Professor-performer: didática menor para o letramento performativo

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PROFESSOR-PERFORMER: DIDÁTICA MENOR PARA O LETRAMENTO PERFORMATIVO Thaise Luciane Nardim1 Ensinar, sim, como um cão que cava seu buraco, mas ainda além. Comecemos refletindo sobre ensinar como quem cata do chão pregos enferrujados: o corpo faz ventar a sala de aula com a ação de catar pregos caídos, pregos abandonados deitados, de lado, como estejam, mas nunca de ponta, para que se garanta sua inutilidade e, com isso, também do ser garanta-se a soberania sobre o ter (BARROS, 2011, 410). Catando pregos enferrujados, exploramos uma didática de estado e atenção, cuja tekhné tende a zero, dando espaço às microtécnicas que constituem as percepções dos que atentam e garantindo que por sobre as formas recorrentemente exploradas nas academias sobressaiam encontros. Está descrita em Jan Masschelein (2013) – ainda que não com esse nome - a figura do professor-catador-de-pregos-enferrujados: um alguém que trabalha em um mundo nãoprodutivo (a escola), fora do tempo e da lógica da produtividade e que, com e por isso, seus alunos podem ali desprender-se das amargas amarras da relevância econômica e futurística da aprendizagem. Ao invés de pedir-lhes que “sejam alguém!”, o professor-catador-de-pregosenferrujados recita para seus companheiros o elogio à “ninguentude desintencionada”, à existência desapegada do projeto e, com isso, focada no momento presente. E atenção ao momento presente, não por coincidência, é justamente o que esse autor sugere como a microtécnica própria ao pesquisador crítico da educação. Ao professor crítico, portanto, seria necessário fazer-se presente, para criar nos alunos as condições de “presentação”: A pesquisa educacional crítica não trata de tornar consciente ou ser consciente, mas sim de atenção e estar atento. Estar atento é abrir-se para o mundo. Atenção é precisamente estar presente no presente, estar ali de tal forma que o presente seja capaz de se apresentar a mim (que ele se torne visível, que possa vir a mim e eu passe a ver) e que eu seja exposto a ele de tal forma que eu possa ser transformado ou “atravessado” ou contaminado, que meu olhar seja libertado (pelo “comando” daquele presente). Pois tal atenção torna a experiência possível [...] Poderíamos dizer que o estado mental de alguém que tem um objeto/objetivo, uma orientação, é o estado mental de um sujeito (de conhecimento). Estar atento não é ser cativado por uma intenção, ou projeto, ou visão, ou perspectiva, ou imaginação (que sempre nos dão um objeto e capturam o presente numa re-presentação). A atenção não me oferece uma visão ou perspectiva, ela abre para aquilo que se apresenta como evidência. A atenção é a falta de intenção. (MASSCHELEIN, 2008, 42)

É por essa qualidade de presença e pela função de instaurar condições de “presentação” que gostaríamos de começar a sugerir, para além do professor-que-cava-seu-buraco-comoum-cão e do professor-catador-de-pregos, a figura do professor-performer, que acumula sobre si essas duas figuras como máscaras, junto a algumas outras. Antes de apresentá-lo, porém, vamos pensar com Allan Kaprow uma figura vizinha, aparentada, mas que reside fora do espaço escolar – uma espécie de educador-da-cultura que o artista e pensador americano chamou de an-artista. An-arte é, para Kaprow (1996), uma espécie de arte que rejeita em absoluto esse rótulo. Ela difere da arte-arte (aquilo que conhecemos cotidianamente como arte ou arte “tradicional”), da não-arte (objetos ou ações que a priori não são artísticos, mas que informam sua existência ao mundo da arte e tornam-se assim parte dele – como é o caso dos readymades duchampianos) e da antiarte (produção como a dadaísta, isto é, de objetos e ações que opõem-se à ideia de arte, sem jamais deixar de estar dentro de seu universo, e que aí 1

Doutoranda em Artes da Cena; Universidade Estadual de Campinas; Campinas; São Paulo. E-mail: [email protected].

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permanecem propositalmente, buscando gerar desconforto e reflexão). A an-arte é um tipo de arte tão próxima da vida que acaba por embaralhar-se com ela e fazer desaparecer suas semelhanças com a arte, uma utópica coincidência de opostos. A proposição da an-arte é um exercício conceitual de crítica ao sistema de arte estabelecido. Logo, segundo Kaprow, sua prática seria revolucionária e comprometida com a autonomia e a libertação. Mas, para que se instaure um tempo que possibilite a an-arte, o artista sugere que será necessário que aqueles interessados em fazê-la atuem como educadores, emulando a realidade cotidiana, transmutando-a em cópia artificial para que seja jogada pela sociedade, possibilitando que o valor do jogo e da brincadeira se reestabeleçam nesta sociedade em que, segundo o autor, brincar é uma palavra suja. Podemos aprender melhor a jogar/brincar mediante exemplos, e an-artistas podem proporcionar isso. Em seu novo trabalho como educadores, eles precisam simplesmente jogar/brincar, como fizeram uma vez sob a bandeira da arte, mas em meio àqueles que não se importam com isso. Gradualmente, o pedigree “arte” se retrairá até tornar-se irrelevante. (KAPROW, 1996, 98)

Se o professor-catador-de-pregos faz ventar a sala de aula com sua ação de recolher pelo chão os pregos enferrujados, na medida em que, como artista e educador crítico, se apropria da tarefa de instaurar instabilidades na base de ambos os sistemas como encontram-se estabelecidos, o professor-performer aproxima-se do an-artista ao levar para a escola também o caráter de jogo/brincadeira. Assim como na contemporânea arte da performance, esse professor perpassa diferentes qualidades de presença e estados de atenção. Diferente do professor-catador, entretanto, ele não se entrega às inutilidades pela mão da ventania. Ele tem um mapa, em que estão desenhadas pequenas regras de jogos/brincadeiras e que ele lança mão como cartas-nas-mangas que colocam todos – os professores e seus alunos - em um estado de atenção contextual. Com isso, não estamos mais no plano do puro exercício de atenção, mas trazemos para nosso exercício a possibilidade do currículo. Gallo (2002), buscando também elaborar ideias sobre escolas fora do tempo da produtividade e próximas da atenção, propõe-nos que buscássemos uma educação menor. Em diálogo com as ideias de Deleuze e Guatarri expostas em obra sobre a literatura de Kafka, aquele pensador elencou três características dessa pedagogia, em relação ao que os dois filósofos franceses apresentaram como qualidades de uma literatura menor: a desterritorialização (da língua/do escolar); a ramificação política; o valor coletivo. Em consonância com essa proposição, pensamos aquilo que performa em sala o professorperformer como uma didática menor, isto é, como uma tática para uma pedagogia menor. O valor coletivo está na natureza da própria figura professor-performer, dado que seu fazer difere da plena atenção justamente pelo jogo-em-relação. Além disso, o professorperformer desterritorializa as didáticas porque, como ser atento, permanece atento também sobre a natureza “interdeterminada” de forma e conteúdo de suas práticas. Com isso, compreende que não se pode ensinar algo, mas apenas ensinar – ainda que se tenha como objetivo refletir sobre determinada matéria. Para esse professor, ensinar é intransitivo, assim como fazer arte. Ele desenha seu mapa com rascunhos de regras para jogos/brincadeiras que auxiliam o grupo a conjuntamente se aproximar de outros elementos da vida, aos quais geralmente chamamos, na escola, “matérias”. Ele sabe que cada “matéria” pede a invenção de sua própria didática, pois É importante o como a história é escrita, é importante como se fala para uma criança, é importante o que parece uma sala de aula, é importante o como alguém conta uma história. Ter isto correcto significa criar uma forma cujo

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conteúdo está adequado a um propósito. [...] A forma e o conteúdo interessam e em tais casos são inseparáveis. (EISNER, 2008, 11)

Sabendo disso, o professor-performer também sabe que a educação jamais deixa de ser política. Entre ele e o professor-não-performer pulsa então a diferença da consciência dessa “politicidade” e de seu uso plástico. Sua atenção e seus jogos incorporam assim uma qualidade de risco, já que se questionam recorrentemente sobre os limites e as regras, especialmente aqueles que conformam as didáticas tradicionais e, assim, ressoam na formação dos indivíduos. Jogando com “a destruição de padrões entranhados, desestabilizando relações de poder e abrindo um espaço para uma genuína pedagogia revolucionária.” (PINEAU, 2010, 101), o professor-performer é o saci-pererê, é o malandro, é o trickster da sala de aula – um trickster engajado em promover participação, colaboração e dialogismo.

Referências BARROS, M. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2011. EISNER, E. O que a educação pode aprender com as artes sobre a prática da educação. Currículo sem fronteiras, Pelotas, v.8, n.2, pp.5-17, Jul/Dez 2008. Disponível em: http://www.curriculosemfronteiras.org/vol8iss2articles/eisner.pdf Acesso em: 17 de maio de 2014. GALLO, S. Em torno de uma educação menor. Educação e realidade, Porto Alegre, 27(2): 169-178, jul./dez 2002. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/25926 Acesso em: 17 de maio de 2014. KAPROW, A. Essays on the blurring of art and life. Berkeley: University of California Press, 1996. PINEAU, E. Nos cruzamentos entre performance e pedagogia: uma revisão prospectiva. Educação e Realidade, Porto Alegre, 35(2): 89-113, maio/ago 2010. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/14416 Acesso em: 17 de maio de 2014.

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