Publicado no Terras da Beira em 18 de Fevereiro de 2016 Cobrir ou Encobrir a rua do Comércio

June 6, 2017 | Autor: Nuno Martins | Categoria: Arquitetura e Urbanismo, Centros Históricos, Desenho Urbano, Guarda
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Publicado no Terras da Beira em 18 de Fevereiro de 2016 Cobrir ou Encobrir a rua do Comércio ? A par da rua Direita, a rua do Comércio constitui a matriz geradora da malha urbana medieval intra-muralhas. Habituei-me a passar por ela desde os nove anos de idade, a caminho da ‘escola da Sé’. Faz parte do meu imaginário e do de muitos outros guardenses, integrando a memoria colectiva de gerações. É uma rua que acusa algum declínio, porém, continua exibindo carácter, um carácter, o seu carácter. Define-se este por um traçado, um enfiamento, um perfil e uma secção transversal de proporções equilibradas que os construtores da cidade, muito deles anónimos, se encarregaram de alcançar ao longo de séculos. Definem ainda este carácter arquitecturas dominadas por um certo tipo edificatório, ou seja, um certo tipo de edifício, o qual apresenta como traço distintivo uma relação particular com a rua e com as pessoas que nela circulam ou habitam. A intervenção proposta, divulgada por diversos meios de comunicação locais, ameaça este carácter, equilíbrio e tipo edificatório. A rua do Comércio precisa certamente de ser dinamizada mas o problema não está na falta de qualquer cobertura ou mobiliário urbano. Sobretudo se esta cobertura e mobiliário são marcados por um claro excesso de design, procurando sobrepor-se à imagem de dignidade sóbria da rua histórica. Tão negativo como o excesso de design, é fazer-se um projecto desta exigência sem lançar-se um debate publico, sem ouvir-se os cidadãosresidentes, os utentes do comércio e serviços, as pessoas que por ela passam, incluindo os turistas nacionais e estrangeiros. Com base em diferentes ideias peregrinas, Portugal tem assistido a diversas tentativas de cobrir ruas antigas, como aquela que aqui se discute. Do que conheço, todas falharam. Falharam, por um lado, porque é tecnicamente quase impossível fazer uma cobertura de uma rua antiga com êxito, conciliando beleza, estabilidade e funcionalidade, face às irregularidades, delicadeza e vulnerabilidades que sempre apresenta. Em síntese, falharam porque a cobertura, como ideia, não tem sustentabilidade económica, cultural e ambiental: impõe custos elevados de execução e manutenção; cria problemas térmicos mais do que os resolve; gera barreiras arquitectónicas e visuais, contribuindo para a acumulação de resíduos e finalmente, produz a a médio prazo uma inevitável rejeição na população por não estar ancorada na cultura arquitetónica local. Na verdade, como ideia, a cobertura resume-se, em geral, a urbanismo balofo e a novo riquismo. No caso presente, trata-se de um novo riquismo deslocado face às limitações orçamentais e de acesso ao crédito que ainda vivemos. A arquitectura serve os cidadãos o melhor que (se) pode; não opera milagres. Mas para servir os cidadãos não deve estar ao serviço da estultícia. Interrogo-me, de resto, sobre os eventuais critério de selecção de arquitectos e projectos, e sobre os estudos técnicos, debate público, conclusões e concurso de ideias com que se avançou para este projecto. Neste momento, talvez mais importante do que criticá-lo, o que nem sequer é assim tão difícil, seria que a cidade, através dos seus cidadãos e grupos associativos, reagisse com a máxima determinação à forma como este processo tem vindo a ser conduzido e o escrutinasse de ponta a ponta. A Guarda e os guardenses merecem esse inconformismo. Em democracia ninguém se pode considerar como dispensado da obrigação do exercício da cidadania. Por outro lado, a história da construção das cidades mostra a força da opinião publica e do activismo urbano, acima de insensatas discricionariedades governativas. Ainda se vai a tempo de arrepiar caminho e tonificar, não desfigurar, a histórica rua do Comércio. Nuno Martins, arquitecto, investigador e professor universitário

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