritual – “Invocação ao fogo”: “Envolve-me também no ardente rumo, / Devora-me, que eu subo à pedra d’ara!” – e como sacerdotal decifrador do “delido verbo etéreo” com que os seres usam “falar transcendências”. Graças aos dons de inspiração e vidência do Poeta, nele a imaginação criadora ganha alcance mitogenésico. E n’A Sinfonia da Tarde, a poesia, sem nada perder de fenómeno expressivo da vibração emocional (em que, de facto, comungam sujeito e entorno cósmico), envolve nesse fenómeno a actualização das virtualidades de divinizante auto-superação do Homem; por esta via, assume, em rigor, índole órfica, com poderes omnímodos de arrastamento e de transformação ascensional da vida e do Mundo (“Lira de Orfeu! (…) Uma Vida mais alta despertou /…”). Mas, em Jaime Cortesão, a poesia, mesmo com esses supremos poderes mitogenésicos e órficos, deve servir, em espírito de verdade, a promoção de valores de outras esferas. É heterotélica a sua poética neo-romântica – não apenas anti-esteticista, mas sim postulante da arte como força da comunhão e de instigação profética, apoiada no vínculo da alma nacional. Se o Volksgeist lusíada é “génio desta Raça aventureira”, é espírito desta “Raça vidente, alucinada, inquieta, / Sempre à busca do além…”, por seu

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turno o Poeta constitui-se em expressão máxima da progressão recognitiva da Humanidade, pela convicção mesma de ser fiel depositário do génio da Raça portuguesa: Conheço a minha divindade enfim; E, ébrio de amor, de tarde e de saudade, ………………………………………… Sinto que a raça deposita em mim As virtudes maiores de meus irmãos E, alucinado semi-deus, Tomo a lira de Orfeu nas minhas mãos!

Este rasgo de profetismo em nome do espírito do Povo assume formas mais peculiares do património histórico e do imaginário lusíadas, quando o bardo e vate d’A Sinfonia da Tarde antecipa o tribuno da campanha em favor da participação de Portugal na Grande Guerra (e os termos com que no capítulo I, “O génio do Povo”, prega “a hora de reviver e reassumir a nossa grande missão civilizadora”, e anseia por que a esfera armilar continue “a ser na bandeira pátria um símbolo de ansiedade infinita e de domínio sobre a terra”) e anuncia o grande historiador das Descobertas e da Expansão ultramarina no metaforismo escolhido para as novas metas do Conhecimento e da Justiça: nessa nova demanda das “Índias sem fim”, isto é, nesse novo e supremo ciclo épico da grei lusíada na promoção da humanidade, Meus Irmãos marinheiros, sou poeta: Quero a mais alta gávea para mim!

8 Culminando uma evolução literária realizada desde o poema “Tarde de Romaria”, publicado por 1906 n’O Instituto de Coimbra, A Morte da Águia (Lisboa, 1910) corroborava a ambição de “Poema heróico” com a aspiração ao “poderoso e claro estilo” das falas ardentes dos heróis de Homero e da alma trágica de Ésquilo, ao mesmo tempo que conotava, pelo contínuo paragramatismo com Os Lusíadas e pela episódica evocação de Dante, uma poética neo-romântica que co-envolve o “estro da loucura”, “o rasgo, a inspiração suprema, / O ritmo dum bárbaro poema”, promanados dos quatros elementos, e a condição predestinada dos poetas, demiúrgicos e malditos. Através das sucessivas personificações e prosopopeias – a Montanha, a Árvore, a Tempestade, a Águia –, corporizadas numa prosódia tradicional e arrastadas para vertentes alegóricas, A Morte da Águia

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confirmava a superação do histórico e do egótico na exaltação da “vida heróica” (título do Canto IV). O heroísmo de A Morte da Águia implica uma desmesura do desejo; mas este ultrapassa a apetência erótica e consiste em sede de conhecer e desposar sempre novas e superiores formas do real e do ser. Por isso, o heroísmo de A Morte da Águia pode exorbitar para a vertigem titânica e para a crispação amoral do voluntarismo nietzscheano; então, “ébria duma divina crueldade”, atirando o “seu canto à Imensidade”, a atitude heróica retoma “Os broquéis dos ciclopes revoltados, / Armas partidas d’anjos despenhados  / E as ruínas da torre de Babel” e revê-se no “salto heróico dum ciclope, / Que vai tomar o Céu pela escalada”; então, a atitude heróica projecta-se para “a guerra, a luta, a vida forte”, engolfada no vórtice predatório. Todavia, a mais lídima feição do heroísmo n’A Morte da Águia é, porventura, a duma reelaboração espiritual do idealismo subjectivo e ético de matriz fichteana, fundida agora no cadinho do “espanto” existencial e no subsequente “anseio etéreo”, que é “esforço etéreo” de superação cognitiva. Apelo de “tudo o que é grande, forte, altivo”, o heroísmo d’A Morte da Águia tem por horizonte o conhecimento adunatório da “Vida plena do Universo”. Este idealismo ético de A Morte da Águia, coextensivo ao Homem e ao Universo, tanto toma as formas de uma transcensão do natural no divino, quanto as de um despertar da divindade letárgica na imanência. No mesmo sentido se desenfreia a visão expressionista, que transfigura o entorno físico pelas convulsões e premonições de origem ancestral e subliminar (“Em furiosa, alucinada grita, / Tão cheia de visões e de presságios, / Como se fora a revoada aflita / Dos derradeiros gritos dos naufrágios”); e para isso recorre a diversos fundos imaginíficos – bíblico, mitológico, wagneriano. Congruentemente, o imaginário de A Morte da Águia privilegia metáforas e símiles de cavagalda pugnaz e de alor (asa, ave, voo). Mas, talvez o elemento axial desse imaginário seja, muito saudosistamente aliás, o fogo. Num discurso inelutavelmente paradoxal, porque divinatório e transcendental, o fogo é energia movente e transmutante (“Carne de fogo, e fogo de neblina”) que subserve o excesso ontológico expresso noutro adynaton herdado de Cesário Verde: “Sou como um rio que não tenha foz, / Como um Oceano que não tenha praia”. O título de Esta História é para os Anjos (poema d’A Águia logo publicado em plaquette pela Renascença Portuguesa, Porto, 1912), prevalecendo-se da sua condição de elemento catafórico por excelência, cria, se integrado precipitadamente na tradição amorosa da lírica portuguesa, um horizonte de expectativas enganador. Na aparência despretensiosa das quadras de

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redondilha maior, este poema do desejo e da posse – adrede corporizado numa réplica plebeia de Anto e Purinha e situado num quadro anticosmopolita e antiurbano, de radiação telúrica – é também um poema do conhecimento transracional e da adunação cósmica: “Gotas d’água cristalina, / Que mal a Aurora apontou, / O raio, que a ilumina, / Na mesma névoa elevou. // Névoa, que paira embalada / Num amoroso segredo, / Docemente abandonada / Entre os braços do arvoredo (…) // (…) // Graça de espírito aéreo, / Alma que sonha, invisível. / Se a gente sonda o Mistério, / É tudo um mundo indizível (…) // Quem a vê d’olhos atentos / Sente mágoas esquecidas, / Divinos pressentimentos, / Certezas desconhecidas”. Também a abertura de A Sinfonia da Tarde (Porto, 1912, plaquette com origem igual à da anterior) anuncia logo grandes temas saudosistas: a manifestação do divino na paisagem transfigurada, se necessário por forma paradoxal (vejase o oximoro sinestésico do gorgolejar do Silêncio); a visão desse divino como horizonte dual da superação humana (Jesus e Pã, graça e volúpia); o processo transracional de conhecimento e de unificação cósmica favorecido pela sombra e pelo silêncio… Se, em A Morte da Águia, o sistema de valores do Neo-Romantismo saudosista se desenvolvia sobre uma plataforma de miscigenação com aspectos de Neo-Romantismo vitalista, em Glória Humilde (Porto, 1914) ergue-se por entre múltiplos pontos de contaminação com a corrente lusitanista. Denunciadora dessa tendência é a dedicatória “Aos do meu sangue e à minha Terra”; títulos de sequências ou de poemas reforçam esse sistema (“Terra-Mãe”, “Alma do Povo”, “Tardes de Portugal”, “À minha Mãe e à minha Terra”, etc.), em paralelo com a prosódia popularizante e tradicional (dialógica, epistolar, aforismático-afectiva) das abundantes composições em quadras de redondilha. Sobre este substrato, uma Sehnsucht suprapsicologista, “frémito de assombro e de estesia” que percorre a Criação, “fonte perene de poesia” que alaga os corações “onde se acoite / O fogo do sublime” e acme do “Amor ansioso”, propicia a convergência com a gnose transracional da saudade e com a religiosidade cósmica. Sobrepujando os inúmeros passos aqui aduzíveis, é um texto fundamental como o soneto “Assombro” que revela as últimas implicações mundividentes desta atitude, ao integrá-la num processo metafísico de processão dos seres e de retorno ao Ser. Outros poemas enredam esta metafísica nas hesitações evolucionistas entre uma religiosidade totalizante, mas teísta, e um sincretismo teúrgico caracterizado pela dialectização das relações entre o Criador e a criatura e pela complementaridade de Jesus e

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Pã (cf. “Carta” e “Génio das selvas”, por exemplo, além da reintegração de “A Sinfonia da Tarde” e de “Esta História é para os Anjos”). Por idênticas motivações e intuitos, ganha uma inconfundível conformação saudosista o tratamento do amor em muitos poemas de Glória Humilde. O amor sublime dissemina a sua fusão de voluptuosidade e de idealização, de expansão vital e de promoção espiritual, de superação do egótico na simbiose universal, de recuperação da candura natural e de elevação transcendente, ao longo de quase toda a colectânea, mas sobretudo no “Amor ansioso”, no paroxismo de “O amor e a morte” ou de “Primeiro beijo”, e na religiosidade cósmica de “Beijo eterno” ou de “Avé!”… Divina voluptuosidade (Lisboa, 1923) apresenta o subtítulo “Poemas em redondilhas”. Além de anunciar uma convergência formal de todo o nosso Neo-Romantismo artístico, retocado aqui e além (“Canção da beira rio”, “Canto de amor na floresta”) pela herança finissecular da arte de ritornelos e dialogismos, de variações e contraponto, faz admitir outras concessões ao gosto lusitanista que afinal só um ou outro texto (como a “Canção do berço”) confirmam. Mas, sobretudo, parece indiciar fragmentariedade do conjunto. Em contrapartida, a ordenação por sequências textuais e os próprios títulos dessas partes (“Prólogo”, “Madrugada longínqua”, “Meio-dia pagão”, “Tarde mística” e “Poente cristão”) apontam para a ambição poemática dos saudosistas e para a tentativa de manter a “capacidade construtiva” que Fernando Pessoa lhe elogiara a propósito das plaquettes de 19121. Nesse sentido, actua também a força da dominante constituída pelo tema e pelo imaginário do amor sublime. Este exerce sobre Divina Voluptuosidade uma tal hegenomia que só as correlações com o sincretismo religioso (avolumadas após a 1.ª edição) evitam transformar-se em total monopólio (nomeadamente sobrepujando a floração bélica no poema “O amor e a vida”, saído n’A Águia em 1920 com o título “Ao alto, junto dos céus” e datado do front na Flandres). O imaginário do amor sublime sobrepõe-se, indissociavelmente, ao do processo da Criação in fieri e da actualização intérmina da própria Divindade: na explosão erótica de “Manhã no Éden”, “A luz, enfim descoberta, / Rompe o caos e alumia / E todo o mundo desperta / Ao sol do primeiro dia”; no frémito amoroso com que, em “À luz dos astros”, duas bocas “bem unidas / Influem sobre o Universo!”, também se pretende que “Em nosso amor Deus renova, / Perpetua a divindade”. Ora, é à luz da interacção destes vectores que tem de se entender a renovada adesão ao sincretismo religioso que parece significar em 1923, 1

Cf. PESSOA, Fernando. Textos de Crítica e de Intervenção. Lisboa: Ática, 1980, pp. 89-95.

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na Seara Nova, “O Anjo e a flauta de Pã” (“E logo à luz religiosa, / – De cada silvano louco, / Crisálida misteriosa, / Nasce um anjo pouco a pouco”), poema depois prolongado, com tendencial primado da componente de espiritualidade cristã, no tardio poema “A Vénus de Botticeli” – em cujo termo, aliás, se perfila o centro de fixação do amor sublime: “Glória a Deus! Eis o limite / De toda a humana beleza: / Alma da Santa Teresa / No corpo nu de Afrodite!”. Entretanto, antes de se embrenhar no segundo quartel do século, onde o seu estro ganhará mais acentuadas facetas interventivas, Jaime Cortesão continua a publicar poemas dispersos, de entre os quais cumpre destacar “Lisboa vista do céu – Impressões de um voo de avião”, não tanto pelo seu valor estético quanto pelo facto epocalmente significativo de assimilar a nova gesta técnica e civilizacional ao espírito saudosista e à mitofilia nacional (Encoberto e Quinto Império). Datando de 1940, o “drama metafísico”, entre verso e prosa, Missa da Meia-Noite é o poema mais intensamente interventivo de Jaime Cortesão. Aí, o esforço de actualização das potencialidades titânicas do Homem não implica tanto uma auto-superação (uma superação de perplexidades, inibições e fraquezas íntimas) quanto uma luta contra os obstáculos de forças exteriores (tiranias, prepotências, logros); e, se essa realização do Humano na superação permanente se afigura ainda ascensão para o Deus criador na continuidade da Criação, ela implica agora uma continuidade da Redenção pelo Cristo que assimila “Pã”, “A Revolta”, “A Heresia” e “O pecado” (leia-se: o hedonismo erótico), num processo de emancipação que visa também a derrogação dos obscurantismos confessionais e eclesiais. Jaime Cortesão prossegue na busca de uma nova bucólica e de uma nova erótica; e dinamismo cosmológico, sincretismo ôntico, aventura espiritual são vectores decisivos do Neo-Romantismo saudosista que permanecem relevantes na sua derradeira poesia, mesmo quando esta surge mais estreitamente questionada pela circunstância histórica e solicitada para a intervenção política (“A agonia da urbe”, “Balada da prisão à beira-mar”, “À morte do Poeta António Machado”, “Ode à Liberdade”). Por isso, essa derradeira poesia de Jaime Cortesão relançava ao mesmo tempo, sobretudo com a “Parábola franciscana”, saída em 1954 na Távola Redonda, um vector cristão relevante da sua sensibilidade literária e do próprio Neo-Romantismo saudosista.

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9 Perante os poemas dispersos que datam de entre Glória Humilde (1914) e Divina Voluptuosidade (1923), e que nem esta colectânea nem Missa da Meia-Noite e outros poemas haviam recolhido, as Poesias Escolhidas de 1960 não contemplaram o bi-soneto “A voz dos séculos” (A Águia, 1915), o poema em decassílabos de paragramatismo camoniano “Cântico lusíada” (A Águia, 1916) e as redondilhas “Para os soldados cantarem ao irmão desconhecido” (1921) – textos líricos que se desviavam, nobremente aliás, da sondagem do Volksgeist e da ontologia do heróico, próprias do Saudosismo, para a exaltação histórico-patriótica e o estímulo ao heroísmo do sacríficio e da coragem, e assim participavam da convergência da nossa literatura neoromântica na apologia da beligerância na I Grande Guerra (em nome de valores civilizacionais e de interesses nacionais) e no imaginário da corrente lusitanista (à qual aqueles temas eram cognatos). Por outro lado, as Poesias Escolhidas marginalizavam também, sob a suspeita talvez da extrapolação de um dos pólos (a redução hedonista da divina voluptuosidade) do amor sublime próprio do Saudosismo, o soneto “Graça íntima” com que, em 1916, Jaime Cortesão colaborara na Atlântida, revista onde, além do mais, João de Barros tentava reacender a chama do Neo-Romantismo vitalista. Paralelamente, as Poesias Escolhidas também não davam guarida às voltas “Cantigas ao meu amor” (A Águia, 1918) – que constituíam uma pontual cedência aos estereótipos lusitanistas da folclorização do sentir popular, da idealização litúrgica do amor e da hiperbolização acaciana das seduções da mátria –, nem ao sonetilho “Canção violeta” (Ilustração Portuguesa, 1922), que constituía um moderado deslizar no declive da bizarria esteticista. Só à luz deste ensaio de dilucidação dos critérios de coerência estéticoliterária que terão presidido à organização de Divina Voluptuosidade, de Missa da Meia-Noite e outros poemas e de Poesias Escolhidas, é que poderemos entender a marginalização do franciscano “Milagre pastoril” (A Águia, 1915). É que em 1954 Jaime Cortesão estampa, na Távola Redonda, um outro poema frontalmente apresentado como “Parábola franciscana” e que será inserido nas Poesias Escolhidas. Não sofre dúvida o apego da sensibilidade poética de Jaime Cortesão ao Poverello e à espiritualidade dos frades menores. Além de outros sinais mais esbatidos da sua presença recorrente no trajecto lírico de Cortesão (até na transfiguração cósmica: por exemplo, a fulguração dos alcantis em A Morte da Águia, “erguendo a alma aos infinitos”, “humildes consciências, / Com seus cilícios d’urzes requeimadas”), é multiforme o franciscanismo

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que a colectânea Glória Humilde abriga em congruência com as sugestões catafóricas do seu título. Deparamos aí com poemas aparentemente cingidos ao enaltecimento da piedade e humildade franciscanas, como se verifica na má-consciência do orgulhoso em “Desgraçado por amor”, no encerramento sumular de “O elogio das Lágrimas” (“Chorar é regar os céus, / Fazer acto de Humildade: / Quem chora acredita em Deus, / Confessa Amor e Bondade!”), na penitência liminar de “À minha Mãe e à minha Terra” (“E tu, vento de orgulho, que em mim passas / Rugindo a toda a hora, / Une-te ao pó: / E agora / Que de toda a minha Alma fique só / A trémula inocência dum menino / Para que eu reze uma oração de Graças!”). Tornam-se também encontradiços poemas enleados numa estética da singeleza e pequenez (como ocorre, à maneira de Afonso Lopes Vieira, em “A talha de Coimbra” e “Em louvor do xaile”), afinal, em consequência de fundamentos idênticos retomados pela integração de “Esta História é para os Anjos”: “Que inda o ser mais pequenino, / Na mais doce e humilde paz, / Cumpre amoroso Destino”. E eis que descobrimos que esse franciscanismo adquire facetas bem mais amplas ou profundas. Ora se constitui em promoção do cosmos pela pietas e pela caritas. “Parece que a própria Terra, / Em solidão e humildade, / Nesse lugar se desterra / Para chorar à vontade”, “À noite… (a Noite aproxima / Deus da Terra) humildemente / Caem os astros de cima, / É um Céu a água corrente”, “Também eu sou dessa esquecida raça, / Cuja ambição desafiou o Eterno, / Mas sinto que a humildade me trespassa, / E as coisas dão-me o ósculo fraterno!”, etc.. Ora se funde com a libertação da candura ôntica, indiscernível da valorização saudosista da condição infantil, desde “Assombro” e “Amor ansioso” até à convergência apoteótica de “Glória paterna”: “Há tão divina graça no teu jeito /…// Julgo entrever de súbito, ao olhar-te, / A minha própria Alma, a vez primeira, / Em inocência e graça, nessa parte / Mais alta, mais profunda e verdadeira. // És o sagrado Cântico, és a Prece, / Que eu outrora rezei, extasiado, /…// És a inocência e a Graça comovida, / A própria madrugada ao vir surgindo, /…”. Ora, desse ver em inocência se evola a vitalidade cultural mais profunda do espírito franciscano, isto é, a aferição e a rectificação gnoseológica e ética do Homem de acordo com a Natureza, como já vimos na correcção do atavismo titânico de “Os pinhais” e se relembra com o telurismo outro de “Esta História é para os Anjos”: “E eu, por certo, vos inteiro / – Procurai de vale em serra – / Só é Homem verdadeiro / Quem viveu de encontro à Terra. // Ai! Dessa raça doentia / Que nas cidades nasceu: / Nem vê a Terra de Dia, / Nem de Noite vê o Céu; // E que arde em sedes mortais, / Em contínua febre acesa, / Junto às

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fontes imortais / Da Bondade e da Beleza! // Filho pródigo, orgulhoso, / Que vil cobiça governa, / Faze-te humilde e amoroso / E volta à casa paterna. // Volta à Terra, que te chama, / Volta lá e hás-de aprender / Que só é feliz quem ama / E ama quem sabe sofrer”. Lembremos ainda que Jaime Cortesão empreendeu, por sucessivos tentames, a redacção de uma “Paixão do Aleijadinho”, onde é justamente o Santo de Assis que é convocado para consagrar a identificação do estatuário mineiro com aquela condição de humana superação que no Saudosismo amiúde surge visionada como o estádio almejado pelo Poeta: “E tu, S. Francisco de Assis, / O Santo livre, / Que pregaste nos pés, nas mãos, no peito, / Pelo alvedrio místico do êxtase / Os cinco estigmas da Paixão, /…/ Vem ver o prisioneiro da miséria, / Cuja infinita angústia se transforma, / Pelo poder do amor, e da vontade, / No jubiloso êxtase, / Na glória de criar a vida para além da vida. / Vem vê-lo caminhar na luz da eternidade / Sobre o rastro de Deus!”. Mas em Jaime Cortesão, como em todas as boas actualizações do NeoRomantismo saudosista, há também um pensamento poético envolvido pelas opções temáticas e pelas mediações formais. Ora, se a corrente vitalista (com o seu naturismo imanentista e o seu humanitarismo jacobino) dificilmente, e só nos equívocos das suas margens acratas, poderia assimilar o espírito franciscano, torna-se notório que o franciscanismo, nas suas implicações religiosas, éticas e estéticas, penetra disseminadamente nas outras duas correntes neo-românticas – a lusitanista e a saudosista. Aparentemente mais óbvia é a penetração franciscana no Neo-Romantismo lusitanista, em cuja mundividência tem lugar capital a religiosidade católica tradicional; mas é compreensível, e vem por vezes a revelar-se mais lídima, a penetração franciscana no Neo-Romantismo saudosista, permeado pela religiosidade heterodoxa e pela aspiração a um solidarismo libertário. Na poesia lusitanista, a mensagem e a prática franciscanas aparecem como modalidade excelsa do ascetismo e do contemplativismo cristão, enquanto recapitulação da caridade e do despojamento primordiais; mas significam também uma ritualização suplementar da panaceia ruralistopatriarcal, uma sacralização da idealizada modéstia do viver provincial; e, enfim, desdobram-se numa estética de louvor do humílimo (nos seres e nas coisas) que, de Afonso Lopes Vieira a António Corrêa d’Oliveira e seus seguidores, se integra na antropomorfização cordial (autêntica ou dulcorosa) de todo o entorno existencial, em busca do aconchego de múltiplas vinculações das subjectividades contra as agruras da mudança e da errância.

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Assim sendo, o franciscanismo ganhava o direito a proliferantes expressões indirectas, mas corria igualmente o risco da contaminação por motivos e estilemas diversores. É o que de algum modo ocorre no “Milagre pastoril” de Jaime Cortesão, onde o franciscanismo nos chega filtrado pelo etnografismo literário – religiosidade popular, fusão de maravilhoso e lendário – e pelo tradicionalismo nacional (correlato do pendor de casticismo linguístico), pois o poema evoca nesses termos um episódio protagonizado por S. Frei Gil de Santarém. Quanto ao Neo-Romantismo saudosista, é inegável que o seu sincretismo religioso levantava dificuldades àquele duplo esforço – patente mesmo nos franciscanistas heterodoxos da época maximamente representados por Sabatier – de recusa da indiferenciação panteísta ou deísta, isto é, o esforço de adoração do Deus pessoal e providencial e o esforço de união de todo o ser ao Cristo crucificado. Mas em muitos momentos da poesia saudosista, não se quer confundir Deus com todas as coisas, mas ver todas as coisas em Deus e louvar a Deus por todas as coisas; e é nessa perspectiva que se mantém a poesia de Jaime Cortesão, quer no “Milagre pastoril” (“Cantando, também louvas o Senhor; /…”), quer na “Parábola franciscana” mais ambígua: “Foi toda a terra em redor, /…/ Que ergueu o frade menor, / Novo Jesus, / A Cristo da Natureza. / Que lhe ensinou a ser frade / E a buscar a Divindade, / O Bem profundo, / Não em palácios de nobres / Mas entre as aves e os pobres, /…/ Fora do claustro, / No mundo!”. É que, se esta totalização religiosa não se dissocia do pairar de “um êxtase de amor” na paisagem que flutua (“Parábola franciscana”) ou dos efeitos da prédica e da taumaturgia nos “rudes pegureiros” que “apertavam ao seio os tenros anhos, / Tinham vontade de beijar a Terra”, na verdade trata-se de rasgos que, sendo de facto intrínsecos ao Saudosismo e frequentes na sua poesia, nem por isso eram menos correlacionáveis com a inspiração franciscana. Com efeito, quem à época melhor entendeu e difundiu a doutrina franciscana foi o Leonardo Coimbra, indispensável para a compreensão do movimento saudosista e para a hermenêutica da sua expressão poética. Para Leonardo, como recorda António Quadros, S. Francisco vê com inocência e assim capta a criação divina na sua transparência primordial, que é em simultâneo a raiz ôntica onde se anulam as diferenças entre os seres vivos e os inanimados. Desta revisão fundacional a que S. Francisco procedera, é que deriva o facto de a teleologia franciscana visar não apenas a salvação dos homens, mas também a redenção da Natureza e de todas as criaturas de Deus. Ora, é menos nos poetas católicos do Neo-Romantismo lusitanista (sem esquecermos altos momentos de poesia fundamentalista e

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franciscana de A. Corrêa d’Oliveira) do que nos poetas do Neo-Romantismo saudosista, que se nos apresentam os seres visíveis e invisíveis a participar de um mesmo movimento, só classificável, ainda que em heterodoxia, de escatológico. Por outro lado, se essa globalização escatológica da caridade franciscana encontrava o melhor húmus no dinamismo cosmológico próprio do sistema saudosista (e, nele, da poética de Jaime Cortesão), também a sua antropologia simultaneamente dualista e prospectiva (que encontrava precisamente em Jaime Cortesão e num Augusto Casimiro as suas variantes mais afectas à alegria de viver e de agir) correspondia melhor do que o Neo-Romantismo lusitanista a outro aspecto do discernimento epocal da inspiração franciscana. Junqueiro, na carta-prefácio (1902/1903) a Os Pobres de Raul Brandão, frisava que o êxtase franciscano não era quietismo, e muito menos quietismo egoísta, mas resultava da acção e tornava-se fonte de hiperacção, porque a alma embebida em Deus irradiava-O depois em actos de amor. E é isso que se verifica na poesia franciscanista de Jaime Cortesão.

10 É com idênticas implicações que, tanto no ensaísmo literário de Jaime Cortesão, quanto na sua teoria geral dos Descobrimentos, se revela axial o papel atribuído ao franciscanismo. Por um lado, quando no imediato pós-Segunda Guerra Jaime Cortesão desdobra uma conferência sobre as questões fundamentais levantadas pelo “São Cristóvão” queirosiano em substancial série de artigos (1947), que depois enfeixa no ensaio Eça de Queirós e a Questão Social, faz do influxo finissecular do neo-franciscanismo heterodoxo – que, sobretudo pela mão de Sabatier, ia ao encontro do neo-evangelismo do último Tolstoi e de propostas de socialismo cristão, para gerarem poderosa corrente de espiritualidade laica, de exultação naturista e de generosidade pragmática – a trave mestra da sua construção ao mesmo tempo interpretativa e profética. Em virtude da congruência orgânica do seu pensamento e da sua obra, Jaime Cortesão faz coincidir esse rumo de Eça com o Volksgeist lusíada e a consequente índole da genuína literatura nacional (v.g., “Logrou assim fundir na mesma obra a tradição franciscanista do povo e a sensibilidade, ora épica, ora bucólica, da literatura portuguesa com a expressão do espírito socializante e universalista duma nova época”). Mas, por idênticas razões, não desperdiça então a oportunidade para induzir a síntese do espírito da “ternura franciscana” com o legado daquele mestre de energia

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espiritual, de ética idealista e de estética da ternura, que lhe iluminara os primórdios do trajecto cívico-cultural: “Mais do que nenhum, porventura, Guyau, dando um carácter sociológico à filosofia, pregando como ideal de moralidade a vida intensiva e expansiva, tendo como fim a solidariedade universal, e pregando a formação duma espécie de ‘liga sagrada’, para o bem, de todos os seres superiores da terra e até do universo, contribuíra para lançar as inteligências e os caracteres mais elevados por novos e mais vastos caminhos”. Por outro lado, na teoria geral dos Descobrimentos que Jaime Cortesão cedo concebe e que, durante a sua aturada e prolífera carreira de historiador, desenvolve, fundamenta e aplica, é axial o papel atribuído ao franciscanismo e, em especial, a certo legado de S. Francisco e a certa visão heterodoxa da ordem mendicante. Desde o ensaio O Franciscanismo e a Mística dos Descobrimentos, de 1932, até ao ensaio de história psicológica O Sentido da Cultura em Portugal no Século XIV, de 1956, tal como desde a Teoria Geral dos Descobrimentos Portugueses (1940) até à suma de Os Descobrimentos Portugueses (2 vols., 1960, 1962), é convicção de Jaime Cortesão que ao franciscanismo deve o Homem europeu a “síntese do espírito que dilatou o cristianismo à Natureza e libertou os povos do Ocidente do entrave que os impedia de se alargar sobre o mundo”. São Francisco de Assis é o verdadeiro criador do espírito de missão, ditando à sua ordem a ambição de chegar rapidamente a toda a Terra e a toda a Humanidade (muito particularmente aos infiéis). São Francisco de Assis e os seus discípulos aproximam o homem juntamente da Divindade e da Natureza: pregam Cristo como Deus de bondade e, logo, irmão dos humildes, sequioso de os proteger e consolar; exaltam na Virgem a Mãe misericordiosa dos homens; e propagam e servem o ideal de fundar pelo amor a comunidade de todos os seres e coisas da Criação, na cordialidade fraterna e jovial. Por isso, da acção histórica da ordem franciscana, bem como da sua orientação filosófica e epistemológica, resulta também uma nova relação entre motivações religiosas e pragmáticas na Europa cristã. Enquanto as comunidades religiosas anteriores afectas à cela, ao claustro e à cerca conventual, “reflectiam o regime da economia privada em que nasceram”, a Ordem de São Francisco quer-se e cumpre-se como ordem de missionários e viajantes, correspondendo, no entender de Jaime Cortesão, “ao novo regime urbano e mercantil, às ambições expansionistas da burguesia e às reivindicações igualitárias do povo do pré-Renascimento”. Ao mesmo tempo, a escola franciscana reflecte, no seu pensamento filosófico e científico, “tendências naturalistas e

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amplamente liberais” que, em contraste com os dominicanos, primeiro, e com os jesuítas, depois, caracterizariam a tradição franciscana também noutros domínios da relação com o mundo e as sociedades terrenas; como se verifica sobretudo no magistério de Roger Bacon em Oxford, o pensamento franciscano representa “O estímulo renovador, a tendência à observação da Natureza e as aspirações à liberdade individual”. Ao mesmo tempo, a prática evangélica dos mendicantes na vida quotidiana realizava-se necessariamente “sempre em contacto íntimo com o povo, ao qual pregavam, ensinavam, auxiliavam nas labutas da vida quotidiana e até nas lutas de carácter político e social”. Em suma, graças a São Francisco e aos seus fraticelli, “o cristianismo revelou nos últimos séculos da Idade Média uma vitalidade e um poder de evolução capazes de encaminhar e transcender as transformações económicas e sociais que os povos europeus acabavam de sofrer, dando às suas aspirações utilitárias um prolongamento sublime no mundo dos sentimentos e das ideias”. Além desse envolvimento propiciatório, os franciscanos trouxeram contributos muito específicos à expansão marítima da Europa e, em particular, de Portugal: trata-se das suas viagens e do novo espírito que as animava e, logo, da “criação dum tipo de literatura geográfica, juntamente realista e optimista”. É certo que, se aí reside a fonte das novas tendências espirituais a que Jaime Cortesão chama “a mística dos Descobrimentos”, a expansão marítima só se consuma quando àquela sobrevém, na segunda metade do século XIII e na primeira do século XIV, um novo espírito laico em todas as actividades da cultura e da política. Mas ainda aí é uma tendência heterodoxa da Ordem franciscana que no seio da Cristandade legitima e acalenta não só esse novo dinamismo laico, como as insurgências das instituições civis e comunais contra a tutela eclesiástica, e dos poderes políticos nacionais contra a tutela da Igreja e do Papado (como entre nós se verifica desde D. Dinis). Trata-se da chamada heresia dos “irmãos espirituais”, radicais na observância do voto de pobreza e na crítica ao poder, à soberba, à cupidez, dos altos representantes da hierarquia católica, irridentes perante a autoridade do Papa e, a dado trecho, dominados pela influência de Joaquim de Flora e sua doutrina historiosófica das três idades (a idade do Pai e da lei de Moisés, a idade do Filho e do Novo Testamento, julgada em crise, e a idade final do Espírito Santo, cujo advento estaria próximo), julgando-se destinados a serem a alma dos Templos Novos e, assim, substituindo-se

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ao poder da Igreja corrupta e decadente, tornarem-se os apóstolos que estenderiam a Fé por toda a Terra e toda a Humanidade. Conhecedor da forte irradiação do franciscanismo e do culto do Espírito Santo em Portugal, desde D. Dinis e a Rainha Santa (bem como da sua repressão mais tarde), Jaime Cortesão chama ainda pioneiramente a atenção para o papel de outro suspeito franciscano, Raimundo Lullo, como precursor do projecto cristão-ocidental de expansão marítima, pois desde 1288 aconselhava e industriava, em obras sucessivas, ao mesmo tempo a conquista até ao Levante, e a circum-navegação da África para alcançar a Índia. Por conseguinte, Jaime Cortesão assume (e corrobora pelas suas investigações) o pressuposto de que o “misticismo exasperado dos espirituais, que se particularizou pela estreita colaboração com os príncipes laicos e pelo culto do Espírito Santo, inspirador do apostolado cristão em todo o mundo, foi (…) a forma própria que o franciscanismo tomou em Portugal, na época que precede, prepara e explica a empresa dos grandes descobrimentos”. Por isso, com inegável coerência epistemológica e desassombrada opção doutrinária, nos seus trabalhos de pesquisa e interpretação histórica, desde 1932 mostrou, recorrentemente, “quanto o conjunto de certas forças e elementos novos que o franciscanismo trouxe à religião e ao espírito medieval – a dignificação religiosa do homem e da Natureza, o proselitismo ardente, dirigido principalmente aos infiéis, e a paixão das viagens – representa como factor poderosíssimo da expansão da Cristandade” e, em particular, de Portugal e do génio lusíada.

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Jaime Cortesão – Pensar e cantar “a vida intensiva e expansiva”

Do mito da Águia ao simbolismo da Seara (modos e processos da poesia de Jaime Cortesão) ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO Universidade de Évora

O presente estudo é uma abordagem da poesia1 de Jaime Cortesão, incidindo sobretudo na poesia em verso do autor. É texto que deixa insatisfeito quem o escreveu, pelo muito que as partes lhe parecem desconjuntadas e sem sentido orgânico. A ideia era partir do primeiro livro do autor e chegar ao último, conseguindo obter, em sucessivos degraus, através duma leitura apertada, uma significação que fosse ao mesmo tempo uma escora para o entendimento da época cultural em que Cortesão viveu e de que foi primeiro protagonista, quantas vezes através do próprio verso. Daí o título ambicioso do conjunto. Pelo meio deviam ficar os elementos intrínsecos do trabalho poético do autor, aquilo a que chamo os modos e os processos (e a que faltam porventura os meios, o estudo dos recursos lexicais e sintácticos do seu verso). Estou longe de crer que tal desiderato tenha sido alcançado, na parte ou no todo. No fundo, o que aqui fica é pouco mais que o conjunto desencontrado de notas, o amontoado desarrumado de apontamentos que deveriam servir, caso dispusesse de condições e tranquilidade, à elaboração definitiva do estudo. Assim, tal como o dou à estampa, trata-se dum borrão informe, a que falta lima e organicidade. Por isso mesmo, venho pedir, neste pórtico de entrada, indulgência ao leitor. De tudo aquilo que aqui deixo, a questão mais pertinente e promissora é a da metáfora2. Tenho-a por crucial no entendimento do processo de Cf. FERREIRA, David Mourão. Sobre a Trajectória Poética de Jaime Cortesão. In: CORTESÃO, Jaime. Poesia. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998, pp. 11-20. (Texto anteriormente publicado em FERREIRA, David Mourão. Lâmpadas no Escuro, de Herculano a Torga: Ensaios. Lisboa: Arcádia, 1979.) 2 Cf. FRANCO, António Cândido. A Metáfora Saudosista em Jaime Cortesão – Nota final à reedição de Poesia. In: CORTESÃO, Jaime. Poesia. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998, pp. 339-343. 1

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significação na poesia de Cortesão. De resto, uma tal questão remete, como aponto algures no texto, para o problema da saudade, o que me permite pensar que o tropo é capital não só para Cortesão como para todos os outros poetas saudosistas. A poesia saudosista não teve ainda um estudo distanciado e de conjunto, que dê a perceber os elementos estruturantes e as significações de fundo. Há evidentemente os textos que Fernando Pessoa publicou em 1912, na revista A Águia, que são riquíssimos de sugestões. Têm porém o senão de terem sido escritos numa altura em que a poesia saudosista estava ainda em crescimento, se não mesmo no momento de nascer. Demais, esse trabalho ficou como se sabe sem continuidade e até, de acordo com as tenções iniciais do autor, sem fecho. Só desde as últimas décadas do século passado, com a distância e o corpo de textos devidamente definido, passaram a existir as condições para empreender um trabalho de conjunto sobre a poesia saudosista. Julgo que a questão da metáfora pode ser decisiva para encontrar o denominador comum dessa poesia, tornando-se desse modo o fio de Ariadne que nos permitirá esclarecer dificuldades e superar obstáculos, num terreno que é tão obscuro e tão inextricável como o labirinto de Creta. *** Em 1909, 17 de Dezembro, e com data de frontispício de 1910, aparecia a estreia poética em livro de Jaime Cortesão (1884-1960), A Morte da Águia. Não era a estreia em livro do autor, que essa acontecera pouco antes, com um estudo, Arte e Medicina, versando Sousa Martins e Antero de Quental, que acabou nesse mesmo ano por ser a sua dissertação de licenciatura médica, em Coimbra. O livro de versos tinha na capa desenho de António Carneiro e era um poema ininterrupto, dividido em sete cantos. Trazia ainda por baixo do título, ilustrando o género, a legenda Poema Heróico. A edição pertencia à casa editora Guimarães, em Lisboa, por essa altura muito interessada na publicação de literatura política libertária. Atente o leitor com mais pormenor no livro e no poema. O desenho da capa, da autoria daquele que viria a ser o director artístico da segunda série da revista A Águia, mostra três vigorosas e sobranceiras aves, de rémiges poderosas, olhar fulminante, perscrutando o infinito rarefeito do céu, bico adunco, garras rapaces. O título, por sua vez, centrava o poema num único momento, o do fim do imponente animal. Só por este facto o poema de Jaime Cortesão se aproxima desse outro de António Patrício, O Fim (história

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dramática em dois quadros), retábulo também dum momento final, dado à estampa no mesmo ano de 1909. Os sete cantos do poema – “O Despertar de um Deus”, “Hino à Montanha”, “A Árvore Trágica”, “A Vida Heróica”, “O Canto das Águias”, “A Tempestade” e “A Morte da Águia” – mostram que o título do volume retoma o do canto final do poema. Está o leitor diante dum poema em verso, de tipo narrativo, tecendo uma história e misturando para isso o discurso indirecto dum narrador heterodiegético e o discurso directo das personagens [Ésquilo (o pai da tragédia), uma Árvore, o coro das Águias, as Sibilas, a Tempestade], num arco de história bastante mais largo do que esse que surge inscrito na tabuleta da capa, o momento final da imperial ave. A legenda, poema heróico, adstrita ao título, ajuda desde logo a perceber uma tessitura mais vasta do que aquela que o título anuncia. Trata-se na verdade dum texto que por tudo aquilo que carreia – das palavras heróicas das Águias ao bailado divino da Tempestade – se mostra muito mais o canto do heroísmo, do heroísmo cósmico, do heroísmo em geral, do que o poema dum singular momento heróico. É por isso que a história que aí se conta, de contornos abstractos, como é próprio das regiões rarefeitas onde vive a águia, toma contornos de mito. A águia surge pois nos versos de estreia de Jaime Cortesão como uma figura unificadora das variadas situações que pelo poema correm, todas elas marcadas pela excepcionalidade. No canto de abertura, assistimos ao nascimento da ave no quadro da Montanha, que é para o narrador, destro em metáforas relativas ao sublime, o átrio ou a cariátide do céu. Topa-se de seguida, já no canto quarto, depois doutras peripécias, com o desenvolvimento das suas qualidades. A águia mostra-se aí, no reduto do seu reino, sedenta de desmedido e de infinito; é a vida das alturas na qual vive, palpitando por um além sempre renovado. Finalmente, no derradeiro canto, depois das palavras da Tempestade, a águia mergulha no vórtice do turbilhão, consumindo nessa labareda a lenha do coração e encontrando nele a alegria da morte. Por via desta estrondosa explosão, o poema fecha com o renascimento universal de tudo o que existe, desde a seiva das flores à luz dos astros. O elemento heróico do poema centra-se no destino dum ser que, nascendo uns furos acima do chão (o primeiro canto chama-se por isso “O Despertar de um Deus”), anseia por vida épica, quer dizer, mais altura. Esse desejo é a verdadeira finalidade épica de tudo o que sucede no decorrer do poema. A existência do herói, para se realizar, não requer apenas a ânsia

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de mais altura; pede acção e acção funda, sacrificial, em que a morte surge a justificar a vida eterna. A águia do poema de Cortesão faz-se, por isso, mito de eterno retorno, melhor, mito de luz e renascimento da vida. O poema afigura-se assim um bailado de gigantes ou de titãs numa meseta deserta e inacessível. É um teatro de corpos poderosos e primordiais, representando no cocuruto do mundo o drama da origem ou a cosmogonia renovadora do universo. Nesse palco, o protagonismo crucial pertence à ave imperial, da qual emana o calor vital da origem, verdadeiro centro criador do cosmos. Estão assim presentes neste poema de 1909 todos os valores metafísicos e sociais – franqueza, liberdade, individualismo criador, ajuda mútua, sacrifício dos seres superiores aos inferiores, desejo, além, morte, luz e renascimento – que depois encontraremos associados à publicação da revista A Águia, cujo primeiro número é de Dezembro de 1910, e à fundação da Renascença Portuguesa, em finais do ano de 1911. Nesse sentido, basta atentar nas dedicatórias dos cantos do poema (Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoaes, António Correia de Oliveira e Leonardo Coimbra) para se perceber como a geração da Renascença Portuguesa nele se desenhava já com uma nitidez surpreendente. Na verdade, um dos pontos fortes da estreia poética de Jaime Cortesão foi essa capacidade de catalisar num curto espaço de tempo uma geração; fê-lo em torno dum projecto colectivo que tinha por imagem um símbolo identificador, a águia, e por acção um mito dinamizador, o do renascimento. Com a passagem do poema à criação da revista, cujo baptismo a ele se deve, e à fundação da associação cultural portuense, é como se o bailado de corpos imateriais que dançam nos versos de Cortesão se concretizasse numa linha humana de terra. A águia mítica de Cortesão, verdadeiro Sol cosmológico do universo, é agora Portugal (não referido sequer no poema de 1909). Cabe-lhe a ele, Portugal, depois da revoluteante transformação do dia 5 de Outubro, a heroicidade dum novo começo ou dum novo voo. Em lugar da Águia, Portugal; em vez do universo cosmológico, o concerto das nações humanas, onde o país de Camões há-de fazer a vez do titã prometeico ou da águia redentora. A águia como metáfora superior de Portugal, eis então o ideário da Renascença Portuguesa. O poema de Cortesão chamou pela primeira vez a atenção, num contexto de forte perturbação política (o regicídio acontecera pouco antes da publicação), para o simbolismo luminoso da águia. O facto do poeta ter despido de elementos circunstanciais – políticos, históricos, geográficos – os seus versos, dando-nos tão-só a ver uma dança de titãs primevos,

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num cenário tão rarefeito como o do Câucaso mítico de Prometeu, jogou a favor da representatividade do poema e cativou para a sua figura tutelar uma atenção geracional que doutro modo não teria conseguido. A história daquela águia, por ser abstracta, era mítica como a sua imagem, por ser icástica, se tornava simbólica. Fialho de Almeida, também ele um escritor-médico, dramatizara já a vida heróica da águia num conto estupendo, “O Ninho de Águia”, no livro de estreia, Contos (1881). É talvez a primeira águia com valor simbólico na literatura portuguesa contemporânea. Ainda assim esse extraordinário bicho do montado de Vila de Frades não é metáfora de coisa nenhuma, a não ser da forte individualidade do seu narrador/autor, ao passo que esta segunda águia, agitando as poderosas rémiges nos versos de Cortesão, depressa ganhou junto da geração nova o valor dum símbolo colectivo. E tão significativo se tornou ele, que menos dum ano depois se percebia já na figura cortesiana uma metáfora maior de Portugal. *** Ao invés do que seria de esperar em poeta que se estreou aos vinte e cinco anos com livro tão copioso e perfeito, de tão largas consequências, a obra posterior em verso de Jaime Cortesão é curta e não mostra talvez o alto significado colectivo da sua estreia poética. Com isto quero apenas dizer que o autor que se apresentou a público com A Morte da Águia, se poderia ter tornado, caso desenvolvesse posteriormente as superiores qualidades que aí revelava, antes de mais a capacidade de condensar poderosos símbolos colectivos a partir de mitos de invenção, próximos daqueles que Camões criou no canto quinto de Os Lusíadas, no primeiro poeta do século XX português. Tal não veio a acontecer, pois depressa Jaime Cortesão iniciou uma obra de prosador e de investigador, que se não fez dele o primeiro poeta português do seu século, o transformou num dos mais importantes escritores portugueses de sempre. Assim como assim nunca o poeta de A Águia deixou de escrever e publicar versos ao longo do comprido meio século que ainda lhe restava viver. Deu à estampa mais três livros de versos: Glória Humilde (1914), um conjunto de trinta e nove poemas, Divina Voluptuosidade (1923), uma reunião de vinte e um poemas, e Missa da Meia-Noite e Outros Poemas (1940), grupo de catorze poemas, que surgiu subscrito por um pseudónimo, António Fróis.

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A estes setenta e quatro poemas, é preciso acrescentar os onze dispersos, entre inéditos e não inéditos, que as páginas de Poesias Escolhidas (1960) recolheram e os vinte e sete poemas, também dispersos, neste caso todos éditos (com uma única excepção, o soneto À morte do poeta António Machado, escrito no momento mesmo do acontecimento), que a primeira edição da sua Poesia completa (2 vols., 1967-1968) deu a conhecer. Seria iniquidade – bem comum porém na videirinha república das letras – não referir aqui o nome de José António Machado (1916-1978), autodidacta, operário corticeiro, tipógrafo da Imprensa Nacional, incriminado com Emídio Santana no atentado contra Salazar. Foi então condenado à prisão e deportado para a fortaleza de Angra de Heróismo. Anos mais tarde, no regresso à vida livre, dedicou-se à tradução de obras literárias e filosóficas, à revisão e à edição, ao jornalismo e à composição de trabalhos de sua autoria, como o tentame biográfico Madame de Staël (1967, 380 pp.). A ele se deveu a organização e a edição das Obras Completas de Cortesão, que a Portugália Editora publicou na década de sessenta do século XX. Apareceram nessas Obras os dois volumes da Poesia (décimo primeiro e décimo quarto volumes), que estabeleceram a obra poética do autor, com um aparato crítico notável, reportando em rodapé, quando as há, as várias versões de cada poema. Foi ele, portanto, o responsável da reunião das quase três dezenas de dispersos, alguns com mais de cinquenta anos de publicação, o mais antigo é de 1906, que apareceram no segundo tomo do conjunto. Salvante os versos publicados em …Daquém e Dalém Morte (1913), que aí devem ficar, e algumas outras excepções, porventura a procurar em publicações do Brasil, relativas ao período do exílio, convenço-me que a poesia em verso de Cortesão se encontra definitivamente estabelecida e recolhida nesse probo e consciencioso trabalho de José António Machado. A referência ao seu labor impõe-se aqui em absoluto, tanto mais que o nome do autor de tão meticuloso labor não figurou, por sua decisão, nos volumes então editados pela Portugália Editora. Regressando à poesia de Cortesão, tem-se assim entre 1910 e 1960, somando livros e dispersos, um conjunto de cento e doze textos. Feitas as contas percebe-se que em média Jaime Cortesão escreveu cerca de dois poemas por ano, quantidade ínfima para criador tão fecundo, de estro tão inventivo, mas que não surpreende se se pensar no volume e na qualidade dos trabalhos em prosa que por esses mesmos anos deu à estampa e ainda nas iníquas condições em que foi obrigado a viver depois da instauração da ditadura de 1926.

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Quais as características desta poesia? Deixo por um momento de lado o derradeiro livro de poemas do autor para me ocupar apenas de Glória Humilde e de Divina Voluptuosidade. Nestes dois livros, o verso de Cortesão troca o modo narrativo, de tipo mítico, por um verso de tipo lírico, ajustado a cantar temas íntimos e pessoais, ainda que o modelo versificatório desses dois livros não se afaste muito daquele que se encontra no poema de estreia. Se no poema de 1909 se topa um sistema estrófico livre (em que todavia parece predominar a sextilha), que combinava o decassílabo heróico com a redondilha maior e a menor, e ainda com o hexassílabo, agora está lá um corpo estrófico de escopo mais clássico, assente na quadra ou no terceto, de resto também presente este num dos cantos da estreia (“A Tempestade”), ou na combinação dos dois, e um metro centrado nas duas redondilhas – o subtítulo de Divina Voluptuosidade é mesmo poemas em redondilhas – e no decassílabo sáfico, de acentuação na quarta e décima sílabas, e no heróico. Basta atentar nos títulos das partes que constituem esses livros – “Terra-Mãe”, “Choupos, Chorões e Pinhais”, “Alma do Povo”, “Da minha Arte”, “Tardes de Portugal”, “Sonetos de Amor”, “Orações”, “Madrugada Longínqua”, “Meio-Dia Pagão”, “Tarde Mística”, “Poente Cristão” – para se perceber que a vida heróica do poema de estreia, capaz de condensar símbolos colectivos de forma abstracta, num sacolejo épico de inegável efeito, surge agora substituída por uma paisagem muito mais solipsista e pessoal. Mesmo quando os propósitos colectivos parecem fazer parte do verso do poeta, como é o caso dos poemas de “Alma do Povo” ou “Tardes de Portugal”, do livro Glória Humilde, o que lá se encontra é um tratamento mais concreto e situado das situações e dos motivos. Uma tal abordagem impede à partida o desenrolar duma história mítica, de tipo abstracto, capaz de levar àquela condensação de símbolos de valor geral que o leitor encontrou como superior atributo do poeta de A Morte da Águia. *** Ainda assim seria falta de visão querer opor os dois modos que aqui se apontam, o primeiro, o da estreia, de propósito épico, e o segundo, dos dois livros seguintes, de tenção muito mais diluída e lírica. O erro duma tal oposição seria levar o leitor a pensar que os processos de ambos são distintos, quando não são. Na verdade, por muito que se assinalem diferenças entre os dois campos, os processos de composição são os mesmos, fácil se tornando reconhecer no poeta de Glória Humilde o da Morte da Águia. Em termos de processos, o autor escreveu uma poesia ininterrupta, sem quebras, ainda que em modos distintos.

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Aquilo que faz a continuidade desta poesia, o processo que a unifica, é a metáfora. A metáfora é um tropo, em que o emprego duma palavra se faz em sentido figurado. Trata-se de transportar a significação dum vocábulo para outro, quer dizer, um trânsito semântico que unifica duas realidades aparentemente distintas. A palavra metafórica transita para regiões de significação que lhe são alheias. Por exemplo, quando um poeta diz, a propósito da sua obra, o fogo reunido, está a usar a palavra fogo numa zona de significado desconhecida, a da palavra poética, mas perfeitamente aceitável e verosímil. O mesmo se passa quando falo de labareda verde, quando me refiro a uma folha contemplada em Abril ou Maio. Em última visão, a metáfora é nostálgica da unidade primordial da linguagem. Para bem dizer é possível conceber que, pela força convergente da metáfora, por sucessivas deslocações de significação, uma única palavra, um único som, possa significar figuradamente, em abstracto, tudo o que de concreto existe no mundo. Daí a nostalgia da unidade pré-babélica da linguagem verbal, que é ao mesmo tempo nostalgia da unidade primeva do mundo. Em relação à poesia de Cortesão, destacam-se dois tipos de metáfora, a material e a metafísica. No primeiro tipo, depara-se com a transposição de realidades em função da História de Portugal ou do espectro das cores. Um exemplo do primeiro subtipo encontra-se naquela águia da estreia poética do autor, que, numa história mítica, rarefeita, se tornou depois uma imagem colectiva e geracional da ideia de Portugal. Mas o mesmo processo está presente em poemas muito menos narrativos, sem mito, sem intriga, sem caracteres, como A Sinfonia da Tarde, que teve plaquete em 1912 e foi depois recolhido nas páginas de Glória Humilde (em “Tardes de Portugal”). Foi a propósito desse poema, e dum outro, Esta História é para os Anjos, que também teve plaquete no mesmo ano, que Fernando Pessoa escreveu uma longa carta ao autor, com a data de Janeiro de 1913, em que o toma como o primeiro dos poetas da novíssima geração (a carta está hoje recolhida no volume da Poesia3 de Jaime Cortesão). Trata-se dum longo poema, de centenas de versos, que pretende trocar por palavras as impressões dum pôr-de-Sol. As mediações usadas CORTESÃO, Jaime. Poesia. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998 [repete a edição de José António Machado (o nome do editor literário não apareceu porém no frontispício: 2 vols., Lisboa: Portugália Editora, 1967 e 1968), que é no essencial definitiva, pelo menos no que diz respeito a Portugal; marginália crítica, com textos de A. Correia de Oliveira, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa, Gomes Leal e Leonardo Coimbra].

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para traduzir verbalmente as sensações íntimas ou psíquicas são em geral imagens que o poeta vai buscar à História de Portugal, quer dizer, são metáforas que usam a História de Portugal como termo analógico. Veja-se a seguinte passagem: Oh! tarde! Oh! tarde! Oh! sangrenta derrota!… Oh! Alcácer Quibir do Sol! Meus Deus! El-Rei D. Sol vai a morrer aos poucos… Que linda e como brilha a sua cota Por entre os combatentes! Voltou-se agora mesmo para os seus, Ergueu a espada ao ar E em gritos surdos, sufocados, roucos Pôs-se a bradar, rangendo os dentes Morrer… mas devagar!… Oh! Alcácer Quibir! oh! pôr-do-Sol, Tarde da minha Raça! Oh! Sol de Glória, oh! noite de Desgraça!…

Não vale sequer explorar o exemplo, tão claro é ele. Quanto à metáfora material, de subtipo luminoso, encontro-a em geral nos poemas de amor do autor, recolhidos sobretudo em Divina Voluptuosidade. Bom exemplo, também sem necessidade de escólio, tão evidente ele é, é o sonetilho “Canção Vermelha”, em que o fogo – cores, temperatura, animação – serve para mediatizar sentimentos ou partes do corpo humano. Leiam-se os tercetos finais do sonetilho: Meus lábios, que a febre inflama, E as faces, estão em chama Como bocas de fornalha. E ardem-te os olhos surpresos; São dois archotes acesos Numa noite de batalha.

Resta a metáfora metafísica, a mais complexa, a mais rica, a de maior alcance e dificuldade. Trata-se de transposição que toma o espírito como termo mediador da matéria. As coisas da natureza, materiais, aparecem deslocadas em função das realidades espirituais. Se na metáfora material,

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de tipo histórico, o efeito é de grandeza, de heroísmo épico, como se vê no passo transcrito, na metáfora que designamos por metafísica o efeito é de transcendência. É o que se passa no poema “Choupos na Luz do Luar”, recolhido no livro de 1914, cuja expressão choupos de alma serviu a Fernando Pessoa para ilustrar a interioridade da poesia saudosista nos artigos de 1912. Sente-se neste tipo de metáfora, como em nenhuma outra, aquela memória da unidade primeira de que antes se falou. Se os choupos são alma, ou o choupal um convento, ou ainda o rumor que por lá se ouve uma oração, como nesse poema se adianta, então a separação entre o espírito e a matéria, termos de todas as dualidades, não existe. Se a metáfora une os alheios, mais ou menos surpreendentes, como vimos entre o Sol e o décimo quarto rei de Portugal, este género particular de metáfora une os extremos mesmo do mundo concebido ou por conceber. É aquilo que se pode chamar a metáfora universal, quer dizer, a metáfora que mostra capacidade de unir numa única emissão todos os significados possíveis. Eis por excelência o processo de significação da poesia saudosista, pois quer a saudade, quer a metáfora universal sinalizam pela memória a unidade do mundo. É, porventura, isso mesmo que Jaime Cortesão diz duma forma emotiva num dos derradeiros poemas que escreveu e publicou, “Saudade, Eterno Retorno”, se não mesmo o último (tem a data de 1955), dado à estampa nos “Dispersos” das Poesias Escolhidas, quando afirma no fecho, num paradoxo lapidar, atenuado apenas pelo partitivo, que sendo cinza e pó (…) vivemos da vida eterna. Por fim uma palavra sobre Missa da Meia-Noite e Outros Poemas, que se deixou propositadamente de lado. Trata-se de livro distinto, tão distinto que o autor sentiu porventura necessidade de o assinar com outro nome, mas em que se sente por inteiro o impulso mítico que se detectou na estreia poética do autor. De resto, esse impulso é servido pelos processos que o leitor já conhece, o que o torna reconhecível dentro da poética do autor. Estamos diante dum poema narrativo, com uma intriga complexa, centrada numa celebração litúrgica da noite de Natal, a chamada missa do galo, tendo pelo meio um regresso de Jesus e no termo a repetição da crucificação e da ressurreição. A mesa do altar, tendo por sacerdote o próprio Cristo redivivo, é por um curto momento a nova seara da abundância, onde a salvação do mundo tem lugar. É a “Noite dos Milagres”, quinto poema do conjunto, onde a diversidade da vida, mesmo a mais adversa – a Águia da Revolta, o Chibo do Pecado e o Demónio da Heresia –, é abençoada e redimida no mesmo abraço de compreensão e amor.

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Por um instante as promessas escatológicas de salvação parecem realizadas. Assim como assim o equilíbrio desse momento é interrompido pela intervenção das autoridades, dispersando a multidão e pondo termo à comunhão. Jesus é atingido por uma bala de metralha e cai ferido no chão. Vem depois a segunda paixão de Cristo, com nova crucificação e ressurreição. Estes dois momentos são assim sentidos como deceptivos, pois a vera oportunidade estava na comunhão amorosa da mesa, diante do pão e da vida. Ainda assim, o poema aponta, nessa repetição do malogro, para a possibilidade da cinza e do pó serem, como depois se vê nos derradeiros versos de “Saudade, Eterno Retorno”, parcela ainda da vida eterna, não pela necessidade bipolar, mas pela falta de consciência. Está lá, mas não percebe que está. Dito doutro modo, a águia mítica da estreia, que condensou um símbolo geracional, encontra na nova seara da comunhão universal o seu simbolismo final, o último círculo da sua luz. A nova eucaristia, sem mediações, viva e participada, natural como Pã, é a consciência mesma do movimento da vida e da eternidade. Há uma intertextualidade possível, óbvia ao que me parece, entre esse poema – que tem como legenda drama metafísico entre prosa e verso, e cenário para um filme com música do maestro X – e aquele outro, em prosa, Jesus Cristo em Lisboa, que Teixeira de Pascoaes e Raul Brandão deram à estampa em 1927. O cotejo dos dois textos em termos de significações, apontando paralelismos e diferenças, menos estas que aqueles, parece-me indispensável para uma exegese ampla da questão religiosa nos autores em causa. *** Não quero terminar este texto sem deixar de dizer que a noção de poesia que aqui uso é – pelo menos em muito, mas não em tudo, pois se assim fosse nem sequer aceitaria como poesia o texto lírico – relativa à mimesis aristotélica. Nesse sentido, as peças dramáticas que Cortesão deu à estampa – O Infante de Sagres (1916), Egas Moniz (1918) e Adão e Eva (1921) – justificam leitura no quadro dum estudo global sobre a poesia de Jaime Cortesão. Se se atender ao aspecto mimético na avaliação do poema, então estes três textos, sobretudo os dois primeiros, são mesmo, como poemas dramáticos, obras centrais da poesia do autor. Reconheço na ausência desses textos, na falta de tratamento que deles aqui fica, uma das falhas indiscutíveis deste estudo.

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DO MITO DA ÁGUIA AO SIMBOLISMO DA SEARA

Também as narrativas poéticas de …Daquém e Dalém Morte, publicadas numa altura em que o poeta estava muito activo, merecem, em absoluto, acolhimento num estudo cerrado sobre a poesia do autor. Ainda assim, o trabalho que fiz anteriormente sobre esse livro deixa-me mais descansado. Responsabilizei-me pela segunda edição do conjunto, actualizando a ortografia e fixando em definitivo título e texto4. Essa edição é com certeza a edição de referência dos leitores de hoje (a primeira, da responsabilidade das edições da Renascença Portuguesa, é raríssima). Liguei no estudo introdutório dessa reedição o tipo de imaginação que Cortesão mostra nessas narrativas fantásticas ao teor imaginativo do surrealismo nascente, mormente pelo apelo da metáfora ígnea, a que no caso podemos designar de mágica. Julgo que são elementos intorneáveis para se perceber a novidade do livro, que antecipa O Céu em Fogo de Mário de Sá-Carneiro, e ao mesmo tempo a sua inexorável relação com o verso saudosista do autor.

Cf. CORTESÃO, Jaime. …Daquém e Dalém Morte. Edição de António Cândido Franco. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2000. Cf., também, FRANCO, António Cândido. Os Contos Negros de Jaime Cortesão. In: CORTESÃO, Jaime, …Daquém e Dalém Morte, pp. 9-20.

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Entre história e poesia, entre Pascoaes e Pessoa: Jaime Cortesão nos Inquéritos Literários de 1912 e de 1920 DUARTE DRUMOND BRAGA Centro de Estudos Comparatistas (UL) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (USP)

Introdução Este estudo centra-se em dois artigos de Jaime Zuzarte Cortesão, saídos a lume na fase mais activa da sua participação no projecto da Renascença Portuguesa: o texto polemizante “Uma réplica do Sr. Jaime Cortesão ao Sr. Dr. Júlio de Matos”, a 30 de Setembro de 1912, no jornal lisboeta A República, e o texto doutrinário/manifesto d’A Águia, série II, n.º 10, em Outubro de 1912, “Da «Renascença Portuguesa» e seus intuitos”. Abordamos ainda o “Depoimento do Sr. Dr. Jaime Cortesão”, saído no Diário de Notícias, a 24 de Junho de 1920, e no qual se reflecte o seu afastamento daquela sociedade1. O presente estudo procura entender tais documentos no seu contexto de produção, que é, no caso dos dois primeiros, o ambiente polemizante do “Inquérito Literário” de 1912 e, no do segundo, um outro inquérito literário, de 1920, no qual Cortesão é chamado a depor. Os três artigos são confrontados com a coeva produção doutrinária de Teixeira de Pascoaes e de Fernando Pessoa – de que o primeiro plebiscito é um dos veículos de divulgação –, de modo a podermos entender a posição do nosso autor em relação às questões fundamentais em debate na Renascença Portuguesa e na reacção a esta: a Saudade, a “nova poesia portuguesa” e ainda a alegoria do “supra-Camões”. O nosso propósito é o de descrever e contextualizar um momento da produção ensaística de cariz polémico-doutrinário de Segundo cremos, apenas o primeiro e o segundo conheceram nova publicação. O primeiro foi pouco depois republicado em 1915 no volume que compilou o “Inquérito Literário” de Boavida Portugal, entre as páginas 161 e 169 (cf. nota seguinte); o segundo, “Da «Renascença Portuguesa» e seus intuitos”, foi republicado em SAMUEL, Paulo. A Renascença Portuguesa: um perfil documental. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 1990, pp. 20-26. Em relação ao terceiro, por, segundo cremos, ainda não haver sido republicado, optámos por inclui-lo anexo ao presente estudo.

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Jaime Cortesão, apontando pistas para uma mais aprofundada exploração hermenêutica daquelas questões na obra do autor.

Os contornos do “Inquérito Literário” de 1912; Saudade e Saudosismo; Jaime Cortesão e os renascentes versus Júlio de Matos O “Inquérito Literário” desenvolveu-se nas páginas do diário A República, entre os meses de Setembro e Dezembro de 1912, com variados ecos na imprensa portuguesa. Os textos foram posteriormente reunidos em volume2 pelo mentor do plebiscito, o jornalista José Boavida Portugal (1889-1931). Tinha como seu propósito declarado averiguar os efeitos directos nas letras da recentíssima revolução de 19103. Desaparecidos, como lembra Nuno Júdice4, os escritores laureados do fim-de-século: Eça, Camilo e Fialho na ficção; Antero e Nobre na poesia – apenas restando Junqueiro, que entretanto apadrinhara a Renascença Portuguesa –, muitos concluem de forma pessimista haver uma grave crise no plano da criação literária, dois anos após a instalação do novo regime. O segundo propósito do inquérito, decorrente do primeiro, consistia no juízo crítico da revista A Águia e do Saudosismo, e por extensão do movimento que se assumira como portaestandarte das dimensões cultural e espiritual da República, a Renascença PORTUGAL, Boavida (org.). Inquérito Literário. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1915. Tem 3 secções: “I-Depoimentos”; “II-Réplicas de outros escritores” e “III-Comentários da Imprensa”, precedidas de um prefácio do antólogo: “Sinfonia de Abertura”. De entre os autores consultados, há a destacar os seguintes nomes: Júlio de Matos, Henrique Lopes de Mendonça, Teixeira de Pascoaes, Gomes Leal, João Grave, Adolfo Coelho, Júlio Brandão, o Visconde de Vila Moura e Carlos Malheiro Dias; de entre os replicantes: Fernando Pessoa, Raul Proença, Augusto Casimiro, Jaime Cortesão, António de Monforte (pseudónimo poético de António Sardinha), Aarão de Lacerda e Hernâni Cidade. Como vemos, só com o segundo grupo se forma um quadro apreciável da vida cultural e literária portuguesa, depondo na tribuna da imprensa de acordo com o espírito republicano de responsabilização social do intelectual. As respostas directas e as réplicas às mesmas surgem geralmente sob a forma da epístola e, mais raramente, da entrevista. Os títulos apostos aos artigos são da responsabilidade de Portugal. O volume contém ainda excertos retirados de outros jornais, onde se comenta todo o processo do Inquérito. Por não haver, desde 1915, conhecido nova publicação, está em curso uma edição anotada da obra pelo autor destas linhas. Alguns dos depoimentos foram reeditados no âmbito das obras de Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coimbra, e de Fernando Pessoa; importaria porém reeditar todo o conjunto de modo a obtermos uma visão global deste importante documento para a compreensão da Renascença Portuguesa, do Saudosismo e das relações entre as letras e o regime republicano. Actualizámos a ortografia nas citações que se seguem. 3 Cf. PORTUGAL, Boavida, Sinfonia de Abertura, op. cit., pp. 5-11. 4 JÚDICE, Nuno. A Era do “Orpheu”. Lisboa: Editorial Teorema, s.d., p. 9. 2

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Portuguesa. O tom geral, incluindo o de Boavida Portugal, é hostil à nova escola literária associada à revista, vendo-a muitos dos articulistas como uma desenvolução escolar do Simbolismo, enformada por um filosofismo de índole panteísta. O volume final resultante da compilação é pois um importante documento para a compreensão da Renascença Portuguesa e do Saudosismo, mas não só: expõe reflexões dos literatos em relação ao meio literário e às questões da leitura e do livro no primeiro quartel do século XX5; exibe um repositório de perspectivas estético-ideológicas sobre a literatura muito distintas, desde o Naturalismo serôdio de João Grave até à antemanhã do Modernismo pessoano (a revista Orpheu sai a lume no mesmo ano da publicação: 1915), e denuncia ainda o embate filosófico entre o Intuicionismo e o Messianismo renascentes e o Positivismo instituído, representado por Adolfo Coelho e Júlio de Matos6. É em torno da reacção à Saudade e ao Saudosismo, por parte destas duas figuras-chave do cientismo do início do século XX, que se forma o principal veio polémico do inquérito. A estrutura deste é constituída por vários confrontos paralelos entre depoentes e replicantes, articulando-se numa polémica polifónica; no entanto, a questão central e unificadora é sem dúvida a do Saudosismo. No depoimento de abertura, assinado por Júlio de Matos – o que mais tinta fez correr, já que a maior parte das réplicas lhe são dirigidas: Proença, Antero de Figueiredo, Augusto Casimiro, João Amaral, Cortesão, Pascoaes (e indirectamente em outros artigos, réplicas e tréplicas) –, o reputado psiquiatra, recém-eleito ministro da Instrução e reitor da Universidade de Lisboa, é instigado pelo entrevistador a opinar em relação à revista “que se diz órgão de uma renascença portuguesa”, respondendo da seguinte maneira: “São rapazes, não é verdade? Mas tudo aquilo é muito ordinário”7. E continua: “Ora, em que se baseia essa renascença? Alguns destes intelectuais sentem a necessidade de reflectir acerca da própria fragilidade do meio literário da época. Certos críticos da Renascença, como Júlio de Matos ou o dramaturgo Augusto de Castro, lembrarão que não pode haver renascença literária sem leitores. Contudo, a questão do analfabetismo só é directamente endereçada pelo consciente depoimento de Carlos Malheiro Dias, entre as páginas 107 e 113 da obra. Sobre estas questões ver MOTA, Nuno. Dois Inquéritos Literários (1912, 1920). In: CURTO, Diogo Ramada (org.). Estudos de Sociologia da Leitura em Portugal no Século XX. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006, pp. 761-788. 6 Cf. REAL, Miguel. O pensamento racionalista português na segunda metade do século XIX: Teófilo Braga, Júlio de Matos e Miguel Bombarda. Vértice. Lisboa, vol. 122, 2.ª série. 7 MATOS, Júlio de. O Sr. Dr. Júlio de Matos não acredita que atravessemos um período de renascimento literário, Inquérito Literário, p. 17. Também Gomes Leal viu, nas páginas deste inquérito, A Águia como uma “rapaziada”, entregue a um novo e bizarro tipo de Simbolismo: “Vivem nuns mundos desconhecidos, onde nunca poderá penetrar 5

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Na saudade? (…) Cultivar a saudade é amarrar-se ao passado, é alimentar um estado mórbido, é ajudar a definhar mais a raça”8. Estas palavras irão suscitar as manifestações iradas de Jaime Cortesão e de Leonardo Coimbra9. Desde o início, a polémica força os principais renascentes a uma vigorosa tomada de posição. Paralelamente, Teixeira de Pascoaes está ocupado num confronto com Júlio Brandão que, em ataque desabrido à sua pessoa, o havia apodado de “Budazinho que usasse navalha de ponta e mola”10, só mais tarde vindo a medir forças com Júlio de Matos11. É Jaime Cortesão quem com maior veemência responde ao “desejo de enxovalhar”12 do psiquiatra, assumindo-se como fundador e paladino da Renascença Portuguesa13. Em

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ninguém”. LEAL, Gomes. O poeta Gomes Leal diz que de Antero, de Junqueiro e principalmente dele procederá uma verdadeira renascença, impregnada de misticismo, Inquérito Literário, p. 52. No mesmo curiosíssimo depoimento dirá que a verdadeira renascença literária portuguesa não é tanto a que emana d’A Águia, mas a que procederá da sua própria poesia. Estas reacções não provocam tanto a ira, como a mágoa dos renascentes, como se pode ler no depoimento de Augusto Casimiro. Cf. CASIMIRO, Augusto. O Sr. Augusto Casimiro responde aos Srs. Júlio de Matos e Gomes Leal, Inquérito Literário, pp. 151-155. Não deixe de se lembrar que a Renascença Portuguesa dinamizará, em 1913, uma subscrição pública para tirar Gomes Leal da miséria. MATOS, Júlio de, op. cit., p. 18. E segue-se uma associação da Saudade ao sebastianismo: “O saudosismo é uma espécie de sebastianismo. Mas os sebastianistas ainda têm fé num messias (…). Os lamechas que só têm Saudades… não têm mais nada”. Idem, ibidem, p. 19. Compare-se esta definição de Saudade com estoutra, proposta por um intelectual com um quadro mental não muito distante deste, Manuel Laranjeira. Para o autor de Comigo, a Saudade é uma “emoção complexa”, um “período rítmico de duas emoções”, uma depressiva e a outra exaltante. LARANJEIRA, Manuel. O Nirvana (interpretação psicopatológica dum dogma). In: PEREIRA, José Carlos Seabra (org.). Obras de Manuel Laranjeira, vol. II. Lisboa: Edições Asa, 1993, p. 120, n.o 35. Trata-se de uma definição bem mais complexa e interessante do que a do psiquiatra, parecendo seguir na linha do entendimento da Saudade como sentimento duplo ou combinatório, de carácter agridoce, presente sobretudo em D. Francisco Manuel de Melo, no “delicioso pungir” de Almeida Garrett, e em Carolina Michäelis de Vasconcelos («The joy of grief», como dizem os ingleses. VASCONCELOS, Carolina M. A Saudade Portuguesa. Lisboa: Estante, 1990, p. 12). O filósofo depõe no jornal A Montanha, em Setembro de 1912. Cf. COIMBRA, Leonardo. A voz da incompetência. In: PORTUGAL, Boavida (org.), op. cit., pp. 310-316. BRANDÃO, Júlio. O Sr. Júlio Brandão diz não ver correntes literárias que não se tenham há muito observado, Inquérito Literário, p. 97. PASCOAES, Teixeira de. O Sr. Dr. Teixeira de Pascoais responde aos Srs. Dr. Júlio de Matos, Raul Proença e Adolfo Coelho, Inquérito Literário, pp. 172-187. CORTESÃO, Jaime. Uma réplica do Sr. Jaime Cortesão ao Sr. Dr. Júlio de Matos, Inquérito Literário, p. 162. O julgamento ex cathedra do médico Júlio de Matos é rebatido ponto a ponto por Cortesão: a) à acusação de francesismo, e de não conhecerem os novos a literatura inglesa,

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prol da orientação saudosista d’A Águia, o poeta e ensaísta afirma a total incapacidade do (outro) médico em opinar acerca de matérias literárias e defende a saudade pascoalina: O conceito de Saudade que aparece na Águia é outro bem diferente. A Saudade, como síntese psicológica e o saudosismo é [sic] criação individual do poeta Teixeira de Pascoais, que aliás acho formosíssima e cheia de profunda verdade. É pois a ele que compete a sua defesa, se é que este termo tem aqui algum cabimento. No entanto devo dizer-lhe que para contraditar a definição do Sr. Matos, que no conceito de Pascoais a Saudade envolve Esperança, esforço criador, entusiasmo religioso e voluntariosa continuidade afectiva14.

Raul Proença, apresentando-se como “dissidente da Renascença”15, defenderá também, mas apenas literariamente, os renascentes, uma vez que os acusa de colonização ideológica do projecto. Chega mesmo a admitir que a Saudade é o “sentimento mais individual”16 de Portugal, dirá que o grupo “não sofre de qualquer influência estrangeira” e que conhece bem o “panteísmo científico” de Shelley, apontando mesmo, segundo creio, para o caso de Pessoa: “Um desses escritores, dos que mais crêem na «renascença», foi lá educado”. Cf. idem, ibidem, p. 65. De resto, o francesismo é um tópico batido do inquérito, onde será exorcizado em prol de um mais consciente europeísmo (Proença), ou da necessidade de procurar outros modelos (Adolfo Coelho, Gonçalves Viana). Um autor como Henrique Lopes de Mendonça chegará mesmo a afirmar: “O que principalmente prejudica a nossa literatura é sabermos todos (…) francês”. MENDONÇA, Henrique Lopes de. O Sr. Lopes de Mendonça diz não existir uma forte corrente literária…, Inquérito Literário, p. 24; b) à acusação de os poetas da Renascença serem depressivos, responde Cortesão que estes “não cantam tristezas nenhumas”, mas antes possuem um canto cheio de vitalidade; c) quanto aos ataques à Saudade, a Saudade destes não é a da “pessoa querida que nos faltou (que coisa tão chocha!)” (CORTESÃO, Jaime, op. cit., pp. 164-165), mas é antes o que permite “elevar a Raça à consciência activa das suas mais altas virtudes, é levantála às suas mais sublimes culminâncias, arrebatá-la no ímpeto da sua antiga audácia, erguendo-lhe a vontade pelos seus mais genuínos sentimentos para as realizações do Futuro”. Idem, ibidem, p. 164; d) quanto ao juízo negativo do Desterrado feito pelo médico: “Como é que não vê nessa figura em vez do abandono de quem ‘deixa correr o marfim’?, antes o exaltado e sublime Desejo tão repassado de audácia criadora, que a sua parte mais lata, o excedente sobre-humano se reflecte num desterro de Alma, numa religiosa mágoa…?!”. Idem, ibidem, p. 167. A conclusão de Cortesão só pode, pois, ser a seguinte: a de que o ilustre médico se tratava de um “incompetente confesso, ignorante, irreflectido, inconsequente, ametódico”. Idem, ibidem, p. 167. 14 Idem, ibidem, p. 163. 15 Cf. PROENÇA, Raul. O Sr. Raul Proença analisa as declarações do Sr. Dr. Júlio de Matos, Inquérito Literário, pp. 119-129. 16 Idem, ibidem, p. 127.

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ainda que “incapaz de revigorar uma raça”17. Por seu turno, Cortesão, em outro texto saído a lume n’A Águia em Outubro de 1912, “Da «Renascença Portuguesa» e seus intuitos”, ao mesmo tempo que se demarca do europeísmo do manifesto paralelo da Renascença, escrito por Proença para a secção de Lisboa18, continua a responder directamente aos detractores do Saudosismo na polémica do “Inquérito Literário”: “a violenta diatribe e (…) o ataque pessoal àqueles dos seus membros que mais esforço lhe dedicam [à Renascença]”19. Neste e no texto já citado, é evidente como Cortesão partilha com Pascoaes os vários níveis de entendimento da Saudade, que considera ser algo de “legítimo, próprio, original e fecundo à luz dum critério histórico e filosófico”20. O autor coimbrão – ainda que salvaguardando da Saudade a sua condição de criação do poeta amarantino21 – revê-se, quer nas implicações filosóficas que dela retira Pascoaes, quer na neo-romântica eleição desta ideia-sentimento como imagem aglutinante do génio pátrio, daqui advindo a sua escolha para motor anímico de uma escola poética. Todavia, são as verdadeiras dimensões do génio nacional o mais urgente a ser consciencializado, como lembra no mesmo texto: (…) quando alguém tenta ministrar ao doente o único remédio possível, acordar para uma clara consciência os seus mais genuínos sentimentos, as virtudes que lhe são próprias, logo há quem acuse, desdenhe, emende ou castigue e tudo pelo terror que lhes inspira o que não podem compreender ou sentir e ainda pelo hábito de ver nas palavras unicamente o seu esqueleto verbal, sem se darem ao trabalho de procurar a riqueza íntima que as anima. [¶] O que para aí se tem dito da Saudade (…)22.

Idem, ibidem, p. 125. Idem. Ao Povo: a “Renascença Portuguesa”. A Vida Portuguesa, ano I, n.º 22, 10-2-1914, pp. 11-12; republicado em SAMUEL, Paulo, op. cit., pp. 16-19. 19 CORTESÃO, Jaime. Da “Renascença Portuguesa” e seus intuitos. In: SAMUEL, Paulo, op. cit., p. 20. Mais à frente no texto, lemos: “Quem sabe se aqueles mesmos que tanto teimam em nos aconselhar a panaceia da civilização europeia, desconhecem por absoluto a história da sua pátria e as conclusões a que chegaram os mais altos espíritos da sua Terra?” (Idem, ibidem, p. 22). 20 Idem, ibidem, p. 21. 21 É certo que esta noção de “criação” deve ser entendida no sentido de “revelação”, seguindo a proposta pascoalina de identificação entre criação e revelação de um novo mundo espiritual através da Saudade. 22 Idem, ibidem, p. 21. 17 18

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Trata-se de uma evidente retoma da resposta a Júlio de Matos23. Nas suas vozes discordantes, o inquérito responde pois, para o futuro historiador, à reacção do corpo social doente, que deseja continuar a desconhecer a sua alma, imerso na desnacionalização, causa dessa teimosa ignorância. Tratam-se de argumentos comuns aos outros mentores da Renascença (alternando com a condenação da educação jesuítica). A actividade renascente, ou a própria descoberta da Saudade, seria então esse poderoso “impulso afectivo” destinado a acordar as “fortes volições” nacionais24. É à elite intelectual e artística, a quem foi primeiro revelada a Saudade, que cabe a missão de planear e dinamizar uma terapia social colectiva, cujo aprofundamento é o único meio de produzir alterações efectivas na vida portuguesa. E di-lo o nosso autor a partir de uma citação de Michelet: “O advento duma ideia não é tanto a primeira aparição da sua fórmula, como a sua definitiva incubação, quando, depois de ter sido aquecida pelo amor, desabrocha, fecundada pela força do coração”25. Fica assim clara a necessidade de um trabalho intenso com vista à incorporação definitiva da alma nacional pelo corpo social doentio. Ainda que nos textos de Cortesão esta necessidade de tradução da Saudade em obras não seja menos intensa que a de um Pascoaes, é certo que foi aquele quem na Renascença Portuguesa se colocou na primeira linha quanto à assunção desta vertente, sobretudo com o seu papel activo nas Universidades Populares e na direcção do boletim renascentista A Vida Portuguesa, que visava afirmar e dar conta da obra de renascimento no domínio social.

Pascoaes, Cortesão e Pessoa: poesia, história e analogia Não pode passar despercebido que a conferência O Génio Português na sua Expressão Filosófica, Poética e Religiosa (1913) de Teixeira de Pascoaes, central na produção doutrinária da Renascença, é o modelo textual do referido Bem como, implicitamente, a Adolfo Coelho – que é aquele com quem Pessoa se envolverá directamente –, e cuja opinião, embora mais complexa e fundamentada, não difere essencialmente da de Matos. Na sua resposta, O Sr. Dr. Adolfo Coelho diz que não temos direito a saudar a aurora de um verdadeiro renascimento literário, Inquérito Literário, pp. 75-86, reputa como megalomania o messianismo pessoano e desfaz a poética saudosista em “banalidades”. É a necessidade de responder a Coelho que impele Pessoa a desenvolver as suas ideias, logo na réplica Uma réplica ao Sr. Dr. Adolfo Coelho, Inquérito Literário, pp. 138-150. 24 Com efeito, Cortesão dirá no mesmo artigo: “Averiguado está que só os poderosos impulsos afectivos podem neles acordar as fortes volições” (CORTESÃO, Jaime, op. cit., p. 21). 25 Idem, ibidem, p.21. 23

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manifesto de Cortesão, “Da «Renascença Portuguesa» e seus intuitos”, bem como da série de artigos publicados por Fernando Pessoa n’A Águia, em 1912 (a sua estreia nas letras), mais tarde reunidos por Álvaro Ribeiro, em 1944, com o título geral A Nova Poesia Portuguesa. Os textos dos dois jovens autores seguem o opúsculo pascoalino, sobretudo os do segundo, consistindo estes últimos artigos numa releitura das teses de Pascoaes sob um estruturado raciocínio dedutivo que pretende suportar as certezas intuitivas acerca do futuro da “Raça” bebidas em Pascoaes26. O poeta convoca uma rede de analogias com as histórias literárias inglesa e francesa para justificar o que nos outros dois poetas dispensa, em sua evidência, qualquer justificação: a força da presente renascença poética em Portugal. Importa notar que a produção dos três articulistas é animada por um pensamento analógico-alegórico, segundo Fernando Guimarães central na poética saudosista27, também presente na produção ensaística dos autores renascentes. Quer Cortesão, quer Pessoa desenvolvem, à sua maneira, analogias básicas lançadas por Pascoaes, sendo a primeira das quais a de que a moderna poesia portuguesa existiria em analogia com o vindouro ressurgimento nacional, antecedendo-o idealisticamente, tal como o sonho

“Tudo isso, que a fé e a intuição dos místicos deu a Teixeira de Pascoais, vai o nosso raciocínio matematicamente confirmar”. PESSOA, Fernando. A Nova poesia portuguesa sociologicamente considerada. In: ______. A Nova Poesia Portuguesa. 2.ª ed. Lisboa: Inquérito, 1960, p. 31. 27 GUIMARÃES, Fernando. Poética do Saudosismo. Lisboa: Editorial Presença, 1988. Em relação ao pensamento analógico dos autores renascentes, é ideia aceite – e muito presente em Pessoa – que a literatura é não apenas um efeito directo da situação histórico-social, o que é desvalorizado (“Saber pela literatura as ideias de uma época só pode ter interesse para a posteridade, que não tem outro meio de a tornar presente ao seu raciocínio”. Idem, ibidem, p. 21), mas é sobretudo o seu valor que existe em analogia com o próprio valor da civilização por ela veiculada, podendo por isso idealisticamente antecedê-la: “O que nos ocupa é saber se a literatura nos poderá (…) ser ponteiro para indicar a que horas da civilização estamos, ou, para falar com clareza, para nos informar do estado de vitalidade e exuberância de vida em que se encontra uma nação”. Idem, ibidem, p. 21. Tanto Cortesão, quanto Pascoaes, é na literatura que verão surgir antes de mais a primeira florescência de uma nova vida social, assumindo que aquela tem a virtualidade de poder captar em primeiro lugar o espírito do tempo. Mas esta ideia não está presente apenas nos saudosistas: também o dramaturgo Augusto de Castro dirá: “Só os países que estão de posse do seu equilíbrio moral podem possuir uma literatura, que é a mais alta expressão desse equilíbrio”. CASTRO, Augusto de. O Sr. Augusto de Castro contesta que nós tenhamos, presentemente, uma literatura, Inquérito Literário, p. 35. 26

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antecede a acção28, e em virtude disso definindo-o em suas características básicas. A ser este ressurgimento definitivo o “meio-dia espiritual da Raça”, o momento em que escrevem seria o de uma manhã ou Primavera, que, como Cortesão sugere, equivale por sua vez aos alvores da nacionalidade. Por outro lado, a tão esperada regeneração corresponderia ao momento histórico dos Descobrimentos, manifestando-se agora na sua plenitude enquanto dimensão espiritual, ideia que sustenta a noção pascoalina de “Índia ideal” ou pessoana de “Índia nova”29. Vejamos os momentos fulcrais em que estas correspondências são apresentadas nos textos: Tratemos hoje da nossa alma na sua existência de flor e de esperança, porque ela está em plena primavera, a sua haste firmou-se, as pétalas abriram embriagadas de perfumes. Quero eu dizer que a sua revelação é um facto –, um facto realizado pelos novos poetas, prosadores e artistas30. Se existe, como é fora de dúvidas, um renascimento do original espírito português, pelo menos na nossa poesia, lícito é defini-lo por essa corrente poética dominante, e a ser exacta, essa definição deverá coincidir, semelhar-se ou reproduzir em novas formas a que se dê esse mesmo

Expressões muito semelhantes a esta ecoam na produção ensaística doutrinária destes três autores, neste período. Um verso famosíssimo da Mensagem pessoana parece também ecoar esta ideia. 29 Na reflexão filosófico-doutrinária de Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e Leonardo Coimbra – com ecos na produção poética neo-romântica de Mário Beirão, Augusto Casimiro e António Patrício –, encontramos a conceptualização e a temática mitopoética de “uma outra Índia” (PASCOAES, Teixeira de. O Génio Português na sua Expressão Filosófica, Poética e Religiosa. In: ______. A Saudade e o Saudosismo. Lisboa: Assírio & Alvim, 1988, p. 74), ou de uma pessoana “Índia nova”. A ideia nuclear é a de que os verdadeiros Descobrimentos dos portugueses são não no passado mas sim no futuro, e de outra natureza, uma natureza espiritual, sendo que o historicamente manifestado é apenas o seu símbolo, o seu “carnal ante-arremedo”. PESSOA, Fernando, A Nova poesia portuguesa sociologicamente considerada, p. 106. As Descobertas foram um primeiro passo, uma preparação para algo maior e não um fim histórico em si: estaria ainda por descobrir uma “outra Índia” (Pascoaes), um território ucrónico e utópico – ao mesmo tempo passível de ser pan-geograficamente manifestado pelo corpo da língua portuguesa, proposta já dos textos pessoanos mais tardios. As “Índias Espirituais” implicam então uma extrema compensação mítica pelo recalcamento nacional em relação aos Descobrimentos, invertendo os termos em que a decadência é tradicionalmente pensável na cultura portuguesa (sobretudo a partir da Geração de 70), afirmando a História como símbolo e o futuro mítico como realidade. 30 PASCOAES, Teixeira de, O Génio Português na sua Expressão Filosófica, Poética e Religiosa, p. 70. 28

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espírito apenas nascido, isto é, na sua primeira afirmação original dos tempos áureos da nossa história31.

Como sugere Cortesão, a poesia moderna está em posição de dar informações acerca das características desse Renascimento, porque o precede idealmente, o configura e, num certo sentido, já o é. Os contornos fundamentais deste são tirados por ilação das características centrais de inconfundível “religiosismo” e “misticismo”32 da nova poesia (Pessoa fala em “religiosidade” e “metafisismo”33), já presentes e decorrentes da longa história da “Raça”, e aguardando superior manifestação nessa nova era da nação e do mundo. Para justificar esta perspectiva, recupera Oliveira Martins – também citado e admirado por Pascoaes, sobretudo na sua viragem nacionalista dos últimos anos –, que dissertou acerca de um português misticismo naturalista, no qual Cortesão reconhece o panteísmo espiritualista de Leonardo Coimbra e a sua síntese na Saudade de Pascoaes e no Saudosismo dos novos poetas. O autor de Humanismo Universalista coloca agora esta pergunta retórica: “mas que analogia poderá ter esse misticismo, que incendiava a mente dos heróis com o espírito religioso da poesia moderna?”34. É a psíquica dinâmica de fusão do perfil, simultaneamente religioso e activo-individualista dos heróis/místicos nacionais, que depois se exprime em outra dinâmica de fusão que reside no fulcro da poesia saudosa, simultaneamente panteísta e transcendentalista. E aqui, mais uma vez, tem como modelo o poeta de Marános, quando este aponta momentos centrais da História portuguesa como expressões rácicas e históricas da entidade Saudade: a Fundação, Aljubarrota, os Descobrimentos, a Restauração e a Implantação da República35; recuperação centralizadora da História que não está propriamente presente em Pessoa, que em A Nova Poesia Portuguesa explicitamente põe em causa modelos histórico-culturais nacionais como Camões36, e que não desenvolve propriamente uma linha 33 34 35

CORTESÃO, Jaime, Da “Renascença Portuguesa” e seus intuitos, p. 23. Idem, ibidem, p. 24. PESSOA, Fernando, A Nova poesia portuguesa sociologicamente considerada, p. 81. CORTESÃO, Jaime, Da “Renascença Portuguesa” e seus intuitos, p. 24. Cortesão cita directamente esta passagem de “O Espírito Lusitano ou o Saudosismo”: “Foi a Saudade transfigurada em acção e vitória no corpo de Afonso Henriques, que riscou na Ibéria as fronteiras de Portugal. Foi a Saudade o Zéfiro do remoto que enfunou as velas das nossas naus descobridoras. Foi ela que venceu em Aljubarrota (…). Foi ela que despedaçou as nossas grilhetas em 1640 (…). Foi ela ainda que animou a alma popular no dia 5 de Outubro…”. Idem, ibidem, p. 23. 36 Camões não está posto em causa apenas pelo supra-Camões, mas é a própria escolha de Camões para alegoria do messiânico poeta que é várias vezes tida como imperfeita: “Supra-Camões? A frase é humilde e acanhada. A analogia impõe mais. Diga-se «de 31

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de interpretação da História portuguesa em fases distintas como a que faz Pascoaes na produção doutrinária deste período, depois sistematizada em Os Poetas Lusíadas, de 1919. O uso em Pessoa da exemplaridade de elementos da cultura portuguesa centraliza-se no “supra-Camões”, mas apenas em sentido futurante. É certo que este sentido é também marcado em Pascoaes e Cortesão, ao prolongarem a leitura do passado na do futuro: a História é feita símbolo futurante de uma regeneração maior, revertendo o sentimento de decadência no de esperança. E aqui entra a conclusão mais ousada dos três: de entre as manifestações do espírito moderno, é a poesia portuguesa saudosista o elemento que melhor pode sinalizar a conversão da Humanidade ao Espírito, inaugurando uma nova era religiosa no mundo, na qual Portugal terá de novo papel pioneiro e destacado – afinal a verdadeira dimensão desse ressurgimento nacional, enquanto ressurgimento universal. Esta concepção espiritualista, ou mesmo salvífica, da arte é apoiada, em Cortesão e em Pascoaes, na nova filosofia idealista francesa e em algum esoterismo afim da Teosofia. Com efeito, Cortesão, sempre nos passos de Pascoaes, invoca o autor esotérico Edouard Schuré, que havia defendido, no mesmo ano, a progressiva salvação pela arte espiritualizada em seu livro L’évolution divine du Sphinx au Christ (1912)37: Que essa poesia seja religiosa não é de admirar para aqueles que souberem que hoje é a Arte o equivalente das religiões. Assim a definiram grandes filósofos e, a acreditar o que diz o grande Schuré, é a poesia portuguesa que realiza a síntese a que aspira o religiosismo moderno38.

Segundo a citação que Cortesão faz de Schuré, seria necessário unir através da “Arte iniciadora e salvadora” as duas grandes correntes da História da Humanidade, a corrente de Cristo (a fé, o Cristianismo, o eterno) e a de Lúcifer (a Ciência, o Paganismo e o presente), no que o autor francês estaria visando, sem o saber, a moderna poesia portuguesa, sendo esta fusão uma descrição exacta da sua essência. Já Pascoaes, para quem “arte e religião [se] correspondem”39, chega, citando o mesmo parágrafo, às mesmas conclusões, que por sua vez lhe permitem alçar-se à sua derradeira

um Shakespeare»”. PESSOA, Fernando, A Nova poesia portuguesa sociologicamente considerada, p. 57. 37 Cf. tradução para o português em A Evolução Divina da Esfinge ao Cristo. São Paulo: Ibrasa, 1982. 38 CORTESÃO, Jaime, Da “Renascença Portuguesa” e seus intuitos, p. 25. 39 PASCOAES, Teixeira de, O Génio Português na sua Expressão Filosófica, Poética e Religiosa, p. 88.

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e mais forte conclusão: o Saudosismo enquanto “Credo religioso”, salvador não só de Portugal mas da Humanidade: E como a futura síntese religiosa de que fala o grande escritor francês se encontra já criada emotivamente pelo nosso espírito, a ele deve competir (por mais extraordinária que tal cousa nos pareça) a sua implantação no mundo. [¶] A revelação da Saudade, feita pelos nossos Poetas será, porventura, a precursora luzerna matutina do novo sol espiritual que a Humanidade espera? Tão grande é este sonho, que não me atrevo a acreditá-lo, em voz alta40.

Notem-se como são próximas as conclusões em Pessoa. Procurando ser o fecho lógico do seu método argumentativo, segue contudo neste ponto de uma forma mais explícita a linguagem e o espírito de Pascoaes: (…) se se constatar que a Alma Portuguesa está criando, através da sua actual Poesia, um novo conceito emocional – e portanto colectivo e nacional – do Universo e da Vida, e que esse conceito é aquele que na linha evolutiva da alma europeia representa um novo estádio criador, ter-se-á estabelecido uma analogia irrefutável entre o actual período literário e os que, nos períodos máximos das nações maximamente criadoras de civilização, precedem um grande período de vida nacional socialmente criadora, e, de resto, já são esse grande período na sua expressão poética, isto é, na sua mais alta e permanente expressão. Por outras palavras: se aquilo se verificar, terá já começado a dilatação da alma europeia que representará uma Nova Renascença, ainda que essa dilatação exista, por enquanto, apenas na alma do país donde essa Nova Renascença raiará para o que na Europa estiver acordado para a receber41.

Perante trechos tão significativos, há que notar estarmos em face de um espiritualismo lusocêntrico que procura tornar as suas fontes em seus ecos, e que terá destinos diferentes em Pascoaes e em Cortesão: se no primeiro autor, com a sua retirada da campanha de intervenção sócio-cultural, estas ideias se interiorizam, dando lugar a uma exploração da Saudade noutros sentidos, em Cortesão é sobretudo a experiência da participação na I Guerra Mundial que abre novos horizontes ao seu pensamento e – ainda que sem grandes efeitos na sua produção literária – uma franca relativização do ideário exposto nos artigos até aqui analisados, que em breve confirmaremos com um texto de 1920. Mas antes de os caminhos dos autores se separarem, existe uma clara concordância, nesta fase do seu percurso – e sobretudo para Idem, ibidem, p. 92. PESSOA, Fernando, A Nova poesia portuguesa sociologicamente considerada, pp. 84-85.

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Pascoaes e Cortesão –, em torno da ideia de que aquele tremendo objectivo final não será, porém, possível de se realizar sem haver a reintegração da Pátria em si mesma e o parto de uma nova consciência social e patriótica, o fito em si da própria sociedade que criaram, a Renascença Portuguesa.

Cortesão e o “supra-Camões” pessoano Como vimos, as relações entre História, Sociedade e Poesia – através do estabelecimento de analogias entre os seus planos passados, presentes e futuros – são o aspecto mais insistente deste tipo de pensamento. Vimos também como o programa social e político é feito depender do programa poético, a partir da ampliação de significado extra-literário de uma corrente poética em voz de uma inclinação espiritual colectiva. Esta ideia é sustentada por uma visão da poesia como estando numa posição de anterioridade ideal em relação aos demais fenómenos, podendo assim os poetas serem considerados corifeus de novas realidades sociais ou mesmo civilizacionais. Todavia, será que a dependência do histórico e do social em relação ao poético tem o mesmo valor nos três autores? Com efeito, as posições de Cortesão e de Pessoa parecem seguir caminhos diferentes, de acordo com o valor específico que cada um deles confere à problemática da terapia social da nação, por realizar, na sua relação com o surto poético saudosista, já consumado. No que toca aos artigos pessoanos, há que entender que as relações entre Poesia, História e Sociedade são centralizadas pelo par “supraCamões/supra-Portugal”42. A entrada em cena da figura do poeta superador, ausente nos outros dois escritores, complexifica essas mesmas relações, tendo em conta o que até aqui vimos. Uma leitura consistente do que subjaz a esta figura não cabe no âmbito do presente texto, que procura não perder de vista Jaime Cortesão; podemos, contudo, analisar o pensamento que em Pessoa formulou o supra-Camões pelo que nele difere da posição zuzartiana, continuando a comentar o mesmo artigo de Cortesão e um outro texto, já de 1920. Notemos antes de mais que, muito ao contrário do historiador, Pessoa não insiste na necessidade de trabalhar colectivamente com vista a um novo programa social e político, por considerá-lo um efeito fatal do aparecimento da regeneração poética (já demonstrada à saciedade), dispensando uma actividade precursora. A postura é aristocratizante, veiculando um 42

É no seio da refrega com a intelligentsia portuguesa da época, manifesta no “Inquérito Literário”, que Pessoa é chamado a defender o supra-Camões, nomeadamente na polémica com Adolfo Coelho, que é quem mais longamente opinará acerca desta imagem, havendo ainda uma leitura relevante da parte de Hernâni Cidade.

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republicanismo moralmente superior que se não pode rever no regime coevo, senão na vindoura República cromwelliana que anuncia43, chegando mesmo a apelar à inacção e à espera esperançosa, já que depostas foram as suas esperanças num supra-Cromwell44, Princeps do supra-Portugal, duplo político e efeito fatal do supra-Camões. O ideário político do poeta afastase, então, de forma patente do da Renascença. Ao contrário de Pessoa, e na intenção de cumprir as linhas de força do programa de intervenção renascente, Cortesão insiste na necessidade de agir colectivamente para a construção de uma nova realidade social, que – ainda que nunca perca de vista a sua fundamentação metafísica na actividade poético-espiritual – existe em paralelo com esta última, mais do que um seu mero efeito. Como vimos, Cortesão não duvida que é na poesia que se realiza a “síntese a que aspira o religiosismo moderno”, mas duvida que sejam só poetas a fazê-lo: Pertence esse esforço de renascimento quase exclusivamente a Poetas? Não é bem certo, ainda que eles predominem na Renascença Portuguesa. [¶] Mas que fazer? Esperaremos que venham auxiliar-nos livremente os demais Artistas, os sábios e os obreiros de toda a ordem; e até lá procuraremos cumprir o nosso dever segundo as nossas forças e obedecendo à lei das nossas individualidades45.

Porventura aqui se opta pelo sentido etimológico do termo “poeta”, o de obreiro de “realidades fecundas”, apontando assim para outros instrumentos terapêuticos – ou, recuperando a linguagem do texto anterior, “impulso(s) afectivo(s)” – para além da poesia, destinados a activar as “fortes volições”. Jaime Cortesão não se demite de considerar o papel do homem como obreiro de novos mundos, num espírito afim ao do Criacionismo leonardino, também recuperador deste sentido simbólico e operativo da poesia. Em Fernando Pessoa, é um messianismo propriamente literário que mais parece avultar, corporizado na figura que supera o poeta nacional. A haver aqui analogia directa com os Descobrimentos, o seu segundo termo seria este “supra-Portugal” enquanto nova realidade social. A nova sociedade será um duplo analógico da nova poesia portuguesa: “Vimos como essa corrente se traduz por um metafisismo claramente definível como transcendentalismo panteísta: resta saber o que dá posto em tendência social”. PESSOA, Fernando, A Nova poesia portuguesa sociologicamente considerada, p. 104. E, tal como em Pascoaes, essa nova sociedade será também uma nova religião. Sobre esta questão, ver o ponto VIII de “A Nova Poesia Portuguesa no seu aspecto psicológico”. Idem, ibidem, pp. 103-106. 44 Trata-se do príncipe-sacerdote de um regime simultaneamente político e religioso, simultaneamente democrático e aristocrático, mas essencialmente anti-socialista. 45 CORTESÃO, Jaime, Da “Renascença Portuguesa” e seus intuitos, p. 26. 43

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Um tal messianismo não encontra paralelo, pelo menos não com as implicações que assume em Pessoa, nos demais plumitivos da Renascença. Com efeito, em Pascoaes e em Cortesão, a esperança não é a da revelação de um novo e transfigurador poeta, mas tão-somente a de que a Pátria reconheça a sua verdadeira alma nos versos dos novos, aceitando os seus compositores como os doutrinadores de que andava necessitada. Desta maneira, se nos mesmos autores todos os gestos analógicos entre o Portugal das Descobertas e o áureo Portugal vindouro não põem em causa as necessidades mais imediatas de reforma social (antes as exigem), em Pessoa o supra-Camões serve de justificação para uma desejável alienação do estado de coisas na incipiente República, uma vez que a decadência social é aqui condição sine qua non para a grandeza poética. Pessoa usa uma insistente série de analogias, provando que os cumes literários coincidem com fases de depressão social, só então principiando as apoteoses civilizacionais; ou seja, é apenas na decadência que a literatura faz brotar o seu veio mais luminoso46, e é só a partir da grandeza poética consumada no supra-Camões que se inflecte em sentido ascendente a queda social. Trata-se pois de um extremar de ideias com que já nos confrontámos: anterioridade da poesia em relação ao mundo e unção dos poetas como condutores e criadores de civilização. O messianismo junqueiriano, que alimentou a ideia de República dos renascentes, assume decisivamente em Pessoa a feição de um messianismo literário, ao mesmo tempo que vê aprofundada, na figura do supra-Camões, a chamada profética para a refundação da Pátria. O supra-Camões é também o poeta refundador, enquanto vate cimeiro da República, introdutor de uma nova civilização, o supra-Portugal47. Ora, é certo que Jaime Cortesão parece divergir deste Messias literário pessoano. Sem dúvida valorizando a precedência espiritual da Poesia, em vista à História e à Sociedade, todavia não transfere claramente para a Poesia a plenificação nacional; antes a entende na sua função de uma das terapêuticas para o cultivo da alma pátria como força de coesão e revitalização. A História “Pode objectar-se (…) que o actual momento político não parece de ordem a gerar génios poéticos supremos, de reles e mesquinho que é. Mas é precisamente por isso que mais concluível se nos afigura o próximo aparecer de um supra-Camões na nossa terra. (…) Porque a corrente literária precede sempre a corrente social nas épocas sublimes de uma nação. Que admira que não vejamos sinal de renascença na vida politica, se a analogia nos manda que o vejamos apenas uma, duas ou três gerações depois do auge da corrente literária? [itálicos no original]”. PESSOA, Fernando, A Nova poesia portuguesa sociologicamente considerada, pp. 32-33. 47 Há que ficar claro que esta dimensão extra-literária não é apagada pela literária, antes funcionando no seio do par supra-Camões/supra-Portugal, como já notado. 46

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não se submete em Cortesão à poesia, como em Pessoa. Ora, esta submissão é precisamente o cerne da ideia que está por detrás do supra-Camões, enquanto cume do processo de transferência analógica dos valores da história da civilização para a história da literatura, desta forma superando poeticamente a noção de decadência. É de notar que, quer as visões mais sensíveis ao mundo político seu contemporâneo, quer a visão mais literária de Pessoa, implicam ambas uma releitura da noção de decadência. A transferência da “verdadeira” plenificação da História para um futuro que se configura pelas histórias mítica e literária, é uma tentativa de superar a decadência enquanto topos cultural, forte inversão que os pensadores da Renascença, através de seu espiritualismo messiânico, operarão em relação aos termos pelos quais a noção havia sido até então pensável na moderna Cultura Portuguesa, passando assim a ser entendida não exactamente enquanto decadência, mas sim enquanto condição de possibilidade de um ressurgimento: antecâmara da glória, já que o verdadeiro auge está ainda por vir. Não conhecemos, relativamente a toda esta problemática, uma resposta directa de Cortesão a Pessoa. Podemos, contudo, surpreender um comentário indirecto já num momento de efectivo afastamento da sociedade da qual fora um dos principais, senão o principal mentor. Surge em 1920 um segundo inquérito literário, “Literatura de Ontem, de Hoje e de Amanhã”, promovido pelo publicista monárquico Álvaro Maia (1887-1940) no Diário de Notícias. Reflectindo a conjuntura histórico-social de uma Europa sobrevivente à Grande Guerra e atemorizada pela revolução bolchevique, são as questões patriótica e regionalista as que assumem maior relevância. O literário é ainda fortemente associado à noção de renovação da pátria, com claras referências ao “Inquérito Literário” de 1912, sendo que agora a escola visada directamente como meio para essa renovação já não é o Saudosismo, mas o Neo-Romantismo de pendor regionalista, representado por autores intimamente ligados ao Integralismo Lusitano48. Um dos ecos do primeiro inquérito é a revisitação do supra-Camões por Jaime Cortesão e António Corrêa de Oliveira. Antes de passarmos ao primeiro dos dois, vejamos o que diz o poeta que, próximo do Saudosismo e por ele celebrado, segue em convergência ideológica com o Integralismo. Cuidava o autor estarmos “em vésperas de uma renovação literária. O movimento deu-se. A Nebulosa formou-se e vai rolando… Um grande Artista, um formidável Poeta, virá, um dia, a separar a luz das sombras; – e então, há-de surgir, perfeita, a Criação dum novo mundo

Para os pormenores relativos a este inquérito, cf. MOTA, Nuno, op. cit.

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moral e espiritual”49. Corrêa de Oliveira acusa exemplos e linguagem de Pessoa, e sobretudo de Pascoaes, o que mostra uma apropriação de tópicos renascentes pelo ideário integralista com algum prejuízo das suas implicações poético-metafísicas, uma vez que este supra-Camões não é mais do que o poeta que incorporará definitivamente na arte os valores do Integralismo, privilegiando o cenário regionalista e a afirmação poética de valores ultramontanos. Já não sob a forma da réplica, mas sim do depoimento solicitado, temos então um significativo artigo de Cortesão que parece ecoar a questão do supra-Camões. Ao contrário de Corrêa de Oliveira, o texto do autor de Divina Voluptuosidade exibe outro tipo de postura sobre esta noção. Antes de mais, reafirma a existência de grandes valores artísticos em Portugal, asseverando que estes só não são notados por certos críticos (no que não deixa de recordar a anterior polémica): “Só a ignorância, a impotência e o nosso vezo maledicente desmentem esta verdade na boca de certos críticos”50. Mas se o distanciamento do projecto da Renascença já se havia dado no momento em que escreve o artigo, a linguagem está ainda muito próxima da renascentista. No entanto, é nítido como os horizontes mais vastos, dados a Cortesão pela experiência da guerra, implicaram uma inflexão do seu lusocentrismo. Assim, interrogado pelo mentor do inquérito se nesse preciso momento se estaria em face de uma renascença literária, é significativa a resposta: Todos estamos no começo de uma nova era da humanidade. A grande guerra (…) trouxe novas soluções a todos os grandes problemas humanos (…) aqui, como em toda a parte, a arte, a política, a religião estão em crise (…) todas as velhas formas artísticas são insuficientes para definir a realidade nova que surge51.

O olhar é claramente outro, já não apenas centrado em Portugal. Todavia, ao dissertar acerca da nova arte portuguesa, reencontramos imagens provenientes dos artigos já comentados de Cortesão: A nossa arte surge dentre as névoas do Oriente ou em plena fanfarra matinal (…) ergue as mãos, ao alto, radiando nova luz, a esfera armilar, símbolo das mais ousadas aspirações nacionais. (…) estamos no início de uma nova era camoniana, dadas as similitudes de história e pensamento. Não lhe anuncio o Desejado, entenda-se; tento apenas definir as novas correntes da nossa Arte. OLIVEIRA, António Corrêa de. O depoimento do poeta António Correia d’Oliveira. Diário de Notícias, 28 de Abril de 1920. 50 Cf. o anexo a este texto. 51 Cf. o anexo a este texto. 49

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Ainda bem presente, o pensamento analógico convoca a imagem da esfera armilar “radiando nova luz”, à primeira vista aproximável à metáfora da “nova Índia”. O seu sentido, porventura, já não parece ser o das “Novas Descobertas”, antes apontando para a abertura de novos horizontes universalistas (depois da Guerra) à literatura portuguesa. Note-se outrossim a expressão “nova era camoniana”, que podemos ler como resposta ao “Supra-Camões” pessoano, provavelmente visado na expressão “não lhe anuncio o Desejado”. Aqui as analogias parecem ser entre a abertura civilizacional propiciada pelos Descobrimentos portugueses e a nova era pós I Guerra Mundial, que veio pôr em causa as nacionalidades europeias. A nova veia universalista da literatura portuguesa já não se pode exprimir apenas pelo amor directo do torrão natal, função do regionalismo, mas em outro tipo de obras: “enganam[-se] os que vêem na nossa arte tendências estreitamente nacionalistas. A prova do que afirmo está por exemplo nalguns livros que se escreveram sobre a grande guerra”. E aqui o autor fala também de si próprio enquanto autor de dois volumes de Memórias da Grande Guerra, publicadas no ano anterior. Em conclusão, ao contrário do idealismo do jovem Pessoa que vê a História na dependência da literatura, no Cortesão de 1920, a História é o motor que abre novas perspectivas às isoladas literaturas nacionais; não mais podendo centrar apenas em si os seus mitos, neles se entrevêem agora potencialidades de abertura para a futura História universal, pelo que neles se contém de universal a priori52. Assim, Cortesão continua neste texto o aproveitamento de imagens-chave da cultura portuguesa, todavia já não em função de um patriotismo que tem Portugal como seu princípio e fim. Esta “nova era camoniana” seria, assim, não já a era do poeta que plasmasse a estreiteza de uma realidade nacional, reconhecendo-se a si mesma num eterno bucolismo, como pretendia Corrêa de Oliveira – o que constitui o aproveitamento da noção pessoana no sentido inteiramente contrário ao de Cortesão –, mas a que principia com uma nova e criadora fase da arte a par e passo com as demais nações europeias. Sobreviventes de uma grande catástrofe, é necessário que os seus poetas deixem inscrito em verso o perfil de cada uma delas, tal como Camões o fez para o Portugal que se seguiu a Alcácer-Quibir.

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Para uma revisão contemporânea da simbologia da esfera armilar, com implicações afins, cf. BORGES, Paulo. Uma Visão Armilar do Mundo. Lisboa: Verbo, 2010.

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ANEXO53 CORTESÃO, Jaime. Literatura de ontem, de hoje e de amanhã – Depoimento do Sr. Dr. Jaime Cortesão. Diário de Notícias. Lisboa, 24 de Junho de 1920. [Não é para aqui, evidentemente, o fazer a crítica desse movimento há anos iniciado no Porto sob o nome de saudosismo, nem isso é tampouco intento nosso. Justo será, porém, que se lhe reconheça, e desde já, os propósitos generosos que credor o tornaram da estima e respeito de quantos pela revivescência do espírito lusitano se interessam. Desse grupo de homens, cheios de boa vontade e de talento, fez parte o Sr. Dr. Jaime Cortesão que, a dentro dele, foi um dos mais inteligentes cooperadores. (…)] …Sr. Desculpe-me a demora em aceder ao seu convite. E consinta que eu lha explique: o seu inquérito obriga-nos a qualquer coisa como escalar o Sinai e de lá mostrar todas as tábuas da nova lei. Depois, nem a todas as horas sentimos a inspiração deífica do vaticínio. Enfim, o exemplo alheio me deu ousio. Aceito, pois, das suas mãos a trípode que tão generosamente me oferece. Deixe-me apenas dar estas duas voltas para me acostumar ao manto novo de profeta e panejá-lo de seguida com largueza e aí vai agora. A minha resposta permite que eu ordene o meu questionário por diversa maneira. – Se entendo que se esteja em face ou, pelo menos, em véspera de um período de renovação literária? Se nos últimos meses o meu espírito sofreu qualquer transformação?54 Creio que estamos todos no começo de uma era nova da humanidade. A Grande Guerra, com todas as suas causas e precedentes, trouxe novas soluções a todos os grandes problemas humanos. Não vale a pena esquecermo-nos de que saímos há dias do maior acontecimento da História. Aqui, como em toda a parte, a arte, a política e a religião estão em crise. A humanidade entrou num inferno de sofrimento, isto é, deu mais um passo para a verdade. Por isso todas as velhas fórmulas políticas ou artísticas são insuficientes para definir a realidade nova que surge. A luz sombria que ainda hoje envolve o mundo funde na mesma penumbra caótica o ocaso dos ídolos mortos e o crepúsculo levantino dos novos Deuses. Jamais houve na terra vida tão bela para viver-se. Nem a arte teve nunca responsabilidades tão grandes perante a vida. A “Terra de Ninguém” que se alargava de trincheira 53

A ortografia foi actualizada. Trata-se de uma referência a duas questões do Inquérito.

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a trincheira continua aberta a todos os heroísmos, na esfera da vida moral e artística. Aos fortes e aos puros cabe o combate generoso e temível. Sim, meu amigo, eu e a vida, todos nos transformámos. *** Pelo que diz respeito às tendências actuais da literatura e ao regionalismo, eu lhe digo: em Portugal, como em muitos outros países, deu-se, há anos para cá, um período de incubação nacionalista. O esforço que os povos têm realizado para tomar uma consciência melhor dos seus destinos, ou se reflectiu ou começou na arte. O regionalismo é, além disso, um aspecto da sede de verdade que devora a alma contemporânea. Em Arte com A grande não há esnobismo55. E o nosso regionalismo tem sido obra de arte com maiúscula. – Se vejo valores positivos, capazes de levarem a cabo a referida renovação literária? Creio até que raras vezes em Portugal houve na filosofia, na poesia, no romance, no teatro e nas outras artes mais, um conjunto de valores tão altos e prometedores. Só a ignorância, a impotência e o nosso vezo maledicente desmentem esta verdade na boca de certos críticos. Claro, quando falo de grandes valores, não me refiro aos grooms literários da turba doirada, a quem servem o chá das suas postiças elegâncias. *** E agora que lhes falei das minhas esperanças nas gerações que actualmente se afirmam ou começam a afirmar, dir-lhe-ei para terminar que se enganam os que vêem apenas na nossa arte tendências estreitamente nacionalistas. A prova do que afirmo está por exemplo nalguns dos livros que se escreveram sobre a Grande Guerra. A nossa arte surge dentre as névoas do Oriente ou em plena fanfarra matinal. Ataviada, é certo, com todas as louçainhas portuguesas, mas por isso mesmo ergue nas mãos, ao alto, radiando nova luz, a esfera armilar, símbolo das mais ousadas aspirações nacionais. É o próprio apego amoroso à terra natal que a reintegra no seu velho sentido universalista. Estamos no início de uma era neo-camoniana, dadas as similitudes da história e do pensamento. Não lhe anuncio o Desejado, entenda-se; tento apenas definir as novas correntes da nossa Arte. Quanto às minhas obras para o novo ano literário, tenho para sair um livro de impressões duma viagem a Itália e preparo um poema e um drama em prosa. Eis tudo quanto devo dizer, pois não quero roubar espaço ao seu jornal nem espanejar vaidades próprias ou alheias. Camarada amigo e obrigado, Jaime Cortesão Cf. nota anterior.

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Jaime Cortesão contista MIGUEL REAL Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Universidade de Lisboa

I 1.ª fase: de um Nacionalismo Romântico para um Nacionalismo Crítico Em …Daquém e Dalém Morte, compilação de seis contos e um longo poema final, que de certo modo dá título ao livro, publicado em 1913 pela editora Renascença Portuguesa1, Jaime Cortesão alia com mestria o nacionalismo saudosista de Teixeira de Pascoaes com a escola naturalista do romance. Deste modo, os seus contos desenvolvem-se em torno de temas vinculados à patologia social (o fantástico, a morte, o exótico, o horror, o tenebroso, a escuridão da noite, os penhascos sombrios…), envolvidos, porém, por um manto lírico-romântico nacionalista, de expressão saudosista. Centrados na Idade Média, alguns dos contos de …Daquém e Dalém Morte exprimiriam, assim, o fundo histórico de Portugal, pátria nascida entre a dor do sangue (a guerra) e a dor de alma (a saudade). Com efeito, os contos de Jaime Cortesão integram-se na fase da vida do autor anterior à sua integral dedicação à investigação histórica2 e possuem um cordão umbilical ideológico de natureza romântica tanto com a sua poesia inserta em A Morte da Águia. Poema Heróico, de 1910, Esta História é para os Anjos, 1912, Sinfonia da Tarde, 1912, e Glória Humilde (integrando este os dois últimos livros de poesia), quanto com a sua dramaturgia, O Infante de Sagres, 1916, e Egas Moniz, 19183, bem como, ainda, o conjunto das antologias por si compendiadas neste período da sua vida, Cancioneiro Popular e Cantigas do Povo para as Escolas, ambas de 19144. CORTESÃO, Jaime. …Daquém e Dalém Morte. Porto: Renascença Portuguesa, 1913. Cf. LOPES, Óscar. Jaime Cortesão (1884-1960). Lisboa: Biblioteca Nacional, 1985 (1.ª ed., 1962), pp. 9-10, e GARCIA, José Manuel. O Essencial sobre Jaime Cortesão. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987, p. 20. 3 Cf. ÁGUAS, Neves. Bibliografia de Jaime Cortesão. Contribuição para um Inventário Completo. Lisboa: Arcádia, 1962. 4 Cf. o enquadramento epistemológico, no interior do pensamento de Jaime Cortesão, destas duas antologias, bem como a antologia O Que o Povo Canta em Portugal (Rio de 1

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Com efeito, a diversificada criação cultural organizada em torno do eixo da Literatura (e não da História, como acontecerá a partir da sua nomeação, em 1919, para a direcção da Biblioteca Nacional, iniciando a segunda fase da sua obra), constitui um corpus único obediente a categorias tanto da ordem do texto (estilo, temas) quanto da ordem do social (o conteúdo semântico dos textos), de tal modo que quando Jaime Cortesão edita de novo um livro de poemas em 1940, Missa da Meia-Noite, já o faz, não com o seu nome, mas com o pseudónimo “António Fróis”. Neste aspecto, quanto à forma, torna-se evidente nos contos de Jaime Cortesão desta fase um dispositivo retórico-eloquente5, carregado de adjectivação qualificativa, próprio do romantismo, e, quanto ao conteúdo, um referencial semântico histórico-heróico que não pode deixar de se relacionar, primeiro, com a emergência da República, em 1910, e, segundo, com a sua participação empenhada tanto na refundação d’A Águia, com Teixeira de Pascoaes e Álvaro Pinto, quanto com a direcção do quinzenário A Vida Portuguesa, “órgão de imprensa [da ‘Renascença Portuguesa’] para cuja direcção Jaime Cortesão é escolhido”6. De facto, em 1912, no primeiro número de A Águia, Teixeira de Pascoaes escreve: “[A Renascença Portuguesa pretende] dar um sentido às energias intelectuais que a nossa raça possui; isto é, colocá-las em condições de se tornarem fecundas, de poderem realizar o ideal que, neste momento histórico, abrasa todas as almas sinceramente portuguesas: – Criar um novo Portugal, ou melhor, ressuscitar a Pátria Portuguesa, arrancá-la do túmulo onde a sepultaram alguns séculos de escuridão física e moral, em que os corpos se definharam e as almas amorteceram”7.

Os contos históricos de Jaime Cortesão não só se integram no espírito regenerador de Portugal, definido por Teixeira de Pascoaes para a “Renascença Portuguesa”, como são dele uma perfeita expressão8.



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Janeiro, 1942) em SILVA, José Manuel Azevedo e. O Sagrado e o Profano no Pensamento Etnográfico de Jaime Cortesão. Revista de História das Ideias. Separata. Coimbra, vol. 8, 1986. Cf. MOURÃO-FERREIRA, David. Da Obra Literária de Jaime Cortesão. Ocidente. Separata. Lisboa, vol. XVI, 1961, designa o estilo literário de Jaime Cortesão por “literatura enfática”. SARAIVA, Ricardo. Jaime Cortesão. Subsídios para a sua Biografia. Lisboa: Seara Nova, 1953, p. 19. Cf. A Águia. Porto, n.º 1, 2.ª série, 1912. Sobre a participação de Jaime Cortesão na primeira série d’A Águia e na criação da 2.ª série, cf. SANTOS, Alfredo Ribeiro dos. Jaime Cortesão – Um dos Grandes de Portugal.

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Simultaneamente que, a partir de 1919, se assiste a uma inflexão no campo referencial e temático dos seus estudos (do literário para o histórico), assiste-se igualmente a uma dupla transição para novos domínios epistemológicos. Em primeiro lugar, o espaço teórico heróico-nacionalista definido pela sua intervenção n’A Águia e n’A Vida Portuguesa é substituído, desde 1921, por uma intervenção crítico-racionalista na revista Seara Nova; em segundo lugar, o dispositivo estilístico retórico-eloquencial exaltatório da história da nação é substituído pelos protocolos académicos da investigação histórica, de que toda a sua obra posterior neste campo é testemunha. Com efeito, em 1923, como prova do abandono da retórica exaltatória da nação, substituída pela necessidade de uma investigação rigorosa, no “Prefácio” ao romance histórico Terra de Dor e de Glória, de Durval Pires de Lima, Jaime Cortesão escreve que “a história portuguesa está por escrever”9 – desígnio a que justamente o autor se dedicará a partir dos princípios da década de 1920. Neste sentido, a primeira fase da obra de Jaime Cortesão corresponde ao período romântico e optimista da I República, entre 1910 e 1914, e termina com a participação do autor nas trincheiras francesas da I Guerra Mundial, de que, em 1919, publicará o testemunho em Memórias da Grande Guerra. Assim, ao longo de todo este primeiro momento da sua obra, o vector literário que se evidencia como mais premente, prestando unidade ideológica a esta fase, reside justamente no nacionalismo romântico e entusiasmante do autor, próprio do momento de refundação da nação que fora a instauração da República, substituído, a partir do sidonismo (durante o qual, regressado de França, Jaime Cortesão é preso) e, sobretudo, a partir de 1919 e da revolta da “Monarquia do Norte”, encabeçada por Paiva Couceiro, e a ocupação, em Lisboa, da serra de Monsanto por forças monárquicas –, por um nacionalismo crítico e um republicanismo céptico, húmus gerador da mentalidade seareira10. O último texto literário desta primeira fase da obra de Jaime Cortesão, ainda animado pela exaltação das premissas nacionalistas, é de 1925, um

Porto: Fundação Engenheiro António de Almeida, 1993, pp. 43-73. CORTESÃO, Jaime. Prefácio. In: LIMA, Durval Pires de. Terra de Dor e de Glória. Lisboa: Sociedade Editorial Brandão & Cia, 1923, p. VII. 10 Sobre a intervenção de Jaime Cortesão na criação do ideário da Seara Nova, cf. TRAVESSA, Elisa. Jaime Cortesão. Política, História e Cidadania. Lisboa: Faculdade de Letras de Lisboa, 2002, pp. 126-177 (texto policopiado). 9

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conto para crianças e jovens, O Romance das Ilhas Encantadas11, porventura um dos mais belos contos juvenis escritos em Portugal no século XX. Síntese do imaginário literário português medieval e renascentista, a sua qualidade conceptual, imagética e estilística foi considerada tão singular que a Comissão Organizadora do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, em 1979, promoveu uma edição particular de vinte e cinco mil exemplares12, distribuídos gratuitamente, como ponto alto da comemoração do dia de Portugal nesse ano. Neste conto, porventura atendendo ao universo etário a que é destinado, o nacionalismo heróico subordina-se a um lirismo romântico muito pronunciado. Porém, a irrupção do modernismo, em 1915, com a publicação dos dois números de Orpheu, de Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, e a sua continuação em forma de segundo modernismo com a publicação da Presença, em 1927, de José Régio e João Gaspar Simões, revista de uma nova geração etária e literária, contribuíram decisivamente para o apagamento posterior da obra literária de Jaime Cortesão. Neste sentido, David Mourão Ferreira refere, como sintoma substancial desta rasura, o facto de o nome de Jaime Cortesão não ser referido na primeira edição da História da Literatura Portuguesa, de Óscar Lopes e António José Saraiva, publicada em 195513. Assim, David Mourão Ferreira explicita o apagamento da obra literária de Jaime Cortesão por três razões: 1. – ser anterior, ou coeva, mas de estilo literário anterior, ao aparecimento do modernismo; 2. – “a existência agitada do autor, com o seu corolário de exílios prolongados”14, que não teriam permitido a Jaime Cortesão a paz necessária para harmonizar a investigação histórica com a criação literária; 3. – “a importância da sua obra histórica”15, que teria abafado a sua restante obra de contista, poeta, dramaturgo e jornalista.

II Os contos de Jaime Cortesão Pertinente à exacerbação de um nacionalismo retórico, glorioso e salvífico, Etelvina Santos considera que os contos de Jaime Cortesão obedecem

CORTESÃO, Jaime. Contos para Crianças. Vida de Nuno Álvares Pereira, o Cavaleiro e o Trovador, Romance das Ilhas Encantadas. Obras Completas. Lisboa: Portugália Editora, 1965. 12 Idem. O Romance das Ilhas Encantadas. Lisboa: Arcádia, 1979. 13 Cf. MOURÃO FERREIRA, David, op. cit, pp. 15-16. 14 Ibidem, p. 15. 15 Ibidem. 11

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ao “enredo romântico de mistério e terror”, influenciados pelas narrativas de Hoffmann e Edgar Allan Poe16. De facto, para além da rasura imposta pela irrupção do modernismo como causa externa, que atingiu igualmente escritores como Alberto de Oliveira, António Correia de Oliveira, Guerra Junqueiro, Mário Beirão e o próprio Teixeira de Pascoaes, não se pode olvidar a existência de uma causa interna, como referimos, referente à mudança epistemológica sofrida na obra do autor e à desproporção quantitativa e qualitativa entre a obra literária e a obra de investigação histórica. Embora os seus contos e as suas peças de teatro tenham tido algum sucesso imediato17, os dispositivos retórico e nacionalista evidenciam-se como excessivamente datados para ganharem a intemporalidade literária. Óscar Lopes disso mesmo dá conta, designando a obra literária de Jaime Cortesão como “novi-romântica”, isto é, “pertinente ao cruzamento de um misto de tradições heróicas e amorosas da história nacional com o apelo a um homem forte, providencial, iluminado, louca ou genialmente (tanto faz) apaixonado por um ideal patriótico ou expansionista e também, se possível cumulativa ou alternativamente, por uma mulher”18. Trata-se do resgate do espírito romântico em plena decadência da monarquia posterior ao Ultimatum de 1890. Com efeito, a proposta de análise de Óscar Lopes integra-se na sua visão da história da literatura portuguesa de finais do século XIX, princípios do seguinte. É possível uma outra análise, que exprima, não um decadentismo manifesto, mas, ao contrário, o seu combate – como é o caso da obra do “Último Eça”, da obra de Antero de Quental a partir de meados da década de 1880, da obra de António Nobre, da obra de Guerra Junqueiro a partir d’Os Simples, da obra de Sampaio Bruno a partir dos finais do século XIX, da obra dramatúrgica de António Patrício e do expressionismo de Raul Brandão. Nasce, em todos estes autores, um novo espiritualismo adverso ao positivismo, ao realismo e ao naturalismo dominantes na literatura e na filosofia, tendo como ponto de partida a obra Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX (1890), de Antero de Quental. Assim, a obra de Jaime Cortesão, mais do que um novi-romantismo, como expressão do decadentismo finissecular, seria, antes, um combate contra ele, evidenciando, optimisticamente e SANTOS, Etelvina. Cortesão, Jaime Zuzarte. In: Dicionário de Literatura Portuguesa. Direcção de Álvaro Manuel Machado. Lisboa: Presença, 1996, p. 146. 17 Sobre o sucesso da obra dramatúrgica de Jaime Cortesão, representada no Teatro República (hoje Teatro de São Luiz), em Lisboa, em 1916 e 1919, cf. SARAIVA, Ricardo, op. cit., p. 27. 18 LOPES, Óscar, op. cit., p. 11. 16

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tão exaltatoriamente quanto o decadentismo, que era possível outra visão e outra atitude cívica face à história de Portugal. Com efeito, existe um espírito literário colectivo na passagem entre os dois séculos que torna manifesto, seja em Patrício seja em Guerra Junqueiro, na ficção, seja em Sampaio Bruno, na filosofia, seja, dez anos depois, em Raul Brandão, a existência de um novo espiritualismo de que A Águia é já parte integrante. Este novo espiritualismo acentua dois vectores que o positivismo, o realismo e o naturalismo tinham repudiado desde a realização das Conferências do Casino, em 1871: a necessidade da aceitação de uma transcendência como fundamento da arte e o retorno a um vitalismo ontológico presente na história de Portugal, expresso na Idade Média e no Renascimento. Os contos de Jaime Cortesão integram-se na busca deste novo espiritualismo, identificado em Antero de Quental com a omnipotência da ética do bem, em Guerra Junqueiro com um panteísmo místico, em Patrício com um vitalismo nietzschiano, em Teixeira de Pascoaes com o saudosismo, em Sampaio Bruno com a simultânea transcendência e imanência de Deus e em Jaime Cortesão com a necessidade de um nacionalismo redentor. Com efeito, é justamente este novo espiritualismo, já pregnante à mentalidade do século XX, que assumirá nas obras de Fernando Pessoa e Teixeira de Pascoaes o seu máximo apogeu, que constatamos ser presente na obra literária de Jaime Cortesão, tanto nos contos históricos quanto nos contos urbanos, principalmente o conto “O Psicoscópio”, conto em que António Cândido Franco detecta traços surrealizantes19. O espiritualismo presente nos contos de Jaime Cortesão é igualmente tocado pela moda literária do naturalismo ao longo da passagem entre os dois séculos. No caso de Jaime Cortesão, a sua formação médica e, portanto, o seu particular conhecimento da mecânica fisiológica do corpo humano, terão fortemente contribuído para a aceitação do naturalismo. Com efeito, os seus contos, ao modo de Hoffmann, salientam a estranheza, o exotismo e a anormalidade dos comportamentos humanos. Porém, a componente mais fortemente naturalista20 é dada através da descrição dos ambientes FRANCO, António Cândido. Os Contos Negros de Jaime Cortesão. In: CORTESÃO, Jaime. …Daquém e Dalém Morte. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2000, p. 15. 20 Sobre o tema do naturalismo da primeira fase da obra de Jaime Cortesão, cf. BARRETO, Moniz. Ensaios de Crítica. Prefácio de Vitorino Nemésio. Lisboa: Bertrand, 1944, e Estudos Dispersos. Prefácio de Castelo Branco Chaves. Lisboa: Portugália, 1963; igualmente CONCEIÇÃO, Alexandre da. Notas. Ensaios de Crítica e Literatura. Coimbra: Imprensa Académica, 1881; MAGALHÃES, Luís de. Notas e Impressões: Artes e Letras – Política e Costumes. Porto: Livraria Portuense, 1890; e PINTO, Júlio Lourenço. Estética Naturalista. 19

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nocturnos medievais, que se estatuem como autênticas personagens, por exemplo no conto “O Fantasma do Enforcado”. O ambiente nocturno aterrorizante, por si, enquanto personagem, não age, mas a sua presença força a reacção das outras personagens, seja individualmente, alterando-lhes o estado anímico, pervertendo-lhes a personalidade, seja colectivamente, criando a atmosfera geral propícia ao desencadeamento de acções patológicas. Acresce a esta inspiração naturalista a descrição da entrevada (p. 40), em “A Morte da Entrevada”, e o retrato ficcional da genialidade ou da loucura, como sucede em “O Psicoscópio”, estados psíquicos que desafiam a normalidade civilizacional humana, provocando um efeito patológico de perversão, como igualmente acontece na obra literária de Raul Brandão, seja em Húmus, seja, no campo do teatro, em O Doido e a Morte. De facto, glorificando a história passada, Jaime Cortesão escreve que “os homens daquele tempo eram em tudo excessivos” (p. 27), evidenciando, por um lado, a minimização do estado de Portugal pós-Ultimatum face a anteriores períodos de ouro, e, por outro, a necessidade ingente e imperiosa de se regressar ao espírito dos tempos pretéritos. O fantasma que assola desmedidamente o cavalo de D. João da Silva, fidalgo guerreiro que ansiava por uma “absoluta perfeição” (p. 28) na justiça humana, significa, na estrutura do conto, a incerteza reinante na consciência do “Grande Regedor”, relativa à correcção da sentença de morte ditada nesse mesmo dia, mas também significa, simbolicamente, a evidenciação da incerteza que então pairava sobre a correcção dos caminhos políticos e históricos a seguir no princípio do século XX e a necessidade sentida de se retornar à “fonte viva das energias da Raça” (p. 24), revitalizando o futuro de Portugal. “O Pedreiro Cantador” constitui um hino à revitalização das energias nacionais, apostando, não na política partidária republicana, mas no trabalho vigoroso de cada português. É, de facto, um hino ao trabalho perfeito, realizador e alegre, e o desejo da existência de um futuro país próspero e feliz. Em “De como fui armado cavaleiro”, Jaime Cortesão evidencia a sua inspiração nos “contos negros” de Hoffmann, expressamente citado na página 54, não na exploração de um barroquismo romântico, atemorizante e arrepiante, mas no sentido da ligação do novo espírito literário regenerador ao espírito de revitalização histórico-social de Portugal. É esta, de facto, a essência dos contos de Jaime Cortesão – a vinculação de um novo espiritualismo literário a um novo espiritualismo histórico, vinculação que terá o seu apogeu Estudos Críticos. Porto: Clavel, 1884. Para um enquadramento geral, para além das histórias e dicionários de literatura, cf. SERRÃO, Joel. Temas Oitocentistas II. Lisboa: Livros Horizonte, 1978.

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em Mensagem de Fernando Pessoa, como o conto “Psicoscópio” terá o seu apogeu no espírito de Orpheu. Jaime Cortesão, porém, como Moisés, não penetrou na nova Terra Prometida da literatura, restou-se num espaço literário a meio termo entre o romantismo e o modernismo, que Óscar Lopes designou por “novi-romantismo”, mas nós preferimos designá-lo por novo espiritualismo, que breve frutificará, na poesia, em Fernando Pessoa e, na filosofia, em Leonardo Coimbra.

O teatro de Jaime Cortesão: história, cultura, política, literatura. Uma reflexão pessoal DUARTE IVO CRUZ Universidade Católica Portuguesa Escola Superior de Teatro e Cinema

Jaime Cortesão não está propriamente esquecido como dramaturgo, mas a cronologia e mesmo a escassez de títulos contribui para injustamente restringir a relevância dada ao seu teatro, sobretudo quando cotejado com a imponência da restante obra. E, no entanto, encontramos nas três peças que Jaime Cortesão escreveu e fez representar, entre 1916 e 1921, as marcas e as características da restante obra literária, científica e política. As peças são O Infante de Sagres (1916), Egas Moniz (1918) e Adão e Eva (1921). Dois dramas históricos, em verso, e um drama político de actualidade, em prosa. Logo aí se notam sinais coerentes e de certo modo precursores da obra geral e da magistral docência, pesquisa e criação científica e literária do autor. Mas outros aspectos relacionam esta incursão dramatúrgica, breve que seja, com a coerência intelectual e cultural e, diga-se desde já, ideológica de Cortesão. E recorde-se também que não são propriamente obras de juventude sem continuidade, se exceptuarmos um “drama metafísico”, Missa da Meia-Noite, publicado em 1940, sob o pseudónimo de António Frois, de algo indefinida e heterodoxa expressão, como veremos mais tarde. Mas concentramo-nos nas peças publicadas, representadas e assumidas, duas delas, dramas históricos em verso, uma terceira, drama político de actualidade. Na disparidade de épocas e estilos, encontramos uma clara unidade, construída numa indiscutível qualidade. E, sobrelevando tudo isto, insista-se, a exemplar coerência intelectual e política do autor, como iremos ver. Refira-se então: a análise a que a seguir se procede, numa perspectiva de avaliação subjectiva, terá em conta os aspectos de estilo, de conteúdo, de visão científica e historiográfica e de perspectiva política de cada uma das peças, referidas em cotejos sucessivos a propósito destas expressões e dimensões principais.

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Uma expressão harmonizada do Romantismo e do Simbolismo e um percurso para o Realismo Refira-se, para começar, a expressão poética e dramatúrgica do teatro de Jaime Cortesão. Note-se, desde logo, que a opção estética e literária é diferente, pois, como dissémos, as duas peças históricas são escritas num notável mas teatralmente ingrato verso de expressão arcaizante. Mas mesmo assim, o que sobressai e dá unidade de escrita às três peças é a fidelidade mais ou menos rigorosa a uma estética e a uma linguagem poética e teatral que oscila entre o neo-romantismo e o simbolismo. E isto tanto nas peças passadas no século XV e em 1127-1128, como na peça passada “na actualidade”, ou seja, 1921, esta, no entanto, também de clara deriva realista. Existe a mesma coerência nos aspectos ideológicos e até no rigor de observação ou reconstrução histórica: mas agora destaque-se sobretudo a opção por um simbolismo, que noutro lado já qualificámos como “indeciso”, nas suas conotações realistas e na harmoniosa alternância com a escrita romântica – mas que se impõe numa grande coerência de escrita1. Importa também referir que as três peças traçam um percurso heterogéneo e “hesitante”, mas claramente identificável de evolução para certo realismo, que progressivamente vai emitindo sinais já no Egas Moniz mas, sobretudo, como veremos, no Adão e Eva.

Expressões neo-românticas Tenha-se presente que certo ritmo romântico subsiste no teatro português do início do século XX, numa perspectiva aliás “moderadora” e “modernizadora”, digamos assim, dos excessos ultra-românticos que marcaram a dramaturgia portuguesa logo depois, ou simultaneamente, com o próprio Garrett. Desde logo, a utilização do verso nas peças históricas liga-se, por direito próprio, a uma clara linhagem estética, que aqui se valoriza pela sua própria qualidade: e como vemos, no Adão e Eva, a “alternativa” estilística faz-se mais com o realismo que a actualidade do tema impôs. Mas em qualquer caso, a tradição do drama romântico em verso emerge em falas e cenas bem específicas, de que damos alguns exemplos. Veja-se, por exemplo, no Infante de Sagres, o monólogo sentimental do Infante D. Henrique, “abismado a meditar” na D. Mécia, a quem renuncia por dever austero de dedicação monástica à expansão, situação e opção em si mesma também romântica (Acto I, cena VI):

Cf. CRUZ, Duarte Ivo. O Simbolismo no Teatro Português. Lisboa: ICLP, 1991.

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“Como esta voz é doce e me perturba e enleia! Não adormeça eu! Cala-te lá, sereia; Eva, retira a mão que o doce pomo oferece. Folgar, ir-me daqui! Ah! Ninguém me conhece! Sou decerto um fantasma, uma fúria sedenta, Uma raiva, um furor, um esto de tormenta Passando sobre o mar. E até, se me concentro; Como um búzio da areia, escuto o mar cá dentro…”

Ou na tirada de João Gonçalves Zarco, regressado do “Tenebroso Mar” (Acto I, cena VIII): “(…) Eu alarguei o Oceano, Novas terras olhei; e ao largo, a todo o pano, Meti a proa a rir, no tenebroso Mar; Vi os monstros fugir pra nunca mais voltar…”

Mas essa própria descrição, cenicamente difícil, assume aspectos e toadas simbolistas, nas referências ao mar e à aventura heróica da descoberta (Acto I, cena VIII): “Estando em Porto Santo, há muito ao largo via Um negrume que o céu e as águas encobria. E na gente do mar corria entre clamores Que era a boca do inferno exalando vapores!”

E ainda, na mesma peça, o recurso repetitivo a ambientes fúnebres, como a descrição, no início do Acto III, da “Capela do Fundador , no convento da Batalha” com “o túmulo de D. Fernando, um altar de preto” e “altos tocheiros em volta”. Ou a descrição da apaixonada D. Beatriz, que acusa o Infante de ter sacrificado o irmão (Acto III, cena VII): “Tu, que mataste o irmão, tu que o foste entregar Às mãos dos infiéis, de joelhos te peço: Tira-me o coração, que ainda te agradeço. Mata-me a mim também e eu morrerei feliz!…”

Egas Moniz está mais próximo de uma expressão oscilante entre o simbolismo e mesmo de um sinal ténue de “realismo”, se tal se pode dizer numa peça em verso: na verdade, certas cenas dialogadas superam qualquer limitação estilística e aproximam-se, guardadas as distâncias, dos diálogos contemporâneos do Adão e Eva. Por exemplo, nos diálogos de amor de D. Tareja e do Conde (Peres de Trava – Acto I, cena III), ou de D. Elvira, filha de Egas Moniz, e de Fernão

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Mendes da Maia (Acto III, cena I), e deste com os nobres (cenas III e IV), ou ainda o diálogo de D. Afonso Henriques com o Mensageiro de Afonso VII (cena VIII), não obstante a dificuldade das longas tiradas em verso. E vem a propósito então referir que esta peça, por vezes, assume certo ritmo operístico nas intervenções colectivas de personagens como “a turba”, o “caudal dos besteiros”, os “atalaias”, os “cavaleiros, fundeiros, pajens, etc.”, diz a lista das “figuras”, aliás, o mesmo ocorre em O Infante de Sagres, nas “vozes (que) em coro” saúdam a chegada do Zarco (Acto I, cena VI). Romântica é, no entanto, a grande tirada de Fernão Mendes da Maia, face a “D. Afonso VII, Imperador da Espanha”, que o condena à morte, tal como a Egas Moniz, para aliás, logo a seguir os perdoar (Acto IV, cena IV): “Pois mata! E apreende nessa morte Que alguma coisa há tão ardente e tão forte, – Alma em fogo, astro a arder, tão sagrado e tão belo, Que pró matar não tens baraço nem cutelo E não lhe fazem torva as maiores ameaças: O amor à terra, o afã de ser livre, tão fundo! E que esta grei é tal que, por mais que tu faças, Portugal há-de erguer-se entre as nações do mundo!”

Mas a tirada mais vigorosa, oscilando entre o romantismo e o simbolismo, aliás, no que ambas as estéticas têm de mórbido e de macabro, é a descrição, pelo próprio, da cena de cegueira de D. João Froyaz Marinho, por ordem de Fernando Peres de Trava (Acto II, cena V): “Lançam-me sob os pés; dão-me açoites sem conto; Colhem do chão esterco, e metem-mo na boca, E porque vilta assim lhes semelha inda pouca, Cravam-me em cada olho o ferro dum bulhão; Torcem, e, pois não sai, logo deitam a mão, Metem os dedos dentro, à força, nos refolhos Das órbitas em sangue, e arrancaram-me os olhos!”

No Adão e Eva, a escrita dominantemente romântica é muito mais restrita, mas emerge em descrições e circunlóquios do anarquista Marcos, nas cenas de amor com Suzana (“A sublime exaltação do amor nascia do nosso sacrifício” – Acto I, cena VII) ou no final em que o Marcos, preso, renuncia às benesses que o pai da Suzana lhe propõe, e, “apontando para a janela gradeada o dia que nasce triunfante”, declara que “o dia vai começar!” (Acto III, cena VII, final).

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Mas são excepções, numa peça que alterna a escrita simbolista com uma dureza muito realista das descrições da revolução, que, não por acaso, fazem lembrar a cena correspondente de O Fim de António Patrício (1909), antevisão alucinante da queda da Monarquia.

Um simbolismo “indeciso” mas dominante Na verdade, o teatro de Jaime Cortesão assume uma linha dramatúrgica muito próxima do tal “simbolismo indeciso”, mas nem por isso menos dominante. E indeciso exactamente pela heterogeneidade de escola e de estilo que temos sublinhado, pela recusa numa adopção exclusiva do género literário. Mas isso não significa que o simbolismo não seja dominante… Veja-se, por exemplo, em O Infante de Sagres o tom fúnebre, tétrico, da paixão e morte do Infante D. Fernando, cativo em Fez, na evocação de D. Henrique, dominado pelo peso da consciência mas não do arrependimento, o que aponta também para opções na perspectiva da opção política subjacente (Acto IV, cena III): “Pais, amigos, irmãos, tudo desfeito em pó!… Eis a morte! Já vejo em tudo a sua imagem. Vamo-nos a aprestar para a grande viagem, Vamos… E agora sim, que é o Mar Tenebroso… Tal como este lá fora, irado e tormentoso, Assim vejo o outro Mar da Morte e do Mistério. Chego às ondas e logo um cortejo funéreo Cresce direito a mim… São fantasmas doridos…”

Ou na descrição de Sagres, onde “é desabrida e escassa a natureza / Tão solitária, nua e de tanta aspereza / Que moldou a minh’alma às duras penedias / E aos ímpetos do mar”… (Acto I, cena V) No Egas Moniz, retoma-se o personagem Marinho, que já encontramos a descrever o horror da sua cegueira. Agora ouvimo-lo invectivar o Conde de Trava pela tragédia: “Inda que a ti te odeio, abomino, aborreço / Cegar, vou-te dizer, vê lá! Eu te agradeço”, pois incomparavelmente mais vil é o próprio Andeiro, “Drudo, que tens a alma tão vilã / Que te vendeste a dois, com uma barregâ / às traças do estrangeiro e ao amor da rainha” ( Acto II, cena V). Ou as falas de Egas Moniz, verdadeira descrição física e histórica de Portugal (Acto I, cena IV): “O chão de Portugal, Senhor, há termo aqui. Mas há um povo igual,

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Que o mouro tem por seu. Té ao Tejo e a Lisboa… Fala-se a nossa língua; a lei de Cristo é boa. A esta grei darás os foros de nação, Desta guisa cumprindo uma antiga tenção, Pois sabe que tal grei que te cata respeito É tão diferente d’al e de tão outro jeito, Que, de há séculos já, quer ser livre na Spânia: Em tempos foi aqui a antiga Lusitânia.”

O Adão e Eva assume uma aproximação mais imediata a uma toada realista de qualidade, cortada por vezes, é certo, por derivas românticas na exaltação ideológica do Marcos e nas cenas de amor. Mas os debates com o Cónego Frutuoso, com o “capitalista” Domingos e com o filho deste, Justino, oficial do Exército, gravemente ferido na repressão da revolução em que Marcos se envolve, apontam para uma análise social e política que o realismo melhor serve. E a descrição alucinante da batalha urbana (Acto II, cena XI) assume uma vigorosa toada simbolista, que a aproxima, já o referimos, da cena homóloga de O Fim, de Patrício: “(Marcos) – Venho do inferno! Do incêndio e do saque! De ver a besta humana à solta! Lançaram fogo aos palácios, aos depósitos, às casas! E foi para isto que eu lutei! Acabou-se! Assim o quiseram! Eu nunca vi a multidão assim. Uma torrente de ferocidade desprendeu-se de súbito e varreu a cidade. Eram cáfilas de lobos acossados. Saquearam, destruíram, mataram sem um fim, sem uma razão, só pelo gosto de destruir e de matar…cem vezes me interpus! Protestei!”

E que contrasta com uma descrição idílica da vida, também com fortes ressaibos simbolistas, em que Marcos condena as injustiças sociais (Acto I, cena VIII): “Houve um tempo em que a terra era o Éden: os homens viviam todos livremente sob a árvore da vida, que se erguia em pleno Paraíso. Quem comesse dos seus frutos mais perfeitos, que eram o amor, a sabedoria e a beleza, gozava no tempo efémero o sabor da eternidade”.

O Infante de Sagres: História, ocultismo, fatalismo Ora, também se pode, de certo modo e até certo ponto, inculcar ao simbolismo o ambiente de profecia, ocultismo, fatalismo que marca estas peças – mas não, obviamente, o rigor historicista que as determina: aí, estamos perante um prolongamento do espírito científico do historiador Jaime Cortesão. Nesse aspecto, o teatro de Cortesão é um teatro de historiador,

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e isto, não tanto pelo temário das peças, como pelo rigor científico e pela abordagem crítica que elas envolvem. Os exemplos são inúmeros, mas o que mais nos impressiona surge nas cenas iniciais do Acto II de O Infante de Sagres. O espectador, sentado na sua cadeira, está perante “a sala de estudo na casa do Infante em Sagres”, reconstituída numa longuíssima e minuciosíssima nota de cena; e nela “assiste” à elaboração/correcção de um mapa, cotejado e redesenhado, se necessário, pelos cosmógrafos Mestre Rodrigo e Mestre Jaime de Maiorca, ambos em Sagres ao serviço do Infante. E acompanha o trabalho minucioso de comparação com os escritores da Antiguidade, na viagem “no extremo levante / para lá do Cathay (…) na Ilha de Chipango (…) Índias Orientais” e “(onde) há tanto se esconde / o rei Prestes João”… A notícia da chegada do Legado do Papa, comunicada por D. Fernando ao Infante, (Acto I, cena IX); os diálogos do Infante com Cadamosto, António da Nola, João Fernandes e outros navegadores (Acto II, cena V); as descrições dos tormentos infligidos a D. Fernando, recorrentes em toda a peça, e sobretudo a descrição da morte, a cargo de Frei João, constituem exemplos notáveis de uma escrita poética que concilia o simbolismo funéreo, tão característico, com uma linguagem por vezes neo-romântica de muito boa qualidade: “Quando morreu, o corpo era todo uma chaga, E, a modos de uma luz que à hora em que se apaga Tem um clarão mais vivo, o rosto iluminou-se, E entrou de nos falar numa voz muito doce, – Tão fraquinha, meu Deus! Que já se ouvia mal! – De saudades daqui, do amor a Portugal”

Mas, neste aspecto, o que mais caracteriza O Infante de Sagres é a dialéctica política que percorre toda a peça no debate, que já vem de Gil Vicente (Auto da Índia) e de Camões (Velho do Restelo), entre as opções europeias, marroquinas e orientais da própria expansão. O personagem Frei Gaspar representa e assume um posicionamento crítico relativamente a “tanto sangue cristão que já mais de uma vez / (o Infante) tem entregado ao Mar!”. Invectiva o próprio Infante: “Em que é que fiais, / que deixe tão leve a terra de seus pais, / que troque Portugal pela África Ardente?! / Quem irá habitar essa terra inclemente?!”. E contrapõe subtilmente uma opção/evocação europeia: “Diz vosso irmão D. Pedro, ouvi-o eu dizê-lo: / É dar a boa capa e ir pelo mau capelo”… Contrapõe João Fernandes, para quem o Infante “quer sempre ir mais além… (…) dilatar o Império / do nome português ao país africano” (Acto I,

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cenas I, IX). E contrapõe, com manifesto exagero, Valarte, “gentil-homem da corte escandinava”, que considera o Infante uma espécie de “outro Deus”, pois o Infante “faz o que Ele fez! / Descobrir (o mundo) é criar pela segunda vez!” (Acto II, cena V). É este um grande tema central da peça, reforçado ainda pelos circunlóquios recorrentes do Infante, que não hesita em prosseguir a sua política, mesmo quando manifesta dúvidas e remorsos pelos desastres e tragédias pessoais que acabou por infligir até à própria família: “Adeus ao mar, meu soberbo inimigo (…) Pais, amigos, irmãos, tudo desfeito em pó (…) Agora sim, é o Mar Tenebroso” (Acto IV, cenas I e III). Mas o final da peça contém uma poderosa elegia ao Mar, num diálogo directo, que faz lembrar de certo modo O Beijo do Infante, de D. João da Câmara. E finalmente: o contraponto desta grande evocação histórica, erguida a partir de uma descrição científica extremamente rigorosa, estará, mais do que nas psicologias e nas situações românticas, no ambiente ocultista, profético e fatalista, muito próprio da estética simbolista. Citamos ao correr da peça: secreto(s) receio(s), “olhar dos astros (…) Triste constelação que preside a esta empresa”, “sangue escrito nos astros”, terrível “Destino” do Infante e de D. Fernando. E a enorme tirada do Infante, no final do III Acto (cena IX), nada mais é do que uma formidável síntese justificativa de uma conciliação de opções políticas com um fatalismo determinista e fundamentado numa visão profética da História: “Sei que tenho um destino: hei-de levá-lo ao fim”.

Egas Moniz e os caminhos de um para-realismo mais ideológico Como já vimos, Egas Moniz mantém certa continuidade conceptual e estilística, na medida em que retoma o verso, sublinha o rigor da investigação histórica e reassume a aproximação ao simbolismo “indeciso” de que temos falado. Mas a principal característica estará numa mais frequente e mais clara opção por uma linguagem para-realista, que transparece, ou por vezes motiva, cenas de maior dinâmica no diálogo. Tudo isto será algo paradoxal numa peça que se situa no século XII e que não raro utiliza no texto e nas didascálias uma linguagem medieval, própria do grande historiador: a Rainha “sazonada dos anos”, conde de Trava “formoso em parecer e mui vistoso”, “multidão ébria de sangue e luta”, ou o Egas Moniz “raso e humilde” perante Afonso VII, reconhecendo “com dor aguda” que “Grão mentira menti(u), pois foi “aleivoso e tredo!”

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E nesse aspecto, a documentação histórica subjacente é, obviamente, indiscutível, e Cortesão valoriza-a em cenas de bom diálogo, onde, precisamente, a escrita aproxima-se do realismo. Por exemplo, as cenas iniciais do Acto III e isto, não obstante D. Tareja, Afonso e D. Elvira estarem “sentadas em almadraxecas”, o que porá sérios problemas a um aderecista e a um cenógrafo menos erudito… D. Elvira recita uma cantiga de amigo, mas o diálogo que se segue, sobretudo até à cena VII, assume um notável nível de eficácia cénica, marcada pelo para-realismo de que temos falado, mas também por um espírito algo profético e agoirento, referido no pobre cego Martinho: “Pobre de ti, Fernão! Voltar! E para quê! / Se toda a gente visse o que este cego vê… / Mas sois mais cegos do que eu!” Também importa salientar a fundamentação histórica na sua ligação às opções ideológicas subjacentes. Trata-se da independência de Portugal, mas, num exercício de transposição para os tempos modernos, a peça é percorrida por um grande sopro de liberdade. Por todas, leia-se a tirada, algo neo-romântica, do Imperador Afonso VII, ao conceder o perdão a Egas Moniz (Acto IV, cena IV): “A ira me turbava o claro entendimento O mal que me fizeste é nobreza de lei E grão serviço a aquele a que julgas teu rei; Fora mesquinho em Rei e vil da minha parte, Se, ao dares-te às minhas mãos, te dera crua morte. Egas, és livre, vai!”

E o diálogo que se segue até o final, numa cena de conciliação e de perdão, marca bem os sinais de aproximação e uma escrita realista que, transposta para o século XX, mais se acentua no Adão e Eva, sem embargo do simbolismo e nas derrapagens – e aqui, a expressão mais se justifica – neo-românticas que também marcam a peça.

Ideologia e conflitualidade política em Adão e Eva Adão e Eva constitui como que o prolongamento da dramaturgia anterior, com a maior incidência, desde logo, na homogeneidade estilística, a partir do diálogo realista, mas também na sublimação da perspectiva política do enredo. Lembremos, aliás, que a peça é de 1922, e nela Cortesão explana a conflitualidade então dominante, à luz de opções ideológicas mais claras e da situação económica e social decorrente também da Guerra.

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De tudo isto fomos dando exemplos acima, mas não é de mais insistir no carácter especulativo dos negócios do Domingos (lucros de “seiscentos e tal por cento” constituem “um negócio regular”, pois “a ocasião é que faz o negócio”), bem como no confronto entre o Justino, Oficial do Exército ao serviço das forças da ordem, e o anarquista Marcos. Este, como já vimos, reconhece a carnificina da revolução, mas não transige, no final, com a sua coerência ideológica, mesmo que discorde dos excessos a que conduziu. O Cónego Frutuoso funciona como uma espécie de “raisonneur”, muito próprio do teatro da época, oscilando entre uma visão lúcida e enérgica e um acomodamento de interesses familiares. Referimos todos estes aspectos, e mais a toada simbolista que a peça também assume, não obstante o realismo de escrita que domina os três actos bem conduzidos, apesar, ainda, das derivas neo-românticas que também surgem, com já se citou. Mas o mais interessante será, repita-se, a evocação da guerra e da Flandres onde Cortesão voluntariamente exerceu a medicina, nas trincheiras de La Lys. É o Marcos quem faz a principal evocação, relacionando-a com a própria especulação económica e com a liberdade política e social (Acto III, cena VI): “Mas foi precisamente quando nós os de baixo nos batíamos na Flandres que aqui e em toda a parte se desencadeou a desordem vinda de cima. Nós sacrificávamos a vida. Levados pelas belas palavras – a Pátria, a Justiça, a Humanidade. E aqui os que deviam fazer o sacrifício das suas riquezas e dos seus prazeres, trataram ao contrário de atulhar os cofres de oiro, calcando aos pés todos os sentimentos que pregam para os outros”.

E há aqui uma intencionalidade política imediata. Ora, no final, estas componentes determinantes da acção dramática e da análise psicológica encadeiam-se no contraste entre a revolta de Leonor contra a dureza de Marcos, que se recusa a negar os seus ideais para acorrer ao moribundo Justino, e a revelação final dessa mesma coerência, dura e intransigente que seja, mas que, afinal, só alimenta o amor de Suzana por Marcos e conduzirá ao sacrifício do degredo na “Costa de África”! Vejam-se as duas tiradas da Suzana (Acto III, cena VI): “Tu não tens coração; tu não tens piedade! És uma fera uivando sobre a tua vítima! Fazes-me horror. Fujo de ti! Odeio-te”.

Mas logo a seguir, depois das explicações também arrebatadas do Marcos:

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“Amo-te… compreendi-te!… cala-te! A dor revelou-me a verdade… Sofro mas compreendo!”

E o final resvala para a alegoria neo-romântica de exaltação sentimental que já referimos e que, de certo modo, prejudica o tom duro e realista da peça: “(Marcos) – Suzana, abençoado seja o sofrimento que revela as almas e a verdade! Os que temem a dor nunca profundamente se alegraram. As nossas lágrimas caem no escuro como o orvalho que anuncia a manhã. Olha… Nasce o dia… A vida vai começar…”

Missa da Meia-Noite e o seu eventual significado Em 1940, Jaime Cortesão publica em edição da Seara Nova e sob pseudónimo de António Frois, o “drama metafísico” Missa da Meia-Noite e alguns poemas avulsos. No que se refere à obra dramática, o autor clarifica uma intencionalidade pouco funcional ao nível de texto: “Drama metafísico entre prosa e verso, e cenário para um filme com música do maestro X”, assim mesmo… Trata-se efectivamente de um breve poema dramático, de difícil realização cénica, dividido em prólogo e cinco quadros de designação desde logo poética: “Ressuscitar o Deus Pan”, “A Catedral”, “Cantata de Bach”, “A Noite dos Milagres”, “A Segunda Paixão de Cristo”. E a lista de personagens é longa e variada – desde Deus, Jesus Cristo e Pan, à “sombra de João Sebastião Bach”, a “três quimeras da Catedral”, um rouxinol, Santos, Apóstolos e Profetas, coros de raparigas, uma orquestra de Anjos, e ainda a catedral, as casas, as estátuas e “o povo de uma cidade num país imaginário”… Estamos, afinal, perante um longuíssimo e muito belo poema em verso branco, interrompido por diálogos de boa escrita teatral. Por todos, a cena final da “Segunda Paixão de Cristo”, cuja concepção, que não o texto, note-se, nos faz lembrar o Jesus Cristo em Lisboa, de Raul Brandão e Teixeira de Pascoaes, peça publicada em 1927. Ora, o que aqui nos interessa, no ponto de vista formal, é realçar a mestria dos poemas, a qualidade da escrita e mesmo o sentido dramático das escassas cenas dialogadas. Veja-se o início do poema: “O mundo havia entrado numa outra idade. Uma Estrela Nova Aparecera de súbito à vista do planeta

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E acelerara o coração da vida Dando-lhe um ritmo intenso de ebriedade…”

Mas o mais relevante, neste pequeno exercício dramático, é a qualidade poética, sem dúvida, mas sobretudo, quer-nos parecer, a inquietação religiosa que dele se depreende. Sem desenvolver esta reflexão, aí fica a referência a uma eventual nova perspectiva de análise.

Uma síntese de conteúdos Ora bem: termina-se esta análise com a evocação dos feridos da batalha de La Lys, nas Memórias da Grande Guerra do médico Jaime Cortesão, oficial voluntário no Corpo Expedicionário Português na Flandres. Porque, aí sim, tanto ou mesmo mais do que no teatro, encontramos a expressão de uma linguagem próxima do simbolismo, vazada no descritivo terrivelmente realista, passe o paradoxo, da experiência directa da tragédia da guerra, mas também, um testemunho dos valores morais de solidariedade e a coerência dos valores de democraticidade, cidadania e patriotismo da obra de Jaime Cortesão: “Lançados ao acaso sobre as macas, os feridos de mais gravidade esperam a sua vez. Um cheiro pesado e morno a éter, sangue e entranhas violadas, entontece e engulha. O chão é todo manchado pelo rio vermelho da vida que extravasa”2.

Há ecos desta terrível descrição nas alusões à batalha urbana de Adão e Eva, peça, como vimos, marcada pela situação política, económica e social do pós-guerra. Repita-se: estamos perante uma consciência coerente nas opções de cidadania, num quadro democrático de apelo à paz. Adão e Eva condena a violência cega da revolução e obviamente não defende ideais anarquistas, mas defende o sacrifício pela democracia, pela honestidade pessoal e social, pela coerência e pela liberdade. Mesmo a um preço que possa parecer desumano mas que, afinal, nasce do prosseguimento desses ideais. É coerente esta atitude com o sentido de liberdade da Pátria e com o perdão concedido a “Egas Moniz” e também com os valores científicos e históricos que o “Infante de Sagres”, na sua época, encarnou, e que, no respeitante à expansão, se mantinham quando a peça foi escrita. E é coerente com a reflexão religiosa e metafísica do Conto de Natal. Essa grande coerência que foi a da vida e obra de Jaime Cortesão. 2

Cf. CORTESÃO, Jaime. Memórias da Grande Guerra. Porto: Renascença Portuguesa, 1919.

A “Parábola Franciscana” de Jaime Cortesão MARIA DE LOURDES SIRGADO GANHO Universidade Católica Portuguesa

Jaime Cortesão possui, indubitavelmente, uma sensibilidade franciscana que se reflecte nalguns aspectos da sua obra. Nesse sentido, irei centrar-me em dois textos, literariamente diferentes, mas onde esse encantamento pela figura de São Francisco, assim como o fascínio que sente pelos franciscanos e pelo movimento franciscano, são uma evidência, bem como uma referência constante e salutar. O autor faz-nos sentir, numa espécie de pressentimento, a embebência dos lugares franciscanos, do seu espírito itinerante, em suma, a sua mundividência. Há nele um fascínio pelo olhar límpido para a natureza e para os seres que a habitam, há um encantamento pelo modo como o próximo, que está no desalento, é acolhido. Pressente-se que o amor é matricial. Acolher os pobres e mitigar os seus males, e viver à maneira dos pobres, sem ostentações, pois basta a Francisco “o pão nosso de cada dia”. Jaime Cortesão sente, sem dúvida, uma atracção por este ideal de despojamento interior, esta abertura, disponibilidade para o outro. E tudo isso faz eco no seu sentir e pensar. Comunhão, é evidente, com certos traços distintivos do franciscanismo, numa visão laicizada, mas que muito o marcou.

I – Parábola Franciscana Começamos pela poesia Parábola Franciscana, na qual revela o seu conhecimento e também a sua vivência relativa à acção dos franciscanos, bem como reflecte sobre a produção literária do “poverello” e re-vive o ambiente de Assis, recriando-o a partir da sua própria sensibilidade. Recriou Assis e a paisagem circundante, encontrou-se com a cidade, os prados, os bosques, a luz – essa luz filtrada de neblinas, nevoeiros matinais e vespertinos, que encobre e descobre, por exemplo, o Monte Subásio. Experiência deslumbrante que desperta sensações de comunhão com a natureza. A este fascínio também Jaime Cortesão se rendeu, certamente. Com efeito, o amor à natureza tão próprio de Frei Francisco está presente na paisagem da Úmbria, a sua região, que tão bem conheceu desde menino.

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Mas muitos foram os alimentos de Francisco em pequenino, pois em criança recriou o maravilhoso da vida dos santos, pois a isso o compelia a piedade de sua mãe. Dá-se, entre os dois, um encontro de sensibilidades diferentes. A de Francisco, todavia, começou no seio materno. Francisco, que aos 15 anos é homem, já nele irradiando luz na contra-luz, nele a alegria de dar, numa vida de desafogo económico, é uma constante, pois nunca recusava uma esmola a uma mão estendida. E Francisco, um dia, entreviu o contraste absoluto entre a sua riqueza e a pobreza de muitos – e esse contraste foi a sua revolução interior sustentada por uma conversão total ao espírito de Deus. Imitar Cristo, na alegria, na dor, no mistério de ser. Quase me esqueci de Jaime Cortesão, mas a sua sensibilidade, certamente, captou esta sensibilidade fina, esta ternura contida, mas muito real, porque vivida. Jaime Cortesão na Parábola reflecte O Cântico das Criaturas: “Cai o Sol? / Ergue-se a Lua?”1 e a Assis chama “mística flor”, promessa de amor. A sua descrição de Assis, em 1954, e dos seus arredores ainda hoje a reconhecemos, nos seus traços, na sua ambiência envolvente, no encanto como promessa de vida espiritual, apelo à acção e também ao recolhimento. Na atmosfera de Assis e dos seus arredores sente o etéreo, o evanescente, daí a referência: “Os montes batem as asas / Contra o Azul / De cetim”. É esta a atmosfera, a embebência onde se pressente constante a presença dos “menores”2 que, na sua preocupação relativamente ao próximo que está no desalento, “vão-se por esse mundo”3, afrontando adversidades, esmolando o pão de cada dia, sufocados pela canícula do ardente verão, transidos pelos frios de chuva e neve do Inverno. Mas sempre alegres, louvando a Deus e à Criação. Diz-nos: “Falam às nuvens e às aves / De mãos gélidas bulindo / Cantando / Chorando / E rindo”4. Bem se vê que Jaime Cortesão interiorizou a mensagem franciscana de que “As Florinhas” são uma menção fulcral. Claro que O Cântico das Criaturas também está subjacente a esta “Parábola Franciscana”, no sentido em que o valorizar da pobreza, como virtude, bem como a mendicância, do mesmo modo que o amor a envolver todas as criaturas, é bem real. Ele centra-se no humano, no cuidado relativamente aos mais desprotegidos. Ora bem, estas são marcas indeléveis da visão franciscana do mundo que Jaime Cortesão acolhe, num sentido imanente, CORTESÃO, Jaime. Poesia. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998, p. 272. (Obras Completas) 2 Ibidem, p. 273. 3 Ibidem, p. 273. 4 Ibidem, p. 273.

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é certo. Por isso termina esta curta poesia-parábola dizendo: “Não em palácios de nobres / Mas entre as aves e os pobres / Ao Norte e ao Austro / Fora do claustro / No mundo!”5. Remate-síntese do espírito franciscano. Encantamento interior de Jaime Cortesão pelo ideal que se fez acção, pela palavra que incarnou na obra, que deu frutos que ainda hoje se saboreiam, de tão doces! E nós, hoje, interrogamo-nos: como é possível nos nossos tempos tão diferentes daquela Idade Média do século XIII, pressentirmos a riqueza daquela espiritualidade, promessa hodierna de bem, de caminho a percorrer, no amor a Deus, que tem por mediações o amor ao próximo e à natureza. Parábola Franciscana, poesia que diz do seu olhar sobre o franciscanismo, sentimento e experiência interior. Evocá-la é, ainda hoje, exibir um traço da sua personalidade.

II – O Franciscanismo e a Mística dos Descobrimentos Neste texto que faz parte da obra A Expansão dos Portugueses no Período Henriquino6, Jaime Cortesão tem como preocupação referir-se à importância do movimento franciscano, ligado à sua itinerância pelo mundo, bem como à sua presença constante e, desde os primeiros tempos, no que diz respeito à expansão. E esta menção fala em sintonia com o espírito do franciscanismo, com a sua missão no mundo, como missionários e conselheiros espirituais. Nesse sentido, propagam valores, tomam posições sociais em prol dos mais desvalidos. E o historiador considera que, devido à sua essencial itinerância, “os franciscanos criaram, segundo cremos, o novo e ferveroso ambiente que preparou a sua expansão no mundo”7. Com efeito, e devido a essa itinerância, que lhe é própria, devido também aos seus valores e espírito de transformação social, não só “reformaram a vida religiosa pelo voto de pobreza e pregar ao povo”8, mas também a estenderam ao povo anónimo, protegendo-o de um modo tolerante e com espírito de justiça social9. Nesse sentido, identifica três aspectos que são, na sua interpretação, a marca distintiva do franciscanismo:

Ibidem, p. 274. Cf. idem. A Expansão dos Portugueses no Período Henriquino. Lisboa: Portugália: Livros Horizonte, 1965. 7 Ibidem, p. 95. 8 Ibidem, p. 97. 9 Cf. ibidem, p. 97. 5

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1) “O franciscanismo, que pretendia introduzir a vida evangélica entre os fiéis, toma, por vezes, os aspectos duma verdadeira revolução social”10; 2) “O seu proselitismo activo estende-se a toda a gente”11. Tal facto leva São Francisco a criar ordens religiosas e seculares, como o caso da Ordem Terceira, aberta a qualquer pessoa, a qualquer casal; 3) O terceiro aspecto que Jaime Cortesão considera é o traço espiritual, por excelência, do franciscanismo e que consiste em ter aproximado “o homem juntamente da divindade e da natureza”12. Mas Cortesão também valoriza o franciscano amor à Natureza, assim como o culto à Virgem Maria, a par de uma compreensão do Homem à imagem e semelhança de Jesus Cristo, devido à sua incarnação. Sem dúvida, São Francisco tinha como ideal imitar Cristo, na dor, na alegria, na oração e na penitência. Um Deus que é amor criou o Homem para que o ame e contemple e criou igualmente a Natureza, sua irmã. E aprofundando esta questão, considera que este amor à Natureza está patente no “Cântico das Criaturas”, mas também em obras sermonísticas de franciscanos eminentes, como é o caso de Santo António de Lisboa, a quem chamou “um lírico mas mais intelectualizado e menos doce que São Francisco de Assis”13. Também Rogério Bacon se deixou tocar profundamente por esta irmã, de tal modo que, como menciona o historiador, “preconiza a necessidade de estudar a Natureza por meio da observação experimental”14. Ora, este espírito do franciscanismo vai espalhar-se e, nas palavras de Jaime Cortesão, constituía-se em “uma verdadeira internacional espalhada por toda a Europa”15. No que diz respeito a Portugal, os franciscanos foram confessores de reis: D. Dinis, D. Pedro, D. João I, etc. E estar ao lado do Mestre de Avis significava estar ao lado do povo16. É também este espírito de amor que está presente no “movimento de expansão geográfica” que os portugueses protagonizaram17. Não é, pois, por acaso que muitos livros de viagem foram redigidos por franciscanos. Na sua itinerância, os franciscanos 12 13 14 15 16 17 10 11

Ibidem, p. 97. Ibidem, p. 98. Ibidem, p. 98. Ibidem, p. 104. Ibidem, p. 101. Ibidem, p. 102. Cf. ibidem, p. 103. Ibidem, p. 109.

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acompanharam a expansão portuguesa no Norte de África, bem como nas Ilhas da Madeira, Açores, Cabo Verde e também na costa africana, como por exemplo, na Guiné18. Também é um franciscano, Frei Henrique de Coimbra, quem reza, em 1500, a primeira missa no Brasil. Jaime Cortesão, face a estes factos, considera que, pela acção constante ao lado daqueles que protagonizaram a expansão portuguesa, por se constituirem em mentores espirituais nas caravelas que se faziam ao mar, por acompanharem os colonos numa atitude de missão, os franciscanos “foram os principais criadores da mística dos Descobrimentos”19. Seria interessante discutir o sentido deste termo, pois Jaime Cortesão desliga-o do seu sentido habitual, para vincar, segundo penso, que o franciscanismo aliou Homem, Natureza e Deus mediante a experiência unitiva do amor. O amor, de facto, une, tal como na mística a alma humana se sente unida a Deus. Este aspecto transcendente não é retido, obviamente, por Jaime Cortesão e percebemos porquê.

Ibidem, p. 112. Ibidem, p. 112.

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O civismo político nos homens da Seara Nova: o caso de Jaime Cortesão CARLOS LEONE Centro de História da Cultura (FCSH-UNL)

“Amigos, hoje vos hei-de falar da máxima expressão da vida forte – a liberdade”. Jaime Cortesão, Cartas à Mocidade, II

Sob a égide de Cartas à Mocidade1, encontramos vários laços: históricos, políticos, culturais, numa palavra, cívicos. Palavra, é bom de ver, particularmente cara a Cortesão. Guiados pelo saber daqueles que antes de nós trabalharam já nas Obras Completas em curso na Imprensa Nacional-Casa da Moeda2, entendemos ser útil juntar às Cartas publicadas na Seara Nova durante a década de 1920 (e coligidas em livro pela mesma Seara em 1940) dois outros conjuntos de textos: em primeiro lugar, a série de artigos surgida em A Vida Portuguesa, logo no início da experiência republicana, dedicada ao tema da educação, mediante a discussão da pertinência de Universidades Populares em Portugal; em segundo lugar, a participação de Cortesão no lançamento de um dos vários movimentos de vida breve que, já na década de 1920, o estertor da I República suscitou, a “União Cívica”. O primeiro destes conjuntos é típico das esperanças dos mais jovens, em geral, com a fundação da República; o segundo é mais especificamente seareiro; por fim, as próprias Cartas à Mocidade, trabalho individual, apresentam já a feição de Jaime Cortesão bem definida. Isto não significa, bem entendido, que só aqui a voz de Cortesão se diferenciasse da dos seus companheiros, da Seara ou de experiências anteriores como a Renascença Portuguesa. Significa, sim, que a própria natureza do livro, pensado para promoção de uma atitude cívica exposta de modo professoral, a sua dedicatória familiar, e, claro, a circunstância pessoal (entre exílios), formam um conjunto de elementos que distinguem de forma CORTESÃO, Jaime. Cartas à Mocidade. Lisboa: Seara Nova, 1940. Cf., por exemplo, GARCIA, José Manuel. O Essencial sobre Jaime Cortesão. Lisboa: INCM, 1987. Cf., também, CORTESÃO, Jaime. Cartas à Mocidade e outros textos. Lisboa: INCM, 2011. (col. Obras Completas de Jaime Cortesão, vol. 33)

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muito nítida a voz singular de Jaime Cortesão. Por muito que concordassem com (quase) tudo o que se lê em Cartas à Mocidade, nem Proença nem Sérgio, para citar apenas dois, escreveriam este livro assim. Será uma obra menor na Obra de Cortesão, sem dúvida, mas integra de pleno direito e com particular expressividade uma preocupação maior, mesmo a preocupação central do seu autor: a promoção de um civismo inteligente que permitisse harmonizar o amor pátrio com um universalismo de espírito e de sentimento. Deste modo, ainda que muito limitado, cremos que o livro dá uma linha de orientação da evolução espiritual de Jaime Cortesão desde as primícias da I República até à perda de ilusões quanto à sua simples restauração por força das iniciativas oposicionistas. Não que, ao exilar-se no Brasil, em 1940, Jaime Cortesão perdesse a esperança de rever Portugal livre. Simplesmente o curso da sua própria vida gradualmente o afastava do centro da actividade política portuguesa, o que se nota de resto no tom de Cartas, um afastamento aliás comum a outros seus companheiros e ao qual António Sérgio foi, até ao final da década de 1950, a maior excepção. Apesar de até ao final da sua vida (1960) se ter disponibilizado para a oposição ao Estado Novo, sendo o seu regresso à pátria, em 1957, perturbado pela prisão, em 1958, por motivos políticos, Cortesão era já (e tinha consciência disso) alguém de um tempo político que já era passado. E de facto foi a geração seguinte à sua que chegou a conhecer a liberdade que homens como Cortesão, Sérgio, mesmo Régio ou Casais Monteiro (mais novos), morreram sem voltar a conhecer. Mas, e do civismo, que todos se reclamaram, o que perdurou? Que civismo era esse e o que dele sobreviveu? Os textos das Cartas iluminam esse legado. *** Originalmente escritas e publicadas na Seara Nova entre 1921 e 1925, as Cartas só tomaram a forma de livro em 1940. Cortesão juntou às seis que já havia publicado (a última das quais reviu substancialmente) uma sétima, de 1940. No intervalo entre a publicação na revista e o surgimento em volume, muito se passara: a queda da República em ditadura militar; a implantação do Estado Novo; a Guerra Civil de Espanha; o início da Segunda Guerra Mundial. Na própria vida de Cortesão isso se sentira: a oposição, revoltosa, contra a ditadura logo em 1927; o exílio em França (participando na chamada “Liga de Paris”3) e o período subsequente em Espanha; a prisão

Cf. OLIVEIRA MARQUES, A. H. (dir.). A unidade da oposição à ditadura, 1928-1931. Mem-Martins: Publicações Europa-América, 1973.

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em Portugal4. E, ao publicar Cartas à Mocidade nas edições da Seara, a partida para um exílio brasileiro, que viria a durar até 1957. No prólogo que escreve para a edição de 1940, Cortesão afirma terem as cartas um “pequeno valor histórico: o de esclarecer até certo ponto algumas das ideias fundamentais com que o grupo da Seara Nova tentou algum tempo servir de orientador”. De facto, as Cartas respiram um certo ar do tempo ou, talvez melhor, um “ar de família espiritual” (de novo Cortesão, no mesmo passo) em que, como é lógico, a educação foi problema decisivo. Ainda no prólogo, é o próprio Cortesão a notar como a edição em livro inclui uma sétima carta mais próxima da sua experiência pessoal, quer no tom, quer no conteúdo, ao fechar o livro com “amargura”. Sem renegar crença alguma, apenas menos cândido na sua confiança nos homens, Cortesão publica o volume, no momento em que abandona Portugal, “como uma despedida, repassada de saudade e cheia de esperança”. Há de facto uma unidade das seis cartas dos anos de 1920, mesmo com a revisão da última, que a sétima carta incluída para fecho do livro vem alterar. Para aclarar como esse acrescento não transtorna, antes completa, o conjunto, cumpre sistematizar as seis cartas iniciais. A primeira carta retoma a crítica da República e da sua corrupção interna em moldes muito seareiros. O mote de “republicanizar a República” é decisivo aqui. A segunda carta prolonga-a, mas focando já a História de Portugal e a progressiva perda de liberdade que a decadência veio criar, numa argumentação também seareira, mas na qual as referências a S. Francisco de Assis e o tom mais edificante do que polémico distinguem já a escrita de Cortesão. O tom edificante serve um propósito inteiramente lógico num volume de cartas destinado a jovens: o de influenciar a formação do carácter. É o ponto central da terceira carta, em que Cortesão discute como se processa a formação de um carácter pessoal, defendendo que “de todos os factores de transformação do indivíduo, o mais poderoso elemento de criação pessoal do carácter é a vontade”. Nesta carta reencontramos não só as posições de moral educativa que associamos à Seara (auto-formação, responsabilização pela prática, sociabilidade), mas também advertências que remontam à série de artigos sobre o benefício social da instauração das universidades populares, prevenindo pela educação a desmoralização dos costumes. O estilo é afirmativo (“Sê desabrido na defesa de ti próprio”) e a convicção é clara (“a verdadeira firmeza e coragem moral implicam uma resistência invencível Cf. CORTESÃO, Jaime. 13 cartas do cativeiro e do exílio (1940). Recolha, introdução e notas de Alberto Pedroso. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1987.

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a todos os obstáculos, perigos e desgostos”). Apesar do sentimento posto na escrita, do companheirismo com o jovem leitor, fala já o Mestre. Sem surpresa, a quarta carta toma por tema a disciplina. A sua falta, começa por observar o autor, é causa maior dos males nacionais. Cortesão refere-se à disciplina interior, resultante de um carácter bem formado. É a carta mais esquemática e mais datada do conjunto, expondo com alguma minúcia ensinamentos de Séneca e, sobretudo, os doze preceitos de disciplina interior de Benjamin Franklin. Mas, logo na quinta carta, Cortesão reassume o seu papel de pedagogo e incita os jovens ao traçar da regra de conduta própria de cada um. Assim, a apresentação das principais características do meio social português suscitam-lhe uma adaptação do modelo de Franklin, reduzindo os doze mandamentos deste a cinco e somando-lhe mais dois, ficando o elenco assim composto: Cultura física; Moderação; Método; Cultura do espírito; Castidade; Justiça; Piedade religiosa. Estas virtudes (os seus próprios termos, desde logo) pouco participam da cultura actual, a pedagógica ou a juvenil, tanto faz. Mas Jaime Cortesão acreditava profundamente nelas: Pensai o que seria numa sociedade como a nossa, onde pela ausência duma opinião pública esclarecida e a corrupção de quase toda a imprensa, a mentira, a injustiça, o cinismo e a mediocridade vencem, se vós, moços, tornados homens amanhã, na maioria, constituindo uma elite moral cheia de força, viésseis afirmar, com firmeza inabalável toda a verdade, dando amparo aos fracos e oprimidos e castigando com severidade os vendilhões do templo.

Já a última das cartas da série inicial, sexta na ordem do livro, é dedicada à tradição, afinal um modo de abordar a História de Portugal. O tema formava um corpo autónomo no pensamento de Cortesão. Nesta carta, o limite histórico do apogeu nacional é identificado em meados do século XVI. E toda a argumentação se desenvolve no sentido de indicar como esse apogeu se construiu no exercício daquelas virtudes já recomendadas à mocidade, assim diferenciando a tradição essencial portuguesa (remota e esquecida) da tradição do aparato exterior, que retém apenas o brilho fátuo sem cuidar de o garantir no futuro. Mais mundo há a descobrir: “O que outrora se realizou à superfície, realiza-o agora na profundidade”. A última carta, surgida na Seara Nova a 23 de Março de 1940 (no próprio ano, portanto, do livro), intitula-se “Homo” e consiste numa meditação sobre as limitações e a pequenez da civilização no contexto da História Universal. É um corpo estranho à argumentação pedagógica das seis primeiras

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cartas mas não a contradiz. O ponto da meditação, bem entendido, não é tanto científico (embora os comentários sobre a evolução da espécie humana mostrem bem a articulação entre o Cortesão médico e o historiador) como um ponto ético. Ao concluir, dificilmente poderia ser mais explícito: “E conta que hás-de sofrer tanto mais, quanto te decidires a marchar livremente sobre os teus próprios pés”. É uma carta para homens, porventura para aqueles mesmos jovens que o haviam lido quinze anos antes. Mas, sobretudo, como o prólogo avisara, uma carta de significado autobiográfico. Entre as esperanças de emenda e auto-engrandecimento de Portugal pela juventude e a amargura perante as consequências de se caminhar livremente, Cortesão mudou, mas apenas por ver confirmadas as suas piores expectativas e não as melhores. Portugal mudara também, a Europa (o Mundo) encontrava-se em guerra, a História parecia não ser universalista mas suicida. Nada disto podia fazê-lo abandonar os seus princípios, cada vez mais necessários, e tudo isto justificava a publicação conjunta das Cartas, também ela parte de um trajecto pessoal (e social) de Cortesão já extenso no tempo. Compreendido ou não, bem recebido ou não, e sem dúvida frustrado, o civismo de Jaime Cortesão é o fio condutor de todos estes textos e, é justo dizê-lo, de todo o seu labor – político, educativo, artístico, científico. A Cortesão, em 1940, restava apenas seguir o caminho do exílio em direcção ao “mundo que fez o Português” (Sílvio Lima), rumo ao Brasil que tanto estimava e que, honra lhe seja prestada, o soube acolher e respeitar, num momento de verdadeira lusofonia. Ainda que, felizmente, a realidade do exílio seja já coisa do passado, muitas e fundadas razões há para revisitar estes textos, em tantos aspectos ainda tão actuais. E ainda que não o fossem, a grandeza da prosa de Cortesão bastava para os recomendar a todos os que prezam a língua e a cultura portuguesas. *** O civismo como programa social de regeneração da sociedade portuguesa, e não apenas da política profissional, não marca apenas a Obra de Jaime Cortesão, nem sequer a dos seareiros que inspiram este Colóquio. Este espírito cívico é o herdeiro directo da religião cívica da Revolução Francesa, momento definidor da modernidade no continente, mas no momento histórico em que se situa o grupo da Seara, esse legado histórico marcante do século XIX foi já profundamente revisto pela importância cultural, mesmo identitária, do “caso Dreyfus”. De certo modo, todos os intelectuais do século XX acusam a sua identidade colectiva, (pelo menos) é a de uma classe queixosa, mesmo

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quando desprovida de reivindicações específicas. No caso de Cortesão, encontramo-la na sua forma mais afirmativa e edificante, muito próxima da fonte a que foi haurir (Zola). Estava-se no início de um percurso que, ao longo do século, sobretudo após a morte de Cortesão (desde a década de 1960, portanto), conduziu à “teoria áspera” e a formas de distopia em que a reivindicação aspira não à afirmação mas à negação, não à criação mas à destruição. Mais do que Cortesão, terá sido Proença, na sua atenção à célebre “traição” denunciada por Benda (outra acusação…), o mais sensível aos aspectos problemáticos que a figura do “intelectual” veio rapidamente a adquirir (e que, em rigor, já pré-existiam à sua forma cristalizada no manifesto de Zola). O que Cortesão cumpre, nos textos que referi e na generalidade da sua Obra, é o mais nobre papel do intelectual, concebido, concebível, na linhagem inaugurada com o caso Dreyfus: o apóstolo da verdade pessoal de alcance universal, erguendo-se enquanto indivíduo para falar em nome da comum Humanidade, tomando para si o risco inerente ao exercício da liberdade e não esperando outra recompensa além do cumprimento da Justiça e dos valores sociais que ela serve. Na linguagem hoje em curso, podemos reconduzir o ideário de Cortesão – também o seareiro, mas sem dúvida o de Cortesão em particular – a uma concepção de democracia específica, “democracia cívica”5. A literatura sobre este entendimento de democracia não é particularmente extensa nem muito influente, mas também isso ajuda a compreender como foi possível, e continua a sê-lo, ficar a Obra de Cortesão como que num limbo, meio esquecida meio arrumada, demasiado arrumada. Com efeito, esta noção de democracia cívica desloca a diferenciação dos sistemas democráticos entre directos e representativos para um plano menos institucional e mais funcional, definindo a democraticidade, e pela negociação pelos cidadãos, de interesses, estilos de vida e valores através de (e dentro de) associações voluntárias (de vários tipos) típicas da sociedade civil (por oposição ao aparelho de Estado). Este último aspecto indica, desde logo, a concepção moderna de sociedade, triunfante após o colapso do Antigo Regime, mas de modo algum compromete a “democracia cívica” com estratégias revolucionárias. Em rigor, tal como este civismo forma cidadãos aptos a cumprir as suas responsabilidades, também as instituições formais demoliberais e Devo a chamada de atenção para o uso deste termo pelo Prof. Adriano Moreira ao Prof. Paulo Ferreira da Cunha (no âmbito da intervenção que proferiu na Faculdade de Direito, a 10 de Janeiro de 2009, durante as primeiras Jornadas de Teoria do Direito, Filosofia do Direito e Filosofia Social).

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republicanas, caras a Cortesão, devem contribuir para a formação destes cidadãos. Não carece de grande explicação a extrema dificuldade que esta prática democrática conhece em Portugal, mesmo após a morte de Cortesão: Em primeiro lugar, a escassa modernização social (analfabetismo, desde logo); Em segundo, a oposição que lhe é movida dos poderes instituídos sobre essa persistente pré-modernidade (Estado, Igreja, grupos de pressão organizados); Em terceiro lugar, a prolongada tradição da emigração portuguesa, que desde a Expansão subtraiu ao país os seus recursos humanos mais novos, mais dinâmicos e mais interessados em mudanças no statu quo; Em quarto lugar, por fim, a promoção do êxodo social português (Adérito Sedas Nunes), a partir do momento em que o padrão europeu de sociedade moderna se forma além dos Pirinéus, fixando no exterior um número crescente de portugueses que, com o tempo, se distanciam da mudança necessária em Portugal e passam a contribuir para a saída de indivíduos mais novos. A batalha de Jaime Cortesão e de todos os seareiros por um civismo moderno define-se, assim, como um auto-imposto exílio interior, em que o papel do intelectual é o do estrangeiro na sua própria terra, por força de o seu país natal ser hostil à sua condição específica de intelectual. Talvez por isso a consciência exílica dos intelectuais portugueses seja quase tão ténue como a das massas que emigraram desde há séculos. O exílio é uma consequência não apenas lógica, mas inclusivamente existencial da sua condição de intelectuais portugueses. O prestígio associado ao saber raro e à grande proximidade desses poucos intelectuais uns relativamente aos outros, não obstante as desavenças pessoais, familiares, políticas, etc. Mas deve-se igualmente à circunstância de a provação material ser experimentada por norma no estrangeiro, naqueles períodos de transição (geralmente na chegada ao destino) em que os laços de proximidade, tantas vezes com conterrâneos, ainda não se haviam restabelecido e, com eles, uma normalidade ao menos remediada. O exílio, especificamente moderno, na cultura portuguesa, não é o dos escritores românticos do século XIX. Esse, em grande medida, é parte do processo constitutivo da modernidade, processo esse que só o século XX, e concretamente a geração de 1915, veio consagrar – em grande medida pagando o preço por isso. O exílio moderno, isto é, a relação de afrontamento político entre um indivíduo e um Estado autoritário (centralizado,

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burocrático e acima da legalidade consagrada constitucionalmente) é a experiência definidora da prática cívica de Cortesão e dos seareiros. Mas não é o objecto privilegiado da sua auto-consciência, muito longe disso. Esse objecto é, sempre, a concepção positiva da sua missão política, a promoção intelectual do civismo na sociedade portuguesa.

António Sérgio, Jaime Cortesão e a necessidade seareira da concepção de uma História de Portugal JOAQUIM ROMERO MAGALHÃES Universidade de Coimbra

Para António Sérgio, que se quer sobretudo educador e reformador social, “escrever história é uma maneira de nos libertarmos do passado” – expressão tomada de Goethe, que muitas vezes citará. Nunca se dirá nem tomará como historiador, embora sempre tenha escrito sobre história. E avançado algumas hipóteses de trabalho que influenciaram decisivamente os seus contemporâneos1. Apoiado em Oliveira Martins, considera que “dois grandes factos avultam no estudo” da decadência peninsular, factos que podem dizer-se estruturantes: “A educação guerreira e a purificação; ou, por outras palavras, a falta de actividade produtora (agricultura, fabricação) e o isolamento sistemático”. E adiante, sabem-se “os resultados das conquistas: o abandono da agricultura, a incapacidade para o trabalho, a miséria e podridão por toda a parte; e na hora lúgubre da derrocada, o herói da Índia que se vendia às cédulas de D. Filipe, e esse trágico pic-nic da expedição contra Marrocos [com a perda de D. Sebastião em Alcácer-Quibir]”. Assim se pronuncia logo em 19132. Visão que se irá tornando mais completa e mais complexa. Mas, para Sérgio, a concepção do passado da nacionalidade passa, sempre, por uma visão crítica da estrutura do Estado e em especial por sublinhar o papel negativo que os grupos sociais dominantes exerceram. Ao começo a nobreza, depois os bacharéis e os burgueses enriquecidos serão apontados pela falta de intervenção no sentido do trabalho produtivo. “Em Portugal a nobreza (essencialmente cavaleira, porque educada na razia permanente contra o moiro), longe de acompanhar e dirigir o trabalho produtor, marasmava MAGALHÃES, Joaquim Antero Romero. Breve notícia da história económica em Portugal (1860-2005). Notas Económicas, n.º 30, Coimbra, Faculdade de Economia, Dezembro de 2009. 2 SÉRGIO, António. O problema da cultura e o isolamento dos povos peninsulares. Porto: Renascença Portuguesa, 1914, pp. 14 e 16-17. 1

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a terra e as indústrias com servidões parasitárias”. “Uma e outra vez os monarcas tentavam através de leis agrárias modificar a situação, mas nada resultava. Assim, os que deviam trabalhar as terras abandonavam-nas e o êxodo rural levava as energias para o tráfico marítimo, ofício a que aliás nos impulsava a situação geográfica do país, e depois as necessidades económicas da Europa setentrional”. Do triunfo da burguesia em 1383 vai resultar que se incremente e se torne predominante a classe dos letrados, “a um tempo um efeito e uma causa do parasitismo social”. E conclui sobre este período: “A nação, portanto, não chegou a educar-se na disciplina do trabalho, precocemente absorvida na especialidade mercantil das especulações de entreposto, intimamente ligada à obra da Cavalaria; este facto, a ruína da nobreza antiga, o agravamento da miséria agrícola, e o correlativo parasitismo bacharelesco e burocrático, são os caracteres maiorais do novo regime inaugurado pela revolução social de 1383-1385”. Assim estampou nas Considerações Histórico-Pedagógicas. Antepostas a um manual de instrução agrícola na escola primária3. À conquista de Ceuta, que será um tema fulcral poucos anos depois (em 1919), ainda não dá destaque. Mas a Portugal reconhece um papel central para “resolver a sua crise de subsistências e a crise comercial de toda a Europa”4. Todavia, com essa passagem além-mar, mais se empobrecia a agricultura, a que os filhos de lavradores fugiam. Enquanto os fidalgos se encostavam à munificência régia: sugando ao rei “o melhor de suas rendas em tenças, morgados, reguengos, jurisdições”. Cresciam os tratos dos escravos, dos produtos das ilhas (açúcar da Madeira) e africanos, em especial o ouro, o que permitia ao soberano gastar os seus fartos rendimentos. E depois da viagem do Gama, com o estabelecimento da Rota do Cabo, serão a pimenta e as riquezas orientais a ser trazidas para Lisboa. Com benefícios para outros, que não havia produtos fabricados em Portugal com que pagar as mercadorias entradas: “Faltava-nos a actividade produtora (agricultura, fabricação), verdadeira riqueza, estabilidade da economia e força educativa por excelência”5. E aqui se joga também o que entende por colonização: como já escrevia em 1913, colonizar “não é enviar armadas e soldados, mas colonos”. “Colonizar é exercer obra de colono, ocupar a terra, agricultá-la, fazê-la produzir pelo trabalho: nada disso nós soubemos. A nossa história indiana é do primeiro acto ao último um saque infame e horroroso, uma anarquia de Idem. Considerações Histórico-Pedagógicas. Antepostas a um manual de instrução agrícola na escola primária. Porto: Edição da Renascença Portuguesa, 1915, pp. 16, 18-20. 4 Ibidem, p. 22. 5 Ibidem, p. 28. 3

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pandemónio […]: matávamos a galinha dos ovos de oiro naquela estúpida ferocidade com que tratávamos o indígena”6. Muito mais tarde, e sempre no mesmo tom, será a vez do ouro do Brasil permitir que com ele se adquiram “os produtos da indústria alheia”7. Até quando duraria este sistema? Até que o Brasil se perdesse. “O Brasil perdeu-se, com efeito; – e então a sociedade, a morrer de fome, careceu de um abalo catastrófico que se não viesse desferido pela ditadura de Mousinho (1832), viria mais hoje mais amanhã de qualquer maneira semelhante”8. Mas não se seguiu um outro caminho: com os empréstimos externos da Regeneração, o mesmo vício afinal continuava. Mais uma vez o Estado tomava conta de tudo: “Este estadismo, ou costume de recorrer ao Estado para ele tratar da nossa vida, transformando-o em papá e alimentador de todos nós; este bacharelismo, ou educação pela palavra e pelo livro, que cultiva a memória e o palavrório, e não a iniciativa, o método, a perseverança, o domínio de nós mesmos e o dos instrumentos de trabalho; este burocratismo, ou fome universal do emprego público e correlativa incapacidade de ganhar a vida independente, que reduz os partidos a quadrilhas de assaltantes do Orçamento: estes três vícios nacionais são três aspectos do mesmo vício – o comunismo de Estado – desenvolvido por uma péssima educação de séculos resultante de uma corrupta educação económica. Da sua análise deve partir o educador na nossa terra”9. Visão da sociedade indispensável, porque como o Estado não se confunde com a Nação, “nenhuma reforma valerá senão a reforma do espírito público, saudavelmente orientado”10. Por isso a acentuação que põe na reforma educativa, pela educação cívica que não se cansará de propor11. Anos passados, regressado do Brasil a Portugal e a trabalhar como assalariado na Biblioteca Nacional dirigida por Cortesão12, já integrado na direcção da revista Seara Nova, é a vez de Sérgio redigir um resumo que pudesse servir de introdução histórica ao Guia de Portugal, dirigido por Raul Proença. Bem menos polemicamente, e não tratando com o mesmo empenho de mostrar as suas opiniões sobre as necessárias reformas a

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Ibidem, pp. 34-35. Ibidem, p. 42. Ibidem, pp. 43-44. Ibidem, p. 51. 10 Idem, O problema da cultura e o isolamento dos povos peninsulares, p. 30. 11 Idem. Educação cívica. Porto: Edição da Renascença Portuguesa, 1915. 12 PROENÇA, Raul. O caso da Biblioteca. Edição de Daniel Pires e José Carlos González. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1988, p. 62. 6 7

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empreender, todavia, produziu um estimulante Bosquejo da História de Portugal.13 Começando por breves referências a vestígios pré-históricos, entra sem demora na primeira época, que designa como “Incorporação e organização do território”. Esse primeiro período caracteriza-se “pela conquista do território aos Sarracenos, pela colonização sistemática e pela organização administrativa”. Para além da caracterização dos grupos sociais e de alguns acontecimentos políticos, Sérgio avança com uma ideia que lhe é cara: “A situação dos nossos portos foi o mais ponderoso factor geográfico na independência de Portugal”. Os estrangeiros que a eles concorrem contribuíam para que se evitasse a incorporação do território em Castela14. Da série notável dos monarcas da primeira dinastia, destaca-se como rei-modelo D. Dinis. O fomento do território, em especial a protecção à agricultura, assim o revelavam. Para vir a terminar com a crise de 1383-1385 e a solução dinástica consequente à revolta social que ocorreu. E aí emerge a consideração de que à burguesia dos mercadores do litoral se opunha a aristocracia proprietária do “hinterland”. A uns o apoio revolucionário a D. João, mestre de Avis, aos senhores rurais sustentar a herdeira de D. Fernando. “Aljubarrota, pois, consagra a independência de Portugal, a nova orientação da sociedade, a queda da maior parte da antiga aristocracia, substituída por gente nova”. Abre-se, pois, uma nova perspectiva para a segunda época, a da “Expansão ultramarina”. Será esta a grande época da história de Portugal15. A começar pelo escol que se reúne na corte do novo soberano, continuando pelos seus filhos a “ínclita geração, altos infantes”, de que falará Camões. E assim também se explica como em 1415 “(no intuito de se apoderarem do comércio que pelo Norte de África, vinha em caravanas até Marrocos, e para dar um escoadoiro, acaso também, à escuma de valdevinos que borbulhara da revolução), os burgueses induziram o rei a tomar a cidade de Ceuta […]”16. Assunto, sujeito a larga polémica, sobre que tinha publicado um famoso ensaio em 1920: “A conquista de Ceuta (Ensaio de interpretação não-romântica do texto de Azurara)”, ensaio determinante para se compreender o início da expansão portuguesa. Que tradicionalmente era visto como “o de uma operação guerreira de gentes d’algo, a brandir um

SÉRGIO, António. Bosquejo da História de Portugal. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1923, com segunda edição no mesmo ano. 14 Ibidem, p. 13. 15 Ibidem, p. 25. 16 Ibidem, pp. 25-26. 13

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golpe no islamita”17. E Sérgio prossegue com uma resenha do avanço das descobertas na costa africana. E logo destaca os factores económicos, e muito em especial a vinda de “muito oiro e escravos, que começaram a substituir os brancos nos misteres, pela metade meridional do país, com grave prejuízo da estabilidade da Grei”18. O grande ensejo de passar do Atlântico ao Índico vai concretizar-se com Bartolomeu Dias para depois Vasco da Gama chegar a Calecute. Abria-se a expansão pelo Oriente. Sérgio, neste Bosquejo, não procura tanto os efeitos de crítico aspirante a reformador social – como fizera nas Considerações Histórico-Pedagógicas. Nem por isso deixa de destacar: “Em terras longínquas, muito fora do alcance do monarca, calcula-se quanto os abusos seriam fáceis. Breve se lançaram, o Estado e os particulares, nas maiores perversões da via económica e moral. Comprávamos as mercadorias orientais com oiro e produtos da indústria alheia (da Itália, França, Alemanha, etc, etc.); simples intermediários, estiolava-se-nos assim a capacidade produtora, vivia de empréstimo a juros altos […]. Não tínhamos actividades industriais que pudessem desenvolver-se com esse comércio do Oriente”. E a conclusão impunha-se: “Espalhámo-nos assim por toda a Ásia, até às Molucas, numa prodigiosa e anárquica manifestação de energia”19. Pelo contrário, merecelhe boa referência a actividade colonizadora baseada na agricultura da cana e na produção de açúcar do Brasil20. Brasil que depois, no século XVIII, pelo ouro que, contraditoriamente, vai ser “a sorte grande”, o que “tornou desnecessária a reformação”. E, mais uma vez, se persiste no mesmo, com o parasitismo a dominar. Virá a destacar-se depois a tentativa de Pombal, “muitíssimo enérgico, mas tiranicíssimo, homem que se propôs realizar, mas deturpando-o, o pensamento reformador da elite portuguesa do seu tempo”21. Para encerrar, virá a terceira época: “Tentativas de remodelação interna”. Que se deveria seguir à independência do Brasil, forçosamente. Porém as reformas de Mouzinho da Silveira, que isso pretendiam, ficaram inconclusas, e sobre elas se veio a derramar a política fontista dos empréstimos externos, que bloquearam as necessárias transformações internas. Idem. Ensaios, t. I. Rio de Janeiro: Annuario do Brasil; Porto: Renascença Portuguesa, 1920, p. 283; em 1925, na revista Lusitânia, regressa ao assunto com “Repercussões de uma hipótese: Ceuta, as navegações e a génese de Portugal”, republicado em Ensaios, t. IV, Lisboa: Seara Nova, 1934. 18 Idem, Bosquejo da História de Portugal, p. 28. 19 Ibidem, pp. 33-34. 20 Ibidem, p. 36. 21 Ibidem, p. 50 17

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A República também não atacou nem “resolveu profundamente o problema básico da nacionalidade: abrir, na metrópole, empregos criados à actividade dos cidadãos pela modificação do regime agrário, pelo aproveitamento das forças hidráulicas, pela modernização dos métodos de trabalho, pela importação do trabalho científico, pelo estabelecimento de uma pedagogia nova, essencialmente activa e produtora”22. Havia que combater o romantismo delirante que se instalara em Portugal, com a incapacidade criadora que o acompanhava – ou causava. “Esse romantismo, tornando-nos incapazes de modificar o presente e preparar o futuro, impede-nos igualmente de apreciar inteligentemente o passado”. Assim se pronunciava pelo seu lado Raul Proença, acrescentando: “Vemos nas empresas dos nossos avós, em D. Henrique, em Nuno Álvares, nos infantes de Ceuta, simples aventuras do sensibilismo triunfante, do misticismo desgarrado, de intuições bergsonianas, vozes da Raça, purezas esfíngicas, poços artesianos de sensibilidade criadora”. Mas, contrapõe o seareiro, “todas essas empresas foram obras de organização meditada e metódica, dum elevado espírito prático, realizadas com todos os escrúpulos, todas as minúcias e todas as circunspecções da inteligência realista”23. Era esta a posição da Seara Nova sobre a História, afastando-se e combatendo vácuos arroubos líricos e invocações passadistas – mesmo quando embalados em belezas poéticas saudosistas ao jeito de Teixeira de Pascoaes, como ficaram plasmados em A Águia. No domínio da história política, cuja cronologia acompanhará, não deixa António Sérgio de dizer que D. Sebastião foi um “rapazola tresloucado, pateta e fanfarrão”, a quem “os fanáticos e lunáticos do tempo meteram na cabeça em prosa e verso o ser o paladino da fé católica, contra o protestante e o maometano”24. E é a jornada de África, a perdição do rei e do Reino em Alcácer-Quibir. Mas também a invenção do sebastianismo ou encobertismo, que Sérgio anota andar estafado “pela anemia ideológica das modernas letras nacionais”. Sobre os sebastianistas, diz que foram “uns patetas inofensivos, de quem os contemporâneos faziam troça”25. Como que já preparava o ataque ao irracionalismo e ao sentimentalismo patriótico que vai desferir pouco depois a pretexto da Exortação à Mocidade,

Ibidem, pp. 59-60. PROENÇA, Raul. Páginas de Política. 2.ª série (1921-24). Lisboa: Seara Nova, 1939, pp. 157-158. 24 SÉRGIO, António, Bosquejo da História de Portugal, p. 37. 25 Ibidem, p. 39. 22 23

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de Carlos Malheiro Dias. Que culmina com a primorosa Tréplica26. Polémica que se destinava, como tantas outras posições da Seara Nova, a proporcionar uma “lenta obra de educação colectiva”27. Será esta uma notável polémica, não sobre o D. Sebastião histórico mas sobre o sentimentalismo inconsequente que se estava a instalar na sociedade, em grande parte gerado pelas filosofias anti-racionalistas, mas também pelos saudosismos políticos de importação, nomeadamente integralistas. Findava assim a polémica, sem que Sérgio depois respondesse a outros ataques com que os integralistas e quejandos continuaram a alvejá-lo. De “insigne trapalhão” o qualificará mesmo Manuel Múrias. Do livrinho sobre Camões e D. Sebastião, escreve que não passava de “um enxovedo de dispautérios, com refinada má fé acolchetados a textos nem sempre trasladados fielmente”. Para além de “afirmações descabidas”, havia que contar com a sua “ignorância habitual” e com o seu “desvairamento crítico”28. Era assim a linguagem de ataque dos monárquicos integralistas. Estes e todos os demais monárquicos anti-liberais, partidários do regresso ao absolutismo, não perdoavam a quantos entendiam caminhar para a Democracia. Essa a questão. Tudo o que pusesse em causa reis e príncipes naturalmente para eles era condenável e devia ser combatido. Mais próximo de uma polémica com um tema histórico é a que travou sobre o Seiscentismo. Embora esta tivesse ficado interrompida pela morte de António Sardinha, um dos contendores29. Polémicas laterais ao objectivo central, que era o de provocar a sociedade para que se fizessem as reformas indispensáveis: na economia e na educação. “Reformas económicas e pedagógicas, concatenadas, entrelaçadas entre si como fios de um tecido

Cf. SÉRGIO, António. O Desejado. Depoimentos de contemporâneos de D. Sebastião sobre êste mesmo rei e sua jornada de África. Precedidos de uma Carta-Prefácio a Carlos Malheiro Dias. Paris/Lisboa: Livrarias Aillaud e Bertrand, 1924; DIAS, Carlos Malheiro. Exortação à Mocidade. Nova edição, precedida de uma resposta à carta-prefácio do sr. António Sérgio no seu livro “O Desejado”. Lisboa: Portugal/Brasil, 1925; SÉRGIO, António. Camões e D. Sebastião. Rudimentar organização de documentos para o estudo de um problema curioso. Paris/Lisboa: Livrarias Aillaud e Bertrand, 1925; SÉRGIO, António. Tréplica a Carlos Malheiro Dias sobre a questão do Desejado. Lisboa: Seara Nova, 1925. 27 REYS, Luís da Câmara. Raul Proença. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1985, p. 17. 28 MÚRIAS, Manuel. A política de África de El-Rei D. Sebastião. Lisboa: Nação Portuguesa, 1926, pp. 63, 64 e 68. 29 Idem. O Seiscentismo em Portugal. Lisboa, 1923; SARDINHA, António. O Século XVII. Lusitânia. Revista de Estudos Portugueses. Lisboa, vol. II, fasc. I, Setembro de 1924; SÉRGIO, António. O Seiscentismo. Reprodução do artigo em que, segundo dizem os que me odeiam, insultei um morto e falsifiquei textos. Lisboa: Seara Nova, 1926. 26

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único”30. E isto sempre “subordinando aos valores eternos da liberdade e da moral todos os problemas, desde os grandes casos de consciência individual ou colectiva aos mais ténues incidentes da vida social”31. Em 1929 sairá, em tradução castelhana, a Historia de Portugal na Editora Labor, de Barcelona. Na sua quase totalidade, segue muito de perto o Bosquejo de 1923. O que mostra que as ideias principais, bem como o seu desenvolvimento e articulação se encontravam anteriormente definidos. Será como que o ponto de chegada destes anos primeiros de um labor permanente em prol das reformas em Portugal. Em que a história ocupa um posição central, como instrumento intelectual de actuação sobre a sociedade. História porém – para Sérgio – sem investigação de arquivo – mera reflexão sobre assuntos que à história investigativa depreciativamente ficavam entregues. E muitas vezes dita apenas de erudição arquivística. Pelo contrário, o que Sérgio propunha era, em palavras de Jaime Cortesão trinta anos mais tarde, “um balanço crítico, do passado, uma regra moral para o futuro”32. E essa seria a utilidade – e necessidade – que os seareiros atribuíam à História de Portugal. Mas essa outra história, investigativa, também faz a sua entrada na Seara Nova: o que se vai dever à descoberta da pesquisa histórica por Jaime Cortesão, que a começa a praticar apenas nos primeiros anos da década de 1920.33 Não, em primeiro lugar, para sustentar a sua actuação cívica e política, mas logo como historiador que se lança numa empenhada carreira, em que pretende ver resolvidos alguns problemas fulcrais da historiografia, nomeadamente a crítica das fontes. A viragem dar-se-á por 1922, quando SÉRGIO, António. As duas políticas nacionais. In: ______. Ensaios, t. II. Lisboa: Seara Nova, 1929, p. 71. 31 REYS, Luís da Câmara, Raul Proença, p. 17. 32 SÉRGIO, António. Naufrágios e combates no mar, vol. II. Lisboa: Edição do Autor distribuída por Livros Horizonte, Limitada, 1959, p. 281. 33 MAGALHÃES, Joaquim Antero Romero. No trilho de uma ambição: o poeta-historiador Jaime Cortesão (1910-1927). Cidadania e História. Em homenagem a Jaime Cortesão (Cadernos da Revista de História Económica e Social, n.os 6-7). Lisboa: Sá da Costa, 1985, pp. 27-48; lista dos principais trabalhos fixada pelo Autor em 1960: CORTESÃO, Jaime. O Infante de Sagres. 4.ª ed. Porto: Edições Marânus, 1960, pp. 4-8; ÁGUAS, Neves. Bibliografia de Jaime Cortesão. Contribuição para um inventário completo. I Parte. Portugal. Lisboa: Editora Arcádia, 1962; Jaime Cortesão, Raul Proença. Catálogo da Exposição Comemorativa do Primeiro Centenário (1884-1984). Lisboa: Biblioteca Nacional, 1985; SARAIVA, Ricardo. Jaime Cortesão. Subsídios para a sua biografia. Lisboa: Seara Nova, 1953; LOPES, Óscar. Jaime Cortesão. Lisboa: Editora Arcádia, s.d.; posteriormente, o texto do prefácio foi revisto pelo autor: LOPES, Óscar. Jaime Cortesão. 1884-1960. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1985. 30

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colabora na História da Colonização Portuguesa do Brasil, dirigida por Carlos Malheiro Dias. Dessa colaboração, resulta ainda o escrito que sairá em volume autonomo, A expedição de Pedro Álvares Cabral e o Descobrimento do Brasil.34 Por então, também publicará, na Lusitânia, Revista de Estudos Portugueses, um artigo que ficará a marcar a sua posição quanto às fontes e seu tratamento: “Do sigilo nacional sobre os descobrimentos”. A revista Seara Nova – a cuja direcção Cortesão pertencia – estará atenta a este novo rumo e logo em 1922 lhe publicará uma comunicação à Academia das Ciências, em que os princípios seareiros se destacam na interpretação histórica. Em especial o carácter cosmopolita dos descobrimentos, que ia em favor da tese do isolamento peninsular como sendo um dos motivos que provocavam os males portugueses. Cosmopolitismo a que era preciso voltar, em luta pela modernização do País. Que sem essa abertura não seria possível35. Em que Cortesão significativamente cita Sérgio – que ainda não pertencia ao grupo seareiro: “O valor, pois, do trabalho de António Sérgio principalmente consiste em trazer um novo e fortíssimo argumento à tese, hoje em pleno triunfo, de que os descobrimentos portugueses foram realizados por uma elite de pensamento e acção, na consciência do seu interesse cosmopolita, servida não apenas pela criadora audácia, mas pelas indispensáveis qualidades de método e organização”36. Que a tese tivesse tido uma aceitação geral era mais um desejo que uma constatação da realidade. Que ia bem no sentido da doutrinação que os directores da Seara Nova empreendiam. Em 1926, ainda sairá um artigo seu na Biblioteca Nacional sobre o Tratado de Tordesilhas e, de antes de 1930, é a apresentação de Portugal na Exposição Internacional de Antuérpia, texto de síntese

Cf. CORTESÃO, Jaime. A expedição de Pedro Álvares Cabral e o Descobrimento do Brasil. Lisboa: Aillaud e Bertrand, 1922; Idem, Do sigilo nacional sobre os descobrimentos. Lusitânia. Revista de Estudos Portugueses, fasc. I, Janeiro de 1924; Idem, A tomada e ocupação de Ceuta. Boletim da Agência Geral das Colónias, Lisboa, n.o 5, Novembro de 1925, e mais dois outros artigos, também sob a epígrafe geral de “África nostra”, nos n.os 1 e 10 do mesmo Boletim. 35 AMARO, António Rafael. A Seara Nova nos anos vinte e trinta (1921-1939). Mémoria, Cultura e Poder. Viseu: Universidade Católica Portuguesa, 1995, pp. 66-67; vd. CARDIA, Sottomayor. Para a compreensão do ideário do primeiro grupo seareiro. In: ______ (org.). Seara Nova. Antologia. Pela reforma da República (1), 1921-1926. Lisboa: Seara Nova, 1971; FERREIRA, David. O chamado “Grupo da Biblioteca”. In: Jaime Cortesão, Raul Proença. Catálogo da Exposição Comemorativa do Primeiro Centenário (1884-1984), pp. 305-313. 36 Cf. CARDIA, Sottomayor (org.). Seara Nova. Antologia. Pela reforma da República (2), 1921-1926. Lisboa: Seara Nova, 1972, p. 336. 34

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intitulado L’Expansion des Portugais dans l’Histoire de la Civilisation37. Daí abrirá para novos desenvolvimentos nos capítulos de história da expansão, com que colabora na História de Portugal de Barcelos. Deste mesmo ano será o escrito que é o culminar desta primeira fase da obra de Cortesão, “uma das suas obras-primas e um dos momentos cimeiros da historiografia portuguesa” do século XX, Os Factores Democráticos na Formação de Portugal.38 Assunto sobre o qual tinha trabalhado algum tempo antes, pelo menos desde 1928, e sobre que publicou algumas reflexões na Seara Nova, que prenunciam o texto final39. Cortesão vai procurar no percurso da ocupação do território e da articulação dos modos de vida da população das várias regiões a emergência da nacionalidade. A comunidade constituía-se a partir dessa junção de proveniências diversas, contando ainda com alguma colonização estrangeira. Partindo de um estudo que já se observa aprofundado nas obras dos geógrafos franceses, em especial de Jean Brunhes. E, como sempre fará, procurando nas Ciências Sociais teorias que servissem o seu propósito. Buscando nos geógrafos, nos sociólogos e nos economistas apoios para encontrar as razões que permitissem explicar a génese da Nação. Deixam de se procurar motivos vários, mais ou menos intemporais e imaginários – e sempre com impossibilidade de se provar a sua adequação – para se avançar no conhecimento da economia e da administração do território. Ponto central para explicar a afirmação nacional, no século XIV, a “profunda renovação económica do País”. Era a resposta à procura externa de vinhos e sal, de azeite e de frutas. Assinalava-se ainda a exportação de mel, cera, coiros, peles e lã. E a junção da economia do interior com a do litoral vai efectuar-se. “No interior a faina agrícola e pastoril; na costa a exploração do sal e a pesca que se estendia do nosso litoral ao estrangeiro”.

Em português, CORTESÃO, Jaime. A Expansão dos Portugueses na História da Civilização. Lisboa: Livros Horizonte, 1983. 38 CORTESÃO, Jaime. Os Factores Democráticos na Formação de Portugal. In: MONTALVOR, Luiz de (coord.). História do Regímen Republicano em Portugal. Lisboa: Ática, 19301932; GODINHO, Vitorino Magalhães. Presença de Jaime Cortesão na historiografia portuguesa. In: CORTESÃO, Jaime. Os Factores Democráticos na Formação de Portugal. Lisboa: Livros Horizonte, 1974, p. XIII. 39 Publicados em Os Factores Democráticos na Formação de Portugal (na edição das obras completas): artigos saídos na Seara Nova, datados de Paris, 20 de Outubro de 1928: “A formação democrática de Portugal”) e Fevereiro de 1930: “O problema das relações entre a Geografia e a autonomia política de Portugal”, cf. ÁGUAS, Neves, Bibliografia de Jaime Cortesão, pp. 112-113. 37

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Estava assim “criado o novo género de vida nacional: o comércio marítimo à distância, com base na agricultura”40. “Em Portugal é do próprio movimento das comunas que vai nascer o conceito supremo da Nação; e apenas desaparecidas as causas que entravaram aqui, mais ainda do que no resto da Europa, o desenvolvimento das classes populares, os princípios democráticos vão retomar a sua marcha até o advento da República”. Procurava assim aquilo que se poderia designar por “concepção democrática da história portuguesa?” É possível. “Mas em qualquer ciência o que importa é que as suas concepções sejam… científicas”41. Relevo especial será dado à revolução de 1383: “Portugal entra na maioridade; na sua política interior dominam as tendências laicistas e civilistas, condição essencial para a dignificação e liberdade dos povos; e o Estado atinge a forma de organização que lhe permite resolver o grande problema da expansão da Europa e do conhecimento do planeta.”42 Por aqui se ficou a tentativa de uma História de Portugal de concepção seareira. Necessária para fundamentar as propostas políticas que o grupo defendia. Mas a situação mudara: aquando da edição catalã da sua Historia de Portugal, já António Sérgio se tinha exilado em Paris – longo exílio que durará de 1926 a 1933. E aos temas históricos voltará depois, numa segunda fase do seu interesse pela história, de 1941 – com a frustrada História de Portugal – a 1945 – com o prefácio à Crónica de D. João I, de Fernão Lopes43. Será então mais reflexão histórica, menos crítica polémica, menos esforço interpretativo contemporâneo com vista a reformas culturais e sociais que se sabiam inatingíveis enquanto durasse o Estado Novo. Será então a tentativa de compreender e explicar o passado, não a de se tirarem lições imediatas para o presente. Ao passo que se intenta fundamentar a actividade educadora sobre a sociedade que se intenta reformar. Surgido em 1921, o grupo dos seareiros depressa abriu caminho como movimento de ideias, influenciando uma que outra vez o poder político. Empenhou-se continuadamente na manutenção do regime republicano e das liberdades públicas. Por isso se afastou de golpes militares, e combateu a situação criada pelo 28 de Maio. E depois irão parte dos seus membros conspirar e intervir de armas na mão na revolução do 3 a 7 de Fevereiro de 1927 – contra a ditadura militar – e foi o caso de Cortesão. Alguns ter-se-ão 42 43 40 41

CORTESÃO, Jaime, Os Factores Democráticos na Formação de Portugal, pp. 89-91. Ibidem, pp. 14-15. Ibidem, p. 157. MARQUES, A. H. de Oliveira. António Sérgio, Historiador (Despretenciosos informes). O Tempo e o Modo. Lisboa, Morais Editora, n.os 69-70, 1969, pp. 303-310.

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exilado em data próxima do pronunciamento militar – acontecerá com Sérgio, que parte ao ser prevenido de que seria preso44. Outros serão demitidos e perseguidos pelas tropas, pelos monárquicos e pelos clericais que a eles se juntaram. Como bem se evidencia nos Panfletos redigidos por Raul Proença, ainda em 192645. Uns rumam ao exílio, outros são presos. Cortesão passará à Espanha e à França e, em 1940, será mesmo banido da Pátria quando a ela pretender regressar. A Seara Nova não manterá as mesmas preocupações nos anos que se seguem: no centro da sua doutrinação estará a resistência ao Estado Novo46. Sérgio viverá no exílio interior, Cortesão no Brasil. E assim a história seareira ficaria, como talvez escrevesse José Rodrigues Miguéis, como uma das “capelas imperfeitas” do grupo47. Percursos e pontos de chegada de cada um deles fixam-se em 1929/1930 na História de Portugal, de António Sérgio, e em Os Factores Democráticos na Formação de Portugal, de Jaime Cortesão – título que é todo um programa. Pontos de chegada – ao mesmo tempo pontos de partida48. Quer Sérgio quer Cortesão vêem na história um meio de aplicação das suas ideias à interpretação da realidade social do País e um modo de pensar servindo para fundamentar a actuação reformadora do Portugal do seu tempo. Porém, enquanto Sérgio procura encontrar alavancas para uma indispensável reforma nacional, começando pela produção e distribuição da riqueza, Cortesão sobretudo busca os fundamentos da soberania popular e as suas manifestações no passado. Ambos com o mesmo objectivo de promover a emergência de outra mentalidade, todavia com duas abordagens diferentes: para Sérgio havia sobretudo que encontrar a elite que guiasse as reformas, para Cortesão havia ainda que bem perceber os mecanismos que conduziam às manifestações populares e às conquistas democráticas que sustentavam a expressão da Nação. Duas posições que o exílio vai aproximar ainda mais. SILVEIRA, António da. Recordando António Sérgio com forçados excertos autobiográficos e diversos comentários inactuais. In: AA.VV. Homenagem a António Sérgio. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1976, p. 15. 45 PROENÇA, Raul. Panfletos. A Ditadura Militar. História e Análise de um Crime. Lisboa, Seara Nova, Novembro de 1926; Idem, Panfletos. Ainda a Ditadura Militar. Lisboa, Seara Nova, Dezembro de 1926. 46 AMARO, António Rafael. A Seara Nova e a resistência cultural e ideológica à ditadura e ao Estado Novo (1826-1939). Revista de História das Ideias, Coimbra, Faculdade de Letras, vol. 17, 1995. 47 MIGUÉIS, José Rodrigues. Uma flor na campa de Raul Proença. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1985, p. 29. Era um dos vários grupos saídos do convívio no gabinete de Jaime Cortesão na Biblioteca Nacional: FERREIRA, David, O chamado “Grupo da Biblioteca”, pp. 305-313. 48 Cf. LOPES, Óscar, Jaime Cortesão. 1884-1960, p. 22. 44

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Embora Cortesão, vindo do republicanismo, e Sérgio, proveniente do liberalismo monárquico, desde cedo tenham convergido na defesa do regime democrático. Porque a Seara Nova, em que um certo aristocratismo de gente bem-pensante parece evidente, vai precisamente procurar desenvolver a crítica racional, racionalidade que até na política deveria imperar. Porque o propósito seareiro é desenvolver as elites intelectuais como veículos da transformação das mentalidades e por aí a melhoria na governação. Nemo nos conducit (ninguém nos conduz) era a desculpa para que tudo funcionasse mal. A que Sérgio contrapunha que com profundas reformas, em todos os aspectos (e não só na educação), se conseguiria transformar a negativa em afirmativa: Ducit (conduz). Era essa a intenção propagandeada pela Seara Nova para que Portugal pudesse avançar num novo rumo. O que Sérgio propõe pode resumir-se, nas suas próprias palavras, na “modificação do regime agrário, pelo aproveitamento das forças hidráulicas, pela modernização dos métodos de trabalho, pela importação do trabalho científico, pelo estabelecimento de uma pedagogia nova, essencialmente activa e produtora”49. Por outras palavras, e como Cortesão já em 1912 escrevera, era preciso diligências para que se criasse em Portugal “uma elite consciente e uma opinião pública esclarecida”50. Elite que influenciasse e assumisse posições convergentes e consonantes com a opinião pública. Que lhe competia orientar. E nisso estariam conformes o ensaísta Sérgio e o historiador Cortesão. Cedo se pode detectar essa proximidade entre Sérgio e Cortesão, embora separados por muitos aspectos dos seus trabalhos e mesmo propósitos, mas que uma forte amizade ligava. Logo em 1909, Cortesão terá reparado nas Notas sobre os Sonetos e as Tendencias Geraes da Philosophia de Anthero de Quental51, antes mesmo de se juntarem na colaboração de A Águia, e nos trabalhos da Renascença Portuguesa. Tão cedo como em 1913, a Jaime Cortesão dedica Sérgio um dos seus escritos – um ensaio ainda sem essa designação: O problema da cultura e o isolamento dos povos peninsulares52. Amizade que se manterá por uma vida, mesmo até ao seu final: depois da Biblioteca SÉRGIO, António, Bosquejo da História de Portugal, pp. 59-60. CORTESÃO, Jaime. Prefácio a modo de memórias. In: ______. O infante de Sagres, ed. cit. 51 SÉRGIO, António. Notas sobre os Sonetos e as Tendencias Geraes da Philosophia de Anthero de Quental. Lisboa: Livraria Ferreira, 1909; Idem, Sobre as correntes inclusas na “Renascença Portuguesa” e seu destino. In: Jaime Cortesão, Raul Proença. Catálogo da Exposição Comemorativa do Primeiro Centenário (1884-1984), pp. 53-57. 52 Cf. SÉRGIO, António. O problema da cultura e o isolamento dos povos peninsulares. Porto: Renascença Portuguesa, 1914. 49 50

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Nacional, depois da direcção da Seara Nova, depois do exílio, ainda juntos passam pelo cárcere da polícia política em 195853. Quase em simultâneo chegou para ambos o termo do exaltante combate da intervenção cívica e política. O remate aos sergianos Naufrágios e combates no mar, de 1959, terá de ser redigido por Jaime Cortesão: “Sobre as viagens da carreira da Índia”. Sérgio encontrava-se profundamente deprimido, “doente da vontade”, como ele próprio escreveu54 – e não mais publicaria, duvidando mesmo da validade do que fizera. Cortesão dá-lo-ia ainda como “educador máximo do seu tempo. Inteiramente dedicado à cultura e iniciação humanística do povo”55. Porém, Sérgio como que desistira. E a Cortesão, sempre animoso, restavam apenas alguns meses de vida: faleceria a 14 de Agosto de 1960.

BAPTISTA, Jacinto. Jaime Cortesão, Raul Proença: Idealistas no mundo real. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1990, pp. 24-25. 54 Idem. António Sérgio Enciclopedista. Lisboa: Edições Colibri, 1997, pp. 36-37; FERNANDES, Henrique J. de Barahona. Da psicologia para a epistemologia – o humanismo criativo de António Sérgio. In: AA.VV. Homenagem a António Sérgio, pp. 89-90. 55 SÉRGIO, António, Naufrágios e combates no mar, vol. II, p. 281. 53

A obra de Jaime Cortesão no contexto da historiografia portuguesa do seu tempo JOSÉ MANUEL GARCIA Gabinete de Estudos Olisiponenses

No conjunto da polifacetada obra de Jaime Cortesão, o campo da História foi aquele em que este autor mais se notabilizou, facto que nos levou a preparar aqui um rápido bosquejo das suas produções mais importantes nesse domínio e enquadrá-las no contexto da historiografia portuguesa do seu tempo1. É nesse sentido que iremos lembrar os nomes das personalidades interessadas por História que levaram a cabo trabalhos de características diversificadas, para que possam ser relacionados de alguma forma com uma figura da dimensão de Jaime Cortesão, que não estava isolada da realidade que o rodeava. Os anos limite em que Jaime Cortesão desenvolveu a sua actividade de historiador foram marcados pela realização de importantes comemorações em Portugal e no Brasil, como são a que em 1922 lembrou o primeiro centenário da independência do Brasil e a que em 1960 evocou os quinhentos anos da morte do Infante D. Henrique, momentos que são particularmente simbólicos e contrastantes nos seus significados, na medida em que o primeiro afirma um resultado da Expansão Portuguesa e o segundo o seu início. Pelo meio realizaram-se outras comemorações, de que aqui nos importa assinalar as que em 1940 celebraram os centenários da Fundação e Restauração de Portugal; em 1950, os duzentos anos do tratado de Madrid e, em 1954, os quatrocentos anos da fundação da cidade de São Paulo. Ao perspectivarmos a produção historiográfica de Jaime Cortesão, comecemos por nos situar em Junho de 1960, quando o nosso autor, com os Sobre a vida e a obra de Jaime Cortesão, veja-se nomeadamente o que escrevemos em O essencial sobre Jaime Cortesão. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987, onde reunimos a principal bibliografia do e sobre o autor. Para uma abordagem da historiografia portuguesa contemporânea sobre os Descobrimentos, veja-se o breve panorama que traçámos em Ao encontro dos Descobrimentos. Lisboa: Editorial Presença, 1994, pp. 257-262.

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seus 76 anos e a consciência de viver uma “idade crepuscular”, não podia prever que já lhe restava pouco tempo de vida, pois iria passar para o mundo dos imortais em 24 de Agosto de 1960. A circunstância de nos fixarmos nesse mês e ano resulta do facto de ter sido então que Jaime Cortesão viu sair dos prelos a quarta edição da sua peça de teatro O Infante de Sagres, que havia sido impressa pela primeira vez em 1916. Esta edição serviu-lhe de pretexto para aí apresentar um “Prefácio a modo de memórias”, em que lembrava as suas origens de historiador e apresentava um balanço (incompleto) dos “trabalhos que têm algum significado no desenvolvimento do seu pensamento e obra”. Com a organização desta bibliografia, podia-se ver quanto caminho havia percorrido naqueles quarenta e quatro anos compreendidos entre 1916 e 1960. Neste último ano, Jaime Cortesão continuava a sentir a falta de liberdade resultante da ordem repressiva que se estabelecera na sequência da ditadura imposta em 1926, uma década depois da primeira edição de O Infante de Sagres, através da qual revelava um grande interesse pela História, que já se vinha a anunciar, aliás, desde 1912, altura em que foi professor de História e de História da Literatura no Liceu de Rodrigues de Freitas, no Porto. Ainda que, nesse tempo, ainda não tivesse escrito trabalhos de história, é possível rastrear algumas das suas ideias sobre a matéria em 1912 e 1913, através de iniciativas e textos com ela relacionados, registados em A Vida Portuguesa2. Em 1960, Jaime Cortesão recordou os apoios de historiadores que tivera para escrever O Infante de Sagres, pois, na nota final, agradece a ajuda que recebeu de Pedro de Azevedo que lhe “facultou e auxiliou a leitura de preciosos documentos coevos”, e a colaboração de Luciano Pereira da Silva, Joaquim de Vasconcelos e António de Vasconcelos. Enquanto Jaime Cortesão foi protagonista da “Renascença Portuguesa”, estabeleceu relações com historiadores que estiveram ligados através desse movimento cultural ao nascimento da Faculdade de Letras do Porto, como é o caso de Hernâni Cidade, Damião Peres e Newton de Macedo. Depois do fim da Primeira Guerra Mundial e de se ter oposto à ditadura de Sidónio Pais, Jaime Cortesão estabeleceu-se em Lisboa, onde, em 11 de Abril de 1919, foi nomeado director da Biblioteca Nacional, cargo em que se manteve até dele ser demitido em 16 de Fevereiro de 1927, na sequência da sua activa Sobre esta matéria e os primeiros tempos da actividade historiográfica de Jaime Cortesão, cf. MAGALHÃES, Joaquim Romero de. No trilho de uma ambição: o poetahistoriador Jaime Cortesão (1910-1927). Cadernos da revista de história económica e social, n.os 6-7, Lisboa, 1985, pp. 27-48; CARVALHO, Filipe Nunes de. Jaime Cortesão, historiador dos Descobrimentos: primeiros passos. Mare liberum, n.o 4, Lisboa, 1992, pp. 9-25; e TRAVESSA, Elisa Neves. Jaime Cortesão: política, história e cidadania (18841940). Porto: Edições Asa, 2004.

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participação na revolta que poucos dias antes tentara acabar com a ditadura. Enquanto Jaime Cortesão esteve à frente dessa instituição, animou o chamado “Grupo da Biblioteca”, o qual em parte estava relacionado com a “Renascença Portuguesa” e incluía figuras eminentes da cultura portuguesa, de que em 1960 recordou nomes como os de Luciano Pereira da Silva, David Lopes, Álvaro de Castro, Gomes da Costa, Machado dos Santos, Raul Proença, Álvaro Pinto, António Sérgio, Aquilino Ribeiro, Raul Brandão, Reinaldo dos Santos, Afonso Lopes Vieira, José de Figueiredo, José Leite de Vasconcelos, José Maria Rodrigues, Agostinho de Campos, Carlos Malheiro Dias, Mário de Azevedo Gomes, Luís da Câmara Reis e Aires de Ornelas, tendo estabelecido com alguns deles redes de solidariedade que se mantiveram para lá de 1927. A actividade historiográfica de Jaime Cortesão divide-se em dois períodos: o primeiro demarca-se entre 1921 e 1940 e o segundo entre 1940 e 1960. O primeiro reparte-se por sua vez em duas fases: uma entre 1921 e 1926, o tempo da Primeira República, e a outra entre 1927 e 1940, o tempo do exílio em França e Espanha. Quanto ao segundo período, iniciou-se em 1940, quando foi “banido” para o Brasil, tendo um curto epílogo entre 1957 e 1960, na sequência do seu regresso a Portugal. Jaime Cortesão teve a consciência da importância cultural e cívica de que se revestia o conhecimento histórico, por ser um factor que contribuía para o progresso da grei, sendo assim o historicismo uma constante da formação da sua personalidade. A obra historiográfica de Jaime Cortesão culminou um conjunto de trabalhos eruditos que haviam sido apresentados desde as últimas décadas do século XIX e os primeiros vinte anos do século XX por figuras de entre as quais podemos destacar Alberto Sampaio, Anselmo Braamcamp Freire, António Baião, António de Vasconcelos, Baldaque da Silva, Brás de Oliveira, Carolina Michaelis de Vasconcelos, Costa Lobo, David Lopes, Francisco Maria Esteves Pereira, Gabriel Pereira, Gama Barros, Henrique Lopes de Mendonça, Jacinto Inácio Brito Rebelo, João Lúcio de Azevedo, Joaquim Bensaúde, Joaquim de Vasconcelos, José Leite de Vasconcelos, José Ramos Coelho, Latino Coelho, Luciano Cordeiro, Luciano Pereira da Silva, Maximiniano Lemos, Oliveira Martins, Pedro de Azevedo, Rebelo da Silva, Sousa Viterbo, Teixeira de Aragão, Teófilo Braga e Victor Ribeiro.

Período 1921-1940 Jaime Cortesão surgiu como historiador quando lhe foi solicitada a elaboração de um estudo, visando o melhor conhecimento da viagem que descobriu o Brasil, território que visitou, em Agosto de 1922, integrado na

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comitiva presidencial portuguesa que aí fora participar na celebração do primeiro centenário da independência deste Estado. Com efeito, a estreia historiográfica de Jaime Cortesão expressou-se através da edição do livro A expedição de Pedro Álvares Cabral e o descobrimento do Brasil, que foi publicado em 19223 e reeditado por nós em 1994. O texto desta obra começou a ser escrito em 1921 – um ano marcado pela criação da Seara Nova que o autor ajudou a fundar –, sendo seu propósito inicial integrá-lo na monumental História da Colonização Portuguesa do Brasil, que estava a ser planeada, desde 1919, sob a direcção e coordenação de Carlos Malheiro Dias, coordenação carto­gráfica de Ernesto Vasconcelos e direcção artística de Roque Gameiro. A grande extensão do texto original de Jaime Cortesão levou a que este fosse publicado autonomamente no referido volume, saindo uma sua versão com menos texto no volume II da História da Colonização Portuguesa do Brasil, com o título “A expedição de Cabral: 1500”.4 A prosa de Jaime Cortesão nos domínios da História revelou, desde o primeiro momento, o apurado sentido estético do artista que era, sabendo-o conjugar com um hábil e sagaz domínio da crítica histórica e da síntese. Até 1940, o autor revelou interesse por múltiplos aspectos da História da Expansão Portuguesa, tendo-lhe merecido particular atenção o período henriquino e a problemática do descobrimento do continente americano, sem esquecer as raízes de Portugal e a sua Idade Média. A maior parte dos estudos então publicados está inserida em obras colectivas ou revistas, pois apenas escreveu três volumes, sendo o de maior fôlego a já mencionada A expedição de Pedro Álvares Cabral e o descobrimento do Brasil, pois os outros dois são de reduzida extensão: Le traité de Tordesillas et la découverte de l’Amérique5 (também editado nas Atti del XXII congresso internazionale degli Americanisti6 – Roma, Setembro de 1926) e L’Expansion des portugais dans l’histoire de la civilisation.7 Dos restantes trabalhos de Jaime Cortesão, nas segunda e terceira décadas do século XX, podem realçar -se os que estão inseridos em CORTESÃO, Jaime. A expedição de Pedro Álvares Cabral e o descobrimento do Brasil. Lisboa: Livraria Aillaud e Bertrand, 1922, 326 p. 4 AA.VV. História da Colonização Portuguesa do Brasil. Porto: Litografia Nacional, 1923, pp. 1-39. 5 CORTESÃO, Jaime. Le traité de Tordesillas et la découverte de l’Amérique. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1926, 50 p. 6 AA.VV. Atti del XXII congresso internazionale degli Americanisti, vol. II. Roma: Stab. tip. R. Garroni, 1928, pp. 649-683. 7 CORTESÃO, Jaime. L’Expansion des portugais dans l’histoire de la civilisation. (Para a Exposition Internationale d’Anvers) Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1930, 76 p. 3

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grandes obras colectivas sobre história publicados em Portugal nessa conjuntura, sendo a primeira aquela a que já atrás nos referimos com o título História da Colonização Portuguesa do Brasil, e a segunda a História do Regime Republicano em Portugal8, onde apresentou um vasto e sugestivo ensaio intitulado “Os factores democráticos na formação de Portugal”9. Depois há a destacar a sua participação na redacção da História de Portugal10, dirigida por Damião Peres, onde escreveu dez capítulos, tratando variadíssimos aspectos da Expansão Portuguesa, desde a sua génese até aos finais do Antigo Regime. As centenas de páginas aí publicadas constituem um vasto trabalho que se pode designar genericamente como sendo uma História da Expansão Portuguesa, título que lhe atribuímos ao reeditar essas páginas em 1993. Este trabalho de Jaime Cortesão foi completado por um outro que intitulou Influência dos Descobrimentos dos Portugueses na História da Civilização, de que uma primeira parte foi integrada no volume IV dessa História de Portugal, publicado em 1932 (pp. 179-240), enquanto uma sua segunda parte ficou manuscrita, pelo que não chegou a ser incluída no volume V, tendo as duas referidas partes sido reunidas num volume que editámos em 1993, com o referido título de Influência dos Descobrimentos dos Portugueses na História da Civilização. A última das obras colectivas em que Jaime Cortesão participou foi a História da Expansão Portuguesa no Mundo11, onde escreveu os capítulos “Relações entre a geografia e a história do Brasil”12 e “Expansão territorial e povoamento do Brasil”13. Os outros estudos de Jaime Cortesão publicados até 1940 apresentamse sob a forma de artigos que, sendo em número relativamente reduzido, podem aqui ser proveitosamente enumerados. Os primeiros artigos saíram enquanto esteve em Portugal: “Lisboa e Florença: a expedição de Pedro Álvares Cabral e a família Marchioni”14 (conferência lida na Academia das Ciências de Lisboa a 9 de Fevereiro de 1922); “Do sigilo nacional sobre AA.VV. História do Regime Republicano em Portugal. Diri­gida por Luís de Montalvor, vol. I. Lisboa: Empresa do Anuário Comercial, 1930, pp. 13-96. 9 A partir deste trabalho, traçamos algumas considerações: Em torno dos fundamentos da formação de Portugal. Prelo. Número especial. Lisboa, 1984, pp. 67-89. 10 História de Portugal, 10 vols. Dirigida por Damião Peres. Barcelos: Portucalense Editora, 1928-1938. 11 História da Expansão Portuguesa no Mundo. Dirigida por António Baião, Hernâni Cidade e Manuel Múrias, vol. III. Lisboa: Ática, 1940. 12 Ibidem, pp. 7-30. 13 Ibidem, pp. 125-141. 14 Seara Nova, Lisboa, n.º 8, 15 de Fevereiro de 1922, pp. 208-214. 8

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os Descobrimentos”15; “O descobrimento das Caná­rias”16 (comunicação apresentada na sessão de 25 de Junho de 1925 da referida Academia); três artigos sob a designação genérica de “África nostra”, publicados no Boletim da Agência Geral das Colónias com os seguintes títulos, seguidos dos respectivos números e datas: “Descobriram os franceses, antes de nós, a Guiné, o Cabo da Boa Esperança e o caminho marítimo para a Índia?”17; “A tomada e ocupação de Ceuta”18; e “O âmbito da obra do Infante”19; e, por fim, publicou “Uma crónica portuguesa inédita incluída nas de Froissart”20. Depois de Jaime Cortesão ter partido, em 1927, para o exílio em França e Espanha, publicou os seguintes artigos: “Notas de história pátria: a formação democrática de Portugal”21; “O problema das relações entre a geografia e a autonomia política de Portugal”22; “Aperçu historique”23 (preparado em 1929); “O franciscanismo e a mística dos Descobrimentos”24; “A viagem de Diogo de Teive e Pero Vazquez de la Frontera aos bancos da Terra Nova em 1452”25; “The pre-columbian discovery of America”26 (conferência realizada, em 1936, no Centre de Synthèse Scientifique, em Paris) e “O problema do descobrimento da Austrália pelos portugueses, I”27. Face ao avanço das forças nazis na França, Jaime Cortesão teve de regressar a Portugal em 27 de Junho, sendo logo preso e levado para a prisão em Peniche, onde preparou as duas comunicações que apresentou ao Congresso do Mundo Português, em cujas actas foram publicadas respectivamente com o título “Teoria geral dos Descobrimentos Portugueses”28 e “A geografia e a economia da Restauração”29. Estes mesmos textos foram também publicados na Seara Nova, a partir daí, em separata. Lusitânia, Lisboa, n.º I, Janeiro de 1924, pp. 45-81. Boletim da Segunda classe da Academia das Ciências de Lisboa, vol. 19, Lisboa, 1925, pp. 256-258. 17 Boletim da Agência Geral das Colónias, Lisboa, n.º 1, Julho de 1925, pp. 90-106. 18 Boletim da Agência Geral das Colónias, Lisboa, n.º 5, Novembro de 1925, pp. 9-30. 19 Boletim da Agência Geral das Colónias, Lisboa, n.º 10, Abril de 1926, pp. 3-15. 20 Lusitânia, Lisboa, n.º IX, Abril de 1926, pp. 367-391. 21 Seara Nova, Lisboa, n.º 138, 22 de Novembro de 1928, pp. 343-345. 22 Seara Nova, Lisboa, n.º 201, 20 de Fevereiro de 1930, pp. 133-137. 23 In: PROENÇA, Raul. Portugal, Madère, Iles Açores (Les guides bleus). Paris: Librairie Hachette, 1931. 24 Seara Nova, Lisboa, n.º 301, 2 de Junho de 1932, pp. 198-204. 25 Arquivo histórico da Marinha, Lisboa, n.º 1, 1933, pp. 7-24. 26 The geographical journal, Londres, vol. 89, n.º 1, Janeiro de 1937, pp. 29-42. 27 Seara Nova, Lisboa, n.º 535, 13 de Novembro de 1937, pp. 139-140. 28 Actas do Congresso do Mundo Português, vol. III, Lisboa, 1940, pp. 11-46. 29 Actas do Congresso do Mundo Português, vol. VII, Lisboa, 1940, pp. 669-697. 15

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Enquanto esteve preso em Peniche, em Julho de 1940, Jaime Cortesão aproveitou o tempo para proferir lições sobre História de Portugal aos presos que com ele conviviam30. A 17 de Agosto de 1940 foi autorizado a visitar a exposição do Mundo Português e a 20 de Outubro embarcou compulsivamente para o Brasil.

Período entre 1940 e 1960 Ainda que para Jaime Cortesão a estadia no Brasil se tenha revelado um sacrifício, pois estava afastado do seu amado Portugal, foi aí muito bem recebido e veio a contribuir para o estreitamento dos laços de amizade e de conhecimento recíproco de Portugal e do Brasil, tendo sido a figura das culturas portuguesa e brasileira que mais reforçou em termos individuais a vivência da ligação entre os dois países, unidos pela sua multissecular história comum. Depois de ter chegado ao Brasil, Jaime Cortesão aprofundou a problemática do descobrimento desse território, tendo publicado A carta de Pêro Vaz de Caminha31, soberba edição que reeditámos em 1994. Esta obra foi completada pelo livro Cabral e as origens do Brasil (Ensaio de topografia histórica)32, que antecede e tem ainda por complemento um texto que deixou manuscrito em português, e que terá já sido levado na bagagem para o Brasil, sobre Os descobrimentos pré-colombinos dos portugueses33. Anteriormente, esse texto, em versão castelhana, foi publicado com o título Génesis del descubrimiento: los portugueses34. A este volume seguiu-se a sua colaboração no tomo XXVI desta obra, publicado em 1956, com o título Brasil. libro primero: de los comienzos a 179935, texto de que não se conhece a versão portuguesa. Durante os anos em que Jaime Cortesão esteve no Brasil, consagrou-se ao aprofundamento da história colonial, dando realce a situações

Um sumário dessas lições foi publicado: cf. CORTESÃO, Jaime. Recordações da fortaleza de Peniche. Amigos de Bragança: Boletim de informação e estudos regionais, Bragança, n.º 19, 5.ª série, Julho de 1974, pp. 44-48. 31 Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1943, 351 p. 32 Rio de Janeiro: Ministério das Relações Exteriores, 1944, 174 p. 33 Este texto foi publicado postumamente em CORTESÃO, Jaime. Obras Completas, vol. VIII. Lisboa: Portugália Editora, 1966. Foi por nós ainda reeditado em 1997, com uma conclusão que ali não figurava. 34 In: Historia de America y de los pueblos americanos, tomo III. Dirigida por António Ballesteros e Beretta. Barcelona: Salvat Editores, 1947, pp. 495-766 (com reedição em 1961). 35 In: Historia de America y de los pueblos americanos, tomo XXVI. Dirigida por António Ballesteros e Beretta. Barcelona: Salvat Editores, 1956, pp. 1-540. 30

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relacionadas com as explorações do interior do território, nomeadamente com estudos sobre os bandeirantes, como os que publicou entre 1947 e 1949 em 64 artigos do jornal O Estado de São Paulo, com o título Introdução à história das bandeiras36. Entretanto, Jaime Cortesão procedeu a pesquisas sobre um tema que resumiu numa conferência proferida no salão da Biblioteca do Palácio do Itamaraty, em 2 de Setembro de 1949, com o título Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid, de cujo texto se fez uma separata publicada em Lisboa pela Seara Nova, em 1950, com 38 páginas. Esses estudos levaram à edição da obra com o mesmo título, publicada em 9 volumes no Rio de Janeiro pelo Ministério das Relações Exteriores – Instituto Rio Branco entre 1950 e 1963. Neste período, Jaime Cortesão preparou ainda a edição dos Manuscritos da colecção De Angelis, que saiu em 7 volumes com subtítulos variados, no Rio de Janeiro, através da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro – Divisão de Obras Raras e Publicações (1951-1969). Um dos pontos mais altos da actividade de Jaime Cortesão no Brasil consistiu na direcção em 1954 da “Exposição histórica de São Paulo dentro do quadro da História do Brasil”, tendo publicado nesse contexto A fundação de São Paulo: capital geográfica do Brasil37, e uma “Edição comemorativa do IV centenário da Fundação da cidade de São Paulo” com a recolha documental intitulada Pauliceae lusitana monumenta historica, publicada pelo Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro, em Lisboa, 1956 (os dois primeiros volumes) e 1961 (o terceiro). Finalmente, destacamos de entre as obras de Jaime Cortesão deste período brasileiro, Raposo Tavares e a formação territorial do Brasil38 e, em edições póstumas, O humanismo universalista dos portugueses39, título não registado no manuscrito original (talvez de cerca de 1948), que foi publicado pela primeira vez na íntegra nas Obras completas, e História do Brasil nos velhos mapas40. Jaime Cortesão publicou entre 1940 e 1960 muitos artigos em revistas portuguesas e brasileiras, de que indicamos, apenas a título de exemplo, aqueles de que se fizeram separata em Lisboa pela Seara Nova: Camões e o descobrimento do mundo (1944, 32 p.); Os portugueses no descobrimento dos

Esses textos foram reeditados em 2 volumes: CORTESÃO, Jaime. Obras Completas, vols. II e III. Lisboa: Portugália Editora, 1964. 37 Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1955, 277 p. 38 Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, Serviço de Documentação, 1958, 454 p. 39 In: Obras Completas, vol. VI. Lisboa: Portugália Editora, 1965. 40 2 vols. Rio de Janeiro: Ministério das Relações Exteriores, Instituto Rio Branco, 1965-1971. 36

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Estados Unidos (1949, 118 p.) e O sentido da cultura em Portugal no século XIV (1956, 46 p.). Na acção cultural que Jaime Cortesão desenvolveu em Portugal e no Brasil até 1960, foi também marcante a publicação de dezenas de artigos sobre História, publicados por vezes de forma articulada e repetida em jornais de Portugal, Brasil, Angola e Moçambique, de entre os quais citamos alguns dos principais como O Estado de São Paulo, O Primeiro de Janeiro, Notícias, Província de Angola, Diário de Lisboa, Jornal de Comércio e A Manhã. Por esta via, os textos do autor chegaram a um vasto público, em várias áreas do mundo da lusofonia. Parte desses textos já foram inventariados, mas ainda está por concluir o seu tratamento e reedição41. O epílogo da actividade historiográfica de Jaime Cortesão situa-se depois do seu regresso a Portugal, em 1957, participando com independência no processo das Comemorações henriquinas, que então decorreu através da redacção de uma obra monumental, que intitulou Os Descobrimentos Portugueses. A edição deste trabalho pela Editora Arcádia começou a sair a público em fascículos nos primeiros meses de 1958 e em 1960 conclui-se o primeiro volume, com 556 páginas, tendo o segundo volume acabado de ser editado postumamente em 1962, tendo ficado com 443 páginas, das quais a parte concluída pelo autor chegou à página 85. Foi o texto escrito por Jaime Cortesão até à data da sua morte que editámos em 3 volumes em 1990. Em convergência com a redacção desta obra, Jaime Cortesão publicou A política de sigilo nos Descobrimentos: nos tempos do infante D. Henrique e de D. João II42, que reeditámos em 1997, tendo deixado para publicação a extensa entrada “América”, do Dicionário da História de Portugal, dirigido por Joel Serrão, ainda que corresponda em grande parte a um texto que se encontra em Os Descobrimentos Portugueses. Jaime Cortesão planeava ainda apresentar uma comunicação intitulada “La diffusion internationale des nouvelles méthodes de l’art nautique aux XVe et XVIe siècles”, no Quinto Colóquio Internacional de História Marítima, que iria decorrer em Lisboa de 14 a 16 de Setembro de 1960, da qual ficou apenas o resumo que foi publicado nas respectivas actas, intituladas Les aspects internationaux de la découverte océanique aux XVe et XVIe siècle43. ÁGUAS, Neves. Bibliografia de Jaime Cortesão. Lisboa: Biblioteca Nacional de Lisboa, 1985. 42 Lisboa: Comissão Executiva das Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, 1960, 167 p. (Colecção Henriquina, 7) 43 Cf. Les aspects internationaux de la découverte océanique aux XVe et XVIe siècle. Paris: S.E.V.E.N., 1966, pp. 55-56. 41

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A obra de Jaime Cortesão no contexto da historiografia portuguesa…

Autores coevos de Jaime Cortesão Os anos 20 e 30 do século XX constituíram um período fecundo da historiografia portuguesa, em parte devido ao estímulo que lhe deu o regime ditatorial e tradicionalista do Estado Novo, que recorreu à História para fundamentar noções nacionalistas e imperialistas que defendia. Uma das formas de conhecer essa historiografia, do tempo em que Jaime Cortesão preparou as suas obras até 1940, ainda que de uma maneira muito sumária, passa pela identificação daqueles autores que por então escreveram sobre História. A forma de alcançar tal desígnio, no curto espaço que aqui temos, passa por apontar os nomes dessas personalidades, o que se pode atingir cruzando as informações que se encontram registadas nas mais importantes iniciativas colectivas que então foram levadas a cabo e que em parte já atrás aludimos, por nelas ter participado Jaime Cortesão, e aqui voltamos a referenciar de forma mais completa. A primeira dessas iniciativas historiográficas, que foi a mais importante levada a cabo durante a Primeira República, consistiu na História da colonização portuguesa do Brasil, cujos fascículos do primeiro volume começaram a ser impressos em 25 de Maio de 1921, tendo o último do terceiro volume sido concluído em 15 de Abril de 1926, isto é, pouco menos de um mês antes de se dar o golpe de Estado de 28 de Maio de 1926. A indicação dos anos nos rostos de cada volume é a seguinte: I, 1921; II, 1923; III, 1924. O ano de 1926, durante o qual este gigantesco empreendimento editorial foi concluído, corresponde àquele em que Damião Peres começou a procurar uma editora que publicasse os textos que integravam o primeiro volume da também já mencionada História de Portugal. Esta obra ficaria conhecida por “de Barcelos”, devido a ser esse o local da sua edição em fascículos pela Portucalense Editora44, tendo sido iniciada nos primeiros dias de Maio de 1928, sucedendo-se os restantes volumes de acordo com o seguinte ritmo: II, 1929; III, 1931; IV, 1932; V, 1933; VI, 1934; VII, 1935; Índices, 1937 (1938), registando-se no fim deste último volume que: “com o fascículo 107, acabado de imprimir, a 30 de Novembro de 1938, se completa o VII e o último volume, dividido em dois”. Por esse tempo, verifica-se ter sido 1937 o ano que foi impresso no rosto do volume I da História da Expansão Portuguesa no Mundo, dirigida por António Baião, Hernâni Cidade e Manuel Múrias, cuja impressão terminou em Novembro de 1938, enquanto o volume II, com a data de 1939, foi concluído em Março

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Sobre esta obra, cf. MACHADO, José Montalvão. Génese da História de Portugal. Edição de Barcelos. In: Colectânea de estudos em honra do Prof. Doutor Damião Peres. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1974, pp. 37-49.

José Manuel Garcia

de 1940, e o volume III, com a data de 1940, tem a indicação de ter sido acabado em Julho de 1942. Para lá das obras acima referenciadas, há a realçar que o Estado Novo patrocinou um conjunto de importantes iniciativas historiográficas que passou pela realização de três reuniões científicas e a edição das respectivas actas: a primeira consistiu num ciclo de conferências que decorreram em 1936, na Academia das Ciências de Lisboa, e foi designada por Alta Cultura Colonial, que com esse título e nesse mesmo ano foi publicada em Lisboa pela Agência Geral das Colónias; a segunda foi o I Congresso da História da Expansão Portuguesa no Mundo, que decorreu entre 25 e 31 de Julho de 1937, tendo como secretário geral Manuel Múrias, cujas actas foram editadas em dez volumes, Lisboa, 1938; a terceira foi o Congresso do Mundo Português, que decorreu entre 2 e 13 de Julho de 1940, tendo por presidente Júlio Dantas e secretário geral Manuel Múrias, com as respectivas actas publicadas em 19 volumes, em Lisboa, com a data de 1940. O cruzamento do impressionante número de duzentos e cinquenta e sete nomes daqueles que escreveram nas obras citadas, dá-nos, pela primeira vez, um conspecto muito significativo da historiografia do período de 1921 a 1940, no qual se revelou um forte interesse pela História. Na listagem que em seguida apresentamos, registamos os nomes dos autores, grafados da forma como são mais conhecidos, tendo-se desdobrado abreviaturas com que os seus nomes por vezes são apresentados, e apontado as datas de nascimento e morte de cada um, sempre que foi possível determiná-las após extensas pesquisas que nem sempre tiveram sucesso, mas qua ainda assim traduzem o esforço mais completo até agora realizado no sentido de apurar tais dados, que são de grande interesse historiográfico. Para os elementos que faltam, colocamos um ponto de interrogação, na expectativa de que as lacunas existentes possam vir a ser ultrapassadas. Dos participantes do Congresso do Mundo Português apenas indicamos os nomes daqueles cujos textos de alguma forma se podem relacionar com temas ligados a assuntos históricos, ainda que por vezes se confundam pontualmente com acções de promoção colonial ou de outra natureza. Colocamos com um X a indicação de participação do autor nas obras que são referidas em colunas identificadas com os números 1 a 6, que correspondem respectivamente aos seguintes títulos: 1 - História da colonização portuguesa do Brasil 2 - História de Portugal (de Barcelos) 3 - História da Expansão Portuguesa no Mundo 4 - Alta cultura colonial

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A obra de Jaime Cortesão no contexto da historiografia portuguesa…

5 - I Congresso da História da Expansão Portuguesa no Mundo 6 - Congresso do Mundo Português Nomes dos autores Afonso, António Martins Aguiar, José Monteiro de Albuquerque, Mário de Almada, José de Almeida, António de Almeida, João de Almeida, Manuel Lopes de Almeida, Vieira de Alves, Artur da Mota Alves, Francisco Manuel Amaral, Lia Arez Ferreira do Ameal, João Amzalak, Moses Bensabat Andersen, Maria Josefina Arruda, Manuel Monteiro Velho Ataíde, Alfredo Azevedo, Francisco Alves de Azevedo, João Lúcio de Azevedo, José Aires de Azevedo, Pedro de Azevedo, Rui de Baião, António Barbosa, António Barros, João de Basto, Artur de Magalhães Basto, Eduardo Alberto Lima Beirão, Caetano Bensaúde, Joaquim Boléo, José de Oliveira Borges, Vasco Bossa, José Ferreira

Datas de nascimento e morte

1

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1902-1989 1874-1947

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1898-1975 1880-?

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1900-1980 1888-1962

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1890-1942 1865-1947

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1914-1999 1902-1982

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1892-1978 ?

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1873-1950 1890-1960

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1908-1992 1855-1933 1911-1978 1869-1928 1889-1976 1878-1961 1892-1946 1881-1960 1894-1960

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1875-1942 1892-1968 1859-1952 1905-1974 1894-1970 1864-1956

Bragança, José de

1892-1982

X X X

X X

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Botelho, José Justino Teixeira

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X

X

X X X X

José Manuel Garcia

Nomes dos autores Branco, José Gomes

Datas de nascimento e morte

1

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Brasão, Eduardo

1906-1988 1907-1987

Cabral, Augusto

?

X

Caetano, Marcelo Caiola, Júlio Campo Belo, Conde de Campos, Agostinho Campos, Ezequiel de Capeans, Rosa Cardoso, Manuel da Silveira Soares Carneiro, Alexandre Lima Carrisso, Luís Wittinich Carvalho, Augusto da Silva Carvalho, Joaquim de Carvalho, Sebastião José de Casimiro, Augusto Castro, Alberto Osório de Castro, José de Castro, Luciano de Castro, Luís Vieira de Cavalheiro, António Rodrigues Cerdeira, Eleutério Cerqueira, Afonso de César, Vitoriano José Chaves, Luís Cidade, Hernâni Coelho, Possidónio Mateus Laranjo Coimbra, Carlos

X

1906-1980 1891-?

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1904-1995 1870-1944 1874-1965

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1894-1985 1911-? 1898-1962 1886-1937 1861-1957 1892-1958

X

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c. 1875-?

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1889-1967 1868-1946 1886-1966

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1898-1954 1902-1984

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1876-? 1872-1957

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1860-1939 1888-1975

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1887-1975 1878-1969

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X X X

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1902-?

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X

Correia, Alberto Carlos Germano da Silva

1888-1967

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Correia, Fernando da Silva

1893-1966

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Correia, Joaquim Alves

1886-1951 1881-1948 1888-1960

Correia, Manuel Alves Correia, Mendes Correia, Virgílio Corte Real, João Afonso

1888-1944 1909-1995

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X X

X

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A obra de Jaime Cortesão no contexto da historiografia portuguesa…

Nomes dos autores Cortesão, Armando Cortesão, Jaime Costa, Adelino Delduque da

Datas de nascimento e morte 1891-1977 1884-1960

Costa, A. Monteiro da

1899-1953 1890-?

Costa, Abel Fontoura da

1869-1940

Costa, Alfredo Augusto de Oliveira Machado e Costa, Avelino de Jesus da Costa, João Carrington Simões da Coutinho, Carlos da Cunha Coutinho, Gago Coutinho, J. de Siqueira Couto, João Cruz, António Cruz, António Alves da Cunha, Amadeu Cunha, João Gualberto de Barros e Dantas, Júlio Dias, Carlos Malheiro Dias, Gastão Sousa Dias, José Lopes Duarte, Mário Enes, Ernesto Esaguy, Augusto Isaac de Ferreira, António Liz

1

2

3

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X

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1870-?

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1908-2000 1891-1982

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1885-1949 1869-1959

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X X

?

X

1892-1968 1911-1989

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1915-1977 1878-1963

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1865-1950 1876-1962 1875-1941 1887-1955

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1900-1972 ?

X X X

1881-1957 1899-1961

X

X X

?

X

1874-? 1895-1974 1860-1944

X

X

Fialho, Madalena da Câmara

1866-1948 ?

Figueira, Joaquim Fernandes

?

X

Ferreira, Carlos Alberto Ferreira, Herculano de Amorim Ferreira, José Augusto Ferreira, Júlio Guilherme Bethecourt

Fonseca, Armando Xavier da Fonseca, Joaquim Roque da Fonseca, Luísa da Fonseca, Quirino da Fontoura, Álvaro da

X X X

?

X

1891-1954 ? 1868-1939 1891-1975

X X X X

José Manuel Garcia

Nomes dos autores Freire, Júlio Freitas, Eugénio de Andreia da Cunha e Freitas, Jordão de Galvão, Henrique Galvão, João Alexandre Lopes Garcia, José Penha Garrett, António de Almeida Gião, Manuel Rosado Fernandes Girão, Aristides Amorim Gomes, Armando Sousa Gonçalves, José Vicente Martins Guedes, (Armando) Marques Guimarães, Luís de Oliveira Iria, Alberto Keil, Luís Kopke, Aires Lacerda, Aarão de Lagoa, Visconde de Larcher, Jorge das Neves Lavradio, 6.º Marquês do Leite, Duarte Leite, Serafim Lima, Américo Pires de Lima, Augusto César Pires de Lima, Durval Pires de Lima, Fernando de Castro Pires de Lima, Henrique de Campos Ferreira Lima, Joaquim Alberto Pires de Lima, Jorge Hugo Pires de Lobo, Francisco Miranda da Costa Lopes, Carlos da Silva Lopes, David Lopes, Francisco Fernandes Lopes, Ilídio da Silva Lupi, Eduardo do Couto Macedo, Francisco Newton de

Datas de nascimento e morte

1

2

3

4

5

1884-? 1912-2000 1866-1950 1895-1970

6 X X

X

X

X

X X

1874-1951 1899-1963

X

X X

1884-1961 1878-?

X

1895-1960 1895-1973

X

1896-1985 1889-1958

X

X X X

1900-1998 1909-1992

X

1881-1947 1866-1947

X

X

X

X

1890-1947 1898-1957

X

X

X

X

X

1890-1945 1874-1945 1864-1950 1890-1969 1886-1966

X

X X

X

X

X

X

X X X

1883-1959 1905-1988

X X

X

X

X

1908-1973 1882-1949

X

1877-1951 1907-?

X

X X

1864-1945 1904-1978 1867-1942 1884-1969

X X X

X X

X

? 1874-1948 1894-1944

X X X

545

546

A obra de Jaime Cortesão no contexto da historiografia portuguesa…

Nomes dos autores Macedo, Luís da Costa de Sousa Machado, Aquiles Machado, João Franco

Datas de nascimento e morte

1893-1969

Mariz, Luís Gonzaga

1882-1938 ?

Marques, Branca Edmée

1899-1986

Marques, João Martins da Silva

1899-1978 1887-1988

Martins, Eduardo Augusto de Azambuja Martins, Francisco Assis de Oliveira Martins, José Frederico. Ferreira Martins, Luís Augusto Ferreira Martins, Rocha Mata, José Caeiro da Matos, Armando de Matos, Gastão de Melo de Matos, Norton de Matoso, António Gonçalves Melo, Indalêncio Froiliano de Melo, Lopo Vaz de Sampaio e Mendes, Cândido Mendes, M. Maia Mendonça, Henrique Lopes de Mereia, Paulo Moncada, Luís Cabral de Monteiro, Armindo Mora, António Damas Morais, Tancredo Octávio Faria de Moura, Jacinto José do Nascimento Múrias, Manuel1 Nascimento, João Cabral do Neiva, João Manuel Cotelo Neves, Maria Teresa Amado Nogueira, Rodrigo de Sá

3

4

5

X X X X X X X X

1888-1965 1877-1966 1903-1978

X

1874-1960 1875-1967

X

X

X

X

X

X

X

X

1879-1952 1874-1965

X X

1899-1953 1890-1971

X X

1867-1955 1896-1975

X

1889-1977 1888-1974 1896-1955 1879-1949

X

X X X

X

X

X

X X

X

X X X X

1882-? 1893-? 1900-1960 1897-1978 1917-? ? 1892-1979

X X

1887-1955 1848-1892 1874-1943 1890-? 1856-1931

6 X

?

Magalhães, António Miranda de

Martins, António Rita

2

1887-? 1862-1942

Madahil, António Gomes da Rocha

Martinho, José Augusto

1

X X X

X X X X X

José Manuel Garcia

Nomes dos autores Nunes, José Joaquim Oliveira Júnior, Francisco Teófilo de Oliveira, José Augusto de Oliveira, Miguel de Osório, João de Castro Paço, Afonso do Passos, Carlos de Paulo, Leopoldina Ferreira Pereira, Armando Gonçalves Pereira, Eduardo Clemente Noronha Pereira, Francisco Maria Esteves Pereira, Renato Gonçalves Peres, Damião Peres, Manuel Pessoa, Alberto Pimenta, Alfredo Pimenta, Belisário Pimpão, Álvaro Júlio da Costa Pina, Luís de Pinto, Augusto Cardoso Pires, Eurico de Sampaio Satúrio Pissurlencar, Panduronga Pombo, Manuel Ruela Quintão, José Luís Ramos, Manuel Raposo, Hipólito Rego, José Teixeira Reis, Mário Simões dos Reis, Pedro Batalha Ribeiro, António Ribeiro, Ângelo Ribeiro, Luciano Ribeiro, Luís da Silva

Datas de nascimento e morte

1

1859-1932 1891-1939

2

3

4

5

X X

?

X

1897-1968 1899-1970 1895-1968

X X

X X X X X X

X

X X

X

1883-1942 1882-1950

X X

1879-1969 1902-1984 1901-1972 1901-1962

X

X

1901-1983 1887-1976

1889-1976 1888-1968

X

X

1890-1958 1908-?

1854-1924 1899-?

6

X X

X

X

X X

X

X

X X

1881-1952 1894-1969 1888-1960

X

?

X

X X

1862-1931 1885-1953

X

1881-1934 ?

X

X X

1906-1966 ? 1886-1936 1893-1969

X X X X X

Rocha, Maria Leonor

1882-1955 1878-1970 ?

Rodrigues, Francisco

1853-1956

X

Rio Maior, 2.º Marquês de

X X

547

548

A obra de Jaime Cortesão no contexto da historiografia portuguesa…

Nomes dos autores Rodrigues, João Francisco Romão, Matos Sá, Mário de Vasconcelos e Sacadura, Costa Saldanha, Mariano Salgueiro, Manuel Trindade Santa Rita, José Godinho de Matos Santa Rita, José Gonçalo de Santana, José Firmino Santos Júnior, Joaquim Rodrigues dos Santos, Mariana Amélia Machado dos Santos, Reinaldo dos São Paio, Conde de (D. António) Saraiva, António José Saraiva, José Mendes da Cunha Sarmento, Alberto Artur Schwalbach, Luís Seabra, Antero Frederico de Serra, José Antunes Silva, Fernando Emídio da Silva, Luciano Pereira da Silva, Mário Augusto da Silveira, Luís Simões, Alberto Veiga Soares, Eduardo de Campos de Castro de Azevedo Soares, Ernesto Soares, Torquato de Sousa Sousa, Alfredo Botelho de Sousa, José Maria Cordeiro de Sousa, Maria Clmentina Pires de Lima Tavares de Tamagini, Eusébio Tavares, José Lourenço Teixeira, Carlos Torres, José

Datas de nascimento e morte

1

2

3

4

? 1882-1960 1883-1971

5

6

X

X X

X

1872-1966 1878-1975

X X X

X

1898-1965 ?

X X

1890-1967 1879-?

X

X

X X

1901-1990 1904-1991

X X

1886-1970 1902-1981

X X

1917-1993 1891-1962 1878-1953

X X

X

1888-1956 1874-1952

X

X X

1914-1990 1886-1972 1864-1926 1901-1977 1912-2000 1888-1954

X

X X X X X X

X

1864-1955

X

1887-1966 1903-1988

X

1880-1960 1886-1968

X

X

X X

?

X

1880-1972 ?

X

1910-1982 1882-1932

X

X X

José Manuel Garcia

Nomes dos autores Vasconcelos, Frazão de Veiga, Augusto Botelho da Costa Veloso, Queirós Ventura, Augusta Faria Gersão Viana, Abel Vidal, Frederico Gavazzo Perry Vidal, João Evangelista de Lima Vilas, Gaspar do Couto Ribeiro

Datas de nascimento e morte

1

2

1889-1970 1881-1965 1860-1952 1892-? 1896-1964 1889-1959 1874-1958 1873-?

X

3

4

5

6

X

X

X

X

X

X X X X

X X X

Este vasto elenco de nomes é indicativo de quão numeroso era o grupo de pessoas que revelaram interesse pela escrita de temas ligados à História entre 1921 e 1940, ainda que o número de historiadores que aí se possa realçar seja reduzido e de nele não estarem incluídas algumas personalidades que, por essa altura, publicavam obras de interesse historiográfico em Portugal, como, por exemplo, Afonso Dornelas, Albino Forjaz de Sampaio, Alfredo Albuquerque Felner, António da Silva Rego, António de Vasconcelos, António Ferrão, António Lourenço Farinha, Carlos da Silva Tarouca, Carolina Michäelis de Vasconcelos, Eduardo Noronha, Gustavo Cordeiro Ramos, Gustavo Couto, Jaime do Inso, João de Azevedo Coutinho, Joaquim de Vasconcelos, Joaquim Leitão, José de Figueiredo, José Gervásio Leite, José Leite de Vasconcelos, Luís Demony e Luís Norton, além de outras personalidades, como o rei exilado D. Manuel II, que preparou um trabalho tão relevante como são os três volumes intitulados Livros antigos portugueses, publicados em Londres entre 1929 e 1935. Saltando de 1940 para 1960, o ano em que se realizaram as comemorações henriquinas, é possível fazer um novo levantamento da maior parte dos historiadores que então estava em actividade, alguns dos quais vinham de apresentar as suas obras nos anos anteriores, de entre os quais se pode salientar o nome de Vitorino Magalhães Godinho que, além de já então ter escrito alguns dos estudos mais importantes sobre os Descobrimentos e a Expansão dos Portugueses, foi um dos responsáveis por completar a primeira edição de Os Descobrimentos Portugueses, de Jaime Cortesão, e iniciar a primeira edição das Obras Completas deste autor, além de ter também 45

45

Como secretário-geral do I Congresso da História da Expansão Portuguesa no Mundo, este autor proferiu, em 1937, um dircurso de abertura que foi publicado no Boletim da Agência Geral das Colónias, Lisboa, n.º 150, 1937, pp. 203-220.

549

550

A obra de Jaime Cortesão no contexto da historiografia portuguesa…

organizado a História dos Descobrimentos: Colectânea de Esparsos, de Duarte Leite, publicada em Lisboa pela Cosmos entre 1958 e 1962. De entre as iniciativas editoriais oficiais das comemorações henriquinas realizadas em 1960, destacou-se a edição de trabalhos importantes como foram os quinze volumes de Monumenta Henricina; os seis volumes de Portugaliae Monumenta Cartographica; os dois volumes da Bibliografia Henriquina; os sete das Actas do Congresso Internacional de História dos Descobrimentos; e os doze da Colecção Henriquina. Para o historial dessas comemorações e da respectiva bibliografia, vejam-se os quatro volumes com o título de Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, publicados entre 1961 e 1963. O levantamento da maior parte dos historiadores que estavam em actividade em 1960 é facilitado pela circunstância de a maior parte deles ter publicado comunicações nas actas do Congresso Internacional de História dos Descobrimentos, que decorreu entre 5 e 12 de Setembro de 1960, pouco depois da morte de Jaime Cortesão. Ainda assim, há a registar que ficaram fora dessa colaboração historiadores de que podemos apontar nomes como os de Agostinho Ferreira Gambetta, Alexandre Lobato, Américo Cortez Pinto, António Álvaro Dória, António da Silva Rego, António José Saraiva, António Marques Esparteiro, Eurico Gama, Filipe Gastão de Almeida de Eça, Francisco da Gama Caeiro, Francisco Paulo Mendes da Luz, Humberto Leitão, Idalino da Costa Brochado, Joel Serrão, José Hermano Saraiva, José Júlio Gonçalves, José Sebastião da Silva Dias, José Timóteo Montalvão Machado, José Vitorino Pina Martins, Justino Mendes de Almeida, Luís de Bívar Guerra, Luís de Matos, Maria de Lourdes Belchior, Mário Domingos, Marquês de São Paio, Martim de Albuquerque, Orlando Ribeiro, Óscar Lopes e Vitorino Magalhães Godinho Em seguida, registamos o elenco dos sessenta e quatro autores portugueses que publicaram trabalhos nas Actas do Congresso Internacional de História dos Descobrimentos, que constituem uma amostragem muito significativa do panorama da historiografia portuguesa na fase final das actividades de Jaime Cortesão46. Nomes dos autores Albuquerque, Luís de

Nascimento e morte

Azevedo, Ávila de

1917-1991 1915-1982 1911-1985

Brásio, António

1906-1985

Andrade, António Alberto Banha de

Quando o autor surge na lista anterior, não voltamos a repetir o registo das datas de nascimento e morte.

46

José Manuel Garcia

Nomes dos autores Capeans, Rosa Cardoso, Mário Castelo Branco, Fernando Castro Júnior, Augusto César da Silva Castro, Luís Filipe de Oliveira e Coelho, António Vasconcelos Pinto

Nascimento e morte 1889-1982 1926? ? 1906-?

Coimbra, Carlos

-

Correia, Fernando da Silva

-

Corte Real, João Afonso Corte Real, Maria Alice Magro Cortesão, Armando Costa, António Domingos de Sousa Costa, Mário Alberto Nunes Cunha, Joaquim Silva Cunha, Rosalina Silva

1921-2007 1891-1977 1926-2002 1920-2010 ?

Delgado, Ralph

1924-1985 1901-1971

Dinis, António Joaquim Dias

1903-1980

Estorninho, Alice

?

Faro, Jorge

?

Faro, Maria José Félix, Adelaide Ferreira, Fernando Bandeira Ferreira, João Albino Pinto Gaspar, José Maria Gomes, Fernando Amaral Grilo, Victor Hugo Velez

? 1896-1971 1921-2003 1910-1988 1910-1987 1925?

Guerra, Fernando Meireles

?

Guerreiro, Jerónimo de Alcântara

?

Leite, Serafim Lima, Jacinto C. Baptista de Lima, Jorge Hugo Pires de Macedo, Jorge Borges de Madeira, José António Martinez, José Fernando Trindade Martins, Francisco Assis de Oliveira Mata, José Caeiro da Morais, José Custódio de

1920-1996 1921-1996 1896-1976 19191883-1963 1890-1985

551

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A obra de Jaime Cortesão no contexto da historiografia portuguesa…

Nomes dos autores Moreira, Adriano Mota, Avelino Teixeira da Moura, Jacinto José do Nascimento Nogueira, Armando Pedro, Albano Mendes Peres, Damião Pina, António Ambrósio de Pina, Luís de Pinto, Francisco de Paula Leite Pinto, Sérgio da Silva Rau, Vigínia Sá, Artur Moreira de Santos, Domingos Maurício Gomes dos

Nascimento e morte 19221920-1982 1929-? ? 1918-1995 1902-2000 1915-1970 1907-1973 1913-1989

Santos, Mário

1896-1978 ?

Sarmento, Zeferino

1893-1968

Serrão, Eduardo da Cunha Serrão, Joaquim Veríssimo

1906-1991 1925-

Silva, Joaquim Ferreira da

?

Silva, José Gentil da

?

Sousa, Alfredo Veloso, Francisco José

1932-1994 1912-2003 1918-2009

Vicente, Eduardo Prescott

1908-1979?

Teixeira, Manuel

Do futuro da obra de Jaime Cortesão No futuro devemos continuar a consagrar-nos ao estudo das matérias e problemáticas que Jaime Cortesão tão bem trabalhou nas suas obras, sendo por isso aliciante (re)ler as páginas sempre tão atractivas que escreveu. Nesse sentido, constitui um instrumento de grande utilidade a edição das Obras completas de Jaime Cortesão, de que se assinalam duas iniciativas, sendo a primeira levada a cabo sob a direcção inicial de Vitorino Magalhães Godinho e Joel Serrão, tendo ficado constituída por 33 volumes com 22 títulos, editados entre 1964 e 1971 em Lisboa, pela Portugália, e depois pelos Livros Horizonte até 1985. A segunda iniciativa resultou do plano que apresentámos em 1990, tendo em vista uma nova edição das Obras completas de Jaime Cortesão, a qual, nesse ano, começou a ser realizada pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Nesse plano, retomámos não apenas os volumes editados anteriormente, mas

José Manuel Garcia

também a recolha do conjunto da colaboração dispersa do autor. De seguida, registamos os títulos desse projecto editorial, colocando um asterisco nos volumes que já foram publicados e a que fomos aludindo neste texto: Os Descobrimentos portugueses (3 volumes)*; História da Expansão Portuguesa*; Influência dos descobrimentos dos portugueses na história da civilização*; A expedição de Pedro Álvares Cabral e o descobrimento do Brasil*; A carta de Pêro Vaz de Caminha*; Cabral e as origens do Brasil: ensaio de topografia histórica; Os descobrimentos pré-colombinos dos portugueses*; Alexandre de Gusmão e o tratado de Madrid (2 volumes); A fundação de São Paulo: capital geográfica do Brasil; Brasil; Raposo Tavares e a formação territorial do Brasil; História do Brasil nos velhos mapas (2 volumes)*; A expansão dos portugueses na história da civilização e outros estudos sobre a História da Expansão; A política de sigilo nos Descobrimentos*; Os factores democráticos na formação de Portugal e outros estudos sobre a História de Portugal; Estudos de História do Brasil; Introdução à história das bandeiras; Velhos erros e novas correcções; O humanismo universalista dos portugueses; Portugal: a terra e o homem*; A arte e a medicina: Antero de Quental e Sousa Martins; Eça de Queirós e a questão social*; Estudos de história da literatura; Memórias da Grande Guerra; Itália azul; Poesia*; Contos*; Contos para crianças; Teatro*; O que o povo canta em Portugal; Memórias e comentários; e Cartas à mocidade e outros textos*.

Ambicionamos que um dia a edição de todos estes volumes fique concretizada, pois dessa forma contribui-se para que a obra de um homem que se elevou ao nível dos mais sublimes ideais continue a ser um referencial vivo e essencial, não apenas no contexto da historiografia portuguesa, mas também da cidadania que cumpre realizar no decorrer dos nossos trabalhos e dias, que correm apressados e incertos.

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A obra de Jaime Cortesão no contexto da historiografia portuguesa…

Anexo

Repercussão do Colóquio “Proença, Cortesão, Sérgio e o Grupo Seara Nova” nas páginas da (actual) Seara Nova

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A obra de Jaime Cortesão no contexto da historiografia portuguesa…

Proença, Cortesão, Sérgio e o Grupo Seara Nova* REDACÇÃO DA REVISTA SEARA NOVA

Numa iniciativa do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, vários conferencistas debateram o pensamento de Raul Proença, Jaime Cortesão e António Sérgio, fundadores da Seara Nova, e a influência política e cultural da Revista na vida portuguesa. O Colóquio assinalou os 125 anos do nascimento de Raul Proença e de Jaime Cortesão e a passagem dos 40 anos da morte de António Sérgio e envolveu um vasto conjunto de especialistas e investigadores que se dedicam ao estudo do pensamento histórico-filosófico português contemporâneo. Durante três dias, foi desenvolvida uma análise aprofundada da vida e obra daqueles três autores e discutida a relevância que Proença, Cortesão, Sérgio e a revista Seara Nova tiveram na vida social, política, económica e cultural do País na primeira metade do século XX até à actualidade. Para o investigador Amon Pinho, ao lançar a revista Seara Nova no início da década de 1920, “o grupo Seara Nova tinha duas finalidades. Em primeiro lugar, barrar a proliferação do Integralismo Lusitano nas convicções políticas da juventude, em segundo, aproveitar o afastamento das antigas lideranças partidárias republicanas para propor uma rectificação geral da vida social e política portuguesa, através da difusão de princípios cívicos, morais, éticos e políticos”. O mesmo conferencista defendeu que “não pretendiam os seareiros ‘governar como os políticos’ ou ‘aconselhar como os técnicos’, mas ‘orientar como os ideólogos’”, ou seja, “partindo do princípio de que a vida política duma nação é, em grande medida, decorrência da sua vida intelectual e do seu movimento de ideias, como das profundas aspirações dos grupos sociais hegemónicos, e de que, portanto, a origem da crise nacional residia na aguda degeneração das estruturas mentais da sociedade lusa, as das classes dirigentes particularmente, o grupo Seara Nova propôs-se, por um lado, a transformar radicalmente a mentalidade da elite portuguesa de modo a torná-la apta a um ‘verdadeiro movimento de salvação’ e, por * Texto originalmente publicado pela Redacção da Revista Seara Nova em Seara Nova, secção Memória, n.º 1710, Inverno de 2009, p. 34. [N. do E.]

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Proença, Cortesão, Sérgio e o Grupo Seara Nova

outro, a formar uma opinião pública nacional que exigisse e apoiasse as reformas que se fizessem necessárias”. Por sua vez, o historiador Ernesto Castro Leal considerou que tendo “terminado o sistema de governo presidencial sidonista, nos finais de Janeiro de 1919, foi reposto o sistema de governo parlamentar e iniciado um processo de reorganização programática e partidária tendo em vista a refundação programática da República. Os intelectuais que se organizaram na revista Seara Nova partilhavam um diagnóstico crítico em relação à falta de elites dirigentes, de um projecto nacional mobilizador e do funcionamento regular do sistema político. Nessa percepção de uma Pátria bloqueada, os seareiros radicaram, entre 1922 e 1925, a necessidade de, transitoriamente, o poder executivo ser composto por um ‘ministério nacional’, tendo aprovação parlamentar, como objectivo de se lançar as bases de um coerente programa de reformas nacionais”. A generalidade das intervenções proferidas no Colóquio versou sobre aspectos mais particulares de cada um dos fundadores da Seara Nova, o seu pensamento, as suas influências e as suas perspectivas políticas, éticas e culturais. Esta edição da Seara Nova conta com artigos inéditos de dois dos conferencistas: Carlos Leone** e Romana Valente Pinho, dedicados a autores em análise no Colóquio. A análise da actualidade da revista coube ao director Ulpiano Nascimento, que destacou o projecto seareiro como sendo “rigoroso, combativo, em defesa dos valores cívicos, democráticos e culturais, espaço aberto ao diálogo e à reflexão em toda a sua longa existência e que, desde logo, conquistou larga audiência”. Recordando o percurso “nem sempre fácil” da Seara Nova, o director salientou o período da ditadura fascista em que “a Seara Nova constituía a voz de uma frente comum contra a ditadura de Salazar” e “impôs-se, a partir de certa altura, como voz oficiosa de oposição democrática”. Para concluir, acrescentou Ulpiano Nascimento: “A Seara Nova da actualidade assume-se como herdeira do espírito seareiro, em defesa dos mesmos valores cívicos, democráticos e culturais, continuando a tratar grande diversidade de assuntos. Foi este espírito que lhe permitiu ter a colaboração valiosa de mais de 250 intelectuais, sindicalistas ou cooperativistas nos últimos oito anos, no espaço de diálogo e reflexão que a Seara representa”. 1

** Originalmente apresentado no Colóquio, o texto de Carlos Leone integra a secção deste volume intitulada “Jaime Cortesão”. O que se editou dele nas páginas 35 e 36 do referido número da Seara Nova corresponde a uma fracção do texto que, no presente volume, publicamos na íntegra. [N. do E.]

Idealismo e neokantismo no pensamento de António Sérgio* ROMANA VALENTE PINHO Universidade Federal de Uberlândia Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

Sou discípulo de Kant, de Platão, de Descartes, de Espinosa, e não deixo de ser discípulo de um Hegel, de um Fichte, de um Lachelier, de um Cohen e de dezenas de outros homens, entre os quais o próprio Brunschvicg; de entre os portugueses, sou discípulo de um Herculano, de um Antero, de um Oliveira Martins, e até de um Vieira, de um Bernardes, de um Castilho, de um Camilo, pelo que toca à língua e a outras coisas mais. De todos os homens procurei aprender: e ambicioso, aproveitar-me com inteligência – com a minha própria inteligência crítica – daquilo que aprendi dos outros homens. O que enquadra bem no meu organismo de ideias (modesto organismo, sem dúvida alguma, mas creio que evidente para quem me saiba ler), tudo que enquadra é de facto meu, ainda que o digam, comigo, muitas outras pessoas. É por este critério inteligente e orgânico que o verdadeiro crítico tem de ver as coisas, e não pela semelhança de algumas frases, a que correspondem por vezes pensamentos diversos, e até opostos. A ambição deste seu criado não é dizer coisas extravagantes, não é dizer coisas “originais”: é dizer coisas lúcidas, coerentes, exactas, verdadeiras, bem ligadas; é ser vertebrado – e omnívoro; omnívoro –, mas vertebrado. E pelo que se coordena, ou que se não coordena, com a minha própria vertebralidade – é que todo crítico inteligente avaliará do que é meu, e do que não é meu. António Sérgio, Resposta a uma consulta, Seara Nova, 1938

A partir deste simples e claro trecho poder-se-á não só afirmar que António Sérgio é um discípulo de Imannuel Kant, como inferir-se-á também que é, essencialmente, um neokantiano. A afinidade com o filósofo judaicoalemão Hermann Cohen (um dos principais fundadores do neokantismo) revelará precisamente uma das correntes filosóficas que Sérgio abraçou e explorou na sua obra. Uma outra, a título de exemplo, será a do idealismo crítico, representada, na citação supra-referida, pelo filósofo francês Léon Brunschvicg. Definir António Sérgio como kantiano e, consequentemente, como neokantiano, não é uma tarefa complexa para quem se propõe estudar a obra do autor seareiro. A bem da verdade, o corpus sergiano está repleto de referências ao filósofo de Königsberg e às correntes que ele determinou. * Texto originalmente publicado em Seara Nova, secção Memória, n.º 1710, Inverno de 2009, pp. 37-39. [N. do E.]

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Idealismo e neokantismo no pensamento de António Sérgio

Cremos, todavia, que há certos escritos cujo objectivo não é discutir, a priori, o kantismo e o neokantismo em si (por vezes nem referem o nome de Imannuel Kant), mas por visarem um conjunto de conceitos e de temas de natureza notoriamente kantiana ou neokantiana, expressam, até mais do que os outros, um Sérgio herdeiro de Kant e de alguns movimentos filosóficos oitocentistas. A título de exemplo, sublinhamos a décima primeira das Cartas de Problemática que, para além de continuar a ser uma resposta a certos professores de letras (como é o caso de António José Saraiva, que, como sabemos, se envolveu polemicamente com Sérgio acerca do seu idealismo) que teimavam em refutar o que ele havia dito, é também uma demonstração do seu kantismo. Em Considerações sobre o Problema da Cultura, António Sérgio aponta que se, por um lado, “a revolução de Kant foi um novo impulso para uma filosofia da consciência e da reflexão”1, por outro constata que “o idealismo racional do verdadeiro Europeu não se inseriu ainda no viver social, não entrou nas almas, não modelou a escola, não logrou transformar-nos à sua própria imagem. Continuamos a viver no «noivado bárbaro», – isto é, na aliança incoerente da criação científica com o espontâneo realismo da percepção sensível”2. No fim de contas, para o autor dos Ensaios, por mais que Imannuel Kant tenha revolucionado, no século XVIII, o sistema gnosiológico-epistemológico e o pensar filosófico ocidental, tal revolução não se conseguiu entranhar plenamente na vida e na ciência dos europeus. Também por isso, para além de outras razões de foro estritamente filosófico, surge, acima de tudo na Alemanha, nos meados do século seguinte, o neokantismo. Tal corrente surge como uma reacção ao idealismo objectivo de Georg Hegel, à metafísica em lato senso e ao cientificismo positivista e, noutro sentido, é uma reaproximação ao sistema kantiano e à reflexão crítica e filosófica na sua autenticidade. Numa única expressão: “Zurück zu Kant!” António Sérgio insurge-se, assim, contra a doutrina dialéctica de Hegel, apresentando, em contrapartida, o seu idealismo crítico e a sua filosofia relacional. Critica o positivismo mas, contrariamente àqueles que se mostram adeptos de um puro neokantismo, não se afasta integralmente

SÉRGIO, António. Considerações sobre o Problema da Cultura. In: ______. Ensaios, t. III. 2.ª ed. Edição crítica de Castelo Branco Chaves, Vitorino Magalhães Godinho, Rui Grácio e Joel Serrão; org. Idalina Sá da Costa e Augusto Abelaira. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1980, p. 50. 2 Ibidem, p. 50. 1

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da metafísica. Por mais que afirme que é todo “crítica, da cabeça aos pés”3, Sérgio não nega, em bloco, tal como fazem os neokantianos em geral, o que se apresenta contrário a essa posição. Não nega a metafísica nem sequer a mística: “Desta forma, o misticismo e o racionalismo seriam revelações de uma só tendência: a da afirmação da Unidade, – a qual é, no primeiro caso, sentimentalmente vivida; e, no segundo, afirmada por meio de ideias nítidas”4. Contudo, a verdadeira aproximação de António Sérgio a Imannuel Kant dá-se, essencialmente, através da sua gnosiologia ou da sua teoria do conhecimento. Afinal, é a partir do momento em que postula uma filosofia crítica, reflexiva, relacional e que destaca a importância da Razão e do Espírito, bem como reflecte acerca de categorias como sujeito, objecto, coisa, percepção, tempo, espaço, por exemplo, do modo como ele as trata, que António Sérgio mais está em consonância com o kantismo e com o neokantismo.

Verdadeiro crítico Enquanto verdadeiro crítico e verdadeiro racionalista (e tal não implica, todavia, como pretendem alguns neokantianos, uma dissociação do romantismo, da aventura e do risco), António Sérgio ambiciona estruturar uma teoria do conhecimento que consista numa ascensão de nível do eu empírico e instintivo para o eu espiritual. No fundo, pretende que o ser humano se torne, à semelhança do que pensava Kant, gerador de ciência e de moralidade. Até porque, tendo em conta a sua concepção, só quando o homem reconhecer o seu eu espiritual e, ao mesmo tempo, deixar para trás o seu eu não espiritual – ou o sujeito psicológico –, terá a oportunidade de dessubjectivar o seu pensamento, transcender as impressões imediatas e a pura aparência sensível. Tal processo, todavia, diz respeito a uma actividade cognitiva específica que tem como objectivo criar Ciência. Não se trata, neste caso, naturalmente, de uma mera acção/reacção de conhecimento do senso comum, na qual o Sujeito se opõe ao Objecto e se centra o acto cognitivo na simples experiência e no simples instinto. António Sérgio, por mais que, tal como Kant, não negue a importância da experiência para a teoria do conhecimento, está a reportar-se à Actividade-Fisis, isto é, à Actividade na qual se postula uma nivelação entre Sujeito e Objecto e, simultaneamente,

Idem. Sobre o Método mais próprio para converter o incréu. Seara Nova, Revista de Doutrina e Crítica. Lisboa, ano XVII, n.º 515, 26 de Junho de 1937, p. 215. 4 Idem. O Jogral de Deus. Seara Nova, Revista de Doutrina e Crítica. Lisboa, ano VII, n.º 160, 9 de Maio de 1929, p. 249. 3

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na qual este mesmo Objecto não é visto como coisa (na medida em que a “ciência precisa de acontecimentos, mas não de coisas”5). Nos momentos em que, na sua obra, Sérgio alude à Actividade-Físis, está a referir-se à existência de uma realidade independente do conhecimento que o condiciona e que deve ser pensada como “actividade, como energia, e não como coisa”6. Ora, no seu entender, a noção de coisa só pode ser aplicada no nível percepcional da mente (o qual é explorado essencialmente pelo senso comum, tal como já havíamos visto) e não no nível formal da ciência, da reflexão filosófica ou até mesmo da metafísica. Nestes patamares, que já implicam uma elevação formal, a noção de coisa é rejeitada ou, tal como Sérgio parece propor, é desabsolutizada. Afinal de contas, a partir do momento em que o sujeito psicológico e empírico se transcende em sujeito espiritual, criador de Ciência e de Moral, erradica o hiato que o senso comum estabelece entre Sujeito e Objecto, entre Sujeito e Coisa. Deste modo, a ideia de Sujeito é correlativa à ideia de Objecto. Esta última, aliás, reclama a primeira. Se, portanto, o Objecto é relativo a um Sujeito, poder-se-á dizer que o Objecto existe na trama e na relação do conhecimento e que a sua coisificação deixa de fazer sentido. A absolutização ou o absolutismo da Coisa que é oposta e resistente a um Sujeito passa, assim, a ser rejeitada. Até porque, na relação em que se constitui o acto do conhecimento, “o objecto é um construto; criado ao nível percepcional da mente”7. Não, é, efectivamente, uma coisa. E, mesmo que a explicite de uma forma um pouco diferente, a noção que Imannuel Kant dá para Objecto não se distingue grandemente daquela que António Sérgio expõe. No pensamento de António Sérgio, o Objecto não é, pois, entendido como a mera coisa que diante dos olhos e dos outros sentidos se coloca, afinal, como ressalta num dos trechos da décima primeira das Cartas de Problemática, “não há nada que falar de absoluto, aqui. Somente este lema, não se deixar obcecar pelas intuições sensíveis, não tomar como absolutas as diferenças no sensível; mas encará-las como sinais (só como sinais) da Actividade-Físis, que cumpre interpretar segundo Formas”8. Aquilo que se entende por Objecto não resulta tão-só das impressões sensíveis ou dos sinais que a Actividade-Físis emana, mas da construção perceptiva que o Idem. Cartas de Problemática (Dirigidas a um Grupo de Jovens Amigos, Alunas e Alunos da Faculdade de Ciências). Carta n.º 11. In: ______. Notas Sobre Antero, Cartas de Problemática e Outros Textos Filosóficos. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001, p. 434. Sublinhados do autor. 6 Ibidem, p. 434. Sublinhados do autor. 7 Idem, Cartas de Problemática, Carta n.º 11, p. 436. 8 Ibidem, p. 442. 5

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entendimento dele faz. Neste caso, tanto para Kant quanto para Sérgio, o Objecto não é opositor do Sujeito, nem sequer é uma simples coisa independente e autónoma, forma-se no acto e na relação cognitiva. Por outras palavras, “os objectos, também, estão no pensamento como imagem, estão no pensamento como ideia [; ou, antes, criam-se no pensamento como imagem, criam-se no pensamento como ideia, consoante as relações que os constituem]. Se suprimirdes a consciência, – abismai-vos no Coisa nenhuma: no Nada. O «objecto» sem o sujeito é pois um impossível”9. Quando, no texto Educação e Filosofia, António Sérgio escreve “a medida de todas as coisas é o pensamento do indivíduo quando o indivíduo realmente pensa, quando pensa criticamente [(objectivamente, universalmente, fazendo-se espírito)], buscando a coerência consigo próprio e descendo à raiz do seu próprio ser; ora, a raiz de cada um de nós, segundo Sócrates, é a fonte comum de conclusões comuns; é uma Razão universal, e que por isso nos vincula a todos a uma mesma sociedade universal, – a uma sociedade da Razão que procuramos concretizar”10, está a ser fidelíssimo aos pressupostos que Kant expõe ao longo da sua Crítica da Razão Pura. Se o nosso autor alega que um dos seus principais mestres, no que concerne à construção do seu idealismo e do seu racionalismo, foi Platão, é indiscutível, por outro lado, que o modo e a forma como tais correntes são desenvolvidas na obra sergiana, não se apresentem kantianamente. Se Platão foi o seu mentor no aspecto espiritual, Kant orientou-o formalmente.

Racionalismo A insistência na defesa de uma arquitectónica da razão pura e de um adensamento das formas a priori dessa mesma razão significa, quer para Kant quer para Sérgio, o conhecimento de como a razão, em si mesma, se estrutura. Ambos os pensadores não têm o escopo de descortinar o que, hipoteticamente, poderá estar para além dessa razão ou mesmo qual é a sua origem, até porque, na concepção dos dois, a razão a si mesma se basta. É, portanto, por esse motivo, que a Filosofia, o acto de filosofar e o filósofo são fundamentais para a edificação de uma sociedade racional. Através deles, porque o homem exerce o talento da Razão, o conhecimento humano torna-se mais claro e o fim último de toda a razão pura é apontado Idem. Educação e Filosofia (Princípios de uma Pedagogia Qualitativa de Acção Social e Racional), § 7. In: ______. Ensaios, t. I. 3.ª ed. Edição crítica de Castelo Branco Chaves, Vitorino Magalhães Godinho, Rui Grácio e Joel Serrão; org. Idalina Sá da Costa e Augusto Abelaira. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1980, pp. 148-149. 10 Ibidem, p. 135. Sublinhado do autor. 9

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notoriamente. Ou seja, na medida em que o homem é um ser racional, um legislador da sua própria razão, o seu fim último só pode ser a moralidade, só pode ser a ascensão do Bem. Contudo, e apesar de António Sérgio estar convicto de que o objectivo da sociedade racional e universal se patenteia na moral, ele critica Kant num aspecto muito específico: “É talvez um defeito na terminologia do Kant o identificar a razão prática com a ética: esta, ao que se me antolha, é um caso específico daquela”11. Neste sentido, é natural que Sérgio se questione em que circunstâncias, para Kant, a razão prática é moral. Se o racionalismo de Kant se explica a partir do seu moralismo e, em certa medida, está-lhe totalmente condicionado, isto é, se a arquitectónica da sua Razão implica um objectivo moral, o racionalismo sergiano segue precisamente estas coordenadas. Tal como o autor de Crítica da Razão Pura, Sérgio apresenta um racionalismo que não se sustenta a si próprio, na medida em que está incondicionalmente associado à moral, ou seja, não é um racionalismo que se viabilize a si próprio enquanto tal, já que tem sempre o fito da moralidade. Nesta questão, concordamos na íntegra com as críticas que Eduardo Lourenço tece ao racionalismo sergiano. Se, por um lado, “como todo o racionalismo, o de António Sérgio é uma forma de voluntarismo e, ironia das coisas, uma paixão. Celebremo-la porque foi nobre e ardente e de alto propósito. Mais do que tudo foi ela formal e subjectivamente coerente como é raro em praias lusitanas”12, por outro, o autor de Sérgio como mito cultural está plenamente convencido de que o racionalismo sergiano, para além de estar intrinsecamente associado ao seu ensaísmo e ao seu polemismo, se sustenta erroneamente quando se confunde com o objectivo moral. No entanto, não cremos, tal como supõe Lourenço, que o racionalismo de Sérgio seja somente uma reapresentação dos racionalismos neokantianos que, no seu tempo, abundavam por toda a Europa, nem tão-pouco seja um racionalismo aproblemático. Ao invés, julgamos que, apesar de se confudir inevitavelmente com o seu racionalismo e com o seu ensaísmo, o idealismo crítico de António Sérgio está repleto de categorias que o tornam problemático, questionador e instigante: a saber, a existência de um racionalismo místico; a exaltação de um revolucionarismo e de um socialismo anterianos; a manifestação de um polemismo romântico; a utilização de um ensaísmo filosófico, característico e perturbador.

Idem, Educação e Filosofia, § 6, p. 143. LOURENÇO, Eduardo. Sérgio como mito cultural. In: ______. O Labirinto da Saudade. Psicanálise Mítica do Destino Português. Lisboa: Gradiva, 2000, p. 171.

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A Seara Nova no itinerário pedagógico de Faria de Vasconcelos* MANUEL FERREIRA PATRÍCIO Universidade de Évora

A recente promoção, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, do Colóquio “Proença, Cortesão, Sérgio e o Grupo Seara Nova”, nos dias 28, 29 e 30 de Outubro de 2009, proporcionou trazer à luz da ribalta a grande figura de Faria de Vasconcelos, co-fundador daquele Grupo. Apresentei, no referido Colóquio, uma comunicação sobre as perspectivas educativas abertas pelo eminente pedagogo na Seara Nova. Parece, pois, oportuna a iniciativa da direcção desta Revista em abrir as suas portas à análise e discussão da obra do pedagogista e pedagogo português que, até ao momento, maior repercussão internacional alcançou e que representa, sem dúvida, justo motivo de orgulho para a Seara Nova. Estudioso e admirador de Faria de Vasconcelos desde há quase meio século, foi com muito gosto que aceitei o convite para participar neste mais que justo desígnio, procurando contribuir para quebrar o pesado silêncio que estranhamente caiu sobre uma figura tão grande, notável e séria de intelectual e cidadão. Escolhi como caminho para alcançar o pretendido objectivo traçar um quadro largo do itinerário pedagógico de Faria de Vasconcelos, que a certa altura o trouxe de regresso a Portugal e o conduziu à Seara Nova (Grupo e Revista), no preciso momento em que ambos nasciam, em 1921. Faria de Vasconcelos – de seu nome completo António Sena Faria de Vasconcelos – nasceu em 1880, em Castelo Branco, e morreu em 1939, em Lisboa. Teve, pois, uma vida curta. Essa vida foi, contudo, muito rica e intensa. Filho e neto de juízes, bacharelou-se em Direito pela Universidade de Coimbra. O seu primeiro trabalho académico, hoje incluído no volume I das suas Obras Completas, em curso de publicação pela Fundação Calouste Gulbenkian1, teve por temática central o materialismo histórico e a crise * Texto originalmente publicado em Seara Nova, secção Memória, n.os 1712 e 1713, Verão e Outono de 2010, pp. 52-54 e pp. 49-52, respectivamente. [N. do E.] Estão publicados, até este momento, 4 volumes. Por indicação do Professor Doutor José Ferreira Marques, organizador da edição, serão publicados mais 2 volumes. Os

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religiosa do século XVI2. Faria de Vasconcelos mostra-se bem informado acerca do pensamento económico-social de Marx e Engels. A sua postura é, todavia, a do cientista social, não a do político: a do cientista social empenhado na transformação da sociedade. O vector transformador que vai escolher será o da educação, não o da intervenção política propriamente dita, ou seja, directa. À educação, com este sentido social transformador, dedicou toda a sua vida. O Direito foi apenas o seu ponto académico de partida, na linha da mencionada tradição familiar.

A formação na Bélgica Foi precisamente atraído pelo vector pedagógico da vida social que em seguida partiu de Portugal para a Bélgica, onde se matriculou na Universidade Nova de Bruxelas. Nela frequentou a Escola Livre Internacional de Ensino Superior, onde obteve o grau de Doutor em Ciências Sociais, tendo defendido a tese Esquisse d’une théorie de la sensibilité sociale3. Doutorou-se com brilho assinalável. Foi-lhe atríbuida a classificação “la plus grande distinction”, a qual ninguém (belga ou estrangeiro) obtivera nos dez anos anteriores (1904 foi o ano do seu doutoramento). Foi imediatamente contratado como professor da Universidade, passando a reger a cadeira de Psicologia e Pedagogia no Instituto de Altos Estudos (1904-1914). O período em causa corresponde, em Portugal, ao da última década da monarquia e dos primeiros quatro anos de implantação da República. É na República que a biografia de Faria de Vasconcelos se inscreve, sem alardes e com toda a naturalidade.

A Escola Nova de Bierges-Lez-Wawre, perto de Bruxelas À data do 5 de Outubro de 1910, Faria de Vasconcelos é um pedagogo completamente envolvido no Movimento da Escola Nova, que tinha em Genève o seu núcleo mais activo e qualificado, instalado no Intituto Jean-Jacques Rousseau e na Maison des Petits, anexa ao Instituto. Pontificam aí, nessa época, as figuras internacionalmente notáveis de Edouard Claparède, Adolphe Ferrière e Pièrre Bovet. Ferrière é, aliás, o Director do Bureau International anos de publicação foram os seguintes: vol. I, 1986; vol. II, 2000; vol. III, 2006; vol. IV, 2009. [Com efeito, em 2010, foram publicados, pela Fundação Calouste Gulbenkian, o quinto e o sexto volumes, tendo ainda saído, em 2011, enquanto volume sétimo, uma adenda – N. do E.] 2 VASCONCELOS, Faria de. Obras Completas, vol. I. Organização e introdução de J. Ferreira Marques, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986, pp. 1-26. 3 Idem. Esquisse d’une théorie de la sensibilité social. In: ______. Obras Completas, vol. I, pp. 111-186.

Manuel Ferreira Patrício

des Écoles Nouvelles, cuja sede é precisamente em Genève. Em 1911, fundou o pedagogo português, perto de Bruxelas, em Bierges-Lez-Wawre, uma Escola Nova que aspirava a realizar tanto quanto possível o modelo proposto pelo Bureau International, com os trinta caracteres definidos por Ferrière. Desse conjunto perfeito realizou a Escola de Bierges 28 caracteres e meio; a segunda Escola Nova mais perfeita do mundo, pois só a de Odenwald realizou os 30 pontos. As características da sociedade belga não permitiram que Faria de Vasconcelos realizasse integralmente o ideal sumariado pelo seu amigo Ferrière. A experiência veio a ser publicada em livro pela famosa editora Delachaux et Niestlé, com o título Une École Nouvelle en Belgique4. O texto nunca teve a oportunidade de ser publicado em Portugal, em português. Está hoje à nossa disposição nas Obras Completas5, mas ainda em francês. Ferrière traça o justo panegírico do grande pedagogo Faria de Vasconcelos no prefácio que escreveu para o livro. Faria de Vasconcelos tornou-se imediatamente uma figura emblemática do Movimento da Escola Nova à escala internacional. Não fique esquecido o facto de a Escola de Bierges-Lez-Wawre ter sido criada pelo pedagogo português a expensas suas. Ele quis mostrar à Europa e ao mundo a possibilidade e a realidade de uma Escola que realizava integralmente os princípios da pedagogia científica.

Em Genève, no Instituto Jean-Jacques Rousseau A guerra de 1914-1918 veio, entretanto, interromper essa experiência, com a invasão da Bélgica pela Alemanha. Faria de Vasconcelos dirigiu-se então para Genève, para junto dos seus amigos do Instituto Jean-Jacques Rousseau (Claparède, Ferrière e Bovet), integrando-se na sua equipa. Por indicação de Ferrière às autoridades cubanas, dirigiu-se para Cuba, onde realizou uma obra notável, e dali para a Bolívia, onde essa obra deve ser qualificada de notabilíssima.

A primeira obra (1900): O Materialismo Histórico e a Reforma Religiosa do Século XVI A 1.ª fase da obra científica de Faria de Vasconcelos incidiu sobre as ciências sociais em geral (sociologia) e a psicologia social, desde logo com abertura à psicologia educacional.

Idem. Une École Nouvelle en Belgique. Genève: Delachaux et Niestlé, 1915. Idem. Une École Nouvelle en Belgique. In: ______. Obras Completas, vol. II. Organização e introdução de J. Ferreira Marques, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000, pp. 1-144.

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A sua primeira obra, que é o seu primeiro trabalho académico, intitulase O Materialismo Histórico e a Reforma Religiosa do Século XVI. Encontra-se hoje publicada nas Obras Completas – I.6 Este trabalho, datado de 1900, constitui um extracto de uma dissertação para a 10.ª cadeira da Faculdade de Direito, com ligeiras modificações e acrescentamento de uma rápida introdução. Esta introdução é, de qualquer forma, extremamente importante para se perceber a base do pensamento social de Faria Vasconcelos, que é também a base da pedagogia que vai assumir. Termina essa Introdução com a seguinte posição: “A irreligião será um facto real no futuro”7. É Guyau que explicitamente segue. O filósofo francês era na altura lido e apreciado em Portugal. Leonardo Coimbra foi um dos pensadores portugueses que o leu e, na sua primeira fase, o tomou em consideração. A obra de Guyau referenciada por ambos foi L’Irreligion de l’Avenir. Além da Introdução, este trabalho de Faria de Vasconcelos tem duas partes: a primeira trata do materialismo histórico, com exposição dos seus princípios fundamentais; a segunda é dedicada à análise da determinação da génese e essência da Reforma Religiosa do século XVI. Entende Faria de Vasconcelos, no trabalho a que me venho referindo, que o materialismo histórico é a mais perfeita concepção sociológica moderna8. Sintetizaremos as conclusões do nosso autor sobre a Reforma, pondo à vista o penúltimo parágrafo do seu trabalho: “[…] a Reforma é substancialmente um momento da evolução económica do terceiro estado e formalmente, religiosamente, é o regresso consciente e propositado ao primitivo Cristianismo em toda a sua pureza e originalidade”9. A análise social estará sempre presente no desenvolvimento e realização do pensamento pedagógico de Faria de Vasconcelos; a política, não. Mas não se vislumbrando na vida de Faria de Vasconcelos um sinal claro de alteração radical dos seus pontos de vista de partida, este seu primeiro trabalho não deve ser esquecido, para entender o sentido social que alimentava todo o seu labor em prol da educação. Registe-se, a este propósito, a observação de Cristiana de Soveral, que vê em Faria de Vasconcelos basicamente um seguidor e praticante das correntes de pensamento positivista e experimental, parecendo-lhe

Idem. O Materialismo Histórico e a Reforma Religiosa do Século XVI. In: ______. Obras Completas, vol. I, pp. 1-26. 7 Ibidem, p. 5. 8 Ibidem, p. 13. 9 Ibidem, p. 25. 6

Manuel Ferreira Patrício

mais precisamente que “o positivismo de Faria de Vasconcelos vai-se aproximando de Lafitte, como também o fez Teófilo Braga”10.

Obras sociológicas e psicológicas (1902-1904) Em 1902, publica Faria de Vasconcelos o livrinho O Pessimismo (Semiologia e Terapêutica). Procurando desenhar as grandes linhas da terapêutica, combate o que chama a ética individualista e propugna uma visão diferente, de identificação do interesse particular com o interesse social, do indivíduo com a Sociedade, subordinando a perfeição daquele à perfeição desta11. Para que venha a ser assim, brada pelo investimento na educação e na instrução: “Eduquem-se e instruam-se as multidões”12. Não bastaria, e ele o saberia bem. Mas é interessante ver que, à cabeça das transformações a operar, aparecem a instrução e a educação. Nesse mesmo ano de 1902, fez Faria de Vasconcelos uma conferência no Ateneu Comercial de Lisboa, na noite de 18 de Outubro, sobre “O ensino ético-social das multidões”. A temática social do pessimismo continua presente no espírito preocupado de Faria de Vasconcelos. “A arte, a filosofia e a vida estão invadidas de todo um cepticismo glacial que desacorda as vontades e perturba os espíritos”13. O intelectual português não partilha essa visão da vida. Seguindo Gustave Le Bon, ele defende que “é com a instrução e com a educação que se altera ou melhora a alma das multidões, […] e consequentemente, […] a alma dos povos e a da humanidade que é a síntese integradora de todas as multidões”14. Acontecia, porém, que os sistemas de educação e instrução vigentes nos diversos países viviam ainda de um anacronismo descomedido, com relevo para as raças latinas. Contra a educação fossilizada dominante nestes países, entre os quais o nosso, pensava Faria de Vasconcelos ser necessário instaurar “uma nova educação moral e científica” que levantasse as forças deprimidas das sociedades modernas, que fizesse da escola uma aprendizagem da vida, de uma vida mais larga, humana e social15. Defende, no quadro desta visão das coisas, iniciativas novas de vulgarização da cultura humana, como as PASZKIEWICZ, Cristiana de Soveral e. Faria de Vasconcelos: uma aproximação ao seu pensamento. In: AA.VV. O Pensamento Luso- Galaico-Brasileiro. Actas do I Congresso Internacional, vol. I, Lisboa: INCM, 2009, p. 248. 11 VASCONCELOS, Faria de. O Pessimismo (Semiologia e Terapêutica). In: ______. Obras Completas, vol. I, pp. 76-77. 12 Ibidem, p. 77. 13 Ibidem, p. 83. 14 Ibidem, p. 85. 15 Ibidem, p. 86. 10

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universidades populares, em que aliás veio mais tarde a empenhar-se e envolver-se pessoalmente. Em 1902 escrevia: “No nosso país infelizmente nada há. A lepra do analfabetismo corrói o povo”16. Estamos a ver como a instrução e a educação emergem no pensamento de Faria de Vasconcelos em coerência com a sua apologia do materialismo histórico. E estamos de igual modo a ver a tradução política que ele faz dessa convergência. Obras psicológicas (1903) Em 1903, apresenta ao Laboratoire de Sociologie de l’Université Nouvelle de Bruxelles uma Mémoire intitulada La psychologie des foules infantiles. O caminho da educação a trilhar abre-se cada vez mais nitidamente aos seus pés. Obras sociológicas e psicológicas (1904) Logo no ano seguinte, 1904, elabora e apresenta a tese Esquisse d’une théorie de la sensibilité sociale. O movimento da sua análise condu-lo da sensibilidade dos grupos sociais à sensibilidade do indivíduo nos grupos, para chegar à consciência social. O ponto de partida, ou base, havia sido o esforço de definição, domínio e condições de produção dos factos da sensibilidade social. Dentro da sua postura positivista fundamental, anti-metafísica, para Faria de Vasconcelos “a consciência social, como a individual, é um dos modos superiores e complexos da sensibilidade”17. Não é, pois, “une entitè métaphysique et abstraite”18. Como tal, é necessário geri-la e formá-la. Nas suas palavras: “Le processus conscient est le processus qui accompagne tout phénomène social. Sans lui il n’y a pas de fonctionnement social vraiment caractéristique et spécifique”19. Na sua boa gestão põe Faria de Vasconcelos as suas melhores esperanças: “À l’accroissement et complications de la puissance rationelle et consciente des groupes sociaux, correspondra celle de l’individu et l’avenir nous assurera le triomphe de l’individu dans un groupe libre”20.

A primeira obra pedagógica (1909) Aproxima-se a implantação da República. É o ano de 1909. Da série de lições sobre pedologia que professou na Sociedade de Geografia de Lisboa, 18 19 20 16 17

Ibidem, p. 92. Idem, Esquisse d’une théorie de la sensibilité sociale, p. 179. Ibidem, p. 179. Ibidem, p. 186. Ibidem, p. 186.

Manuel Ferreira Patrício

sob os auspícios da Liga de Educação Nacional, resulta a publicação do livro Lições de Pedologia e Pedagogia Experimental. Nas breves palavras de apresentação, a anteceder as lições, escreveu Faria de Vasconcelos estas palavras, que bem esclarecem a crença profunda que tinha nas virtualidades de transformação social (e decerto política) da educação: “A Liga de Educação Nacional, com uma clareza que a todos convence, reduziu o problema nacional a um problema de educação. Entre nós, como de resto nos outros países, é este o problema fundamental. Para ele devem, pois, convergir os melhores esforços e as melhores esperanças de quem tudo espera da Educação”21. Faria de Vasconcelos era um desses. A sua vida o provou sem uma falha. Uns anos mais tarde, pela Seara Nova de que fora um dos fundadores, saíram duas séries dos Problemas Escolares (a 1.ª em 192122, a 2.ª em 192923). Estas lições são, vemo-lo hoje, uma espécie de prolegómenos a essas outras publicações. Talvez não seja inútil apresentar sumariamente as temáticas tratadas neste livro. A 1.ª lição é de Introdução; a 2.ª, de apresentação dos problemas e dos métodos; a 3.ª, sobre o crescimento físico; a 4.ª, sobre os factores do desenvolvimento mental; a 5.ª, sobre os órgãos dos sentidos; a 6.ª, sobre a memória; a 7.ª, sobre a associação das ideias; a 8.ª, sobre a atenção; a 9.ª, sobre a inteligência; a 10.ª, sobre a afectividade; a 11.ª, sobre a actividade; a 12.ª, sobre a fadiga. Para cada lição é indicada copiosa e actualizada bibliografia. O livro representava um preciosíssimo auxílio dado aos pedagogos e docentes nacionais. A clareza e objectividade da exposição, o sentido prático, a relação íntima sempre estabelecida entre a ciência e a sua aplicação com as crianças constituem ainda hoje um exemplo a seguir. O pedagogo Faria de Vasconcelos está maduro.

Em Cuba e na Bolívia A organização que J. Ferreira Marques encontrou para as Obras Completas de Faria de Vasconcelos obedeceu estritamente a um critério cronológico. O volume II destas Obras compreende o período situado entre 1915 e 1920. Dentro dele ocorreu a I Guerra Mundial. A guerra alterou profundamente a vida de Faria de Vasconcelos. Com a invasão da Bélgica pelo

Idem. Lições de Pedologia e Pedagogia Experimental. In: ______, Obras Completas, vol. I, p. 190. 22 Idem. Problemas Escolares. 1.ª Série. Lisboa: Empresa de Publicidade «Seara Nova», 1921. 23 Idem. Problemas Escolares. 2.ª Série. Lisboa: Empresa de Publicidade «Seara Nova», 1929. 21

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exército alemão, o pedagogo viu-se forçado a cessar a experiência da Escola de Bierges-Lez-Wawre, rumando a Genève, para junto dos seus amigos do Instituto Jean-Jacques Rousseau e da Maison des Petits. Algum tempo depois, e por diligência de Adolphe Ferrière, rumou primeiro à Cuba e depois à Bolívia, onde veio a realizar uma notável obra pedagógica. A sua acção, aliás, veio a estender a sua influência a toda a América Latina. Decerto que fruto dessa acção é o notável pedagogo cubano Aguayo e o vasto movimento brasileiro espelhado na linha editorial da Companhia Editora Nacional, de São Paulo, onde avultam as figuras de J. B. Damasco Penna, Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira, Afrânio Peixoto e Theobaldo Miranda Santos, entre outros. Os reflexos dessa acção de Faria de Vasconcelos vieram a ter repercussão em Portugal, onde esses livros chegaram. Ainda pude adquirir muitos deles em Lisboa, em alfarrabistas, a partir de 1959 e até à minha ida para o Liceu Nacional de Évora, em Fevereiro de 1967. Aguayo, com a sua Didáctica de la Escuela Nueva, era lido e estudado nas Escolas do Magistério Primário. Era-o em Évora, onde dele tomei conhecimento em 1957-1959. Do mesmo modo, eram lidos entre nós os pedagogos brasileiros, e em geral os sul-americanos, na década de sessenta. Conheci mesmo uma original biblioteca pedagógica cooperativa, utilizada e gerida por um grupo de professores que para o efeito se associou. Tive acesso a essa biblioteca. Este período de 1915-1920 foi, pois, de grande fecundidade pedagógica da parte de Faria de Vasconcelos. Como se reflecte essa fecundidade no volume II das Obras Completas? Pois vamos vê-lo.

A obra retumbante: Une École Nouvelle en Belgique O primeiro grande texto que este volume inclui é o correspondente ao livro Une École Nouvelle em Belgique, publicado em Genève em 1915. Prefaciado por Adolphe Ferrière, é constituído por quatro capítulos, a saber: o primeiro, sobre o meio e a educação física; o segundo, sobre a educação intelectual; o terceiro, sobre alguns procedimentos de ensino (as ciências naturais, a matemática, as línguas, a geografia e a história); o quarto, sobre a educação moral, social e artística (o meio material e social, o self-government, o conjunto liberdade-autoridade-sanções-mestres, o gosto, a arte, a música, o canto, a educação sexual e a coeducação). Este livro – que, até hoje, não foi objecto entre nós de uma versão em língua portuguesa, facto tristemente significativo… – corresponde ao período europeu inicial da vida e obra do pedagogo português. A École Nouvelle de que se trata é a de Bierges; o texto corresponde a um conjunto de conferências proferidas por Faria de Vasconcelos em Genève, no Instituto

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Jean-Jacques Rousseau, em 1915, no período que se seguiu à sua forçada retirada da Bélgica. Debrucemo-nos um pouco sobre o prefácio que Adolphe Ferrière escreveu para o emblemático livro Une École Nouvelle en Belgique24. É neste prefácio que Ferrière apresenta os trinta caracteres requeridos para a Escola Nova ideal. É claro que esses trinta caracteres não eram requeridos na sua totalidade para que fosse permitido a uma escola instituir-se como Escola Nova – diz Ferrière. A de Odenwald realizou os trinta; a de Bierges-LezWawre realizou, segundo o prefaciador, vinte e oito e meio. Foi a segunda muito próxima do programa máximo. O programa mínimo deveria obedecer aos seguintes princípios: a escola devia estar situada no campo, fazer o ensino a partir da experiência e enriquecido pelo trabalho manual, funcionar em regime de autonomia dos escolares. Quanto aos caracteres, deveria aplicar pelo menos metade dos traços característicos da Escola Nova típica – ou seja, 15 caracteres. Segundo as palavras de Ferrière, nesse prefácio, situavam-se ao tempo abaixo da Escola de Bierges, por ordem decrescente, as seguintes: a Escola de Bedales, em Inglaterra, com 25 pontos; a Escola de Abbotsholme, também em Inglaterra, com 22 pontos e meio; a Escola de Lietz, na Alemanha, com 22 pontos; a Escola des Roches, em França, com 17 pontos e meio. Faria de Vasconcelos é qualificado por Ferrière como “ce pionnier de l’education de l’avenir”25. O prefácio é datado de Julho de 1915 e localizado em Les Pléiades sur Blonay, cantão de Vaud. No chalet que Ferrière aí tinha, informa J. Ferreira Marques que abriu Faria de Vasconcelos, “na Páscoa de 1915, uma escola, aplicando os princípios da escola de Bierges mas destinados a raparigas e rapazes”26, realizando deste modo o princípio da coeducação de sexos, que a legislação belga não lhe permitira aplicar em Bierges.

O «Syllabus» (Bolívia, 1919) O segundo texto intitula-se «Syllabus» del Curso de Dirección y Organización de las Escuelas – Primera Parte. Trata-se de um livro publicado pela Escola Normal de Sucre (Bolívia), em 1919, sendo Faria de Vasconcelos Professor e Director da Escola nessa data. É um livro informativo e prático, característica própria dos escritos do pedagogista português, homem universalmente empenhado no fazer e no fazer bem e actual. Cf. idem, Une École Nouvelle en Belgique, ed. cit. Cf. ibidem, p. 11. 26 Ibidem, p. X. 24 25

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A Revista Pedagógica (Bolívia) Segue-se um conjunto de artigos publicado na Bolívia, em Sucre, na Revista Pedagógica. São ao todo dez artigos, centrados na circunstância pedagógica e escolar boliviana. Segue-se um conjunto de oito textos de conferências feitas e publicadas na América do Sul, sobre temas de educação, de moral, de política na circunstância boliviana e ainda de ordem cultural e espiritual. A temática da moral ocupa o quarto agrupamento de textos do volume, na perspectiva sociológica e psicológica que era a de Faria de Vasconcelos. Destacarei ainda o pequeno texto, de clara actualidade no Portugal de hoje, “Lo que debe ser un profesor”, datado de 1920. Desse pequeno texto extraio dois períodos, apenas, como que para trazer Faria de Vasconcelos ao debate hodierno sobre a valia e dignidade do professor. Eis o primeiro, em português: “São [os educadores] os obreiros fecundos, generosos, infatigáveis que andam construindo o futuro”27. Eis o segundo: “Só um educador pode dar-se conta da soma prodigiosa de esforços, de sacrifícios e de paciência que representa a obra educativa”28.

Intervenções políticas em defesa da causa boliviana Na Bolívia, Faria de Vasconcelos envolveu-se em algumas intervenções políticas, em defesa da causa boliviana, focalizando principalmente a perda do acesso da Bolívia ao mar, consequência da apropriação pelo Chile de todo o litoral, no âmbito da chamada Guerra do Pacífico, em 1879. Perante a Sociedade das Nações, ele afirma: “No soy boliviano. Soy un português educado en Bélgica”29. “Todo esto lo digo no para enumerar títulos que importan poco, sino para precisar que mi conferencia es la voz de un extranjero arrancada de la razón y no de las pasiones ardientes de un patriotismo vibrante”30.

Inéditos escritos na América Latina O último grupo de textos deste volume é constituído por inéditos escritos na América Latina. O último corresponde a uma carta dirigida por Faria de Vasconcelos ao Reitor da Universidade, em 1920. É uma espécie de relatório sobre o andamento e as necessidades da Escola Normal Superior, de que era Director, satisfazendo um pedido do Reitor. Pretende Faria de 29 30 27

28

Ibidem, p. 595. Ibidem, p. 595. Ibidem, p. 601. Ibidem, p. 601.

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Vasconcelos, como o próprio diz, “tocar com a amplitude necessária nos distintos pontos dignos de chamar a atenção benevolente dos poderes públicos”31. São os seguintes esses pontos: a reforma dos programas escolares; o aumento da escolaridade; o material e mobiliário escolares; a compra de uma quinta para o ensino experimental da agricultura e a organização de campos de jogos e desportos; a construção de um internato para as “señoritas”; a construção de um edifício escolar modelo para a Escola Normal; as obras e melhoramentos da Escola; as pensões dos alunos; a Secção de jardineiras de infância; a Escola de Aplicação da Escola Normal; criação de um quarto grau primário com tendências profissionais nas Escolas de Aplicação; Syllabus dos professores; Revista Pedagógica; excursões; biblioteca; vencimentos dos professores; plano de críticas metodológicas; governo próprio [é o self-government]; cursos públicos; intensificação da prática profissional dos alunos; escutismo; caixa de aforro dos professores da Escola Normal para subvencionar missões de estudo no estrangeiro; a Escola Normal ao serviço das demais Escolas; melhoramentos materiais; nivelação das bolsas; disciplina; professorado; manutenção das iniciativas dos anos anteriores; prática escolar. São, ao todo, 29 pontos. A sua leitura permite-nos ficar com uma visão dos vectores principais da vida da Escola Normal Superior de Sucre, da competência de Faria de Vasconcelos, da sua objectividade e hombridade, da sua visão futurante. Foi um grande semeador pedagógico português em terras da América Latina.

Na Seara Nova (Grupo e Revista) e na Universidade Popular Portuguesa (a partir de 1921) Avancemos na vida e na obra do pedagogo e pedagogista Faria de Vasconcelos. O período que iremos agora passar em revista é o compreendido entre 1921 e 1925. São duas datas importantes na vida e na obra do pedagogo. A primeira assinala a sua integração no Grupo Seara Nova, de que foi co-fundador, e a colaboração que consequentemente publicou na revista Seara Nova; assinala ainda o seu envolvimento na Universidade Popular Portuguesa. A segunda data antecede imediatamente a criação do Instituto de Orientação Profissional. Faria de Vasconcelos reside e trabalha finalmente em Portugal, regressado da Europa e da América Latina. A sua actividade é intensa e significativa. A educação é central, como já foi assinalado, mas aparece sempre ligada a interesses e compromissos políticos, todavia numa perspectiva que nunca apresenta contornos partidários mas que se situa à esquerda. É o caso da sua colaboração na revista Educação 31

Ibidem, p. 681.

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Popular, órgão da Universidade Popular, e no jornal A Batalha, porta-voz da CGT (Confederação Geral do Trabalho). Na mesma linha política geral são publicados na Seara Nova, nos anos de 1921 e 1922, uma série de importantíssimos artigos sob o título geral de “Bases para a Solução dos Problemas da Educação Nacional”, os quais vão constituir a medula da proposta de Lei de Bases da Educação Nacional apresentada pelo Ministro João Camoesas ao Congresso da República em 1923. Lembremos que Camoesas foi elemento do Grupo Seara Nova e da Universidade Popular Portuguesa. É logo em 1921 que a Seara Nova publica o livro Problemas Escolares – 1.ª Série, que é uma peça da nossa história pedagógica que ainda hoje vale muito a pena ler. É ainda a Seara Nova que publica Problemas Escolares – 2.ª Série, em 1929, e uma segunda edição da 1.ª Série. O volume III das Obras Completas é crucial para situar Faria de Vasconcelos no Grupo e na revista Seara Nova. Nele aparece reunida, em capítulo próprio, toda a colaboração de Faria de Vasconcelos na Seara Nova entre 1921 e 192432. Não é exactamente toda a colaboração de Faria de Vasconcelos, mas é quase toda, com excepção, evidentemente, dos livros Problemas Escolares – 1.ª Série e Problemas Escolares – 2.ª Série. Nos textos publicados, Faria de Vasconcelos assume-se sempre como membro do Grupo Seara Nova, falando em seu nome.

Outros escritos do período 1921-1925 Neste III volume encontramos interessantes textos sobre Educação, em geral, e sobre Educação popular, em particular. Estes evidenciam a preocupação nuclear, de natureza pedagógico-política, de Faria de Vasconcelos. Típico desta preocupação é o artigo que fez publicar na revista Educação Popular, “O que deve ser a Universidade Popular Portuguesa”33. A mesma intencionalidade demopédica (ou demopaidêutica) encontramos no texto “Bases para a organização de Institutos de Educação Superior para Adultos”, correspondente à intervenção do pedagogo e pedagogista no Congresso Nacional de Educação Popular promovido pela Universidade Livre em 1921. Este texto é um projecto de criação e organização dos referidos institutos, para começar nos centros urbanos, mas para estender, nas condições e prazos possíveis, às populações rurais34.

Cf. idem, Obras Completas, vol. III. Organização e introdução de J. Ferreira Marques. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006, pp. 67-150. 33 Ibidem, pp. 3-10. 34 Ibidem, pp. 35-48. 32

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Faria de Vasconcelos multiplicou-se em iniciativas deste género, a diversos níveis, no seio da Universidade Popular. Exemplos: a organização de Cursos Pedagógicos para as Famílias, pela Universidade Popular; o programa concreto, muito sumário, de um desses Cursos; o programa, igualmente muito sumário, de um Curso de enfermeiras escolares35. Outro exemplo é dado pelo texto “Bases para uma Escola Primária Tipo Municipal”, elaborado a pedido de Alexandre Ferreira, vereador do pelouro da instrução da Câmara Municipal de Lisboa36. Outro, de novo a pedido de Alexandre Ferreira, a elaboração de umas bases para a organização de um campo de jogos, em terreno municipal, de um jardim de infância (tipo municipal) e de uma escola primária (tipo municipal)37. A mesma preocupação demopédica percorre o notável artigo publicado nos Anais das Bibliotecas e Arquivos sobre “A biblioteca, Nicolau Roubakine e a sua obra”38. Faria de Vasconcelos conhecera pessoalmente o Dr. Nicolau Roubakine na Suíça, o qual lhe foi apresentado por um amigo comum, Adolphe Ferrière. A mãe de Roubakine, russa tal como o seu marido, fundou em 1875, em S. Petersburgo, uma biblioteca popular. Roubakine acompanhou a mãe no trabalho da biblioteca, destinada à gente do povo, desde os 13 anos. Veio a conceber uma ideia de biblioteca que Faria de Vasconcelos considera um prodígio de simplicidade e de luz. A ideia foi esta: assim como há tipos de livros, há tipos de leitores. Ou seja: é preciso dar a cada leitor o livro que corresponda ao seu tipo, o livro de que ele precisa. Seguir o desenvolvimento prático desta ideia é algo de fascinante. Faria de Vasconcelos considera a obra gigantesca de Roubakine uma “verdadeira «Universidade Popular por correspondência»”39.

Professor de Psicologia Geral na Faculdade de Letras de Lisboa Faria de Vasconcelos lutou toda a vida pelo assentamento da organização social e da organização da educação na atitude e na prática científicas. Professor na Faculdade de Letras de Lisboa, que lhe confiou a regência do curso de Psicologia Geral, publicou em 1924 o livro Lições de Psicologia Geral,40 que correspondia a uma parte do curso professado. A série das experiências com indicações relativas ao material necessário para as realizar, à técnica 37 38 39 40 35

36

Ibidem, pp. 47-48. Ibidem, pp. 477-487. Ibidem, pp. 505-514. Ibidem, pp. 51-57. Ibidem, p. 57. Idem. Lições de Psicologia Geral [Lisboa, 1924]. In: ______. Obras Completas, vol. III, pp. 519-822.

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da sua execução e à apreciação dos seus resultados ficava para publicação ulterior em volume separado. A obra aparece dedicada a Luís da Câmara Reis, companheiro e amigo, como ele pertencente ao Grupo Seara Nova. As lições incidem sobre os seguintes temas principais: a atenção; o hábito; a memória; a associação; a consciência e o inconsciente. É um curso escolar, bem estruturado e bem exposto, assente no que era a ciência psicológica da época, numa leitura feita a partir do mundo científico francófono (Suíça, Bélgica, França).

O Instituto de Orientação Profissional e outras iniciativas (1925-1933) Passemos ao período compreendido entre 1925 e 1933. Este é o período em que Faria de Vasconcelos se dedica por inteiro ao arranque e desenvolvimento do Instituto de Orientação Profissional em Lisboa. A sua vida e publicações exprimem fielmente essa realidade. A ideia e o projecto vinham de trás. Puderam agora concretizar-se, graças ao legado que para o efeito doou D. Francisca Barbosa de Andrade, o qual permitiu materialmente a criação do Instituto de Orientação Profissional Maria Luísa Barbosa de Carvalho. Pode afirmar-se que mais de quatro quintos das 480 páginas de texto útil do IV volume das Obras Completas são dedicadas ao Instituto de Orientação Profissional. Há, ainda assim, textos que incidem sobre outros assuntos. Um deles intitula-se “Monographie de L’Institut de Rééducation Mentale et Pédagogique”, datado de 1931. É um tema que mantém toda a actualidade. Consta apenas de 3 páginas. Como sempre, Faria de Vasconcelos vai directo ao essencial. Organiza o pensamento em três tópicos: 1 – a finalidade do Instituto; 2 – a organização do Instituto; 3 – o funcionamento do Instituto. O Instituto foi criado em Maio de 1930, tendo começado a funcionar 5 meses depois, ou seja, em Outubro. A sua finalidade consiste na reeducação mental e pedagógica das crianças que não atingem o desenvolvimento “de que são capazes”. Ou “susceptíveis”41. Quanto à organização, limitar-me-ei a referir as secções que o Instituto compreendia: 1 – Secção para crianças com insuficiências (défautes) graves nas suas capacidades mentais; 2 – Secção para crianças atrasadas quer no seu desenvolvimento mental quer nos seus estudos; 3 – Secção para crianças

41

Idem. Monographie de l’Institut de Rééducation Mentale et Pédagogique. In: ______. Obras Completas, vol. IV. Organização e introdução de J. Ferreira Marques. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009, p. 437.

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normais mas com necessidade de um regime especial de vida e de trabalho; 4 – Secção para crianças cujo desenvolvimento reclama cuidados especiais42. Em relação ao funcionamento do Instituto, limitar-me-ei às suas duas funcionalidades estruturais: funciona, em primeiro lugar, como um organismo de consulta – é uma clínica psicopedagógica; funciona, depois, como um organismo de tratamento – é uma escola.43 Faria de Vasconcelos escrevia menos de um ano após o início da existência do Instituto, mas afirmava estar ali “une institution pleine d’avenir”, constituindo, com o Instituto de Orientação Profissional, “une des manifestations les plus intéressantes du Portugal moderne”44. J. Ferreira Marques informa que “o Instituto de Reeducação Mental e Pedagógica teve uma vida curta”; “foi efémero e sobre ele não há elementos”45. É sempre a perspectiva social aquela que move a dinâmica reformadora do pedagogo e pedagogista. No mesmo ano de 1931, e em articulação com o Instituto de Reeducação Mental e Pedagógica, vemo-lo envolvido na organização do Instituto “Dr. Navarro de Paiva”, destinado “a menores do sexo masculino anormais, delinquentes dos 9 aos 16 anos […] susceptíveis de educação e capazes de fornecer um rendimento social pela prática dum ofício adequado às suas capacidades”46. O Projecto de organização psicopedagógica do Instituto é, mais uma vez, um documento directo, enxuto, sem adiposidades, estruturado em 15 pontos: 1 – define a finalidade; 2 – define os condicionamentos médico-psicológicos de admissão; 3 – estabelece os limites tipológicos de admissão; 4 – apresenta as bases da organização educativa; 5 – indica as áreas da educação física compreendidas; 6 – faz o mesmo em relação à educação manual; 7 – faz o mesmo em relação à educação intelectual; 8 – identifica os ofícios em cuja aquisição aposta a educação profissional; 9 – prevê o encaminhamento externo do menor quando o Instituto não ensina o ofício para que ele revela aptidões; 10 – desenha a orientação geral a seguir no tocante à educação moral e social; 11 - estabelece a composição do pessoal docente; 12 – determina os critérios a seguir na distribuição dos menores em grupos; 13 – determina os limites de extensão desses grupos; 14 – indica os serviços a prestar pelo Instituto: exames para o diagnóstico e tratamento psico-pedagógico a seguir; assistência técnica no 44 45 46 42 43

Ibidem, pp. 437-438. Ibidem, p. 438. Ibidem, p. 439. Ibidem, p. XXII. Ibidem, p. 443.

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estudo dos casos particulares que se apresentem; orientação e inspecção psico-pedagógica dos menores; 15 – determina o funcionamento, anexo ao Instituto “Dr. Navarro de Paiva”, de um Patronato destinado à colocação, vigilância, amparo e auxílio material e moral dos menores que terminarem a sua educação47. J. Ferreira Marques informa ter encontrado, no espólio da Secretaria-Geral do Ministério da Educação, um texto dactilografado em papel timbrado do Instituto de Reeducação Mental e Pedagógica que, na sua opinião, “parece representar de forma sistemática e em termos gerais a organização que se pretendia para o próprio Instituto de Reeducação Mental e Pedagógica”48. Faria de Vasconcelos morreu novo, em 1939, com 59 anos de idade. Em 1933, a seis da morte e passados oito sobre a criação do Instituto de Orientação Profissional, apresentou o ilustre mestre, sem o saber mas sabendo nós hoje, algo como um testamento, um balanço da obra até então realizada pelo Instituto. Intitula-se esse texto, de 16 páginas: “A obra do Instituto de Orientação Profissional de Lisboa”49. Que diria hoje, se até nós viesse?…

Conclusão A publicação das Obras Completas de Faria de Vasconcelos pela Fundação Calouste Gulbenkian é um serviço de inestimável valor para a cultura portuguesa e em particular para a educação portuguesa. Fica, desde logo, a Fundação credora do reconhecimento do País. Não pode esquecer-se que o Dr. Azeredo Perdigão fez parte, com Faria de Vasconcelos, do Grupo Seara Nova. Mas o agradecimento deve estender-se ao Professor José Ferreira Marques, que tem realizado um trabalho extraordinário na direcção, organização e concretização científica da publicação das Obras. Graças ao seu trabalho, é hoje possível estudar mais perto da integralidade e com maior rigor a obra de Faria de Vasconcelos. Neste breve ensaio, percorreu-se o caminho da sua vida e obra, quer no plano do pedagogista – que pensa e teoriza a educação –, quer no plano do pedagogo – que a realiza. Foi um voo largo, com intenção ela mesma pedagógica. A minha pretensão, o meu desejo, é que Faria de Vasconcelos volte a ser para nós uma figura viva. Ele merece-o e nós precisamos.

Ibidem, pp. 443-446. Ibidem, pp. XXII-XXIII. 49 Ibidem, pp. 463-478. 47

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Sobre os autores: notas biobibliográficas

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Sobre os autores: notas biobibliográficas Amon Pinho é pós-doutor em Filosofia pela Universidade de Lisboa (2011) e doutor em História pela Universidade de São Paulo (2006), onde igualmente se bacharelou, pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (1999), e se licenciou, pela Faculdade de Educação (1999). É Pesquisador Associado e membro integrado do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa (CFUL) e Professor Adjunto na Universidade Federal de Uberlândia, onde coordena o Laboratório de Estudos em Teorias e Escritas da História (LETEH) e integra o Núcleo de Estudos e Pesquisas em História Política (NEPHISPO). Atua nas áreas de História e Filosofia, com ênfase em História Intelectual e Teoria e Filosofia da História. Tem ensaios e artigos publicados no Brasil e no exterior, e edições coletivas organizadas em torno de pensadores como Antônio Vieira, Agostinho da Silva e Walter Benjamin, dentre as quais: Missionarismo, parenética e profetismo no quadricentenário de Antônio Vieira (Ideação, 2 vols., NEF-UEFS, 2008); Centenário de Agostinho da Silva (Convergência Lusíada, Real Gabinete Português de Leitura, 2007), com Antônio Gomes da Costa; Filosofia e Messianismo (Reflexão, PUC-Campinas, 2008), com Constança Marcondes César e Maria João Cantinho; e Compêndio Walter Benjamin (Editora Hedra, EDUFU, CFUL, no prelo), com Maria João Cantinho. Anita Vilar é médica psiquiatra, com vários trabalhos publicados na área da Psiquiatria. Durante doze anos (1992-2004) foi directora do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital de S. Bernardo de Setúbal, tendo deixado o cargo quando se reformou. É actualmente presidente da Assembleia Distrital de Setúbal da Ordem dos Médicos e da Associação de Direito e Justiça de Setúbal. António Almodovar é licenciado e doutor em Economia pela Faculdade de Economia da Universidade do Porto, na qual, actualmente, é Professor Associado. Tem-se dedicado essencialmente às disciplinas de História do Pensamento Económico e Ciência Política. Entre outros títulos, publicou: Estudos sobre o Pensamento Económico em Portugal (1990); A institucionalização da economia política clássica em Portugal (1995); A economia política e os dilemas

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Sobre os autores

do império luso-brasileiro, 1790-1822 (2001); Dicionário histórico de economistas portugueses (2001); Dictionaries and Encyclopedias on Political Economy in the Iberian Peninsula (18th, 19th and 20th Centuries) (2003); Neo-Smithian Political Economy in Portugal, 1803-1848 (2004); The Ascent and Decline of Catholic Economic Thought, 1830-1950s (2008). António Braz Teixeira nasceu em Lisboa, em 1936, e é actualmente Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade Lusófona. Exerceu funções docentes na Universidade de Lisboa, na Universidade Católica Portuguesa e na Universidade de Évora. Membro da Academia das Ciências de Lisboa e sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras, é autor de duas dezenas de livros sobre direito, filosofia jurídica e hermenêutica do pensamento português, brasileiro e galego. Foi secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros e da Cultura, director do Teatro Nacional D. Maria II, vice-presidente da RTP e presidente da Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Foi condecorado com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique. António Cândido Franco nasceu em Lisboa, no ano de 1956. Desde a primeira metade da década de oitenta do século XX que se dedica ao estudo dos autores que deram corpo ao movimento da Renascença Portuguesa nas suas várias fases e momentos. Nesse percurso, encontrou Mário Cesariny e o Surrealismo português, aos quais também dedica muita atenção. Responsabilizou-se pela edição de autores como Fialho de Almeida, Teixeira de Pascoaes, Mário Beirão, Jaime Cortesão, João Lúcio, Américo Durão, Domingos Monteiro, Mário Cesariny e Luiz Pacheco. Além dos estudos e das edições, escreveu alguns versos, algum romance e um drama dedicado à saudade em Florbela Espanca. É Professor Auxiliar (com agregação) na Universidade de Évora (Departamento de Linguística e Literaturas). António Pedro Mesquita é Professor Associado da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em cujo Departamento de Filosofia lecciona, e investigador do Centro de Filosofia da mesma Universidade. Para além da Filosofia Antiga, em que tem incidido grande parte da sua actividade científica e pedagógica, as suas áreas de interesse distribuem-se pela Metafísica, a Filosofia da Linguagem, o Pensamento Português Contemporâneo e a Didáctica da Filosofia. De entre as obras publicadas, destacam-se: na área da Filosofia Antiga: Introdução ao Estudo da Filosofia Antiga (Lisboa, Edições Colibri, 2006); Vida de Aristóteles (Lisboa, Sílabo, 2006); Introdução Geral às Obras Completas de Aristóteles (Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda,

NOTAS BIOBIBLIOGRÁFICAS

2005); Aspectos Disputados da Filosofia Aristotélica (Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2004); Platão e o Problema da Existência (Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2003); O Fédon de Platão (Lisboa, Texto Editora, 1995); e Reler Platão. Ensaio sobre a Teoria das Ideias (Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1995); na área do Pensamento Político Português: Salazar na História Política do seu Tempo (Lisboa, Editorial Caminho, 2007); Liberalismo, Democracia e o Contrário: Um Século de Pensamento Político em Portugal (1820-1930) (Lisboa, Sílabo, 2006); O Pensamento Político Português no Século XIX. Uma Síntese Histórico-Crítica (Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2006); e Homem, Sociedade e Comunidade Política. O Pensamento Filosófico de Matias Aires (Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1998). É também coordenador, no Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, do projecto de tradução anotada das obras de Aristóteles, pelo qual será publicada, até 2017, a totalidade dos escritos incluídos na colecção atribuída a este filósofo. António Reis é licenciado em Filosofia pela Universidade de Friburgo (Alemanha) e doutor em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Militante político desde a juventude, foi também professor na instituição em que se doutorou e redactor da revista Seara Nova durante o período de 1969 a 1974. Publicou, entre outros: O Marxismo e a Revolução Portuguesa (1978); Raul Proença, Estudo e Antologia (1990); e Raul Proença – Biografia de um Intelectual Político Republicano (2003). Coordenou: Portugal: Vinte Anos de Democracia (1994); Portugal: Ano 2000 (2000); e As Grandes Correntes Políticas e Culturais do Século XX (2003). Carlos Leone é investigador do Centro de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa. Doutorou-se, em 2004, em História e Teoria das Ideias (Portugal Extemporâneo, 2 vols., Lisboa, INCM, 2005) e desenvolveu posteriormente pesquisa pós-doutoral sobre os exilados portugueses do século XX. É organizador e prefaciador de Cartas à Mocidade e outros textos (INCM, 2011), volume das Obras Completas de Jaime Cortesão, e autor de numerosos trabalhos sobre pensadores portugueses contemporâneos, a exemplo de O Essencial sobre António Sérgio (INCM, 2008), e sobre história e teoria políticas. Celeste Natário é docente da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Enquanto investigadora, tem-se dedicado, em particular, à filosofia e cultura portuguesas, tendo publicado: O Pensamento Dialéctico de Leonardo Coimbra: reflexão sobre o seu valor antropológico (1997); O Pensamento Filosófico

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Sobre os autores

de Raul Proença (2005); Entre Filosofia e Cultura: percursos pelo pensamento filosófico-poético português nos séculos XIX e XX (2008); Itinerários do Pensamento Filosófico Português: desde as origens da nacionalidade até ao século XVIII (2010); e Pascoaes: Saudade, Física e Metafísica (2010). Tem organizado múltiplos encontros científicos. Coordena o projecto de investigação “Raízes e Horizontes da Filosofia e da Cultura em Portugal” (Instituto de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto). Daniel Pires é presidente da Direcção do Centro de Estudos Bocagianos (Setúbal). Trabalhou na Biblioteca Nacional, na Área de Espólios, e teve principalmente contacto com os escritos de Raul Proença, Camilo Pessanha e Wenceslau de Moraes. Publicou, entre outros títulos, Dicionário das revistas literárias portuguesas do Século XX (1986); Wenceslau de Moraes: permanências e errâncias no Japão (2004); e A imagem e o verbo: fotobiografia de Camilo Pessanha (2005). Organizou as seguintes obras: Polémicas, de Raul Proença (1988); O caso da Biblioteca, de Raul Proença (1988); Homenagem a Camilo Pessanha (1990); Camilo Pessanha: prosador e tradutor (1992); Cartas do Extremo Oriente, de Wenceslau de Moraes (1993); e Setúbal: terra de poetas e cantadores (2001). É editor da Obra Completa de Bocage (2004). Em 2010, elaborou o catálogo da exposição “O Ensino no Tempo da República” (Câmara Municipal de Setúbal). Duarte Drumond Braga nasceu em Lisboa, em 1981, e é licenciado em Línguas e Literaturas Modernas (Estudos Portugueses) pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Mestre, com uma dissertação intitulada Espaços e Imaginário da Fronteira em “O Sentimento dum Ocidental” de Cesário Verde, em narrativas de Fialho de Almeida e n’Os Pobres de Raul Brandão, e doutor, com uma tese acerca do Orientalismo na poesia portuguesa dos séculos XIX e XX, em Estudos Comparatistas, pela mesma Faculdade, é membro do Centro de Estudos Comparatistas. Organizou, com Paulo Borges, o volume de ensaios O Buda e o Budismo no Ocidente e na Cultura Portuguesa (Lisboa, Ésquilo, 2007). Tem artigos publicados em revistas e volumes nacionais e internacionais (EUA). Tem centrado a sua investigação em dois grandes blocos: Orientalismo Português/Portugal e o Oriente (sécs. XIX e XX) e Literatura Portuguesa Finissecular (da Geração de 70 ao Modernismo, sendo os principais autores estudados: Fialho de Almeida, Cesário Verde, Raul Brandão, Manuel Laranjeira, Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão e Fernando Pessoa). Actualmente, é pós-doutorando na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e bolseiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

NOTAS BIOBIBLIOGRÁFICAS

Duarte Ivo Cruz nasceu em Lisboa, em 1941. Licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa, é professor aposentado da Universidade Católica Portuguesa, da Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa e da Universidade Mackenzie, de São Paulo (Brasil). Desempenhou funções governamentais  nas áreas de Negócios Estrangeiros e Segurança Social, e de representação internacional a serviço do Governo, entidades empresariais portuguesas e União Postal Universal, e no Brasil, como assessor da Confederação Nacional do Comércio/Federação do Comércio do Estado de São Paulo. É sócio-correspondente da Academia Portuguesa da História e autor de mais de 40 títulos nas áreas de História do Teatro e de Relações Internacionais, publicados desde 1964 em Portugal, Espanha, Brasil e Nações Unidas. Para a Imprensa Nacional-Casa da Moeda, procedeu à pesquisa e edição da obra completa de diversos dramaturgos portugueses (Alfredo Cortez, Carlos Selvagem, Vitoriano Braga, Marcelino Mesquita e Ramada Curto – este último Teatro Escolhido). Algumas obras: O Simbolismo no Teatro Português; História do Teatro Português; Teatro Português: Estrutura e Transversalidade; O Essencial sobre o Teatro Luso-Brasileiro; O Tema da Índia no Teatro Português; Garrett e os Estados Unidos da América; A Estratégia Portuguesa na Conferência de Paz (1918-1919): As Actas da Delegação Portuguesa (as duas últimas, edições da FLAD); e Portugal na Conferência de Berlim (edição da correspondência do Capitão Roma du Bocage, delegado português naquela Conferência). Ernesto Castro Leal é doutor em História Contemporânea e Professor Associado com agregação da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Desenvolve investigação nas áreas da História das Ideias, da História Política, da História da História e da História Biográfica, durante os séculos XIX e XX. Entre a bibliografia publicada, destaque-se: António Ferro. Espaço Político e Imaginário Social, 1918-1932 (Lisboa, Cosmos, 1994); Nação e Nacionalismos. A Cruzada Nacional D. Nuno Álvares Pereira e as Origens do Estado Novo, 1918-1938 (Lisboa, Cosmos, 1999); Partidos e Programas. O campo partidário republicano português, 1910-1926 (Coimbra, Imprensa da Universidade, 2008); e Manifestos, Estatutos e Programas Políticos Republicanos, 1873-1926. Antologia (Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2011). Guilherme d’Oliveira Martins é licenciado e mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, e doutor, também pela mesma instituição, em Ciências Jurídico-Económicas. Tem-se dedicado essencialmente à política e à administração pública. Desempenha actualmente os cargos de presidente do Tribunal de Contas e do Centro Nacional de

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Sobre os autores

Cultura. É sócio correspondente da Academia das Ciências de Lisboa. Entre outros títulos, publicou: Oliveira Martins, uma biografia (1986); Educação ou Bárbarie? (1998); Oliveira Martins: Um Combate de Ideias (1998); Que constituição para a União europeia? (2003); O novo tratado constitucional europeu (2004); Os benefícios fiscais: sistema e regime (2006); Portugal – Identidade e Diferença (2007); Património, Herança e Memória – A cultura como criação (2009); e 200 Anos do Nascimento de Alexandre Herculano: Mestre-Cidadão (2010). João Maria de Freitas Branco é filósofo, autor, professor e investigador universitário, trabalhando na área da filosofia do conhecimento e epistemologia, da história da ciência, bem como da filosofia social e política. Investigador do Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (CICTSUL). Trabalhou como investigador na Humboldt Universität de Berlim. Foi membro da Comissão Instaladora da Universidade Atlântica, integrando posteriormente o seu Conselho Científico. Comissário da exposição internacional “Imagens da Ciência em Portugal e Espanha no Século XX”. Pertenceu ao Conselho Científico do IPAM. Foi membro da direcção da Sociedade Portuguesa de Filosofia. Conferencista em várias universidades, institutos, associações e centros de investigação nacionais e estrangeiros. Sempre esteve ligado ao mundo das artes, ocupando, entre outros, o cargo de presidente do Ginásio Ópera. É também autor de programas de rádio e televisão. Autor do blog “Razão” (razaojmfb.blogspot.pt). Por razões de ordem familiar, pôde privar durante a sua juventude com António Sérgio. É autor de A problemática da materialidade na filosofia de Ravaisson (1988); “Die portugiesischen Entdeckungen zwischen Scholastik und Erneuerung der Wissenschaft”, Deutsche Zeitschrift für Philosophie, 1/1993 (Separata); Dialéctica, ciência e natureza (1990); Pensar a democracia (1994); “La notion de science dans la pensée de F. Engels”, in G. Labica, Friedrich Engels, savant et révolutionnaire (1997); “Da Rua Baker ao mundo de Escher – Questionações para a superação de uma noção positivista-comtiana de ciência”, em Seminário sobre o positivismo (1998); L’evoluzione del pensiero dalla metafisica alla dialettica (1998); “Limites da ciência e anticiência”, separata das Actas dos V Cursos Internacionais de Verão de Cascais (1999); “Cérebro, mente e paixões da alma: variações em torno de Descartes e do ‘erro’ de Damásio”, em Seminário sobre o Cartesianismo (Actas do 4.º Encontro de Évora sobre História e Filosofia da Ciência, 2000); O músico-filósofo, prefaciado por Mário Vieira de Carvalho (2005); Agostinho da Silva: um perfil filosófico – do sergismo ao pensamento à solta, prefaciado por Manuel Pina (2006); Música e transformação (2008); e Darwin - Marx (Novembro/Dezembro de 2009).

NOTAS BIOBIBLIOGRÁFICAS

João Príncipe é actualmente Professor Auxiliar do Departamento de Física da Universidade de Évora e membro do CEHFCi (Centro de Estudos de História e Filosofia da Ciência). É doutorado em Epistémologie et Histoire des Sciences pela Universidade de Paris VII (2008), com uma tese sobre a recepção francesa da mecânica estatística, orientada por Olivier Darrigol. É autor dos livros Razão e Ciência em António Sérgio (Lisboa, INCM, 2004) e Quatro Novos Estudos sobre António Sérgio (Casal de Cambra, Caleidoscópio, 2012). Os seus interesses de investigação actuais centram-se na filosofia da ciência considerada em perspectiva histórica (Maxwell, Poincaré), na história da física francesa dos séculos XIX e XX, e na vida e obra de António Sérgio, numa perspectiva de história das ideias em que se sublinha a abertura e inscrição de Sérgio em movimentos culturais internacionais seus contemporâneos. Joaquim Domingues, natural do Porto, onde se formou e obteve a licenciatura em Filosofia pela Faculdade de Letras da respectiva Universidade, é professor aposentado do Ensino Secundário. Movido pelo estudo das manifestações artísticas, religiosas e filosóficas do povo português, tem colaborado na edição ou reedição de textos de Sampaio (Bruno), Álvaro Ribeiro, Eudoro de Sousa, José Régio, Delfim Santos e Domingos Monteiro, na direcção da revista Teoremas de Filosofia e publicado alguns trabalhos próprios, mormente os constantes de Filosofia Portuguesa para a Educação Nacional. Introdução à obra de Álvaro Ribeiro (1997); O essencial sobre Sampaio (Bruno) (2002); e De Ourique ao Quinto Império. Para uma filosofia da cultura portuguesa (2002). Em 2011, viu editado, pela Imprensa Nacional - Casa da Moeda, o volume Correspondência Epistolar e outros textos avulsos, de Sampaio (Bruno). Joaquim Romero Magalhães, licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, doutor em História Económica e Social pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, é Professor Catedrático nesta instituição. Foi também professor convidado na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris e na Cátedra Jaime Cortesão da Universidade de São Paulo. Comissário-geral da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, membro da Comissão Consultiva das Comemorações do Centenário da República (2009-2011), dirige os Anais do Município de Faro desde 2009. Entre muitos outros títulos, publicou: Para o Estudo do Algarve Económico durante o Século XVI (1970); O Algarve Económico 1600-1773 (1993); Portugueses no Mundo do Século XVI, espaços e produtos (1998); Os Primeiros 14 Documentos Relativos à Armada de

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Sobre os autores

Pedro Álvares Cabral (1999); Vem aí a República! 1906-1910 (2009); Labirintos Brasileiros (2011); e O Algarve na Época Moderna (2012). José Carlos Seabra Pereira é doutor pelas Universidades de Poitiers (Doctorat du Troisième Cycle, 1983) e de Coimbra (2000). Foi leitor de Português e professor de Cultura Portuguesa na Universidade de Poitiers e bolseiro do INIC em Paris. Actualmente é Professor Associado da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e da Universidade Católica Portuguesa. Investiga e lecciona nas áreas de Teoria Literária e Literatura Portuguesa Moderna, de Estudos Camonianos e Estudos Pessoanos. É ainda coordenador científico do Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos e director da Casa da Escrita (Coimbra). Integrou a Comitiva Cultural do Presidente da República na visita oficial ao Brasil em 2008. Foi membro da Comissão para o Estudo da Condição do Professor em Portugal, do Conselho de Acompanhamento da Reforma Curricular e da 7.ª Comissão de Avaliação do Ensino Superior Privado, bem como do Conselho Cultural de Coimbra – Capital Nacional da Cultura-2003. Tem integrado os júris dos principais prémios literários de Portugal e da CPLP. As suas obras principais são: Decadentismo e Simbolismo na Poesia Portuguesa (1975); Do Fim-de-Século ao Tempo de Orfeu (1979); Autour de la Thématique Politique et de L’Engagement dans la Littérature Portuguaise (1982); L’Action Littéraire et l’Oeuvre Poétique de João de Barros (1983); Neo-Romantismo na Poesia  Portuguesa (1999); vol.VII da História Crítica da Literatura Portuguesa: Do Fim-de-Século ao Modernismo (1995); António Nobre: Projecto e Destino (2000); O Essencial sobre António Nobre (2001); “Decadence and fin-de-siècle literature in Portugal”, in A Revisionary History of Portuguese Literature (1999); vol. VI – Do Simbolismo ao Modernismo – da História da Literatura Portuguesa (2002); colecção de sínteses biobibliográficas Para Conhecer… sobre Afonso Lopes Vieira, Aquilino Ribeiro, Miguel Torga, Carlos de Oliveira, Fernando Namora, Vergílio Ferreira e Eugénio de Andrade (2003); Meio Século de Literatura Portuguesa, 1880-1930 (2009); e O tempo republicano da literatura portuguesa (2010). José Manuel Garcia é doutorado em História pela Universidade do Porto, com uma tese sobre A Historiografia Portuguesa dos Descobrimentos e da Expansão nos séculos XV a XVII. Tem-se empenhado na investigação e promoção de temas relativos à história dos descobrimentos, destacandose de entre suas actividades as que desenvolveu na Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Actualmente, é investigador no Gabinete de Estudos Olisiponenses e colaborador da Fundação Calouste Gulbenkian, sendo membro da Academia Portuguesa

NOTAS BIOBIBLIOGRÁFICAS

da História, Academia de Marinha e da Sociedade de Geografia de Lisboa. Foi o responsável pelo plano da nova edição das Obras Completas de Jaime Cortesão, editadas pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda. José Manuel Quintas é tenente-coronel da Força Aérea Portuguesa. Licenciado em História e mestre em História do Século XX pela Universidade Nova de Lisboa, professor da Academia da Força Aérea entre 1996 e 2011, tem-se dedicado ao estudo de temas políticos e militares. No domínio da história militar, publicou: No Cinquentenário da Força Aérea Portuguesa (Sintra, Academia da Força Aérea, 1998) e “A Força Aérea e a OTAN – Ex Mero Motu” (em Garcia Leandro, ten. general (coordenação), Portugal e os 50 anos da Aliança Atlântica, 1949-1999, Lisboa, Ministério da Defesa Nacional, 1999, pp. 239-268). No domínio da história política, publicou: O Integralismo Lusitano e a herança de «Os Vencidos da Vida» (Sintra, Academia da Força Aérea, 1997); “Os Monárquicos” (em Iva Delgado, Carlos Pacheco e Telmo Faria (coordenadores), Humberto Delgado – As eleições de 58, Lisboa, Vega, 1998, pp. 137-173); “Origens do pensamento de Salazar” (História, n.os 4/5, Julho/Agosto de 1998, pp. 77-83); “Os combates pela bandeira azul e branca” (História, n.º 10, Janeiro de 1999, pp. 38-49); e Filhos de Ramires – As origens do Integralismo Lusitano (Lisboa, Nova Ática, 2004). Luís Bigotte Chorão é doutor em Letras (História) pela Universidade de Coimbra e mestre em Direito (Ciências Histórico-Jurídicas) pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. É advogado e quadro superior do Banco de Portugal. Investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS20) da Universidade de Coimbra e associado-fundador do Instituto de História do Direito e do Pensamento Político da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, é coordenador científico da Memória do Direito da Biblioteca Nacional Digital. Editou os livros A Comercialística Portuguesa e o Ensino Universitário do Direito Comercial no Século XIX, I – Subsídios para a História do Direito Comercial (1998); O Periodismo Jurídico Português do Século XIX: Páginas de História da Cultura Nacional Oitocentista (2002); A Crise da República e a Ditadura Militar (2009); e Política e Justiça na I República (2011). Entre outros artigos, publicou: Algumas Horas na Biblioteca Martins de Carvalho – Dissertações Inaugurais na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (1995); Notas sobre o âmbito da Concorrência Desleal (1995); O Conceito de Concorrência Desleal – Evolução Legislativa (1997); Crise da Justiça, Crise do Direito (2000); O Discurso de Duarte Alexandre Holbeche – Subsídios para a História do Novo Código (2001); A Propósito das Societates e do Consórcio (2003); Breves Apontamentos para a História do Ministério da Justiça (2003);

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Sobre os autores

“Liberdade de Imprensa”: A Censura Prévia do Capitão Azevedo. Uma Página de História da Ditadura Militar (2005); Sobre a génese e significado do Pacto Ibérico (2007); e Para a compreensão de Fevereiro de 1927. A defesa de Sousa Dias e Fernando Freiria (2010). Luís Miguel Lóia Reis (Luís Lóia) é licenciado em Filosofia, pós-graduado em Educação para a Cidadania e mestre em Ciência Política e Relações Internacionais, pela Universidade Católica Portuguesa; Professor Assistente da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa e professor de Filosofia e Psicologia do Colégio Manuel Bernardes; investigador do Centro de Estudos de Filosofia (CEFi) da Universidade Católica Portuguesa; secretário-geral de 2008 Ano Vieirino; formador de Professores do Ensino Básico e Secundário nas áreas de Educação para a Cidadania e Educação e Valores. Tem como principais áreas de interesse académico a Filosofia do Conhecimento e do Direito, a Ciência Política e a Cidadania, áreas onde tem leccionado, investigado e publicado. Recentemente, tem despertado para o estudo da Filosofia Portuguesa, com particular incidência no pensamento de Padre António Vieira, Fernando Pessoa, Agostinho da Silva e Eudoro de Sousa. Actualmente, prepara o seu Doutoramento em Filosofia, na Universidade Católica Portuguesa, com um estudo intitulado Crença e Imaginação em David Hume. Luís Prista nasceu em 1960. É professor na Escola Secundária José Gomes Ferreira (Benfica), depois de, durante doze anos, ter ensinado História da Língua Portuguesa e Didáctica do Português na Faculdade de Letras de Lisboa e na Universidade Nova de Lisboa. As suas áreas de investigação são a crítica textual – no âmbito da Equipa Pessoa, publicou os tomos Quadras (INCM, 1997) e Poemas 1934-1935 (INCM, 2000), preparando agora o dos poemas de Fernando Pessoa até 1914 – e a história da filologia e do ensino – escreveu, para A Universidade de Lisboa (1834-2000), da Revolução liberal à actualidade (Tinta-da-China, 2013), o artigo que se ocupa do ensino linguístico e de literatura. A sua tese de mestrado, em Linguística (FLUL, 1992), trata de questões de edição do Guia de Portugal. Magda Costa Carvalho é Professora Auxiliar no Departamento de História, Filosofia e Ciências Sociais da Universidade dos Açores e membro do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa. O seu percurso académico tem sido orientado para a Filosofia da Natureza e, mais recentemente, para a área da Ética Ambiental. Em 2009, defendeu uma dissertação de doutoramento sobre o evolucionismo metafísico de Henri Bergson e,

NOTAS BIOBIBLIOGRÁFICAS

em 2003, defendeu provas de aptidão pedagógica e capacidade científica com uma tese sobre a natureza em Antero de Quental e uma lição acerca do pensamento positivista de Manuel de Arriaga. Tem realizado algumas comunicações relacionadas com as suas áreas de estudo, em Portugal e no estrangeiro. Para além das obras A natureza em Antero de Quental: o projecto de uma metafísica positiva (INCM, 2006) e Natureza criadora: o projecto biofilosófico de Henri Bergson (CFUL, 2012), tem artigos publicados em periódicos, colectâneas e volumes de actas nacionais e estrangeiros. Manuel Cândido Pimentel é professor da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa (UCP), director do CEFi – Centro de Estudos de Filosofia (UCP), membro da Sociedade Científica da UCP, sóciofundador e membro da Direcção do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira e académico da Academia Brasileira de Filosofia. Coordenou o vol. IV da História do Pensamento Filosófico Português (2004). Em 2008, foi presidente da Comissão Organizadora das Comemorações Nacionais do IV Centenário de Nascimento do Padre António Vieira. Fundou e dirige a colecção «Estudos de Filosofia» da Universidade Católica Editora. Salientam-se as obras Antero de Quental: Uma Filosofia do Paradoxo (1993); Filosofia Criacionista da Morte (1994); Odisseias do Espírito (1996); A Ontologia Integral de Leonardo Coimbra: Ensaio sobre a Intuição do Ser e a Visão Enigmática (2003); De Chronos a Kairós (2008); e Razão Comovida (2011). Manuel Ferreira Patrício nasceu em Montargil – a sudoeste de Portalegre, nordeste de Évora e noroeste de Santarém –, em 1938, no lado esquerdo do triângulo escaleno formado a partir dos vértices representados pelas três cidades. O espaço do triângulo define a área geográfica e cultural onde se desenrolou a sua formação durante os primeiros vinte anos de vida. Entre 1956 e 1959, a cidade de Évora acabou por ser determinante. Aí se diplomou na Escola do Magistério Primário, aí se envolveu pela primeira vez no combate pela liberdade e a democracia, no contexto académico, aí concluiu os exames do ensino secundário liceal – que lhe permitiram o ingresso no Curso de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa –, aí se tornou amigo e companheiro de tertúlia de Álvaro Lapa, António Gancho, Apeles Espanca, Espiga Pinto e António Charrua, entre outros. Colocado em Lisboa aos 21 anos, a sua formação cultural e cívica continuou em três espaços: o da Escola 142, na Rua Actor Vale; o da Faculdade de Letras; o da tertúlia juvenil da Pastelaria Bocage. Foi na Rua Actor Vale que conheceu a notável pedagoga Judite Vieira, que o orientou para a grande figura do mundo nacional e internacional da educação que foi Faria de Vasconcelos,

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Sobre os autores

um dos fundadores da Seara Nova. A tertúlia da Bocage foi uma verdadeira universidade livre. Importante foi, no mesmo período, a colaboração prestada ao Coro da Academia de Amadores de Música, como maestro, a convite de Fernando Lopes Graça, em 1965. Fez depois a licenciatura em Filosofia, o doutoramento e agregação em Ciências da Educação/Filosofia da Educação na Universidade de Évora, tendo desenvolvido a sua carreira profissional em três níveis: no ensino primário, no ensino liceal, no ensino universitário. Foi reitor da Universidade de Évora (2002-2006), após o que se jubilou. É autor de várias obras, tem colaboração em outras e numerosos artigos em revistas e jornais. Maria de Lourdes Sirgado de Sousa Ganho é doutora em Filosofia pela Universidade Católica Portuguesa desde 1996, com a tese Consciência e Intersubjectividade em Jean Nabert. A obra está publicada na íntegra na Série Universitária da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002; mestre em Filosofia Contemporânea, tendo apresentado a tese Existência e Transcendência em Gabriel Marcel. A obra foi publicada pela Revista Itinerarium (Braga, 1994). Na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa (UCP), desde 1983, tem leccionado Filosofia em Portugal, Antropologia Filosófica, Filosofia do Conhecimento, Filosofia Moderna, Filosofia Contemporânea, como principais matérias. Tem também leccionado nos mestrados de Filosofia. É sócia do Centro Studi Antoniani, de Pádua, desde 1982; membro da Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa; sócia do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira; membro da Assembleia de Curadores da Fundação Ajuda à Igreja que Sofre; membro do Centro de Estudos de Filosofia (CEFi) da UCP. Conferencista, tem cerca de 80 títulos publicados, intitulando-se o seu último livro Existir e Ser. Textos de filosofia, poesia e espiritualidade (Lisboa, INCM, 2009). Preparou a edição da obra Dicionário Crítico de Filosofia Portuguesa (INCM, no prelo) enquanto co-autora e coordenadora do projecto financiado pela FCT. Está a coordenar o projecto Presença do Franciscanismo na Filosofia Portuguesa, uma parceria entre o CEFi e os Franciscanos da Província Portuguesa da Ordem dos Frades Menores. Mário Barroso é licenciado em Filosofia pela Universidade Católica Portuguesa. Miguel Real, sintrense, é professor aposentado do ensino secundário e investigador no CLEPUL – Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Universidade de Lisboa. Publicou os romances A Voz da Terra (2005); O Último Negreiro (2006); O Último Minuto na Vida de S. (2007); O Sal

NOTAS BIOBIBLIOGRÁFICAS

da Terra (2008); A Ministra (2009); e Memórias Secretas da Rainha D. Amélia (2010); e os ensaios O Marquês de Pombal e a Cultura Portuguesa (2005); O Último Eça (2006); Agostinho da Silva e a Cultura Portuguesa (2007); A Morte de Portugal (2007); Matias Aires. As Máscaras da Vaidade (2008); Eduardo Lourenço e a Cultura Portuguesa (2008); Padre António Vieira e a Cultura Portuguesa (2008); José Enes, Filosofia, Açores e Poesia (2009); Introdução à Cultura Portuguesa (2011); e O Pensamento Português Contemporâneo – 1890-2010 (2011). Publicou também, em 2003, o romance Memórias de Branca Dias, sobre a primeira mulher a praticar cultos judaicos no Brasil, a primeira “mestra de meninas” (professora) e a primeira senhora de engenho de Pernambuco (Temas e Debates), levada à cena pelo Cendrev, de Évora, em 2008, com representação de Rosário Gonzaga e encenação de Filomena Oliveira. No teatro, sempre em co-autoria com Filomena Oliveira, para além da dramaturgia de Memorial do Convento, de José Saramago, encenado por Joaquim Benite, e de nova dramaturgia para cinco actores, encenada no Convento de Mafra, escreveu as peças: Os Patriotas, sobre a Geração de 70 (Europress), 1755 – O Grande Terramoto (Europress), levada à cena no Teatro da Trindade, em Lisboa, em 2005, O Umbigo de Régio, e Liberdade, Liberdade, esta última sobre os presos políticos durante o regime do Estado Novo, e levada à cena no Teatro da Trindade, Lisboa, entre Abril e Julho de 2006 e, no Teatro D. Pedro V, de Macau, em 2011. A peça, Vieira – O Céu na Terra, representada nas ruínas do Convento do Carmo, em Lisboa, no Verão de 2008, teve encenação de Filomena Oliveira e produção do Teatro Nacional D. Maria II. Recebeu os prémios: Revelação Ensaio - da Associação Portuguesa de Escritores, Romance - Ler/Círculo de Leitores, Romance - Fernando Namora, Ensaio - Jacinto do Prado Coelho e, com Filomena Oliveira, o Grande Prémio de Teatro da Sociedade Portuguesa de Autores, de 2008, com a peça Uma Família Portuguesa, representada no teatro Aberto, em Lisboa, em 2010, com encenação de Cristina Carvalhal. É colaborador do Jornal de Letras. Paulo Borges é Professor Auxiliar do Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e membro e investigador do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa. Actualmente, é também Presidente da União Budista Portuguesa (UBP) e Director da Revista Cultura ENTRE Culturas. Entre muitos outros títulos, são de sua autoria: A Plenificação da História em Padre António Vieira. Estudo sobre a ideia de Quinto Império na “Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício” (1995); Do Finistérreo Pensar (2001); Pensamento Atlântico. Estudos e ensaios de pensamento luso-brasileiro (2002); Tempos de Ser Deus. A espiritualidade ecuménica de Agostinho da Silva (2006);

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Sobre os autores

Línguas de Fogo. Paixão, Morte e Iluminação de Agostinho da Silva (2006); A cada instante estamos a tempo de nunca haver nascido (2008); Princípio e Manifestação – Metafísica e Teologia da Origem em Teixeira de Pascoaes (2008); Da Saudade como via de libertação (2008); A Pedra, a Estátua e a Montanha – O V Império em Padre António Vieira (2008); O Jogo do Mundo. Ensaios sobre Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa (2008); Uma Visão Armilar do Mundo. A vocação universal de Portugal em Luís de Camões, Padre António Vieira, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva (2010); O Teatro da Vacuidade ou a impossibilidade de ser eu (estudos e ensaios pessoanos) (2011), Il teatro della vacuità o l’impossibilità di essere io. Studi e saggi pessoani (2013); É a Hora! A mensagem da Mensagem de Fernando Pessoa (2013); Entraña Extraña (2013); e Quem é o meu próximo? Ensaios e textos de intervenção por uma nova civilização (2014). Pedro Baptista nasceu em 1948, no Porto, e é doutorado em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. É investigador nesta instituição, bem como na Universidade Católica (Porto) e na Universidade do Minho. Publicou na ficção narrativa: Sporá (1993); O Cavaleiro azul (2001); Pessoas, animais e outros que tais (2006); e A Queima do cão de palha (2008). E no ensaio e estudo: Ao Encontro do Halley (1987); Newton de Macedo, da filosofia da história para a sociologia (2006); Centenário do Gabiru (2007); Uma Personalidade a retomar (2007); O Filósofo Fantasma (2010); A Pluralidade na Escola Portuense de filosofia (2010); e O Milagre da Quinta Amarela. História da Primeira Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1919-1931 (2012). Participou em várias publicações colectivas e revistas, com estudos sobre Newton de Macedo, Delfim Santos, Teixeira Bastos, Abel Salazar, Teixeira de Pascoaes, o 31 de Janeiro, a Ritmanálise, Pinheiro dos Santos, Teófilo Braga, Sampaio Bruno e Leonardo Coimbra. Pinharanda Gomes é ensaísta, tradutor, crítico e pesquisador da cultura portuguesa. Membro da Academia Luso-Brasileira de Filosofia, da Academia Portuguesa de História, da Academia Internacional da Cultura Portuguesa e do Instituto Luso-Brasileiro de Filosofia (do qual é sócio-fundador). É autor de vastíssima obra, dentre a qual se destaca: Liberdade de Pensamento e Autonomia de Portugal (1971); O Pensamento Filosófico de Silvestre de Morais (1972); Pensamento e Movimento: Prolegómenos a uma Ascese Filosófica (1974); Teodiceia Portuguesa Contemporânea (1975); Pensamento Português (1979); História da Filosofia Portuguesa, 3 vols. (1981, 1983, 1991); A Teologia de Leonardo Coimbra (1985); Dicionário de Filosofia Portuguesa (1987); Entre Filosofia e Teologia (1992); A Cidade Nova. Reflexões sobre Religião e Sociedade (1999); Meditações lusíadas (2001); A Escola Portuense: Uma introdução histórico-filosófica

NOTAS BIOBIBLIOGRÁFICAS

(2005); Agostinho da Silva – História e Profecia (2009); e Nuno Álvares Pereira – o Galaaz de Portugal (2010). Renato Epifânio é professor de Semiótica no IADE. Membro do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira e da Direcção da Associação Agostinho da Silva. Investigador na área da “Filosofia em Portugal”, com dezenas de estudos publicados, realizou um projecto de pós-doutoramento sobre o pensamento de Agostinho da Silva, com o apoio da FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia), para além de ser responsável pelo Repertório da Bibliografia Filosófica Portuguesa (). Licenciatura e mestrado em Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Doutorou-se, na mesma Faculdade, no dia 14 de Dezembro de 2004, com a dissertação Fundamentos e Firmamentos do pensamento português contemporâneo: uma perspectiva a partir da visão de José Marinho (no prelo). Autor das obras: Visões de Agostinho da Silva (2006), Repertório da Bibliografia Filosófica Portuguesa (2007), Perspectivas sobre Agostinho da Silva (2008), Via aberta: de Marinho a Pessoa, da Finisterra ao Oriente (2009), A Via Lusófona: um novo horizonte para Portugal (2010) e Fernando Nobre: Diário de uma Campanha (2011). Integra a Direcção da Nova Águia: Revista de cultura para o século XXI e é o Director da Colecção de livros com o mesmo nome nas Edições Zéfiro. É o Presidente do MIL: Movimento Internacional Lusófono. Romana Valente Pinho é doutora (2012) e mestre (2005) em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, instituição na qual também se licenciou. Membro do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e Professora Adjunta na Universidade Federal de Uberlândia. Actua na área da Filosofia Contemporânea, com ênfase em Pensamento Português e Brasileiro e Filosofia Francesa. Pertence ao GT “Filosofia Contemporânea de Expressão Francesa” da ANPOF (Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia – Brasil). Para além dos livros Religião e Metafísica no Pensar de Agostinho da Silva (2006) e O Essencial sobre Agostinho da Silva (2006), publicou igualmente outros estudos em vários periódicos e obras nacionais e internacionais. Rui Lopo é tradutor nas áreas de Filosofia Contemporânea e Filosofia da Religião, especialmente a vinculada à tradição budista tibetana. Prepara actualmente a redacção de uma tese de doutoramento intitulada A recepção filosófica do budismo na cultura europeia oitocentista. Orientalismo e representação da universalidade, a apresentar na Faculdade de Letras da Universidade

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Sobre os autores

de Lisboa. Membro do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, do Instituto de Filosofia da Universidade do Porto, do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira e do Instituto de Estudos sobre o Modernismo. Autor de diversos ensaios e artigos, especialmente na área do Pensamento Português e da Filosofia da Religião. Sérgio Campos Matos é Professor Associado com agregação na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, mestre pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (1988) e doutor em História Contemporânea pela Universidade de Lisboa (1995). Membro do Centro de História desta universidade. Publicou, entre outros trabalhos, Historiografia e memória nacional no Portugal do século XIX, 1846-1898 (Lisboa, 1998) e Consciência histórica e nacionalismo (Lisboa, 2008). Tem coordenado diversas obras colectivas – caso de O ‘Centenário da Índia’ [1898] e a memória da viagem de Vasco da Gama, séculos XV a XX (Lisboa, 1998) e, com Maria Isabel João, Historiografia e memórias, séculos XIX a XXI (Lisboa, 2012) – e organizado a edição de textos históricos: Correspondência Política de Manuel de Arriaga (Lisboa, 2004) e, de J.P. de Oliveira Martins, Portugal e Brasil (Lisboa, 2005) e Historia de la civilización ibérica (Pamplona, 2009). Colaborou em projectos de investigação nacionais e internacionais sobre narrativas históricas, história conceptual no espaço ibero-americano e republicanismo. Co-coordenou o livro A Universidade de Lisboa (1834-2000) – da Revolução liberal à actualidade (Lisboa, 2013). Ulpiano Nascimento (1915-2012) foi economista e director da revista Seara Nova entre 1978 e 2012. Opositor destacado ao Estado Novo, esteve preso em Caxias durante dois anos (1958-1960). Exilou-se em 1962 e integrou uma equipa de técnicos coordenada pela Comissão Económica para a América Latina (CEPAL), vindo mais tarde a trabalhar na FAO, organismo das Nações Unidas, onde permaneceu até ao 25 de Abril de 1974, altura em que regressou a Portugal. Antes de ter sido secretário de Estado das Pescas no V Governo Provisório de Vasco Gonçalves, foi director-geral da DirecçãoGeral do Planeamento e Fomento das Pescas. Fez parte da Comissão de Honra do Centenário de Nascimento de Bento de Jesus Caraça (2001). Entre outros títulos, publicou Bento de Jesus Caraça: o homem e o seu tempo (2001) e O imperialismo económico em queda? (2008). Faleceu, em Lisboa, no dia 31 de Agosto de 2012, com 97 anos.

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