[PROJETO DE MESTRADO] Alvarenga Peixoto e(m) seu tempo

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO DE LITERATURA BRASILEIRA 2015

Projeto de Mestrado: ALVARENGA PEIXOTO E(M) SEU TEMPO

CANDIDATO: CAIO CESAR ESTEVES DE SOUZA. ORIENTADOR: JOÃO ADOLFO HANSEN

Resumo Este projeto de Mestrado aprovado pela área de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, (FFLCH-USP) e agora apresentado à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), propõe a realização de um trabalho de reconstrução do sentido da poesia setecentista atribuída a Inácio José de Alvarenga Peixoto. Essa proposta se justifica na medida em que observamos a escassez de estudos nessa área e, de forma ainda mais acentuada, na fortuna crítica desse poeta colonial. O objetivo do estudo aqui proposto é reler essa poesia segundo os seus critérios de composição e, nessa releitura, tentar reavaliá-la com maior justiça histórica do que a crítica literária desde o Romantismo vem fazendo.

Introdução

Por vezes a crítica literária justifica o estudo de alguns poetas pela relevância histórica de suas obras, seja por terem sido escritas em contexto muito específico e importante para a compreensão da História do país – como é o caso das obras escritas durante a Ditadura Militar de 1964, por exemplo – ou por terem sido lidas por muitos outros poetas e, assim, adicionadas à tradição poética brasileira – como é o caso de Gonçalves de Magalhães, por exemplo, cujos versos ficam aquém do nome de seu autor. Essa relevância histórica pode sempre ser alvo de críticas ou relativizações por parte de outras abordagens da literatura – uma abordagem psicanalítica, por exemplo, provavelmente achará o estudo de Clarice Lispector, Raduan Nassar ou Cecília Meirelles muito mais relevante que o de Magalhães; da mesma forma que para a abordagem marxista, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa provavelmente instigarão maior interesse que Manuel Bandeira e Joaquim Manoel de Macedo. O caso de Alvarenga Peixoto, no entanto, nos parece bastante peculiar por ter a sua relevância histórica – segundo nos parece – perfeitamente consolidada. Ele, assim como Tomás Antônio Gonzaga e Cláudio Manuel da Costa, não apenas compõe o cânone literário do período, mas torna-se uma personagem histórica da Inconfidência Mineira, que será transformada pelos românticos e modernos em um episódio mítico da formação do Brasil independente. Ainda assim, Inácio José de Alvarenga Peixoto é o poeta canônico menos estudado de um período que pode, também, ser considerado o menos visitado pela crítica literária atual. Isso ocorre por uma série de razões sendo, segundo vemos, a primeira delas o fato de pouquíssimos poemas terem sobrevivido ao tempo – apenas 33, sendo a maior parte constituída de sonetos – graças ao trabalho precioso de alguns filólogos, destacando-se M. Rodrigues Lapa e seu grande livro Vida e Obra de Alvarenga Peixoto1, que é, ainda hoje, o único grande estudo de fôlego sobre a obra desse autor. Outra razão para o apagamento de seus estudos pode ser encontrada na aparente ambiguidade de sua postura política: trata-se de um poeta que participa ativamente da Inconfidência Mineira em 1789 – participação essa que lhe rende degredo em Angola poucos anos depois – e que, ao mesmo

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Cf. Lapa, M. R. Vida e Obra de Alvarenga Peixoto. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1960. Todas as referências a passagens da biografia do autor terão como base esse estudo que, embora antigo, não se encontra muito desatualizado nesse aspecto.

tempo, tem uma série de poemas encomiásticos dedicados aos monarcas portugueses e seus antepassados, revelando uma posição de subserviência em relação ao regime. Parece-nos, no entanto, que o fator mais relevante para pensarmos o motivo dos poucos e precários estudos que a poesia de Alvarenga Peixoto recebeu ao longo dos anos é a predominância da leitura nacionalista dos poetas do século XVIII. Para que o consideremos brasileiro, é necessário que esse adjetivo tenha um significado simples de “nascido no Brasil”, pois o que sabemos de sua vida torna inverossímil a leitura de que houvesse qualquer sentimento nacionalista em si ou em seus poemas. Sabemos que teria nascido no Rio de Janeiro entre 1743 e 1744, e teria sido criado em Braga – embora haja alguma controvérsia nesse dado de sua criação. Em 1760, teria ingressado na Universidade de Coimbra para estudar direito e, após um período de dois anos de interrupção dos estudos quando retornara ao Rio de Janeiro, teria obtido grau de doutor em 1767. É provável que nessa curta viagem que fez ao Rio com o tio de Tomás Antônio Gonzaga, Alvarenga Peixoto tenha conhecido Cláudio Manuel da Costa. Em Lisboa, teria se envolvido na chamada Guerra dos Poetas, ao lado de Pedegache, Reis Quita e Desidério Marques Leão. Teria exercido a magistratura em Sintra de 1769 a 1772. Três anos depois, devido à sua adesão pública – que notamos representada em alguns de seus poemas – ao Pombalismo, foi nomeado pelo Marquês de Pombal ao cargo de Ouvidor do Rio das Mortes, em Minas Gerais, onde teria começado a se relacionar com Bárbara Heliodora e gerado uma filha ilegítima – Maria Efigênia – em 1779. Por ordens da igreja para abafar o escândalo desse nascimento, ambos teriam se casado em 1781. Quatro anos depois seria nomeado Coronel do 1º Regimento de Cavalaria da Campanha do Rio Verde e, em 1788, teria seu segundo filho batizado por seu amigo Tomás Antônio Gonzaga. Esse batizado é apontado como o início de seu envolvimento com a Inconfidência Mineira, que culminaria em sua prisão em 1789 em Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro, e posterior desterro em Angola, junto com Gonzaga, aonde viria a morrer em pouco tempo. Tendo em vista esses dados, o que nos autorizaria afirmar que Alvarenga Peixoto é um poeta efetivamente brasileiro, que tem em si o sentimento nacionalista ou nativista vivo e o expressa em sua poesia? É flagrante que toda a sua formação provém de Portugal – como a de quase todos os poetas desse período – e, quando retorna ao Brasil, o faz para exercer cargos para os quais é nomeado por membros do governo metropolitano. A persona poética de seus versos demonstra repetidas vezes sentir-se totalmente lusitano, como notamos em versos como esses, dedicados ao Marquês de Pombal (Sebastião José de Carvalho), em que o possessivo “nossos” aparece ligado aos campos portugueses: O curvo arado rasga os campos nossos Sem turbar o descanso eterno aos ossos; Frutos do teu suor, do teu trabalho, são todas as empresas; Unicamente à sombra de Carvalho Descansam hoje as quinas portuguesas. (Peixoto,

2002, p.967)

Portanto, não nos é estranho o fato de que a crítica nacionalista pouco tenha se interessado por essas obras, considerando-as medíocres por serem compostas principalmente por encômios ou

poemas lírico-amorosos convencionais. Notamos esse menosprezo até mesmo em Antonio Candido, que inicia as suas poucas palavras a respeito desse poeta com a seguinte afirmação: “Perfeitamente enquadrado na lição arcádica, Alvarenga Peixoto escreve como quem se exercita, aplicando fórmulas com talento mediano e versejando por desfastio. Por isso é mediana a qualidade de quase todos os seus poemas, sendo impossível equipará-lo literariamente – como é uso – aos outros poetas mineiros.”

(Candido, 2012, p.114) Ser perfeitamente enquadrado em determinada lição significa, segundo uma leitura romântica, não ser digno de nota, já que essa poesia seria apenas uma série de exercícios de aplicação de preceitos poéticos determinados por manuais de poética e retórica e, assim, não demonstraria qualquer subjetividade original, critério máximo para o juízo crítico dos românticos. Dizer, no entanto, que a poesia de Alvarenga Peixoto é feita “por desfastio” é uma afirmação, segundo pensamos, precipitada que ignora a relevância histórica do gênero encomiástico, por exemplo, e os seus efeitos imediatos e práticos. Como dissemos, graças à sua adesão pública ao Pombalismo o poeta consegui ser nomeado ao cargo de Juiz de Fora. Essa adesão pública se dá, também, em forma de poemas dedicados ao Marquês e às suas obras, ou seja, poemas encomiásticos. Portanto, se poemas são capazes de inserir um jovem doutor em direito na hierarquia monárquica portuguesa, como podemos afirmar que essa produção se dá apenas “por desfastio”? Sobre a qualidade mediana de seus versos, parece-nos precipitado aceitarmos esse juízo que nitidamente desconsidera pressupostos poéticos, retóricos, filosóficos e políticos do período de produção desses poemas sem antes o relativizarmos. Seria necessário entender bem o que se entendia por poesia, por poeta, o que era o público leitor dessa época, a quais vertentes retóricas e poéticas o autor adere de maneira mais flagrante, quais eram os filósofos em voga nesse período e qual é a relação dessa poesia com essas produções suas contemporâneas etc. Em outras palavras, para que se avalie essa poesia de forma historicamente justa, nos parece necessário abandonarmos os pressupostos nacionalistas e individualistas para reconstituirmos a historicidade desse poeta e de seus versos. Sobre a possível relação que podemos estabelecer entre a vida do homem Inácio José de Alvarenga Peixoto e os versos produzidos por esse homem, também é necessário refletirmos de maneira bastante detida e atenta. É evidente que seus versos não são expressões diretas de sua subjetividade, uma vez que esse tipo de pensamento é totalmente estranho à sua época. Não podemos, também, crer que um poeta que escreve na segunda metade do século XVIII, sendo a maior parte da sua vida vivida em Portugal, no contexto em que se prepara a Dupla-Revolução2 na Europa, tenha o mesmo tipo de pensamento e de comportamento poético que Camões ou aqueles que compuseram as poesias atribuídas a Gregório de Matos e Guerra. O seu contexto é ambíguo e nos parece resistir a generalizações precipitadas, exigindo uma reflexão detida nos manuais retóricos, poéticos e até mesmo nos tratados filosóficos em voga nesse período em Portugal e, também, nos que circulavam no Brasil. Apenas assim cremos ser possível estabelecer qualquer juízo crítico que leve em conta a sua historicidade e não reduza a sua obra a leituras que são estranhas ao seu momento de produção.

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Cf. Hobsbawm, E. J. A Era das Revoluções: Europa 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008. 23 ed.

Afirmamos repetidas vezes não ser pertinente a abordagem nacionalista de Alvarenga Peixoto e buscamos relativizar inclusive a possibilidade de chamá-lo de brasileiro. Isso pode soar incoerente, uma vez que este projeto destina-se ao mestrado na área de Literatura Brasileira. Se não se trata de um poeta brasileiro no sentido forte do termo, por que estudá-lo nessa área? Além disso, afirmamos muitas vezes a necessidade de consideração da historicidade da sua produção, mas poderíamos questionar também se essa busca pela historicidade do século XVIII não implicaria em um falso apagamento de nosso ponto-de-vista como leitores do século XXI. Em outras palavras, poderíamos questionar a pertinência de estudar esse poeta que, embora canônico, é esquecido por boa parte da crítica hoje. Pensamos, sobre isso, que para a compreensão efetiva do tempo presente e de nosso passado imediato, é de vital importância que compreendamos e revisitemos o passado colonial brasileiro, pois apenas assim poderemos entender, por exemplo, a continuidade de determinadas lógicas sociais coloniais em nossa sociedade atual. Entender o presente implica, segundo a nossa perspectiva, entender bem o passado, uma vez que a nossa sociedade não surge do nada, mas de uma série de fatos cujas origens remontam necessariamente ao período colonial. Nesse sentido, estudar esses poetas do século XVIII, que se identificam mais com a metrópole que com a colônia é relevante para a compreensão do que veio a ser o Brasil enquanto pátria livre e Estado soberano como o encontramos hoje. João Adolfo Hansen, ao falar sobre as reformas pombalinas, afirma que “A redefinição das estruturas da dependência colonial atingia diretamente as funções desempenhadas pelos poetas funcionários da Coroa. Nesse sentido, a subordinação profissional deles condicionava e mesmo determinava o teor e o alcance reivindicatório ou crítico da poesia. Não mais eram escrivães medievais, mas também não eram escritores no sentido iluminista dado ao termo na Europa a partir da segunda metade do século XVIII. Identificavam-se com a imagem social da profissão que exerciam e ela era profissão subordinada imediatamente ao poder real, além de estar mediada por laços clientelistas e familiares locais, que reproduziam o costume tradicional.

(Hansen, 2003, p.05)

Essa afirmação nos indica a necessidade de, além de se compreender os aspectos retóricos, políticos e filosóficos com os quais esses poetas dialogavam, buscar entender, também, o que significava ser colônia nesse período de ascensão iluminista nas metrópoles. É fundamental a busca pelo significado do estatuto colonial e das alterações que ele impunha às demais áreas dos saberes. Essa compreensão nos permite, por exemplo, refletir sobre o grande número de poemas encomiásticos de Alvarenga Peixoto. Ivan Teixeira, abordando esse gênero, nos diz que “Dos três gêneros de discursos previstos pela retórica, A.P. privilegia o epidítico ou demonstrativo, de onde decorre a poesia encomiástica, que se caracteriza pelo elogio de uma situação no presente, com vistas a despertar o aplauso das pessoas circundantes no momento mesmo da elocução.”

(Teixeira, 2001, p.21)

Para além das funções políticas que esse tipo de poesia concentra – e não são poucas – devido ao estatuto colonial mencionado, não podemos deixar de pensá-la em termos poéticos e retóricos, evidentemente. A tripartição dos gêneros de discurso a que se refere Ivan Teixeira encontra em Aristóteles a sua primeira sistematização clara: os discursos se dividem de acordo com o tempo que os motiva,

ou seja, caso o discurso vise discutir algo ocorrido no passado em termos de acusação e defesa das pessoas envolvidas, trata-se de um discurso judiciário; se busca discutir questões futuras, aconselhando ou desaconselhando ações a determinadas pessoas, trata-se de um discurso deliberativo; por fim, se o seu foco for o tempo presente, elogiando ou censurando pessoas envolvidas em ações e acontecimentos atuais, trata-se de um discurso epidítico. É neste gênero e não naqueles que a maior parte das produções de Alvarenga Peixoto é composta. Elogiar, no entanto, não é algo óbvio, desprovido de técnica e com motivação única de conquistar o apoio de algum poderoso. Há uma motivação estilística, de equiparar-se às grandes autoridades nesse gênero e, assim, ser reconhecido como grande homem letrado. Aristóteles afirma, no capítulo nono do primeiro livro da Retórica, que apenas a virtude pode ser elogiada e, com ela, todos os elementos que a constituem, ou seja, a justiça, a coragem, a temperança, a magnificência, a magnanimidade, a liberalidade, a mansidão, a prudência e a sabedoria. Com isso, temos tópicos do gênero encomiástico dos quais serão depreendidos os lugares-comuns que devem ser retomados quando buscarmos elogiar algum político ou aristocrata, pois isso os enquadraria na ordem da virtude e possibilitaria que o seu elogio fosse compreendido e consumido pelo público. No entanto, aristotelicamente, o elogio pode dirigir-se não apenas à virtude, mas a tudo aquilo que a produz ou que é dela produto. Isso nos permite pensar, no contexto aqui abordado, nos louvores às reformas do Marquês de Pombal, por exemplo. Enquanto reformas, não são virtudes, por serem concretas; mas são produtos da virtude do homem que as realiza e, assim, são louváveis. Da mesma forma, o monarca é louvável pelas reformas pombalinas, pois ele, embora não as produza nem seja responsável pela virtude do homem que as produz, foi o responsável por permitir que ele as realizasse e, assim, é produtor do poder de ação desse homem virtuoso. Há, ainda segundo Aristóteles, uma gradação entre as obras louváveis, sendo aquelas que são mais memoráveis mais belas que as outras e, como aristotelicamente a beleza é sinônimo de virtude, mais dignas de louvores as que mais duram. Portanto, para que o encômio se realize, o poeta pode ressaltar o quão duradoura é a obra daquele homem e, assim, reafirmar o valor de seu produtor. É isso que Alvarenga Peixoto faz, por exemplo, em seu encômio ao vice-rei Luís de Vasconcelos e Sousa, após ressaltar os seus grandes feitos – o Passeio Público, o cais e o chafariz que construíra em uma praça que, posteriormente, seria a Praça 15 de novembro: Estas, grande senhor, memórias vossas, Que ficam na cidade eternizadas, Também o ficam nas memórias nossas; E as línguas, por Vulcano temperadas, Hão-de entranhar em duras pedras grossas De vosso nome as letras respeitadas.

(Peixoto, 2002, p.980) Além desses fatores, o filósofo grego ainda prescreve a necessidade de amplificação do discurso encomiástico, ou seja, de mostrar ao público tudo o que há de excepcional na obra que se louva. Se o homem a fez sozinho, se a fez superando muitas situações adversas etc. cabe ao orador ou poeta encomiástico ressaltar esses dados. Com isso, podemos notar que o elogio é, efetivamente, um gênero poética e retoricamente complexo, com uma série de prescrições e lugares-comuns que devem ser seguidos (ou que podem ser subvertidos, dependendo da filiação retórico-poética do

autor estudado). Essas expostas aqui são as provenientes de Aristóteles, mas diversos outros fatores encontram-se em jogo no século XVIII, como o conceito de virtude pregado pelo cristianismo, a revisitação desse conceito pelos filósofos iluministas etc. Tudo isso nos mostra a necessidade de um estudo detido sobre o gênero para que esses poemas possam ser reavaliados. Mas Alvarenga Peixoto não escreve apenas poemas encomiásticos. Letícia Malard propõe uma divisão temática da sua obra em três vertentes: o culto ao feminino, o encomiástico e a brasilidade vinculada ao aulicismo (Malard, 2002, p.945). Em primeiro lugar, é necessário notarmos que a terceira vertente é, na verdade, parte da segunda. Além disso, é pertinente que lembremos que as três vertentes encontram-se presentes na proposta aristotélica do gênero epidítico, uma vez que todas elas visam, no limite, o louvor de algo ou alguém, ainda que seja a beleza de uma persona poética genérica criada ao molde das pastoras setecentistas ou das Lésbias, Cíntias etc. das elegias latinas. Portanto, embora a tripartição – também mencionada por Ivan Teixeira (2001, p.21) – tenha um objetivo pertinente de viabilizar o estudo dessa poesia sem generalizá-lo grosseiramente, ela acaba afastando essa poesia do que parece ser mais próximo de seus pressupostos: a existência muito forte da instituição retórica em sua composição. Malard tenta empregar conceitos retóricos em suas definições, mas acaba por criar muitos termos que, em vez de ajudarem a definir essa poesia, acabam por tornarem-se fórmulas vazias, como “retórica religiosa”, “retórica da competição”, “retórica da hipérbole” etc. (Malard, idem). O aspecto da “brasilidade” proposto na terceira articulação de Malard é também abordado por João Adolfo Hansen em outro viés. Hansen busca o sentido retórico das tópicas nação e pátria, sendo aquela a que se refere a um sentimento de pertencimento a uma nação, ou seja, o sentimento de ser cidadão português, compartilhado pelos poetas setecentistas; enquanto esta seria ligada ao sentimento de fazer parte dos melhores da civilização local, ou seja, da colônia. São duas articulações distintas de pensamento que mobilizariam o escritor: por um lado, o seu pertencimento à sociedade colonial, por outro, a sua visão de membro do império português. A “brasilidade” apareceria quando ocorrem “versos que afirmam a identidade local de um sujeito coletivo, ‘nós’, figurado positivamente como ‘bárbaro’ por oposição à interpretação metropolitana civilizada. Esse sujeito coletivo merece a mesma fama dos heróis europeus porque, ao derramar o próprio sangue na conquista do território, selou a posse do mesmo como propriedade: ‘Bárbaros filhos destas brenhas duras,/ Nunca mais recordeis os males vossos;/(...) Que os heróis das mais altas cataduras/ Principiam a ser patrícios nossos;/ E o vosso sangue, que esta terra ensopa,/ Já produz frutos dos melhores da Europa’.”

(Hansen, 2003, p.21)

Em outras palavras, a “brasilidade” seria o deslocamento dos significados da tópica pátria para a tópica nação. No entanto, é necessário dizer que, embora isso implique necessariamente uma mudança dos pressupostos e uma relativização da lógica de sujeição da persona poética, essa característica não apenas não é constante, como não é sequer muito recorrente, embora tenha sido o ponto mais ressaltado pela crítica até agora, que costuma propor o deslocamento dessas tópicas como uma atitude protonacionalista. Tendo em vista o estado dos estudos desse poeta, este projeto se propõe a reconstruir a leitura desses poemas em seu contexto de produção, com base na leitura de tratados poéticos, retóricos e, também, políticos e filosóficos e nos diálogos possíveis entre esses textos e as obras de

Alvarenga Peixoto. Por meio desse estudo, buscaremos compreender melhor o que era a poesia e o fazer poético no Brasil colonial do século XVIII. Justificativa

O século XVIII no Brasil é um período que raramente foi lido pela crítica literária de maneira a considerar as suas especificidades e a respeitar o seu modus operandi. Em geral, é lido como negação do “Barroco” e antecipação do Romantismo, o que implica dizer que é um período sem existência própria, mas interessante apenas em relação aos seus anteriores e posteriores. Alvarenga Peixoto, por sua vez, raramente recebeu atenção até mesmo desse tipo de pesquisa, havendo um grande vazio em sua fortuna crítica, composta por uma grande obra de M. Rodrigues Lapa já bastante ultrapassada em suas interpretações poéticas, e alguns artigos esparsos. O que se encontra efetivamente sobre Alvarenga Peixoto são trechos de historiografias literárias que em geral se repetem e afirmam pouco ou nada sobre a poesia do autor, colocando todos os esforços em afirmar a sua participação tida como subversiva na Inconfidência Mineira. Nesse sentido, este projeto se justifica na medida em que busca preencher o vazio da fortuna crítica desse autor. Além disso, a escolha por Alvarenga Peixoto e seus 33 poemas se justifica justamente pelo número reduzido de obras, que nos permite realizar uma pesquisa mais ampla de questões retóricas, poéticas, políticas e filosóficas do seu tempo ainda nos limites de um projeto de mestrado. Essa atitude nos autorizará, segundo propomos, a realizar uma avaliação crítica dessa poesia com maior justiça histórica, sem exigir que ela antecipe valores que lhe são estranhos e desconhecidos.

Objetivos

O objetivo deste projeto é poder reler a poesia do século XVIII atribuída a Alvarenga Peixoto segundo os seus preceitos poéticos, retóricos, filosóficos e políticos. Essa leitura possibilitaria preencher o vazio de estudos sobre o autor e, também, reconstruir uma possibilidade de leitura do fazer poético que hoje nos é estranha. O corpus poético a ser analisado seria composto pelos poemas cujos incipiunt são: “Nas asas do valor, em Ácio vinha”, “Ó pai da pátria, imitador de Augusto,”, “ Tarde Juno zelosa”, “Por mais que os alvos cornos curve a Lua,” , “Entro pelo Uraguai: vejo a cultura”, “Eu vi a linda Jônia e, namorado,” , “Não cedas, coração, pois nesta empresa”, “Nem fizera a Discórdia do desatino”, “Passa-se ũa hora, e passa-se outra hora”, “Depois que dos seus cães e caçadores”, “Ao mundo esconde o Sol seus resplendores,”, “Não os heróis, que o gume ensanguentado”, “América sujeita, Ásia vencida,”, “ Se, armada, a Macedônia ao Indo assoma”, “ Do claro Tejo à escura foz do Nilo”, “Marília bela”, “Honradas sombras dos maiores nossos,” , “Expõe Teresa acerbas mágoas cruas;” , “Bárbara bela,” , “Peitos que o amor da pátria predomina,” , “Bárbaros filhos destas brenhas duras,” , “Amada filha, é já chegado o dia,” , “De meio corpo, nu, sobre a bigorna,” , “Segue dos teus maiores,” , “Que mal se mede dos heróis a vida”, “ Oh, que sonho, oh, que sonho eu tive nesta”, “Invisíveis vapores,” , “A mão que aterra do

Nemeu a garra,” , “Não me aflige do potro a viva quina;” , “Eu não lastimo o próximo perigo,”, e “A paz, a doce mãe das alegrias”.

Cronograma Detalhado

Primeiro Semestre Leitura e edição das fontes manuscritas Análise e cotejo das fontes impressas e manuscritas dos poemas atribuídos a Alvarenga Peixoto Obtenção dos créditos obrigatórios Levantamento e leitura de bibliografia teórica Constituição do repertório poético do período Reuniões com o orientador Elaboração da Dissertação Elaboração da Qualificação Realização de Estágio de Pesquisa no Exterior (BEPE)

Segundo Semestre

Terceiro Quarto Semestre Semestre

Quinto Semestre

Nos dois primeiros semestres, o foco da pesquisa se dá na obtenção dos créditos exigidos – o Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira exige 16 créditos, que o aluno já está cursando, sendo 8 desses na disciplina IEB5021, ministrada pelo Prof. Dr. Luiz Armando Bagolin, e 8 na disciplina FLF5184, ministrada pelo Prof. Dr. Leon Kossovitch, ambas oferecidas na Universidade de São Paulo – e na constituição de um repertório poético e teórico que possibilitem a realização da análise a partir do terceiro semestre. Sobre este segundo ponto, o aluno já realizou, nos dois meses de pesquisa, uma releitura da Poética, de Aristóteles; da Arte Poética, de Horácio; além de uma leitura do Tratado de Imitação, de Dionísio de Halicarnasso; e uma leitura anotada dos poemas atribuídos a Tomás Antônio Gonzaga por Dominício Proença Filho em Poetas da Inconfidência, citado nas referências finais deste projeto. Atualmente, realiza a leitura da Instituição Oratória, de Quintiliano. Devido à ressalva feita no parecer sobre uma inconsistência possível neste cronograma, fazse necessário explicitar a seguinte questão: A análise do corpus poético atribuído a Alvarenga Peixoto será realizada no terceiro e no quarto semestre de pesquisa, quando leremos as fontes manuscritas e suas sucessivas edições impressas realizadas nos séculos XIX e XX. Essa leitura permitirá uma análise histórica de elementos de ordem bibliográfica no desenrolar das interpretações que se dedicaram a esse corpus ao longo do tempo. Ou seja, a análise chegará mesmo a abordar, além de questões restritamente poéticas e retóricas, em que medida a mudança do suporte textual – do manuscrito ao impresso etc. – alterou as significações possíveis desses poemas. Não haverá, portanto, duas análises, uma do corpus impresso e outra do manuscrito, mas uma única análise que os considere simultaneamente, como é indispensável em pesquisas científicas desta natureza.

Materiais, Métodos e Forma de Análise dos Resultados

Para realizar essa interpretação evitando anacronismos, nos parece evidente a necessidade de constituir um bom repertório de leituras dos autores setecentistas com os quais Alvarenga Peixoto teve contato direto – Basílio da Gama, Tomás Antônio Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa, Pedegache, Reis Quita, Desidério Marques Leão etc. –, além daqueles que constituem o conjunto das autoridades retóricas da lírica, que são constantemente retomadas por esses poetas, como os gregos Safo, Píndaro, Arquíloco, Sólon, Teógnis etc., os latinos Horácio, Ovídio, Propércio, Catulo, Tibulo entre outros. Essas leituras possibilitariam maior compreensão das referências implícitas nos poucos poemas de Alvarenga Peixoto. Para a compreensão do contexto histórico da segunda metade do século XVIII, utilizaremos como base o estudo de Eric J. Hobsbawm já citado, além dos estudos de Falcon em A Época Pombalina (Política Econômica e Monarquia Ilustrada), buscando outras fontes após o início efetivo da pesquisa. A fortuna crítica de Alvarenga Peixoto, como dissemos, é escassa pendendo à inexistência, o que nos força a utilizar como base historiografias literárias, dentre as quais se destacam a História Concisa da Literatura Brasileira, de Alfredo Bosi; o primeiro volume de A Literatura Brasileira: Origens e Unidade (1500-1960), de José Aderaldo Castello; A História da

Literatura Brasileira de Sylvio Romero; a História da Literatura Brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908), de José Veríssimo; o texto “Notícia sobre I. J. de Alvarenga Peixoto e suas obras”, de Joaquim Norberto de Sousa Silva; além, evidentemente, da Formação da Literatura Brasileira: Momentos Decisivos (1750-1880), de Antonio Candido. Além disso, utilizaremos manuais de retórica de Aristóteles a Cândido Lusitano, passando por Cícero, Quintiliano e outras autoridades quinhentistas e seiscentistas que possam ser pertinentes. O levantamento dos retores que interessarão a este projeto será realizado ao mesmo tempo em que estudaremos de maneira mais detida o contexto de produção dessas obras, uma vez que as duas atividades se complementam. Também utilizaremos tratados de poética, partindo de Aristóteles e Horácio, até chegarmos a Boileau e Muratori, sendo os seus intermediários também determinados durante o estudo do contexto. Outra parte do estudo será buscar os manuscritos originais desses poemas. Graças ao trabalho filológico de M. Rodrigues Lapa, temos a informação de que eles se encontram nas seguintes bibliotecas: da Biblioteca Nacional de Lisboa, Ms. 8.610, com data de 1786, e 7.008; da Biblioteca da Universidade de Coimbra, Ms. 1.521, 1.152 e 2.814; da Biblioteca da Ajuda, Ms.49 – III – 54; da Biblioteca Municipal do Porto, Ms.1.1893; do Instituto Histórico do Rio de Janeiro, Ms. 3880, lata 163; da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Ms. I-3, 29, 464. Essa busca se justifica para conferirmos as transcrições de Lapa, que afirma ter atualizado alguns aspectos da grafia e, com eles, pode ter alterado indevidamente o sentido de determinadas palavras e sentenças. Além disso, essas referências ligam-se, em sua maioria, a grandes códices de poesias líricas do período, que podem nos servir para a constituição do repertório poético setecentista. Para a realização dessa fase fundamental da pesquisa, que determinará os textos-base que utilizaremos, solicitaremos Bolsa de Estágio de Pesquisa no Exterior, com o objetivo de realizarmos estágio de pesquisa na Universidade de Lisboa, onde teremos acesso a diversas bibliotecas com códices dessa mesma natureza.

Bibliografia Aristóteles. (2005). Retórica. (M. Alexandre Júnior, P. F. Alberto, & A. Pena, Trads.) Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Boileau Despreaux, N. (1979). Arte Poética. São Paulo: Perspectiva. Bosi, A. (2006). História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix. Candido, A. (2012). Formação da Literatura Brasileira: Momentos Decisivos 1750-1880. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul. Carvalho, R. d. (1937). Pequena História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: F. Briguiet & C. Editores. Castello, J. A. (2004). A Literatura Brasileira Origens e Unidade (1500-1960). São Paulo: Edusp. Cícero. (2005). Retórica a Herênio. (A. Faria, & A. Seabra, Trads.) São Paulo: Hedra.

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Manuscrito que foi gentilmente digitalizado e nos enviado sem a cobrança de qualquer encargo pela bibliotecária, Sra. Ermelinda Eiras. 4 Cf. LAPA, M. Op. cit. sem página numerada, encontra-se entre a página LIX e a página 1.

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