PUNIÇÃO, DISCURSO E PODER: TEXTOS REUNIDOS

July 25, 2017 | Autor: Marcos César Alvarez | Categoria: Social Theory, Michel Foucault, Punishment
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

PUNIÇÃO, DISCURSO E PODER: TEXTOS REUNIDOS

Marcos César Alvarez

2013

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Tese apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo como parte dos requisitos para a obtenção do título de LivreDocente junto ao Departamento de Sociologia.

São Paulo 2013

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Para minha família.

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RESUMO: a tese de livre-docência apresenta textos que foram publicados anteriormente como artigos em revistas especializadas ou como capítulos em coletâneas da área mas alguns excertos incluídos apresentam reflexões inéditas. A primeira parte da tese reúne trabalhos que caracterizam e problematizam o percurso intelectual do filósofo Michel Foucault (1926-1984), explorando, também, aspectos de suas análises históricas e elaborações conceituais. A segunda parte, por sua vez, apresenta trabalhos de investigação ou de reflexão voltados para um escopo histórico mais amplo. Busca-se empregar a pesquisa histórica, juntamente com a análise sociológica de forma a descortinar as condições de existência de práticas contemporâneas no âmbito da punição e das instituições de controle social sobretudo no Brasil. Finalmente, na terceira parte, são discutidos temas contemporâneos que desdobram as questões teóricas e a perspectiva de investigação anteriormente caracterizadas.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................... 6

PARTE I – CAIXA DE FERRAMENTAS .......................................................... 16 Michel Foucault e a Sociologia .................................................................. 17 A Ordem do Discurso ................................................................................ 46 Punição, poder e resistências: a experiência do Groupe d´Information sur les Prisons e a análise crítica da prisão ............................................. 58 A questão do poder em Foucault .............................................................. 71

PARTE II - HISTÓRIA DO PRESENTE ........................................................... 88 Violência institucional contra crianças e adolescentes no Brasil: um breve percurso histórico ........................................................................... 89 Do Bacharelismo Liberal à Criminologia no Brasil ................................ 103 Tortura, História e Sociedade: algumas reflexões ................................. 125 Políticas de Segurança Pública em São Paulo: uma perspectiva histórica .................................................................................................... 141 PARTE III - ATUALIDADE ............................................................................ 161 Adolescentes em conflito com a lei: contribuições de uma pesquisa empírica .................................................................................................... 162 A vítima no processo penal brasileiro: um novo protagonismo no cenário contemporâneo? ........................... 176 Violência e Fronteiras no Brasil............................................................... 215 A contribuição de David Garland: a Sociologia da Punição ................. 228

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................... 249

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Introdução Quelle est mon actualité? Quel est le sens de cette actualité? Et qu´est-ce que je fais lorsque je parle de cette actualité? C´est cela, me semble-t-il, en quoi consiste cette interrogation nouvelle sur la modernité. Michel Foucault

Esta tese de livre-docência reúne textos produzidos no período posterior ao meu doutorado, defendido em 1996. A reunião de trabalhos que contemplam alguns aspectos de minha produção permite vislumbrar as linhas gerais do percurso intelectual realizado nos últimos anos. A maioria dos textos aqui apresentados foram publicados anteriormente como artigos em revistas especializadas ou como capítulos em coletâneas da área mas alguns excertos incluídos apresentam reflexões inéditas. A organização do material em três eixos principais – intitulados “caixa de ferramentas”, “história do presente” e “atualidade” – viabiliza a necessária articulação teórica e a perspectiva crítica em relação aos materiais elaborados em diferentes momentos de meu percurso acadêmico e para fins diversos. Assim, apesar do caráter heterogêneo da coletânea, a coerência de uma perspectiva particular pode ser vislumbrada nas várias dimensões do trabalho intelectual realizado ao longo dos anos. A divisão nos três eixos citados tem igualmente objetivos didáticos mas, de fato, há um forte entrelaçamento na produção aqui sistematizada, de tal forma que questões da primeira parte – de sistematização de leituras acerca do pensamento de um autor em particular – aparecem depois retomadas no segundo bloco – de investigações empíricas com escopo histórico – e no terceiro – de pesquisas voltadas a temas e questões do presente. Desse modo, embora reflexões de cunho mais teórico-metodológico sejam apresentadas no início, as partes seguintes não foram produzidas como simples aplicação de um instrumental prévio em âmbitos delimitados de pesquisa. Pelo contrário, em realidade, os textos foram sendo produzidos paulatinamente de forma paralela, de tal modo que a investigação empírica com frequência conduzisse a desdobramentos teórico-metodológicos, ao passo que, por vezes, a leitura de autores e de reflexões teóricas também viabilizasse caminhos inéditos de investigação.

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Em suma, é muito mais a ideia de um revezamento1 entre considerações de âmbito teórico e analítico, discussões metodológicas e investigações empíricas circunscritas que estrutura o material exposto, de tal forma que essas diferentes dimensões pudessem caminhar simultaneamente e se enriquecessem mutuamente, ao longo do trabalho realizado nos últimos anos. É também a metáfora da caixa de ferramentas, empregada diversas vezes por Michel Foucault (1926-1984), que está em jogo, uma vez que autores e discussões teóricas e analíticas sempre foram escolhidos tendo em vista usos possíveis em investigações empíricas voltadas para contextos específicos – circunscritos geralmente à realidade brasileira – e empregando diferentes técnicas de pesquisa, como análise documental, entrevistas, observação etc. Tendo em vista essa orientação didática e ao mesmo tempo ilustrativa de um percurso de investigação, a primeira parte da tese – intitulada justamente “caixa de ferramentas” – reúne textos que buscam caracterizar (mas também problematizar) o percurso intelectual do filósofo Michel Foucault (1926-1984), explorando, também, aspectos de suas análises históricas e elaborações conceituais. Uma percepção básica, que informa essa direção de estudos, é a de que a instrumentalização do pensamento de Foucault no âmbito das Ciências Sociais e da História não é uma tarefa simples, sendo a compreensão rigorosa de seu percurso intelectual condição necessária para um emprego mais produtivo das suas reflexões e pesquisas em campos circunscritos de investigação. O fato de Foucault partir de uma sólida formação filosófica para desenvolver seus estudos históricos coloca não poucas dificuldades para a incorporação de seu pensamento no âmbito da “imaginação sociológica” (cf. Mills, 1975). Ainda assim, a pista por mim perseguida desde os estudos iniciais a respeito desse autor – e atualmente respaldada em comentadores contemporâneos2 – é a de que Foucault não deixou de manifestar uma espécie de “postura” sociológica, com suas investigações empíricas e sua crítica sistemática das evidências em relação ao mundo social, de tal forma que suas ideais e análises podem ser produtivamente empregadas pelas Ciências Sociais – como demonstra a extensa literatura contemporânea que se inspira em seus trabalhos nos mais diversos âmbitos de investigação. Evidentemente – mas é sempre necessário lembrar – 1

Deleuze, em conversa com Michel Foucault, em 1972, usa a expressão “revezamento” para indicar uma nova maneira de vivenciar as relações entre teoria e prática, ao recusar os processos de totalização atribuídos à esquerda tradicional e ao enfatizar o caráter parcial e fragmentário da nova relação proposta por ele e igualmente por Foucault (cf. Deleuze e Foucault, 1981). Retomo aqui a expressão para também utilizá-la em relação ao trabalho intelectual e de pesquisa, ao indicar a alternância – mas também o imbricamento – entre reflexão teórico-metodológica e investigação empírica no âmbito de meu percurso. 2 Cf. por exemplo Lahire (2005) e Bert (2006).

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com a discussão sistemática dos trabalhos de Foucault, busquei sobretudo uma disciplina de pensamento – viabilizada pela reconstrução do universo de um autor em especial3 – mas isso nunca excluiu o diálogo, em meu próprio percurso de atuação, com outros clássicos e contemporâneos, como Max Weber, Norbert Elias, Erving Goffman e Pierre Bourdieu, entre outros. O texto inicial, “Michel Foucault e a Sociologia”– elaborado especialmente para a tese de livre docência, a partir de materiais anteriormente publicados, e que funciona como espécie de introdução aos demais trabalhos da primeira parte –, retoma, assim, os contornos mais gerais do percurso intelectual de Foucault para restituir-lhe sua riqueza e complexidade, para além dos usos mais rotineiros de seus escritos. A metáfora da caixa de ferramentas é problematizada, bem como a caracterização mais comum de seus trabalhos em três “momentos” – arqueologia, genealogia e ética. Em seguida, discute-se o “efeito” Foucault na Sociologia e, em especial, na Sociologia brasileira, com rápida menção ao debate acerca da “sociedade disciplinar” no Brasil. O segundo texto, intitulado “A Ordem do Discurso” – originalmente um capítulo de uma coletânea sobre aulas proferidas por diversos intelectuais no Collège de France4 – analisa detalhadamente o texto de Foucault intitulado

L’Ordre du Discours, na

verdade a aula inaugural proferida no mesmo Collège de France em 2 de dezembro de 1970. O que está em discussão na aula são as concepções de Foucault acerca da natureza dos discursos e de sua análise num momento de imbricamento, em seu percurso intelectual, entre a arqueologia do saber e a genealogia do poder. O terceiro texto, “Punição, poder e resistências: a experiência do Groupe d´Information sur les Prisons e a análise crítica da prisão” – publicado numa coletânea em homenagem a Foucault nos vinte anos de sua morte5 – discute o contexto de emergência e a participação específica de Foucault no Groupe d´Information sur les Prisons (GIP), criado em 1971 e auto-dissolvido em dezembro de 1972, tendo em vista a posterior publicação, em 1975, de Vigiar e Punir, trabalho mais conhecido no qual Foucault desenvolve uma análise da emergência da prisão moderna, bem como do poder disciplinar. A discussão de fundo remete à relação entre engajamento e reflexão 3

Pizzorno cita o surpreendente conselho que Durkheim – pai da “Sociologia científica” – deu a um de seus alunos: dedicar-se ao estudo sistemático de um grande mestre, como forma de amadurecer o pensamento (Cf. Pizzorno, 1977, p.47). Tendo lido tal passagem já no primeiro ano da graduação em Ciências Sociais, o autor que escolhi para tal exercício de amadurecimento do pensamento foi justamente Michel Foucault. 4 Cf. Alvarez (1999). 5

Cf. Alvarez (2006).

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intelectual, que o filósofo francês buscou equacionar em novo parâmetro, o do “intelectual específico”. O último texto dessa primeira parte, “A questão do poder em Foucault” – inédito e apresentado ainda como um esboço de discussão, a ser posteriormente aprofundado – reconsidera a questão do poder em Foucault, ao enfatizar as mudanças de rumo operadas nesse eixo de seus interesses de investigação a partir dos cursos no Collège de France do final dos anos 70 do século XX. O deslocamento de uma concepção do poder ligada à luta e ao confronto em direção a outra, que caracteriza o poder sobretudo como “governo de condutas”, bem como o emprego da noção de governamentalidade, como uma nova forma de exercício do poder na modernidade – complexamente articulada à soberania e às disciplinas – abrem perspectivas de análise ainda a serem mais bem aprofundadas no âmbito da teoria social e das investigações empíricas particulares na Sociologia. A segunda parte da tese, por sua vez, apresenta trabalhos de investigação ou de reflexão voltados para um escopo histórico mais amplo. Como já dito, não se trata de trabalhos que aplicam mecanicamente as ideias do filósofo francês ou de outros autores a contextos diversos mas que, efetivamente, foram elaborados em paralelo com as publicações anteriores, tendo como inspiração principal a concepção de “história do presente” (cf. Foucault, 1977). David Garland (2008), que busca justamente empregar no campo de estudos da Sociologia da punição e do controle do crime algumas pistas deixadas por Foucault, caracteriza a história do presente como um modo de empregar a pesquisa histórica, juntamente com a análise sociológica de forma a descortinar “as condições históricas de existência das quais dependem as práticas contemporâneas” (Garland, 2008, p.42). Ou seja, a narrativa histórica proposta é motivada mais por uma preocupação crítica em relação ao presente do que por uma preocupação estritamente histórica de reproduzir o passado, ao buscar analisar “as forças que deram à luz nossas práticas atuais e identificar as condições históricas e sociais das quais elas dependem. O objetivo não é pensar historicamente o passado, mas sim, através da história, repensar o presente (...).” (cf. Garland, 2008, pp.42-43). A perspectiva da história do presente, empregada por Foucault e, na Sociologia, por autores como Garland, tem sido por vezes criticada devido aos erros factuais presentes em tais análises, bem como pela seletividade em termos de método, já que não são explicitadas as escolhas, por exemplo, em termos de documentação ou de fontes

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primárias exploradas (cf. Braithwaite, 2003). Os trabalhos elaborados a partir de uma perspectiva histórica aqui apresentados, ao mesmo tempo que orientados sobretudo para repensar o presente, buscam evitar tais críticas, tanto a partir de um diálogo sistemático com a historiografia dos períodos analisados, quanto pelo uso criterioso das fontes documentais. Assim, se são questões da atualidade – como o tratamento legal e institucional dado aos problema dos jovens em conflito com a lei no Brasil, as concepções acerca do crime e da punição presentes na contemporaneidade, a dinâmica atual das instituições de punição e de controle do crime – que motivam tais análises, o esforço de demarcar continuidades e descontinuidades em relação ao tempo presente sempre foi pautado pela busca do maior rigor teórico e metodológico possível. Nessa direção, o primeiro texto, “Violência institucional contra crianças e adolescentes no Brasil: um breve percurso histórico”6, estabelece de modo mais direto a citada relação presente/passado, da forma como inspirada pela perspectiva anteriormente descrita. A questão atual do equacionamento jurídico e institucional da situação dos jovens em conflito com a lei no Brasil, a partir sobretudo da edição do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, é colocada em perspectiva a partir da retomada da análise da emergência do primeiro Código de Menores do país de 1927, originalmente realizada em meu mestrado (cf. Alvarez, 1989)7. A análise histórica da formulação e implementação das legislações voltadas à infância e à adolescência pobre ou em conflito com a lei não busca simplesmente descrever continuidades históricas mas colocar em perspectiva os dilemas atuais das intervenções estatais em relação a esse segmento da população brasileira. O texto seguinte, “Do Bacharelismo Liberal à Criminologia no Brasil” – ainda inédito, elaborado para integrar uma coletânea de trabalhos orientados por Sérgio Adorno na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP – também retoma reflexões anteriores, desta vez elaboradas no doutorado, para deixar mais evidente a filiação de minhas investigações acerca da emergência da Criminologia no Brasil à investigação concretizada em Os Aprendizes do Poder por Adorno (1988). Trata-se, desse modo, de estabelecer sobretudo as conexões intelectuais existentes entre minha trajetória de formação na época do doutoramento e as questões que Adorno já 6

Cf. Alvarez (2010). Embora o texto retome excertos do mestrado, a discussão foi reconfigurada, atualizada e publicada após a defesa do doutorado, sendo por isso incluída para compor a livre-docência, de acordo com as normas do edital vigente. O mesmo acontece com o artigo seguinte, que retoma as discussões do doutorado para dar-lhes uma nova configuração. 7

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desenvolvia como professor e pesquisador na Universidade de São Paulo, ambas as perspectivas orientadas para o desafio da transição democrática no país a partir dos anos 80 do século XX. Ainda no eixo de articulação das perspectivas sociológica e histórica, o texto intitulado “Tortura, História e Sociedade: algumas reflexões”– publicado originalmente na revista do Instituto Brasileiro de Ciêncais Criminais8, no bojo de eventos realizados no próprio IBCCrim e no NEV/USP9, bem como de outras publicações do mesmo período10 – discute, a partir da revisão de parte da literatura internacional sobre o tema, o problema da permanência da tortura nas sociedades contemporâneas. O paradoxo que move a reflexão é o de que a tortura, embora seja moralmente condenada e amplamente combatida na atualidade, continua a ser empregada em todas as partes do mundo, tanto em regimes democráticos como em regimes autoritários. A discussão que encerra a segunda parte da tese, “Políticas de Segurança Pública em São Paulo: uma perspectiva histórica”11, é fruto de projeto coletivo de pesquisa desenvolvido durante anos no Núcleo de Estudos da Violência da USP com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e intitulado Construção das Políticas de Segurança e o Sentido da Punição, São Paulo (1822-2000). Sem cair em anacronismos, a pesquisa buscou colocar em perspectiva os desafios atuais às Políticas de Segurança Pública no estado, por meio de exaustivos levantamentos e análises das experiências históricas no âmbito das leis e instituições voltadas para a punição e o controle social, sempre tendo como pano de fundo os obstáculos atuais à plena vigência do Estado de Direito no país, tal como em outras pesquisas realizadas no NEV-USP. A perspectiva histórica, anteriormente caracterizada, também se desdobra, em função da própria abordagem teórica adotada, numa atenção especial ao tempo presente. A atitude crítica em relação à atualidade coloca em questionamento o que acontece agora, o campo atual das experiências possíveis para a ação dos homens (cf. Foucault, 2001). É nesse sentido que os temas apresentados na última parte desta tese desdobram as questões anteriores – teóricas e históricas – em investigações de temas 8

Cf. Alvarez, 2008. O paper que deu origem ao artigo foi pela primeira vez apresentado no 13 º Seminário Internacional do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, realizado em 2007, mas também se beneficiou das discussões e levantamento bibliográficos realizados para a organização do Seminário Internacional sobre a Tortura, concretizado pelo NEV/USP em 2008. 10 Cf. Salla e Alvarez (2005 e 2006). 11 Cf. Alvarez, Salla e Souza (2004). 9

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contemporâneos. Mas, novamente, é possível pensar no caminho inverso, em que as questões contemporâneas levam à adoção de uma perspectiva histórica e crítica, todas as dimensões se alimentando reciprocamente, ao permitirem recolocar em movimento o solo aparentemente inerte de nossas opções políticas12. Assim como o último texto apresentado no segmento anterior, os capítulos ora reunidos nessa última parte são todos textos elaborados coletivamente, quase sempre como parte de investigações realizadas em instituições como o NEV/USP ou o IBCCrim. Não menos importantes, tais empreendimentos de pesquisa, que resultaram em publicações diversas, para além da caracterização de apenas um percurso individual, revelam que o trabalho intelectual expressa também pertencimentos mais amplos e valores acadêmicos e políticos compartilhados. “Adolescentes em conflito com a lei: contribuições de uma pesquisa empírica” 13 apresenta alguns dos principais resultados de um projeto de pesquisa desenvolvido entre 2008 e 2010 pelo NEV/USP em parceria com a Fundação CASA-SP – Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente – e com financiamento do CNPq. Mais uma vez, é a questão dos jovens em conflito com a lei que está em discussão, buscandose agora o levantamento do perfil dos adolescentes, bem como as características da medida aplicada e a análise do funcionamento das instituições da justiça juvenil no período de 1990 a 2006. “A vítima no processo penal brasileiro: um novo protagonismo no cenário Contemporâneo”14, por sua vez, resultado de pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais no âmbito do Projeto Pensando o Direito da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, investiga os principais aspectos jurídicos e sociológicos envolvidos na questão da participação da vítima no processo penal. Com esse objetivo, foram analisadas duas experiências consideradas inovadoras nesse campo no Brasil: os procedimentos restaurativos concernentes à lei 9.099/95 e os processos penais referentes à violência doméstica e familiar que tramitam pelo procedimento previsto pela lei 11.340/06, também conhecida como Lei Maria da Penha. A pesquisa voltou-se especialmente às percepções e às demandas das vítimas, ao 12

Com afirma ainda Foucault, na mesma reflexão, a atitude moderna implica igualmente que aquele que fala como pensador, como cientista, como filósofo é, ao mesmo tempo, elemento e ator desse processo (cf. Foucault, 2001). Num certo sentido, o memorial apresentado conjuntamente a essa tese permite acompanhar o entrelaçamento de meu percurso individual com meu percurso de investigação, de tal forma a perseguir a “atitude moderna” indicada pelo filósofo francês. 13 Cf. Salla e Alvarez (2011). 14

Cf. Alvarez et al. (2010).

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problematizar de que maneira se colocavam os discursos pautados na vingança, na reparação e na reconciliação. A discussão seguinte, “Violência e Fronteiras no Brasil”15, também resultado de investigação coletiva desenvolvida junto ao NEV/USP – como parte do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia, INCT, sobre Violência, Democracia e Segurança Cidadã, com apoio CNPq/FAPESP – investiga o tema da fronteira no Brasil contemporâneo, ao apresentar dados iniciais obtidos sobre as características das regiões de fronteira e que permitem contribuir para que novas propostas de análise sejam construídas sobre a questão. Na verdade, o texto compõe uma série de discussões e investigações sobre as novas formas de gestão dos espaços fronteiriços no Brasil, recentemente encaminhada para publicação16. Finalmente, o texto “A contribuição de David Garland: a Sociologia da Punição”17 – também subproduto das discussões realizadas junto ao projeto “Construção das Políticas de Segurança Pública e o Sentido da Punição, São Paulo (1822-2000)” e publicado originalmente na revista Tempo Social – apresenta uma revisão das discussões teóricas acerca da punição e das políticas de controle do crime no mundo contemporâneo, tendo por foco principal o trabalho de David Garland Punishment and Modern Society – A study in Social Theory. Com relação aos trabalhos já publicados, eles foram adaptados de forma a serem evitadas repetições excessivas de conteúdo, bem como algumas modificações nas redações originais foram realizadas. As referências bibliográficas foram mantidas no final de cada texto, o que facilita a consulta para o leitor. Nesse sentido, cada capítulo desta tese de livre-docência pode ser lido como uma unidade autônoma. Mas, ao mesmo tempo, o conjunto revela a coerência, mesmo que parcial e dinâmica, de um percurso intelectual que se pretende inquieto mas que busca, sempre que possível, coesão e sentido18. São Paulo, março de 2013.

Marcos César Alvarez 15

Cf. Alvarez, Salla e Ballesteros (2011). O texto original em português, aqui apresentado, foi depois traduzido para o espanhol. 16 Cf. Alvarez e Salla (2013) e Alvarez, Salla e Almeida (2013), entre outros. 17 Cf. Alvarez, Salla e Gauto (2006). 18 Agradeço a Sônia Maria Alvarez e a Manoel Luiz Gonçalves Corrêa pela revisão de partes da redação deste trabalho.

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PARTE I – CAIXA DE FERRAMENTAS

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Michel Foucault e a Sociologia19

A caixa de ferramentas

As formas originais de pensamento se introduzem por elas mesmas: sua história é a única forma de exegese que elas suportam, e seu destino a única forma de crítica. Michel Foucault

La circulation internationale des idées est pleine de malentendus et de piéges, contre lesquels il faut être sans cesse en garde. Pierre Bourdieu

Michel Foucault por diversas vezes convidou seus ouvintes ou leitores a tomarem suas ideias como hipóteses de trabalho, suas análises como experiências provisórias, seus livros como ferramentas para múltiplos usos possíveis. Por exemplo, em entrevista realizada por J.J. Brochier, em 1975, ele afirmava, em relação a Nietzsche:

O único sinal de reconhecimento que se pode ter para com um pensamento como o de Nietzsche, é precisamente utilizá-lo, deformá-lo, fazê-lo ranger, gritar. Que os comentadores digam se se é ou não fiel, isto não tem o menor interesse (Foucault, 1981b, p.143). Tal tipo de posicionamentos fornece uma pista não apenas para se compreender como Foucault se apropriava dos autores que achava importantes e que iriam se constituir para ele como efetivos instrumentos de pensamento mas igualmente como desejava que seu próprio percurso intelectual fosse apropriada por outros leitores. A 19

Esse texto, embora retome alguns excertos já publicados anteriormente – sobretudo em Alvarez (1993; 2002) – foi totalmente reelaborado, ao incluir modificações e novas reflexões, de forma a servir como uma espécie de introdução dessa primeira parte da livre-docência. Assim, para todos os efeitos, trata-se de reflexão inédita a respeito da importância das ideias de Michel Foucault para a Sociologia contemporânea.

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metáfora da caixa de ferramentas se oporia, desse modo, ao ritual acadêmico do comentário, que garantiria ao autor um lugar no conjunto da tradição filosófica mas pagando-se o preço da neutralização das novas possibilidades abertas pelo seu pensamento, dos novos espaços de problematização que Foucault

buscava

obsessivamente desobstruir. Seria também um convite ao uso público de suas pesquisas pelos movimentos sociais e nas lutas setoriais, diante das quais o intelectual não deveria desempenhar nenhum papel como protagonista mas inserir-se como “intelectual específico” em oposição ao “intelectual universal”, tal como Foucault prescrevia em entrevista de 1977 (Foucault, 1981b). Em outra entrevista de 1975, a Roger Pol-Droit, Foucault é ainda mais explícito no convite ao uso instrumental de seus textos, embora a tensão entre o trabalho intelectual tradicional – do qual Foucault nunca conseguiu se desvencilhar totalmente – e o “sonho” de um pensamento verdadeiramente instrumental (Foucault, 2006, p.82) se faz presente:

Meu discurso é, evidentemente, um discurso de intelectual e, como tal, opera nas redes de poder em funcionamento. Contudo, um livro é feito para servir a usos não definidos por aquele que o escreveu. Quanto mais houver usos novos, possíveis, imprevistos, mas eu ficarei contente. Todos os meus livros seja História da loucura seja outros podem ser pequenas caixas de ferramentas. Se as pessoas querem mesmo abri-las, servirem-se de tal frase, tal ideia, tal análise como de uma chave de fenda, ou uma chave-inglesa, para produzir um curtocircuito, desqualificar, quebrar os sistemas de poder, inclusive, eventualmente, os próprios sistemas de que meus livros resultam ... pois bem, tanto melhor! (Foucault, 2006, p. 52) De modo mais geral, a metáfora da caixa de ferramentas buscava situar seus trabalhos no espaço da liberdade – tanto de si próprio quanto dos atuais e futuros leitores – mas não era, no plano intelectual, um convite à leitura descuidada ou ao emprego frouxo de conceitos e de análises. Mesmo que com frequência Foucault tenha divulgado em registros diversos suas ideias – em livros e artigos acadêmicos mas também em entrevistas, em prefácios, em artigos de jornais etc. – o caminho trilhado não era o da vulgarização fácil. Nesse sentido, parece apropriada a observação de Pierre Bourdieu, justamente a respeito de Foucault, quando afirma que por vezes um autor consciente busca tornar-se difícil de ler para poder encontrar seus verdadeiros leitores e, em contrapartida, contornar as ameaças representadas pelas forças da não-recepção (Bourdieu, 1996). Esse parece ter sido realmente o caminho trilhado por Foucault, que

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dificilmente respondia às polêmicas mais vulgares20, aos ataques mais simplistas, às questões mais diretas e, em contrapartida, desenvolveu um estilo de escrita elaborado e virtuoso – elogiado, entre outros, por Lévy-Strauss (2005) – não dissociado dos difíceis problemas que buscava enfrentar. Desse modo, ainda como comenta Bourdieu, sem dúvida Foucault buscava não os leitores que lêem para falar em seguida do que leram mas sim aqueles que lêem para, a partir disso, fazer alguma coisa, fazer avançar o conhecimento (Bourdieu, 1996). Mas o convite à instrumentalização de seus trabalhos não excluiria o esforço de enfrentar as dificuldades próprias de um pensamento sem dúvida original mas igualmente complexo e denso. Por isso o empenho permanente em esclarecer, sempre com rigor, suas escolhas teórico-metodológicas, caracterizar as hipóteses em jogo, corrigir seus pontos de vista e, por vezes, indicar as leituras equivocadas de seus trabalhos. Logo, restituir ao percurso intelectual de Foucault sua riqueza e complexidade não é uma tarefa banal, nem se limita à periodização de seus principais trabalhos ou à busca das inter-relações entre os diferentes registros de sua produção. Tanto num caso quanto no outro, a unidade e a coerência de seu percurso parecem difíceis de serem plenamente estabelecidas. Por um lado, como lembra mais uma vez Bourdieu, é preciso não fetichizar um autor: pode-se opor uma citação a outra de Foucault não apenas porque ele se contradizia, como todo mundo, mas igualmente porque ele não dizia a mesma coisas para públicos diversos e em diferentes circunstâncias (Bourdieu, 1996). Por outro lado, linearidade, continuidade,

coerência e unidade não são termos

equivalentes nem foram tratados de forma tradicional pelo próprio Foucault (Revel, 2012). Tais desafios não são, no entanto, apenas obstáculos mas parte do exercício intelectual mesmo de apreensão e de compreensão de seu pensamento. Tomar os trabalhos de Foucault em sua dispersão e heterogeneidade incontornáveis e, ao mesmo tempo, dar conta da forma original de como ele trabalhava, da “descontinuidade coerente” que atravessa os trinta anos de seu trabalho de escrita, de pesquisa, de ensino e de compartilhamento de seu pensamento (cf. Revel, 2012, p.85), permitem uma apropriação mais próxima do “espírito” de sua trajetória intelectual. Nesse sentido, 20

Em entrevista a Paul Rabinow de 1983, Foucault explica porque não gostava de se envolver em polêmicas. Para o filósofo francês, o polemista sempre vê o interlocutor como um adversário ou um inimigo a ser destruído, já que assume de antemão uma legitimidade que nega ao seu adversário. Além dos efeitos esterilizantes, em termos de produção da verdade, e nocivos, em termos políticos, para Foucault o que está em jogo também é toda uma moral da procura da verdade e da relação com o outro, que a polêmica afronta (Foucault, 1999).

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buscar-se-á aqui um mapeamento não exaustivo de questões e de abordagens em diversos de seus escritos, não para restaurar a totalidade de uma obra21 – estatuto sempre problematizado pelo próprio Foucault em relação aos seus escritos – mas para reconstruir instrumentos conceituais e de pesquisa para novas experiências de pensamento possíveis.

O percurso22 intelectual de Michel Foucault

As categorias de filósofo ou historiador são, ao mesmo tempo, bastante imprecisas e por demais limitadas para caracterizar os trabalhos realizados por Michel Foucault ao longo de sua vida. Ao percorrer, com suas análises, campos de conhecimento diversos, ele rompe com as divisões disciplinares tradicionais, o que faz com que seus trabalhos tenham ressonância em muitas regiões do conhecimento, sobretudo nas assim chamadas Ciências Humanas. Apresentar os contornos mais amplos do percurso intelectual de Foucault é, consequentemente, tarefa árdua, dada a multiplicidade de áreas e de objetos englobados por suas pesquisas. A simples tarefa de rastreamento dos autores com quem dialoga, por si só, já se mostra bastante complexa face à pluralidade de correntes de pensamento que se entrecruzam em suas pesquisas. Roberto Machado (1981), no entanto, segue um interessante caminho ao mostrar que podemos entender os primeiros trabalhos de Foucault principalmente se os relacionamos com os estudos epistemológicos feitos por Georges Canguilhem. Mas os interesses iniciais de Foucault já o encaminham não apenas para questões epistemológicas relativas às Ciências Humanas mas também para questões relativas ao papel político dessas ciências, como explicita o próprio Foucault numa entrevista de 1977:

21

A crítica à noção de obra em Foucault caminha em paralelo com a crítica à noção de autor, ambas revelando a mesma preocupação em impedir a formação de um corpus, de uma configuração homogênea em relação aos seus próprios escritos (Revel, 2012). Sobre a questão do “autor” em Foucault, conferir Adorno (2012). 22 Como enfatiza Judith Revel (2012), o termo “percurso” tem sido utilizado por comentadores para afirmar a coerência das pesquisas de Foucault, a despeito das frequentes mudanças de campos de interesse e de instrumental conceitual ao longo de seus trabalhos, e é nesse sentido que será empregado aqui. A divisão interna do percurso, por sua vez, em diferentes fases de pesquisa, é vista pela mesma autora como problemática, já que visaria manter apenas uma aparência de linearidade ao corpus, sem explicar, por exemplo, os momentos de transição. Sem aprofundar tal questão, aqui a rápida descrição dos diferentes livros de Foucault publicados visa ressaltar apenas certas recorrências em termos das questões levantadas e das abordagens desenvolvidas em seu percurso intelectual.

21

Quando fiz meus estudos, por volta dos anos 50-55, um dos problemas que se colocava era o do estatuto político da Ciência e as funções ideológicas que podia veicular. Não era exatamente o problema Lyssenko que dominava, mas creio que em torno deste caso escandaloso, que durante tanto tempo foi dissimulado e cuidadosamente escondido, apareceu uma série de questões interessantes. Duas palavras podem resumi-las: poder e saber. Creio haver escrito História da loucura dentro deste contexto. Para mim tratava-se de dizer o seguinte: se perguntamos a uma Ciência como a física teórica, a química orgânica quais suas relações com as estruturas políticas e econômicas da sociedade, não estaremos colocando um problema muito complicado? Não será muito grande a exigência para uma explicação possível? Se, em contrapartida, tomarmos um saber como a psiquiatria, não será a questão muito mais fácil de ser resolvida porque o perfil epistemológico da psiquiatria é pouco definido, e porque a prática psiquiátrica está ligada a uma série de instituições, de exigências econômicas imediatas e de urgências políticas e de regulamentações sociais? (Foucault, 1981b, p.1) Nesse sentido, Foucault, ao partir da Epistemologia, coloca a si mesmo questões que inicialmente o encaminham para uma análise crítica do conhecimento que se abre também para o contexto político-social das Ciências Humanas e áreas afins. Um breve resumo circunscrevendo, em ordem cronológica, a problemática de seus principais livros publicados permite um primeiro vislumbre de continuidades e de deslocamentos que marcam seu percurso intelectual. Seu primeiro livro, intitulado Doença Mental e Personalidade, publicado originalmente em 1954, discute, em termos históricos, diferentes teorias psicológicas. Foucault pretende mostrar nessa obra a especificidade da patologia mental em relação à patologia orgânica e a consequente impossibilidade de se tratarem os problemas psicológicos com base em conceito extraídos da Medicina somática. Ao analisar, histórica e criticamente, diferentes teorias psicológicas, constata o equívoco das teorias que tentam explicar a doença mental considerando-a apenas como entidade natural, ou mesmo remetendo-a apenas à personalidade do paciente, dada a impossibilidade, por ele colocada, de se compreender a doença fora do meio. Assim, a abordagem epistemológica acaba por mostrar a insuficiência das análises que restringem a doença ao indivíduo, ao mesmo tempo em que estabelece a vinculação necessária da doença mental e as condições sociais que favorecem sua existência. Foucault considera, inclusive, que a própria cura só é possível a partir do estabelecimento de novas relações entre o enfermo e o meio, o que implica, a seu ver, também (e necessariamente) uma

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reforma estrutural da assistência médica e dos hospitais psiquiátricos (Foucault, 1984a, p.122, nota). Neste primeiro trabalho, reescrito posteriormente, Foucault mostra a insuficiência de uma análise estritamente epistemológica sobre o conhecimento da doença mental, já que expõe a necessidade de se remeter o conhecimento da enfermidade mental também a uma análise histórico-sociológica das suas condições externas. Mas a análise de Foucault neste momento ainda está presa a um ideal de cientificidade: como ele mesmo afirma na introdução de Doença Mental e Personalidade (Foucault, 1984a), o percurso feito no livro busca mostrar quais são os postulados de que o conhecimento da doença mental deveria se liberar para chegar a ser rigorosamente científico. Se, nesse primeiro livro, a epistemologia se abre necessariamente para o contexto histórico-social, no livro seguinte, História da Loucura, publicado em 1961, a própria questão epistemológica é deslocada23. Trata-se então de se encontrar as próprias condições históricas que tornam possível um conhecimento acerca da loucura como doença mental. Neste sentido, História da Loucura é efetivamente o primeiro livro que começa a desenhar um perfil singular em relação à tradição epistemológica que influencia Foucault24. Nele Foucault analisa, do Renascimento ao século XIX, a emergência da doença mental como objeto de conhecimento. Sua proposta impõe um corte original: não mais apenas contextualizar historicamente o saber sobre a enfermidade mental mas procurar as condições históricas que permitem que a experiência da loucura seja tratada como doença mental. Assim Foucault explicita num dos prefácios desta obra: não fazer uma história da linguagem da razão sobre a loucura (como seria uma simples história da Psiquiatria), mas uma arqueologia do silêncio da loucura, silêncio este que permitiu o monólogo da razão (Foucault, 1964). A arqueologia deste silêncio, portanto, remete ao conjunto de transformações culturais e institucionais que permitiram a emergência da loucura como doença mental. Por isso,

23

Sobre História da Loucura, conferir Roudinesco (1994) e Chevallier (2009). Judith Revel aponta novamente as dificuldades que se apresentam para a compreensão do pensamento de Foucault quando justamente seu percurso é dividido de tal forma que é como se existissem diversos autores que se sucedem, cada um com seus próprios quadros de referências, seus diferentes domínios de interesse, suas terminologias específicas (Revel, 2012). Torna-se difícil, ao simplesmente enunciar esses diferentes “autores”, dar conta justamente das passagens e das rupturas que ocorrem ao longo de seus trabalhos. 24

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como diz Blanchot, a propósito de História da Loucura, “(...) o importante é a exclusão e não o que se exclui e divide” (Blanchot, s.d., p.18)25. Com o deslocamento das questões epistemológicas efetuado pela análise arqueológica, a questão da cientificidade também é deslocada: a cientificidade deixa de ser critério de julgamento histórico e passa a ser um problema de análise. A questão que se coloca é a seguinte: quais condições de possibilidade permitiram um discurso pretensamente científico acerca da loucura? Ao abandonar a cientificidade como critério orientador da análise, Foucault abandona também a idéia de uma história em termos de progresso do conhecimento, de acordo com Machado (1981, p.11). Ainda segundo esse autor, é como se houvesse uma recorrência às avessas no livro: Foucault julga as teorias sobre a loucura como se elas encobrissem cada vez mais uma experiência trágica e fundamental da loucura. Romper com a cientificidade enquanto critério passa também a implicar que o saber sobre a loucura não deve mais ser procurado apenas nos discursos científicos mas também fora das fronteiras da cientificidade, na própria cultura da época em que emerge e também nas suas articulações com acontecimentos não-discursivos, como as transformações dos espaços institucionais. Esse papel central atribuído aos espaços institucionais não deixa dúvidas a respeito da interdependência entre práticas de conhecimento e práticas sociais proposta neste livro. Nas obras que se seguiram, no entanto, há uma relativa diminuição da importância das práticas sociais para as pesquisas denominadas arqueológicas. O Nascimento da Clínica, editada em 1963, é muito mais um estudo “interno” da constituição do saber clínico moderno, e em As Palavras e as Coisas, editada em 1966, o que está fundamentalmente em jogo são as transformações discursivas, suas regras de permanência e de ruptura. As Palavras e as Coisas é provavelmente a obra na qual Foucault atribui maior importância à maneira como ocorrem as transformações discursivas, ficando apenas implícito o contexto histórico-social que é condição de possibilidade destas mudanças. Mas nem por isso deixa de se colocar nesta obra o problema da historicidade dos discursos. Estuda-se a passagem da epistéme clássica para a moderna e o 25

Desde a publicação de História da Loucura, uma série de equívocos começa a se consolidar em relação à forma de abordagem que irá caracterizar a singularidade das análises de Foucault. Por exemplo, ao contrário de uma relativização ingênua, denunciada por muitos, já nesse livro Foucault não pretendia afirmar simplesmente que a loucura não existia mas sim retraçar as condições de possibilidade de um discurso específico, o da Psiquiatria, que objetivava a loucura como doença mental.

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surgimento das Ciências Humanas. Com o conceito de epistéme, Foucault parece querer justamente problematizar o caráter histórico das práticas discursivas. A epistéme aparece como o solo comum, espaço de identidades, similitudes e analogias no qual se distribuem as coisas diferentes e parecidas numa cultura, limitando seu horizonte de pensamento, podendo sofrer rupturas e transformações (Foucault, 1981a). Este espaço possível de encontro entre palavras e coisas não é determinado nem por encadeamentos a priori e necessários, nem por conteúdos imediatos sensíveis mas se constitui historicamente como experiência regrada da ordem e de seus modos de ser (Foucault, 1981a) e, por conseguinte, também se transforma segundo necessidades que, por um lado, não são internas aos enunciados e, por outro, não são nem exteriores nem intrínsecas ao objeto, mas que se dão nas práticas históricas dos discursos. Por isso o livro não trata nem de história das idéias nem de história das ciências, mas procura encontrar o a priori histórico e a positividade que tornaram possíveis idéias e teorias. Sem dúvida, As Palavras e as Coisas é um dos trabalhos mais densos de Foucault, dada a multiplicidade de questões filosóficas que suscita. Interessa aqui principalmente ressaltar que esse trabalho, juntamente com o texto “metodológico” – se é que assim pode ser chamado – que o segue, A Arqueologia do Saber, publicado em 1969, são as obras nas quais Foucault dá mais atenção às especificidades das práticas discursivas, ficando apenas pressupostas as condições de possibilidade não-discursivas que as suportam. Já em A Ordem do Discurso, sua aula inaugural no Collége de France, Foucault não está apenas preocupado com os procedimentos internos de produções dos discursos, ou seja, com a especificidade das práticas discursivas; sua análise se abre também

para

os

procedimentos

exteriores

que

controlariam,

selecionariam,

organizariam e redistribuiriam os discursos a partir de mecanismos de exclusão, de interdição, de restrição, de repetição etc. Foucault continua então pretendendo analisar a especificidade dos discursos mas articulando-os também a sua exterioridade: (...) a partir do discurso mesmo, de sua aparição e regularidade, ir em direção de suas condições externas de possibilidade, em direção do que dá lugar à série aleatória de seus acontecimentos, e que lhes fixa os limites (Foucault, 1971, p.55). Ao analisar estes procedimentos externos aos discursos, Foucault passa então a problematizar sistematicamente os mecanismos de poder e suas articulações com o saber.

25

Neste sentido, Vigiar e Punir, editada em 1975, é a pesquisa exemplar dessa fase chamada genealógica. Dos suplícios de criminosos no século XVIII ao grande complexo carcerário do século XX, Foucault analisa as transformações das práticas penais e com elas as transformações das práticas de poder no interior das sociedades modernas. E dentro destas transformações, um problema principal: a emergência da prisão como instituição central, à qual vem se articular um novo conjunto de práticas de poder disciplinares, suporte também de novas relações de conhecimento. Nesta obra os acontecimentos discursivos e não-discursivos estão articulados. E as relações entre saber e poder são exaustivamente desenvolvidas, explicitando-se os saberes que se articulam a dispositivos de poder. Após esse trabalho, Foucault anuncia um novo projeto ambicioso: estudar os saberes e as práticas que envolvem a sexualidade na história ocidental como um dispositivo de poder. O primeiro volume de História da Sexualidade, publicado em 1976, mais uma declaração de intenções, coloca esse novo projeto bem em continuidade com o anterior, desenvolvendo-se inclusive vários pontos apenas esboçados naquele. Mas nos dois volumes seguintes da História da Sexualidade, publicados em 1984, modifica-se novamente a direção das análises de Foucault. Ele deixa em segundo plano o discurso da sexualidade e sua articulação com dispositivos de poder, ao colocar em plano principal a questão da subjetividade. Essa nova mudança se justifica em razão dos próprios problemas colocados pela análise da sexualidade como um dispositivo de poder. Segundo Foucault, sua proposta de estudar a sexualidade como um dispositivo de poder implica não só a problematização das relações saber/poder mas também e principalmente a problematização do sujeito da própria sexualidade (Foucault, 1984b). As análises anteriormente realizadas fornecem-lhe instrumentos tanto para as análises das práticas discursivas como para as análises das relações de poder correlativas ao discurso da sexualidade. Mas o estudo dos modos pelos quais os indivíduos são levados a se reconhecerem como sujeitos sexuais traz-lhe problemas inéditos, o que leva Foucault a recuar sua análise até a antiguidade clássica para realizar uma história crítica do próprio sujeito do desejo, do modo como o homem ocidental é levado a se reconhecer como sujeito de desejo (ou seja, dirige-se a análise para os jogos de verdade a partir dos quais o ser humano se reconhece como sujeito do desejo). Essa mudança de rumo faz com que Foucault coloque a própria questão do sujeito como retrospectivamente central em toda sua obra.

26

Assim, nesse momento de seu percurso, Foucault lança um olhar retrospectivo mostrando-o como um longo trabalho de problematização das práticas pelas quais o homem ocidental torna-se sujeito de práticas de verdade e de poder26. A morte do autor, entretanto, o impede de desenvolver mais exaustivamente essa nova orientação de suas pesquisas no sentido de uma ética (Davidson, 1988), sendo interrompida sua história da sexualidade no terceiro volume.

Arqueologia, Genealogia e Ética

Geralmente os escritos de Foucault são divididos em três domínios distintos de análise, a cada um dos quais se associa um determinado tipo de abordagem (Davidson, 1988). O primeiro domínio seria o dos sistemas de conhecimento, abordado a partir de uma arqueologia do saber27. O segundo domínio seria aquele das modalidades de poder, estudado a partir de uma genealogia do poder28. E o terceiro domínio seria o das relações do sujeito consigo mesmo, analisado a partir de uma ética29. No entanto, talvez se deva ter mais cautela mesmo com esse tipo de periodização, sobretudo tratando-se de um autor como Foucault, pois tanto os domínios explorados quanto as abordagens construídas sucedem-se em sua trajetória de modo complexo, com frequentes sobreposições metodológicas e retornos a períodos históricos de análise. Judith Revel aponta justamente como essa divisão didática não resolve uma série de questões relativas ao conjunto dos trabalhos de Foucault, entre elas o problema dos textos intermediários e também o da razão desses deslocamentos ao longo do percurso intelectual do próprio autor. Ou seja, a divisão permite manter uma aparência de continuidade mas ao preço de uma ausência quase total de transições, bem como do questionamento efetivo das rupturas e das descontinuidades (cf. Revel, 2012, pp.65-66). A autora defende, em contrapartida, que o tema do descontínuo está presente não apenas nas descrições históricas de Foucault – por exemplo na sua preocupação extrema com os acontecimentos, com as rupturas temporais, na busca por tornar 26

Sobre esse último deslocamento em direção ao sujeito, conferir, por exemplo, o texto O Sujeito e o Poder (Foucault, 1995). 27 Exemplo desta abordagem seriam trabalhos como As Palavras e as Coisas e A Arqueologia do Saber. Sobre o momento arqueológico do percurso de Foucault, conferir Rouanet (1971) e Gutting (1989). 28 Vigiar e Punir seria o trabalho paradigmático desta abordagem genealógica. 29 Desenvolvida sobretudo nos dois últimos volumes da História da Sexualidade.

27

aparente todas as descontinuidades que atravessam a história – mas igualmente no plano da própria escrita, ao buscar experimentar uma fragmentação da própria narrativa filosófica. Assim, antes de ser genealógico, o pensamento de Foucault seria descontínuo, com a própria descontinuidade tornando inevitável a assunção, por exemplo, da dimensão genealógica em relação à arqueologia (Revel, 2012, p.67). Tal jogo da diferença e da descontinuidade na própria escritura torna complexa mesmo a relação entre os diversos registros, os múltiplos planos da escrita de Foucault. Os grandes livros, anteriormente resumidos, e os textos “periféricos” ou “pequenos escritos”, publicados nos Dits et Ecrits,

estabelecem entre si relações

complexas, sendo, por vezes, os textos periféricos laboratórios dos livros, como seria de se esperar, mas sendo, outras vezes, após a publicação dos mesmos livros, lugares de sua crítica radical (Revel, 2012). Esse jogo no cruzamento dos diferentes registros de escritura buscaria impedir justamente a fixação da qualquer coisa como a unidade de uma obra ou o motivo básico do pensamento de Foucault. Paradoxalmente, ainda como afirma Revel, a contradição entre esses dois planos não suprimiria necessariamente a coerência do projeto mas o faria avançar numa dinâmica permanente de temas e de pesquisas: essa seria a “descontinuidade coerente do pensamento de Foucault” (Revel, 2012, p.85). Embora tais questões sejam de difícil aprofundamento, é certo que Foucault, ao longo de seu percurso intelectual, terá a preocupação constante,ou melhor, a coragem de problematizar sua própria posição (Revel, 2012), de revisar análises e reelaborar conceitos. Justamente um equívoco frequente da recepção dos trabalhos de Foucault na Sociologia ou na teoria social – foco principal da discussão ora em curso – reside justamente na não caracterização precisa desses movimentos de seu pensamento, dos inúmeros deslocamentos que possibilitam tanto a construção de problemas e de conceitos quanto o desenvolvimento das análises históricas. O “efeito Foucault” na Sociologia A partir da caracterização do percurso intelectual de Foucault – ilustrado anteriormente por meio do resumo de seus principais livros editados – já é possível perceber o alcance que suas ideias e pesquisas terão no âmbito de áreas específicas, como a Sociologia. Tal ressonância alcançará inúmeros temas, como gênero e sexualidade, corpo, saúde e doença, crime, punição e desvio, instituições e

28

organizações, entre inúmeros outros, além de discussões diversas no âmbito da teoria sociológica. Apesar da riqueza dos desdobramentos das leituras de seus trabalhos em termos de questões específicas estudadas pela Sociologia, a recepção mais vulgar ainda constroi uma imagem bastante inadequada do pensamento do autor. Assim, é muito frequente em livros e manuais a apresentação de Foucault como autor supostamente “pós-modernista”, que enfatizaria o discurso ao invés da realidade, que reificaria o poder na vida social, que acreditaria que os esforços de mudança social estariam sempre condenados ao fracasso30. Sem dúvida, outro equívoco recorrente consiste justamente na tentativa de aplicação dos conceitos e análises de Foucault como se fossem modelos gerais de pensamento, aplicáveis aos mais diversos contextos. Buscar-se-á deixar claro aqui que os trabalhos de Foucault não se prestam a tal tipo de instrumentalização mas permitem, em contrapartida, novos ângulos de abordagem de questões já tradicionais no campo da reflexão sociológica e áreas afins. Pode-se ilustrar esse impacto “produtivo” de um novo estilo de problematização das relações entre saber, poder e subjetividade no âmbito da Sociologia, a partir de uma entrevista na qual Foucault explicita porque evitava utilizar em suas análises a noção de “ideologia”, embora esta noção aparentemente pudesse recobrir muitos dos estudos por ele realizados sobretudo no final dos anos 60 e início dos anos 70 do século XX. Ao manifestar suas reservas em relação a essa noção, Foucault afirma em entrevista datada de 1977: A noção de ideologia me parece dificilmente utilizável por três razões. A primeira é que, queira-se ou não, ela está sempre em oposição virtual a alguma coisa que seria a verdade. Ora, creio que o problema não é de se fazer a partilha entre o que num discurso releva da cientificidade e da verdade e o que relevaria de outra coisa; mas de ver historicamente como se produzem efeitos no interior de discursos que não são em si nem verdadeiros nem falsos. Segundo inconveniente: refere-se necessariamente a alguma coisa como o sujeito. Enfim, a ideologia está em posição secundária em relação a alguma coisa que deve funcionar para ela como infra-estrutura ou determinação econômica, material, etc. Por estas três razões creio que é uma noção que não deve ser utilizada sem precauções. (Foucault, 1981b, p.7). A citação acima, em que Foucault manifesta suas reservas em relação à noção de Ideologia, adquire ainda maior relevância para nossa discussão pois, no 30

Ver, por exemplo, o resumo que Anthony Giddens faz das ideias de Foucault (Giddens, 2005).

29

interior da Sociologia, os trabalhos de Foucault foram inicialmente incorporados sobretudo para suprir as lacunas deixadas por essa noção no estudo das relações entre práticas de conhecimento e práticas de poder no interior da sociedade. As análises de Foucault – principalmente de sua fase genealógica – serão mobilizadas para explicar o papel desempenhado pelas ideias e instituições na manutenção cotidiana da ordem social, ou seja, para descrever a “microfísica do poder” que perpassaria todo o corpo social. Será igualmente a discussão acerca do papel das disciplinas – e dos saberes normalizadores a ela associados – que ganhará a cena. A partir dos problemas levantados em relação às análises em termos de Ideologia31, é possível perceber alguns dos novos equacionamentos que Foucault propõe e que terão efeitos nas Ciências Sociais nesse momento. Um primeiro problema levantado é o da oposição falso/verdadeiro ou não-científico/científico como critério de análise. O conceito de saber rompe com a ideia de cientificidade como critério de análise histórica, recurso utilizado por análises que operam a partir da oposição esquemática ideologia/ciência. Não apenas as práticas ideológicas mas também as científicas articulam-se ao contexto social, sendo irrelevante para a análise arqueológica o corte científico/não-científico como pressuposto metodológico. A arqueologia, tendo o saber como campo de estudos, procura em diferentes práticas discursivas as diferentes articulações desse saber. Assim, o saber sobre a loucura não deve ser procurado apenas no interior de uma disciplina com pretenso status científico, como a Psiquiatria, dado que excede a ela, devendo ser procurado também em textos jurídicos, expressões literárias, reflexões filosóficas etc. Os saberes são assim territórios arqueológicos e não apenas domínios científicos, territórios esses formados por práticas discursivas (Foucault, 1986). E assim os próprios domínios científicos devem ser inscritos nos campos de saber:

(...) Encontra-se uma relação específica entre ciência e saber em toda formação discursiva; a análise arqueológica, ao invés de definir entre eles uma relação de exclusão ou de subtração (buscando a parte do saber que se furta e resiste ainda à ciência, e a parte da ciência que ainda está comprometida pela vizinhança e influência do saber), deve mostrar, positivamente, como uma ciência se inscreve e funciona no elemento do saber. (Foucault, 1986, pp. 209).

31

Em entrevista de 1984, Foucault retoma suas reservas em relação à noção de Ideologia, ao indicar novamente que, desde o início de seu percurso intelectual, ao tomar as relações entre saber e poder como problema, tal noção não era capaz de dar conta das questões que pretendia desenvolver (Foucault, 2001).

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O corte ideologia/ciência deixa, portanto, de ser critério orientador da análise e passa a ser problema que deve ser historicamente situado. Daí que Foucault coloca na Arqueologia do Saber que ideologia e cientificidade não se excluem necessariamente; que uma ciência não é ideologia apenas nas falhas de sua estrutura e que o papel da ideologia não diminui à medida que cresce o rigor formal da ciência. Portanto, o funcionamento ideológico da ciência deve ser visto como prática entre outras práticas (Foucault, 1986). Essas novas orientações implicam também um reequacionamento das relações entre verdade e poder, como será visto logo a seguir. Mas, na proposta da arqueologia, um conceito se coloca antes como prioritariamente articulado ao de saber: o conceito de discurso. Com ele, Foucault rompe com outros problemas colocados anteriormente em relação ao conceito de ideologia: o do caráter superestrutural das ideias. O conceito de discurso, ao enfatizar a especificidade das práticas discursivas, rompe com a oposição estrutura/superestrutura. Muito sinteticamente, pode-se dizer que o essencial do posicionamento de Foucault em relação aos discursos é que ele os define como práticas articuladas a relações de poder e de saber (Foucault, 1986 e Veyne, 1982). A análise arqueológica do discurso, tal como ele a propõe, ressalta o que se poderia chamar de especifidade “interna” dos discursos, relacionado-a também com suas condições de produção, ou seja, o discurso é visto como tendo especificidade, exterioridade, positividade mas, ao mesmo tempo, é visto como remetendo também ao conjunto das condições históricas que o tornam possível. Por isso, o discurso não pode ser visto apenas como representação de uma realidade, apenas como índice das coisas mas como tendo uma existência peculiar, uma complexidade que lhe é própria e que só pode ser apreendida como prática: (...) gostaria de mostrar que os “discursos”, tais como podemos ouvi-los, tais como podemos lê-los sob a forma de texto, não são como se poderia esperar, um puro e simples entrecruzamento de coisas e palavras: trama obscura das coisas, cadeia manifesta, visível e colorida das palavras; gostaria de mostrar que o discurso não é uma estreita superfície de contato, ou de confronto, entre uma realidade e uma língua, o intricamento de um léxico e uma experiência; gostaria de mostrar, por meio de exemplos precisos, que, analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e destacar-se

31

um conjunto de regras, próprias da prática discursiva. (Foucault, 1986, p.56). Os discursos são, pois, considerados como práticas regradas e como formas próprias de encadeamento, articuladas ao mesmo tempo ao conjunto das demais práticas não-discursivas. A historicidade se coloca, consequentemente, tanto no plano “interno” do discurso, dadas as transformações que acontecem nas próprias regras de formação dos discursos, quanto no plano “externo” do conjunto da história ao qual estão articuladas as práticas discursivas. Daí o entusiasmo de Veyne, como historiador, com a proposta de Foucault:

Mas cada prática, ela própria, como seus contornos inimitáveis, de onde vem? Mas, das mudanças históricas, muito simplesmente, das mil transformações da realidade, isto é, do resto da história, como todas as coisas. Foucault não descobriu uma nova instância chamada “prática”, que era até então, desconhecida: ele se esforça para ver a prática tal qual é realmente; não fala de coisa diferente da qual fala todo historiador, a saber, do que fazem as pessoas (...) (Veyne, 1982, pp.159-160). Se os saberes, como resultados de práticas discursivas, não podem ser analisados a partir do corte ciência/ideologia, a definição dos discursos como práticas também não permite que sejam colocados E, com a genealogia, a práticas de

saber

explicitação

apenas como superestrutura.

das articulações entre práticas de poder e

rompe com o terceiro aspecto

problemático do conceito de

ideologia: a pressuposição de um sujeito que a instrumentalize. A problematização do sujeito perpassa as obras

de Foucault, como

visto anteriormente. Mas é preciso analisar agora o conceito de poder para entender de que modo se coloca o problema do sujeito a partir dessa matriz. Menos que uma definição, o conceito de poder em Foucault consiste

numa nova perspectiva de

análise das práticas sociais de submissão e de dominação. A idéia de que as relações de poder na sociedade não devem ser estudadas apenas a partir de um centro único localizado no Estado mas que devem ser vistas a partir de suas aplicações cotidianas, nas "capilaridades" do corpo social, é uma das ideias que mais teve ressonância no campo das Ciências Sociais. O poder é visto como relação social complexa, que provém de todos os lugares, de todos os pontos da sociedade, sem que haja um lugar privilegiado para seu exercício. Isso faz com que

a análise dos micropoderes

torne-se elemento indissociável das análises sobre a sociedade.

32

Assim , Foucault pensa o poder não como posse, mas sim como relação, que

se

estabelece

entre

diversos

pontos

da sociedade

e que se modifica

constantemente. O poder, portanto, não pode ser visto como superestrutural, já que as relações de poder são concebidas como imanentes às relações econômicas, sexuais, de conhecimento etc. O poder não é

considerado

como superestrutural

porque

funciona de maneira produtiva e não apenas de modo repressivo. Dispositivos de poder produzem campos de saber e de dominação32. Sobre

a

questão

do

sujeito, que é a que por último interessa, o

posicionamento de Foucault em relação ao poder rompe com a sua instrumentalização necessária por um sujeito. Pelo contrário, tempo,

o poder é considerado, ao mesmo

como intencional e não subjetivo. Em outras palavras, o poder se exerce a

partir de miras e objetivos, mas seu exercício não tem por fonte os sujeitos; ao contrário, são as próprias práticas de poder que constituem os sujeitos. Coloca-se, então, o conceito de sujeito em Foucault também como resultado de práticas históricas. Determinadas práticas de poder na sociedade moderna, como as práticas disciplinares,

permitem , por exemplo, a produção de

sujeitos politicamente submissos. Por outro lado, práticas éticas voltadas para a relação do indivíduo

consigo mesmo permitem a construção de formas de subjetividade

bastante diversas daquelas resultantes das práticas disciplinares do mundo moderno. Mesmo as práticas constitutivas dos sujeitos são problematizáveis, o que faz com que o sujeito não possa ser visto apenas como um dado que transcende a história33. Recusando-se, portanto, a pensar as práticas de saber e de poder no interior da sociedade em termos de um paradigma que tenha como conceito-chave a Ideologia

(tomada

como

falsa consciência, como superestrutural

e como

instrumentalizada por sujeitos que lhe pré-existiriam) Foucault acaba criando toda uma nova matriz de análise das relações entre sociedade, conhecimento e poder. 32

A noção de poder não permanecerá inalterada ao longo do percurso intelectual de Foucault. Como apontam diversos comentadores (Ortega, 1999), a concepção ligada à luta e ao confronto, inspirada em Nietzsche e empregada sobretudo em Vigiar e Punir, será deslocada em favor da ideia de governo das condutas, que emerge nos curso do Collège de France a partir de 1976. Tal deslocamento será aqui melhor aprofundado posteriormente, na discussão sobre a noção de governamentalidade. 33 Como afirma Ortega (1999), para além das flutuações conceituais e da complexidade das questões tratadas, o esforço contínuo de Foucault foi em direção de recusar uma visão essencialista do sujeito em favor de um sujeito constituído historicamente, quer de forma heterônoma por meio de mecanismos massivos de poder, como os disciplinares e ligados ao biopoder na modernidade, quer com certa autonomia, por meio de práticas de si, tal como ocorria na Antiguidade. Como afirma ainda o mesmo comentador, sobretudo com a publicação dos dois últimos volumes de História da Sexualidade, a dupla ontologia saber-poder, exaustivamente enfatizada nos trabalhos genealógicos, transforma-se em uma tripla, ao envolver saber-poder-sujeito (Ortega, 1999).

33

Conceitos como os de saber, discurso, sujeito etc., que foram brevemente descritos aqui, tornam

possíveis novas problematizações de antigas questões das Ciências

Sociais. Ou seja, em seu percurso, Foucault não irá buscar nas formas de pensamento o que nelas existe de verdadeiro ou de falso, mas sim buscará descrevê-las como práticas regradas, em torno das quais produzem-se não apenas efeitos de saber, mas também efeitos de poder; efeitos estes que, por sua vez, não são reflexos nem de estruturas mais profundas da realidade – por exemplo, a estrutura econômica –, nem simples instrumentos produzidos por um sujeito pré-existente que lhes dá sentido, mas sim, práticas complexamente articuladas na realidade social que objetivam simultaneamente formas de saber, de poder e de subjetivação. Como afirma Lemke (2000), tal abordagem peculiar dos fenômenos sociais estará presente, por exemplo, na forma como Foucault trabalhará a questão do Neoliberalismo nos curso do Collège de France não como “Ideologia”, para retomar a discussão apresentada anteriormente, mas como um conjunto historicamente formado de práticas discursivas e não-discursivas com efeitos precisos no mundo social. Se para sociólogos como Anthony Giddens, Pierre Bourdieu e mesmo da tradição marxista, o neoliberalismo é tratado como um conhecimento falso e manipulativo acerca da sociedade e da economia, Foucault, por meio do conceito de “governamentalidade”, busca analisá-lo como um conjunto efetivo de formas de conhecimento, de estratégias de poder e de tecnologias de subjetivação. Novamente, a questão em relação ao neoliberalismo não seria apenas decidir o que nele é verdadeiro ou falso mas como ele articularia formas de saber, de poder e de subjetividade com efeitos precisos. Ou seja, o problema se desloca da questão se a racionalidade do neoliberalismo é adequada ou não como descrição da sociedade para a questão do como esse funciona, ao produzir novas formas de conhecimento, ao inventar novos conceitos que contribuem para construir novos domínios de regulação e de intervenção. O problema não seria, ainda em relação ao Neoliberalismo, a “colonização” da política pela economia ou o fim da primeira mas sim como o Neoliberalismo levaria à transformações na política, resultados da emergência de novas formas de governo e de novos atores na cena pública. Por fim, o Neoliberalismo não destruiria apenas as formas de identidade tradicional mas produziria modelos de subjetivação ligados às novas tecnologias governamentais. Em suma, a análise de Foucault constroi o Neoliberalismo não apenas como uma retórica ideológica, como uma realidade política-econômica ou uma espécie de anti-humanismo

34

mas acima de tudo como um projeto político que empreende criar uma realidade social que sugere como já existente (Lemke, 2000). Outros exemplos, aqui já ilustrados, poderiam ser retomados para caracterizar o modo de abordagem que Foucault empreende em relação a diferentes fenômenos sociais, tal como a loucura e a doença mental, a clínica moderna, o nascimento das Ciências Humanas, as transformações no âmbito do crime e da punição, da sexualidade, entre outras questões. Desse modo, ao dialogarem com os trabalhos de Foucault, disciplinas como a Filosofia, a História ou a Sociologia serão obrigadas a repensar os fios que ligam, de modo supostamente evidente e indissociável, os seres humanos e suas práticas de conhecimento, de dominação e de subjetivação.

Foucault e a Sociologia no Brasil

As dificuldades de recepção das ideias de Foucault no âmbito da Sociologia não devem ser tomadas apenas a partir da perspectiva dos erros e acertos na compreensão de conceitos e análises mas indicam, em realidade, interessantes direções de reflexão e de pesquisa. Novamente Bourdieu (1996), ainda discutindo o percurso intelectual de Foucault, afirma que para compreender-se uma “obra” e sua recepção, seria preciso compreender tanto o campo onde ela foi produzida, quanto aqueles onde ela será recebida; no caso de Foucault, seria necessário restituir tanto o campo de produção acadêmica na França34 de sua época quanto suas ressonâncias em campos e em contextos nacionais diversos. Tal tarefa ganha enorme complexidade, até pelos inúmeros trabalhos que já a exploraram, mas algumas reflexões, mesmo que fragmentadas, podem ser esboçadas a respeito. Uma primeira dificuldade que se apresenta no questionamento acerca do lugar de Michel Foucault na Sociologia é que ele não produziu seu trabalhos originalmente no campo da disciplina nem a ela se dirigiu de forma sistemática35. Pelo

34

Para a reconstituição do percurso intelectual de Foucault no campo acadêmico francês de sua época, conferir Eribon (1990, 1996), Pestaña (2006) e Veyne (2008). Sobre a recepção de Foucault nos Estados Unidos, consultar Cusset (2005). 35 Pestaña (2010) defende que Foucault desconsiderava as Ciências Humanas, ao tomá-las como um discurso fútil e estéril, daí seu desprezo também pela Sociologia. Entretanto, a relação de Foucault com a Sociologia e as demais Ciências Humanas não pode ser equacionada de forma tão simples e, sem dúvida, há muito que explorar a respeito, a despeito de trabalhos como o de Bert (2006a) e outros. Aprofundar a compreensão dos espaços rivais da Filosofia e da Sociologia no campo intelectual francês, ao longo da formação e da atuação de Foucault seria um caminho interessante, esboçado por Pestaña (2006) mas não suficientemente desenvolvido mesmo por esse autor.

35

contrário, em diversos momentos Foucault manifestou mesmo alguns deficits em relação à apropriação dos autores da própria tradição sociológica, como no caso de Weber, lido de forma um tanto quanto inapropriada ainda nos anos setenta e só posteriormente visto como uma espécie de autor em paralelo com o próprio projeto de Foucault36, assim como os autores da assim chamada Escola de Frankfurt. Jean-François Bert, justamente discutindo a circulação das ideias de Foucault no campo da Sociologia francesa, afirma que as diferentes utilizações dos trabalhos do filósofo se situam nesse campo entre coexistência e ausência, tolerância e recusa, justaposição e incompatibilidade (Bert, 2006b). Se há uma recepção limitada e por vezes hostil dos estudos de Foucault por parte da Sociologia universitária – exemplificada por algumas figuras emblemáticas como Alain Touraine, Raymond Boudon, Michel Crozier, Pierre Bourdieu – uma Sociologia mais operatória irá empregá-lo com cada vez mais frequência, por exemplo, para uma crítica da autoridade e das instituições e também em lutas setoriais voltadas ao problema das prisões, dos serviços de saúde, das normas sexuais etc. Entretanto, alguns sociólogos acadêmicos franceses (Lahire, 2005, por exemplo) não deixarão de indicar que existe em Foucault uma espécie de “postura” sociológica, com seu pendor para a crítica das evidências e igualmente para a investigação empírica. Nesse sentido, como afirma novamente Bert, Foucault deixaria um importante legado para a Sociologia:

Penser autrement, explorer de nouveaux objets, donner à penser comment les choses ont été faites, contester les découpages disciplinaires classiques, l´évidence d´une pratique, d´une expérience ou d´un savoir, rejeter les certitudes anthropologiques, valoriser la parole des dominés, faire vaciller les repères et les certitudes sur lesquel´s s´appuient les dominations les plus quotidiennes, tous ces mode de pensée peuvent être considérés comme les principaux legs de Foucault aujourd´hui. (Bert, 2006, pp. 198-199) Existiriam, assim, múltiplas zonas de transação entre a démarche de Foucault e o campo da Sociologia ou mesmo com a obra de determinados sociólogos contemporâneos, como Bourdieu, que, apesar das frequentes objeções, não deixaria de 36

Bert (2006b) afirma que a leitura esquemática que Foucault faz da Sociologia de Weber em L´impossible prison se deve sobretudo ao desejo de Foucault de demarcar distância de uma tradição que, antes dele, já havia indicado a existência de um liame entre modernidade e disciplina. Mas, de fato, Foucault não conhecia muito bem a obra de Weber, como admite Veyne (2008, p.56). Em contrapartida, as proximidades efetivas entre a visão de Weber acerca da racionalização e da burocracia e a de Foucault acerca da disciplina e do panoptismo são manifestas e foram ressaltadas por inúmeros comentadores (O´Neill, 1986; Owen, 1994; Szakolczai, 1998; Ortega, 1999; Fonseca, 2009) mas também ambos compartilhavam inúmeras outras semelhanças, como o nominalismo, a influência de Nietzsche, o ceticismo, a visão acerca do papel do cientista em relação à política etc. (Veyne, 2008).

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ter projeto comparável em sua gênese e alcance, como nas palavras de um comentador do sociólogo francês: (...) tanto o método “histórico-filosófico” de Michel Foucault quanto a sociologia da cultura de Pierre Bourdieu podem ser concebidos como duas maneiras de praticar uma história social das “formas simbólicas”, tal como sugerida pelas ideais de Ernst Cassirer. As duas obras, que diferem, em suma, pelo peso relativo que em cada uma delas têm a filosofia e as ciências humanas, possuem no entanto em comum o fato de proporem uma radicalização das orientações do neokantismo. Num plano propriamente filosófico, opera-se nítida ruptura em relação a qualquer tentação fundacionista: as questões da filosofia se transferem ao plano da investigação positiva. E no próprio plano dessa investigação se propõe uma diversificação dos objetos de estudo que desarranja os limites do importante e do insignificante, do legitimo e do ilegítimo. Diversificação que, fonte de mal entendidos, é inerente à postura do sociólogo e que o filósofo Foucault teve de conquistar à custa de outras incompreensões ou de equívocos. (Pinto, 2000, p.31) Bernard Lahire afirma igualmente que Foucault é o filósofo francês que mais se aproximou da forma de trabalhar própria dos pesquisadores em Ciências Sociais – sociólogos, antropólogos, historiadores – ao tomar efetivamente por objeto o mundo social, quer as formas de exercício de poder, quer as imposições discursivas quer as formas de subjetividade (Lahire, 112). O autor aponta de forma polêmica que Foucault rompe com as maneiras de fazer da Filosofia e se esforça por pensar sobre os materiais, embora não detivesse o métier necessário nesse domínio. Isso faria o percurso de Foucault compreensível para os sociólogos críticos, que buscam romper com as evidências do senso-comum, embora inúmeras objeções pudessem ser feitas ao seu trabalho de investigação empírica. No Brasil, também foi enorme o impacto dos estudos de Foucault no âmbito das Ciências Sociais, em parte explicado pelas viagens que o filósofo fez ao país37, pelos contatos intelectuais a partir daí estabelecidos, bem como pelas inúmeras e precoces traduções de seus textos para o português. Igualmente nesse aspecto seria impossível recuperar o efeito mais amplo de Foucault na Sociologia no país mas alguns temas podem ser tomados como ilustrativos,

como a questão da assim chamada

“sociedade disciplinar”, na discussão local.

37

Sobre as viagens de Foucault ao Brasil, consultar Rodrigues (2012).

37

A “Sociedade Disciplinar” à brasileira

A partir do final dos anos 70, os estudos brasileiros inspirados em Foucault irão voltar-se para o problema da constituição da assim chamada “sociedade disciplinar” no país, justamente ao buscarem em parte preencher as lacunas deixadas pelas análises que até então utilizavam a noção de Ideologia. A idéia de que o Estado não é o centro do poder mas que as relações de poder estão disseminadas no interior da sociedade, será incorporada por uma série de estudos que irão se voltar para o papel desempenhado por saberes e instituições na produção e manutenção de determinadas formas de poder. Assim, por um lado, as ideias de Foucault estimularam reflexões inéditas acerca, por exemplo, do papel do saber médico na constituição da ordem social, bem como de instituições de produção e de controle de individualidades que serão tomados como desviantes – manicômios, prisões e instituições disciplinares em geral38. Por outro lado, críticas logo surgiram no sentido de apontar que a assim chamada sociedade disciplinar nunca se constituiu plenamente no Brasil. Ou seja, os esquemas analíticos de Foucault não poderiam ser simplesmente transpostos para a realidade brasileira. Em primeiro lugar, porque a oposição entre lei e norma, construída por Foucault – e também por outros autores como Robert Castel (1978) e Jacques Donzelot (1986) – tinha por base as experiências históricas da Europa Ocidental e dos Estados Unidos, em que as práticas disciplinares e os saberes normalizadores tiveram de se consolidar principalmente em oposição aos ideais de igualdade jurídica, que haviam se cristalizado a partir de intensas lutas políticas e sociais. Em contrapartida, como bem apontou Mariza Corrêa, no Brasil as práticas de normalização e disciplina não precisaram se constituir contra os poderes da lei, pois encontraram “um quadro jurídico cujos termos de definição eram equivalentes aos seus” (Corrêa, 1982, p. 48). A partir desta constatação, essa autora sugere que não haveria, no contexto brasileiro, uma efetiva heterogeneidade entre lei e norma enquanto modelos de exercício do poder. 38

Entre muitos exemplos possíveis, conferir: Metáforas da desordem: o contexto social da doença mental (Albuquerque, 1978); Ordem médica e norma familiar (Costa, 1979); O espelho do mundo – Juquery, a história de um asilo (Cunha, 1986); Meretrizes e doutores: saber médico e prostituição no Rio de Janeiro, 1840-1890 (Engel, 1989); As instituições médicas no Brasil: instituições e estratégia de hegemonia (Luz, 1979); Danação da norma, medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil (Machado, 1978); Política nacional do bem-estar do menor (Passetti, 1982); Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar, Brasil, 1890-1930 (Rago, 1985); A emergência do Código de Menores de 1927: uma análise do discurso jurídico e institucional da assistência e proteção aos menores (Alvarez, 1989);

38

Pode-se considerar, no entanto, que não há propriamente uma indiferenciação entre esses modelos mas sim uma complementaridade muito grande entre lei e norma no país, como admite a própria autora citada em outra passagem (Corrêa, 1982). Em segundo lugar, a violência mais direta, tanto no tratamento da questão criminal quanto em termos das estratégias mais amplas de sujeição das classes populares, parece ter se sobreposto amplamente às formas mais brandas de repressão e controle social ao longo do processo de modernização do país (cf. Correa, 1982, p. 260). Luciano Oliveira (2011) retoma de forma polêmica esse debate, ao discutir a recepção acrítica e o uso inadequado das discussões de Vigiar e Punir no Brasil, bem como a leitura excessivamente passiva de Foucault no país. Para o autor, o Brasil não seria uma sociedade disciplinar e as discussões sobre as disciplinas estariam aqui sendo empregadas de modo indevido. Tal crítica, como inúmeras outras levantadas contra os trabalhos de Foucault, perde força devido ao fato de que toma a expressão “sociedade disciplinar” como um modelo descritivo que, para Focault, poderia se aplicado a inúmeros outros contextos históricos e sociais. Pelo contrário, a emergência da sociedade disciplinar na modernidade européia seria, para Foucault, um caso singular que não seria reproduzível mecanicamente em outros contextos históricos e outras sociedades. A pergunta propriamente inspirada em Foucault seria questionar que formas de relação de poder emergem no Brasil, tendo em vista a recepção, também aqui, dos discursos e práticas produzidos nas sociedades disciplinares. Em grande medida, foi essa a pista seguida pelos inúmeros trabalhos que, a partir dos anos 80 do século XX, tentaram pensar a realidade brasileira a partir das análises de Foucault. Tanto Oliveira como outros críticos afirmam que haveriam dúvidas em relação à aplicação dos esquemas analíticos de Vigiar e Punir na nossa realidade mas a questão chave é que Foucault nunca pretendeu tal aplicação reducionista. Seria equivocado, no mesmo sentido, afirmar que a sociedade disciplinar foi apenas um discurso vazio no Brasil, ou apenas mais uma idéia “fora do lugar”, no sentido vulgar da expressão, pois o que parece ocorrer, nos diferentes contextos nacionais na modernidade, é uma combinação específica entre lei e norma, entre soberania e disciplina, entre violência e instrumentos mais “suaves” de manutenção da ordem política e social39. A natureza dessas composições no Brasil permanece como um

39

Para uma discussão mais aprofundada sobre estas questões, consultar Alvarez (1996).

39

problema ainda não totalmente elucidado pelas pesquisas no Brasil e que pode ser mais bem aprofundado a partir de um diálogo mais sistemático com as idéias de Foucault40.

Novas perspectivas de análise

Pelo que foi visto anteriormente – e tendo em vista também o crescimento da já vasta bibliografia relativa aos usos dos trabalhos de Foucault no âmbito das Ciências Sociais em âmbito internacional – pode-se afirmar que o diálogo mais sistemático com os trabalhos de Foucault permite ainda hoje enriquecer muitas das principais discussões teóricas e metodológicas desenvolvidas pela Sociologia contemporânea. Ao se estudar questões como as do papel político das diferentes formas de saber, das formas de conflito e violência na contemporaneidade, dos novos mecanismos de controle e de governo dos comportamentos, das formas de subjetivação nas sociedades modernas e contemporâneas, seus estudos permanecem sendo referência importante, fonte potencial para a elaboração de novos conceitos e novos procedimentos metodológicos. No Brasil, principalmente nos estudos voltados para a questão da violência e do funcionamento das instituições penais e de controle social, seus trabalhos continuam tendo grande influência. Curiosamente, as discussões acerca da Sociologia da punição nos Estados Unidos e na Europa têm apontado para um retorno da violência e do suplício, que ganham paulatinamente espaço em relação aos discursos e práticas disciplinares. A permanência da violência nas instituições penais e de controle social no Brasil ganha, desse modo, nova atualidade, já que, como foi mencionado anteriormente, no Brasil a violência não foi, no geral, deixada de lado em favor de formas mais sutis de manutenção da ordem social41. Para que esse diálogo possa avançar, por um lado, é necessária uma compreensão mais rigorosa do pensamento de Michel Foucault. Como afirma Veyne (2008), Foucault não era um pensador estruturalista, relativista ou historicista mas sem dúvida não admitia nenhum fundamento metafísico da experiência humana, ao buscar caracterizar conjunto específicos de experiências históricas irredutíveis, como os prazeres na antiguidade, a sexualidade moderna, o suplício no Antigo Regime, a prisão 40

Uma interessante análise das relações de poder no século XIX no Brasil inspirada em Foucault mas que não reproduz mecanicamente o “modelo” da sociedade disciplinar, é a de Koerner (2006). 41 Para um balanço, mesmo que já datado, da presença de Foucault nos debates contemporâneos acerca das práticas penais e da questão da segurança pública, consultar, respectivamente, Salla (2000) e Souza (2000).

40

disciplinar etc. As vasta bibliografia crítica em relação aos seus traabalhos precisa ser confrontada como a densidade de seu pensamento e não com vulgarizações apressadas e esquemáticas de suas ideias. No mesmo sentido, uma crítica à recepção de seus trabalhos no Brasil é igualmente fundamental, bem como uma avaliação do alcance de suas problematizações para a delimitação e compreensão da singularidade da sociedade brasileira.

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A Ordem do Discurso42

Há, sem dúvida, em nossa sociedade e, imagino, em todas as outras mas segundo um perfil e facetas diferentes, uma profunda logofobia, uma espécie de temor surdo desses acontecimentos, dessa massa de coisas ditas, do surgir de todos esses enunciados, de tudo que possa haver aí de violento, de descontínuo, de combativo, de desordem, também, e de perigoso, desse grande zumbido incessante e desordenado do discurso. Michel Foucault

A chegada ao Collège de France Em 1969, quando se candidata a uma vaga no Collège de France, Michel Foucault já é um intelectual amplamente conhecido na França. Alguns anos antes, seu livro Les Mots et les Choses (1966) tinha sido um enorme sucesso de vendas, não só entre o público restrito que acompanhava os debates da Filosofia e da Histórias das Idéias, mas também entre o público não especializado. Foucault havia passado assim para o centro dos debates acerca do estruturalismo, que dominavam a cena intelectual francesa da época (Dosse, 1993). Os acontecimentos de 1968 deram oportunidade para que Foucault apresentasse também uma face mais engajada politicamente. Embora não estivesse na França quando eram erguidas as barricadas no Quartier Latin, posteriormente Foucault será nomeado para a direção do departamento de Filosofia na nova universidade de Vincennes, criada como resposta às reivindicações por maior autonomia universitária colocadas pelos estudantes franceses.

Aberta a nova

universidade, o que mais nela se vê são assembléias, manifestações, choques com a polícia, conflitos entre facções políticas etc. Desse ambiente conturbado, emerge um novo Foucault:

Na verdade é um Foucault muito diferente que nasce nesse momento crucial. Vai longe o acadêmico que participava das comissões ministeriais ou 42

ALVAREZ, M. C. (1999) Michel Foucault e a Ordem do Discurso. In: Catani, A., Martinez, P.H. (organizadores). Sete ensaios sobre o Collège de France. São Paulo : Cortez, pp.71-88.

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examinava os candidatos à ENA. Aquele homem desaparece pouco a pouco, se deixa esquecer, e do alambique de Vincennes emerge o filósofo engajado, que interfere em todas as frentes, nas da ação e nas da reflexão. A partir de 1969 Foucault começa a encarnar a própria figura do intelectual militante. (...) (Eribon, 1990, p. 195) Apesar desse destaque público que adquire já a partir de Vincennes, Foucault não hesita em se candidatar ao Collège de France, quando a morte de seu amigo Jean Hyppolite abre uma nova vaga nessa prestigiosa instituição. Foucault provavelmente percebe que, ao ocupar uma cátedra no Collège, sua posição intelectual e política sairia ainda mais fortalecida. Após conseguir os apoios necessários e cumprir os procedimentos burocráticos exigidos, Foucault é finalmente eleito. L’Ordre du Discours é a aula inaugural que aí apresenta, em 2 de dezembro de 197043.

Ordem e Desordem do Discurso

Diz-se que nos anos 50 Foucault brincava com seus colegas, ao afirmar que um dia teria uma cátedra de loucura no Collège de France (cf. Eribon, 1996). Realizada décadas depois a trajetória jocosamente prometida, a cátedra ocupada por ele terá entretanto um título bem menos polêmico: Histoire des Systèmes de Pénsee. O texto apresentado igualmente não deixará de seguir as tradicionais regras do gênero, inclusive com os agradecimentos de praxe – dirigidos a Dumézil e Canguilhem – e com uma homenagem emocionada a Hyppolite. Mas as ideias aí propostas não deixarão nada a desejar, em termos de polêmica, à brincadeira provocativa colocada por Foucault nos anos de juventude. Na OD44, Foucault dirige uma dura crítica aos métodos tradicionais da Filosofia e da História das Idéias. O pensamento filosófico – ao propor uma verdade ideal como lei do discurso e uma racionalidade imanente como princípio de seu desenvolvimento – e a História das Idéias – que procura sempre o ponto de criação, a unidade de uma obra, de uma época ou de um tema, a marca da originalidade individual e o tesouro indefinido das significações ocultas – contribuem para anular

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Foucault permanecerá no Collège até sua morte, em junho de 1984. Seu curso será interrompido apenas nos anos de 1976 -1977, 1982-1983 e 1983-1984 (cf. Foucault, 1997). 44 Utilizaremos nas citações as traduções existentes no Brasil da Ordem do Discurso e dos demais textos de Foucault aqui trabalhados.

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a realidade do discurso, para escamotear os jogos de limitações e de exclusões que perpassam as próprias práticas discursivas (Foucault, 1996). Foucault enfatiza, em contrapartida a esse pensamento filosófico e a essa história das idéias, que a produção do discurso em nossa sociedade é indissociável de uma série de procedimentos de controle, de seleção, de organização e de redistribuição dos enunciados e dos sujeitos, procedimentos estes voltados para afastar os poderes e os

perigos do discurso, para dominar seu aparecimento

aleatório, para esquivar sua própria materialidade (Foucault, 1996, p.9). A análise proposta por Foucault busca recuperar justamente a inquietação escamoteada por esses procedimentos:

(...) inquietação diante do que é o discurso em sua realidade material de coisa pronunciada ou escrita; inquietação diante dessa existência transitória, destinada a se apagar sem dúvida, mas segundo uma duração que não nos pertence; inquietação de sentir sob essa atividade, todavia cotidiana e cinzenta, poderes e perigos que mal se imagina; inquietação de supor lutas, vitórias, ferimentos, dominações, servidões através de tantas palavras cujo uso há muito tempo reduziu as asperidades. (Foucault, 1996, p.8) O discurso não remete assim exclusivamente à ordem das leis mas sobretudo ao campo das lutas. Ao longo do texto, Foucault procura caracterizar quais seriam os procedimentos que criam esse jogo de interdições, de supressões, de fronteiras e de limites que constituem e que tentam ordenar a produção discursiva em nossa sociedade, buscando em seguida indicar a abordagem necessária para estudá-los. Em primeiro lugar, Foucault busca caracterizar os procedimentos de exclusão, que se exercem do exterior. O mais evidente é a interdição: “(...) Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa” (Foucault, 1996, p.9). Séries de interdições impedem que o discurso seja pronunciado aleatoriamente e, em nossa sociedade, é nas regiões da sexualidade e da política que esse jogo de interdições se manifesta de forma privilegiada, ao mostrar que o discurso não é algo externo ao desejo e ao poder, mas é simultaneamente objeto do desejo e do poder. Para caracterizar o segundo princípio de exclusão, Foucault utiliza o exemplo da loucura, que já havia estudado de modo exaustivo alguns anos antes em Folie et Déraison (1961). Neste livro, ele havia mostrado como a emergência da doença

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mental como objeto de conhecimento no século XIX só teria sido possível a partir de um silenciamento da própria experiência da loucura. Na OD, Foucault retoma esse silenciamento da loucura como exemplo deste outro princípio mais geral de exclusão em nossa sociedade, que implica sobretudo numa separação e numa rejeição. O discurso do louco é aquele que não pode circular como os demais, discurso condenado a não ter uma existência no campo da razão. Foucault arrisca-se ainda a colocar a oposição do verdadeiro e do falso como um terceiro sistema de exclusão, sistema esse também histórico e, ao menos em certa medida, também arbitrário como os demais. Embora em nossa sociedade a vontade de verdade não seja vista como algo constrangedor, Foucault afirma que também aí podemos perceber um sistema de exclusão, baseado em todo um suporte institucional que aplica, que valoriza e que distribui o discurso verdadeiro no interior da sociedade. E essa vontade de verdade ainda exerce um poder de coerção em relação aos demais discursos. A literatura, as práticas econômicas, a lei, etc., passam a buscar apoio e legitimidade no discurso verdadeiro, como se apenas este pudesse fundamentar e justificar qualquer prática em nossa sociedade. Mesmo os mecanismos de exclusão anteriormente descritos – a palavra interditada (proibida) e a segregação da loucura – movem-se já há séculos em direção à vontade de verdade, que por sua vez busca modificá-los e fundamentá-los segundo suas regras. Paradoxalmente, esse é o mecanismo de exclusão menos discutido em nossa sociedade, merecendo por isso mesmo uma atenção crítica mais detida. Em seguida, Foucault expõe os procedimentos internos ao discurso, procedimentos que funcionam como princípios de classificação, de ordenação e de distribuição, voltados para controlar o caráter de acontecimento do discurso. O primeiro desses princípios seria o comentário, que implica numa hierarquização dos discursos, num desnivelamento entre, de um lado, discursos fundamentais ou criadores e, de outro, a massa de discursos que repetem e comentam aquelas narrativas maiores. Esta hierarquização permite, por um lado, construir indefinidamente novos discursos. Mas, por outro lado, tudo o que pode ser dito apenas consegue manifestar-se a partir da repetição incansável do já-dito, conjurando-se também deste modo o acaso do discurso. Outro princípio seria o autor, tomado não como indivíduo falante que pronuncia ou escreve um texto, mas como “princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência”

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(Foucault, 1996, p.26). Enquanto o comentário limitava o acaso do discurso a partir de uma identidade obtida através da repetição indefinida do já-dito, o autor limita igualmente o acaso do discurso a partir de uma suposta identidade do eu que fundamenta, por sua vez, a unidade de uma obra. As disciplinas constituem o terceiro princípio de controle e de delimitação da produção do discurso, que se opõe aos dois anteriores:

A organização das disciplinas se opõe tanto ao princípio do comentário como ao do autor. Ao do autor, visto que uma disciplina se define por um domínio de objetos, um conjunto de métodos, um corpus de proposições consideradas verdadeiras, um jogo de regras e de definições, de técnicas e de instrumentos: tudo isto constitui uma espécie de sistema anônimo à disposição de quem quer ou pode servir-se dele, sem que seu sentido ou sua validade estejam ligados a quem sucedeu ser seu inventor. Mas o princípio da disciplina se opõe também ao comentário: em uma disciplina, diferentemente do comentário, o que é suposto no ponto de partida, não é um sentido que precisa ser redescoberto, nem uma identidade que deve ser repetida; é aquilo que é requerido para a construção dos novos enunciados. Para que haja disciplina é preciso, pois, que haja possibilidade de formular, e de formular indefinidamente, proposições novas. (Foucault, 1996, p. 30) Assim, embora o comentário, o autor e as disciplinas sejam quase sempre vistos apenas como formas que permitem a criação de novos discursos, Foucault alerta que se constituem também em mecanismos de coerção e que provavelmente o papel positivo e multiplicador desses princípios é indissociável de suas funções restritivas e coercitivas. Finalmente, Foucault se dirige aos procedimentos que selecionam os indivíduos que podem entrar na ordem do discurso. O ritual – que determina propriedades singulares e papéis pré-estabelecidos aos sujeitos que falam –; as sociedade de discurso – cuja função é conservar ou produzir discursos para fazê-los circular em um espaço fechado (Foucault, 1996, p.39) –; a doutrina – que liga os indivíduos a certos tipos de enunciação e lhes proíbe todos os outros –; e a apropriação social dos discursos – que garante formas diferenciadas de acesso aos discursos na sociedade – são os grandes procedimentos que “garantem a distribuição dos sujeitos que falam nos diferentes tipos de discurso e a apropriação dos discursos por certas categorias de sujeitos” (Foucault, 1996, p.44). Para Foucault, todo esse conjunto de mecanismos internos e externos de interdições, de supressões, de fronteiras e de limites, próprios de nossa sociedade e

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exaustivamente descritos na Ordem do Discurso, buscam esquivar o temor da proliferação potencial e infinita dos discursos. A proposta de Foucault não se dirige, no entanto, para uma tentativa de apagar esse temor, restituindo aos discursos algo como sua desordem original, mas busca em contrapartida analisar esse jogo complexo entre a ordem e a desordem do discurso. Para isso, é preciso tomar uma série de decisões metodológicas que desloquem as figuras tradicionais do pensamento que encobrem esse jogo. A primeira consiste num princípio de inversão, que permite deslocar as figuras positivas presentes na análise tradicional – o autor, a disciplina, a vontade de verdade – em direção ao jogo negativo que remete ao recorte e à rarefação dos discursos. Mas, ao deslocar essas instâncias tidas como fundamentais e criadoras, não se deve buscar por trás delas uma realidade mais fundamental do discurso. Aqui entra outro princípio metodológico, o da descontinuidade, que busca tratar os discursos “como práticas descontínuas, que se cruzam por vezes, mas também se ignoram ou se excluem” (Foucault, 1996, p.52-53). Tomar os discursos como práticas implica também que se adote um princípio de especificidade, já que o discurso não deve ser pensado como algo que simplesmente traduz a realidade das coisas, mas como “uma violência que fazemos às coisas, como uma prática que lhes impomos em todo o caso” (Foucault, 1996, p.53). Se os discursos devem ser vistos como práticas, não se deve igualmente procurar neles algo como um núcleo interior e escondido, ou um pensamento ou uma significação que nele se manifestariam, mas sim deve-se buscar a partir dos próprios discursos suas condições externas de possibilidade. Este é o quarto princípio metodológico, o da exterioridade. Foucault fala ainda das noções que devem servir como princípios reguladores das análise: a noção de acontecimento, que se opõe à noção de criação; a noção de série que se opõe à de unidade; a noção de regularidade, que se opõe à de originalidade; e finalmente a de condição de possibilidade, que se opõe à de significação. Com a utilização dessas noções, busca-se romper com a história tradicional das idéias, que sempre procura “o ponto da criação, a unidade de uma obra, de uma época ou de um tema, a marca da originalidade individual e o tesouro indefinido das significações ocultas” (Foucault, 1996, p.54). Foucault indica ainda os muitos campos que pretende explorar, nos anos seguintes, com esse instrumental

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de análise: os da história da Filosofia, da Ciência Moderna, das práticas penais, da Medicina etc. Assim, neste texto denso e rigoroso, de cerca de oitenta páginas, Foucault lança uma infinidade de hipóteses de trabalho, que serão posteriormente reapropriadas por diversas disciplinas, desde a Filosofia e a História das Idéias até a Análise do Discurso e a Sociologia. O próprio estilo da escrita apresentado por Foucault na aula, com suas intermináveis enumerações, parece fazer o texto desdobrar-se em direções inesperadas, como num desenho de Escher ou numa classificação delirante de Borges. Em seu próprio trabalho, nos anos posteriores, Foucault seguirá algumas pistas aí colocadas, ao passo que deixará outras caírem no esquecimento.

Discurso e Poder A multiplicidade de questões, pertinentes a diferentes campos de conhecimento, levantada na OD, não foge à regra do estilo de Foucault. Tanto é assim que as categorias de filósofo ou de historiador, geralmente atribuídas a ele, são, ao mesmo tempo, bastante imprecisas e por demais limitadas para caracterizar sua trajetória. Ao percorrer, com suas análises, campos de conhecimento diversos, Foucault costuma romper com as divisões disciplinares tradicionais, o que faz com que ainda hoje seus trabalhos tenham ressonância em muitas regiões do conhecimento, sobretudo nas ciências humanas, mas também em regiões vizinhas como as da psiquiatria e da medicina em geral. Geralmente os escritos de Foucault, como já mencionado, são divididos em três domínios distintos de análise, a cada um dos quais se associa um determinado tipo de abordagem (Davidson, 1988). O primeiro domínio seria o dos sistemas de conhecimento, abordado a partir de uma arqueologia do saber. O segundo domínio seria aquele das modalidades de poder, estudado a partir de uma genealogia do poder. E o terceiro domínio seria o das relações do sujeito consigo mesmo, analisado a partir de uma ética. Assim, a OD é vista geralmente como uma proposta de análise híbrida, entre a arqueologia e a genealogia (Dosse, 1994, p.282). Deve-se ter mais cautela, no entanto, com esse tipo de periodização, sobretudo tratando-se de um autor como Foucault. Tanto os domínios explorados quanto as abordagens construídas sucedem-se em sua trajetória de modo complexo, com frequentes sobreposições metodológicas e retornos a períodos históricos de análise. Por exemplo, considerando-se que, na arqueologia, Foucault enfoca sobretudo o modo como

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ocorrem as transformações discursivas, ao passo que, na genealogia, estuda o porquê dessas transformações, seria entretanto equivocado afirmar que em sua “fase genealógica” Foucault buscará no poder simplesmente o “fundamento” das transformações discursivas que estudara até então. Pelo contrário, o que se busca na análise genealógica é sobretudo ampliar o tipo de análise até então feita, associando-se mais diretamente as relações de poder e as práticas discursivas (Davidson, p.249). Do mesmo modo, ao se abordar a OD apenas como um exemplo dessa passagem ou transição da arqueologia para a genealogia, pode-se estar dando ênfase exagerada na continuidade de um trabalho que sempre pretendeu se afirmar como provisória. Como vimos, o próprio Foucault na OD lança suspeitas sobre as abordagens que procuram estabelecer apenas a continuidade de uma obra, ao evitar em contrapartida os aspectos descontínuos presentes no discurso. Talvez seja mais interessante ver nesse caráter híbrido da OD um momento de tensão entre as assim chamadas abordagens arqueológica e genealógica. A presença desta tensão no texto revelará tanto uma tentativa de ultrapassar a questão da relação entre domínios discursivos e não-discursivos, que estava presente no texto anterior, L’Archéologie du Savoir (1969), quanto um tratamento ambíguo com relação aos papéis constitutivo e repressivo das práticas de poder, que Foucault buscará equacionar de outro modo no livro que sucede a OD, Surveiller et Punir (1975). Examine-se primeiro a relação entre o discursivo e o não-discursivo. Na AS Foucault busca estabelecer relações entre as formações discursivas e os domínios nãodiscursivos, como as instituições, os acontecimentos políticos, as práticas e os processos econômicos (Foucault, 1986). Estas relações não são nem de reflexo – o discursivo refletindo transformações institucionais, por exemplo – nem de causalidade – o discursivo sendo determinado por mudanças políticas ou processos econômicos – , mas devem ser equacionadas em termos de condições de emergência, de condições de inserção e funcionamento dos discursos (Foucault, 1986). Ao tomar o discurso médico como ilustração, Foucault afirma:

Não se trata, portanto, de mostrar como a prática política de uma dada sociedade constituiu ou modificou os conceitos médicos e a estrutura teórica da patologia, mas como o discurso médico, como prática que se dirige a um certo campo de objetos, que se encontra nas mãos de um certo número de indivíduos estatutariamente designados, que tem, enfim, que exercer certas funções na sociedade, se articula em práticas que lhe são exteriores e que não são de natureza discursiva. (Foucault, 1986, p.188)

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Na OD, por sua vez, essa contraposição entre o discursivo e o não-discursivo perde importância, já que as próprias práticas discursivas aparecem como transpassadas por uma série de procedimentos de controle, de delimitação e de distribuição dos discursos que são imediatamente sociais e políticos ou, para expressar-se de modo simplificado, de natureza não-discursiva. Mesmo aquilo que pareceria aos olhos da cultura ocidental como o menos arbitrário dos procedimentos de organização dos discursos, a vontade de verdade, supostamente inscrita apenas na dinâmica “interna” dos discursos, revela-se a partir da análise proposta como um sistema historicamente constituído, que envolve diretamente um conjunto de instituições sociais e políticas:

(...) essa vontade de verdade, como os outros sistemas de exclusão, apoia-se sobre um suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por todo um compacto conjunto de práticas como a pedagogia, é claro, como o sistema de livros, da edição, das bibliotecas, como as sociedade de sábios outrora, os laboratórios hoje. Mas ela é também reconduzida, mais profundamente sem dúvida, pelo modo como o saber é aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído. Recordemos aqui, apenas a título simbólico, o velho princípio grego: que a aritmética pode bem ser o assunto das cidades democráticas, pois ela ensina as relações de igualdade, mas somente a geometria deve ser ensinada nas oligarquias, pois demonstra as proporções da desigualdade. (Foucault, 1996, p.18) Pode-se dizer, de modo novamente bastante simplificado, que as práticas de poder aparecem assim como imediatamente constitutivas das práticas discursivas, por isso já não faz mais sentido na OD a tematização da relação entre o discursivo e o nãodiscursivo. No texto seguinte, Surveiller e Punir (1975), Foucault estreitará ainda mais essa relação entre discurso e poder. A crítica vulgar às análises de Foucault considera que, ao associar imediatamente discurso e poder, ele estaria também desvalorizando qualquer discurso com pretensões de verdade. Tal consideração toma como pressuposto que Foucault pretenderia situar-se num ponto externo às relações entre poder e discurso, o que não faz sentido, pois Foucault, tal como desenvolve suas idéias na OD, já indica claramente que esse posicionamento é impossível. Não se deve buscar compreender toda a maquinaria de produção do discurso para, destruindo-a, encontrar um discurso mais original ou fundamental, mas, compreendendo essa maquinaria, talvez fazê-la funcionar em outra direção.

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Entretanto, mesmo que Foucault indique neste texto que não há exterioridade possível em relação ao poder, há uma certa ambiguidade que perpassa a análise pois, ainda que as relações de poder apareçam como constitutivas dos enunciados, permanece a idéia de uma desordem própria dos discursos, uma instabilidade permanente, uma aleatoriedade que viria a ser controlada e limitada por formas de coerção e exclusão, exteriores ao domínio discursivo. Nos termos que o próprio Foucault utilizará posteriormente, ao fazer uma espécie de autocrítica de parte de seus trabalhos, pode-se dizer que ainda está presente na OD uma concepção por demais repressiva do poder, pois este é visto como tendo sobretudo um papel constrangedor em relação à profusão indefinida dos discursos. Em outros trabalhos, Foucault privilegiará mais o caráter constitutivo do poder, como nessa passagem bastante conhecida de SP, em que é discutida a relação poder-saber:

Seria talvez preciso também renunciar a toda uma tradição que deixa imaginar que só pode haver saber onde as relações de poder estão suspensas e que o saber só pode desenvolver-se fora de suas injunções, suas exigências e seus interesses. (...) Temos antes que admitir que o poder produz saber (e não simplesmente favorecendo-o porque o serve ou aplicando-o porque é útil); que poder e saber estão diretamente implicados; que não há relações de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder. (...) (Foucault, 1977, p. 29-30)

De qualquer modo, como já foi dito, na OD Foucault não manifesta ilusão quanto à possibilidade de, levantando os interditos do poder, encontrar o discurso em sua pureza original. São as relações de discurso e de poder que constituem a ordem e a desordem do discurso e que devem ser analisadas.

Considerações Finais

Pelo que foi visto aqui, a pista mais interessante colocada por Foucault no texto é aquela que, ao evitar a ideia da exterioridade do poder, não busca um discurso fundamental e originário mas tenta mostrar como as regras de produção dos discursos são imediatamente formas de poder. Pode-se também dizer que em sua trajetória intelectual Foucault não agirá em relação ao poder como algo externo, que deveria ser atingido de fora. Como foi dito no início, Foucault não hesitará em penetrar numa instituição consagrada como o

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Collège de France, submetendo-se a todo o ritual institucional, para com isso fortalecer sua autonomia intelectual. Contudo, Foucault provavelmente não gostaria que sua trajetória intelectual fosse utilizada como chave para compreensão de seus trabalhos, nem que seus textos fossem comentados ou que se buscasse separar o que neles existe de verdadeiro ou de falso. Isso seria colocar em ação os princípios de ordenação do discurso que, como foi visto, se não podem ser totalmente abolidos, pelos menos poderiam ter seu funcionamento redirecionado. Talvez ele preferisse que seus textos fossem tomados como um conjunto de instrumentos de trabalho, a ser utilizado em novos domínios de pesquisa, como já mencionado anteriormente. É como tal que a OD pode ser lida e, sem dúvida, ainda encontraremos nesse texto inúmeros caminhos para futuras pesquisas.

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Punição, poder e resistências: a experiência do Groupe d´Information sur les Prisons e a análise crítica da prisão45

Punir est la chose la plus difficile qui soit. Il est bon qu´une société comme la nôtre s´interroge sur tous les aspects de la punition telle qu´elle se pratique partout: à l´armée, à l´école, dans l´usine (…) Michel Foucault

Reflexão e engajamento

Quando da morte de Michel Foucault, em 1984, mesmo Jürguen Habermas, que por diversas vezes havia manifestado suas críticas em relação às principais posturas intelectuais de seu colega francês, não deixou de homenagear o filósofo de sua geração que teria atingido mais profundamente, com seus estudos polêmicos, o próprio coração da atualidade (Habermas, 1986). Passados mais de vinte anos de sua morte, o pensamento de Foucault permanece um poderoso aguilhão, capaz, por um lado, de problematizar questões ainda prementes no mundo contemporâneo mas que, por outro lado, com frequência desconcerta aqueles que buscam uma instrumentalização fácil de suas pesquisas ou que buscam discutir suas principais contribuições no interior de um campo especializado de conhecimento. Seu pensamento parece refratário aos hábitos intelectuais arraigados, às investidas recorrentes dos comentadores, à assimilação acadêmica tradicional. Como já mencionado aqui, mesmo a análise de seu percurso intelectual não é uma tarefa simples. Difícil caracterizá-lo apenas como filósofo ou historiador, já que seus trabalhos, ao percorrerem campos diversos, terminaram por influenciar pesquisas nas mais diferentes áreas de conhecimento. À organização tradicional de seus escritos, por sua vez, que divide cronologicamente sua trajetória de pensamento em três momentos principais – a Arqueologia do Saber, a Genealogia do Poder e a Genealogia da Ética – podem ser justapostas outras caracterizações possíveis. Salma Tannus 45

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Muchail (2002), por exemplo, ao discutir outros critérios de organização dos escritos de Foucault, reapresenta o fio condutor que percorre a trajetória do seu pensamento da seguinte forma:

(...) Digamos que se trata da relação entre sujeito e verdade, ou mesmo do sujeito com sua verdade; que estas relações são tomadas no jogo entre o estabelecido e o mutável, vale dizer, entre o Mesmo e o Outro; e (...) que neste jogo, as relações são visíveis e dizíveis de modos diversos, isto é, que olhares e dizeres – analogamente aos pólos do idêntico e do estranho – são sedimentados ou mobilizadores, dependentemente daquilo que nós, historicamente, somos capazes de ver e dizer. (Muchail, 2002, p.302; destaques no original) Do mesmo modo, ao problematizar a própria figura do autor como princípio por excelência de organização dos discursos historicamente produzidos e ao defender, como já indicado, a apropriação instrumental das idéias dos autores que considerava importantes, Foucault parecia desejar que seus textos fossem tomados não como repertórios de noções e conceitos dirigidos apenas a acadêmicos e especialistas mas sobretudo como convites para que indivíduos e grupos diversos pudessem estabelecer novas experiências históricas para além das relações de poder, de saber e de subjetivação hegemônicas na sociedade moderna. Sem dúvida, Foucault foi frequentemente mal interpretado e muitos contemporâneos não viram coerência nenhuma entre sua trajetória intelectual e o papel de intervenção política que assumiu sobretudo a partir dos anos 1970. Análises mais recentes, no entanto, têm apontado para o modo como se articulavam suas intervenções na cena política e social e seus trabalhos de pesquisa. Como afirma Francesco Paolo Adorno, a publicação conjunto dos textos dispersos de Foucault, recolhidos em Dits et écrits, tem contribuído significativamente para uma melhor compreensão do contexto de suas intervenções na cena política e intelectual de seu tempo (cf. Adorno, 2004). Igualmente, a recente publicação dos arquivos do Groupe d´Information sur les Prisons (GIP), criado em 1971 e auto-dissolvido em dezembro de 1972 e no qual Foucault teve destacada participação, vai na mesma direção (Artières et al., 2003). Não se trata, no entanto, ao se cotejar seus trabalhos de pesquisa, seus textos dispersos e aspectos das lutas políticas e sociais que então se desenrolavam na França, de buscar algum tipo de articulação perfeita entre teoria e prática ou de encontrar a chave de interpretação de seus textos heterogêneos na unidade de uma trajetória biográfica ou de uma situação social mas sim de acompanhar, em determinados

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momentos precisos, como Foucault buscou alternar experiências de pensamento e experiências de militância, embora o tipo de militância por ele perseguida apontasse para sentidos novos e inesperados. Geralmente, dois momentos são considerados privilegiados para a compreensão dessa complexa alternância que Foucault buscou por vezes desenvolver, sobretudo nos anos 70 do século XX, entre sua reflexão histórico-filosófica e seu engajamento em questões da atualidade. Estes dois momentos são a criação do já citado GIP, em 1971, e as “reportagens” que realizou, em 1978, a convite do redator-chefe do jornal italiano Il Corriere della Será e que tratavam da sublevação popular no Irã. Para a presente discussão, sua atuação junto ao GIP, no entanto, ganha maior destaque pois foi seguida da publicação, em 1975, de Vigiar e Punir, livro no qual Foucault desenvolve uma análise aprofundada da história da prisão moderna e do poder disciplinar que nela se manifesta de modo exemplar. Na verdade, nesses dois momentos desenvolve-se mais claramente alguns aspectos daquela alternância ou revezamento46, desejado por Foucault, entre reflexão e engajamento, já que sua participação no GIP ocorreu, em princípio, como uma espécie de prolongamento das reflexões históricas que já havia realizado sobre o aprisionamento psiquiátrico, sendo posteriormente a condição de possibilidade da reflexão realizada em Vigiar e Punir. A idéia a ser aqui desenvolvida é a de que na interface desses dois momentos de sua trajetória – a participação no GIP e a subsequente publicação de Vigiar e Punir –, a conexão entre engajamento e reflexão intelectual ganha contornos mais expressivos que podem melhor revelar as coerências e tensões presentes na forma de ação que Foucault definiu como sendo própria ao novo papel do intelectual na atualidade, ao “intelectual específico”.

A gênese do Groupe d´Information sur les Prisons

O GIP foi menos uma organização do que um tipo de mobilização 47, até então inédita, em torno das lutas que se travavam contra o endurecimento das políticas de 46

Como será apontado posteriormente, Deleuze utiliza essa expressão numa conversa realizada em 1972 com Foucault, na qual afirma que ambos estariam buscando viver de maneira nova as relações entre teoria e prática, não mais pensando essas relações como um processo de totalização, mas sim como um conjunto de revezamentos (cf. Deleuze, 1981). 47 Para a história do GIP, foram utilizados aqui Artières (2003 e 2004) e Eribon (1990).

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segurança do governo francês no início dos anos 1970. Como resposta à “agitação” de maio de 68, buscava-se restaurar a autoridade do Estado por meio de diversas medidas repressivas, tais como a dissolução do grupo maoísta da Esquerda Proletária (Gauche Prolétarienne) e o projeto de lei que buscava responsabilizar penalmente os organizadores de manifestações públicas. É nesse clima de crescente exceção que muitos militantes de esquerda passam a ser presos, o que acaba chamando a atenção de alguns intelectuais não apenas para as precárias condições de encarceramento dos prisioneiros políticos mas também para a situação cotidiana em que se encontravam os presos comuns e para a situação mais geral do sistema prisional francês, temas esses até então de pouco interesse para a assim chamada opinião pública. O recrudescimento das lutas políticas, agora também no interior das prisões, levadas a cabo pelos militantes de esquerda detidos, quer por meio de greves de fome, quer pela mobilização de intelectuais e estudantes universitários, acabaram desembocando numa onda de motins que se estendeu pelos estabelecimentos penitenciários franceses durante o inverno de 1971-1972. Neste momento, Foucault já conhecia a situação de diversos estabelecimento penais pois era um dos animadores do GIP, que já desenvolvia atividades junto a várias prisões na França. O GIP fora criado no início de 1971 por Foucault, juntamente com Pierre VidalNaquet e Jean Marie Domenach. Embora tal grupo se organizasse no citado contexto de forte mobilização política em torno dos militantes de esquerda aprisionados, seus objetivos pretendiam escapar às formas tradicionais de luta política dos grupos de esquerda de inspiração marxista. Na verdade, a intervenção desses intelectuais pretendia efetuar uma dupla ruptura, tanto com relação ao ponto de vista marxista, que via nos prisioneiros comuns apenas um lúmpen-proletariado desviante e reacionário, quanto com relação à estratégia que consistiria em estender as lutas políticas tradicionais a esses prisioneiros comuns. O objetivo seria, pelo contrário, mostrar que a prisão em si mesma seria uma lugar por excelência de exercício do poder e, logo, de luta política. Assim, buscava-se sobretudo dar a conhecer a prisão e por isso a luta pela informação constituía um dos objetivos centrais do grupo, que passou a reunir numerosos testemunhos sobre a prisão, escritos sobretudo pelos detentos. Se o GIP não visou jamais estimular as revoltas que se seguiram nas prisões francesas, ao dar visibilidade à situação de encarceramento em algumas instituições, indicava claramente que essas revoltas eram esperadas. A intervenção de Foucault nesse

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contexto de lutas, apesar do prestígio intelectual que ele já desfrutava na França da época, limitava-se justamente a ouvir as reivindicações que emergiam dessas sublevações, a chamar a atenção para a situação intolerável das condições de encarceramento então vigentes. Para Foucault, a revolta dos presos não tinha por objetivo a destruição das prisões ou a fuga em massa mas reivindicações muito precisas, exigências simples que incidiam principalmente sobre a rotina de detenção. Não se tratava para ele de um movimento revolucionário – tal como era interpretado na época pela esquerda tradicional – mas de uma sublevação, a partir da qual os presos se constituíam como uma força coletiva diante da administração das prisões. Ou seja, para Foucault, tal conjunto de acontecimentos não podiam mais ser interpretados a partir da noção de revolução mas deviam ser pensados como uma nova subjetividade coletiva, que ao intelectual caberia identificar, diagnosticar, mas jamais liderar. A partir desse novo ponto de vista, a prisão deixava de ser um problema local e marginal, de pouco interesse para a reflexão intelectual e a mobilização política, para ganhar destaque nas lutas políticas da época. O próprio Foucault parecia se surpreender com o interesse criado em torno dos discursos dos detentos e pela possibilidade de visualização dos mecanismos de poder que as investigações sobre a prisão poderiam viabilizar:

(...) Fiquei surpreso de ver que se podia interessar pelo problema das prisões tantas pessoas que não estavam na prisão, de ver como tantas pessoas que não estavam predestinadas a escutar esse discursos dos detentos, o ouviam. Como explicar isso? Não será que, de modo geral, o sistema penal é a forma em que o poder como poder se mostra de maneira mais manifesta? (...) A prisão é o único lugar onde o poder pode se manifesta em estado puro em suas dimensões mais excessivas e se justificar como poder moral. (...) O que é fascinante nas prisões é que nelas o poder não se esconde. (...) (Foucault e Deluze, 1979, p.72-73) A experiência do GIP pretendia, deste modo, criar condições para que os presos pudessem falar por si mesmos mas essa nova postura trazia uma série de novos questionamentos. Em primeiro lugar, rompia-se com a idéia tradicional do intelectual como consciência lúcida dos explorados ou oprimidos, como representante daqueles que não podiam falar. Em segundo lugar, não se buscava a produção imediata de uma teoria sobre a delinquência ou a prisão, mas sobretudo criar espaço para o contra-discurso dos prisioneiros ou daqueles que eram considerados como delinquentes.

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Novas vozes, portanto, implicavam numa reconfiguração ampla da forma como o intelectual crítico se posicionava frente aos movimentos e às lutas sociais de seu tempo. Na década de 1980, muito se discutirá no interior da teoria social sobre a emergência dos assim chamados novos movimento sociais mas a experiência do GIP já apontava para essas inéditas configurações das lutas sociais. Daniel Defert, por exemplo, interpreta retrospectivamente o GIP justamente como uma espécie de movimento social de transição, entre, de um lado, as tentativas das organizações de esquerda tradicional que, no pós 1968, buscavam readequar as formas de ação coletiva que então emergiam e, de outro, o surgimento efetivo dos novos movimento de liberação

(sobretudo

das

mulheres

e

dos

homossexuais)

que

escapam

significativamente, nas suas formas de recrutamento, nos seus modelos de análises e nos seu objetivos políticos, das formas tradicionais de ação coletiva, movimentos esses que poderiam ser classificados não somente de políticos, mas de sócio-éticos, na medida em que se trata de subverter as relações de poder, as hierarquias e os valores (Defert, 2003) É nesse contexto político e social no qual emergem novas formas de ação coletiva que se colocava, consequentemente, a necessidade de redefinição do papel do intelectual militante. Se o modelo de engajamento personificado pela figura de Sartre ainda era dominante, uma outra figura já estava a caminho de nascer. Apesar da autodissolução posterior do GIP, em tal experiência Foucault buscou justamente colocar em prática sua nova concepção de engajamento intelectual – a do intelectual específico –, uma atuação empreendida não mais em nome de valores universais, mas a partir da crítica de práticas cotidianas de poder que deveriam ser denunciadas como intoleráveis. Em conversa na época com o próprio Foucault, Deleuze demonstrava grande entusiasmo com as possibilidades abertas por esse novo empreendimento, que colocava em outro patamar a relação entre teoria e prática e que Foucault exemplificava perfeitamente com sua própria trajetória:

(...) você começou analisando teoricamente um meio de reclusão como o asilo psiquiátrico, no século XIX, na sociedade capitalista. Depois você sentiu a necessidade de que pessoas reclusas, pessoas que estão nas prisões, começassem a falar por si próprias, fazendo assim um revezamento. Quando você organizou o GIP (Grupo de Informações Prisões) foi baseado nisso: criar condições para que os presos pudessem falar por si mesmos. (...) Não havia aplicação, nem projeto de reforma, nem pesquisa no sentido tradicional. Havia uma coisa totalmente diferente: um sistema de revezamentos em um conjunto, em uma multiplicidade de componentes ao mesmo tempo teóricos e práticos. (...) (Foucault e Deleuze, 1979, p.70)

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Se o GIP apontava para novas formas de ação coletiva e se, diante delas, o intelectual deveria abrir mão de seu papel tradicional de agente totalizador, de porta voz autorizado dos oprimidos e admitir que as relações entre teoria e prática deveriam ser mais parciais e fragmentárias, nem por isso novas tensões e conflitos não deixariam de estar presentes nessa nova configuração das lutas sociais48. Embora o GIP tenha obtido considerável sucesso, grupos de presos não tardaram a reivindicar independência com relação aos seus padrinhos intelectuais, sendo que Foucault experimentou um sentimento de fracasso após sua auto-dissolução (cf. Eribon, p.217). De qualquer modo, a experiência do GIP acabou tornando-se emblemática do engajamento político do filósofo e de suas reflexões acerca da necessária reconfiguração do papel do intelectual diante dos novos movimentos sociais que emergiram no pós-68, a despeito da história do GIP ultrapassar em muito a figura do próprio Foucault e merecer ainda estudos mais aprofundados.

Vigiar e Punir e a visibilidade do poder disciplinar

Após a experiência do GIP, Foucault publica em 1975 o livro Vigiar e Punir. Nesse novo livro, como já resumido anteriormente, Foucault estuda as transformações das práticas penais na França, da Época Clássica ao século XIX. E no interior destas transformações, um problema se destaca: o papel central que a prisão passa a desempenhar na penalidade moderna. Foucault questiona o modo como a prisão se tornou a pena por excelência, pena esta não mais voltada para o suplício ou o castigo simbólico e exemplar, mas sim para a disciplina do corpo e da “alma” do detento. O livro se abre com a descrição de um suplício no século XVIII. Ao descrever o corpo supliciado, esquartejado, queimado, Foucault não pretende simplesmente denunciar um ritual bárbaro, superado pelo humanismo. Pelo contrário, o olhar rigoroso que se detém neste espetáculo aterrador visa mostrar que o suplício na verdade define o estilo penal de uma época. As práticas do suplício, longe de serem apenas atos selvagens, possuem uma lógica específica: o suplício é, ao mesmo tempo, um procedimento técnico e um ritual. Como procedimento técnico, o suplício pretende 48

Sobre as discussões que Foucault desenvolveu no período sobre a relação entre o intelectual e a política, ver Koerner (2000).

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produzir uma quantidade de sofrimento que possa ser apreciada, comparada, hierarquizada, modulada de acordo com o crime cometido. Há uma “arte quantitativa do sofrimento” que correlaciona “o tipo de ferimento físico, a qualidade, a intensidade, o tempo dos sofrimentos com a gravidade do crime, a pessoa do criminoso, o nível social de suas vítimas” (Foucault, 1977, p.34). Como ritual, visa marcar o corpo da vítima, tornar infame o criminoso, ao mesmo tempo em que esta violência que marca é ostensiva, caracteriza-se pela demonstração excessiva do poder daquele que pune. Junto à descrição detalhada do suplício, Foucault apresenta o regulamento de uma casa de detenção para jovens em Paris, redigido no século XIX. Nele, o que está em jogo não é mais o suplício do corpo, mas o controle minucioso das atividades, a utilização meticulosa do tempo. É esse deslocamento que Foucault pretende investigar: como o espetáculo punitivo do suplício, no qual o que estava em jogo era o poder do soberano, será substituído por um outro tipo de punição, disciplinar, minuciosa, voltada para a construção de corpos dóceis. Em linhas gerais, pode-se dizer que, de acordo com Foucault, as práticas disciplinares se caracterizam por distribuir os indivíduos em espaços fechados e heterogêneos, onde cada indivíduo tem um lugar especificado, desempenhando também aí uma função útil. Estes locais são ainda intercambiáveis e hierarquizados. Em termos espaciais, portanto, cada indivíduo ocupa um lugar ao mesmo tempo funcional e hierarquizado, formando um quadro espacial em que se distribui a multiplicidade de indivíduos para deles tirar o maior número de efeitos possíveis. As disciplinas implicam também um controle das atividades dos indivíduos, estritamente coordenadas em relação aos horários, ao conjunto dos demais movimentos corporais e aos objetos a serem manipulados, visando obter assim uma utilização crescente de todas atividades ao longo do tempo. Distribuídos espacialmente e controlados temporalmente, as disciplinas combinam ainda os indivíduos de modo a obter um funcionamento eficiente do conjunto através da composição das forças individuais. Esse novo poder disciplinar será, deste modo, um poder voltado para o “adestramento” dos indivíduos. E, para isso, esse poder utilizará alguns mecanismos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e o exame. A vigilância hierárquica induz, através do olhar, efeitos de poder: o indivíduo adestrado deve se sentir permanentemente vigiado. A sanção normalizadora implica toda uma micropenalidade do tempo, da atividade, da maneira de ser, do corpo, da sexualidade visando os comportamento desviantes. O exame, por fim, indica uma técnica de

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controle normalizante que permite qualificar, classificar e punir ininterruptamente os indivíduos que são alvos do poder disciplinar. Nessa análise da prisão em Vigiar e Punir, Foucault retoma a idéia, já apresentado na citada conversa com Deleuze, em 1972, de que a prisão não é uma instituição marginal, que apenas diz respeito aos delinquentes que lá são punidos, mas sim uma espécie de laboratório das relações de poder do mundo moderno, pois a tecnologia de poder que se constitui no interior das prisões acaba por espalhar-se por toda a sociedade, em instituições como fábricas, hospitais, escolas etc., acabando mesmo por desenhar uma “sociedade disciplinar”, ou seja, uma sociedade permeada por uma rede de instituições e práticas de poder disciplinares. Como já foi dito, esse novo poder disciplinar tem na visibilidade um de seus traços mais característicos, a visibilidade que permite o exercício anônimo do poder. Por isso o Panóptico de Bentham é a figura arquitetural que sintetiza os novos dispositivos de poder disciplinares. O Panóptico aponta para instituições de visibilidade total, nas quais o poder se exerce de maneira automática e desindividualizada e em que os indivíduos sujeitos a esse poder são treinados, modificados em seus comportamentos. E o que é importante no Panóptico, é que ele se tornou um modelo generalizável, um modelo da nova tecnologia política disciplinar. Com isso, esse modelo será aplicado em todos os lugares em que se faz necessário controlar e produzir determinados comportamentos numa multiplicidade de indivíduos, podendo servir para corrigir prisioneiros, cuidar de doentes, instruir escolares, guardar loucos, controlar operários, fazer trabalhar ociosos etc. Assim, Foucault mostra que, se o suplício tornou-se rapidamente intolerável, a partir da segunda metade do século XVIII, o que permitiu efetivamente sua supressão, ao menos como ritual público de punição, foi a transformação das práticas de poder no interior da sociedade e a consequente generalização do poder disciplinar, poder baseado na vigilância dos indivíduos, no adestramento dos corpos e na normalização dos comportamentos. . Muitos viram na análise desenvolvida em Vigiar e Punir uma indiferença, por parte de Foucault, em relação à condenação do suplício como forma de punição, um relativismo que não permitiria condenar um ritual bárbaro de mutilação, felizmente abandonado na modernidade. A leitura de Vigiar e Punir a partir do engajamento de Foucault nas lutas em torno do GIP, no entanto, aponta para outro caminho. Na realidade, ao colocar lado a

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lado o suplício e a prisão moderna, Foucault estaria indicando sobretudo que as práticas prisionais – e o poder disciplinar a elas associado – é que deveriam ser tomadas como intoleráveis na atualidade. Essa relação estreita da análise de Vigiar e Punir com as lutas em torno do GIP, o próprio Foucault já indicava na abertura do seu livro. Pois, para ele, antes do que uma intuição teórica ou uma descoberta histórica, foram as revoltas ocorridas na época em prisões em todo o mundo que haviam indicado o caminho de pesquisa a seguir. Revoltas dos corpos tanto contra as misérias cotidianas das condições de detenção quanto contra as prisões modelos. O que estava em jogo nessas revoltas era a materialidade dos poderes que se exerciam sobre os corpos dos condenados, a materialidade dessa “tecnologia de poder sobre o corpo” que nenhum discurso pretensamente humanista poderia mascarar. É essa tecnologia de poder que Foucault queria problematizar e tornar visível, era essa punição que ele queria denunciar como intolerável na atualidade. Deste modo, ao apresentar após a experiência do GIP seu detalhado estudo histórico acerca da emergência da prisão moderna, Foucault de algum modo realizava aquele desejado revezamento entre teoria e prática. Se a experiência do GIP buscou sobretudo abrir espaço para que os presos contassem suas experiências no interior das prisões – ou seja, buscou apresentar novos dizeres acerca da experiência da prisão, não pautados pelos saberes criminológicos ou pelas promessas dos discursos recorrentes dos reformadores –, a pesquisa de Vigiar e Punir buscou sobretudo tornar visível o olhar disciplinar que nela opera e, que ao mesmo tempo, se apresenta disperso em tantos outros ambientes sociais. Olhar esse curiosamente assimétrico, pois implica sobretudo em ver sem ser visto, cabendo à análise crítica torná-lo visível, reverter o princípio da visibilidade em favor das resistências. Afinal, se como afirma Artières (2004), o papel da Filosofia para Foucault consistia em tornar visível exatamente o que já estava visível, fazer aparecer o que é tão imediato, o que está tão intimamente ligado a nós que nem sequer percebemos; no caso da prisão, tratava-se de mostrar que o poder disciplinar que nela opera esquadrinhando os espaços, adestrando os corpos, estabelecendo vigilância e controle, não dizia respeito apenas aos detentos, mas ao homem moderno aprisionado em infinitas redes disciplinares e normalizadoras nos mais diversos campos sociais. À objeção de que na análise de Vigiar e Punir não apareceriam as vozes e ações dos presos, as múltiplas formas de resistência ao poder disciplinar, nem se daria

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importância ao sofrimento daqueles que são alvos da punição49, pode-se contraargumentar que são as resistências, que ganharam a cena política nas lutas simbolizadas em torno do GIP, na verdade, a própria condição de possibilidade da análise, como o próprio Foucault já apontava no início do livro. E que viabilizar a fala dos detentos implicava em resgatar do silêncio absoluto o sofrimento anônimo dos muitos que cotidianamente eram detidos, vigiados ou castigados.

Diagnóstico do Tempo Presente

Ao recuperar-se a atuação de Foucault no GIP e a posterior análise realizada em Vigiar e Punir, pode-se vislumbrar a atuação de Foucault como o genealogista por excelência, que buscava criticar as formar capilares de exercício do poder na sociedade moderna. De uma perspectiva complementar, surpreende-se igualmente um Foucault preocupado em abrir espaço para os dizeres silenciados pelas formas de saber e de poder hegemônicas, formas essas que excluem a alteridade, circunscrevem toda diferença ao campo do conhecido e do imutável para evitar assim as incertezas da história e as possibilidades sempre presentes de mudança. A liberação da fala dos presos, a criação de espaços para os seus dizeres teve ainda como contrapartida um novo olhar sobre a prisão, que ao mesmo tempo analisava como o poder disciplinar se baseia na visibilidade e na vigilância e caracterizava essa visibilidade como profundamente assimétrica. Romper essa assimetria, em grande medida, era o objetivo em Vigiar e Punir. Como já mencionado – e retomando a questão do engajamento de Foucault nas lutas políticas e sociais de seu tempo –, seu ativismo foi por diversas vezes visto como incompatível com o trabalho de pesquisa que realizava ou, na melhor das hipóteses, como uma atividade paralela mas independente da obra. Em contrapartida, como afirma Artières, pode-se considerar que suas intervenções tinham sempre como objetivo o diagnóstico do tempo presente. A análise sucessiva de sua atuação no GIP e de sua posterior pesquisa em Vigiar e Punir mostra ainda como Foucault por vezes efetivamente articulou engajamento e reflexão histórica e filosófica ao visar o diagnóstico das questões da atualidade. Ao enfatizar essa articulação, no entanto, não se trata de modo nenhum de reconciliar de

49

Sobre a questão do sofrimento na análise de Vigiar e Punir, ver Adorno (2000).

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modo simplista autor e obra, biografia e pensamento. Afinal, o próprio Foucault em experiências como a do GIP buscava muito mais estilhaçar seu próprio estatuto de autor – e aqui novamente a oposição clara em relação a Sartre – pois “o valor do diagnóstico não repousava num rosto, numa identidade de autor, mas no próprio diagnóstico (Artières, p.35). Hoje, pode-se reconstituir aspectos teóricos e práticos desse engajamento mas necessariamente para ferir de um outro modo o tempo presente. Enfim, agora que novos materiais estão sendo publicados acerca da atuação do GIP, será igualmente possível melhor aprofundar o trabalho ao mesmo tempo teórico e prático de diagnóstico do presente que Foucault procurou desenvolver.

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A questão do poder em Foucault 50

(...) On ne peut pas me prêter l´idée que le pouvoir est un système de domination que contrôle tout et qui ne laisse aucune place à la liberté. Michel Foucault

O retorno da férrea prisão?

Como mencionado anteriormente, Michel Foucault já havia ganho certa notoriedade nos anos 60 do século XX, para além de um público mais especializado, sobretudo com seu livro

As Palavras e as Coisas. Como relembra um de seus

biógrafos, Didier Eribon, As Palavras e as Coisas obteve enorme sucesso de vendas na França no verão de 1966, apesar de ser uma obra difícil, destinada a um público mais interessado em história das ciências (Eribon, 1990). Sem dúvida, as querelas em torno do estruturalismo, que ganhavam as discussões culturais naquele momento na França, explicam parte do sucesso do livro, que já alcançava inclusive um impacto internacional. Mas será com Vigiar e Punir, a partir do início dos anos 70, que seu estilo de reflexão irá realmente penetrar nos debates da teoria social de forma mais ampla, não mais restrito às discussões em torno do Estruturalismo. Será em torno desse livro que se cristaliza a vulgata, ainda predominante na atualidade, em torno de seu percurso intelectual: Foucault será identificado sobretudo como o autor que estuda os micro-poderes nas capilaridades da vida social, analista das disciplinas presentes tanto nas assim chamadas “instituições totais” – termo que não era do próprio Foucault – quanto nas formas de controle e de vigilância dispersas na sociedade. Mas a propagação de tal vulgata trará consigo um conjunto de críticas aí embutidas e frequentemente dirigidas às suas análises: Foucault simplesmente reeditaria a visão da férrea prisão weberiana, como autor que observava o poder em todos os lugares, com uma concepção puramente negativa do movimento histórico, tomado apenas como o crescimento de uma rede cada vez mais estreita de poderes, autor 50

Texto inédito, produzido a partir de palestras apresentadas no II Colóquio Michel Foucault, realizado na Universidade Federal do Pará em setembro de 2012, e no Colóquio Internacional Transformações da Biopolítica na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em outubro de 2012.

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puramente pessimista, incapaz de refletir sobre a liberdade, espécie de arauto da inevitável presença dos totalitarismos mesmo no interior das sociedades democráticas. Ou, para citar diretamente as palavras de um crítico mais exacerbado, o que Foucault teria a dizer sobre a modernidade seria:

(...) uma interminável, torturante série de variações em torno dos temas weberianos do cárcere de ferro e das inutilidades humanas, cujas almas foram moldadas para se adaptar às barras. (...) Foucault nega qualquer possibilidade de liberdade, quer dentro, quer fora dessas instituições. As totalidades de Foucault absorvem todas as facetas da vida moderna. (...) não há liberdade no mundo de Foucault porque sua linguagem compõe uma teia inconsútil, um cárcere mais constrangedor do que tudo que Weber sonhou, no qual nenhum sopro de vida pode penetrar. (...) (Berman, 1986, p.33) Apesar de o próprio Foucault recusar explicitamente a visão do poder como um sistema de domínio que tudo controlaria e que não deixaria lugar para a liberdade 51, sua assimilação ao paradigma da modernidade como férrea prisão ganhará fôlego. Outras críticas – mais sofisticadas do que as vociferações de Berman – apontarão ainda para seu suposto cripto-normativismo (Fraser, 1989), já que Foucault seria incapaz de explicitar os próprios valores que informavam sua análise, como também ao seu conceito de poder, considerado como não-sociológico ou por demais unilateral (Garland, 1993), incapaz de dar conta quer seja da base econômica das práticas de dominação, por um lado, quer seja dos aspectos culturais que também envolveriam as práticas de poder, por outro. Tais críticas poderiam ser analisadas uma por uma, o que escaparia, no entanto, ao escopo do presente texto. Mas, vistas em seu conjunto, apontam para aspectos de como foi a recepção do percurso intelectual de Michel Foucault no âmbito da teoria social e, de forma mais geral, de como ocorre a vulgarização de autores que ganham alguma notoriedade nos debates no campo das Ciências Sociais. De qualquer modo, a repetição de leituras como as de Berman acabarão cristalizando o perfil imediatamente reconhecível da suposta perspectiva de Foucault no âmbito da teoria social, ainda hoje firmemente presente em inúmeros debates. Ou melhor, terminarão por desenhar seu perfil como “autor”, reduzido a uma forma escolar que, ao mesmo tempo, indicaria seu lugar fundamental na tradição de debates em

51

Conferir Foucault (2001).

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campos como os das Ciências Sociais e da História mas neutralizaria igualmente a novidade trazida por suas reflexões. Tendo em vista tais questões, um primeiro passo para um uso mais interessante e produtivo das experiências de pensamento legadas por Foucault no âmbito das Ciências Sociais implica justamente na recusa de tal vulgata por meio da problematização da própria figura de Foucault como autor canônico no âmbito da teoria social.

Fazer falar um autor

Afinal, o que é fazer falar um autor? Pierre Bourdieu (1996) levanta tal questão justamente a propósito da discussão em torno das ideias de Foucault. O sociólogo francês indaga se, ao empregar frases como “para Foucault”, “de acordo com Foucault”, “como disse Foucault” etc., não se estaria sucumbindo a uma forma de fetichismo, como é frequente na apropriação dos autores considerados clássicos das Ciências Sociais. Se Marx dizia que não era marxista, Foucault provavelmente diria que não era “foucaldiano”52. Ou seja, citar um autor não é uma tarefa simples, um autor não diz a mesma coisa em diferentes circunstâncias, não está livre de contradições, não está livre de seu próprio contexto. Seria possível, em relação a qualquer autor, opor citações contraditórias, já que, tanto Marx quanto Foucault se contradiziam, como qualquer pessoa, não diziam a mesma coisa em diferentes momentos, diante de públicos variados e em circunstâncias diversas. Em suma, os autores não estão livres de contradição, nem livres do próprio contexto no qual escreveram seus trabalhos. Valorizar efetivamente um autor seria, ainda de acordo com Bourdieu, evitar tal tipo de fetichização, já que não se respeita um pensamento no momento em que ele é encerrado nos limites da autoria, na garantia de unidade e de coerência dada por tal ponto de fuga. Mais importante do que a figura do autor seria o uso instrumental – aqui Bourdieu e Foucault provavelmente convergiriam em seus argumentos53 – de ideias e de análises para pensar e repensar a realidade. Na mesma discussão, Bourdieu retoma o próprio ethos filosófico que Foucault buscou ao longo de sua vida. Diante das inúmeras forças da não-recepção, um pensador consciente como Foucault buscou sempre selecionar seus interlocutores, responder apenas às críticas que poderiam contribuir para o avanço efetivo na produção da 52 53

Para não usar a expressão “foucaultiano”, considerada bárbara por Merquior (1985). Sobre a discussão da questão do “autor” em Foucault, consultar, como já indicado, Adorno (2012).

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verdade. Como já citado, Foucault parecia enfrentar de forma enviesada as polêmicas que lhe eram dirigidas. Em entrevista a Paul Rabinow de 1983, ele justificava sua recusa no envolvimento mais direto em determinadas discussões, em que o jogo de procura da verdade era substituído pela disputa de inimigos em rota de colisão. Os efeitos esterilizantes, em termos de busca da verdade, das polêmicas tradicionais seriam o resultado inevitável desse enfrentamento em que, de antemão, a legitimidade já seria negada ao indivíduo escolhido como adversário:

O polemista procede baseado nos privilégios que tem de antemão e que nunca vai questionar. Ele possui, por princípio, direitos que o autorizam a guerrear e que fazem dessa luta um empreendimento justo; quem está diante dele não é um parceiro na procura da verdade, mas um adversário, um inimigo errado e nocivo cuja mera existência constitui uma ameaça. Para ele, então, o jogo não consiste em reconhecê-lo como um sujeito com direito a falar, mas sim em aboli-lo como interlocutor de qualquer diálogo possível; seu objetivo final não será chegar o mais próximo possível de uma verdade difícil, mas sim obter o triunfo da causa justa que ele manifestamente sustenta desde o princípio. O polemista assume uma legitimidade que por definição é negada a seu adversário. (Foucault, 1999, p.18) Desse modo, se no momento em que Foucault estava vivo, suas tentativas de desviar-se das polêmicas mais frequentes em torno de seu trabalho poderiam aparecer para alguns como apenas uma forma de pedantismo intelectual, supostamente bem ao gosto dos intelectuais franceses, hoje percebe-se mais claramente que ele buscava sobretudo deixar em aberto – para suas investigações e também para as pesquisas futuras – espaços de problematização, espaços de liberdade que pudessem viabilizar novas formas de reflexão e novas possibilidades de ação. Como afirma novamente Bourdieu, um pensador consciente tem, por vezes, o interesse de se tornar difícil de ler, para buscar assim seus verdadeiros leitores e evitar as inúmeras forças que contribuem para a não recepção do pensamento. A própria disputa entre

intelectuais contemporâneos está igualmente em

discussão e talvez Bourdieu não deixe de problematizar em seu texto sua própria relação tensa com Foucault no campo intelectual francês. De forma provocativa, Bourdieu lembra que os contemporâneos se lêem pouco, sendo que as divergências se constroem mais em torno de rumores intelectuais, da circulação de palavras-chave, de slogans redutores, às vezes apenas dos próprios títulos dos principais livros. Paradoxalmente, tanto “amigos” quanto “inimigos” disputariam por meio de tais reduções a construção

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da imagem social de um autor e haveria toda uma longa história da polêmica como forma de disputa intelectual que o próprio Foucault afirmou que precisaria ser ainda escrita (Foucault, 1999). As inúmeras dificuldades levantadas em relação aos usos possíveis das ideias e das pesquisas de um intelectual convergem no sentido de problematizar a própria idéia de “autor” como princípio de organização por trás de um percurso individual ou de uma suposta obra, sendo que as discussões de Bourdieu e de Foucault a esse respeito novamente podem ser colocadas em paralelo. Bourdieu afirma que realmente compreender um “autor” como criador de pensamento implicaria numa leitura não escolástica dos textos produzidos, na reconstrução do campo de produção acadêmica da época na qual o autor estava inserido, no efeito de suas reflexões nos diferentes campos de conhecimento e mesmo fora dos campos especializados, a relação entre os campos de produção e de recepção etc. (cf. Bourdieu, 1996). Tal proposta, no entanto, é por demais ambiciosa e talvez apenas o desenvolvimento de inúmeros trabalhos paralelos em diferentes países por diversos profissionais possa dar conta de tal reconstrução, por exemplo, no caso de Foucault. Muito mais modestamente, no entanto, é possível problematizar a figura do autor a partir de diferentes perspectivas parciais, ao colocar-se em questão a suposta homogeneidade do pensamento nas múltiplas dimensões do trabalho intelectual cotidiano realizado durante décadas. É isso que se pretende esboçar rapidamente aqui em torno da questão do poder, um dos eixos principais do pensamento de Foucault.

Os Cursos no Collège de France

Pelo que foi visto, nada seria mais fiel ao pensamento de Foucault do que problematizar seu próprio pensamento e as chaves já estabilizadas a partir das quais ele é compreendido na atualidade. Ao buscar novos caminhos de leitura, pode-se contrapor à já citada organização tradicional de seus escritos – divididos em três momentos principais, a Arqueologia do Saber, a Genealogia do Poder e a Genealogia da Ética – outros princípios de organização, como aquele resultante das condições de publicação de seus trabalhos, mesmo após sua morte. Sob esse ponto de vista, ao se observar o extenso material deixado por Foucault, as falas e os textos que produziu ao longo de sua vida, podem ser identificados três conjuntos principais de trabalhos, como resume Pierre-François Moreau (2003):

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(1) os livros publicados em vida, de Doença Mental e Personalidade aos três volumes da História da Sexualidade; (2) os cursos no Collège de France, ainda em processo de publicação; (3) os artigos, entrevistas, resumos de cursos e outros “pequenos escritos” reunidos nos Dits et Écrits, publicados primeiro na França em 1994 e depois traduzidos em diversos países. Como indica ainda Moreau, cada um desses conjuntos pertence a um gênero próprio, com seu estilo diferenciado, seu modo de transmissão específico, seu tipo de recepção particular. Se esses escritos reunidos não constituem necessariamente uma obra homogênea, o que Foucault sempre recusou, pode-se perceber um percurso complexo que se desenhou ao longos dos anos, com sua dinâmica própria, suas constantes e suas retomadas e deslocamentos conceituais54. Esses materiais não estavam todos disponíveis na época em que Foucault escrevia. Assim, não era tendo em vista todo essa dispersão e heterogeneidade que os críticos e supostos seguidores debatiam suas idéias na época em que Foucault estava vivo e escrevendo seus trabalhos. O argumento defendido aqui é que inúmeras críticas às análises do poder em Foucault e ao seu diagnóstico sobre a modernidade, no âmbito da teoria social, dificilmente dão conta dos deslocamentos que podem ser melhor percebidos, por exemplo, ao acompanhar-se os desdobramentos da analítica do poder de livros como Vigiar e Punir e História da Sexualidade I para os cursos no Collège de France, sobretudo Sécurité, Territoire, Population, de 1977-1978, e Naissance de la Biopolitique, de 1978-1979 (Foucault, 2004a e 2004b). Se é possível levar a sério a citada provocação de Bourdieu

– de que os

contemporâneos conhecem pouco os trabalhos uns dos outros, que os debates ocorrem mais em torno de rumores intelectuais, de palavras-chave e de slogans redutores, de leituras escolares muitas vezes empobrecedoras – então a revisão do conjunto dos

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Frédéric Gros, por exemplo, explora como, ao colocar-se lado a lado os textos dispersos dos Dits et écrits, as lições no Collège de France e os livros editados em vida, é possível perceber como, num certo sentido, mesmo Foucault buscou se constituir como “autor” de sua “obra”, por meio de um esforço um tanto quanto surpreendente de releitura de seus próprios trabalhos (cf. Gros, 2003). Assim, Foucault não se furtou a rever os livros escritos, descrever seu itinerário intelectual, defender-se de interpretações mal fundadas, ao mesmo tempo em que, sobretudo nos Dits et écrits, entrava em contradição consigo mesmo com razoável frequência. Mesmo que Foucault quisesse, por meio dessas inúmeras releiuras de si próprio, escapar aos mitos humanistas do autor e da obra e apagar seu próprio rosto em prol de uma reconstrução permanente de problemas e de objetos de pesquisa, não é possível pressupor que tal empreitada tenha se realizado sem tensões e ambiguidades, facilmente constatáveis ao longo do seu percurso intelectual.

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trabalhos de Foucault, hoje disponíveis, permite revelar aspectos de seu pensamento poucas vezes explorados pela crítica de seu tempo. Na atualidade, ao se perder a presença viva do intelectual – e essa é uma perda incontornável, como atestam aqueles que conviveram com Foucault, como o historiador Paul Veyne (2008) – pode-se, em contrapartida, ter uma avaliação mais rica dessa massa impressionante de reflexões e de pesquisas, explorar de forma mais produtiva as pistas deixadas por seu trabalho. Novamente empregando as palavras de Bourdieu, é possível dizer que a totalidade de uma obra é acessível apenas postumamente, os contemporâneos só têm acesso a uma parte ínfima da reflexão de um pensador, ao ignorar suas entrevistadas, correspondências etc. Mesmo que seja difícil falar em “totalidade” ou “obra”, no caso de Foucault, hoje consegue-se recuperar o conjunto também heterogêneo de um pensamento de experimentação e liberdade. Em relação à questão do poder – a mais vulgarizada do pensamento de Foucault e a que pretende-se discutir aqui – a justaposição de diversos momentos da reflexão de Foucault pode contribuir do mesmo modo para novas possibilidades de reflexão acerca dos temas atuais. A caricatura anteriormente apresentada da analítica do poder – que toma Foucault como o autor por excelência da modernidade como férrea prisão – bem como outras críticas mais qualificadas partem de uma leitura unidimensional de seu percurso intelectual, ao não dar conta dos inúmeros deslocamentos realizados pelo próprio Foucault ao longo dos anos de trabalho e reflexão. Sem dúvida, é um tanto quanto estéril tentar dissociar totalmente as concepções do próprio Foucault de tudo aquilo que será atribuído ao seu pensamento, jogo perverso que acaba frequentemente viciando os debates em torno de autores que ganham notoriedade no âmbito das Ciências Sociais, sendo o já citado caso de Marx o mais célebre. Mais interessante é indicar – por exemplo, na questão do poder – como Foucault não deixará de se deslocar mesmo em relação às suas concepções originais, ao buscar novos caminhos de investigação. Os citados cursos no Collège de France do final dos anos 70 do século XX fornecem um importante roteiro para acompanhar esses deslocamento e reformulações, que levarão Foucault a caminhos não totalmente previsíveis tendo em vista o que já havia escrito sobretudo em Vigiar e Punir. A microfísica do poder, tomada como perspectiva de análise, não como teoria, e sobretudo

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como problematização, levará a reformulações conceituais, encontrará novos campos de aplicação e inéditos objetos de análise. A morte repentina de Foucault e os percalços relativos à publicação dos textos nos quais discute a questão do poder na chave do governo podem ajudar a explicar porque os deslocamentos de Foucault em relação à questão do poder, tal como colocada em Vigiar e Punir, muitas vezes não foram tão explorados a ponto de desconstruir a vulgata anteriormente citada55.

Para além da férrea prisão

A principal ideia apresentada aqui é que a noção de poder não permanecerá inalterada ao longo do percurso intelectual de Foucault, como apontam diversos comentadores56, e a recuperação dos deslocamentos efetuados nesse âmbito de análise é fundamental para melhor situar a importância e o alcance das ideias de Foucault no diálogo com a teoria social. Explorar ainda tais deslocamentos, tendo em vista a heterogeneidade da produção desse autor, ao trabalhar nos diferentes registros de sua produção – nos artigos, prefácios, entrevistas, aulas mas também nos livros editados em vida – pode potencializar significativamente novos usos para a caixa de ferramentas que é seu legado intelectual. Um deslocamento tem sido com frequência caracterizado com relação ao eixo do poder no percurso de Foucault: de uma concepção ligada à luta e ao confronto, inspirada em Nietzsche e empregada sobretudo em Vigiar e Punir, à ideia do poder como governo de condutas, que emerge nos cursos do Collège de France a partir do final dos anos 1970. É então que o conceito de governamentalidade ganhará centralidade e definirá novos rumos para a assim chamada genealogia do poder (Lemke, 2000). Mas o próprio diagnóstico de Foucault em relação às transformações do mundo moderno e em relação aos instrumentos analíticos necessários para caracterizar tais transformações serão igualmente deslocados. De uma visão cuja ênfase recaía na ruptura no momento da emergência da modernidade, sob o ponto de vista das práticas e dispositivos de poder, Foucault irá mover-se para uma caracterização mais complexa e 55

A própria história dos caminhos de publicação dos diferentes textos ajuda a compreender como os processo materiais influenciam na recepção e utilização de conceitos e análises. Nessa direção, Sylvain Meyet, por exemplo, discute a trajetória do texto “A governamentalidade”, lição pronunciada por Michel Foucault em 01/02/1978 no Collège de France (cf. Meyet, 2005). 56 Conferir Ortega (1999), entre outros.

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nuançada, na qual múltiplas composições estarão em jogo. A contraposição binária soberania versus disciplina será substituída, do mesmo modo, pelo triângulo soberania/disciplina/governamentalidade como instrumento heurístico mais apropriado para a caracterização das tecnologias de poder da modernidade. É a discussão desses pontos que será brevemente esboçada a seguir.

Revisitando o tema do poder em Foucault Roberto Machado já alertava que o tema do poder não era “o mais velho desafio formulado pelas análises de Foucault” (cf. Machado, 1981, p.IX). No entanto, o próprio Foucault nunca deixou de admitir que, a partir do final dos anos 60 do século XX, a questão do poder ganhou grande espaço em suas reflexões. Por exemplo, em texto do início dos anos 80 do século XX, no momento em que evidenciava, de forma um tanto quanto surpreendente, que o sujeito e não o poder seria o tema mais geral de suas pesquisas, Foucault não deixava de enfatizar que a questão do poder tinha sido por ele longamente trabalhada:

É verdade que me envolvi bastante com a questão do poder. Pareceu-me que, enquanto o sujeito humano é colocado em relações de produção e de significação, é igualmente colocado em relações de poder muito complexas. (...) porém, para as relações de poder, não temos instrumentos de trabalho. O único recurso que temos são os modos de pensar o poder com base nos modelos legais, isto é: o que legitima o poder? Ou então, modos de pensar o poder de acordo com um modelo institucional, isto é: o que é o Estado? (Foucault, 1995, p. 232) Essa citação é interessante pois explicita umas das obsessões recorrentes em Foucault no momento em que buscava desenvolver de forma mais sistemática sua genealogia do poder: a construção de um referencial de análise capaz de dar conta do poder para além do modelo da lei e da centralidade institucional do Estado. Num primeiro momento, ao criticar o modelo jurídico de análise do poder, Foucault parece apenas negá-lo, ao adotar uma posição oposta que substituiria a lei e o contrato pela luta e o confronto. A novidade e o paradoxo manifestos nas análises de Vigiar e Punir ganham destaque, em grande medida, em oposição às análises tradicionais das mudanças penais em termos da lei e do Estado. Se o que está em jogo é a punição na modernidade, Foucault não fará derivar diretamente as mudanças nas formas de punição das

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transformações legais ou da dinâmica estatal. Pelo contrário, será a emergência das novas tecnologias de poder disciplinares que ganham a cena principal. Curiosamente, a simples substituição de um modelo de análise em prol de outro – do modelo jurídico para o modelo disciplinar – será acompanhada em VP por uma caracterização das transformações das práticas penais em termos de ruptura quase absoluta. Na descrição dos diferentes estilos penais no início do livro – o suplício e o controle do tempo – a ênfase recai na ruptura de um estilo ao outro. Embora o próprio Foucault admita que a violência do suplício não deixará de existir – apenas não se manifestará mais de forma expressiva e aberta – são as disciplinas que irão ganhar o maior destaque na discussão. Se a caracterização das mutações penais em termos de ruptura quase total em relação ao antigo modelo da lei e da soberania e da subsequente hegemonia das disciplinas como as principais tecnologias de poder na modernidade ajudaram a celebrizar a análise realizada no livro, sem dúvida é possível perceber como, mesmo já em VP, era impossível compreender a emergência e a reprodução das disciplinas sem o pano de fundo da lei e da soberania. O paradoxo que se apresentava, no entanto, é que, em termos analíticos, Foucault simplesmente propunha a substituição de um modelo de análise por outro. No primeiro volume de sua História da Sexualidade, por exemplo, ainda seguindo a mesma trilha usada em VP na caracterização feita do que é o poder e nas “prescrições metodológicas” necessárias para sua compreensão, Foucault afirmará que o poder não é nem instituição, nem estrutura, nem uma certa potência de que alguns sejam dotados, mas apenas o “nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada” (Foucault, 1980, p.89). O sistema Soberano-Lei, com sua obsessão acerca de quem detém o poder, de como esse é adquirido, arrebatado ou compartilhado, não daria conta da análise dos mecanismos de poder disciplinares, já que esses se exerceriam a partir de inúmeros pontos e de relações desiguais e móveis. Desse modo, a visão do modelo jurídico é praticamente colocada de cabeça para baixo, já que Foucault enfatizava que as relações de poder eram intencionais mas não necessariamente comandadas por um sujeito e que o poder viria de baixo e não se disseminaria a partir de um centro, como o Estado. As recomendações metodológicas caminhavam na mesma direção: (1) considerar que entre técnicas de saber e estratégias de poder não haveria nenhuma exterioridade; (2) não delimitar quem teria poder ou quem não teria mas buscar as correlações de força presentes em determinada situação;

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(3) considerar que nenhum foco local poderia funcionar se não se inserisse numa estratégia global e inversamente; (4) admitir um jogo complexo e instável em que o discurso seria instrumento e efeito do poder e também ponto de resistência e de partida para estratégias opostas. Inúmeras críticas se avolumaram em torno de VP, algumas mais consequentes, outras nem tanto. Para além da crítica vulgar, é certo que a reflexão de Foucault a partir da microfísica do poder defrontava-se com problemas que precisavam ser enfrentados. Por um lado, as análises do poder até então realizadas não eram capazes de dar conta do duplo processo que caracteriza as práticas de poder, como práticas ao mesmo tempo de subjugação mas também de autoconstituição. Por outro, as críticas às abordagens centradas no poder do Estado, ao chamar a atenção apenas para as práticas locais e para instituições específicas, como o hospital e a prisão, pareciam insuficiente para dar conta da formação do Estado moderno como parte integrante desse processo simultâneo de ascensão das disciplinas (Lemke, 2011). O interessante a apontar aqui é que o próprio Foucault tentará contornar as ambiguidades manifestas por suas próprias análises. Embora um estudo mais detalhado das mudanças em seu percurso intelectual que ocorreram do final dos anos 70 para o início dos anos 80 do século XX não possa ser realizada aqui, dada a amplitude da discussão, é possível apontar ao menos alguns aspectos dessas mudanças: (1) a defesa da não substituição simples do modelo analítico da lei pelo modelo estratégico; (2) a não substituição histórica também de um tipo de poder por outro; (3) o novo desdobramento do eixo do poder, agora em termos do triângulo soberania-disciplinagovernamentalidade. Ainda no primeiro volume de sua História da Sexualidade, Foucault parecia desenvolver de modo um tanto ambíguo seu argumento, já que, de um lado, reafirmava a necessidade de substituir o modelo jurídico pelo modelo agonístico do poder, ao passo que, de outro, afirmava que apenas de forma paulatina as correlações de força em termos de guerra foram colonizando a ordem política, como no excerto abaixo:

Trata-se, em suma, de orientar, para uma concepção do poder que substitua o privilégio da lei pelo ponto de vista do objetivo, o privilégio da interdição pelo ponto de vista da eficácia tática, o privilégio da soberania pela análise de um campo múltiplo e móvel de correlações de força, onde se produzem efeito globais, mas nunca totalmente estáveis, de dominação. O modelo estratégico, ao invés do modelo do direito. E isso, não por escolha especulativa ou preferência teórica; mas porque é efetivamente um dos traços fundamentais das sociedades

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ocidentais o fato de as correlações de força que, por muito tempo, tinham encontrado sua principal forma de expressão na guerra, em todas as formas de guerra, terem-se investido, pouco a pouco, na ordem do poder político. (Foucault, 1980, p.97; destaque nosso) Assim, tratava-se de uma ruptura efetiva – da predominância de um poder soberano em direção a uma nova predominância do poder estratégico – ou de uma mudança gradual, que envolveria algum tipo de composição entre soberania/disciplinas? O modelo da soberania em algum momento teria dado conta efetivamente das relações de poder na sociedade? E o modelo estratégico seria agora suficiente para dar conta das tecnologias de poder na modernidade? No mesmo ano de 1976, em aula no Collège de France de 14 de janeiro, Foucault afirma que o modelo jurídico efetivamente havia dado conta das relações de poder na Idade Média, embora não mais na modernidade:

(...) enquanto durou a sociedade de tipo feudal, os problemas a que a teoria da soberania se referia diziam respeito realmente à mecânica geral do poder, à maneira como este se exercia, desde os níveis mais altos até os mais baixos. Em outra palavras, a relação de soberania, quer no sentido amplo quer no sentido restrito, recobria a totalidade do corpo social. Com efeito, o modo como o poder era exercido podia ser transcrito, ao menos no essencial, nos termos das relações soberano-súdito. Mas, nos séculos XVII e XVIII, ocorre um fenômeno importante: o aparecimento, ou melhor, a invenção de uma nova mecânica de poder, com procedimentos específicos, instrumentos totalmente novos e aparelhos bastante diferentes, o que é absolutamente incompatível com as relações de soberania.” (Foucault, 1981, p.187) Fica claro, assim, que não se tratava de abandonar o modelo jurídico de análise e de justificação do poder como um instrumento inadequado de descrição mas sim de situá-lo historicamente e, ao mesmo tempo, ultrapassá-lo, já que, no próprio desenvolvimento histórico, novos mecanismos de poder surgiram. Ainda seria preciso considerar, no entanto, se tal ultrapassagem teria sido completa ou não. Na mesma aula, tal questão já é abordada, e Foucault aponta para um certo tipo de coexistência efetiva dos diferentes modelos de exercício de poder:

(...) Indescritível nos termos da teoria da soberania, radicalmente heterogêneo, o poder disciplinar deveria ter causado o desaparecimento do grande edifício jurídico daquela teoria. Mas, na verdade, a teoria da soberania continuou não só existindo como uma ideologia do direito como também organizando os códigos jurídicos inspirados nos códigos napoleônicos de que a Europa se dotou no século XIX. (Foucault, 1981, p.188)

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Não se trata aqui de afirmar que todos as ambiguidades das análises realizadas por Foucault sobre as tecnologias de poder da modernidade tenham sido contornadas mas é interessante identificar alguns deslocamentos que ele realizou diante dos problemas analíticos e empíricos efetivamente encontrados em seu percurso de investigação. No curso apresentado no Collège de France em 1977-1978, intitulado Sécurité, Territoire, Population, Foucault adiciona um novo conceito para dar conta das tecnologias de poder moderno. Como já afirmado aqui, a literatura contemporânea sobre Foucault enfatiza a centralidade do novo conceito de governamentalidade, que implicará numa correção de rumos e no refinamento de suas análises anteriores em relação ao poder (Lemke, 2000, 2011). Diante dos problemas colocados pela emergência de novos formas de gestão das populações na modernidade européia, Foucault desloca a discussão binária soberania versus disciplina, para um novo diagrama, envolvendo agora um triângulo, soberaniadiscplina-governamentalidade. E não se tratará mais, nem em termos de construção de modelos analíticos, nem em termos de desenvolvimento histórico efetivo, de uma substituição pura e simples das tecnologias de poder:

De sorte qu´il faut bien comprende les choses non pas du tout comme le remplacement d´une société de souveraineté par une société de discipline, puis d´une société de discipline par une société, disons, de gouvernement. On a, en fait, un triangle: souverainété, discipline et gestion gouvernementale, une gestion gouvernemantale dont la cible principale est la population et dont les mécanismes essentiels sont les dispositif de sécurité (…) (Foucault, 2004a, p.111) (destaque nosso) A introdução da noção de governamentalidade, caracterizada como o conjunto heterogêneo de instituições, de procedimentos, de análises, de cálculos e de táticas voltados para o exercício de uma nova forma de poder que teria por alvo a população, como saber privilegiado, a economia política e como instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança (cf. Foucault, 2004a), possibilitará a Foucault dar conta de um poder ao mesmo tempo individualizador e totalizante, reinserir o problema da formação do Estado moderno, a partir de então visto evidentemente não como o centro irradiador dessas transformações mas como o resultado complexo de articulações entre o poder político e o poder pastoral ao longo de séculos de transformações. Mas o alcance da

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noção irá além das análises do poder e abrirá espaço inédito para a rediscussão do tema do próprio sujeito. De VP e do primeiro volume da História da Sexualidade aos cursos do final dos anos 70 no Collège de France e aos volumes seguintes da História da Sexualidade, toda uma reorganização teórica em torno do eixo do poder ocorre no pensamento de Foucault, de tal forma que a substituição da noção do poder como luta pelo noção do poder como governo desembocará paralelamente “na temática do governo de si e da autoconstituição, isto é, em um deslocamento teórico no eixo do sujeito” (Ortega, 1999, p.35). Compreende-se assim o que permitirá ao “último Foucault” afirmar que não o poder mas o sujeito constituiu o tema geral de suas pesquisas (Foucault, 1995). A caracterização do poder como exercício de condução de condutas57, remetendo-o menos à ordem do afrontamento entre dois adversários do que à ordem do “governo”, que só se exerceria sobre sujeitos livres, estabelecendo-se assim um jogo complexo entre poder e liberdade, abrirá novas possibilidades analíticas para a microfísica do poder, que o emprego exclusivo da noção de disciplina não viabilizava anteriormente. Percebe-se assim como Foucault sempre moveu-se entre conceitos e análises de forma a poder aprofundar a compreensão do homem como “animal de experiência” pois:

(...) no curso de sua história, o homem não cessou de se construir a si mesmo, ou seja, de trasladar continuamente o nível de sua subjetividade, de se constituir numa série infinita e múltipla de subjetividades diferentes que nunca alcançam um final nem nos colocam na presença de algo que pudesse ser o homem. (Foucault, apud Ortega, 1999, pp.43-44)

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Outra distinção que o próprio Foucault considera que ajudaria a esclarecer suas próprias análises anteriores sobre a questão do poder seria aquela entre relações de poder – considerados como jogos estratégicos entre liberdades – e estado de dominação, associados ao que se chama ordinariamente de poder. As consequências dessa distinção e sua relação com os diferentes modelos de exercício de poder – soberania-disciplina-governamentalidade, mais explorados aqui –, seria um ponto a ser aprofundado (Foucault, 2001). A bibliografia sobre a mudança ocorrida na analítica de Foucault a partir da questão da governamentalidade é também vasta e não pode ser exaustivamente avaliada nesse momento. Collier (2011), por exemplo, aponta como a mudança de enfoque de Foucault no final dos anos 1970 caminhou de uma análise totalizante sobre as formas de poder próprias da modernidade para uma análise “topológica” do poder, mais centrada no exame de como as tecnologias de poder são reposicionadas e recombinadas em diferentes arranjos biopolíticos.Para uma apresentação mais didática do tema do poder em Foucault, consultar Pogrebinschi (2004).

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Novos usos da caixa de ferramentas

No primeiro capítulo destas reflexões sobre o percurso intelectual de Michel Foucault, foi caracterizada sua metáfora da caixa de ferramentas. Por meio dela, Foucault pretendia situar o trabalho intelectual em patamar diverso daquele do comentário filosófico tradicional, da exegese dos textos, do debate escolástico. Apagar sua figura pública como autor era uma forma também de liberar seus escritos para usos múltiplos, livres dos entraves de um autor que se vê como soberano de sua obra e que esclarece ideias, corrige desvios, direciona leituras. Paradoxalmente, ao longo dos muitos anos de trabalho, Foucault não deixou de desempenhar o jogo da autoria, provavelmente ao buscar apontar para os usos mais produtivos de sua caixa de ferramentas do que para cercear leituras e manipulações. A questão da vulgata construída em torno de seus trabalhos no âmbito da teoria social, aqui mencionada, pode ser equacionada nos mesmos parâmetros. Para além do exercício tedioso de discutir qual leitura seria correta, de buscar estabelecer uma nova ortodoxia em relação ao autor, é mais interessante apontar como a vulgarização, sobretudo das análises de Foucault em VP, ao não dar conta dos deslocamentos posteriores que o próprio autor realizou em sua analítica do poder, bloqueou a percepção para as inúmeras novas pistas abertas por Foucault posteriormente, que poderiam ainda enriquecer o debate da teoria social contemporânea. A crítica maior a ser feita à vulgata é que ela repõe as discussões no âmbito da polêmica, que Foucault justamente pretendia recusar. Se o debate polêmico, como afirma Foucault, produz efeitos esterilizantes, desvirtua a busca da verdade e a relação ao outro, a crítica aos reducionismos polêmicos pode ser necessária para um melhor uso de autores, teorias e pesquisa e para a formação de efetivas comunidades em torno de novas formas de pensamento e de ação.

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Referências Bibliográficas:

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PARTE II - HISTÓRIA DO PRESENTE

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Violência institucional contra crianças e adolescentes no Brasil: um breve percurso histórico58

Introdução

A presença de um grande número de crianças e de adolescentes pobres nas ruas dos principais centros urbanos do Brasil permanece como um dos principais símbolos das desigualdades sociais existentes no país. Este setor da população encontra-se em situação de especial vulnerabilidade, como demonstram inúmeras pesquisas recentes. Por exemplo, em relatório sobre Violência por Armas de Fogo no Brasil (1991-2000), aponta-se que, quando os homicídios passaram a ocupar o primeiro lugar como causa de mortes precoces no país, nos anos 90 do século XX, o crescimento no número de óbitos por homicídios foi superior na faixa etária entre 15 e 24 anos, quando comparado ao crescimento da população total; em alguns estados, como São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Pernambuco, os homicídios foram responsáveis por mais da metade das mortes por causas externas da população jovem (Peres, 2004)59. Ou seja, no geral, a população jovem no país está constantemente exposta à violência, além de enfrentar maiores obstáculos para ter acesso às condições que permitiriam o exercício pleno de sua cidadania. O mesmo ocorre com as crianças brasileiras, especialmente expostas às condições de pobreza e de marginalidade, por vezes extremas. Paradoxalmente, no Brasil, a história das iniciativas institucionais e das políticas públicas voltadas para esse setor da população indica que o tema foi, durante muito tempo, tratado mais como um problema que ameaçava a ordem pública do que como um desafio para a cidadania. 58

ALVAREZ, M. C. . Violência institucional contra crianças e adolescentes no Brasil: breve percurso histórico.. In: Márcia Faria Westphal; Cynthia Rachid Bydlowski. (Org.). Violência e Juventude. São Paulo: HUCITEC, 2010, pp. 266-280. 59 Será utilizado, neste texto, o termo “criança” para indicar toda pessoa com menos de 12 anos de idade e “adolescente” para indicar toda pessoa entre 12 e 18 anos, conforme o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90). O termo “jovem” será utilizado de modo mais amplo, para incluir tanto os adolescentes quanto adultos até 24 anos.

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Embora em muitos países as leis tutelares e protetoras voltadas para as crianças e os adolescentes tenham, desde sua origem, apresentado igualmente aspectos estigmatizadores (Donzelot, 1980; Meyer, 1977; Platt, 1982) e embora, durante certo tempo, o movimento pelos direitos humanos e o movimento dos direitos da infância e da adolescência tenham percorrido caminhos distintos, hoje já existe um conjunto de tratados internacionais e regionais e leis nacionais voltadas para a proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes (Relatoria, 2004). No Brasil, mesmo que desde o final do século XIX já surgisse a discussão em torno da necessidade de leis e instituições especiais voltadas para as crianças e os adolescentes, tais discussões acabaram levando à constituição de leis e práticas institucionais especialmente estigmatizadoras que, durante décadas, objetivaram crianças e adolescentes pobres como “menores”, ou seja, como indivíduos potencialmente perigosos e predispostos à delinquência precoce. Desde as primeiras discussões realizadas por médicos e juristas que percebiam a situação das crianças e adolescentes pobres nos grandes centros urbanos ao mesmo tempo como parte da “questão social” mas, sobretudo, como um problema de “defesa social”, até as discussões que culminaram na edição do primeiro Código de Menores do país, promulgado em 192760, constituiu-se todo um processo de “menorização” desse setor da população, processo este que acabou mais agravando do que resolvendo os problemas sociais que pretendia equacionar. Em décadas posteriores, instituições como o Serviço de Assistência ao Menor, fundado em 1940 e depois transformado na FUNABEM, seguirão a mesma trilha desenhada por esse modelo institucional, ao colocarem igualmente em primeiro plano as preocupações com a delinquência precoce. As instituições para os “menores” funcionarão, assim, ao longo de décadas, muito mais como instrumento de marginalização da população pobre do que como instrumento de ampliação efetiva da cidadania. Mesmo o Código de Menores de 197961, baseado na doutrina da “situação irregular”, apenas prolongou esse processo de criminalização da infância e juventude pobre, ao considerar como em “situação irregular” tanto os infratores quantos os menores abandonados.

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Decreto n.17.943A de 12 de outubro de 1927. Lei nº 6.697 de 10 de outubro de 1979. Já no momento de sua promulgação, tal código foi visto como tendo uma estrutura menos perfeita que o anterior (cf. Nogueira, 1985, p.XIII). 61

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Apenas a partir do processo de redemocratização do país foi possível realizar uma crítica mais profunda deste modelo assistencial e repressivo de equacionamento dos problemas da infância e da adolescência no país. A mobilização da opinião pública que levou à nova Constituição, em 1988, ampliou também o debate em torno dos problemas da infância e da adolescência no Brasil. A iniciativa de militantes políticos, de técnicos de instituições governamentais e não-governamentais e de juristas reformadores, entre outros atores sociais (cf. Alvim, 1995) permitiu finalmente romper com o antigo modelo e, em 1990, foi promulgado O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei 8.069/90). Atualmente, o Estatuto é considerado, por um lado, uma das leis mais avançadas em matéria de proteção dos direitos de crianças e adolescentes, ao buscar se constituir não como um instrumento repressivo – na antiga tradição dos Códigos de Menores – mas como um instrumento que considera crianças e adolescentes como seres humanos em formação que também são sujeitos de direitos (cf. Relatoria, 2004). Por outro lado, surgem constantes críticas ao ECA, mesmo que muitas de suas disposições tenham encontrando obstáculos significativos para sua plena efetivação prática (cf. Falcão, 1996; Carvalho, 1995; Relatoria, 2004). Por exemplo, o Estatuto criou o Conselho Tutelar, órgão permanente, autônomo e não jurisdicional que deve existir em todo município para zelar pelos direitos das crianças e adolescentes e voltado para a aplicação de medidas de proteção ou socioeducativas, além de atender e aconselhar os pais e responsáveis. A implantação de tais conselhos nos municípios, no entanto, tem sido lenta e repleta de obstáculos, tanto organizacionais quanto culturais. Pesquisas mostram que, por vezes, os conselheiros tutelares ainda atuam segundo a antiga concepção assistencial e repressiva, sendo que, quando buscam agir de acordo com as diretrizes do ECA, não dispõem de programas nos municípios que garantam um atendimento realmente diferenciado da clientela (cf. Lemos, 2003)62. As citadas críticas dirigidas ao ECA desconsideram tais obstáculos e simplesmente denunciam o suposto caráter por demais liberal do Estatuto, o que levaria principalmente à impunidade generalizada dos adolescentes infratores. Tais críticas são sempre acompanhadas por propostas que defendem a necessidade de que o tema volte a ser tratado como um problema de segurança pública, com a necessária repressão policial 62

Sobre as ambiguidades das medidas sócio-educativas propostas pelo ECA, consultar também Paula (2004)

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e a reclusão dos infratores. Também os meios de comunicação têm dado grande destaque a atos de violência cometidos por (ou mesmo muitas vezes apenas supostamente atribuídos a) adolescentes, geralmente pobres, destaque esse seguido pela defesa da redução da idade penal como principal alternativa frente ao suposto crescimento da criminalidade juvenil. O assassinato de dois jovens em novembro de 2003 em São Paulo, do qual participou um adolescente conhecido como “Champinha”, e a morte de uma criança no Rio de Janeiro, em fevereiro de 2007, cometida por um grupo de jovens e que contou igualmente com o envolvimento de um adolescente, são dois exemplos de crimes brutais que reavivaram a discussão em torno da crítica ao ECA, já que este supostamente deixaria tais criminosos impunes63. Como em outras discussões realizada no Brasil nos anos recentes, que envolvem temas relativos à justiça criminal e às políticas de segurança pública, corre-se o risco de – a partir de um debate pouco qualificado e repleto de argumentos falaciosos – serem tomadas medidas populistas, que podem implicar em retrocesso em relação aos avanços que o país obteve nos últimos anos no âmbito da expansão da cidadania e da consolidação da democracia no país. No caso dos debates em torno do ECA, uma perspectiva histórica, que recupere como foram formuladas e implementadas legislações e políticas voltadas para a infância e adolescência pobre ou em conflito com a lei, pode ajudar a melhor compreender o que está em jogo no debate atual sobre o tema.

Da Roda dos Expostos ao Código de Menores64

É já no final do século XIX que começa a surgir no Brasil uma preocupação mais sistemática com o destino da infância e da adolescência pobre nas grandes metrópoles e com o papel que o Estado deveria desempenhar com respeito a este setor da população. Anteriormente, na Colônia e no Império, já existiam iniciativas institucionais voltadas para amparar as crianças rejeitadas pelas famílias, chamadas na época de “expostos” ou “enjeitados”, pois eram geralmente deixadas na “Roda dos 63

Sobre o debate em torno do ECA, desenvolvido na imprensa a partir do primeiro crime citado, consultar Arruda (2004). Acerca do segundo caso, consultar Folha de São Paulo em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0902200701.htm. 64 Aqui são reproduzidas idéias originalmente desenvolvidas em Alvarez (1989).

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Expostos”  aparelho de madeira que garantia a manutenção do segredo da identidade daquele que abandonava a criança (cf. Gonçalves, 1987). As primeiras Rodas foram instaladas em Salvador e no Rio de Janeiro por volta de 1700, embora as primeiras referências aos expostos sejam do século XVII (Mesgravis, 1972; Gonçalves, 1987). O mecanismo da Roda e os asilos que dela se utilizavam configuravam um tipo de assistência privada à infância, inspirada na caridade religiosa e voltada sobretudo para a regulação dos desvios da organização familiar colonial. Essa forma de equacionamento institucional do problema da infância entrará em crise ao longo do século XIX, quando passa a sofrer o ataque principalmente da medicina higiênica, que então se consolidava no Brasil. Os higienistas denunciam principalmente as altas taxas de mortalidade dos enjeitados nas instituições que se serviam das Rodas (Gonçalves, 1987). Paralelamente às críticas levadas a cabo pelo saber médico, as mudanças nas condições de vida das crianças e adolescentes pobres nos grandes centros urbanos no final do século XIX colocavam novas urgências que escapavam totalmente aos objetivos perseguidos pela assistência caritativa e religiosa. A abolição, a imigração e o acelerado processo de industrialização aumentaram significativamente o contingente de crianças e jovens pobres que se lançavam nas ruas das grandes metrópoles à procura de atividades que lhes garantissem o sustento próprio ou o de suas famílias. No trabalho industrial, por exemplo, a utilização da mão-de-obra infantil e juvenil é bastante intensa desde o advento da República. Com o avanço da industrialização, nas décadas seguintes, o emprego dessa mão-de-obra torna-se generalizado (Pinheiro, 1981). Principalmente na indústria têxtil, a mão-de-obra menor e a mão-de-obra feminina cada vez mais ocupam lugar de destaque na composição da força trabalho industrial (Moura, 1982), o que não só aumentava o exército industrial de reserva mas também representava uma dificuldade a mais para a organização dos trabalhadores (Hardman, 1982). A imprensa operária passa então a denunciar principalmente a incompatibilidade entre as terríveis condições de trabalho na indústria nacional e a natureza ainda frágil e desprotegida da infância (Braga, 1993) e a reivindicar a necessidade de o Estado regulamentar as condições do trabalho infantil. As prioridades das elites republicanas no mesmo período são, no entanto, outras. A maior presença de crianças e adolescentes pobres na cena urbana, além de renovar a

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preocupação com a necessidade de assistência aos “abandonados”, traz uma nova preocupação, compatível com o temor cada vez maior das elites em relação ao crescimento urbano acelerado – a preocupação referente ao aumento da criminalidade precoce (Adorno, 1990). Tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo, as autoridades republicanas passam a temer não apenas que haja um crescimento da criminalidade infantil e juvenil, mas também que esse aumento da delinquência precoce leve a uma progressiva degeneração social. Em São Paulo, o jurista e senador Paulo Egídio (1842-1906), por exemplo, que na última década do século XIX irá propor uma ampla reforma penitenciária, que serviria de base para um projeto mais ambicioso de reorganização da própria sociedade, coloca como uma das preocupações centrais referentes à manutenção da ordem social a questão caracterizada como da “vagabundagem infantil” que poderia levar à delinquência (Egídio, 1893, p.588). Por sua vez, Cândido Mota (1870-1942), que desempenhou entre outros cargos o de delegado na capital paulista no governo Campos Sales, comparando os dados acerca da criminalidade na capital entre os anos de 1894 e 1895, manifesta espanto com o grande aumento de “menores” criminosos: “A criminalidade dos menores aumentou a olhos vistos. Em 1894 o número de criminosos de 9 a 20 anos era apenas de 59, ao passo que neste ano se elevou a 97, isto é a 60% a mais! (...)” (apud Mota, 1909, p.12). Preocupado com esta situação, Cândido Mota se empenhará numa cruzada pela criação de instituições especiais para menores moralmente abandonados e criminosos, campanha que levou à criação do Instituto Disciplinar em 1902. O Instituto foi ampliado em 1906, dentro da campanha de combate à vadiagem levada a cabo pelo secretário de justiça, Washington Luiz (Fausto, 1984, p.41) e, em 1915, os resultados alcançados pela instituição em termos de implantação do ensino profissional para os menores eram avaliados positivamente pelas autoridades (Cruz, 1987, p.126) Deste modo, na virada do século XIX e início do século XX, vão se constituindo discursos e práticas que equacionam a situação de vida das crianças e adolescentes pobres das grandes cidades do país sobretudo como um problema referente à “defesa social”. A criação de leis e mecanismos institucionais voltados para esse segmento da população se colocava como uma urgência devido ao perigo potencial do crescimento da criminalidade precoce. No interior desse discurso, as ações ilícitas de crianças e adolescentes, ou mesmo a simples presença das crianças pobres nas ruas, apontam todo o tempo para a

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ameaça de um crescimento incontrolável da criminalidade futura, de uma desagregação social progressiva, fruto da ausência de uma política preventiva voltada para as crianças e jovens moralmente abandonados. As questões da educação e da regulamentação do trabalho de crianças e adolescentes, em contrapartida, são deslocadas para segundo plano. O discurso dos juristas da época acerca do problema da menoridade privilegia, portanto, não a extensão do direito à educação para o conjunto da população pobre, nem a abolição ou regulamentação do trabalho precoce, mas sim a criação de leis e de instituições “assistenciais e protetoras” que teriam por objetivo maior impedir o desenvolvimento da criminalidade. Consolida-se paulatinamente um novo modelo jurídico de “assistência e proteção aos menores” e, igualmente, um novo tipo de institucionalização da infância e da adolescência por parte do Estado brasileiro. Uma institucionalização muito mais ampla do que as antigas formas (como a dos expostos), e que passa a visar todos os menores em estado ou em perigo de abandono, o que aumenta efetivamente a clientela visada para todo o contingente das crianças e adolescentes das classes pobres e, virtualmente,

para

todas

as

crianças

e

adolescentes

da

sociedade.

Uma

institucionalização que tem em seu horizonte não apenas assistir gratuitamente os desafortunados, mas, sobretudo, combater a delinquência, fruto do abandono, e criar, assim, cidadãos saudáveis, tanto moral como fisicamente. O Código de Menores de 1927 será a cristalização de todo esse processo, ao definir principalmente um tratamento jurídico-penal especial para certos segmentos da população considerados potencialmente perigosos, aos quais eram reservadas medidas disciplinares e moralizadoras (cf. Alvarez, 1989). Assim, o Código estabelece medidas de proteção e assistência, dirigidas para uma clientela ampla, formada por crianças e adolescentes que, devido à ausência ou deficiência dos cuidados dos pais ou responsáveis, se encontram em estado de abandono moral ou material. Essa clientela inclui: as “crianças de primeira idade”, que estão fora da casa do pai ou responsável; os “infantes expostos”, encontrados em estado de abandono; os “menores abandonados”, quer aqueles que não tenham habitação certa, sem meios de subsistência ou em estado de vadiagem, mendicidade ou libertinagem, quer os maltratados pelos pais ou responsáveis, ou que tenham os mesmos condenados pela justiça ou incapacitados; os “vadios, mendigos e libertinos”, refratários ao trabalho ou a educação, ou que exerçam ocupações imorais ou proibidas, sem domicílio fixo e

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vagando pelas ruas. Todas as crianças e adolescentes que se enquadrem em alguma dessas categorias, passam a ser alvo da tutela do Estado, que assume, através da assistência pública e do juízo de menores, a proteção da vida, da saúde e da moralidade desses indivíduos. Mas é a questão da delinquência que dá unidade às categorias anteriormente citadas, pois todas trazem em comum a possibilidade do desenvolvimento do vício e do crime. E frente aos menores delinquentes, a própria ação penal deve ser, segundo o Código, profundamente modificada. A começar, em relação aos menores de 14 anos, que ficam totalmente excluídos do processo penal, como coloca o artigo 68 do Código: “O menor de 14 anos, indigitado autor ou cúmplice de fato qualificado crime ou contravenção, não será submetido a processo penal de espécie alguma; (...)”. Após o exame do estado “físico, mental e moral” do menor, bem como da situação “social, moral e econômica dos pais ou tutor ou pessoa em cuja guarda viva”, esse será encaminhado pela autoridade competente para asilos, casas de educação ou escolas de preservação, ou entregue novamente aos pais ou tutores, dependendo da situação em que se encontre. Os maiores de 14 anos e menores de 18 anos, por sua vez, ficam sujeitos a um processo especial, como explicita o artigo 69: “O menor indigitado autor ou cúmplice de fato qualificado crime ou contravenção, que contar mais de 14 anos e menos de 18, será submetido a processo especial (...)”. Esses

menores,

após

serem

igualmente examinados, devem ser recolhidos a escolas de reforma ou, em casos de crimes graves, enviados a estabelecimentos para condenados de menor idade, ou ainda, em falta destes, a uma prisão comum, mas com separação dos condenados adultos. Pois, em qualquer caso, nenhum menor de 18 anos pode ser recolhido junto aos presos comuns (art. 86). As mudanças na forma do processo também são igualmente radicais, pois este passa a ser secreto, só podendo ser admitidas nas audiências as pessoas necessárias ao processo ou previamente autorizadas pelo juiz (art. 89). Também passa a ser proibida qualquer tipo de publicidade em relação aos atos, audiências e decisões tomadas durante o processo, com exceção das sentenças, que podem ser publicados sem a identificação do menor (art. 89). O aspecto a ser ressaltado em relação às mudanças definidas pela nova legislação, no entanto, é que, apesar de garantir algumas medidas de caráter mais assistencialista para a população pobre e regulamentar o trabalho de crianças e adolescentes, o Código de 1927 não rompia com a tendência de restrição dos direitos de cidadania para o conjunto da população. Pelo contrário, o que o Código definia era um

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tratamento jurídico-penal especial para certos segmentos da população considerados potencialmente perigosos, aos quais eram reservadas medidas normalizadoras e moralizadoras. Os desdobramentos posteriores da legislação da menoridade não deixam dúvida a este respeito pois, quando a questão do trabalho dos menores deixou de ser regulada pelo Código, passando à Consolidação das Leis de Trabalho em 1943 (Braga, 1993), permaneceram apenas os aspectos relativos ao abandono e à delinquência que, como foi percebido já nas décadas seguintes, não retiravam os menores do campo penal65 mas implicavam

sobretudo

na

estigmatização

da

infância

e

juventude

pobre,

institucionalmente condenada, desde então, à possibilidade da delinquência. Muito mais, portanto, que uma lei que garantisse direitos à população pobre, o Código reuniu principalmente um conjunto de dispositivos legais a partir dos quais o Estado poderia tutelar as crianças e adolescentes que potencialmente poderiam se tornar criminosos, ao garantir, em contrapartida, procedimentos penais especiais, mais adequados a evitar a impunidade e obter a necessária recuperação moral desses indivíduos. O Código de Menores de 1927 se constituiu, portanto, muito mais como um novo instrumento de defesa social do que como um instrumento de ampliação efetiva da cidadania.

Considerações Finais

A legislação sobre a menoridade, portanto, que esteve em vigência durante grande parte do século XX no país, configurou-se como um verdadeiro instrumento de violência institucional, ao estigmatizar crianças e adolescentes pobres e ao condená-los ao círculo vicioso que levava do abandono familiar à delinquência precoce. E, como já foi afirmado, o Estatuto da Criança e do Adolescente buscou justamente romper com esse modelo assistencial e repressivo, ao colocar em primeiro plano os direitos das crianças e dos adolescentes. As críticas atuais ao Estatuto desconsideram esse percurso histórico e também não desenvolvem uma avaliação mais sistemática das políticas adotadas para a infância

65

Ruy Pinho, por exemplo, ao comentar a questão várias décadas depois, afirma que o Código de 1927, embora tivesse pretendido livrar os menores de qualquer ação penal, na verdade continuava a tratar a questão em termos de direito penal (Pinho, 1958, p. 11).

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e juventude no país nos últimos anos66. Com relação ao tratamento dado aos jovens em conflito com a lei, corre-se o risco inclusive de um retrocesso ainda maior pois muitas das atuais propostas de revisão da legislação defendem um tratamento puramente punitivas da questão, tratamento este que foi criticado mesmo pelos juristas reformadores que criaram o antigo modelo assistencial e repressivo. Por exemplo, entre 1993 e 2004, foram apresentadas mais de vinte propostas de emenda constitucional (PECs) propondo a redução da idade da inimputabilidade penal, sendo que tal idade varia, nestas propostas, entre os dezesseis e os quatorze anos de idade (Campos, 2005). Algumas propostas recuperam a própria noção de “discernimento”, já que, de acordo com os argumentos apresentados, os adolescentes no mundo contemporâneo teriam plena capacidade de compreender os atos que cometem. Ora, a noção de discernimento foi questionada pelo jurista Tobias Barreto já no final do século XIX pois ele considerava que, em relação aos menores, não se deveria apenas indagar a responsabilidade ou não do criminoso mas igualmente o meio no qual estava inserido, além do que tal noção seria juridicamente por demais arbitrária (Barreto, 1926). Foi a partir de tal questionamento que os juristas brasileiros começaram a discutir a necessidade de uma legislação especial para os “menores”, discussão esta que culminou com a edição do Código de Menores de 1927. Ao retomar a noção de discernimento, os legisladores contemporâneos correm, deste modo, o risco de retroceder mais de um século no que diz respeito à legislação em torno da infância e da adolescência no país. Na verdade, valores mais amplos estão em jogo neste debate. Caldeira (2000) mostra como, a partir do início dos anos 80 do século XX, em resposta ao processo de democratização do sistema político e da expansão dos direitos da cidadania no país, alguns grupos começaram a organizar uma crítica sistemática aos direitos humanos, que passaram a ser definidos como “privilégios de bandidos”. Assim, em repostas às diversas iniciativas que buscavam restabelecer o estado de direito, ao propor, entre outras discussões, o controle dos abusos policiais e a melhoria das condições de encarceramento dos presos comuns, os adversários dos direitos humanos passaram a reivindicar punições mais severas para os criminosos em geral, aí incluindo também a defesa da pena de morte, das execuções sumárias e mesmo da tortura como formas de 66

Como exemplo de pesquisas recentes acerca das políticas voltadas para a infância e adolescência no Brasil, consultar Oliveira (2004) e Sales (2004).

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combater o crescimento da violência na sociedade. No contexto da transição para a democracia, todo um ideário de oposição aos direitos humanos emergiu como “resistência à expansão da democracia para novas dimensões da cultura brasileira, das relações sociais e da vida cotidiana” (Caldeira, 2000, p.375) Pode-se argumentar que, a partir da promulgação do ECA, esses mesmos adversários dos direitos humanos elegeram igualmente a nova legislação como um dos alvos privilegiados de suas críticas. A denúncia da suposta impunidade, decorrente do Estatuto, passou a ser parte do repertório de determinados políticos e de setores da imprensa, obtendo inclusive certo respaldo em setores da sociedade. No entanto, tal discurso pode simplesmente realimentar o ciclo de violência institucional a que estão submetidos as crianças e os adolescentes pobres em nossa sociedade. Em contrapartida, estudos mais aprofundados sobre as políticas adotadas para os jovens em conflito com a lei no país, bem como sobre as trajetórias tanto sociais quanto institucionais desses jovens podem contribuir para que o debate público sobre tais problemas seja mais qualificado, evitando-se propostas demagógicas que dificilmente darão resposta adequada a tais questões.

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Do Bacharelismo Liberal à Criminologia no Brasil67

Introdução

Entre os anos de 1991 e 1996, realizei meu doutoramento junto ao programa de pós-graduação em Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sob a orientação do professor Sérgio Adorno. Neste texto, busco rastrear as afinidades existentes entre meu trabalho em desenvolvimento na época e a trajetória de pesquisa de Adorno. Para isso, parto da discussão do livro Os Aprendizes do Poder, de Adorno (1988), originalmente tese de doutoramento defendida no ano de 1984 também na FFLCH-USP, sob a orientação do professor Gabriel Cohn, com o título “A arte da prudência e da moderação – liberalismo e profissionalização dos bacharéis na academia de Direito de São Paulo, 1827-1883”. Em seguida, discuto a influência das discussões realizadas por Adorno no citado livro em minha tese, posteriormente publicada com o título Bacharéis, Criminologistas e Juristas: saber jurídico e nova escola penal no Brasil (Alvarez, 2003). Trata-se, desse modo, de estabelecer sobretudo as conexões intelectuais existentes entre minha trajetória de formação na época e as questões que Adorno já desenvolvia como professor e pesquisador na Universidade de São Paulo. Os juristas como “intelectuais” Na atualidade, não parece adequado chamar de “intelectuais” os profissionais da lei. Como afirma Rogelio Pérez Perdomo, hoje as pessoas com formação jurídica são vistas sobretudo como detentoras de um saber especializado. Considera-se igualmente que as faculdades de Direito viabilizam uma formação considerada técnica e apenas aos juristas que refletem acerca da lei caberia uma aproximação com a categoria de intelectuais. Mas, ainda segundo o mesmo autor, na América Latina do começo do século XIX, não era de modo nenhum esse o horizonte. Pelo contrário, os graduados em Direito eram os letrados por excelência, vistos como portadores de um saber superior, já

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Publicação ainda no prelo, encomendada para fazer parte de uma coletânea de trabalhos orientados por Sérgio Adorno.

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que geral e pouco especializado, habilitados igualmente para falar e escrever bem (Perdomo, 2008). Advogados e juristas tiveram efetivamente ampla participação nos processos de independência e de formação dos Estados nacionais na América Latina. Nesse quadro, o Brasil não foi uma exceção, embora algumas particularidades em termos de desenvolvimento das carreiras jurídicas aqui se colocasse. Ao passo que, na América espanhola, os estudos jurídicos foram estabelecidos já no século XVI, no Brasil colonial o ensino jurídico permaneceu totalmente subordinado a Portugal, tanto no que diz respeito à legislação vigente, quanto à formação das burocracias locais e à produção e difusão das ideias jurídicas. A formação universitária dos estudantes brasileiros ocorria sobretudo na Universidade de Coimbra, sendo esta dependência da formação das elites locais um importante instrumento de subordinação política frente à metrópole (Venância Filho, 1982). Desse modo, a partir da Independência, a criação dos cursos jurídicos no país – em Olinda/Recife e em São Paulo – buscou criar condições para a formação de uma nova elite política local, embora paradoxalmente Coimbra tenha servido de modelo institucional para as faculdades brasileiras e a cultura jurídica portuguesa tenha permanecido como influência dominante no país, principalmente durante a primeira metade do século XIX (Machado Neto, 1969; Simões Neto, 1983). Outra particularidade brasileira consistiu no fato de que a dominância dos intelectuais do Direito prolongou-se ainda com a República, sendo que o ensino jurídico passou por importante renovação nas últimas décadas do século XIX, sobretudo com a reforma de Benjamim Constant, em 1891, que pôs fim ao monopólio de Recife e São Paulo e viabilizou a criação de faculdades livres em diversos estados, o que permitiu ampliar, ao menos potencialmente, o campo institucional de reflexão a respeito das ideias jurídicas no país. É certo também que, com a República, as faculdades de Direito perderam gradativamente a hegemonia em termos de formação política e cultural das elites locais, em proveito de uma maior especialização do ensino jurídico e de uma formação mais profissional dos bacharéis. Entretanto, ainda durante muito tempo, os profissionais do Direito permaneceram como os letrados por excelência, embora um novo eixo de competição no interior das elites tenha se colocado com a emergência dos “homens de ciência” nas primeiras décadas do século XX. A partir do final do século XIX, com a abolição e a República, diferentes grupos passaram a disputar a primazia da construção

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da nova sociedade – que na auto-imagem das elites se pretendia civilizada, urbana e industrial. A Medicina, a Educação, a Engenharia e mesmo a Literatura da geração “especializada” de 1920 irão ganhar visibilidade na construção do novo paradigma moderno: “a “arte do operatório”, dos engenheiros, médicos e educadores, vem sobrepujar paulatinamente a “arte retórica” dos bacharéis” (Herschman (1994, p.23). Pode-se especular se esse debate travado entre “homens de letras” e “homens de ciência” no Brasil das primeiras décadas do século XX (Schwarcz, 1993; Sá, 2006) não terminou por disseminar duradouros estigmas em relação aos bacharéis de Direito que, ao longo de todo o século XIX, haviam sido hegemônicos tanto na vida política quanto cultural do país. Se Perdomo, novamente ao considerar o conjunto da América Latina, afirma que ainda hoje seria necessário melhor esclarecer o papel dos juristas como intelectuais na formação dos Estados nacionais na região, no Brasil da década de 80 do século XX, com a transição democrática e a busca de afirmação do Estado de Direito, um novo impulso se colocava para as Ciências Sociais para compreender o papel do Direito e dos juristas não apenas na constituição das instituições políticas mas na própria vida social do país. Se Antonio Cândido (1956) já havia apontado para o papel dominante dos juristas no século XIX como intérpretes por excelência da sociedade brasileira, uma nova geração de pesquisadores se voltava agora para estudar o campo do Direito como espaço fundamental onde foram formulados modelos de análise e de intervenção na sociedade brasileira (cf. Corrêa, 1982, p.258). Nesse momento, o trabalho de Sérgio Adorno, Os aprendizes do poder, abria novas e interessantes possibilidades de análise. Se, até aquele momento, a Sociologia brasileira tinha conferido pouca importância às pesquisas que correlacionassem vida social e ordem jurídica, buscava-se justamente nesse livro adentrar nas condições histórico-sociais que permitiram a construção do saber jurídico no país, bem como restabelecer a complexidade das relações entre a sociedade e o Direito, para além de explicações que tomavam como única função do aparelho judiciário a repressão e que colocavam os profissionais da lei como categoria social diretamente associada aos interesses da classe dominante (Adorno, 1988).

Os aprendizes do poder

Adorno empreendeu um estudo de caso voltado para a análise do processo de formação cultural e profissional dos bacharéis na Faculdade de Direito de São Paulo no

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período de 1827 a 1883. Também, nesse estudo de caso, o paradoxo anteriormente citado, acerca do ensino jurídico no país a partir da Independência, ganhava evidência: embora a criação dos cursos jurídicos do país buscasse criar elites locais autônomas em relação à antiga metrópole, permaneceu, no entanto, a influência da cultura jurídica portuguesa no país. Desse modo, as novas escolas não surgiram, efetivamente, como locais por excelência de reflexão acerca do Direito, pelo contrário, o papel "ideológico" do ensino nessas instituições foi "(...) o de justamente nada ensinar a respeito de Direito" (Adorno, 1988, p.145). O ensino tradicional se sobrepôs quase totalmente à reflexão inovadora acerca da legislação e das instituições jurídicas. A ênfase do trabalho de Adorno consistia em mostrar que, na realidade, a formação política e cultural do bacharel ocorria para além do ensino formal na Faculdade de Direito. Como já havia afirmado Venâncio Filho (1982), o autodidatismo era uma das principais características dos juristas brasileiros, já que novas ideias artísticas, sociais e políticas eram discutidas pelos estudantes de Direito, principalmente a partir da segunda metade do século XIX, mas essa discussão ocorria fora das salas de aula e longe dos mestres. Ou seja, as faculdades de Direito no país se configuraram mais como espaços voltados para a formação cultural e políticas das elites do que como espaços de reflexão original acerca do Direito e da ordem jurídica. Para Adorno, no que dizia respeito especificamente à faculdade de Direito de São Paulo durante o Império, foi justamente a desilusão com o conhecimento jurídico ensinado em sala de aula que estimulou a criação de institutos e de associações acadêmicas, espaços efetivos de formação cultural e política dos futuros bacharéis. Tal formação foi “tecida nos interstícios dos institutos acadêmicos e do jornalismo literário e político” (Adorno, 1988, p.157). Tal pesquisa implicava o emprego de fontes não convencionais para o estudo da formação dos bacharéis, ou seja, que não se limitassem às relacionadas diretamente ao ensino jurídico formal do Império. Daí o emprego de fontes diversas como biografias, memórias históricas, ofícios, cartas, documentos oficiais variados e sobretudo a imprensa acadêmica da época. Por meio de tal material seria possível recuperar os principais debates econômicos, políticos, culturais, científicos, artísticos e morais com os quais se defrontava a elite liberal local (Adorno, 1988). E, ao analisar a militância política dos bacharéis por meio do publicismo acadêmico, ganhava contorno a ideia de que no largo São Francisco aprendia-se a ser liberal mas não democrático:

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(...) o contato dos bacharéis com o ideário liberal, resultado da introdução do jusnaturalismo nos primórdios do ensino jurídico em São Paulo, condicionou-lhes a ver as relações sociais como relações contratuais entre partes juridicamente iguais, porém individualizadas, dotadas de autonomia da vontade e integradas por vínculos de coordenação. Em outras palavras, um intelectual disciplinado para privatizar conflitos sociais e que, nessa condição, aprendeu a colocar o indivíduo e sua liberdade como motor coordenador da luta política, relegando a um plano secundário a autonomia da ação coletiva, questão central na idéia de democracia. Enfim, um intelectual preparado para, enquanto futuro profissional da atividade política, perpetuar a cisão entre liberalismo e democracia. (Adorno, 1988, p.27). De certo modo, a reflexão de Adorno não mostrava que o saber jurídico no Brasil era irrelevante mas sim que sua relevância encontrava-se em local inesperado. Se propriamente a reflexão jurídica e social não era relevante nas faculdades de Direito durante o Império, em contrapartida os bacharéis refletiram de forma intensa acerca das condições econômicas, políticas, sociais e culturais locais, em outros espaços de interlocução, como no periodismo acadêmico. Suas ideias não se encontravam “fora do lugar” mas revelavam as ambivalências de uma elite que buscava conciliar patrimonialismo e liberalismo em detrimento dos ideais democráticos. A análise do publicismo político acadêmico revelava ainda mais. Diante do crescimento

urbano

de São Paulo,

os

bacharéis

empreenderam

discussões

multifacetadas, não só voltadas para a arte de governar o Estado mas igualmente de administração da cidadania. Inúmeros temas discutidos, como o da moralização do espaço urbano, do lugar da família e da mulher na sociedade, da garantia da moralidade pública, dos modelos de cidadania, entre muitos outros, confirmavam que os bacharéis estavam atentos às transformações que se operavam não apenas no plano do Estado mas também da sociedade no Brasil no último quartel do século XIX. Longe da caricatura posterior do bacharel de saber retórico e vazio e das disciplinas jurídicas como conhecimentos puramente conservadores (Schwartzman 1987), o trabalho de Adorno revelava que existia uma verdadeira reflexão sobre as relações entre Direito e sociedade no interior do saber jurídico local, mesmo que essa reflexão ocorresse fora do espaço institucional da faculdade de Direito. Tal investigação abria tanto questões para a atualidade – já que a tensão entre Liberalismo e Democracia se recolocava naquele momento de redemocratização do sistema político brasileiro e de ampliação da cidadania – quanto numa perspectiva histórica. Desse último ponto de vista, novas questões poderiam ser colocadas a partir dos avanços de pesquisa obtidos em Os Aprendizes do Poder. Afinal, como poderia ser

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rastreada a posterior ação de bacharéis e juristas diante das transformações mais amplas que ocorriam no interior do saber jurídico nacional e da própria sociedade? De que modo, já no período republicano, seria possível caracterizar os novos papéis assumidos pelos profissionais do Direito, bem como as novas formas de intervenção na sociedade gestadas a partir do campo jurídico? Nos demais países da América Latina, já durante o transcorrer do século XIX, a incorporação do positivismo europeu pelas elites latino-americanas possibilitou toda uma recolocação dos temas jurídicos em chave diversa daquela da tradição liberal (cf. Perdomo, 2008), o mesmo tendo ocorrido no Brasil na passagem do século XIX para o XX. Novas ideias penetraram no debate jurídico local, permitindo reflexões inéditas acerca da

relação entre Direito e sociedade, sendo que Barros (1959) chegou a

denominar esse movimento de renovação intelectual como a “ilustração brasileira”. Se a presença do positivismo no debate local já há muito estava sendo investigada68, o impacto mais geral das ideias cientificistas no Brasil ainda podia ser mais bem explorado, sobretudo no campo do Direito. Afinal, um conjunto variado de ideias cientificistas, importadas sobretudo da Europa – tais como diferentes versões do evolucionismo, do materialismo, das teorias raciais etc. – igualmente se fizeram presentes e marcaram de modo significativo o debate intelectual acerca da sociedade brasileira, pelo menos até meados da década de 30 do século XX, quando se inicia o processo de institucionalização e autonomização das Ciências Sociais no país (Barros, 1959; Schwarcz, 1993). Tais ideias cientificistas penetraram também no debate jurídico local, sendo que o movimento que ficou conhecido como “Escola do Recife” exemplificava bem a relação entre a renovação intelectual pela qual passava o ambiente cultural brasileiro e a produção jurídica nacional. Independentemente da polêmica acerca do alcance efetivo e da pertinência da própria definição de "escola" para esse movimento de idéias (Alonso, 2002), novos horizontes se abriram para o debate das ideias jurídicas, ao alcançar tanto as discussões filosóficas mais amplas quanto áreas mais específicas, como o Direito Penal. A partir dessa ampliação dos horizontes intelectuais, a faculdade de Direito do Recife chegou a desempenhar o papel, que se esperava das escolas de Direito desde sua criação, de ser um centro de estudos também das Ciências Sociais e da Filosofia no Brasil (Venâncio Filho, 1982), mesmo que o conservadorismo do ensino tradicional

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Para um balanço bibliográfico dos estudos sobre o positivismo no Brasil, consultar Alonso (1996).

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ainda estivesse bem presente. Em São Paulo, por sua vez, se não há um movimento intelectual simbolicamente equivalente ao da Escola do Recife, percebe-se a renovação do saber jurídico principalmente a partir da influência cada vez maior do positivismo no interior dos debates. Essa influência esbarrou igualmente no conservadorismo da faculdade paulista, tanto que o positivismo penetrou muito antes no periodismo acadêmico, no qual já está presente no jornal A República em 1876,

do que na

Faculdade de Direito, onde só chega com o ingresso de Pedro Lessa no corpo docente em 1888 (Adorno, 1988). A Escola do Recife e o positivismo apareciam, desse modo, como importantes indicadores da renovação intelectual que perpassava o saber jurídico nas últimas décadas do século XIX. Na trilha aberta pela investigação de Adorno, seria possível indagar acerca do novo papel desempenhado pelos juristas a partir dessas transformações, bem como diante da concorrência crescente de outras categorias profissionais, como os médicos e engenheiros que, como já comentado, passavam a disputar com os juristas o protagonismos na construção da Nação. A análise de uma outra série de transformações, no entanto, também se abria para a discussão nas Ciências Sociais e na História das décadas de 70 e 80 do século XX no Brasil, sobretudo a partir do impacto das reflexões de Michel Foucault (1975). A investigação acerca da emergência da assim chamada “sociedade disciplinar” no Brasil na passagem do século XIX para o XX, sobretudo no que dizia respeito às cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, quer em termos da constituição da classe trabalhadora e das classes pobres em geral no horizonte do regime republicano, quer em termos da moralização dos costumes ou em termos da criação de novas instituições de controle e de combate da desordem urbana passaram a ser exploradas em inúmeras direções de investigação (Chalhoub, 1986; Rago, 1985; Lopes, 1985; Soihet, 1989; Netto, 1988; Londoño, 1991; Braga, 1993; Valladares, 1988; Cunha, 1986; Carrara, 1987; Barbosa, 1992; Sevcenko, 1984 ; Schindler, 1992), entre muitos outros. Novamente, Adorno já indicara, em Os Aprendizes do Poder, como os bacharéis da Faculdade de Direito de São Paulo haviam se voltado para temas como a moralização dos espaços urbanos. Em trabalho posterior (Adorno, 1990), investigara igualmente como o desdobramento de tais discussões havia levado a uma mobilização mais ampla das elites paulistas, nos últimos anos do século XIX, em torno da reforma social e moral dos indivíduos. A cidade, percebida pelas elites como locus por excelência da decadência moral, passava a ser alvo de ações diversas de reforma que buscavam

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enfrentar as adversidades dos espaços, dos tipos humanos, dos costumes e do ambiente por meio de medidas voltadas para classificar e ordenar a população, num contexto mais amplo de transição do trabalho escravo para o trabalho livre. A reconstrução dos vínculos dos indivíduos com as instituições e a consolidação do modelo jurídicopolítico contratual, assim como a gestão da pobreza urbana mobilizavam o campo do Direito mas, igualmente, da filantropia e da Medicina Social, bem como determinadas categorias sociais emergiam como alvos privilegiados de controle, como o criminoso, o louco e o menor (Adorno, 1990). Em trabalho de mestrado que desenvolvia paralelamente na época e sob a orientação da professora Lia Freitas Garcia Fukui, também do Departamento de Sociologia da USP, eu investigava justamente as ações e debates que, entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, sobretudo no contexto das cidades do Rio de Janeiro e em São Paulo, possibilitaram a construção do discurso jurídico e institucional da “assistência e proteção aos menores” que, por sua vez, desembocara na edição, em 1927, do primeiro Código de Menores do país (Alvarez, 1990). Embora filantropos, médicos e outros grupos das elites do período tenham se voltado para a discussão da questão do lugar de crianças e de adolescente na sociedade, principalmente a preocupação dos juristas no período com o suposto crescimento da “criminalidade precoce” nos grandes centros urbanos da época, havia levado à criação do primeiro Código de Menores, editado em 1927, no qual o termo “menor” passou a caracterizar o conjunto de crianças e de adolescentes pobres que, devido à situação de abandono moral e material em que se encontrava, estaria condenado ao trabalho ou à delinquência precoce. Novamente, tal discussão se colocava no horizonte político da época, num momento em que as críticas às políticas voltadas ao tratamento das crianças e jovens em conflito com a lei terminaram por levar à reconsideração da legislação da menoridade então vigente e à edição do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990). Mas, do ponto de vista analítico, o que chamava a atenção, a partir da investigação que desenvolvia no mestrado, era o novo papel protagonizado por juristas no período estudado, que passaram a rediscutir a atuação que o Estado deveria desempenhar frente aos desafios colocados pela ameaça do crime e da criminalidade. Para além do discurso liberal, era o discurso criminológico que ganhava força nas discussões jurídicas no país e que viabilizava essas novas formas de atuação.

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Caracterizar como as ideias criminológicas foram incorporadas nas discussões jurídicas no país, os novos papéis assumidos pelos profissionais do Direito a partir da discussão dessas ideias, bem como as novas formas de intervenção na vida social viabilizadas pela nova concepção da relação entre Direito e sociedade, tal foram as questões que busquei desenvolver no meu projeto de doutoramento, já sob a orientação de Sérgio Adorno.

A Criminologia na Europa

Na Europa, ao longo do século XIX, transformações nas práticas penais, bem como nas percepções e nas representações sociais, modificaram o estatuto do crime e da punição no interior da sociedade moderna. Como afirma Michel Foucault, no ritual penal, foram introduzidos novos objetos de conhecimento e de intervenção, objetos estes disputados por saberes emergentes, como a Psiquiatria, a Medicina Legal e, posteriormente, a Criminologia. A punição legal se deslocou da infração cometida para o indivíduo criminoso, o que duplicou e dissociou os objetos juridicamente definidos e codificados, que passaram a ser também objetos susceptíveis de um conhecimento “científico” (Foucault, 1977). A novidade da abordagem de Foucault sobre tais transformações consistiu sobretudo em não tomar as mudanças no campo penal como um simples progresso no âmbito das formas de conhecimento e como a inevitável humanização no âmbito das práticas penais mas como transformações complexas que possibilitaram a construção de novos objetos de conhecimento e de novas formas de “governo” dos homens. Nesse sentido, a investigação dos nexos entre saber e poder, tão exaustivamente desenvolvida por Foucault em diversos âmbitos de sua investigação histórica, mostrouse especialmente fecunda no registro penal, ao permitir explorar como os novos saberes “normalizadores”, como a Psiquiatria, as Ciências Humanas e a Criminologia, passaram a rivalizar com o Direito no que diz respeito ao dizer a verdade sobre o crime e a punição na modernidade. Embora não tenha estudado de forma mais aprofundada a emergência da Criminologia69, Foucault já apontava que tal saber tinha um papel particularmente 69

Tanto na Europa como no Brasil, entre o final do século XIX e início do XX, inúmeras foram as denominações empregadas para caracterizar essa reflexão sobre os anormais que então emergia na

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utilitário e de justificação “científica” do novo poder disciplinar voltado para a transformação dos indivíduos (Foucault, 1981), saber destinado ao poder, mais valorizado pela sua utilidade política e administrativa do que por sua exatidão científica, “onde o que está em jogo não é a compreensão dos seres humanos envolvidos, mas trata-se de conhecê-los para controlá-los” (Garland, 1999, p.73). Desse modo, as ideias desenvolvidas por autores como Cesare Lombroso e seus seguidores na segunda metade do século XIX podem ser situadas no contexto mais amplo de emergência dos novos saberes sobre os “anormais” e da rede institucional complexa que, entre a Medicina e a Justiça, buscava garantir a defesa da sociedade (Foucault, 2002). Sem dúvida, a história da Criminologia não começa no fim do século XIX com Cesare Lombroso (1835-1909) mas deita raízes mais profundas na história das ciências médicas na Europa desde o final do século XVIII, sendo o autor italiano sobretudo um herdeiro que soube muito bem condensar os ensinamentos da Frenologia, da Antropologia, da Medicina Legal e do alienismo dos dois primeiros terços do século XIX (Mucchielli, 1994). Mas as ideias de Lombroso permaneceram durante muitos anos como temas obrigatórios nas discussões jurídico-penais, o que se deve tanto ao caráter reducionista e simplista dos argumentos propostos – o que facilitava a divulgação para um público mais amplo – quanto ao fato de que o fim do século XIX correspondeu, na Europa, a um momento forte de institucionalização da Criminologia no ensino universitário, então em plena expansão, em revistas exclusivamente consagradas a essas questões e na organização de encontros internacionais como os Congressos Internacionais de Antropologia Criminal. Resumindo a discussão que se travava sobretudo na Europa a partir da segunda metade do século XIX, Lombroso, juntamente com Raffaele Garofalo (1852-1934) e Enrico Ferri (1856-1929) constituíram a assim chamada escola italiana de Criminologia, cuja ideia chave era de que a causa mais profunda da delinquência residia em anomalias corporais e mentais identificáveis nos indivíduos criminosos. Pretendia-se, desse modo, estabelecer uma abordagem científica a respeito do crime – também conhecida como escola positiva – em contraposição à escola clássica, desenvolvida desde o século

fronteira entre Direito e Medicina: Antropologia Criminal, Psicologia Criminal, Sociologia Criminal, Criminologia, Escola Italiana, Escola Positiva, Nova Escola Penal etc. Na verdade, tais diferenças de denominação revelam as lutas que se desenvolviam no sentido de monopolizar esse novo saber sobre o criminoso. Como tais conflitos não podem ser detalhados aqui, optei por empregar o termo Criminologia como a definição mais genérica para esse novo saber voltado ao conhecimento do homem criminoso.

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XVIII a partir das idéias de Cesare Beccaria (1738-1794) e Jeremy Bentham (17481832). Formado em Medicina e influenciado desde cedo por teorias materialistas, positivistas e evolucionistas, Lombroso, em especial, construiu uma teoria evolucionista, na qual os criminosos apareciam como tipos atávicos, ou seja, como indivíduos que reproduziam física e mentalmente características primitivas do homem. Sendo o atavismo tanto físico quanto mental, poder-se-ia identificar, valendo-se de sinais anatômicos, quais os indivíduos que estariam hereditariamente destinados ao crime. Ao longo de seus trabalhos, Lombroso incorporou à sua teoria do atavismo várias outras categorias referentes às enfermidades e às degenerações congênitas que ajudariam a explicar as origens do comportamento criminoso, acabando mesmo por considerar também as causas sociais em suas explicações. Mas ele nunca abandonou o pressuposto de que as raízes fundamentais do crime eram biológicas e que poderiam ser identificadas a partir dos estigmas anatômicos dos indivíduos. Em termos gerais, portanto, Lombroso reduziu o crime a um fenômeno natural, ao considerar o criminoso simultaneamente como um primitivo e um doente. O livro mais importante de Lombroso, L'Uomo delinquente, foi publicado pela primeira vez em 1876. Esse trabalho, no qual Lombroso desenvolve suas principais ideias acerca das raízes do crime, foi várias vezes reeditado na Itália e traduzido em diversos países europeus. O livro ganhou notoriedade a partir da segunda edição italiana em 1878, e com as traduções em francês e alemão, publicadas em 1887, passou a ser amplamente conhecido também no exterior. Ao longo das cinco edições em italiano, o livro foi sendo ampliado por Lombroso que, a cada publicação, adicionava novos dados antropométricos para confirmar suas teorias. Os diversos congressos de Antropologia Criminal, realizados no final do século XIX e início do século XX na Europa, mostram bem a medida do grande interesse que esses estudos despertaram não apenas entre os especialistas mas também entre os leigos em sua época. O primeiro congresso, realizado em Roma em 1885, representa o ápice da carreira de Lombroso e da escola italiana de Criminologia. Mas é também ao longo desses congressos que começam a surgir algumas das principais resistências às novas ideias penais, manifestas sobretudo pelos adeptos da assim chamada escola sociológica de Lyon, liderada pelo médico francês Alexandre Lacassagne (1843-1924), que enfatizava o meio social como “caldo de cultura” do crime (apud Darmon, 1991, p.91). Mas, de fato, as ideias de Lacassagne estavam igualmente distantes de uma abordagem

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sociológica das questões relativas ao crime e à punição e muito mais próximas de concepções que enfatizavam igualmente as características hereditárias do crime (Mucchielli, 1998). Críticas mais significativas aos trabalhos de Lombroso e às teorias da Antropologia Criminal partiram, em contrapartida, de Gabriel Tarde (1843-1904) e de Émile Durkheim (1858-1917). Assim, no início do século passado na Europa, as ideias básicas de Lombroso já enfrentavam amplo descrédito. E é, paradoxalmente, nesse momento que elas encontrarão nos países latino-americanos “verdadeiros eldorados da nova escola” (Darmon, 1991). Se Lombroso não pode ser tomado ingenuamente como o “herói fundador” da Criminologia, no Brasil será igualmente em torno de seu nome que as idéias desenvolvidas a partir da noção do criminoso nato serão discutidas e irão influenciar as políticas de controle do crime.

A Criminologia no Brasil

A caracterização de como os debates criminológicos foram incorporados ao horizonte intelectual brasileiro colocava, no entanto, desafios metodológicos já antecipados anteriormente. Na Europa, os debates em torno da Criminologia se desenvolveram em congressos e revistas científicas e a Criminologia ocupou espaço institucionais definidos em universidades e laboratórios de pesquisa. Por exemplo, na França, os estudos voltados aos fenômenos criminais se cristalizaram sobretudo a partir da Escola de Lyon, dirigida pelo já citado Alexandre Lacassagne, bem como da revista por ele fundada, Archives de l´Anthropologie Criminelle (1886-1914); dos estudos de Gabriel Tarde, no Collège de France; das reflexões desenvolvidas na Société Générale des Prisons, frequentada principalmente por juristas (cf. Durkheim, 1975; Kaluszynski, 1996). No Brasil, em contrapartida, se as faculdades de Direito no país não se configuravam necessariamente como espaços por excelência de reflexão original acerca do Direito e da sociedade brasileira, seria necessário rastrear outros espaços de formação cultural e política das elites para melhor compreender como o discurso criminológico foi incorporado ao debate local. Se tais espaços institucionais locais eram ao mesmo tempo mais rarefeitos e difusos – ou pelo menos ainda não tinham sido efetivamente mapeados pelos pesquisadores –, a opção metodológica adotada em meu estudo consistiu em não

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restringir a pesquisa ao ensino jurídico no período mas igualmente investigar como o discurso criminológico emergiu e circulou em múltiplas direções, a partir do levantamento em livros especializados ou de divulgação para um público mais amplo, em revistas jurídicas, bem como a partir da recuperação de trajetórias profissionais e de reformas legais e institucionais baseadas nesse novo discurso. Rastrear as discussões acerca da Criminologia no país e seus efeitos, ao longo da Primeira República, com ênfase no seu impacto no campo do Direito, tal foi a opção que adotei em minha investigação do doutorado. Nas últimas décadas do século XIX, começou a recepção da Criminologia no país. Pelo lado dos juristas, João Vieira de Araújo (1844-1922), lente da Faculdade de Direito do Recife, foi provavelmente o primeiro autor a se mostrar informado a respeito das novas teorias criminais, ao comentar as ideias de Lombroso em suas aulas na Faculdade do Recife e também em textos sobre a legislação criminal do Império. Outros comentadores, no entanto, atribuem a Tobias Barreto esse mérito. E, realmente, no mesmo ano de 1884 em que João Vieira publicou seus trabalhos acerca da legislação criminal do Império, Tobias Barreto, em seu livro Menores e Loucos, fazia referências ao L’Uomo delinquente, ao discutir a necessidade de diferenciação das diversas categorias de irresponsáveis no campo penal. De qualquer modo, após essa recepção pioneira no Recife, inúmeros outros juristas, ao longo da Primeira República, passaram a divulgar as novas abordagens “científicas” acerca do crime e do criminoso: Clóvis Beviláqua, José Higino, Paulo Egídio, Raimundo Pontes de Miranda, Viveiros de Castro, Aurelino Leal, Cândido Mota, Moniz Sodré de Aragão, Evaristo de Moraes, José Tavares Bastos, Esmeraldino Bandeira, Lemos Brito, entre outros, publicam artigos e livros em que são discutidos os principais conceitos e autores da Criminologia e da escola penal positiva. Alguns se tornam entusiastas das novas teorias penais, outros censuram o exagero de algumas colocações consideradas radicais, mas a grande maioria toma as novas discussões no campo da Criminologia como temas obrigatórios de debate no interior do Direito Penal (cf. Alvarez, 2003). Pelo lado dos médicos, Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) foi um dos mais importantes adeptos das ideias da Antropologia Criminal de Lombroso no Brasil. Já no mesmo ano de 1894, em que diversos juristas publicaram livros de divulgação das novas idéias criminológicas, Nina Rodrigues se aventura também nesse debate, ao divulgar um ensaio de “psicologia criminal” intitulado As Raças Humanas e a

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Responsabilidade Penal no Brasil (Rodrigues, 1938). Nesse texto, Nina Rodrigues expõe, com uma coerência espantosa, as principais consequências, no campo jurídicopenal, que se poderiam deduzir da aplicação rigorosa das ideias da Antropologia Criminal ao contexto nacional. Posteriormente, muitos de seus autodenominados discípulos irão trilhar o mesmo caminho, tais como Afrânio Peixoto, Arthur Ramos e Leonidio Ribeiro. Ao longo de todo o período estudado, médicos e juristas irão estabelecer relações por vezes de aliança, por vezes de conflito, nesse novo campo de conhecimento e atuação voltado ao homem criminoso. Além de abrir caminho para uma maior penetração da Medicina no campo do Direito, a divulgação das ideias da Antropologia Criminal e da Criminologia também contribui para o desenvolvimento da Medicina Legal no país, embora esta acabasse se voltando paulatinamente para questões mais técnicas, ao deslocar sua atenção dos comportamentos morais para as práticas periciais (Antunes, 1999). Em termos do saber jurídico, foco de minha tese de doutoramento, será no entanto o discurso da nova escola penal que ganhará ênfase. Se, no Brasil, a partir da segunda década do século XX, os debates mais acirrados em torno das doutrinas criminológicas paulatinamente perdem força, consolida-se em contrapartida, no interior do saber jurídico o discurso da nova escola penal, baseado em noções como as de defesa social, de individualização das penas e de indeterminação das sentenças. Os juristas adeptos da Criminologia passam, a partir desse momento, a buscar principalmente os dispositivos jurídico-penais capazes de dar conta dos grupos de indivíduos que escapam aos dispositivos jurídicos contratuais, como os loucos, as mulheres e os menores. A partir dos ensinamentos criminológicos, foram pensadas assim reformas jurídicas e institucionais amplas, que acabaram forçando os limites aos quais o liberalismo havia circunscrito o papel do Estado no país, já que se esperava que o Estado ampliasse seus poderes de intervenção e controle frente à sociedade. Nesse quadro, a legislação da menoridade, já estudada anteriormente, podia muito bem ser interpretada como o desdobramento mais significativo dessa nova estratégia, pois, com ela, o Estado tomava para si a tutela de todos os indivíduos, menores de 18 anos que, devido ao abandono moral ou material, representassem algum perigo para a sociedade, mesmo que ainda não tivessem cometido crimes. Desse modo, virtualmente todos os indivíduos pertencentes à pobreza urbana passavam a ser objetos de medidas jurídicopenais voltadas não mais apenas para a punição e exclusão dos criminosos, mas sim para a recuperação e a normalização dos desviantes da ordem social. O Código de

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Menores, portanto, atribuía ao Estado novas funções de intervenção e tutela que excediam os limites colocados pela doutrina liberal. Os juristas do período da Primeira República pareciam temer sobretudo que, frente à crescente diversificação social, perceptível principalmente nos grandes centros urbanos, os ideais da escola clássica se mostrassem ou totalmente insuficientes, diante dos muitos fatores de dissolução social que então se apresentavam, ou mesmo perigosos, já que poderiam levar ao estabelecimento de uma indesejável igualdade jurídica entre os cidadãos da República. A Criminologia, pelo contrário, poderia fornecer, além de novos e diversificados instrumentos institucionais de controle da população, necessários à defesa social, a possibilidade de se pensar as desigualdades no interior do próprio campo da lei, ao estabelecer, em última instância, critérios diferenciados de cidadania. Tanto é assim que, entre os juristas estudados, não se defendia o ideal clássico de igualdade perante a lei mas se prescrevia sobretudo a necessidade de criação de dispositivos capazes de tratar desigualmente os desiguais. Portanto, o que foi pesquisado leva a crer que, no interior do saber jurídico nacional, efetivamente ocorreu, a despeito de algumas contraposições retóricas mais radicais, uma grande convergência entre o liberalismo não-democrático dos bacharéis e o discurso da desigualdade da criminologia e da nova escola penal. A Criminologia, enquanto discurso da norma no campo da lei, encontrou grande receptividade frente a uma tradição jurídica que não apenas deixava em segundo plano os ideais de igualdade da escola clássica, como também procurava avidamente critérios diferenciados de tratamento jurídico-penal para o conjunto da população. Os juristas estudados parecem ter percebido não apenas o potencial da Criminologia como instrumento de controle social mas principalmente que as novas teorias criminológicas poderiam ajudar a criar os dispositivos jurídico-penais capazes de incorporar à nova ordem política e social, porém de maneira subordinada, essa população que não se enquadrava plenamente na ficção da sociedade contratual, imaginada pelos liberais. Assim, a partir das ideias e dos dispositivos propostos pela nova escola, estabeleceu-se a possibilidade de tratar desigualmente os desiguais, ou seja, de se estabelecer critérios diferenciados e hierárquicos de cidadania. Neste sentido, o discurso da desigualdade da criminologia pôde ser perfeitamente conciliado com o liberalismo não-democrático dos bacharéis, já estudado por Adorno.

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Em conclusão, se trabalhos como os de Lima (1989), que estudou as práticas policiais no Rio de Janeiro em sua relação com os dispositivos processuais penais, e novamente Adorno (1995), ao pesquisar a discriminação racial na justiça criminal em São Paulo, entre muitos outros, haviam mostrado como a cultura jurídica nacional, apesar de formalmente igualitária, estava efetivamente baseada na atribuição de graus diferenciados de cidadania a setores distintos da população (Lima, 1989), a análise empreendida em meu trabalho mostrava como raízes dessa diferenciação da cidadania poderiam ser encontradas na emergência do discurso da Criminologia e da nova escola penal ao longo da Primeira República.

Novas perspectivas de análise

No âmbito da literatura internacional, em anos mais recentes, diversos estudos têm revisitado, em diferentes contextos nacionais, a emergência histórica da Criminologia sobretudo – mas não exclusivamente – a partir das origens da vertente lombrosiana (cf. Mucchielli, 1994; Wetzell, 2000; Gibson, 2002; Kaluszynski, 2002; Becker e Wetzell, 2004, entre outros). Provavelmente, as mudanças contemporâneas nos paradigmas da violência e da punição na contemporaneidade (cf. Bauman, 1999; Hallsworth, 2002; Wacquant, 2002; Wieviorka, 1997) têm estimulado essa revisão de como a modernidade pensou o crime e a punição e de como determinados saberes contribuíram para viabilizar os discursos e práticas no âmbito jurídico-penal que caracterizaram a punição no Welfare State, agora deslocada pela ameaça de uma nova cultura do controle (cf. Garland, 2001). No contexto local, Luis Ferla (2005) explorou como as ideias da Criminologia de matriz lombrosiana – especialmente as concepções biodeterministas acerca do crime e seus desdobramento no campo da Medicina Legal – desenharam em São Paulo um ambicioso projeto de intervenção social entre os anos de 1920 e 1945, projeto esse voltado para a patologização de determinados grupos sociais, sobretudo os trabalhadores urbanos, os menores e os homossexuais. A criação da Sociedade de Medicina Legal e Criminologia de São Paulo, em 1921, espaço voltado para congregar médicos e juristas para discutir questões referentes ao crime e à criminalidade, foi um importante marco institucional desse desenvolvimento das ideias criminológicas. Ao reunir médicos, advogados, promotores, delegados de polícia e burocratas, a Sociedade contou com nomes tais como Oscar Freire, Alcântara Machado, Franco da Rocha,

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Flamíneo Fávero, Franklin Piza, Alfredo Issa Ássaly, entre muitos outros. A presença dessas personalidades indica o envolvimento das elites paulistas com o surgimento da agremiação. Ainda como mostra o mesmo autor, nos anos seguintes, a sociedade ganhará

vitalidade,

com

seu

quadro

associativo

aparentemente

crescendo

continuamente. A sociedade patrocinará igualmente inúmeras semanas e congressos de Medicina Legal, de Criminologia e de áreas afins, sendo que um desses congressos contou inclusive, entre os seus inscritos, com o escritor Oswald de Andrade, o que indica o prestígio dos ideais cientificistas da Criminologia entre o público em geral e os homens de letras em particular. Também foram criados, inspirados pelas ideias criminológicas, laboratórios de Antropologia Criminal, como o da Polícia e o da Penitenciária do Estado. Além desses laboratórios, o saber criminológico e a Medicina Legal influenciaram, a partir de 1920, importantes reformas legais e institucionais, como a já citada promulgação do Código de Menores de 1927, a não criminalização do homossexualismo no Código Penal de 1940, o avanço e a diversificação do aparato repressivo, com a inauguração da Penitenciária do Estado, em 1920, o Manicômio Judiciário, no início dos anos 30, a Colônia Agrícola de Taubaté e o Presídio Feminino, já nos anos 40, bem como a generalização da identificação civil obrigatória, o instituto do livramento condicional e a criação das medidas de segurança no Código de 1940 (Alvarez, 2003; Ferla, 2005). Desse modo, a despeito do declínio das ideias bio-deterministas, após o fim da Segunda Guerra Mundial, as ideias criminológicas e suas aplicações no campo do Direito e da Medicina Legal deixaram marcas significativas no ordenamento jurídico brasileiro, nas políticas de segurança pública e mesmo nas mentalidades dos operadores do direito e dos administradores da ordem pública. Muitas linhas de pesquisa ainda podem ser desdobradas em inúmeras direções, a partir da análise de novas fontes ou de fontes já exploradas mas que podem ser estudadas sob novos ângulos. Busquei mostrar aqui como o trabalho de Adorno em torno do bacharelismo liberal em São Paulo abriu caminho para a discussão do papel dos juristas como intelectuais, bem como para o aprofundamento do estudo das relações entre Direito e sociedade no Brasil, sendo que minha investigação do doutorado buscou desdobrar tal discussão num momento posterior, a Primeira República, e num âmbito mais restrito de investigação, em torno das ideias jurídico-penais e da Criminologia. Revisitar tais discussões pode igualmente contribuir para a problematização da atualidade política e social do país, num momento em que o exercício do poder, nas suas mais diversas

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formas, parece limitar-se às discussões técnicas, obliterando assim o papel fundamental da “imaginação sociológica” de crítica em relação aos discursos e instituições que conformam a vida social.

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Tortura, História e Sociedade: algumas reflexões70

Suponho que, como carrasco itinerante, esteja acostumado a ser evitado. (Ou será que é só nas províncias que carrascos e torturados ainda são considerados sujos?) Olhando para ele, imagino como se sentiu na primeiríssima vez: será que, convidado como aprendiz a torcer a torquês ou girar o parafuso ou seja lá o que for que eles fazem, estremeceu ao menos um pouco ao saber que naquele instante estava ultrapassando o limite do proibido? Vejo-me imaginando também se ele tem algum ritual particular de purificação, realizado a portas fechadas, para habilitá-lo a voltar a comungar com outros homens. Será que lava as mãos com muito cuidado, talvez, ou troca toda a roupa; ou será que a Divisão criou novos homens, que conseguem passar sem inquietação do sujo para o limpo? J.M. Coetzee, À espera dos bárbaros

Introdução

Gostaria de iniciar minha exposição agradecendo aos organizadores o convite feito para participar desta mesa no 13º Seminário Internacional do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais71. Sem dúvida, trata-se de evento de extrema relevância na área e tenho grande satisfação em poder contribuir para o debate de hoje, voltado para o tema da tortura. Ao possibilitar a discussão pública deste e de outros temas ligados aos Direitos Humanos e às Políticas Públicas de Segurança, o IBCCrim contribui decisivamente para a Democracia no Brasil pois somente a partir do aprofundamento do debate racional será possível realizar as mudanças necessárias para o fortalecimento do Estado de Direito e a expansão da Cidadania em nosso país, em oposição às propostas demagógicas e às posições ideologicamente informadas, que ainda hoje com frequência dominam o debate nos meios de comunicação e mesmo nas conversas cotidianas da população. 70

ALVAREZ, M. C. Tortura, História e Sociedade: algumas reflexões. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 16, p. 275-294, 2008. 71 Mantive as linhas gerais de minha exposição oral, realizada por ocasião do Seminário, apenas tendo incluído alguns temas que surgiram ao longo do debate com o público. Muitas das questões aqui apresentadas estão apenas esboçadas, necessitando de posterior aprofundamento.

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Nesse sentido, a discussão da questão da tortura não poderia ser mais oportuna, embora seja um tema sem dúvida delicado e polêmico. Na verdade, trata-se de um tema tabu, que revela os mais sórdidos aspectos da condição humana e que coloca em xeque as conquistas civilizacionais realizadas até hoje pela humanidade. Em termos morais, se desde Beccaria ganhou força o consenso de que a tortura é algo bárbaro e desumano, a questão não foi ainda suficientemente explorada pela reflexão no âmbito da Filosofia Moral (cf. Sussman, 2005). A tortura envolve sempre a aplicação intencional de extremo sofrimento físico e psicológico contra indivíduos indefesos que já estão, de alguma forma, sob custódia de uma autoridade. Deste modo, a condenação da tortura não se dá exatamente nas mesmas bases morais de outras formas de violência, de crueldade e de degradação, pois deve levar em consideração o fato de que a situação de tortura é a total negação de um combate justo, apenas os derrotados podem ser torturados (cf. Shue, 1978). Assim, se ações como o homicídio ou a mutilação podem ser perpetradas de forma acidental e não planejada, não é possível acidentalmente ou inadvertidamente torturar (Sussman, 2005). Uma profunda relação de assimetria de poder se estabelece necessariamente entre as partes envolvidas, já que a vítima está em posição totalmente vulnerável diante do agressor, incapaz de fugir ou de opor uma efetiva resistência à violência perpetrada. A vítima encontra-se, deste modo, não só física e moralmente indefesa como também totalmente exposta à vontade arbitrária do torturador. Quando realizada como forma de interrogatório, a tortura não apenas fere e degrada mas coloca a própria vítima contra si mesma, obrigando-a a confessar segredos ou a se auto-incriminar, de tal modo que a tortura não apenas viola a autonomia da vítima mas implica num acréscimo de perversão:

A tortura não apenas prejudica ou danifica a capacidade de agir da vítima mas antes coloca essa capacidade contra si mesma, ao forçar a vítima a experimentarse como desamparada e ainda cúmplice de sua própria violação. Não é apenas um assalto ou uma violação da autonomia da vítima mas também uma perversão dessa autonomia, uma espécie de escárnio sistemático das relações morais básicas que um indivíduo estabelece tanto com os outros quanto consigo mesmo. Talvez seja por isso que a tortura pareça qualitativamente pior que outras formas de brutalidade e crueldade. (...) (Sussman, 2005, p. 30).72

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Todas as traduções apresentadas aqui são de minha autoria.

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A tortura terrorista, por sua vez, utilizada pelos governos para intimidar opositores – tanto mais brutal quanto maior o medo a ser disseminado na sociedade –, viola o princípio básico de que uma pessoa não pode ser simplesmente tomada como um meio para a obtenção de determinados fins (Shue, 1978). Finalmente, como forma de punição, a tortura expõe igualmente o condenado a um ritual incerto, cruel e degradante e que, quando realizado publicamente, convidava as massas a participar dessa crueldade, quer como espectadores, quer como participantes (Foucault, 1977). Independentemente de tal condenação moral, no entanto, não é possível furtar-se à constatação de que a tortura continua a ser praticada em todo o mundo em pleno século XXI, apesar da existência de tratados internacionais, gerais ou regionais, que a interditam e não obstante a presença de legislação ordinária no interior dos países voltada para o mesmo fim. O paradoxo da tortura no mundo contemporâneo consiste justamente no fato de que, embora a tortura seja – assim como o genocídio e a escravidão – moralmente condenada e amplamente combatida, as práticas de tortura continuam a ocorrer em todas as partes do mundo, quer em regimes democráticos, quer em regimes autoritários.

A tortura no mundo contemporâneo

Alguns pesquisadores na atualidade consideram mesmo que o emprego da tortura tornou-se muito mais comum ao longo do século XX, revertendo a tendência moderna de abolição da tortura, iniciada na Europa no século XVIII. Einolf (2007), por exemplo, considera que, embora os governos europeus tenham começado a banir a tortura já ao longo do século XVIII – sendo que em 1851 a tortura já era ilegal em toda a Europa –, houve um ressurgimento da tortura no continente no século XX, ressurgimento este devido sobretudo à ascensão dos regimes totalitários, comunistas e fascistas. Os regimes fascistas da Itália e Alemanha e seus aliados empregaram a tortura e outras técnicas de terror contra opositores políticos, prisioneiros de guerra, populações de territórios ocupados e membros de determinados grupos, como os judeus; os regimes comunistas da União Soviética e do leste europeu empregaram a tortura sobretudo contra opositores políticos (Einolf, 2007).

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Em outros continentes, a tortura foi amplamente empregada ao longo de todo o século XX, quer contra forças insurgentes, quer contra opositores políticos ou contra a população em geral. O que singulariza a prática de tortura ao longo do século XX, diferentemente de outros períodos históricos, é que ela foi conduzida quase sempre de forma extralegal, praticada sem regulamentação precisa e em segredo (Einolf, 2007). Tais considerações, acerca do crescimento da tortura no século XX e mesmo no início do século XXI, são sempre polêmicas, devido à dificuldade de obtenção de uma série de dados que permitam um efetivo acompanhamento e comparação das práticas de tortura nas mais diversas nações e em amplos períodos de tempo. Sem dúvida, a difusão dos Direitos Humanos no século XX teve um inegável impacto no combate à tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes. É inegável, no entanto, que, além da presença da tortura nos mais diversos regimes políticos da atualidade, preocupantes tendências efetivamente emergiram na virada do milênio, tendências estas que ameaçam o próprio consenso moral, construído a partir do final do século XVIII, em torno da condenação absoluta da tortura e estimulam o seu emprego – de forma supostamente legítima – em algumas situações de perigo iminente para a sociedade. Por um lado, ocorreu uma reconsideração da tortura e de outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes no âmbito das concepções e práticas de punição. Se, até meados dos anos 70 do século XX, as assim chamadas políticas de bem estar no plano penal baseavam-se sobretudo na retórica da recuperação dos criminosos, a partir de então pode-se perceber uma significativa inflexão tanto nas práticas e nas políticas quanto no próprio significado da punição para a sociedade contemporânea. Um novo paradigma punitivo emerge (Wacquant, 2001a, 2001b, 2002), voltado mais para a imobilização e neutralização dos criminosos do que para a correção e recuperação, paradigma este que retoma a concepção de que a pena implica necessariamente numa dose de sofrimento a ser vivenciada por aquele que feriu as leis da convivência humana. Tal redirecionamento coincide com a onda conservadora que, a partir da Grã Bretanha e dos Estados Unidos, redesenhou o jogo político mundial, inclusive com uma crítica acentuada às conquistas do Welfare State. O Estado Penal – estado que passa a encarcerar um número cada maior de indivíduos, a partir do endurecimento das políticas punitivas – substitui o Estado Social, já que a atrofia dos direitos sociais, por um lado, e a hipertrofia das políticas duras de controle social e o crescimento alarmante do

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encarceramento, por outro, são “transformações complementares e correlativas que fazem parte da instituição de um novo governo da miséria” (Wacquant, 2001a, p. 221). Em resumo, pode-se afirmar que a ascensão mundial desse novo paradigma punitivo, dessa nova cultura do controle (Garland, 2001), abriu fissuras no consenso iluminista em torno da condenação de qualquer forma de tortura e outras formas de tratamento ou penas cruéis, desumanas e degradantes, ao mesmo tempo em que o crescimento alarmante das taxas de encarceramento, igualmente em âmbito mundial (Christie, 2002) levou efetivamente à degradação das condições de vida nas prisões, expondo, com maior frequência, os condenados à tortura e outras formas de tratamento cruel, desumano e degradante. Se a assim chamada guerra contra o crime comum promoveu a reconsideração da tortura como forma de punição, por outro lado, a igualmente denominada guerra contra o terror levou à reconsideração da tortura como forma legítima de interrogatório em situações extremas, nas quais a vida de milhares de pessoas dependeria da obtenção de determinadas informações. Sobretudo nos Estados Unidos, o pensamento de que a tortura pode ser um instrumento apropriado para combater o terrorismo ganhou força não apenas nos debates políticos e legais mas igualmente no imaginário social. Tal reconsideração da tortura é geralmente defendida na forma do “ticking bomb scenario”. Trata-se de argumento empregado para colocar em questão a proibição absoluta do uso da violência em interrogatórios. O argumento, construído como um cenário possível, aponta para a situação em que um terrorista, sob custódia das autoridades, detém informações sobre um atentado iminente, que poderá matar milhares de inocentes. Coloca-se, então, a questão acerca da legitimidade ou não de se torturar o terrorista, para assim obter a informação e salvar a vida dos inocentes. O argumento baseia-se, sem dúvida, numa série de pressupostos falaciosos, que tornam o cenário descrito totalmente fantasioso: o plano de ataque é já de pleno conhecimento das autoridades; a pessoa em custódia é, com certeza, o perpetrador do ataque; ele possui a informação que pode impedir o atentado; com a tortura será possível obter a informação precisa, capaz de evitar o ataque etc. (Association for the Prevention of Torture, 2007). No entanto, o objetivo daquele que apresenta tal cenário e o coloca em discussão, consiste, evidentemente, em encaminhar os interlocutores para a

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consideração de que é possível abrir espaço para uma exceção legal da proibição incondicional da tortura. Já os inúmeros desafios e obstáculos que enfrentaria tal conduta de exceção, derivada do ticking bomb scenario, permanecem obscuros no debate: como restringir o uso da tortura a apenas esse tipo de situação? Como ter certeza que o terrorista em custódia é mesmo responsável pelo ataque? Qual a garantia de que, sob tortura, o terrorista daria a informação correta, capaz de evitar o atentado? Quantas vidas em jogo justificariam o emprego da tortura? Seria criado e mantido um grupo profissional de torturadores, treinados em técnicas específicas?73 Estes questionamentos mostram que a aceitação da tortura, mesmo em situações excepcionais, seria danosa tanto para a Democracia como para a garantia das liberdades individuais, sobretudo porque a experiência histórica comprova que, ao abrir-se uma exceção legal para o uso da tortura, esta acaba sendo empregada em muitas outras situações, que fugiriam ao controle de qualquer autoridade. Fica claro, deste modo, que o ticking bomb scenario não pretende apontar efetivamente para linhas possíveis de reflexão e ação mas sim abrir espaço, por meio da manipulação das reações emocionais diante da complexidade dos desafios contemporâneos, para uma crítica da proibição absoluta da tortura. Desde os atentados de 11.09.2001, tal cenário, além de ser cada vez mais comum nos debates políticos e legais, tornou-se igualmente tema de inúmeras séries televisivas e de filmes de ação. Deste modo, difunde-se, no imaginário global, a idéia de que apenas medidas extremas como a tortura podem fazer frente ao crescimento da insegurança no mundo contemporâneo e garantir a lei e a ordem. De forma mais alarmante ainda, não foi apenas no plano simbólico que a questão da tortura foi recolocada pois os métodos utilizados pelos Estados Unidos na prisão de Guantánamo – onde prisioneiros suspeitos de terrorismo foram encarcerados e interrogados sem nenhuma supervisão e numa situação jurídica totalmente indefinida – e as denúncias de tortura na prisão de Abuh Ghraib, no Iraque, efetivamente colocaram o emprego da tortura em novo patamar, em pleno século XXI. Enfim, por mais que tais discussões e avaliações em torno da presença da tortura no mundo contemporâneo sejam polêmicas, é certo que novos desafios se colocam para o pensamento e a ação. Se a abolição da tortura não é necessariamente uma conquista

73

Para a discussão detalhada destes aspectos, ver Association for the Prevention of Torture, 2007.

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incontornável da civilização, se o mundo contemporâneo vê renascer todo um imaginário e práticas que aparentemente haviam sido ultrapassadas pelos valores humanitários, uma compreensão mais aprofundada de tal fenômeno se torna urgentemente necessária.

A tortura a partir de uma abordagem histórica e sociológica

Com já foi mencionado, intelectuais e pesquisadores têm manifestado crescente preocupação em relação à permanência das práticas de tortura e à multiplicação de espaços de detenção não regulamentados nas sociedades contemporâneas, num contexto internacional de retração das políticas penais preventivas e de ascensão do assim chamado Estado Penal e de novas formas de controle social. De nada adiantaria, no entanto, naturalizar a tortura e considerá-la simplesmente como algo inerente à natureza humana, pois a análise histórica e sociológica mostra que existem padrões que indicam como, sob determinadas condições, as práticas de tortura decrescem e praticamente desaparecem em determinados períodos e países do mundo. Embora leis e tratados sejam de vital importância para combater a tortura, provavelmente não são suficientes e não basta apenas discutir a eficácia dos mecanismos jurídicos sem discutir as condições históricas e sociais que estimulam ou inibem tais práticas. Enfim, uma visão jurídica do problema pode – e deve – ser complementada por estudos que abordem a tortura como um fenômeno histórico e social. Tal abordagem empírica não implica, de modo algum, uma relativização moral do tema. Sem nenhuma dúvida, a tortura, o suplício, as formas extremas de sofrimento físico ou psíquico aplicadas a acusados para obter confissão ou informação, bem como os tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes devem ser veementemente condenados no âmbito de uma sociedade que se pretende democrática e civilizada. Pode-se indagar, no entanto, a partir de uma perspectiva temporalmente mais ampla, quais os padrões de desenvolvimento da tortura nas sociedades humanas? Em quais condições ela costuma ser aplicada com maior frequência? Em quais condições seu emprego é, em contrapartida, limitado ou totalmente abolido? Muitos estudos no âmbito da Sociologia e da História apontam que um mesmo conjunto de mutações históricas parece ter levado simultaneamente, no mundo moderno, a uma abolição, no âmbito formal, da tortura e das penas corporais e

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efetivamente a um recuo do emprego da violência direta nas práticas jurídicas e nas sociedades em geral. Por exemplo, o filósofo Michel Foucault, em seu conjunto de conferências intitulado A Verdade e as Formas Jurídicas, (Foucault, 1978) mostra como, desde as práticas judiciais, na Grécia antiga, até os ordálios, na Idade Média – em que provas corporais, físicas, consistiam em submeter uma pessoa a uma espécie de jogo, de luta com seu próprio corpo – e a pena de suplício no Antigo Regime, a violência direta sobre o corpo desempenhava um papel central na produção da verdade jurídica. Apenas com a modernidade, sobretudo no final do século XVIII e início do século XIX na Europa, com o advento de uma nova teoria penal, com autores como Beccaria e Bentham, mas sobretudo com a emergência da prisão como mecanismo generalizado de punição, é que os rituais tradicionais de tortura e punição corporal regridem ou perdem ao menos seu caráter público. Tal fenômeno é, no entanto, bastante complexo e não corresponde de modo nenhum a um simples processo de humanização das penas. Como desenvolve Foucault em outro livro, Vigiar e Punir (Foucault, 1977), o declínio do caráter supliciante das penas não foi uma simples vitória dos valores humanistas mas implicou em toda uma reorganização das formas de governo dos indivíduos e das populações no Ocidente, a partir das quais novas formas disciplinares de poder se espalharam nas mais diversas instituições. No âmbito penal, mesmo que a prisão disciplinar tenha se tornado a instituiçãochave das novas políticas criminais, permaneceu, ainda segundo o próprio Foucault, um fundo supliciante mesmo nas prisões modelo e nas práticas disciplinares mais austeras. Ou seja, não ocorreu uma simples substituição das penas corporais por penas mais “suaves”, mas sim um conjunto de deslocamentos, a partir do qual a pena de prisão se tornou a pena por excelência na modernidade, voltada sobretudo para a disciplina e a normalização dos corpos. O sociólogo Norbert Elias, por sua vez, busca explicar tais mudanças no âmbito das práticas jurídicas e penais da modernidade de um ponto de vista diverso. De acordo com o argumento de Elias (1994), o assim chamado processo civilizador seria marcado pela redução do uso da violência física e o incremento do autocontrole individual nas sociedades modernas. Com a emergência de uma autoridade centralizada e a construção paulatina do monopólio da violência pelo Estado, criam-se condições necessárias para uma ampla pacificação social, que atingirá também as práticas jurídicas e penais.

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A emergência de uma rede de interdependência entre os indivíduos também desempenha um papel crucial nessas mudanças, já que a violência só pode ser empregada como um método frequente de controle caso exista uma clara disparidade na distribuição do poder, diminuindo nas condições sociais nas quais o poder é mais equitativamente distribuído. Se a tortura, como foi visto anteriormente, baseia-se numa relação de extrema assimetria de poder que se estabelece entre o torturador e sua vítima, o crescimento da interdependência dos indivíduos na modernidade limitaria inevitavelmente as condições de seu exercício. O que há de comum nas considerações de Foucault e Elias é que ambos consideram que as mudanças modernas no âmbito mais específico da punição e no âmbito mais amplo do exercício da violência em geral podem ser explicadas em parte como resultado do conjunto das transformações políticas e sociais então em curso, bem como das transformações decorrentes no plano das mentalidades. Pune-se com menor crueldade porque a distribuição de poder na modernidade é menos assimétrica – basta lembrar como a condição de possibilidade do ritual do suplício, tão detalhadamente descrito por Foucault, é a total assimetria de poder entre o corpo do soberano e o corpo do criminoso. O Estado moderno, em contrapartida, tornaria o ritual de punição menos imprevisível e mais controlado, moderado e previsível, ao passo que a crueldade passa a ser vista como intolerável pelos indivíduos, quer no que diz respeito às interações com outros indivíduos, quer no que diz respeito à ação do Estado mesmo no emprego do monopólio da violência. A partir de tais diagnósticos, torna-se possível compreender as condições históricas e sociais que permitiram que o emprego da tortura fosse cada vez mais criticado e paulatinamente abolido na Europa, ao longo do século XIX, proibição que ao longo do século XX ganhou amplitude mundial. Igualmente seria esperado que a prática da tortura declinasse de modo decisivo em todo o mundo com a expansão da modernidade. Como explicar, no entanto, que ao longo do século XX, mesmo na Europa e igualmente no resto do mundo, a tortura continuou a ser amplamente empregada e que, no início do século XXI, mesmo as Democracias liberais tenham voltado a defender seu emprego contra suspeitos de terrorismo, prisioneiros de guerra e mesmo criminosos comuns?

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Einolf considera que, para explicar tal ressurgimento da tortura no século XX, faz-se necessária uma investigação mais aprofundada dos padrões mais gerais que governariam as práticas de tortura, padrões estes presentes ao longo da história e em sociedades distintas e que, ao serem identificados, permitiriam comparações através de diferentes culturas e diferentes momentos históricos. Para isso, ele parte de uma definição de tortura diversa da legal, 74 mais restrita, construída em termos puramente comportamentais e sem levar em consideração as questões de moralidade ou de motivação: (...) A tortura consiste num ato em que, intencionalmente, um sofrimento severo é aplicado numa pessoa por um agente público, durante o período em que tal pessoa está sob sua custódia ou o controle, sem que ocorra – ou tenha ainda ocorrido – um veredicto formal de culpa. (...) (Einolf, 2007, p. 103) A definição é igualmente restrita no aspecto em que exclui as punições corporais legalmente estabelecidas como forma de tortura, tais como os ordálios na Idade Média. Mas permitiria identificar, em contrapartida, por meio de uma abordagem histórica comparativa, os padrões gerais de emprego das práticas de tortura em diversas culturas e diferentes períodos de tempo. Ainda segundo o mesmo autor, quatro padrões poderiam ser, deste modo, discernidos:

1. A tortura é mais comumente empregada contra pessoas que não são membros integrais de uma sociedade, como escravos, estrangeiros, prisioneiros de guerra, membros de minorias raciais ou étnicas e grupos religiosos outsiders; 2. A tortura é mais raramente empregada contra os membros ou cidadãos de uma sociedade. Neste caso, duas condições especiais devem se aplicadas: a. A tortura é empregada apenas após um veredicto de culpa provável, e b. A tortura é apenas empregada em casos de crimes extremamente sérios, particularmente heresia e traição. 3. A tortura é mais comumente empregada quando o governo ou a sociedade percebem a si mesmos como estando em perigo. 4. A ascensão das normas de direitos humanos e o crescimento do número de estados democráticos liberais, tiveram um impacto significativo na redução da tortura. Democracias liberais por vezes se engajam na tortura, mas com frequência muitas vezes menor que outros estados, e quase nunca empregam a tortura contra seus próprios cidadãos. Quando se engajam na tortura, empregamna sobretudo contra não-cidadãos e sob condições de extremo perigo, como em resposta a ataques terroristas. (Einolf, 2007, p. 105-106)

74

Já que diferentes sociedades e sistemas legais empregam diferentes definições da tortura, de acordo com cada momento histórico.

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Estes padrões mais gerais, ainda segundo o autor, permitiriam explicar o crescimento da tortura ao longo do século XX. O crescimento em quantidade e intensidade dos conflitos militares, por um lado, teria estimulado o emprego mais frequente da tortura contra os prisioneiros de guerra e a população civil de territórios ocupados. Por outro lado, a prevalência de conflitos civis em estados divididos segundo linhas raciais, étnicas ou religiosas teria estimulado a tortura contra determinadas minorias. Finalmente, a crescente capacidade dos estados de monitorar as atividades de seus cidadãos também criaria condições para uma expansão da noção de traição e o consequente crescimento do emprego da tortura. O aspecto mais interessante no argumento de Einolf, entretanto, é que ele indica claramente que a cidadania geralmente protege os indivíduos contra a tortura, ao passo que é muito mais comum o emprego da tortura contra aqueles que não são considerados como membros integrais de uma determinada sociedade. Pode-se considerar, consequentemente, que, na cena contemporânea – na qual crescem as desigualdades econômicas e sociais, em que muitos estados nacionais entram em crise e não conseguem garantir o monopólio da violência em suas fronteiras diante das ameaças do narcotráfico e do crime organizado em geral, em que fluxos transnacionais de mão-de-obra expõem contingentes populacionais cada vez maiores ao arbítrio das autoridades que os recebem, assim como conflitos civis criam legiões de refugiados e a assim chamada guerra contra o crime e o terror serve de justificativa para inúmeros atos de exceção75 – o espectro da tortura retorna ameaçador, mesmo considerando-se os avanços legais realizados nos últimos anos.

A tortura no Brasil

No Brasil atual, o cenário com relação à tortura não é menos preocupante. Com o fim do regime autoritário e ao completar-se a transição democrática, esperava-se que as práticas de tortura decrescessem significativamente mas, na

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O filósofo Giorgio Agamben (2002) é um dos autores que discute como, no mundo contemporâneo, multiplicam-se os espaços de exceção, onde indivíduos detidos são integralmente despojados de seus direitos e prerrogativas. Espaços como os campos de refugiados para imigrantes clandestinos, as zonas de trânsito nos aeroportos internacionais, os campos de internação de combatentes ou de segregação de grupos étnicos etc. O que há de comum em todos esses espaços é neles se pode perpetrar qualquer ato contra os indivíduos sob custódia, ou seja, tal como no campo de concentração nazista, tudo é verdadeiramente possível, inclusive a tortura.

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realidade, apenas os alvos preferenciais da brutalidade parecem ter sido novamente deslocados. A tortura ainda é empregada com frequência no Brasil democrático, mesmo anos depois do fim do regime autoritário, sendo que o principal objetivo perseguido continua sendo instilar o terror em suas vítimas (Huggins, 2006), ainda que estas não sejam mais os opositores políticos mas sim os assim chamados criminosos comuns. As dificuldades de construção de um diagnóstico mais preciso sobre o problema da tortura no Brasil são decorrentes da crônica precariedade no que diz respeito aos dados dos mais diversos campos de atividade da justiça criminal e do sistema de segurança pública no país. Mas, mesmo de forma fragmentada, os mais confiáveis diagnósticos apontam na direção da permanência do problema. Por exemplo, em 2002, Nigel Rodley, então relator das Nações Unidas sobre a Tortura, tendo visitado carceragens policiais, centros de detenção e estabelecimentos penitenciários, entrevistado testemunhas de atos de violência e representantes de organizações não-governamentais, considerou que as práticas de tortura ocorriam de forma generalizada e sistemática no país (cf. Tortura no Brasil, 2004). Também a imprensa, com aterradora frequência, divulga atos de tortura os mais diversos que ocorrem por todo país. Em 2007, entre outros casos, pode-se citar o da adolescente, detida em uma cela da delegacia da cidade de Abaetuba, no estado do Pará, juntamente com mais de vinte presos que a violentaram e torturaram, bem como o dos policiais militares que, na cidade de Bauru, interior do estado de São Paulo, torturaram, até a morte, com choques elétricos aplicados em todo o corpo elétricos, um adolescente suspeito de roubar uma moto.76 Desse modo, a persistência da tortura continua sendo um grande desafio para a Democracia no país. Embora o Brasil tenha ratificado a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, bem como seu Protocolo Facultativo, e criado leis específicas que criminalizam a tortura, a prática da violência ainda está presente tanto na dinâmica do trabalho policial quanto no cotidiano das prisões. Em termos dos centros de detenção – tal como definidos pelo Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e outros Tratamentos ou

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Cf. Folha de S.Paulo, 21.11.2007 e 18.12.2007, respectivamente.

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Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes77 –, especialmente as instituições policiais, as penitenciárias, as instituições para jovens em conflito com a lei e as de saúde mental merecem especial atenção e reflexão. No caso das prisões e penitenciárias, o crescimento alarmante da população encarcerada propiciou uma forte escalada de violência, claramente indicada pelo crescimento do número de rebeliões e principalmente pelas mortes de presos, provocadas na sua maior parte por outros presos. A falência múltipla de todas as esferas responsáveis pela administração e controle da execução penal favorece a presença do assim chamado crime organizado que se fortaleceu dentro dos espaços prisionais e passou a exercer um controle cada vez maior sobre a massa carcerária, impondo de fato limites ao poder constituído das próprias autoridades. Assim, além da tortura praticada diretamente pelos agentes públicos, há uma forte conivência com as práticas de tortura e agressões existentes entre os presos. As mesmas condições degradantes e as práticas de tortura são encontradas igualmente nas instituições psiquiátricas, públicas ou privadas, e naquelas voltadas para a internação de adolescentes em conflito com a lei. Se não é possível desconsiderar as deficiências históricas e a complexidade política e administrativa que dificultam o controle e o monitoramento das atividades da justiça criminal e da segurança pública no Brasil, não é possível deixar de considerar outros fatores que inclusive ajudariam a explicar as razões que levam a própria sociedade civil no Brasil a pouco se sensibilizar diante de tal quadro.78 A hipótese anteriormente levantada, de que sobretudo a ausência de cidadania torna os indivíduos mais expostos às práticas de tortura, pode fornecer importantes pistas para pesquisas na área. De uma perspectiva histórica mais ampla, percebe-se que, no Brasil, a tortura tem sido empregada sistematicamente sobretudo contra aqueles que não são considerados como cidadãos plenos em nossa sociedade. 77

Sobre o Protocolo, bem como sobre a situação dos centros de detenção no país, consultar Alvarez e Salla (2005). 78 Esta pouca sensibilização diante do problema da tortura se manifesta no frequente argumento da “maçã podre”, ou seja, de que os atos de tortura seriam excepcionais, perpetrados por indivíduos que não representariam mais os valores das instituições da justiça criminal e da segurança pública. Mesmo a imprensa que denúncia tais casos acaba, por vezes, reafirmando que seriam apenas resultado da “truculência de alguns agentes públicos” (cf., Folha de S.Paulo, Monstruosidades, Editorial, 19.12.2007) e não uma prática institucional ainda recorrente no país. Sem indagar acerca das causas dessas atrocidades, não será possível identificar quais são os mecanismos institucionais que engendram as condutas violentas dos agentes públicos, bem como promovem sua impunidade (cf. Huggins, 2006, p. 33).

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Numa sociedade profundamente hierarquizada, sem tradição de reconhecimento da cidadania, marcada pela violência como elemento constitutivo de suas relações sociais (Adorno, 1998; Franco 1983), o funcionamento do aparato de justiça criminal e de segurança pública acabou quase sempre fortalecendo a total assimetria de poder, sendo uma de suas consequências o uso sistemático, pelas forças policiais, da violência ilegal, dos espancamentos e da tortura nos seus procedimentos de policiamento, de investigação e de obtenção de confissões. Se, em alguns momentos, a presença de regimes autoritários propiciou que a tortura fosse empregada igualmente contra opositores políticos membros das classes médias, como durante o Estado Novo de Vargas ou durante o regime autoritário, fruto do golpe militar de 1964, despertando assim certa oposição por parte da sociedade civil, na maior parte do tempo as práticas de tortura puderam ser empregadas sem maiores resistências.79 Em contrapartida, os setores da população que foram frequentemente torturados – escravos, índios, operários, pobres da cidade ou do campo, presos comuns etc. – compuseram, ao longo de nossa história, todo esse contingente de vidas nuas, para utilizar a expressão de Agamben (2002), desvestidas do manto protetor da norma jurídica e, consequentemente, submetidas à violência arbitrária, ao sacrifício inútil, à tortura e à morte. A reflexão histórica e sociológica com respeito à tortura pode cumprir, deste modo, um importante papel, no momento em que, tanto no Brasil quanto no mundo, ainda muito deve ser feito no sentido de combater esta forma especialmente perversa de violência.

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Para um esboço de análise histórica e sociológica sobre a questão da tortura no Brasil, consultar Alvarez e Salla (2006).

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Políticas de Segurança Pública em São Paulo: uma perspectiva histórica80

Introdução

A proposta deste texto consiste em contribuir para o amadurecimento da reflexão acadêmica contemporânea sobre as políticas de segurança pública no país. No entanto, embora sejam muitas as motivações provocadas pelos intensos debates atuais em torno de problemas que essa área vem colocando nos últimos anos, procura-se colaborar com o debate mantendo uma certa distância das discussões acerca das soluções mais imediatas dos problemas nessa área. A intenção, em contrapartida, é levantar uma série de questionamentos sobre o contorno mesmo da área de segurança pública como objeto de estudo no debate acadêmico, bem como sobre as principais vertentes teóricas que se prestam a interpretar os problemas mais recorrentes que ela apresenta. Sem ter a preocupação de dar respostas pragmáticas aos possíveis dilemas enfrentados pelos policy makers, procura-se contribuir para uma visão das políticas públicas de segurança que, ancorada na pesquisa empírica sobre as experiências históricas no setor, possa fazer avançar o debate contemporâneo, no sentido de compreender as raízes mais finas que sustentam as práticas de nossas instituições de justiça criminal e que desafiam, com frequência, a vigência plena de um Estado de Direito democrático, como o definiu O’Donnell (2000). O presente texto resulta dos trabalhos de pesquisa desenvolvidos pelo Núcleo de Estudos da Violência, da Universidade de São Paulo, em torno do projeto denominado Construção das Políticas de Segurança e o Sentido da Punição, São Paulo (18222000), que teve o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Dada a amplitude do período estudado, envolvendo quase duzentos anos de história, e face à diversidade dos contextos históricos que ele encerra, no ano de 2003 o projeto concentrou-se sobre três momentos relevantes da história política, econômica e social do país e do Estado de São Paulo, de 1880 a 1900, de 1937 a 1950 e de 1960 a 1974. Esses recortes cronológicos foram objeto de aprofundados estudos e pesquisas 80

ALVAREZ, M. C. ; SALLA, F.; SOUZA, L. A. F.. Políticas de Segurança Pública em São Paulo: uma perspectiva histórica. Justiça & História, Porto Alegre, v. 4, n.8, pp. 173-199, 2004.

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documentais81. Reconhecidos como períodos de densas transições, sua análise mais acurada foi encarada como fundamental para a extração de algumas diretrizes teóricas e elementos para o levantamento empírico para as etapas posteriores do projeto, que tem previsão de desenvolvimento por quase uma década. Os períodos apresentam como característica comum transições políticas complexas, articuladas a densas transformações no plano econômico e social e diversos conflitos ideológicos que proporcionam uma análise sobre as condições de formulação de uma agenda de políticas públicas voltadas para a área da segurança, as formas de sua implementação no Estado de São Paulo e alguns dos resultados das ações governamentais nesse setor. O primeiro período, de 1880 a 1900, abrange, no plano político, a passagem do regime monárquico para o republicano. Ao mesmo tempo, envolve, no terreno econômico e social, a abolição da escravidão e a constituição do mercado de trabalho livre no país. Ocorre, nesse período, um acentuado processo migratório de trabalhadores europeus para o Estado de São Paulo, uma intensificação na ocupação espacial agrícola, impulsionada sobretudo pela produção do café, e, ao mesmo tempo, uma acelerada urbanização da Capital de São Paulo que passou a concentrar um núcleo de pequenas indústrias. Transformações que alteraram o arcabouço jurídico do país, mudaram a percepção das elites dirigentes quanto à ordem pública, conformaram políticas de segurança que começam a construir uma rede de instituições voltadas para o controle social, bem como a burocratizar os aparelhos estatais que atuavam nessa área, sobretudo o aparelho policial. O segundo período, de 1937 a 1950, corresponde à entrada do país no chamado Estado Novo, entre 1937 a 1945, para depois reorganizar-se num quadro de normalidade democrática. Politicamente, de 1937 a 1945, houve uma forte centralização da máquina governamental e foram reprimidos duramente os grupos de oposição na fase autoritária, além de ocorrer o cerceamento à liberdade de organização e expressão. A fase de democratização dá início a um novo período da história política brasileira que coloca 81

Além de contar com um trabalho de reflexão sobre a bibliografia específica sobre temas relevantes sobre a segurança pública, uma volumosa massa de informações foi obtida a partir de levantamentos realizados, dentro do projeto, sobre as seguintes fontes documentais: a legislação relativa à área de segurança-justiça, os debates parlamentares, as mensagens do chefe do executivo para as casas legislativas, os relatórios dos secretários de Justiça ou Segurança, bem como os relatórios internos do chefe de polícia, de órgãos policiais especializados, de diretores de presídios e ainda os documentos internos de instituições como livro de controle de movimentação de presos, a correspondência oficial, os prontuários de internos em instituições de controle. Ainda que, em cada período trabalhado pelo projeto, tais fontes apresentem consideráveis variações quanto às informações apresentadas, elas foram consideradas essenciais para a construção de um quadro básico sobre a concepção das políticas públicas, sobre as formas de sua implementação e sobre os resultados ou impactos causados.

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em cena novas alianças políticas em torno dos desafios ao desenvolvimento econômico e social, reconhecido como tema de relevância na agenda política nacional. No plano econômico, o país sente as oscilações da economia mundial em torno da conjuntura provocada pela II Guerra Mundial. Internamente, a base industrial se consolida e a classe operária se torna um ator cada vez mais relevante no cenário das políticas de desenvolvimento econômico que iriam ser implementadas. No campo das políticas de segurança, o período permite verificar algumas persistências nas práticas repressivas por parte dos aparelhos policiais, antes e depois do Estado Novo, as relações entre repressão política e repressão ao crime comum e o perfil da atuação do governo autoritário na criação de instituições no âmbito da justiça criminal. Um dos pontos interessantes revelados por esse período é o da persistência das práticas autoritárias e do funcionamento da máquina repressiva instalada e que perdura, mesmo depois do fim do Estado Novo. No terceiro período, de 1960 a 1974, ocorre o inverso, ou seja, o país vive uma situação de normalidade democrática, entre 1960 e 1964, para posteriormente mergulhar num novo período autoritário, sob a mão de governos militares que impuseram forte repressão aos grupos de oposição e, como no Estado Novo, promoveram a tortura e a execução sumária de integrantes dos grupos considerados subversivos. O período que antecede o golpe de 1964 ainda é marcado por forte mobilização popular em torno de reformas sociais. O golpe instaura uma política econômica francamente favorável ao capital externo e à concentração da renda, promove diversas formas de desmobilização de sindicatos, de organizações populares e estudantis. As resistências políticas ao regime militar provocam a radicalização da ditadura entre 1969 e 1974, período no qual as forças de repressão atuavam sem qualquer controle legal. A transição de um regime democrático e de mobilização popular para um progressivamente autoritário a partir de 64, permite analisar as alterações no plano das concepções de uma agenda de segurança pública bem como os novos arranjos institucionais que permitiram a implementação de ações nessa área. É o período propício para a análise das articulações entre a repressão aos grupos de oposição política e a repressão aos criminosos comuns. No entanto, a escolha desses períodos, que possuem contextos políticos, econômicos e sociais significativamente distintos, desafia as possibilidades de construção de explicações comparáveis entre si ou que ao menos proporcionem uma avaliação de tendências, persistências e obstáculos. Se, por um lado, tem-se a vantagem de lidar com períodos de crise que são pródigos em fazer aflorar as contradições de toda

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a natureza e tornar mais evidentes os processos sociais e políticos, por outro lado, isso não remove as dificuldades de como abordar e analisar simultaneamente as políticas de segurança pública e o comportamento de governos e elites em momentos tão distintos como o final do período monárquico, a República Velha, a democracia populista, o Estado Novo e a ditadura militar a partir de 1964. Os momentos da economia são claramente distintos em diversos aspectos: o peso relativo dos setores da economia, a composição e mobilidade espacial e social da mão-de-obra, o perfil empresarial, a participação do estado como regulador das relações econômicas e como parte da sustentação da dinâmica dos negócios etc. A forma de organização jurídico-política, a participação dos grupos sociais na estrutura de poder, a composição dos partidos políticos, o arcabouço legal e institucional são claramente imbuídos de uma dinâmica peculiar nos períodos. Ao mesmo tempo, a organização da vida social no campo e na cidade estava atravessada por diferentes características no tocante ao perfil educacional da população, à religiosidade, às redes de sociabilidade, à conformação da subjetividade e às expectativas de participação social. O panorama ideológico em cada período é igualmente complexo e preenchido por preocupações bastante distintas, como a participação do Brasil no mercado internacional de modo a assegurar o acesso à Modernidade, o que fascinava as sociedades no final do século XIX, ou a imersão do Brasil nos dilemas da democracia e do nazi-fascimo durante a década de 30 e ao longo da II Guerra Mundial, ou ainda os projetos populistas e a polarização do debate político na América Latina e a escalada das ditaduras militares. Pode-se afirmar que, não obstante toda essa variedade de enquadramentos ideológicos, atravessa de modo profundo toda nossa história, desde o final do século XIX, o desejo das elites transformarem o Brasil num país moderno, entendido como espelho nos trópicos dos avanços materiais e das formas de organização social e política em curso na Europa e nos EUA, ainda que essas mesmas elites não manifestassem grande entusiasmo pelas formas de vida democráticas que marcam igualmente a maior parte daquelas sociedades nem acreditassem que o direito à cidadania plena pudesse ser exercida sem maiores problemas para o conjunto da população. Em outras palavras, percebe-se um entusiasmo em relação à modernização econômica, política e social, mas com avanços tímidos no âmbito da consolidação das garantias legais e dos direitos civis, sobretudo para a população mais pobre ao confrontar-se com o universo da lei e do direito.

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Assim, a partir do levantamento feito sobre o comportamento das políticas de segurança em cada um dos períodos, procurou-se verificar nelas peculiaridades e persistências tanto na dimensão das percepções e escolhas políticas no seio das elites governantes, bem como no perfil das políticas implementadas, as modalidade de ações e instituições colocadas em ação, além de alguns dos impactos dessas intervenções em relação aos objetivos propostos.

A pesquisa no campo das políticas públicas

O processo de redemocratização vivido pelo Brasil, a partir do início dos anos 80, desencadeou, entre muitas outras coisas, uma reviravolta nos estudos até então realizados sobre as políticas públicas. Segundo Marcus André Melo (1999), de uma preocupação mais geral com o Estado e posteriormente com as políticas sociais, a partir dos anos 80 entram em cena diversos estudos sobre políticas setoriais que jamais haviam tido projeção no debate sobre as políticas públicas. Esse redirecionamento nas preocupações de estudiosos e especialistas é provocado, segundo o autor, por três fenômenos: em primeiro lugar, ocorre uma mudança na agenda pública. Durante os anos 70, tiveram relevância as questões relativas ao modelo de desenvolvimento econômico, ao impacto redistributivo das ações governamentais, ao processo de modernização conservadora empreendida pelo regime autoritário. A redemocratização provoca a mudança na percepção ‘maximalista’ do Estado em favor de uma pesquisa mais sistemática e afinada com a agenda de reforma da Nova República. Assim, passa a interessar o próprio modus operandi do Estado e abre-se o debate em torno da questão da descentralização, da participação, da transparência, da relação público-privado. Além disso, a partir dos anos 80 consolida-se a idéia de que a democracia, além de um fim em si mesma, é igualmente condição essencial para a eficácia da ação do Estado. Em segundo lugar, ampliou-se a análise de políticas públicas, a partir da constatação de que, não obstante a vigência do processo de democratização, continuavam a imperar diversos obstáculos para a efetivação de ações governamentais, em particular no campo das políticas sociais. Estudos se desenvolveram para entender as condições e a capacidade do Estado de efetivar as ações públicas. Por fim, a ampliação dos estudos de políticas públicas tem relação com o quadro internacional no qual emerge a idéia de que é necessária a reforma do Estado. Tal preocupação ocupa a agenda pública dos anos 80 e 90 e ganham relevância, então, as

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questões relativas ao desenho institucional. Assim, os estudos se voltaram para a verificação da qualidade da intervenção pública, por meio do acompanhamento dos níveis de eficiência de políticas e programas. Como desdobramento dessas questões, coloca-se o desafio da análise das relações entre a cultura política e o desenho institucional e, mais especificamente, do peso da cultura política nos níveis de efetividade e eficácia das políticas. Questões que ampliaram o debate sobre a participação da sociedade civil, sua capacidade de organização e participação política. “Pode-se observar que, em um certo sentido, se antes o objeto do ‘encantamento’ da imaginação social brasileira era a ação estatal, nos anos 90, esse objeto passa a ser representado, de forma paulatina e ainda embrionária, pela sociedade civil” (Melo, 1999, p. 82). Embora existam poucos trabalhos que tenham buscado fazer um balanço consistente das análises sobre as políticas de segurança pública no Brasil, cabe lembrar que a produção dessa área, sobretudo a partir do início dos anos 80, pode ser perfeitamente inserida nos marcos da análise sugerida acima por Melo. Ou seja, à medida que se altera a agenda política no Brasil, com a redemocratização, diversos trabalhos foram elaborados procurando pensar os desafios dessa área em meio ao processo mesmo de recomposição da República brasileira. Não demorariam a surgir trabalhos e pesquisas (Adorno e Fisher, 1987; Coelho, 1986 e 1987; Paixão, 1987; Mingardi, 1992; Minas Gerais, 1984, entre outros) que passariam a analisar, por meio de levantamentos empíricos, os obstáculos que se interpunham à efetiva implementação das políticas por parte do Estado, que embora mantivesse traços de autoritarismo passava a assumir um perfil mais democrático. Parte dessas análises procurou entender as “contradições” entre o quadro institucional recém-instalado e cada vez mais pautado pela democratização e a persistência de parâmetros político-administrativos que se interpunham na efetiva realização das ações governamentais e também no efetivo exercício dos direitos dos cidadãos. Mais recentemente, as análises de políticas públicas de segurança têm se voltado para a questão da reforma do Estado e principalmente para o debate sobre o papel da sociedade civil no processo não só de criação de uma agenda para a área de segurança mas também como ator diretamente envolvido na implementação de ações e políticas. Ocorre, ainda, um certo deslocamento de uma reflexão mais próxima da Ciência Política, voltada para a análise dos processos políticos e da recomposição institucional durante a redemocratização, e se avolumam as contribuições da Sociologia e da Antropologia, bem como as dos especialistas do setor,

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através de estudos de caso e de pesquisas empíricas que são pautadas, muitas vezes, não diretamente pela discussão do papel do Estado mas pela questão da violência, da criminalidade em geral. Um tema chave para se compreender boa parte da produção dessa área é o dos direitos humanos. Desde o início dos anos 80, esse tema se colocou de modo transversal dentro de muitas pesquisas que se realizaram em torno da formação da agenda de segurança pública no país em meio ao processo de democratização, questão que ainda se mantém presente no cenário político; ao mesmo tempo, o tema dos direitos humanos é o grande paradigma para as análises que procuram entender em que circunstâncias os atores do processo político interferem como obstáculos na proposição e implementação de ações governamentais para a área; e é por fim em seu nome que se tem buscado avaliar não apenas os resultados e impactos das políticas adotadas mas o grau de protagonismo das organizações da sociedade civil, os níveis de interpenetração delas com as agências governamentais. No terreno acadêmico, o Núcleo de Estudos da Violência, da Universidade de São Paulo, vem sendo, desde meados da década de 80, no país, um dos principais locus de produção conceitual e de pesquisa empírica sobre a área de segurança pública. Muitos de seus trabalhos se voltaram para casos específicos pertinentes a esse campo, como a violência policial, a discriminação racial no sistema de justiça criminal, a tortura, a questão da infância e juventude, a situação das prisões, mas imersos na preocupação de avaliar os atores e os processos políticos que tornavam possível a persistência das graves violações de direitos humanos. Se os estudos sobre as políticas públicas no Brasil padecem ainda de alguma inconsistência, quanto às orientações teóricas e métodos, ainda que em razão das limitações inerentes à novidade de uma área em constituição (Arretche, 2003), ao menos as políticas públicas no campo da segurança vêm sendo avaliadas por essa produção do NEV, não apenas na dimensão de seu impacto no plano político, social e econômico, dentro de um esforço técnico de quantificação de resultados, mas dentro de um arcabouço teórico que tem procurado sistematicamente desvendar as raízes mais profundas que presidem a formulação de tais políticas, que norteiam a sua implementação e as condições em que se reproduzem as graves violações de direitos humanos. Contribuições importantes nessa direção, no momento da redemocratização do país, tiveram também os trabalhos desenvolvidos por Edmundo Campos (1986) e pela Fundação João Pinheiro (Minas Gerais, 1984).

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A entrada contundente da área da segurança pública na agenda política, desde a década de 80, revela portanto que aos poucos foi se constituindo uma variada produção acadêmica que foi em boa parte identificada por Marcos Bretas (1991), Alba Zaluar (1999), Kant de Lima (2000), Teresa Sadek (2002) e Sérgio Adorno (2002). Não obstante a expressiva tendência de aumento na produção de pesquisas sobre a área de segurança, um amadurecimento teórico em torno do tema das políticas públicas para essa área, ainda considerado um campo novo de pesquisa, parece imprescindível. Nesse sentido o campo reproduz a insuficiência de trabalhos teóricos e empíricos no Brasil (Melo, 1999; Reis, 2003) presentes em outros setores. Ao lado dessa pobreza de reflexão especificamente teórica sobre as políticas de segurança, saliente-se a escassa reflexão em torno dessas políticas numa direção ‘vertical’, procurando estabelecer as suas articulações com outras políticas e sobretudo com as diretrizes políticas presentes em cada contexto.

Procurando definir o objeto das políticas públicas de segurança

A análise das políticas públicas tem como objeto o Estado em ação, os “programas governamentais, particularmente suas condições de emergência, seus mecanismos de operação e seus prováveis impactos sobre a ordem social e econômica” (Arretche, 2003, p. 8). Uma das principais vertentes teóricas no campo das políticas públicas é a chamada policy analysis. Ela utiliza alguns conceitos que são de fundamental importância para a compreensão das políticas públicas e mesmo para a observação mais cuidadosa de determinados casos dentro dessas políticas. Embora apresentados de forma independente, e em muitos casos concretos tenham sido tratados como variáveis independentes, os conceitos de polity, politics e policy permitem uma acurada observação de como se organizam as políticas públicas, quando devidamente analisada a interdependência das esferas a que se referem. Como sistematiza Frey (2000), polity refere-se à dimensão institucional, ou seja, à “ordem do sistema político, delineada pelo sistema jurídico, e à estrutura institucional do sistema políticoadministrativo”. Já o conceito de politics envolve uma dimensão processual, ou seja, o processo político, em geral conflituoso, quanto à imposição de objetivos, conteúdos e decisões. E o conceito de policy refere-se à dimensão material, ou seja, aos conteúdos concretos, à “configuração dos programas políticos, aos problemas técnicos e ao

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conteúdo material das decisões políticas”. Frey também sustenta que se é possível verificar que a polity possua uma durabilidade temporal maior e portanto possa ter um certo nível de independência em relação às demais dimensões, é praticamente impossível dissociar as interferências recíprocas entre as esferas da politics e da policy. Tomando de empréstimo esses conceitos para a análise do campo específico da segurança pública, pode-se verificar que a dimensão do sistema jurídico-institucional mais amplo (polity) é responsável apenas em escala restrita pelos contornos dos processos políticos e das ações governamentais propriamente voltadas para essa área. Surpreende que, sob os diversos sistemas jurídico-políticos presentes nos contextos que aqui servem de apoio, os processos e as ações tenham se revestido de formas senão avessas ao menos incompatíveis com aquele quadro. De um lado, essa contradição remete à questão do papel dos atores que definem a agenda das escolhas e decisões nessa área, em que talvez muito mais que em qualquer outra estejam presentes, direta ou indiretamente, os interesses das elites e também dos membros que integram as agências que implementam as políticas. Além disso, a questão da capacidade de intervenção e de influência no debate e na definição das políticas, por parte dessas agências e dos membros que as integram, remetem a análise para a configuração mesma dos aparatos institucionais na área de segurança, no bojo do processo de constituição da própria burocracia estatal, e consequentemente para a verificação de seus níveis de diversificação e eficiência, mas sobretudo para o grau de autonomização no seu funcionamento, expresso nas práticas institucionais, na formulação de reformas calcadas nos interesses funcionais, no provimento de recursos que consolidam essa autonomia e ainda no grau de resistência que possam opor tais instituições a possíveis formas de interferência ‘externa’ nas suas atividades. Cabe considerar que há, no caso das políticas públicas no campo da segurança, alguns traços peculiares. Em primeiro lugar, é uma esfera na qual atuam de modo marcante instituições pertencentes aos poderes da República; há necessidade de estreitas articulações ‘horizontais’ entre os poderes executivo e judiciário (e em menor escala o legislativo) na própria viabilização das políticas públicas concebidas para o setor. No entanto, cada um desses poderes e seus respectivos órgãos são presididos por diferentes valores, interesses, orientações políticas e procedimentos administrativos que nem sempre operam na mesma direção das políticas desejadas. No curso do desenvolvimento histórico em que se formaram esses órgãos, o processo de burocratização e de especialização nele contido por certo aprofundaram a dimensão de um sprit de corps

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peculiar a cada instituição integrante do sistema de justiça criminal que, em certa medida, contribui muitas vezes para o truncamento do diálogo necessário para a articulação das políticas para o setor. Ao mesmo tempo, na dimensão ‘vertical’, não são menores os desafios para que as

análises levem em consideração as diferentes

atribuições das esferas do poder federal, estadual e municipal em relação ao setor de segurança pública, bem como as possibilidades de conflito, articulação e acomodação entre elas. Cabe aqui considerar que os desafios não se referem apenas às atribuições constitucionais que circunscrevem as ações de cada instituição a domínios territoriais específicos, a determinados crimes, por exemplo, mas sobretudo à questão das possibilidades de articulação de políticas nacionais, formuladas e coordenadas a partir de negociações envolvendo os diferentes níveis políticos. A estrutura federalista da república brasileira tem se revelado um elemento importante na fragmentação das políticas para o setor, em que os estados, responsáveis pela manutenção dos aparatos policial e prisional, demandam do governo federal recursos financeiros que tradicionalmente têm sido repassados a partir de situações de crise, como greves de policiais, rebeliões nos presídios etc. Muitas vezes, esses repasses são colocados na agenda das negociações políticas que movimentam o Congresso Nacional, utilizando-se o governo dessa capacidade de articulação para a aprovação de matérias outras de seu interesse. Além disso, essas transferências não se enquadram em programas de longo prazo que conformem uma diretriz para as políticas de segurança dos órgãos do executivo que são responsáveis pelos setores específicos. Em relação a outras esferas, pode-se indicar como um traço distintivo importante das políticas públicas na área de segurança, sobretudo as mais recentes, o fato de elas serem no Brasil mais autoritárias, mais revestidas pela direção top-down na sua concepção, decisão e implementação. Ao mesmo tempo, é mais acentuada a ausência de processos de avaliação de resultados dessas políticas. Pelo menos para as décadas mais recentes, enquanto outras áreas fomentam o engajamento de novos atores políticos, e inclusive redesenham as ações em função de uma busca de eficácia, num movimento bottom-up, as políticas de segurança são flagrantemente negociadas em processos políticos de acesso restrito e que colocam como desafio para a análise desse setor o contorno

das

resistências

burocráticas

e

políticas

presentes

nas

agências

governamentais. Nesse sentido, talvez seja interessante um exercício de reflexão, na questão da reforma do Estado, sobre o conceito de insulamento das elites burocráticas, como forma

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de resistência às interferências políticas e resguardo das competências técnicas de áreas específicas. A prevalência da racionalidade burocrática se sobreporia à racionalidade política evitando o que se chamaria de ‘balcanização do Estado’. Como aponta Melo (1999), esse insulamento seria garantido, entre outros fatores, pelo isolamento decisório e pelo recrutamento meritocrático. É tentador pensar que a área da segurança pública, entendida aqui como as agências do poder executivo (polícias, instituições de controle social, sistema penitenciário), do poder judiciário e do Ministério Público, pode apresentar fortes traços desse insulamento burocrático que se realimenta não apenas da capacidade de decidir sobre inúmeros procedimentos no âmbito da gestão e funcionamento da própria instituição, como tece mecanismos de reprodução das condições de permanência desse insulamento. Assim, os processos de seleção e ingresso nas carreiras dessas instituições, além do aspecto meritocrático (sobretudo no poder judiciário e Ministério Público) se fundam em procedimentos pouco transparentes ou fortemente influenciados pelas práticas corporativistas afinadas menos com uma racionalidade técnica e mais com a cultura político-administrativa. Formulado como conceito para as análises de condução de questões econômicas (por exemplo os planos econômicos na Nova República no Brasil) o insulamento burocrático envolve um “déficit democrático e de accountabilitty” (Melo, 1999, p. 85). A centralização leva a fracassos na implementação e esse é um aspecto presente nas políticas da área de segurança que não buscam formas de cooperação, articulação que lhes dêem respaldo e legitimidade política. Outro aspecto dessa questão é a capacidade decisória e a dimensão da implementação efetiva das políticas e decisões adotadas. Parece claro que na área da segurança não só essa capacidade é atravessada por alguma fragilidade como as decisões são efetivamente diluídas em burocracias corporativistas que implementam seletivamente as ações e programas que não provoquem a recomposição das formas de atuação específicas da instituição.

Alguns pressupostos

Parte da reflexão aqui apresentada procura levar em consideração diferentes arranjos institucionais e processos políticos ao longo da história do Brasil e do contexto mais específico de São Paulo. Em boa medida, a tentativa de pensar as políticas públicas nesse setor parte do resultado de uma pesquisa, de caráter preliminar, sobre o período da passagem do Império para a República, sobre o mergulho do país no Estado

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Novo e sua posterior democratização, bem como a situação que antecede o golpe de 64 e os primeiros tempos da ditadura militar até 74. Tem-se o desafio de elaborar essa abordagem numa perspectiva histórica, o que significa que várias sugestões de abordagem das políticas públicas indicadas talvez sejam relevantes para o contexto atual mas não encontrem eco em outros momentos da história política nacional. Um exemplo disso é dado por Elisa Reis para quem as pesquisas nessa área devem levar em consideração o papel do voluntariado, das organizações da sociedade civil na interação com o ator público na definição e execução de políticas públicas (Reis, 2003). Só muito recentemente as políticas de segurança pública tiveram uma participação mais direta da sociedade civil, cabendo à pesquisa estabelecer quais seriam as formas pelas quais essa participação ocorria nos períodos indicados acima. Levando-se em consideração esses desafios, a análise das políticas de segurança pública numa perspectiva histórica pode ser feita a partir de alguns eixos: em primeiro lugar, a identificação e análise de quais são as percepções de ordem pública (e conceitos correlatos) que estruturaram uma agenda de políticas para área de segurança e quais atores sociais são relevantes no jogo político em que se forma essa agenda. Pode-se propor que as percepções importantes e o consequente desenho das políticas para o setor partem quase que exclusivamente dos grupos que ocupam as esferas dirigentes do Estado, em sintonia com as elites econômicas e intelectuais. Em nenhum dos períodos estudados, nem mesmo naqueles mais democráticos em que estiveram presentes amplas disputas políticas, camadas populares, suas organizações e lideranças foram reconhecidas como interlocutores na identificação de diferentes percepções da ordem nem mesmo na definição dos issues a comporem a agenda das políticas nessa área. Pelo contrário, de forma geral, a ‘boa’ ordem pública foi sempre pensada como a ausência da manifestação popular, da participação de grupos, partidos, sindicatos no cenário urbano através de atos de contestação. Ressalte-se igualmente que teorias supostamente científicas, que justificavam a hierarquização da cidadania através de argumentos baseados em estereótipos tais como raça, classe ou gênero, também dominaram o pensamento das elites envolvidas com a elaboração de políticas de segurança na maior parte dos períodos estudados – quer sejam as teorias lombrosianas, que penetram no Brasil já nas últimas décadas do século XIX, quer sejam as idéias de “defesa social”, presentes na primeira metade do século XX, quer sejam os estigmas associados a determinados

setores

da

população,

originalmente

produzidos

pelas

teorias

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criminológicas e depois disseminados na mentalidade dos agentes e nas práticas institucionais (cf. Corrêa, 1998; Carrara, 1998; Alvarez, 2003). Em segundo lugar, outro eixo que estrutura a presente reflexão sobre as políticas nesses três períodos e que se encontra diretamente articulado ao anterior é a forma pela qual foram implementadas as políticas nesse setor. Além do corte elitista que informa a agenda das políticas de segurança, há que se considerar o processo mesmo de formação do Estado brasileiro, sobretudo a constituição da burocracia estatal e a conservação dentro dela de estilos políticos formadores da dinâmica social e política mais ampla, como o autoritarismo, o clientelismo, o corporativismo e a corrupção. Assim, as políticas implementadas nessa área foram paradigmáticas na representação das mais profundas contradições, no Brasil, entre os postulados modernos de organização do Estado e a manutenção dentro da máquina burocrática de formas ‘tradicionais’ de funcionamento. Embora cada integrante do aparato de justiça criminal (polícia, sistema prisional, poder judiciário) reivindicasse constantemente a adoção dos princípios de organização científicos, de competência técnica de seus procedimentos, de eficiência da organização burocrática, essa ‘modernidade’, no que diz respeito às ações na área de segurança pública, nunca deixou de conviver, de ser influenciada, quando não assimilada por práticas eivadas de arbítrio, corporativistas e clientelistas. Em terceiro lugar, interessa avaliar qual foi o impacto, o resultado produzido por essas políticas, ainda que esse balanço só possa ser feito até o momento de forma preliminar. Mas cabe esboçar, em razão das concepções apresentadas e que pautaram a agenda das políticas de segurança, do quadro normativo legal então estabelecido, do desenho das instituições criadas e postas em funcionamento, qual foi o resultado alcançado. Pode-se sustentar o argumento de que as ações governamentais nessa área respondem aos interesses das elites políticas e econômicas dentro de um processo de construção da cidadania profundamente restrito. É constante, na história do país e do Estado de São Paulo, o recurso ao uso da violência ilegal por parte dos órgãos e agentes do Estado contra os segmentos sociais compostos por cidadãos considerados de segunda classe ou simplesmente não-cidadãos. Tal uso consiste no sistemático cerceamento para o cidadão ao exercício dos seus direitos, sobretudo os civis e políticos, ainda que estes estejam formalmente inscritos no quadro normativo legal. Essa regular negação ao exercício dos direitos principia nas ações arbitrárias e ilegais da Polícia no combate direto ao crime ou nos procedimentos de investigação, passa pela condição de encarceramento, antes e depois do julgamento, pela conivência ou omissão do poder

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judiciário com tais práticas ou simplesmente pela sua submissão às necessidades de uma sempre presente ‘defesa social’. Os períodos de autoritarismo e de ditadura radicalizam a violência ilegal dirigida a esses segmentos não reconhecidos pela elite como pertencentes ao campo da política e incorporam também como alvos os integrantes da oposição política, que muitas vezes envolvem membros de outros segmentos que, em geral, não são rotineiramente atingidos pela ação violenta da polícia, não se encontram expostos às arbitrariedades das instituições de internação nem se encontram em territórios frequentemente devassados pela intervenção ‘saneadora’ ou ‘civilizadora’ do poder público. As práticas autoritárias e ilegais que marcam o funcionamento das agências do Estado, em especial aquelas destinadas ao gerenciamento da segurança pública, estão, assim, presentes ao longo dos períodos estudados, de forma mais aguda, nos regimes ditatoriais e autoritários, ou mais atenuada nos momentos de vida democrática. Mais que peculiaridades de cada período, aquelas práticas são antes regularidades constatadas seja sob as sombras das ditaduras seja sob a transparência e ‘luminosidade’ das democracias. Ao propor esses três eixos de análise para as políticas públicas de segurança implementadas no Estado de São Paulo, tentamos reagrupar alguns argumentos que já mereceram a reflexão de autores como Paulo Sérgio Pinheiro (2001), Sérgio Adorno (1998), Teresa Caldeira (2000) e José Murilo de Carvalho (2001), entre outros, ainda que não tenham eles tratado diretamente como objeto de seus trabalhos essas políticas, mesmo quando estudaram os períodos aqui abordados. Dentre os temas que tais autores trataram e que se traduziram em contribuição fundamental para o debate aqui apresentado, está o da persistência das graves violações de direitos humanos no país, pensada como elemento constitutivo da nossa formação política e da reprodução de uma sociedade profundamente hierarquizada. Essa tem sido uma das mais importantes contribuições dos trabalhos, por exemplo, de Paulo Sérgio Pinheiro (1996, 1998, 2001). Segundo este autor, a grande dificuldade da consolidação da democracia, no Brasil, refere-se a uma continuidade autoritária, inscrita profundamente nas práticas das instituições da administração da justiça e a um autoritarismo socialmente implantado nas relações entre as diferentes classes sociais do país. O autor afirma que este complexo problema é responsável pela configuração atípica da sociedade brasileira que, durante todo o período republicano, não conseguiu ir além do quadro de uma democracia sem cidadania, ou seja, uma democracia formal, que reconhece e estabelece direitos civis, políticos e sociais, mas que é absolutamente incapaz de fazer com que

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suas instituições e seus agentes respeitem esses princípios que definem o quadro jurídico republicano. A expressão terrível desta questão aparece estampada no baixo grau de controle social sobre o fazer político, na baixa adesão aos valores democráticos por parte dos agentes do Estado, pela violência policial, pela corrupção e pela intransparência. Em outros termos, no país, a democracia sem cidadania repercute no abismo que separa as elites das não-elites e no tratamento diferenciado que estas recebem do Estado e de suas instituições. Outro tema de grande interesse para a presente reflexão é a constituição mesma do Estado brasileiro, sobretudo no que diz respeito à sua capacidade de tornar efetivo o monopólio do uso legítimo da força física. Nesse sentido, a reflexão de Sérgio Adorno é extremamente elucidativa. Segundo o autor, o Brasil, durante o último século, passou por um significativo processo de modernização:

superação da propriedade escrava, formação do mercado de trabalho livre, industrialização e urbanização, mudanças nas bases do poder político de que resultou na substituição da monarquia pela forma republicana de governo, a instauração de um novo pacto constitucional que formalmente consagrava direitos civis e políticos e instituía um modelo liberal-democrático de poder político. (Adorno, 1998: 154) Mas essas mudanças não foram estendidas para além das elites proprietárias. A população, em sua maioria trabalhadores urbanos e rurais pobres, para garantir a efetivação desses direitos, teve que organizar associações e promover greves e revoltas, duramente reprimidas. A história recente do Brasil não é diferente. Durante o regime de exceção, o parco repertório de direitos conquistados sofreu forte limitação. O regime de exceção agia à margem de toda e qualquer legalidade, estimulando ações violentas e arbitrárias por parte da polícia e por parte de grupos paramilitares. Tanto a oposição política quanto os criminosos comuns foram perseguidos, presos, torturados e assassinados em ações totalmente ilegais. No período, o poder judiciário permaneceu sob forte pressão para não se imiscuir nas questões ligadas à segurança nacional que eram da alçada da justiça militar. Após o longo intervalo autoritário (1964-1985), o país se redemocratizou sendo promulgada, em 1988, uma nova Constituição Federal:

A reconstrução democrática e o novo regime político acenaram para substantivas mudanças, entre as quais conviria destacar as seguintes: ampliação dos canais de participação e representação políticas; alargamento do elenco dos direitos (civis, sociais e políticos); desbloqueio da comunicação entre sociedade civil e Estado;

156

reconhecimento das liberdades civis e públicas; abolição das organizações paramilitares ou organismos paralelos à segurança pública; maior transparência nas decisões e procedimentos políticos; sujeição do poder público ao império da lei democraticamente votada; existência de eleições livres. No domínio dos direitos fundamentais da pessoa humana, tornou inalienável o direito à vida ao mesmo tempo em que estabeleceu garantias à integridade física e moral. O racismo e a tortura converteram-se em crimes inafiançáveis e imprescritíveis. Assegurou ainda direitos quanto à privacidade, à igualdade sem distinção de qualquer espécie, à liberdade em todas as suas formas de expressão e de manifestação (liberdade física, de locomoção, de circulação, de pensamento e de convicções políticas e religiosas, de reunião e de associação coletiva). A par dessas iniciativas, inovou no campo dos direitos sociais, ampliando a proteção ao trabalho e ao trabalhador, à maternidade e à infância, ao consumidor e ao meio ambiente. No terreno político, estendeu o direito de voto aos analfabetos, criou institutos jurídicos antes inexistentes como o Mandato de Injunção com vistas a garantir a eficácia das normas constitucionais, conferiu autonomia ao Ministério Público e consagrou a assistência judiciária aos desprovidos de recursos para constituição de defesa própria. (Adorno, 1998, pp. 155-156) Todavia, o novo paradigma constitucional não foi suficientemente capaz de conter as graves violações de direitos humanos que ainda são comuns no cenário social e institucional brasileiro. Adorno resume o que considera os principais obstáculos à consolidação da democracia no país: 1) restrito raio de ação da sociedade civil e ausência de controle democrático da violência; 2) impunidade dos agressores; 3) falta de controle, por parte dos governos civis, sobre as instituições repressivas. Para tornar o quadro mais dramático, houve um recrudescimento da violência urbana e rural, bem como da violência institucional e uma degradação generalizada das instituições que compõem o complexo penal-penitenciário. Portanto, segundo o autor, estamos diante de um paradoxo que reforça a importância das políticas de segurança pública no país: no curso do processo de transição democrática, as práticas violentas de contenção ao crime tenderam a acentuar-se, em parte, como resposta ao crescimento da criminalidade e ao avanço dos movimentos de defesa dos direitos humanos. As ideias dos autores, apesar de sumariamente comentadas, apontam para o pioneirismo das contribuições teóricas presentes no trabalho de Maria Sylvia de Carvalho Franco (1997), ao indicar que a violência é, dentro da história do país, parte constitutiva das relações sociais e como ela engendra as articulações do poder local, seja em relação às formas de dominação entre as classes sociais, seja em relação aos níveis de poder na estrutura do Estado. A partir de outras preocupações, José Murilo de Carvalho (2000) percorre a questão da cidadania no Brasil, a especificidade da experiência do país em relação às

157

condições em que foram sendo conquistados os direitos civis, políticos e sociais. Assim, argumenta que em contraste com alguns outros países que implementaram primeiro os direitos civis, depois os políticos para finalmente chegar aos sociais, no Brasil, a sequência principia pelos direitos sociais para depois alcançar os demais. Mais importante que essa idéia, no entanto, é a de que a ênfase ao longo da história do Brasil sempre recaiu sobre a garantia aos direitos sociais, em detrimento dos demais direitos. José Murilo de Carvalho também destaca que o exercício dos direitos se constrói na relação entre os indivíduos e o Estado e guarda estreita correlação com o papel que este desempenha em cada momento histórico. Autores como Wanderley Guilherme dos Santos (1991), denominam de ‘cidadania regulada’ essa forma pela qual foram excluídas do processo participativo e de representação política amplas camadas da sociedade brasileira e o seu restrito acesso ao exercício de outros direitos. Neste diapasão, Teresa Caldeira propõe que a experiência política brasileira seria de uma democracia disjuntiva, na qual a violência e o desrespeito aos direitos civis seriam dimensões constitutivas. Embora haja uma democracia política na qual os direitos sociais sejam relativamente legitimados, os direitos civis e a própria noção de cidadania ainda sofrem fortes restrições e são objeto de restrições (Caldeira, 2000). Todos os autores, portanto, apontam para essa paradoxal história da cidadania e dos direitos no Brasil, na qual a precária e recente consolidação da democracia política não se faz acompanhar da expansão dos direitos de cidadania para o conjunto da população. Esses dilemas são agravados, portanto, no quadro mais amplo da democracia brasileira, pela persistência de um autoritarismo social em suas diferentes manifestações: isolamento, segregação, preconceito, carência de direitos, injustiças sociais, opressão, agressões às liberdades civis e públicas e violação de direitos humanos. As forças comprometidas com os avanços democráticos ainda não conseguiram superar as forças comprometidas com o passado. Esse autoritarismo dificulta a institucionalização dos conflitos privados e impede o controle sobre o funcionamento das instituições burocrático-legais que teriam como objetivo principal a defesa plena do estado de direito e da expansão da democracia entre nós. A análise histórica das formas pelas quais as políticas de segurança permanentemente reproduzem formas de controle social das populações marginalizadas torna-se de vital importância para a compreensão dos obstáculos que se apresentam para a ampliação do horizonte democrático do país para além da simples afirmação da

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democracia política (O’Donnell, 2000). O que envolve, efetivamente, a inclusão da questão da segurança pública na agenda política nacional. Adicionalmente, é preciso considerar a aplicação das normas e dos preceitos, que operam em setores mais avançados da administração pública, à precária e opaca estrutura da administração da justiça. A situação terrível de dupla tirania a que a população sem cidadania do país está diariamente submetida nos morros e nas favelas das principais capitais do país deve ser motivação suficiente para a radicalização da democracia entre nós. Como bem lembrou Luiz Eduardo Soares:

Acredito na possibilidade de combinar eficiência policial com respeito aos direitos humanos, aos direitos civis e às leis. Mas para isso é preciso definir uma política para a segurança pública, focalizando a especificidade desse desafio, sem negar suas relações com o desemprego e a crise social. Os países que têm vencido a batalha contra o crime e a violência demonstraram que a combinação entre eficiência e respeito é não só possível como necessária, se o que se quer é construir uma ordem democrática e civilizada. (Soares, 2000, p. 48) A pesquisa, apresentada aqui em linhas gerais, busca, deste modo, elucidar os mecanismos que permitem a reprodução da violência e do arbítrio ao longo da história das políticas de segurança pública. Se tal empreendimento, como foi dito no início, não se volta imediatamente para as questões mais emergenciais acerca da segurança pública na atualidade, permite, em contrapartida, que tomemos as políticas atuais como produtos históricos complexos, enraizadas nas estruturas políticas, sociais e culturais do país e que, justamente por serem históricas, podem vir a ser modificadas.

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161

PARTE III - ATUALIDADE

162

Adolescentes em conflito com a lei: contribuições de uma pesquisa empírica82

Introdução O campo de reflexão sobre adolescentes em conflito com lei no Brasil vem sendo cada vez mais ampliado com as contribuições das Ciências Sociais, por meio de pesquisas voltadas tanto para a compreensão das dinâmicas sociais que favorecem o envolvimento de jovens com a criminalidade, quanto pelos estudos que buscam analisar as respostas que a sociedade apresenta em relação a esse fenômeno. A partir de tais estudos, uma multiplicidade de olhares e leituras – da Antropologia, da Sociologia, do Direito, da Psicologia etc. – tem proporcionado, não só ao campo acadêmico, mas também ao debate político, uma melhor qualidade de análise e de intervenção do poder público e de organizações da sociedade civil nas questões relacionadas ao adolescente em conflito com a lei. Procuramos contribuir com essas iniciativas apresentando, neste artigo, um breve relato sobre o projeto Adolescentes em conflito com a lei: pastas e prontuários do “Complexo do Tatuapé” (São Paulo/SP – 1990-2006) e os resultados por ele produzidos. O projeto foi desenvolvido, de setembro de 2008 a agosto de 2010, pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, em parceria com a Fundação CASA-SP – Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente83. Teve como objetivo principal reconstruir aspectos do funcionamento das instituições de controle social voltadas para jovens em conflito com a lei. A principal fonte para a pesquisa foi a rica documentação formada pelas pastas e prontuários dos adolescentes que passaram pelas unidades da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM), atual Fundação CASA, no período de 1990 a 2006. Dentre os objetivos específicos, o projeto procura, por um lado, estabelecer aspectos do perfil sócio-econômico dos adolescentes, 82

SALLA, F.; ALVAREZ, M. C. Adolescentes em conflito com a lei: contribuições de uma pesquisa empírica. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 94, pp. 305-319, 2011. 83 O projeto contou com recursos do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) do Ministério da Ciência e Tecnologia, Processo 400721/08 – 2. Também compuseram a equipe os seguintes pesquisadores: Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, Liana de Paula, Mônica Moreira de Oliveira Braga Cukierkorn, Amanda Oi, Viviane Calderoni, César Augusto da Silva Daniela Cardoso Lourenço e Ana Cristina do Canto Bastos.

163

bem como caracterizar as medidas sócio-educativas aplicadas, ao recorrer à análise quantitativa dos dados obtidos naquela documentação. Por outro lado, por meio de análise qualitativa, torna-se possível caracterizar alguns aspectos das trajetórias sociais de adolescentes infratores, além de identificar e analisar as diferentes lógicas institucionais (policial, judiciária, técnica etc.) presentes.

O trabalho com as fontes

A fonte principal de coleta das informações foi constituída pelas pastas e prontuários dos adolescentes no período de 1990 a 2006. Tanto as pastas como os prontuários – que na história da instituição (FEBEM), ora foram transformados num único conjunto, ora foram mantidos separados – reúnem vários documentos no curso da trajetória de um adolescente na instituição. São, portanto, integrantes dessa documentação, os formulários de ingresso na instituição, boletim de ocorrência, cópia de audiências judiciais, registros e laudos de assistentes sociais, psicólogos e outros profissionais envolvidos no processo de aplicação de medidas sócio-educativas, laudos médicos, documentos administrativos de transferência do adolescente de uma unidade para outra e, enfim, documentos destinados a informar sobre a trajetória dele no sistema socioeducativo. Da entrada em vigor do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, até 2006 havia um conjunto de 115.639 pastas e prontuários84. Esse universo de interesse para o projeto provocou a necessidade de construção de uma amostra probabilística. Essa amostra compreendeu 1581 prontuários. Para a coleta de dados, nesta etapa quantitativa, foram elaborados dois instrumentos de pesquisa: um formulário “completo” – usado para coletar, no prontuário sorteado, os dados referentes à primeira e à última entrada do adolescente no sistema – e um formulário “reduzido” – empregado para coletar os dados referentes às múltiplas entradas intermediárias, no caso do adolescente ter entrado por diversas vezes no sistema. Se o adolescente passava na instituição uma única vez, só era preenchido o formulário completo. Nos casos em que 84

Tais pastas e prontuários são numerados pela instituição para fins de arquivamento. A rotina é sempre ter um mesmo número de pasta/prontuário para um determinado adolescente. Mesmo quando pastas e prontuários se constituem em dois conjuntos de documentos separados, eles não recebem numeração distinta. E sempre que o adolescente retorna à instituição, o número de seu prontuário/pasta é o mesmo da primeira entrada.

164

o prontuário constante da amostra não era localizado (por extravio, principalmente) era substituído pelo de número subsequente. Posteriormente, outro formulário foi elaborado para o tratamento qualitativo de alguns dos prontuários que integraram a amostra85. Nesse formulário, eram registradas e por vezes transcritas as manifestações dos operadores em relação ao ato infracional, à aplicação da medida pelo poder judiciário, à vida do adolescente na instituição de internação, entre outros aspectos.

Resultados

A amostra de 1581 prontuários gerou o preenchimento de 2312 formulários, ou seja, uma parte desses formulários refere-se a reiteradas entradas do mesmo jovem no sistema de internação. Com base no levantamento quantitativo feito a partir da coleta junto a esses prontuários, indica-se, no presente artigo, alguns dados que podem ser úteis na caracterização dos jovens que cometem atos infracionais, bem como do funcionamento das instituições – polícia, ministério público, poder judiciário e demais órgãos – que executam as medidas socioeducativas. Seleciona-se aqui apenas alguns dos vários tópicos (quanto ao perfil do adolescente e das infrações) processados pela pesquisa. Cabe ainda observar que os números apresentados a seguir são apenas relacionados aos jovens que efetivamente passaram pela FEBEM (e depois FCASA), não se referindo, portanto, ao universo das infrações cometidas no Estado naquele período (1990-2006), nem mesmo à quantidade e ao tipo de medidas aplicadas pelo poder judiciário. No entanto, os dados constituem-se em importante indicador de quais atividades infracionais motivavam o ingresso de adolescentes no sistema socioeducativo e as principais características do funcionamento desse sistema.

O perfil dos jovens

Um primeiro aspecto refere-se à distribuição dos jovens que passaram pela FEBEM-FCASA, segundo sexo. O gráfico abaixo mostra que 90% dos jovens eram do 85

Embora a documentação que foi utilizada seja de natureza muita rica, tivemos presente a necessidade de uma crítica cuidadosa a essa fonte, tendo em vista tratar-se de documentos produzidos em contextos institucionais complexos, tanto pelas dinâmicas de seus agentes, quanto pelas representações ali existentes, bem como pelas formalidades das quais estão revestidos. Para uma crítica interessante do uso de fontes documentais nas Ciências Sociais, ver Cellard, 2008.

165

sexo masculino. Esse percentual expressa uma tendência também encontrada no mundo adulto, no qual igualmente predomina a presença masculina no crime e no sistema de justiça. No entanto, no mundo adulto, por exemplo, em 1995, o Censo Penitenciário indicava que as mulheres eram 3,7% dos 148.760 presos no país. Já em 2009, as mulheres presas eram cerca de 30 mil num universo de 470 mil presos, o que correspondia a 6,3% do total de pessoas encarceradas no país 86. No universo pesquisado na Fundação, o percentual de meninas chegou a 10%. Considera-se com frequência que tal crescimento da participação feminina no mundo do crime se deve a uma maior participação das mulheres no âmbito específico do tráfico de drogas. A presente pesquisa permite sugerir que, independente de tais especulações, na realidade, as adolescentes em conflito com a lei estão sendo mais severamente reprimidas e talvez punidas em comparação com as mulheres adultas.

Gráfico 1– Distribuição percentual dos jovens por sexo

A partir da amostra foi possível também processar os dados sobre o assim considerado perfil racial do adolescente, que é apresentado no Gráfico 2. O registro dessa informação, embora esteja presente nos boletins de ocorrência lavrados pela polícia, nos documentos do poder judiciário e principalmente nos documentos da Fundação não deixam de apresentar problemas, tanto na variedade dos critérios de coleta da informação como na subjetividade do lançamento de uma ou outra categoria. A variação da cor dos indivíduos, ao longo de sua trajetória pelas instituições revela, em 86

Ministério da Justiça, Departamento Penitenciário Nacional – www.mj.gov.br/depen.

166

certa medida a qualidade precária dessa informação87. Nota-se no gráfico, ainda, um elevado percentual de 17,1% de casos sem informação quanto à cor, o que revela a própria dificuldade de todas as instituições envolvidas em registrar adequadamente esse tipo de informação. Gráfico 2 – Distribuição percentual dos adolescentes segundo a cor

Mesmo considerando razoável esse percentual sem informação quanto à cor, pode-se comparar os dados obtidos pela pesquisa com aqueles relativos à população brasileira como um todo. Em 2006, segundo o IBGE, a distribuição da população segundo a cor era: branca - 49,7%; parda - 42,6%; preta – 6,9%; amarela e indígena – 0,8%. Ao se comparar os dados da instituição com aqueles relativos à população brasileira, como um todo, verifica-se que a maior variação entre os percentuais se dá em relação à população parda: 42,6% na população em geral e 29,5% na Fundação. Os negros apresentam uma representação percentual maior na Fundação (10,3%) em relação à sua presença na população brasileira (6,9%). E os brancos que estão

87

Essa informação foi prioritariamente retirada do Boletim de Ocorrência. Somente quando não havia referência à cor da pele no documento policial, a informação era retirada de documentos institucionais ou relatórios judiciais ou ainda dos formulários sobre a saúde do adolescente.

167

representados na Fundação abaixo de sua participação na população brasileira (41,8% e 49,7% respectivamente). Os dois gráficos abaixo trazem dados importantes sobre os vínculos familiares dos jovens. O Gráfico 3 mostra que a maioria dos adolescentes em conflito com a lei que passou pela instituição declarava, na lavratura do Boletim de Ocorrência policial, o nome da rua, com o número da residência e bairro em que residia, indicando que possuía residência fixa. Gráfico 3 – Referência ao endereço residencial

Como se constata pelo gráfico, um pequeno percentual de adolescentes foi registrado no Boletim de Ocorrência como pessoa sem residência ou como morador de rua (4,2%). Embora sejam comuns as representações sociais sobre os adolescentes em conflito com a lei como pessoas sem domicílio, sem família, moradores de rua, não foi essa a situação observada a partir dos dados coletados. Além disso, outras informações recolhidas pela pesquisa, como as apresentadas no gráfico seguinte, mostram os elevados percentuais de adolescentes que apresentavam vínculos familiares, o que questiona a reiterada visão de que são jovens pertencentes a essa imprecisa categoria de “famílias desestruturadas”. Essa categoria não reconhece que as dinâmicas e relações familiares são bem mais complexas, no mundo contemporâneo, do que as unidades nucleares das classes médias e das elites que acabam servindo de referencial para as “famílias estruturadas”. No âmbito das camadas mais pobres da população, das quais

168

inequivocamente são provenientes os jovens que recebem medidas socioeducativas no Brasil, esses arranjos familiares são ainda mais complexos e ao mesmo tempo criativos. Como observou Cláudia Fonseca (2005), esses arranjos envolvem membros da família que estão além do núcleo parental mais próximo, compreendem formas de cooperação mais alargada entre eles e contam ainda com a participação de pessoas da vizinhança sem vínculo sanguíneo no cuidado, por exemplo, de crianças. Dessa forma, no Gráfico 4, percebe-se que em 81,3% dos prontuários, os adolescentes tinham os nomes de pai e mãe como referenciais de sua vida familiar. Só em 16,8% dos prontuários aparecia exclusivamente o nome da mãe nas informações tanto registradas no Boletim de Ocorrência como nos documentos da Fundação.

Gráfico 4 – Referência aos pais

Corroborando os dados e o argumento acima enunciados, a pesquisa ainda apurou que 32,4% dos jovens indicaram, nos documentos da Fundação, que o pai era vivo e convivia com eles enquanto o percentual de jovens que não convivia com o pai era de 23,5%. Chama a atenção o percentual de jovens que indicaram ter o pai falecido (15,4%). Em relação aos vínculos familiares do adolescente com a mãe, os percentuais são elevados. São 63,3% dos adolescentes que indicaram ter a mãe viva e que convivia

169

com eles. São baixos os percentuais de adolescentes que tinham a mãe falecida (5,2%) e 14% que não conviviam com mãe.

As infrações

A pesquisa apurou também os tipos de infração que motivaram a internação de adolescentes na FEBEM/FCASA no período 1990-2006. Deve-se reiterar que os dados processados pela pesquisa não representam o universo das ocorrências policiais no estado de São Paulo, nem mesmo todo o conjunto dos encaminhamentos do poder judiciário, em termos de medidas aplicadas aos adolescentes em conflito com a lei. Referem-se apenas ao registro de entrada dos adolescentes no sistema FEBEM/FCASA, na sua maioria por conta de internações provisórias ou mesmo em razão de aplicação de medida de internação pelo juiz. De qualquer forma, trata-se de uma informação relevante para o debate sobre a seletividade do sistema de controle policial – atuando mais decididamente nos chamados crimes de rua – e mesmo sobre aquelas infrações que motivam a aplicação de medida de internação pelo poder judiciário.

Tabela 1 - Percentual de infrações por tipo penal agregado

Tipos

%

Crimes contra o patrimônio

67,2

Drogas (tráfico/ uso)

12,4

Crimes contra a pessoa

7,8

Outros atos infracionais

7,6

Não se aplica

5,7

Sem informação

6,3

Os dados da tabela acima se referem ao processamento geral dos dados para o período trabalhado na pesquisa88. Foram mais de duas mil ocorrências que apresentaram a maioria de crimes contra o patrimônio (67,2%). O tráfico de drogas (12,4%) ocupa uma posição relevante no montante das infrações, porém bem abaixo dos crimes contra 88

As categorias empregadas na Tabela 1 foram criadas para agregar os tipos penais. A categoria “outros atos infracionais”, por exemplo, refere-se a: formação de quadrilha, ameaça, desacato, desordem etc.

170

o patrimônio. Os crimes contra a pessoa, embora de maior gravidade, alcançam apenas 7,8% do universo de atos infracionais processados pela pesquisa. No entanto, uma vez distribuídas essas infrações por períodos (1990-1994; 1995-1998; 1999-2002 e 20032006), ou seja, fazendo o acompanhamento no tempo dos percentuais nota-se que algumas delas tiveram acentuado crescimento, ao passo que outras tiveram declínio conforme mostra a Tabela 2 abaixo. Tabela 2 – Distribuição das infrações por períodos

%

Sem inf.

90-94

95-98

99-02

03-06

07-09

2312

262

460

574

639

59

318

100,0

11,3

19,9

24,8

27,6

2,6

13,8

Crimes contra o patrimônio

67,2

71,8

71,1

76,3

70,6

57,6

36,5

Drogas (tráfico/ uso)

12,4

1,9

8,7

10,5

20,7

39,0

8,5

7,8

12,6

10,4

7,8

5,3

3,4

6,0

7,6

5,0

5,4

9,1

8,8

6,8

8,2

Não se aplica

5,7

13,7

8,9

3,5

2,2

6,8

5,3

Sem informação

6,3

2,3

1,7

0,7

0,6

Base: Total da amostra %

Crimes contra a pessoa Outros atos infracionais

38,7

Como se pode observar, a Tabela 2 apresenta a distribuição dos 2312 formulários por períodos. Nela se observa que, por exemplo, as infrações por uso ou tráfico de drogas que motivavam, de 1990 a 1994, poucas internações (1,9%) chegam a 20,7%, entre 2003 e 200689. Verifica-se ainda que as infrações correspondentes aos crimes contra a pessoa declinam no mesmo período, embora as representações sociais sobre a ‘violência’ dos adolescentes e alguns casos de homicídio tenham provocado grande comoção social, como por exemplo os casos do casal Liana Friedenbach e Felipe Caffé e de João Hélio.

89

A amostra não incluiu os anos posteriores a 2006. No entanto, os dados da tabela que ultrapassam esse ano referem-se a adolescentes que deram entrada no sistema até aquele ano e ainda continuaram a ter entradas nos anos posteriores. De qualquer modo tudo sugere que o maior envolvimento de adolescentes com o tráfico de drogas tenha motivado um maior número de apreensões e de aplicação de medidas socioeducativas. Como os formulários correspondem às diversas entradas dos adolescentes no sistema eles podem ter mais de um registro quanto à infração.

171

A participação de adolescentes no mundo do crime vem sendo objeto de considerável atenção de Cientistas Sociais (por exemplo, Feffermann, 2006; Oliveira, 2006; Zaluar, 1985). Os dados levantados pela pesquisa, apresentados na tabela abaixo, contribuem para essas análises, uma vez que delineiam aspectos da associação ou não dos jovens para o cometimento de infrações. Com base nos boletins de ocorrência e mesmo nos documentos judiciais, fez-se o levantamento do número de co-partícipes – aqueles indivíduos que aparecem mencionados no Boletim de Ocorrência como tendo participado da infração em questão – tanto maiores como menores.

Tabela 3 – Percentual de participação de outras pessoas na infração Teve co-partícipes

64,4

Não teve co-partícipes

20,2

Sem informação

12,0

Não se aplica

3,4

A tabela acima se refere ao processamento dos 2312 formulários abertos para todos os ingressos de adolescentes no sistema. Foram 1489 ocorrências em que se constatou que o adolescente cometeu a infração com outras pessoas. Estudos mais aprofundados devem considerar quais seriam os significados possíveis desse percentual de 20,2% das ocorrências terem sido provocadas apenas pelo adolescente, enquanto 64,4% apresentarem a associação com outros adolescentes ou maiores. Na Tabela abaixo, tomamos os 1489 casos e os distribuímos da seguinte forma. Tabela 4 – Percentual de pessoas maiores ou menores que participaram da infração

Só maiores

22,0

Só menores

46,1

Maiores e menores

15,6

Sem informação

16,3

172

A participação de maiores de idade nas ocorrências que motivaram a passagem do adolescente pelo sistema FEBEM/FCASA (num percentual que alcança 37,6%) é motivo também de análises mais aprofundadas, uma vez que pode indicar um variado conjunto de tendências nas dinâmicas do mundo do crime, como o envolvimento de jovens, de modo cada vez mais precoce, em redes de pertencimento a grupos que desenvolvem atividades criminosas; a instrumentalização dos adolescentes pelos grupos ou indivíduos criminosos adultos considerando o tempo mais curto de sua punição no sistema socioeducativo em relação ao sistema adulto; mudanças no perfil das atividades criminosas que demandam maiores níveis de associação para sua realização etc.

As dinâmicas do sistema após o ECA

A leitura de pastas e prontuários para a coleta de natureza quantitativa permitiu uma primeira aproximação em relação à compreensão do funcionamento de todo o sistema que alcança os adolescentes em conflito com a lei e, consequentemente, proporcionou elementos para a identificação das percepções e formas de atuação de seus agentes (policiais civis e militares, promotores e defensores públicos, juízes, técnicos das instituições que executam as medidas socioeducativas). O projeto selecionou alguns daqueles prontuários para um tratamento qualitativo, o que significou fazer uma leitura em profundidade de toda a documentação ali contida, buscando ampliar a coleta de informações para uma análise das dinâmicas e sutilezas do sistema não proporcionadas pelo levantamento quantitativo. Indica-se, a seguir, apenas alguns pontos dessa leitura qualitativa que possuem relevância para este artigo. As pastas e prontuários são documentos institucionais que armazenam as informações sobre a vida do adolescente. Ofícios, boletins de ocorrência, documentos judiciais, laudos técnicos, documentos administrativos, informações médicas, relatórios de atendimento ao adolescente, entre outros, formam o conjunto básico de pastas e prontuários. Chamou atenção a variedade de organização dessa documentação. Havia prontuários repletos de documentos (boletins de ocorrência, laudo Instituto Médico Legal, ofícios, decretação de internação provisória etc.), mas ao mesmo tempo havia prontuários nos quais a ausência de tais documentos chegava a comprometer a compreensão sobre a situação dos adolescentes como, por exemplo, não ter anexada cópia do Boletim de Ocorrência, encaminhamento de internação provisória, nem qualquer outra peça do judiciário sobre a aplicação de medidas. Outro aspecto que se

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evidenciou foi a duplicação de documentos no mesmo prontuário, não sendo raro encontrar três ou quatro cópias do mesmo Boletim de Ocorrência ou do mesmo laudo sobre o adolescente para a conclusão de medida. Ainda que se considere que durante boa parte do período de interesse para a pesquisa – 1990 a 2006 – não fosse tão intenso o uso de recursos eletrônicos para comunicação e registro de informações, ficou evidente que as instituições continuavam isoladamente a recorrer a expedientes internos de registro e circulação de informações sem grande eficácia e integração com as demais instituições. Uma segunda observação, a partir da leitura mais aprofundada dos prontuários, é de que vários operadores do sistema continuaram a usar categorias de classificação de crianças e adolescentes – menores abandonados, menores de rua, menores infratores – que, em geral, estavam associadas aos marcos legais anteriores ao ECA e às antigas representações sociais relativas ao jovem em conflito com a lei. Também não foram raras as vezes em que eram manifestos os conflitos de percepções e opiniões entre os técnicos da FEBEM/FCASA na avaliação de adolescentes e aquelas expressas no âmbito do Ministério Público ou do Poder Judiciário. A partir da leitura de vários dos documentos institucionais, sobretudo os relatórios de atendimento de assistentes sociais e psicólogos, torna-se possível uma maior aproximação da vida do adolescente nas dinâmicas internas da Fundação, nas relações com os colegas, no seu envolvimento com as rebeliões, nas suas transferências de unidade para unidade. Mas, ao mesmo tempo, naqueles documentos, emergem também as relações do adolescente com as dinâmicas familiares, os dramas e os esforços de familiares para acolher, integrar o adolescente. Na maioria dos casos analisados, os diversificados elos familiares do adolescente estavam sempre ao seu lado e buscando meios de criar alternativas para sua trajetória de vida.

Observações finais

Os resultados de pesquisa apresentados acima sugerem um amplo potencial de aprofundamento de muitas questões relativas ao perfil dos adolescentes em conflito com a lei, aos tipos de ocorrência criminal, às formas de resposta do sistema de justiça juvenil. Análises mais detalhadas dos dados já obtidos junto aos prontuários, em pesquisas futuras, podem melhorar as informações disponíveis para a avaliação de como o ECA está sendo aplicado, de como se comportam as diversas instituições do sistema

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(Polícia, Ministério Público, Poder Judiciário e Fundação CASA) e ainda de como são desenvolvidas as políticas públicas voltadas para essas questões. Nesse sentido, uma das constatações da pesquisa é com relação à fragmentação dos circuitos de informação entre as diversas agências envolvidas. No período estudado, cada instituição tinha suas rotinas, produzia seus documentos, suas informações. Não possuíam formas de circulação dessas informações nem formas de integração com as demais instituições. Numa perspectiva de garantia dos direitos dos adolescentes, não parece ser sem consequência essa desarticulação. As trajetórias de jovens no mundo do crime na sociedade brasileira contemporânea constituem outro campo possível de pesquisa, derivada do projeto. A criminalidade contemporânea ganhou novos contornos, com economias ilegais mais diversificadas e lucrativas que recrutam crianças e adolescentes em processos ainda pouco estudados no Brasil, exceto, em parte, em relação ao tráfico de drogas. Se, numa ponta do espectro social, crianças e adolescentes “de rua” ocupam um pequeno papel na criminalidade, e, na outra, as infrações e os “desvios” de comportamento dos jovens pertencentes às classes médias e altas só muito raramente são selecionados pelas agências de controle social, há então um espaço a ser problematizado. Um espaço social que agencia a vida dos adolescentes e que é formado pelas atividades e oportunidades econômicas (legais e ilegais), pelas complexas redes de sociabilidades que atravessam os vínculos familiares, a vizinhança e a convivência com agentes do crime (individuais ou coletivos) e pelas instituições do sistema socioeducativo e da justiça criminal.

Referências Bibliográficas

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OLIVEIRA, P. P. de (2006) Sobre a adesão juvenil às redes de criminalidade em favelas. IN.: SILVA, Luiz Antonio Machado da. Vida sob Cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, pp. 249-303. VALLADARES, L. P.; ALVIM, M. R. B. (1988) Infância e sociedade no Brasil: uma análise da literatura. IN: BIB - Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, n.26, pp.3-37. ZALUAR, A. (1985) A Máquina e a Revolta. São Paulo: Brasiliense.

176

A vítima no processo penal brasileiro: um novo protagonismo no cenário contemporâneo?90

Introdução

O presente texto apresenta alguns resultados de pesquisa dedicada ao papel conferido à vítima no processo penal brasileiro e desenvolvida pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais entre maio de 2009 e março de 201091. Nessa investigação, foram privilegiadas duas experiências distintas da legislação recente, instauradas em um campo que tradicionalmente confere um tratamento que não contempla possibilidades de participação efetiva da vítima: os procedimentos restaurativos concernentes à lei 9.099/95 e os processos penais referentes à violência doméstica e familiar que tramitam pelo procedimento previsto pela lei 11.340/06, também conhecida como Lei Maria da Penha. Essas duas iniciativas são geralmente consideradas inovadoras no que tange ao papel da vítima ao longo da persecução penal, pois delas advieram dispositivos vitimológicos até então inauditos no ordenamento processual penal brasileiro. A pesquisa buscou igualmente balizar e confrontar referidas experiências legais com os dispositivos e as práticas pertinentes ao processo penal ordinário92, no que toca aos direitos e ao papel atribuído à vítima. Para tanto, a pesquisa voltou-se também para o campo de aplicação desse modelo, elegendo o estudo de caso como opção metodológica para acessar o modelo processual ordinário. A pesquisa desenvolveu-se, então, nos contextos empíricos do Juizado Especial Criminal (JECRIM) e do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (JVD), tendo também por referência o processo penal ordinário.

90

ALVAREZ, M. C.; TEIXEIRA, A.; MATSUDA, F.; JESUS, M. G. M.; SALLA, F.; SANTIAGO, C ; CORDEIRO, V. D.A vítima no processo penal brasileiro: um novo protagonismo no cenário contemporâneo? Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 86, pp. 247-288, 2010. 91 Trata-se de pesquisa aprovada no edital Pensando o Direito, convocação nº 01/2009, da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça. A pesquisa, coordenada por Marcos César Alvarez, contou também com a participação de Daniella Coulouris, Fernando Salla e Maria Amélia de Almeida Teles, como consultores. Este texto resume partes da publicação produzida no âmbito do citado edital (cf. Alvarez, 2010). 92 Atribui-se aqui o termo processo penal ordinário a todos os procedimentos previstos no Código de Processo Penal para a fase de conhecimento (tanto o rito propriamente ordinário, quanto o rito do Tribunal do Júri), excluídos os ritos especiais da legislação extraordinária.

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A investigação privilegiou as percepções das vítimas e de atores-chave do sistema de justiça criminal, procurando conhecer: (a) o espaço oferecido para a participação da vítima, resultante da operacionalização dos procedimentos restaurativos, (b) eventuais alterações nas concepções tradicionais de crime e de vítima, (c) o grau de satisfação da vítima com o desfecho do caso e (d) a existência de entraves para a participação efetiva da vítima. Neste artigo são apresentados alguns dos principais resultados da pesquisa empírica já finalizada. Inicialmente, discute-se a questão da emergência da figura da vítima na sociedade contemporânea por meio de uma revisão da bibliografia recente sobre o tema. Em seguida, o percurso da vítima na legislação penal e processual brasileira é caracterizado a partir das experiências dos Juizados Especiais Criminais e da Lei Maria da Penha. Finalmente, descreve-se como foi realizada a pesquisa empírica propriamente dita, bem como as considerações críticas que podem ser avançadas a partir da investigação concretizada.

A emergência das vítimas na sociedade contemporânea

A figura da vítima tem conquistado espaço no âmbito da vida social contemporânea, ao ganhar visibilidade e reconhecimento nos debates públicos e nas práticas institucionais. Movimentos sociais organizam-se em defesa das vítimas, a imprensa para elas se volta como se fossem praticamente as únicas destinatárias das políticas de segurança, novos saberes – como a Vitimologia – em torno delas se estruturam, rompendo com o interesse quase exclusivo da Criminologia em relação ao criminoso e o próprio campo jurídico adota reformas buscando criar espaço para sua maior participação nos ritos legais. Enfim, uma inovação social de grande alcance parece em curso, embora seus contornos e significados ainda não tenham adquirido total clareza. Para alguns, haveria a efetiva emergência de novos atores sociais, de novas demandas por reconhecimento da parte daqueles que, durante séculos, estiveram silenciados. Para outros, no entanto, essa emergência faria parte de um novo fervor punitivo que invade o espaço público, do processo de hipertrofia do Estado Penal ou de constituição de uma nova cultura do controle que se infiltra em todas as dimensões da sociedade. Tal é o debate que, em grande medida, é travado no âmbito das Ciências Sociais e Jurídicas.

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Inúmeros trabalhos recentes discutem essa entrada das vítimas nas representações sociais e na ação política nas sociedades contemporâneas (ZAUBERMAN E ROBERT, 2007; WIEVIORKA, 2005; CARIO E SALAS, 2001; BERNARD E CARIO, 2001; DUMOUCHEL, 2000; COLLARD, 1999; GARAPON E SALAS, 1997). A maior parte dos autores concorda que tal irrupção implica numa ruptura em relação à forma como a sociedade moderna construiu as representações e práticas hegemônicas em torno do crime e da punição. A construção do monopólio da violência legítima pelo Estado e pelo Direito na modernidade implicou a exclusão da vítima do processo penal. Se, durante muito tempo, a vítima desempenhou um papel ativo na repressão da infração e na reparação dos prejuízos sofridos, por razões políticas diversas o Estado moderno acabou progressivamente por praticamente excluí-la do processo penal (CARIO, 2000). Apenas recentemente a vítima passou a obter o reconhecimento formal de seus direitos, sendo que tal processo está ainda em curso. Se há consenso em torno da idéia de que a presença da vítima no espaço público contemporâneo acarreta uma ruptura profunda na sociedade moderna, o mesmo consenso não se estabelece quando se trata de avaliar criticamente tal processo. Para alguns, essa emergência implicaria em novas formas de ação coletiva, em novas formas de construção dos sujeitos sociais e em possibilidades de emancipação. Para outros, em contrapartida, tal fenômeno indicaria notadamente um novo fervor punitivo que se torna hegemônico na sociedade contemporânea e que ameaça as garantias e direitos conquistados ao longo da modernidade. Michel Wieviorka (2005) é um dos autores que busca analisar essa transformação em termos de seus aspectos mais promissores. Para esse autor, trata-se efetivamente de uma verdadeira ruptura antropológica, uma vez que, nas sociedades tradicionais, mesmo que existisse a representação do sofrimento vivido, a figura mesma da vítima era pouco relevante: suas dificuldades e seus traumatismos eram bem menos importantes do que o próprio significado da violência sofrida do ponto de vista da comunidade. Com a constituição do Estado moderno, a vítima igualmente não terá grande demanda a apresentar, uma vez que o Estado toma seu lugar para obter reparação em nome de toda a sociedade. Embora considere que a entrada massiva das vítimas nos espaços públicos contemporâneos coloque inúmeros problemas de ordem política, ética e jurídica – tais como os relativos ao enfraquecimento do Estado nacional, da possível dissolução entre as esferas pública e privada, da crise mais geral das instituições etc. –, para Wieviorka o

179

mais importante é que essa transformação coloca em cena novas possibilidades de expressão dos sujeitos individuais e coletivos. Ou seja, ao invés de reduzir a dimensão subjetiva da temática da vítima apenas a uma ameaça de crise das instituições, deve-se enfatizar que a emergência da vítima aponta para o potencial de reconhecimento público do sofrimento suportado por um indivíduo singular ou por grupos, a possibilidade de narrar a experiência vivida e o impacto dos traumatismos; enfim, permite fortalecer a presença do sujeito pessoal na consciência coletiva (WIEVIORKA, 2005). Se a violência, nas suas múltiplas formas, é sempre a negação dos sujeitos, a emergência da vítima como sujeito na cena pública pode ajudar no combate à própria violência, ao exercer um efeito de responsabilização sobre políticas e representações, ao contribuir para a construção da memória histórica, ao permitir novas perspectivas de reconhecimento, mesmo que a derivação populista em torno da questão, sobretudo no plano penal, não possa ser subestimada. Denis Salas (2005), em contrapartida, em seu livro intitulado La volonté de punir [A vontade de punir], ressalta justamente os perigos que a emergência da figura da vítima nos debates públicos acerca da justiça e da punição nas sociedades democráticas apresenta em termos do fortalecimento do assim chamado populismo penal – definido como o discurso emotivo que clama por punição em nome das vítimas e contra as instituições democráticas desqualificadas. Ao tomar esse caminho, Salas argumenta na mesma direção de inúmeros autores que diagnosticam, na cena contemporânea, um novo impulso punitivo que, de certa forma, acompanha a intensificação do movimento da globalização econômica nas últimas décadas, por vezes caracterizado pela ascensão de um Estado Penal (WACQUANT, 1998; 2001a; 2001b) ou como uma nova cultura do controle (GARLAND, 2001). O que se coloca em questão, em última instância, nessas discussões é o diagnóstico acerca da própria crise do Estado e da sociedade na contemporaneidade. Para alguns, potencialmente sobrecarregado pela pressão dessas novas demandas sociais e políticas, o Estado estaria ameaçado de perder o monopólio da ação penal, construído com dificuldade ao longo da modernidade, ou poderia ser levado à inflação penal como resposta a problemas cuja resolução deveria ocorrer no plano civil, administrativo ou social, exclusivamente (CARIO, 2000, p. 9). O tema, portanto, permite diferentes tomadas de posição valorativa, bem como coloca grandes desafios metodológicos. Uma consideração metodológica que pode ser antecipada, considerando-se o aprofundamento do estudo do problema, é que

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historiadores do Direito Penal apontam que o próprio processo de emergência da vítima no direito penal contemporâneo não é tão simples, como muitas vezes apresentado pela bibliografia sobre o tema, já que, também no que se refere à questão da vítima, a marcha do direito não é linear e evolucionista, devendo-se desvendar em cada período as doutrinas, e também as práticas, dos tribunais e, mesmo, as práticas infrajudiciais ou parajudiciais concorrentes. (cf. GARNOT, 2001; ALLINNE, 2001). Tanto no passado como no presente, a evolução do estatuto social e jurídico da vítima é perpassada por conflitos e ambiguidades. O decisivo é que, na atualidade, instaurou-se toda uma nova disputa em torno da própria “semântica” da palavra vítima, nos mais diversos âmbitos da vida social. Se hoje se deve buscar um maior reconhecimento em favor da vítima, tanto em termos sociais e culturais quanto no âmbito penal, tal objetivo é bastante complexo e só é possível avançar em termos práticos a partir de uma melhor compreensão do que está realmente em jogo nesse conjunto de transformações. A emergência da vítima fortalece o sujeito individual diante da coletividade? É possível evitar as manipulações do populismo penal e da nova cultura do controle do crime, que, por vezes, defende políticas de endurecimento penal em nome das vítimas? Como transformar a pressão legítima das vítimas em políticas verdadeiras de reconhecimento? Tais questões não podem ser respondidas de forma abstrata – apenas estudando-se contextos e práticas específicas é que será possível aprofundar as questões anteriormente levantadas.

O percurso da vítima na legislação penal e processual penal brasileira

Na recente história brasileira, também os perigos do populismo penal estão presentes. A legislação criminal da década de 90 do século XX – em especial a lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos) e suas edições posteriores – é exemplo da instrumentalização da vítima em prol de uma política criminal de matriz neoconservadora, mais repressiva e não atenta às garantias fundamentais e aos direitos dos acusados (TEIXEIRA, 2009). Além disso, em inúmeros debates públicos, percebese a manipulação da figura da vítima com a finalidade tão-somente de maior criminalização e punição, ao reforçar os fenômenos que deveria coibir: a vitimização, secundária e terciária, e a despersonalização do conflito.

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Emergem, porém, igualmente dois movimentos que podem ser denominados “vitimológicos”. O primeiro surgido com a pretensão de combater a despersonalização do conflito e os efeitos vitimizadores da abordagem clássica jurídico-punitiva, pode ser identificado nos procedimentos restaurativos adotados nos Juizados Especiais Criminais e na própria justiça restaurativa. Em 1995, por meio da lei 9.09993, foram criados os Juizados Especiais Criminais, em atenção, substancialmente, a duas ordens de perspectivas em termos de política criminal: de um lado, a lógica “despenalizadora”, voltada aos delitos definidos como de menor potencial ofensivo e, de outro, a defesa da economia processual através de um rito simplificador em substituição ao processo penal e do consequente desafogamento do sistema de justiça criminal. Dessa maneira, as varas criminais poderiam atuar com maior prioridade sobre os crimes de “maior potencial ofensivo” (AZEVEDO, 2000). Com a lei, institucionalizou-se no sistema de justiça criminal brasileiro a chamada justiça consensual ou restaurativa94, que teria por objetivo a conciliação e a busca do restauro dos laços entre as partes, ampliando assim a interação entre agressor ou infrator95 e vítima, e buscando a pacificação do conflito. Esse modelo de justiça introduziu uma dinâmica inovadora, com procedimentos informais e rápidos na tentativa de desenvolver alternativas mais eficazes e menos onerosas (DIAS E ANDRADE, 1992). Para os crimes de menor potencial ofensivo – com pena igual ou inferior a um 96

ano

e os delitos culposos – a lei instituiu o rito em princípio “descriminalizante” dos

JECRIMs, a partir de procedimentos que precederiam e em alguns casos até substituiriam a instauração do processo penal, a saber, a composição civil (prevendo a tentativa de conciliação como etapa necessária), seguida da transação penal e, enfim, da suspensão condicional do processo.

93

A lei trata dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Neste relatório, a menção à lei 9.099/95 será sempre para se referir ao JECRIM. 94 Os modelos conciliatórios (consensuais ou restaurativos) de solução de conflito, que passaram a ganhar importância a partir da década de 1970 nos Estados Unidos, são parte de uma política de pacificação, que se preocupa com a harmonia e a eficiência. Passa-se de uma “ética do certo e errado” para uma “ética do tratamento” (NADER, 1994), ou seja, a lógica dos tribunais, que era de se ter ganhadores e perdedores, passa a ser substituída por uma lógica de acordo e conciliação em que só há vencedores. 95 Foram utilizadas as denominações nativas, isto é, empregadas pelos atores do sistema de justiça criminal. 96 A lei 10.259/01, que criou os Juizados Especiais Federais, passou a ampliar a definição de crime de menor potencial ofensivo, estendendo seu rol de incidência para os crimes cuja pena seja igual ou inferior a dois anos.

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No que toca à transação penal, sua aceitação implica na aplicação das medidas alternativas anteriores ao processo e à pena, representadas, no entanto, pelas mesmas modalidades já previstas no Código Penal desde 1984 como penas restritivas de direitos: prestação de serviços à comunidade, limitação de final de semana e interdição temporária de direitos. Essa espécie de transação foi festejada por alguns autores por incorporar tendências internacionais que propunham mecanismos ressocializadores e apaziguadores de conflitos. Outros, entretanto, consideraram-na polêmica, pois se daria em um momento no qual ainda não haveria investigação ou prova que demonstrasse a responsabilidade do acusado. Seria, assim, uma espécie de punição antecipada, em conflito com o princípio da presunção de inocência97. O acento desprisionalizador dessa lei diz respeito particularmente aos reclamos de um determinado movimento de política criminal no qual as alternativas ao encarceramento emergiam como proposta central. Foi assim, no bojo de uma política de alternativas penais, que a lei 9.099/95 passou a contemplar instrumentalmente tal perspectiva, ao prever procedimentos restaurativos que visassem a evitar, em última instância, a privação de liberdade dos condenados. Esse é o sentido que pode ser extraído das Regras Mínimas para a Elaboração de Medidas Não Privativas de Liberdade, conhecidas como Regras de Tóquio, cujo texto foi aprovado pelas Nações Unidas em 14 de dezembro de 1990 e ao qual a lei 9.099/95 estaria filiada. Em seu conteúdo, há a recomendação expressa pela adoção de medidas penais alternativas ao encarceramento, como a restrição de direitos do condenado e acusado, e de procedimentos restaurativos, como a composição do dano causado e a indenização da vítima, mais uma vez como alternativas ao processo penal e à pena de prisão. O trabalho de Azevedo (2000) aponta para o fato de que a lei 9.099/95 promoveu uma “judicialização dos conflitos”, uma vez que permitiu maior controle sobre os litígios que antes eram resolvidos fora do âmbito do Judiciário ou que permaneciam “engavetados” nas delegacias de polícia, isto é, que não chegavam a integrar o conjunto de demandas levado ao sistema de justiça. Foram também identificados problemas como a ausência de promotores em audiências preliminares, a atuação excessivamente burocratizada de juízes e a presença de promotores e conciliadores na condução de acordos, o que revelaria uma preocupação com uma maior quantidade de desfechos rápidos e com baixo dispêndio de recursos. O autor considera, no entanto, que, levando97

“Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória” (Constituição da República Federativa do Brasil, art. 5º, inc. LVII).

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se em consideração o poder de movimentar o sistema de justiça criminal que é colocado nas mãos da vítima – na medida em que é ela quem se dirige à autoridade policial para comunicar a ocorrência – e a possibilidade de obtenção da reparação do dano através da ação penal, haveria um maior protagonismo da vítima nos juizados em comparação com o processo penal tradicional. De qualquer modo, não foi exatamente na condição de protagonista que a vítima emergiu nesse novo contexto, embora esse papel tenha sido disponibilizado, em tese, a partir de procedimentos alternativos ao processo penal tradicional, expressos, especialmente, na figura da composição civil do dano, cuja prática remete à lógica da mediação de conflitos, na qual, em princípio, os próprios papéis de agressor e vítima podem ser discutidos e redefinidos. Se as práticas restaurativas concernentes às conferências, consubstanciadas em audiências nos juizados, dividem posições no que diz respeito à validade e à eficácia dos fins a que se destinam, dada também a heterogeneidade de sua aplicação, contudo, no que diz respeito à aplicação das medidas alternativas aos autores dos crimes sujeitos ao JECRIM, a crítica é bastante contundente ao denunciar a banalização com que esses fenômenos seriam tratados, em especial no que toca àqueles relativos à violência doméstica. Em verdade, a percepção do processo de banalização foi acentuada com a edição da lei 9.714/98, responsável por instituir quatro novas modalidades de sanções restritivas de direitos: a prestação pecuniária em favor da vítima, a perda de bens e valores, a proibição de frequentar determinados lugares e a prestação de outra natureza, tendo ainda modificado98 as condições de aplicabilidade das penas alternativas. A referida lei, antes de operar como medida de ampliação e fortalecimento das medidas alternativas ao encarceramento, prestou-se, ao contrário, nos dizeres de Martins (2004, p. 656), “puramente ao fortalecimento do papel simbólico da repressão penal, alastrando penas cosméticas e propiciando a banalização da intervenção penal na vida social”. Foi principalmente no que se refere ao recurso reiterado que a justiça passou a fazer da modalidade prestação pecuniária, em especial na conversão do valor devido em cestas básicas e nos crimes relativos à violência doméstica, que a perspectiva de banalização desse problema e, mais ainda, a de desvalorização do papel da vítima se

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Ampliou-se de dois para quatro anos de reclusão o tempo de pena de prisão passível de ser substituída por restritiva de direitos, desde que se trate de delitos cometidos sem violência ou grave ameaça, que seja primário o agente e estejam atendidos os demais requisitos de caráter subjetivo.

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fizeram sentir com maior evidência no sistema dos juizados. Foi justamente a partir dessa crítica e em oposição clara ao modelo previsto e executado nos JECRIMs que a sociedade civil e os movimentos sociais reivindicaram outras formas de enfrentamento e de erradicação da violência de gênero, a partir da constatação da maior vulnerabilidade imposta às vítimas desse tipo de violência pela aplicação da lei 9.099/95. A Lei Maria da Penha configura-se, deste modo, como um segundo movimento que pode ser denominado “vitimológico” no Brasil. Em agosto de 2006, foi aprovada e sancionada no Brasil a lei 11.340, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. De acordo com Teles, a lei estabeleceu que a violência doméstica deve ser “enfrentada pelo Estado e pela sociedade brasileira a fim de responder de forma satisfatória à realidade de milhões de mulheres que, cotidianamente, sofrem as mais diversas formas de violência: física, psicológica, sexual, moral, patrimonial, entre outras” (TELES, 2009, p. 13). Um antecedente direto dessa lei consiste na condenação sofrida pelo Estado brasileiro na Comissão Interamericana de Direitos Humanos pelo tratamento dado ao caso de Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de duas tentativas de homicídio perpetradas por seu marido. Com o apoio do Centro de Justiça pelo Direito Internacional (CEJIL) e do Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), Maria da Penha teve seu caso admitido porque se entendeu que o Estado, ao se omitir, fora responsável pela violação de direitos. O Relatório 54/2001 condensa as recomendações advindas da condenação, que exigiam o empenho do Estado para pôr fim à tolerância e ao tratamento discriminatório no que atine à violência doméstica contra as mulheres. Recomendou-se que o Estado simplificasse os procedimentos judiciais penais, sem afetar os direitos e garantias do devido processo, estabelecesse formas alternativas às judiciais, que fossem rápidas e efetivas na solução de conflitos intrafamiliares e promovesse a sensibilização com respeito à gravidade e às consequências penais geradas pela violência doméstica. Além disso, os movimentos de mulheres denunciavam a fragilidade da lei 9.099/95, cuja dinâmica não daria conta da complexidade da violência doméstica. O processamento dos casos de violência doméstica nos JECRIMs foi bastante criticado, tanto pela equiparação desse crime a uma infração de “menor potencial ofensivo”, quanto pelos desfechos obtidos, considerados inadequados pelas vítimas.

185

Ao longo das discussões que redundaram na lei 11.340/0699, procurou-se construir um novo modelo para o tratamento da questão da violência doméstica no país, que se distanciasse daquele previsto pela lei 9.099/95 e que alçasse o problema a um outro patamar, em que o papel da vítima fosse reconfigurado. As discussões acerca de uma lei para o enfrentamento da violência doméstica contra a mulher, que contaram com a participação de representantes da sociedade civil, provocaram modulações no texto do projeto de lei original (PL 4.559/2004). Durante o trâmite legislativo, a passagem do projeto pela Comissão de Seguridade Social e Família acarretou um conjunto de mudanças em relação ao texto original, tendo sido muitas dessas propostas de alteração efetivamente aprovadas100. Dentre as principais inovações da lei 11.340/06, vale mencionar: (a) a tipificação do crime de violência doméstica e familiar como física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, (b) a criação de medidas integradas de prevenção à violência doméstica e familiar, (c) a criação de mecanismos de assistência à mulher vítima de violência doméstica e familiar, (d) a prescrição da forma de atendimento dessa vítima pela autoridade policial, (e) a criação do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com competência cível e criminal, e retirada da competência dos JECRIMs para julgar crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher, bem como a vedação da aplicação da lei 9.099/95, (f) a criação de medidas protetivas de urgência para a vítima, (g) a previsão de assistência judiciária para a vítima e (h) a previsão de equipe de atendimento multidisciplinar101.

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O projeto de lei 4.559/2004, que visava à criação de lei para o enfrentamento da violência doméstica, foi elaborado pelo Grupo de Trabalho Interministerial, criado pelo decreto 5.030 de 31 de março de 2004, do qual faziam parte a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, a Casa Civil da Presidência da República, a Advocacia-Geral da União, o Ministério da Saúde, a Secretaria Especial de Direitos Humanos, a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, o Ministério da Justiça e a Secretaria Nacional de Segurança Pública. O Consórcio de Organizações Não Governamentais Feministas encaminhou ao Grupo de Trabalho anteprojeto que subsidiou as discussões sobre a lei em diversos níveis (oitivas, seminários, debates e oficinas) e com diversos atores (representantes da sociedade civil, órgãos diretamente envolvidos na temática etc.). 100 Dentre as mudanças mais importantes propostas pela deputada Jandira Feghali (PC do B/RJ), relatora do projeto na Comissão de Seguridade Social e Família, estão a substituição do termo “medidas cautelares” por “medidas protetivas de urgência”, a notificação da ofendida dos atos processuais, supressão de qualquer menção à lei 9.099/95 e a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, determinação de cadastro pelo Ministério Público dos casos de violência doméstica, criação de centros de atendimento psicossocial e jurídico, casas-abrigo, delegacias especializadas, núcleos de Defensoria Pública, serviços de saúde, centros especializados de perícias médico-legais, centros de educação e de reabilitação para os agressores. 101 Após a promulgação da lei, iniciou-se uma discussão doutrinária e jurisprudencial em torno de sua constitucionalidade. A polêmica ensejou ação declaratória de constitucionalidade em 2007, por iniciativa da Presidência da República. O Ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello negou liminar e até o encerramento desta publicação aguardava-se o julgamento pela Corte.

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É nessas duas direções vitimológicas da legislação brasileira que a pesquisa aqui descrita situou suas questões, ao investigar empiricamente o quanto as duas experiências mencionadas (procedimentos restaurativos nos JECRIMs e a Lei Maria da Penha) podem ter vindo ou não a configurar um outro paradigma na tutela dos direitos da vítima no processo penal, tendo por comparação o modelo tradicional de exclusão da vítima no curso da persecução penal no ordenamento vigente.

A pesquisa empírica qualitativa nas varas criminais e no Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher

Uma das primeiras escolhas que se colocam quando se pretende investigar empiricamente um fenômeno social remete ao emprego de métodos quantitativos ou qualitativos. Atualmente, encontra-se bem estabelecido, no campo das Ciências Sociais, o consenso de que, dependendo do problema de pesquisa a ser investigado, é possível obter respostas satisfatórias tanto a partir de dados quantitativos quanto qualitativos ou mesmo pela combinação das diferentes técnicas. Considera-se que a técnica quantitativa permite uma maior padronização dos procedimentos de pesquisa, já que possibilita generalizações a partir do emprego de técnicas estatísticas e comparações de dados e hipóteses com pesquisas realizadas em outros contextos mas que empreguem os mesmos métodos. A técnica qualitativa, em contrapartida, permite um exame mais intensivo dos dados, possibilita uma maior flexibilidade na coleta do material, abre mais espaço para a interpretação dos significados dos dados investigados. Na pesquisa qualitativa em geral, a ênfase recai sobre o sujeito, sobre a forma como ele age e interpreta sua própria condição numa determinada situação social (BOUDON, 1989; COULON, 1995; MARTINS, 2009). Na presente pesquisa, tendo em vista o problema a ser aprofundado, optou-se pela pesquisa de natureza qualitativa por meio do emprego de dois instrumentos investigativos principais: a observação e a entrevista. Ao mesmo tempo em que a revisão da bibliografia e a análise de fontes documentais forneceram o arcabouço teórico e o contexto mais amplo para subsidiar a análise de campo, os citados instrumentos viabilizaram o acesso aos comportamentos e valores dos agentes envolvidos. As entrevistas tiveram importância fundamental nessa empreitada, já que o propósito precípuo foi o de resgatar as percepções das vítimas e dos operadores que se

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inserem nos mecanismos processuais instaurados pelas leis 9.099/95 e 11.340/06. As entrevistas semi‐padronizadas – nas quais o entrevistador deve fazer certo número de perguntas principais e específicas, mas é igualmente livre para ir além das respostas dadas, ao incluir novos temas e indagações (PHILIPS, 1974) – visaram a alcançar as percepções subjetivas de atores-chave do sistema de justiça e das vítimas e suas representações face à efetiva participação e ao grau de satisfação em relação ao desfecho processual, não sendo ignorados eventuais impactos em suas condições de vida, de cunho material e psicológico. Também foram entrevistados sujeitos cujas trajetórias de vida foram consideradas significativas em termos das questões aqui investigadas. A pesquisa de campo teve por objetivo principal a análise das percepções das vítimas através da observação e de entrevistas realizadas durante as audiências nos Juizados Especiais Criminais (lei 9.099/05) e nos processos penais referentes à violência doméstica e familiar que tramitaram de acordo com o previsto na Lei Maria da Penha

(lei

11.340/06).

Foram

selecionados

dois

contextos

empíricos

para

desenvolvimento desse momento da investigação: o primeiro contexto correspondeu a duas varas criminais da Comarca de São Paulo que apresentam competência tanto para julgar delitos de acordo com a lei 9.099/95 quanto para julgar casos de violência doméstica segundo o que prevê a Lei Maria da Penha, além de serem varas criminais comuns e, portanto, terem competência para julgamento de crimes pelo rito ordinário. O segundo contexto correspondeu ao primeiro Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do estado de São Paulo, instaurado em janeiro de 2009 no Foro Central da Barra Funda e que ainda se encontra em processo de implementação, criado para proporcionar um atendimento mais específico às vítimas de violência doméstica102, em conformidade com a lei. A equipe de pesquisa, a partir das pautas de audiências consultadas com antecedência, previu inicialmente o acompanhamento de 50 audiências entre os meses de outubro e novembro de 2009103, sendo que muitas delas não ocorreram, na maioria dos casos em razão da ausência de uma das partes, assim foram acompanhadas efetivamente 35 audiências. 102

Optamos aqui por não identificar as duas varas criminais pesquisadas, uma vez que o objetivo da pesquisa não consistiu em avaliar a conduta dos operadores mas apenas reconstituir quadros materiais e simbólicos de atuação que podem igualmente estar presentes em outros contextos. 103 Com esse número não se buscava nenhum tipo de representatividade estatística dos dados, pois se tratou de uma pesquisa qualitativa, como já ressaltado. Buscou-se, em contrapartida, a identificação de um conjunto de casos significativos, de acordo com o problema de pesquisa proposto.

188

Muito embora não tenha sido objetivo da pesquisa a reconstituição minuciosa do funcionamento dos JECRIMs, foi preciso resgatar, a partir dos resultados obtidos no trabalho de campo, quais fatores estruturais teriam impacto sobre a questão da participação da vítima nesse procedimento específico do sistema de justiça criminal. Por conseguinte, não se poderia esquecer o conjunto de disposições dos operadores do direito, tampouco os recursos materiais e humanos, fatores que se convertem em condições de possibilidade para que a vítima e seus interesses sejam recepcionados pela dinâmica dos JECRIMs. A estrutura disponível para o funcionamento do JECRIM e as idéias cultivadas pelos operadores a respeito de suas atribuições estão imbricadas. Se, de um lado, há apenas um juiz de direito e um promotor de justiça para dar conta de duas salas onde são realizadas audiências simultaneamente, de outro, as percepções dos operadores convergem para a minimização desse problema diante da “simplicidade” do procedimento do JECRIM. As audiências preliminares são simples, não precisa estar o promotor junto. Veja bem, não é que eu estou fazendo o papel dele, é que eu já sei o que ele vai propor104. É um papo rápido mesmo, para ver se tem acordo105. Quando é besteirinha propõe-se cesta básica106.

Ainda em relação à estrutura do Juizado, a inexistência de defensor público em seus quadros é, sem dúvida, um grande obstáculo não apenas à garantia dos direitos do acusado – que muitas vezes comparece à audiência sem orientação adequada e desacompanhado de advogado – e, particularmente, à participação efetiva da vítima. Os casos observados revelaram que nas ocasiões em que a vítima está assistida por advogado, o espaço para sua participação é maior – mesmo que seu discurso seja incorporado pela manifestação de seu representante – e o desfecho se aproxima mais de suas pretensões. Nas audiências em que estavam presentes a vítima e o infrator107, notou-se que na maioria dos casos a vítima não foi sequer consultada quanto à opção de ser ouvida pelo juiz sem a presença do acusado. Algumas das vítimas entrevistadas foram categóricas ao afirmar que se os agressores não estivessem presentes à audiência,

104

Entrevista realizada com juiz de direito atuante na vara criminal pesquisada. Idem. 106 Ibidem. 107 Casos de delitos contra o meio ambiente, contravenções penais e receptação culposa de veículos, por exemplo, foram abarcados pela observação, sem que houvesse a figura da vítima tal como abordada pela pesquisa. 105

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sua liberdade para falar poderia ter sido maior. A presença do infrator, e até mesmo de seu advogado, traduzia-se, nos casos analisados, em um obstáculo para a expressão da vítima, já restrita por conta da celeridade do procedimento. A preocupação com a rapidez das etapas do processo, aliada à enorme demanda que se apresenta aos JECRIMs, resta por inibir as possibilidades de manifestação e de satisfação da vítima. Observou-se que juiz de direito e promotor de justiça sistematicamente deixavam de lado a tentativa de composição civil do dano e partiam para a transação penal, expediente que ocasiona o afastamento da vítima do procedimento. Consequentemente, a informalidade do JECRIM, que poderia ser positiva para a vítima ao remover barreiras entre o cidadão e o sistema de justiça, transforma-se no seu oposto, já que procedimentos informais, sobretudo quando implementados de forma deficitária, ficam sujeitos a manipulações e abrem brechas para que os direitos das vítimas não sejam garantidos, principalmente se não há prestação de assistência jurídica de maneira adequada. No que diz respeito ao grau de satisfação das vítimas, percebeu-se que sua frustração decorre em grande parte da incapacidade do resultado alcançado em restabelecer o direito lesado ou o dano causado pelo agressor. A sensação de impunidade também foi recorrente dentre as percepções coletadas, sendo o descontentamento produzido pelas medidas alternativas, que não constituiriam uma resposta suficiente. Esse fenômeno se mostrou mais frequente nos casos em que vítima e infrator não guardavam uma relação de interpessoalidade. Pagar uma cesta básica não é uma punição forte, acho que a punição deveria ser mais punitiva108. Os casos estudados no JECRIM indicam que a satisfação da vítima parece ligar-se ao sucesso da composição civil e, em decorrência, ao ressarcimento dos prejuízos causados. Duas situações que compuseram o universo da pesquisa ilustram essa constatação. Em uma delas, uma vítima de lesão corporal, munida de recibos que comprovavam seus gastos com o tratamento, disse estar parcialmente satisfeita com o

108

Entrevista com vítima envolvida em um conflito de trânsito. A vítima chegou a manifestar na audiência o interesse pela composição civil (pagamento de R$1.700,00), que foi rechaçada pelos infratores. Na transação penal, o juiz ofereceu aos infratores duas opções: o pagamento de cestas básicas ou a prestação de serviços à comunidade. Os infratores optaram pelo pagamento de cesta básica, o que a vítima considerou insatisfatório, já que não teria ressarcido o prejuízo causado pelo dano, muito menos correspondia ao que julgava “realmente punitivo”.

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desfecho, o pagamento de R$1.000,00 pelas despesas, e surpresa com a rapidez do processo: Foi bem tranquilo, sem muita burocracia [...]. Eu esperava isso mesmo, não tinha nada além disso, sempre acreditei que ia dar certo109. Em outro caso, o próprio infrator propôs à vítima o pagamento dos prejuízos sofridos em razão do acidente por ele provocado. Além disso, ele aproveitou o momento da audiência para se desculpar com a vítima pelo que havia ocorrido e por não tê-la procurado antes daquele momento, já que eram vizinhos que moravam na mesma rua. Esse efeito simbólico da atuação do sistema de justiça também pôde ser aferido em outro caso e pode servir como elemento a ser considerado na própria avaliação que a vítima faz do desfecho propiciado. Uma vítima declarou-se satisfeita com a audiência porque pôde manifestar que a decisão quanto à continuidade ou não do processo estava em suas mãos e que a agressora teria se sentido intimidada pelo juiz: Fiquei satisfeita. Pelo menos serviu para amedrontar ela, né? Vamos ver o que vai acontecer agora110. Outro fator que parece ter relevância, em se tratando da satisfação da vítima, é a oportunidade que lhe é dada para exprimir sua versão do episódio e seus interesses. Metade das vítimas entrevistadas relatou insatisfação em relação ao tempo e ao espaço concedidos para sua fala. O promotor não me deixou falar, eu estou com medo, eu moro sozinha. O promotor nem me deixou falar isso, ele só perguntou se eu queria que continuasse o caso e eu disse que sim. Não foi dado espaço para falar111. O tratamento dado aos casos de violência doméstica nas varas criminais

Após a promulgação da Lei Maria da Penha, as varas criminais assumiram competência para julgar casos de violência doméstica enquanto não se estruturam os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Por esse motivo, as varas criminais pesquisadas voltavam seu trabalho para casos de violência doméstica e também para as infrações de menor potencial ofensivo. Ou seja, em uma mesma tarde, 109

Entrevista com a vítima. Entrevista com a vítima. 111 Entrevista com a vítima. 110

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eram realizadas audiências do JECRIM e de casos de violência doméstica, além das audiências correspondentes aos processos ordinários. A falta de uma dotação estrutural, que converge para o funcionamento concomitante de lógicas substancialmente diversas, por certo dificulta a incorporação e a aplicação adequada dos princípios que norteiam a proposição de uma e de outra lei. Antes da Lei Maria da Penha, as varas criminais para as quais se voltou a pesquisa tratavam a violência doméstica a partir da ótica do JECRIM. Conforme o depoimento de juiz de direito ouvido para a pesquisa, antes da promulgação da Lei Maria da Penha o JECRIM lidava majoritariamente com casos de violência doméstica. Nas audiências preliminares que foram acompanhadas pela pesquisa, tanto o juiz quanto o promotor propuseram a transação penal em praticamente todos os casos de violência doméstica. A informalidade proporcionada pela lei 9.099/95 parece ter sido transferida para todos os casos que tramitam nas varas criminais, inclusive aqueles enquadrados na Lei Maria da Penha, embora o artigo 41 disponha que “aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a lei 9.099, de 26 de setembro de 1995”. A observação das audiências ocorridas nas varas criminais ao longo da realização do trabalho de campo aponta para a hipótese de que não houve uma ruptura efetiva quanto ao tratamento oferecido por essas varas em relação aos casos de violência doméstica e, especialmente, às vítimas. As considerações feitas em relação à participação da vítima no JECRIM podem ser repetidas para retratar o que ocorre nas varas criminais. As vítimas de violência doméstica entrevistadas relataram não terem participado da construção do desfecho do caso e nem do processo como um todo, e não conseguiram, principalmente no momento da audiência preliminar, expor suas expectativas112 ou solicitar a medida protetiva. Nos casos de violência doméstica em que ocorreu a transação penal, isso ficou ainda mais evidente. A pesquisa de campo mostrou que juízes e promotores são orientados pelas contingências da falta de estrutura e pela consequente preocupação em diminuir o 112

Diferentemente do que se poderia esperar de uma situação caracterizada pela emoção, a maioria das vítimas se dispôs a falar com a equipe de pesquisa. Talvez isso seja reflexo do fato de elas não terem encontrado espaço nas audiências para relatarem sua versão dos acontecimentos, bem como de expressarem suas angústias. Em um dos casos, a vítima chegou a dizer: “lá [sala da audiência] eu queria ter falado, como estou falando pra você, que o [agressor] continua me perseguindo, mas não deu”. Em outra audiência, a vítima estava bastante nervosa e não conseguia parar de chorar, dizendo às entrevistadoras: “que bom que posso conversar com vocês sobre isto, estou me sentindo muito acuada, estou com muito medo”.

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número de processos e agilizar as audiências, não havendo nenhuma prestação de esclarecimentos para as vítimas, principalmente quanto aos procedimentos a serem adotados diante de uma nova ameaça ou agressão, o que poderia interromper o ciclo de vitimização. Um dos casos acompanhados ajuda a compreender essa questão: após proposta de transação penal oferecida pelo Ministério Público, a vítima de lesão corporal, que na ocasião estava grávida e sofreu um abortamento por conta da agressão, dirigiu-se ao promotor e disse temer que o ex-companheiro voltasse a agredi-la, principalmente porque ela havia manifestado a impossibilidade de acordo ou de conciliação entre as partes. Perguntado pela vítima sobre como deveria proceder caso voltasse a ser agredida, o promotor de justiça respondeu que ela deveria registrar boletim de ocorrência. A vítima reiterou sua preocupação quanto à sua segurança, ao que o promotor respondeu:

Todos temos medo, eu tenho medo também, a violência urbana está em todo lugar. A satisfação das vítimas de violência doméstica, diferentemente do que foi observado nos casos dos JECRIMs, parece estar vinculada à resolução do problema, o que passa pelo constrangimento dos cônjuges para que cessem as agressões. De modo geral, as vítimas manifestaram que sua intenção, ao acessar o sistema de justiça, não era que o agressor fosse punido, mas, sobretudo, de se verem protegidas da violência. É o que se depreende da fala de outra vítima ouvida na pesquisa: [...] na verdade eu esperava outra coisa, algo que eu pudesse sair hoje do fórum e o [agressor] não me perseguisse mais. Eu não aguento mais, ele me persegue dia e noite. Já mudei três vezes de casa e ele sempre se muda para uma casa próxima à minha. Ele faz um tipo de tortura psicológica comigo, fica me xingando no bairro e falando mal de mim pras minhas filhas. [...] Achei que hoje isso ia ter fim.113 E, também, do depoimento da vítima de um dos casos acompanhados, que decidira retirar a representação porque ela não teria “coragem de andar na rua com medo do agressor”. Outro caso, que trata de conflito entre mãe e filho, demonstra a especificidade da violência doméstica e, ao mesmo tempo, o despreparo dos operadores diante desse fenômeno. A vítima estava dividida porque, por um lado, temia pela

113

Entrevista com a vítima.

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própria vida e, por outro, tinha receio de prejudicar o filho e agressor. Sem saber o que decidir, a vítima questionou o juiz sobre a melhor decisão, que retrucou: Minha senhora, eu não tenho bola de cristal, não vou saber o que o seu filho pode fazer com a senhora. A vítima de outro caso chegou a afirmar, em entrevista para a pesquisa, que não desejava a prisão do ex-marido, mas que esperava que ele a “deixasse em paz”, ou seja, cumprisse a medida protetiva consistente na proibição de aproximação, anteriormente descumprida. Ele não precisa ser preso para cumprir com a obrigação [...]. Ele vê que a lei funciona, que tem ordens que têm que ser cumpridas. O que eu espero é isso.114 O efeito simbólico do espaço propiciado pelo sistema de justiça mencionado em relação aos casos dos JECRIMs também pôde ser verificado em se tratando da violência doméstica. Algumas vítimas utilizaram o espaço da audiência – nas poucas vezes em que foi dada a oportunidade – para falarem aos agressores, o que não conseguiam em outro contexto. Um dos casos acompanhados pode ser citado como um exemplo: o marido, que estava preso por ter descumprido medida protetiva, chegou algemado à audiência de instrução. A vítima foi ouvida sem a presença do agressor e, após dar sua versão sobre o fato, pediu para falar “algumas coisas na frente de [agressor]”. Assim que ele chegou, a vítima lhe disse: Não quero mais você, quero que você veja que eu não sou uma vagabunda e que agora vou viver pras nossas filhas. Outro fator importante a ser destacado é que, em todos os casos de violência doméstica, ao contrário de outros acompanhados pela pesquisa no JECRIM, as partes estiveram em algum momento ligadas por uma relação afetiva, de pessoalidade. Entretanto, os operadores de direito não modificam sua postura ou suas determinações perante essa particularidade, mantendo o comportamento apresentado face a qualquer outro caso submetido a eles, ignorando até mesmo a vulnerabilidade da situação da vítima, que se vê confrontada por alguém que lhe é muito próximo.

114

Entrevista com a vítima.

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Esse cenário se torna ainda mais grave diante da ausência de assistência judiciária para as vítimas, prevista pela Lei Maria da Penha (artigos 27 e 28). A falta de assistência judiciária, de acordo com o que se pôde observar no campo, influencia significativamente o andamento e o desfecho dos casos – somente quando a vítima tem condições de compreender seus direitos e, sobretudo, as medidas protetivas, é que pode, de fato, participar do processo. Percebeu-se que, sem a assistência judiciária, as vítimas desconheciam parcialmente ou completamente seus direitos e tinham pouca clareza acerca das decisões que poderiam ser tomadas, possibilitando, assim o próprio descumprimento da Lei Maria da Penha e a aplicação dos dispositivos da lei 9.099/95115. Além disso, os casos observados evidenciaram que a presença do defensor é decisiva no acompanhamento do cumprimento das medidas de proteção na tomada de providências em caso de descumprimento. A imprescindibilidade da defesa técnica para o acusado, por seu turno, agrava o desequilíbrio já existente entre as partes, tendo em vista que o agressor tem, ainda que precariamente, um representante a lhe auxiliar, o que não ocorre com a vítima. Um elemento que contribui para piorar essa situação é o fato de as audiências preliminares não contarem com a presença simultânea do promotor e do juiz. Um aspecto importante dos casos de violência doméstica diz respeito à complexidade do problema, que sobrepuja a pouca informação prestada pelos atores do sistema de justiça a respeito de outros elementos de natureza não criminal, como, por exemplo, orientações a respeito da separação e do divórcio, da pensão alimentícia, da guarda dos filhos, da partilha de bens etc. A falta de aplicação efetiva dos instrumentos inovadores trazidos pela Lei Maria da Penha pelas varas criminais, bem como suas limitações para tratarem de questões que extrapolam o âmbito criminal, ou de ao menos orientarem as vítimas quanto a outras demandas trazidas pelo contexto de violência doméstica, fortalecem a idéia de que essas varas não são o espaço mais adequado para enfrentar de forma condizente esse problema.

O Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher

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Em alguns casos observados, foram identificados registros nas delegacias como crimes de violência doméstica (Lei Maria da Penha) e que, ao serem recepcionados pelo sistema de justiça, foram processados de acordo com a lei 9.099/95.

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O Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Foro Central da Barra Funda, em São Paulo, foi criado pelo Provimento 1584/2008 do Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça, em atendimento à previsão do artigo 14 da lei 11.340/06. Uma parceria entre o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e o Ministério da Justiça garantiu os recursos para sua implementação. A partir da pesquisa de campo no JVD, percebe-se o quanto ele é distinto do modelo da vara criminal comum, cujo funcionamento se pauta no modelo de uma criminalidade impessoal, em que a vítima é, como anteriormente afirmado, não raro instrumentalizada para legitimar um discurso de punitivo. Quando instada a discorrer sobre o principal obstáculo para o funcionamento do JVD tal como proposto pela Lei Maria da Penha, a juíza entrevistada foi categórica:

A estrutura que o juizado demanda. Para que a lei seja corretamente aplicada o juizado precisa dessa estrutura, precisa da equipe multidisciplinar, dos encaminhamentos, dos órgãos do Executivo para fazer esses encaminhamentos, de abrigo, de unidades de psicoterapia e psiquiatria, de tratamentos para alcoólatras e viciados em drogas. O foco da lei é justamente o processo de forma diferente do Código do Processo Penal, é tratar aquele crime como um crime ocorrido num âmbito familiar e você não trata isso aplicando uma prisão, você trata disso com mil facetas diferentes: você tem que ter encaminhamento, tem que ter audiências, ouvir as crianças, e não adianta colocar isso em uma vara comum, é preciso uma estrutura que a lei determina para o Juizado [...]. A matéria [violência doméstica] é muito específica, envolve muito relacionamento e sentimento. É muito diferente de um roubo que chegam aqui e falam o fato. As nossas audiências são demoradíssimas, porque ela conta todo o relacionamento, a ameaça , o que ele tem feito desde então. Há casos que vem anos acontecendo. E para isso você precisa de tempo e disposição. 116 Diferentemente do observado nas varas criminais com competência para o processamento dos casos de violência doméstica, o JVD conseguiu contemplar de forma mais acabada as diretrizes da Lei Maria da Penha, em especial a atenção à vítima. Um grande diferencial em comparação com as varas criminais examinadas foi a presença de todos os operadores que deveriam, de fato, participar das audiências: a juíza, a promotora, a defensora pública, pela vítima, e o defensor público ou advogado dativo pelo agressor.

116

Entrevista realizada com a juíza de direito atuante no Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra Mulher.

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As vítimas entrevistadas declararam ter encontrado nas audiências de justificação espaço para expressarem suas expectativas. As audiências de justificação, ao contrário das audiências preliminares ocorridas nas varas criminais, apresentavam o propósito de ouvir a vítima, acolher seus pedidos e encaminhar medidas protetivas, inclusive na presença do agressor. As medidas de proteção são uma inovação trazida pela Lei Maria da Penha. São previstas várias medidas aplicáveis em caráter de urgência, como o afastamento do lar, a proibição de contato e aproximação e a proibição de frequentar determinados lugares. A lei 11.340/06 inaugurou, portanto, uma matriz penal diferente da tradicional, ao fugir da lógica que opera na chave prender ou não prender, e trabalhar com outras medidas menos gravosas para o réu e que atendem as necessidades concretas da vítima. No que tange ao grau de satisfação das vítimas com relação aos resultados das audiências, a aplicação das medidas de proteção foi determinante. Um dos casos acompanhados, em que foi determinada a medida protetiva para que o agressor deixasse a residência da vítima, permite essa constatação. Quando perguntada quanto ao resultado da audiência, a vítima respondeu: Eu esperava uma solução pro meu problema, e agora eles [Judiciário] deram. O [agressor] vai ter que sair da minha casa, era isso que eu queria e é isso que vai ter que acontecer, né? Eles falaram que ele vai ter que sair da minha casa e não vai poder se aproximar de mim. Ele me agride muito, eu não mereço isso, nunca apanhei do meu pai, onde tem violência não tem amor, né? A vítima alegou estar satisfeita com o desfecho porque, segundo ela: Agora vou conseguir respirar um pouco. Essa medida [protetiva de proibição da aproximação do agressor] vai me trazer um pouco mais de segurança. [...] Espero que ele não fique mais me atormentando, que ele leve a vida dele. Tomara que dê tudo certo, eu quero paz. Olha, eu suportei isso durante trinta anos [...] eu aguentei muito até decidir procurar a delegacia, principalmente depois que eu procurei, mas a delegada me disse pra não fazer nada. Mas chegou no meu limite, eu fui na delegacia e fiquei surpresa com o desdobramento do caso, não esperava que fosse tão rápido. Agora ele não pode mais fazer o que ele quer. Agora eu acho que vou ter paz.117 A pesquisa revelou que no JVD as medidas são concedidas em audiências específicas para essa finalidade, na presença do réu, que toma ciência das consequências 117

Entrevista com a vítima.

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do descumprimento da medida. Para a juíza, essa providência estimula o cumprimento da medida: Eu costumo dar a medida em audiência e eu acho que surte um bom efeito, porque ele [réu] recebe a medida pessoalmente e não por oficio ou intimação, recebe a medida na frente da vitima e do Ministério Público.118 Caso ocorra o descumprimento da medida, a vítima é orientada a comunicar a Defensoria Pública. Na sequência, ocorre a audiência de advertência ou a decretação da prisão preventiva, a depender do caso. Conforme se constatou a partir da pesquisa de campo, a prisão preventiva é um recurso pouco utilizado, reservada a casos graves ou ao descumprimento de medidas de proteção. De forma semelhante ao que foi levantado entre as vítimas nos JECRIMs, percebe-se que as mulheres não desejavam necessariamente a prisão ou a punição dos agressores, mas uma vida sem violência. Um dos casos acompanhados é exemplar nesse sentido: houve a aplicação de medida de proteção para a agressora, filha da vítima, consistente no compromisso de frequentar um Centro de Atenção Psicossocial para tratamento da dependência química. Ao ser entrevistada, a vítima expressou ter ficado satisfeita com o resultado da audiência, pois tinha dúvidas quanto a afastar a filha o lar. A vítima também destacou que a solução obtida no JVD mostrou-se mais interessante do que a dada anteriormente pelo JECRIM: Normalmente quando eu vinha [no JECRIM] o pessoal gostava que você fizesse acordo, né? E dava uma sensação de impunidade, e eu me sentia perdida.119 Outro aspecto importante, presente no JVD, é a atuação da equipe multidisciplinar, prevista pela Lei Maria da Penha (artigo 29 e seguintes) e formada por profissionais de psicologia e de serviço social. A equipe recebe as vítimas e fornece orientações que extrapolam o universo do processo e que incidem sobre a origem do conflito, evitando a revitimização. O trabalho, que também é voltado para os agressores, pode ocorrer de forma pontual, que geralmente consiste na preparação para um determinado ato processual, como o depoimento sobre o crime, ou na forma de encaminhamento para serviços da rede pública, quando há necessidade de acompanhamento. Além disso, a equipe multidisciplinar tem a incumbência de 118

Entrevista realizada com a juíza de direito atuante no Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra Mulher. 119 Entrevista com a vítima.

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apresentar relatórios acerca de alguns casos para subsidiar a decisão judicial e atua nos casos de violência sexual em que as vítimas são crianças ou adolescentes. A juíza reporta como importante a existência desses profissionais no JVD: É muito bom, porque quando a vítima vem para a audiência, ela já lida melhor com o assunto, já que ela vem sendo tratada com psicoterapia.120 A juíza do JVD citou um caso em que a participação da equipe multidisciplinar foi relevante para o desfecho do caso. Segundo ela, a vítima sofria espancamentos e, na audiência, o agressor, seu companheiro, assumia a violência – na realidade, a vítima não desejava a separação, mas que ele fosse advertido pelo ato praticado. A vítima foi, então, encaminhada para atendimento pela equipe multidisciplinar. Uma semana após a realização da audiência, ela foi novamente vítima de espancamentos e recorreu uma vez mais ao juizado, acreditando que o companheiro não iria mais agredi-la. Na terceira vez em que foi espancada, ela já estava sendo acompanhada por uma psicóloga e dirigiu-se à delegacia, comunicou a agressão e solicitou o afastamento do agressor do lar, ficando a cessação dessa medida condicionada à frequência a tratamento de psicoterapia. Ainda de acordo com o relato da juíza: Foi ela que teve estrutura para fazer isso. Não adianta eu afastar [o agressor] e ela não ter estrutura para manter a porta fechada quando ele bater lá. Nosso objetivo é dar estrutura para que elas decidam e não fiquem ameaçadas e com medo, não tendo para onde ir, não tendo como sustentar o filho e tendo que dizer que não quer que o processo siga. É óbvio que não tem nenhuma verdade nessa manifestação de vontade.121 O grande diferencial do JVD em relação às varas criminais com competência para o processamento de casos de violência doméstica reside na prestação efetiva de assistência judiciária para a vítima, que é oferecida gratuitamente pelo Núcleo de Defesa da Mulher da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (NUDEM/DPESP), contando, pois, com profissionais especializados no tema. O papel exercido pela Defensoria Pública é central, como revela a fala de uma vítima entrevistada:

120 121

Entrevista com juíza de direito atuante no JVD. Idem.

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Eu recebi a orientação da defensora pública, que falou para eu sempre fazer boletim de ocorrência, caso ele persistisse. A [defensora], que foi muito, muito solícita em tempo integral, ela me ligava e eu até achava estranho, ela me ligava para saber se estava tudo bem, se eu estava fazendo terapia, se colocando sempre à disposição, me dando até o telefone dela. Aqui foi perfeito, nem parece que é público, ao contrário das delegacias, que são de segunda à sexta, horário comercial, se você chega às 16h não se consegue fazer boletim, porque o quadro deles é deficiente, não tem gente para atender, as delegacias que não são da mulher, te tratam com descaso, é uma situação vexatória, até te intimida. Até eu chegar aqui eu sofri muito, fiquei horas na delegacia. Te deixam de canto, como se não tivesse importância.122 Essa vítima ainda comparou o tratamento dado a seu caso pelo JECRIM, ao qual já havia recorrido por ter sofrido violência doméstica, e pelo JVD, afirmando que a principal diferença foi ter sido ouvida: Desde a defensora, a psicóloga, a juíza, elas dão importância, não é ridículo o que você fala. Eu me senti importante aqui, o meu caso é importante, o meu problema é passível de solução.123 No JVD, a equipe da defensoria se encarrega do contato com a vítima, prestando orientação, recolhendo as principais informações sobre o caso e elaborando os pedidos de medidas protetivas. Além disso, representa a vítima nas audiências de justificação, instrução e julgamento e de advertência e, algumas vezes, atua como assistente de acusação no processo penal. A existência desse serviço mostrou-se fundamental para que a vítima pudesse de fato desempenhar uma função no sistema de justiça: A moça da defensoria me explicou, se o [agressor] fizer alguma coisa comigo, é pra eu voltar aqui pro fórum e falar.124 Apesar dos impedimentos expressamente trazidos pela Lei Maria da Penha para a aplicação dos dispositivos da lei 9.099/95 nos casos de violência doméstica (artigo 41), o JVD vem contrariado essa vedação125, o que pode ser observado nas chamadas 122

Entrevista com a vítima. O agressor foi condenado por crime de ameaça a um mês e 22 dias de detenção. A juíza manteve as medidas protetivas, estabelecendo que a cada descumprimento o agressor teria que pagar a quantia de R$1.000,00. 124 Entrevista com a vítima que recebeu medida protetiva consistente na obrigação de o agressor manter uma distância mínima de 50 metros. 125 Ao longo das discussões para a elaboração do presente relatório, a equipe de pesquisa não chegou a um consenso a respeito da possibilidade de serem obtidas respostas adequadas para o problema da 123

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audiências de proposta de suspensão condicional do processo, em que o representante do Ministério Público propõe a suspensão do processo (artigo 89 da lei 9.099/95), combinada muitas vezes com a manutenção de uma medida protetiva. Segundo a juíza, antes de formular a proposta, a vítima é ouvida quanto à persistência da ameaça ou do crime, fator impeditivo para a concessão da suspensão. É o que pôde ser observado em dois casos acompanhados: no primeiro, a vítima havia comunicado à defensora que o agressor vinha descumprindo, reiteradamente, a medida protetiva de proibição de aproximação da vítima, o que ensejou a desistência, pelo Ministério Público, de propor a suspensão. No segundo caso, a vítima foi questionada quanto ao que seria melhor para sua segurança, a suspensão do processo ou a continuidade. Tendo a vítima informado vários episódios de descumprimento de medida, não foi feita a proposta de suspensão do processo. Nas hipóteses de nova agressão ou de nova ameaça, a suspensão é revogada e o curso do processo, retomado. Na opinião da juíza entrevistada, esse arranjo se ajusta aos interesses da vítima: A vítima se sente muito mais segura com a suspensão do processo, porque ao longo de dois anos ele está na condição de não se aproximar dela, ao passo que se a gente tocar o processo normalmente, as penas são muito baixas, as penas de lesão e ameaça são muito leves, um a três meses de prisão.126 Para além do âmbito criminal, a Lei Maria da Penha atribui ao JVD competência cível para as causas decorrentes da violência doméstica e familiar contra a mulher (artigo 14). Contudo, conforme se observou no JVD, essa atribuição não foi exatamente incorporada ao funcionamento, já que sua atuação restringe-se às medidas cautelares, como a separação de corpos, devendo a vítima recorrer ao sistema de justiça no âmbito cível e de família para propor as ações de natureza não criminal, mesmo que digam respeito ao conflito que envolva a violência doméstica e familiar.

violência doméstica por meio da aplicação de dispositivos da lei 9.099/95. Assim, não se apresenta uma discussão a respeito dessa matéria. O que se pretende problematizar nesse momento é a desobediência do sistema de justiça a uma vedação legal expressa. 126 Entrevista com juíza de direito atuante no JVD.

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A vítima no processo penal ordinário: o homicídio de Ana Moura127

Como afirmado no início do artigo, a pesquisa aqui apresentada foi direcionada sobretudo para as duas principais experiências vitimológicas presentes na legislação brasileira – os procedimentos restaurativos nos JECRIMs e a Lei Maria da Penha – mas o objetivo explícito foi o de estabelecer uma comparação tendo em vista o modelo tradicional de exclusão da vítima no curso da persecução penal no ordenamento vigente. Para viabilizar tal comparação, a equipe de pesquisa realizou um estudo de caso no âmbito do chamado processo penal ordinário. No dia 29 de março de 2007, por volta das 17h30, João Terra atacou com um facão sua ex-companheira Ana Moura, com quem convivera por sete anos, provocandolhe lesões corporais e a morte. O episódio aconteceu na residência da vítima, para a qual naquela quinta-feira se dirigira o agressor, inconformado com o término do relacionamento. João Terra praticou o crime desferindo treze golpes de facão contra o corpo da ex-companheira, ocasionando as amputações dos dedos da mão esquerda e do antebraço direito e, por fim, a morte da vítima com um golpe final na cabeça. No dia 10 de novembro de 2009, João Terra foi condenado por unanimidade pelo Tribunal do Júri a 21 anos de reclusão, tendo sido a pena diminuída em um ano por ter o réu confessado o crime. A história do crime, entretanto, teve seu início muito antes daquela data em 2007 e seus efeitos certamente se farão sentir por muito tempo, não deixando de existir com a condenação do réu. Isso é o que se depreende das diversas fontes consultadas para a construção do presente estudo de caso. A importância da análise dos acontecimentos que redundaram na morte de Ana Moura, bem como de seus desdobramentos na vida dos familiares, vítimas indiretas do crime, reside na exemplaridade do caso no que concerne à participação da vítima e ao tratamento dispensado pelas instituições às suas demandas, especialmente no âmbito do chamado processo penal ordinário. O estudo de caso que ora se apresenta foi composto por diversas frentes metodológicas, a saber: (a) pesquisa documental a partir dos autos do processo que tramitou no Tribunal do Júri da Comarca de Santa Fé, (b) pesquisa documental a partir dos termos circunstanciados e dos boletins de ocorrência registrados pela vítima, (c)

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Neste texto, foram sempre usados nomes fictícios e omitidas referências a quaisquer informações que pudessem identificar o caso, com o fim de preservar a intimidade de todos os envolvidos.

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entrevista com familiares da vítima (seu filho e sua irmã) e (d) relato de pesquisadora que acompanhou a sessão de julgamento do réu pelo Tribunal do Júri. O estudo de caso corresponde a uma estratégia de pesquisa privilegiada para a pesquisa em tela, tendo em vista que, a um só tempo, abordam-se em profundidade os eventos que compuseram o caso propriamente dito e, também, acessam-se elementos com potencial de generalização, isto é, que extrapolam os limites do caso examinado e que podem ser úteis na compreensão do funcionamento das instituições em casos assemelhados. Assim, por intermédio do caso estudado procura-se evidenciar, na trajetória de Ana Moura, o que está igualmente presente em outras histórias individuais, sobretudo no que tange à relação que se estabelece entre vítima e aparato institucional estatal a partir do evento criminoso. Há muito Ana Moura convivia com a violência doméstica e familiar: a avó materna fora morta em consequência de espancamentos praticados por seu marido; a mãe, que à época da pesquisa apresentava diagnóstico de doença mental e vivia em um asilo, também havia sofrido agressões praticadas por seu companheiro. A vida conjugal de Ana e João não esteve, da mesma forma, livre de tensões; isto é o que se pode deduzir dos fatos narrados em boletins de ocorrência e termos circunstanciados relativos aos crimes de ameaça e dano e dos relatos colhidos dos familiares e conhecidos do casal. Perguntado sobre a violência sofrida pela vítima, seu filho lembrou a progressão dos fatos: No começo era aquela coisa, depois que ele bebia, partia pra agressão [...]. Ele sempre estava embriagado, eles discutiam, mas era uma discussão verbal, xingava e ofendia, mas depois começou a passar pra uma coisa física [...]. Ele já bateu nela com cadeado, já jogou televisão em cima dela.128 No dia 25 de março de 2007, Ana Moura dirigiu-se ao Plantão Policial de Santa Fé e, acompanhada de sua filha, então com 11 anos de idade, relatou ter sofrido ameaça de morte proferida por seu companheiro. Na época dos acontecimentos, a Delegacia da Mulher não prestava atendimento aos finais de semana e, além disso, a delegacia não especializada acumulava a função da Delegacia da Mulher porque a delegada responsável estava em licença. A ocorrência foi classificada como crime a ser tratado de acordo com o que estabelece a lei 9.099/95 e deu ensejo a termo circunstanciado, ainda

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Entrevista com familiares da vítima.

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que se tratasse de evidente situação de conjugalidade e de violência e que estivesse em vigência a Lei Maria da Penha. Já faz algum tempo que vive amasiada com o autor; que na última sexta-feira teve um desentendimento com o autor, devido ele [sic] não ter pousado em casa; que no dia de hoje a declarante saiu com sua filha, a testemunha, e quando chegaram o autor tinha colocado fogo em parte de suas roupas, dentre elas seu uniforme de trabalho; que novamente desentenderam [sic] bem como foi ameaçada de morte pelo autor que estava com uma faca escondida em suas costas.129 Quatro dias depois, foi lavrado boletim de ocorrência referente ao homicídio doloso de Ana Moura, morta pelo então ex-companheiro, a golpes de facão, aos 37 anos de idade. O agressor deixou o local logo após a prática do crime, tendo sido visto por um policial militar que morava na vizinhança e que havia se dirigido à residência da vítima, após ouvir gritos por socorro. Foragido, João Terra teve a prisão temporária decretada em 30 de março, foi capturado no dia 4 de abril de 2007 e denunciado por homicídio praticado por motivo torpe e com meio cruel em 27 de abril de 2007. O crime teve grande repercussão entre os cerca de 40 mil habitantes de Santa Fé, município situado no interior do estado de São Paulo. Alunos do ensino médio organizaram uma passeata para homenagear a vítima e manifestar repúdio à violência no município e os jornais locais deram ampla cobertura ao desenrolar dos fatos. Pronunciado em 4 de julho de 2007, o réu foi a julgamento mais de dois anos depois, ocasião em que foi revigorada toda a comoção despertada pelo crime. Havia muita expectativa em relação ao desfecho. Parece que todo mundo já o havia condenado e tamanha expectativa não tinha uma explicação clara. Talvez seja a desconfiança na Justiça sempre presente no meio da população. Era uma fila dividida entre os que apoiavam o réu ou apoiavam a vítima. Havia um desejo geral de justiça. Mais do que isso: havia a certeza da condenação do réu. Parecia que o crime tinha acabado de acontecer e que o julgamento já houvesse ocorrido junto com o próprio crime.130 As opiniões do público que acompanhou o julgamento também foram registradas no curso da pesquisa e a dissensão entre os discursos merece ser destacada:

129 130

Termo circunstanciado XX/2007. Relato da pesquisadora que acompanhou a sessão de julgamento.

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O que eu sei é que o rapaz não queria largar da moça, aí ele chegou [...], deu muitos golpes com a faca e assim ela foi morta. O juiz vai fazer justiça e ele vai ficar um bom tempo na cadeia.131 Não sei por que ele fez isso, ele era um homem muito bom. Ele vai ser condenado, apesar de já estar pagando por isso.132 Eu acho que ele vai ser condenado porque houve crueldade. Se ele só matasse, tudo bem, mas ele esquartejou ela. Por ciúme, fazer tudo isso, não pode.133 Acho que alguma coisa ela fez, alguma coisa. Entre quatro paredes, a gente não sabe o que acontece.134 É difícil saber o que se passa dentro de uma casa, pois a convivência de homem e mulher é difícil entender.135 A mesma divergência de posicionamento em relação ao caso teve lugar entre a acusação e a defesa. O promotor de justiça enfatizou ser insustentável a tese da legítima defesa porque a vítima apresentava numerosos ferimentos, inclusive nas costas, e lembrou, ainda, que o réu já havia ameaçado de morte a ex-companheira em momentos anteriores, descartando o cometimento do crime sob violenta emoção. O representante do Ministério Público exaltou a Lei Maria da Penha, que, segundo ele, reconheceu que a mulher precisa de proteção, já que o homem seria “tradicionalmente agressivo”. A defesa, por seu turno, procurou demonstrar que a mulher não seria a figura frágil tal como entendida pelo promotor e que a agressão estaria “sempre presente no relacionamento do casal”. No decorrer da sustentação da defesa, atribuiu-se parte da culpa pelo episódio trágico ao círculo de amizades, que não impediu o crime porque não quis interferir na vida atribulada do casal. Em nenhum momento no curso da sessão de julgamento foi mencionada a responsabilidade dos operadores ligados ao sistema de polícia e de justiça em relação ao caso, nem pelo promotor de justiça – que ainda assim exaltou a Lei Maria da Penha e a necessidade de proteção especial da mulher vítima de violência – nem pela acusação, que procurou dividir a responsabilidade entre o réu e a própria sociedade. Para resgatar a série de percepções acerca do ocorrido, é necessário recorrer aos discursos das vítimas indiretas dessa tragédia, os familiares da vítima. Somente a partir 131

Depoimento de uma mulher que acompanhava a sessão de julgamento. Idem. 133 Depoimento de um homem que acompanhava a sessão de julgamento. 134 Idem. 135 Ibidem. 132

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de seus relatos é possível recompor em minúcias o tratamento dispensado ao caso e, especialmente, o alheamento a que foram relegados seus familiares, que sequer conseguiam informações sobre o andamento processual. A entrevista realizada com o filho e a irmã da vítima é bastante reveladora no que concerne à natureza de suas demandas. De modo geral, elas são de duas ordens: participação no processo penal e reparação de danos. Em relação à participação no processo penal, apresenta-se, num primeiro momento, a necessidade de acompanhar o desenrolar do caso. Isso se revela no fato de que pediram ajuda para um advogado próximo da família para acompanhar o processo e mantê-los informados. Conforme aponta a entrevistada: A gente arrumou um advogado, conhecido nosso, que conseguiu o processo, e a partir daí por meio desse advogado que a gente teve conhecimento do caso, ele que nos passou, e tem coisa que a gente acompanhou pela internet. Toda a dúvida que a gente tem a gente mandava pra advogada e ela mandava resposta. Houve o interesse, também em relação ao processo penal, de indicar testemunhas para o caso, as quais, segundo a irmã da vítima, seriam as mais qualificadas para apontar que o homicídio foi premeditado, pois haviam presenciado as ameaças feitas pelo companheiro da vítima quatro dias antes do homicídio. Ela relata o ocorrido no dia da ameaça: A vizinha chamou a polícia, a polícia chegou no local, ele desacatou a autoridade, foi levado pra delegacia, lá foi lavrado B.O. [boletim de ocorrência] com base na lei 9.099 e os policiais ouviram ele dizer em alto e bom som que ia matar ela, e foram duas pessoas que nós pedimos pra que fossem incluídas no processo, a vizinha e o policial que ouviu ele ameaçando a minha irmã. Não foi arrolado, foi um caso premeditado, ele já tinha falado que ia mata. Eles [policial e vizinha] não foram arrolados, eles poderiam provar que era premeditado. Tal pedido foi formulado pelo filho da vítima, Paulo, ao promotor do caso na ocasião em que depôs em juízo na fase sumária do processo. Segundo Paulo, o promotor “disse que não ia chamar porque o nome deles [do policial e da vizinha] não estava no boletim”. Ainda em relação ao processo penal, o filho da vítima, no momento em que prestaria seu depoimento na condição de testemunha dos fatos, demandava que fosse acompanhado por advogado. Contudo, sua advogada não foi autorizada a entrar. Sobre a referida audiência, o filho apontou que “não estava entendendo muito bem o que estava acontecendo”.

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Em relação às demandas de reparação de danos, cabe primeiro destacar os impactos sofridos pela família com o homicídio da vítima. O filho afirma que: O que mais abalou a gente na época foi essa questão da exposição das fotos do corpo da minha mãe na internet. Na escola, uma prima minha sofreu muito, todos nós sofremos com isso. Ela estava lá na escola e outras pessoas diziam “olha só a sobrinha da picadinha”. Além disso, Paulo, atualmente com 21 anos, apresenta dificuldades em entrevistas para conseguir emprego, conforme seu relato: [...] numa parte pra mim é difícil porque quando a gente vai procurar emprego em empresa grande a gente tem que passar por um psicólogo e ele pergunta do pai da mãe e eu respondo que meu pai mora em Serafim há mais de vinte anos, e quando pergunta sobre a minha mãe eu respondo que ela morreu, aí pergunta como ela morreu aí expõe o caso. Eu já perco a chance de entrar numa empresa boa por causa disso. Porque muitas empresas acham que por causa disso eu vou ser agressivo por causa do que aconteceu com a minha mãe. Ficou uma marca. Eu acho que hoje é mais fácil um ex-presidiário conseguir um emprego do que eu. Nesse sentido, a irmã da vítima, Vilma, afirma que não houve qualquer assistência social ou psicológica aos familiares oferecida ou prestada pelo Estado: Na época, com relação ao crime contra a minha irmã ninguém nos procurou, nenhuma assistência foi dada à família. Essa é uma das coisas que eu questiono. Eu, na minha opinião, eu não consegui ainda colocar a minha vida em ordem, mesmo tendo passado dois anos. A Luana [filha da vítima] também não consegue, na época ela tinha 12 anos, agora ela tá com 14. O Paulo tá com 21, na época ele tinha 18, ia fazer 19. A vida da gente virou de cabeça pra baixo. Tendo em vista, então, a profundidade dos danos ocasionados pelo crime, a irmã é categórica quando perguntada sobre os efeitos de uma eventual condenação do réu para a família. Perguntada sobre a possibilidade de “ajeitar a vida” após a condenação do réu, ela responde: Não! Porque é difícil saber que aquela pessoa não está mais, no caso dela não teve como resistir, quando uma pessoa morre por causas naturais você aceita mais, mas nessas condições em que minha irmã morreu isso causa uma indignação na gente. Nunca a gente pode dizer que daqui a oitenta anos isso nunca vai passar. Pra mim é assim, imagino que pros filhos isso seja ainda pior. A mesma coisa a Luana, a ausência da mãe é muito pior. Não tem como colocar a vida em dia. Não é porque ele foi condenado. Uma coisa que talvez alivie é que a

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lei salve a vida de mais mulheres. Nesse sentido valeria mais a pena o Estado ser punido do que ele. Assim, ao mesmo tempo em que não nega sua vontade de ver condenado o réu pelo homicídio de sua irmã, pois em outro momento da entrevista ela afirma que “a gente quer que ele [réu] pague”, ela reconhece que a condenação em si não é central ou suficiente para a reparação dos danos sofridos. Além disso, considera tão ou mais importante a responsabilização do Estado pelo homicídio, já que sua irmã havia comparecido à delegacia quatro dias antes de ser assassinada e não foram efetuadas medidas para sua proteção, como previstas na Lei Maria da Penha. O filho da vítima mostra concordância com essa idéia ao ser instado sobre o que faria diferença para os familiares: A punição do Estado, a culpa de tudo isso não é só dele [do réu], é também do delegado. Como um delegado, formado há anos, como ele não está a par de uma lei que ele deveria ter cumprido e ele cumpre a lei antiga? A partir da entrevista com os familiares da vítima de homicídio, é possível depreender o mecanismo de funcionamento do sistema e em alguma medida questionar as instituições quanto ao tratamento dado ao caso de Ana Moura. É importante destacar que o registro da ocorrência de acordo com o que prevê a Lei Maria da Penha, poderia ter evitado o desfecho fatal. Isso é apontado pela própria família: O delegado se ausentou no cumprimento da lei, ela tinha feito o B.O. no domingo e quatro dias depois ele matou ela. No próprio B.O que ela fez no domingo tava registrado como 9.099, e não teve medida protetiva. [...] O último B.O. que ela fez, que foi no domingo, ela fez na delegacia comum porque a delegacia da mulher de final de semana lá fecha, então ela fez o B.O. na delegacia comum. O delegado estava na época estava assumindo as duas delegacias, a comum e o da mulher, porque a delegada da delegacia da mulher estava afastada por motivos de saúde. Desse modo, não foram atendidos os direitos da vítima, não tendo sido aplicadas medidas protetivas nem oferecida assistência jurídica. Essa omissão da delegacia pode ser considerada central para o homicídio da vítima quatro dias depois da “morte anunciada” pelo seu companheiro. A irmã, que na época dos acontecimentos morava em São Paulo, enxerga essa conexão:

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Ele [réu] deveria ter sido enjaulado. Ou que pelo menos deveria ter tido uma medida protetiva. Mas eu acho que se ele tivesse sido enjaulado teria dado tempo pra que eu agisse, entendeu, mas nada foi feito, nada. Porque se ele tivesse sido preso, eu teria vindo buscar ela na terça e ele não a teria matado na quinta. Além disso, o filho afirma que a polícia falhava em atender chamados em momentos de violência: A negligência era tanta que uma vez ele [agressor] invadiu a casa e tirou o fio do telefone e não dava pra fazer ligação, daí eu saí pelas portas dos fundos da casa e fui pra um orelhão ligar pra polícia. Tinha passado dez minutos e a policia ainda não tinha chegado, isso era uma hora da manhã, duas horas e nada, liguei novamente. A viatura foi chegar seis horas da manhã. Segundo o relato do filho, após o homicídio, houve demora até mesmo para efetuar a prisão do réu, já que “as pessoas diziam onde ele [réu] estava, mas a polícia dizia que não tinha viatura pra ir buscar”. Já em relação ao Ministério Público, Vilma afirmou que, após o homicídio, A gente foi conversar com o promotor, mas o promotor não quis conversar com a gente daí ele falou pro assistente dele vir conversar com a gente e a gente perguntou por que não tinha sido aplicada a Lei Maria da Penha no caso da minha irmã, o assistente falou que o caso da minha irmã não era caso de Lei Maria da Penha, daí eu perguntei pra ele “você tem certeza disso que você está falando? Porque eu vou falar isso no jornal” e ele disse que tinha. De modo geral, não houve contato dos familiares com o promotor e o juiz envolvidos no caso. Mesmo quando houve uma solicitação da família para que fossem arroladas testemunhas de acusação, houve recusa do promotor. Não houve assistência jurídica para os familiares no processo penal. Ao ser perguntada sobre o advogado criminal que ajudou a família e se não havia pensando em ingressar como assistente de acusação, a irmã lembrou: A gente não podia pedir pra pessoas ficarem à nossa disposição, ele [advogado] deu umas orientações, ele me disse como o caso estava acontecendo, porque o Paulo passou uma procuração pra ele pra acompanhar o processo, ter acesso ao processo. A gente não podia nem exigir porque ele estava fazendo tudo como se fosse um favor.

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Após receber orientações de pessoa ligada a movimentos populares, a irmã de Ana dirigiu-se à Defensoria Pública do Estado de São Paulo, buscando mover uma ação de responsabilização do Estado pela morte de sua irmã. Em suas palavras, o que ocorreu foi: [...] a denúncia na Defensoria do delegado pelo não cumprimento da Lei Maria da Penha, porque a gente não está preocupado com a indenização, a gente está preocupado que ele deixou de aplicar a Lei Maria da Penha. [...] Eu fui lá na Defensoria [em São Paulo] mas o caso foi encaminhado pra Defensoria de Ribeirão Preto, só que eu liguei lá umas três vezes e ele falou assim, o defensor foi muito educado: informou que não tinha como, ele estava sozinho e que ele não tinha como dar prioridade pro caso da minha irmã. Aí ficou parado. Está na Comissão de Direitos Humanos lá de Ribeirão Preto. Vale destacar, ainda, a ação da imprensa e da comunidade local sobre o fato, que, segundo a família, teve um papel importante para a prisão do agressor: É ele foi preso também porque a comunidade se envolveu. Todo mundo da cidade se mobilizou, ajudou. As pessoas iam pra casa e diziam onde ele estava, mas a polícia dizia que não tinha viatura pra ir buscar. Eu também tive muito apoio da imprensa, que se mobilizou e que também foi atrás. Tenho as reportagens da época. Segundo a imprensa, esse crime foi o crime mais hediondo da cidade, o primeiro foi o assassinato na época da formação da cidade. Tivemos apoio da comunidade e da comunicação. Teve uma passeata na cidade e a Rede Globo também noticiou o caso. Considerações finais

A partir da análise do material produzido na pesquisa de campo e no estudo de caso – e dentro dos limites circunscritos pela pesquisa qualitativa realizada – foi possível observar se e em que medida a vítima é protagonista no curso do processo penal no Brasil. De modo geral, nos casos observados no JECRIM, percebeu-se que há pouco espaço para que as vítimas se posicionem durante a audiência, já que os atores do sistema de justiça não se preocupam com a coleta de informações a partir de seus depoimentos, que poderiam contribuir para um desfecho satisfatório para as vítimas envolvidas. Pautadas pela celeridade – que parece justificar até mesmo a realização de audiências sem o promotor de justiça ou o juiz de direito –, as audiências ocorrem de

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forma muito rápida, especialmente porque o juiz de direito e o promotor de justiça atuantes no JECRIM têm um consenso previamente construído a partir de suas experiências e de suas trajetórias e já iniciam as audiências propondo um encaminhamento, que consiste mormente na transação penal, o que impossibilita que as vítimas tenham oportunidade para se expressar. As vítimas que manifestaram satisfação com o resultado da audiência foram justamente aquelas que puderam postular e negociar um desfecho satisfatório. As vítimas que se disseram pouco satisfeitas com o resultado da audiência atribuíam o descontentamento à incapacidade de as medidas propostas pelo Ministério Público irem ao encontro de suas necessidades e interesses. Nos JECRIMs, verificou-se que o maior grau de satisfação das vítimas ligava-se mais ao ressarcimento do prejuízo causado pelo crime do que à aplicação de medidas alternativas, que inegavelmente têm caráter sancionatório, ao autor do crime. Todavia, essa possibilidade para a vítima muitas vezes era obnubilada pela imposição de uma transação penal sem que houvesse a tentativa de conciliação. Em relação aos casos de violência doméstica que tramitaram nas varas criminais que apresentavam competência para julgá-los, foi possível perceber que as vítimas também não encontraram espaço para se expressarem, sendo corriqueira essa percepção nas entrevistas com as vítimas. As audiências preliminares nessas varas acabavam por reproduzir o formato das audiências realizadas para tratar dos casos dos JECRIMs, de forma abreviada e sem considerar o papel da vítima no encaminhamento e no desfecho do caso. Também nas varas criminais, observou-se que os operadores da justiça deixavam, por vezes, de aplicar os dispositivos trazidos pela Lei Maria da Penha, principalmente com relação às medidas protetivas e à obrigatoriedade de assistência judiciária para a vítima. De acordo com a mesma lógica verificada na pesquisa nos JECRIMs, a solução para o caso já era dada de antemão – geralmente consistente na suspensão condicional do processo com a aplicação de medida alternativa –, sem que a vítima participasse de sua construção. A ausência da assistência judiciária para a vítima é sem dúvida o obstáculo mais importante para sua efetiva participação e para que a resposta seja adequada a seu caso. Notou-se que, quando as vítimas não foram assistidas por defensores públicos, o desconhecimento sobre o procedimento e sobre as diversas opções oferecidas pela lei e pelo sistema de justiça era maior e criava embaraços a uma resolução. Nos casos em que as vítimas tiveram assistência judiciária – realidade constada no JVD – o desenlace foi

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completamente diferente. Uma vez esclarecidas a respeito de seus direitos, as vítimas conseguiram expor melhor suas necessidades e ter uma participação mais efetiva. Outro aspecto que merece destaque, a partir do que foi observado nas varas criminais, é o fato de os operadores agirem, nos casos de violência doméstica, com a mesma postura adotada nos JECRIMs. Isso evidencia, em certa medida, a impermeabilidade do sistema de justiça às desigualdades que caracterizam os pólos da relação doméstica e familiar e, obviamente, de gênero. Além disso, enquanto nos JECRIMs as demandas apresentadas muitas vezes não são perpassadas por relações interpessoais de qualquer natureza, a violência doméstica pressupõe uma rede de relações que muito frequentemente excedem o liame agressor-vítima e que tornam bastante complexo o fenômeno. A pesquisa no JVD revelou que a atenção para essas particularidades tem efeitos, especialmente quando há a preocupação de encarar o problema de maneira global, considerando não apenas a situação pontual, mas todo o contexto em que a agressão surgiu. Nesse sentido, a existência da equipe de atendimento multidisciplinar mostrou-se de extrema relevância para a interrupção do circuito de violência. Diferentemente do que foi aferido nos JECRIMs, em que as vítimas associaram a satisfação ao ressarcimento do dano, os anseios das vítimas de violência doméstica estão vinculados à cessação de agressões de toda sorte e, principalmente, à sensação de segurança. Para isso, é essencial a função desempenhada pelas medidas de proteção, que foram consideradas respostas bastante satisfatórias. A determinação das medidas de proteção é, ainda, um elemento que interfere na continuidade do processo, pois, como se constatou no levantamento empírico, a persistência da ameaça oferecida pelo agressor, que poderia ser evitada com os mecanismos da lei 11.340/06, pode até mesmo impedir que a vítima, temendo nova agressão, dê prosseguimento à ação. A falta de adesão do sistema de justiça ao que propugna a Lei Maria da Penha e a insistência na aplicação de dispositivos da lei 9.099/95 para os casos de violência doméstica, com total desatenção à vítima, como se observou, favorecem um cenário propício à revitimização, ou seja, à perpetuação do ciclo de violência, ou ainda, à morte prematura, como mostrou o caso de Ana Moura. Por fim, destaque-se que a pesquisa evidenciou que os interesses das vítimas nos diferentes contextos empíricos abordados não se confundem necessariamente com a punição daquele que cometeu o crime. Diferentemente, o que está em jogo é a superação do fato pelo ressarcimento dos prejuízos causados (de acordo com o que foi

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observado nos JECRIMs), ou a cessação da violência e da situação de segurança, que não necessariamente exigem a punição ou a prisão do agressor (de acordo com o que relataram as vítimas de violência doméstica), ou, ainda, a responsabilização dos agentes do Estado, que descumpriram a lei e permitiram uma tragédia (homicídio de Ana Moura). Como aqui detalhado, a pesquisa voltou-se empiricamente a três contextos distintos: o Juizado Especial Criminal (JECRIM), o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (JVD) e o rito ordinário (a partir do estudo de caso sobre um homicídio). Além das especificidades buscadas nos dois primeiros contextos, quais sejam, o acento restaurativo nos JECRIMs, o valor das medidas protetivas no JVD e as eventuais mudanças nas concepções de crime e de vítima introduzidas por ambos, a balizar a investigação em todos eles esteve presente a questão da percepção da vítima com relação à sua participação no processo e seu grau de satisfação. Nos três contextos, foi possível identificar ainda, com exceção de determinados feitos no JECRIM, uma característica comum aos conflitos que os integrava, em verdade, em uma mesma variável: a relação de pessoalidade entre réu e vítima. Essa constatação, adicionada aos próprios resultados de pesquisa, levaram à conclusão de que o papel desempenhado pela vítima na cena processual deve ser definido, antes e primeiramente, a partir da qualificação do conflito do qual originou sua condição. Isso decorre do fato de que também seus interesses no curso do processo e em seu desfecho tendem a variar segundo essa qualificação. Como já apontado nas descrições e análises empíricas apresentadas, não são sentimentos de vingança e desejos de maior punição que necessariamente emergem das falas e das representações das vítimas. Ao contrário, pelas entrevistas e observações realizadas junto às vítimas de crimes interpessoais, são, antes de tudo, expectativas de proteção estatal, resolução do conflito e reparação – material e moral, sem vinculação com o retributivismo clássico da pena de prisão – que podem ser identificadas nos seus discursos e nos posicionamentos assumidos no sistema de justiça criminal, quando e onde lhes foi possível manifestá-los. Abrem-se, deste modo, perspectivas de maior protagonismo para as vítimas no âmbito da justiça criminal que não resvalem para a deriva do populismo penal, ou seja, da instrumentalização da vítima em prol de uma política criminal de matriz neoconservadora.

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215

Violência e Fronteiras no Brasil136

Introdução

Em 1999, no Brasil, foi preso Hildebrando Pascoal, ex-coronel da Polícia Militar e então deputado federal pelo estado do Acre, acusado de tráfico internacional de drogas, de armas, de sonegação fiscal e de chefiar um grupo de extermínio responsável por dezenas de homicídios. Sobre ele pesavam ainda as suspeitas de liderar grupo criminoso que teria planejado, em 1992, a morte do então governador do Acre, Edmundo Pinto, e de estar envolvido na tentativa de assassinato de outro governador, Jorge Viana (PT – Partido dos Trabalhadores). Também haviam sido presos Sete Bandeira Pascoal e Pedro Pascoal Duarte Pinheiro Neto, irmãos de Hildebrando, acusados, juntamente com outras pessoas, pelo sequestro, cárcere privado e esquartejamento do mecânico Agilson Firmino dos Santos, em 1996, no Acre. Crime do qual teria Hildebrando participado pessoalmente. A atuação criminosa deste grupo foi amplamente analisada pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre Narcotráfico na Câmara dos Deputados Federal instalada em abril de 1999. Em pouco mais de um ano, a CPI visitou 16 Estados, quebrou cerca de 800 sigilos bancários e 500 telefônicos, pediu a prisão de pelo menos 300 pessoas. A CPI encontrou estreitas relações do grupo criminoso no Acre com empresários, fazendeiros, com integrantes das polícias civil e militar, além de altas autoridades do estado, inclusive com um ex-governador. A CPI investigou também liberações e transferências de traficantes presos naquele estado, autorizadas por juízes e outras autoridades, que resultaram em fugas e impunidade. Investigou ainda rotas de tráfico de drogas, falta de controle nos portos, aeroportos e fronteiras e atividades contraventoras envolvendo parlamentares e outras autoridades. Mas não conseguiu impedir que, pelo menos nove testemunhas que haviam prestado depoimentos nas audiências, fossem assassinadas em cerca de um ano de funcionamento da CPI. Da mesma forma, não impediu que vários dos investigados, acusados e mesmo presos em 136

ALVAREZ, M. C.; SALLA, F. BALLESTEROS, P. K. R. Violencia y fronteras en Brasil.. In: Fernando Carrión M. y Johanna Espín M. (coordinadores). (Org.). Relaciones fronterizas: encuentros y conflictos. Quito: FLACSO, 2011, v. , p. 187-201. O texto original em português, aqui apresentado, foi depois traduzido para o espanhol.

216

decorrência das atividades de investigação da CPI conseguissem depois sua liberdade e se candidatassem a cargos eletivos no Acre. Em agosto de 2006, a Polícia Federal desencadeou no Estado de Rondônia, junto à fronteira com a Bolívia, a Operação Dominó, na qual prendeu 22 pessoas. O aspecto mais chocante dessa operação é que foram presas algumas das principais autoridades do poder público local: o desembargador e presidente do Tribunal de Justiça do Estado, o vice-governador, o presidente da Assembléia Legislativa, um conselheiro do Tribunal de Contas, o ex-procurador-geral de Justiça, além de vários assessores dessas autoridades. Todos foram presos sob suspeita de desvio de pelo menos R$ 70 milhões (cerca de U$ 35 milhões) de verbas públicas, entre junho de 2004 e junho de 2005, através de contratos com base em licitações "viciadas e fraudulentas", além de suspeitas também de venda de sentenças judiciais. Tais cenários de corrupção nas instituições públicas, de prática de atividades criminosas, de violência se deram em decorrência da condição de ambos estados encontrarem-se na fronteira, nos limites do estado nacional brasileiro, em zonas pouco integradas da economia nacional, em parte distantes dos centros de decisão políticoadministrativos? Ou as manifestações de crime organizado e ilegalidades que nesses estados emergiram fazem parte dos desdobramentos atuais da expansão das economias (legais e ilegais) globalizadas? Ou, ainda, tais ilegalidades estão presentes em qualquer outro estado brasileiro, sendo, portanto, necessário repensar o papel da dimensão territorial como estruturante nessa dinâmica? Em outros termos, esses acontecimentos recentes nos estados do Acre e de Rondônia apontam para desafios significativos em termos de afirmação do Estado de Direito no Brasil. Comissões parlamentares de inquérito e investigações da polícia federal evidenciaram um amplo desrespeito às leis por parte das autoridades locais, sendo que tais situações podem ser interpretadas como exemplos da fraqueza das instituições, da presença da corrupção sistêmica entre os principais agentes estatais, servidores civis, partidos políticos, tribunais e da presença do crime organizado. Sem dúvida, esses fenômenos também podem ser encontrados, mesmo que em diferentes escalas, nas demais unidades da federação, porém, nos estados de Acre e Rondônia, a ausência do Estado de Direito reveste-se de características particulares, que ressaltam os obstáculos existentes para o fortalecimento das instituições democráticas no país e que foram notorizadas pela divulgação dos acontecimentos relatados.

217

Nos casos relatados, o imaginário da “fronteira” parece estar mais presente, fronteira do Estado Nação, mas igualmente fronteira econômica, legal, étnica e social, superpostas na história da região. Mas o tema da fronteira pode ser explorado em diferentes dimensões. Num primeiro plano de análise, coloca-se o problema da própria formação das fronteiras político-legais do país, que remete à questão da soberania e da defesa nacional. As práticas e as representações da violência associam-se assim ao conflito com outros estados, à disputa pela afirmação das fronteiras, à defesa da soberania. Após a consolidação das fronteiras nacionais, novos conflitos irão surgir com o deslocamento da fronteira econômica, com novas atividades e diferentes gerações de ocupações humanas. Finalmente, a consolidação político-administrativa dos estados colocará desafios em termos de “governamentalidade”, com novas elites locais, novas disputas pelos recursos públicos e privados, nova gestão dos “ilegalismos”. Será possível,então, perceber as tensões e conflitos existentes entre a afirmação soberana do Estado Nação, o desenvolvimento econômico da região, a construção administrativa dos aparelhos estatais locais (com toda a nova economia de gestão dos ilegalismos mais diversos) e a afirmação tardia do Estado de Direito (mais identificada com a reivindicação de entidades e grupos particulares do que com a consolidação efetiva das instituições democráticas). A partir dessas inquietações, a presente reflexão esboça os caminhos que vêm sendo seguidos na abordagem teórica sobre a questão das fronteiras dentro de projeto Violência e Fronteiras que está sendo desenvolvido pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo desde 2009137. Da mesma forma, apresenta alguns dos dados obtidos sobre as características das regiões de fronteira e que permitem contribuir para que novas propostas de análise sejam construídas.

A formação das fronteiras do Brasil

Durante os primeiros séculos de colonização do Brasil pelos portugueses, a população que chegava da Europa permaneceu na região litorânea. As incursões pelo interior foram se dando de forma bastante lenta. As principais atividades econômicas 137

O presente texto resume as reflexões feitas por pesquisadores do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo a partir do desenvolvimento de um projeto denominado Violência e Fronteiras. Esse projeto está integrado a dois outros: Mercados Ilegais: Mercadorias Políticas e Organização Social do Crime no Rio de Janeiro (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e o projeto Cidadania, Direitos Humanos e Segurança Pública: paradoxos entre controle e autocontrole da violência nas cidades de Fortaleza e Medellín (Universidade Federal do Ceará).

218

como a exploração do pau-brasil, cana de açúcar, ouro, algodão e café se estabeleceram próximas da costa e não provocaram um movimento forte de ocupação de população pelo interior do país. Boa parte da população que residia nessa área litorânea era constituída de indígenas. Em consequência, quatro dos núcleos urbanos dentre os mais antigos do Brasil – São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Recife – formam hoje regiões metropolitanas que respondem por cerca de 20% da população brasileira. No início do século XX, o Brasil ao adquirir da Bolívia o atual estado do Acre, finalizou o desenho de seus limites geográficos. Durante o período colonial, foram constantes as rusgas entre Portugal e Espanha por conta dos limites entre as suas possessões na América. Mas, depois de consolidados os estados como independentes, não foram grandes os atritos que o Brasil teve com os países vizinhos em relação às suas fronteiras. Os casos mais destacados envolvem a Questão Platina na qual o Brasil teve conflitos armados com o Uruguai, Argentina e principalmente com o Paraguai no século XIX (na chamada Guerra do Paraguai, de 1864-1870). Mesmo assim, boa parte desses conflitos e de outros não armados que se deram ao longo do século XX ocorriam por conta de disputas pela hegemonia política e econômica na região. Nesse sentido, vários atritos do Brasil com a Argentina, por exemplo, tiveram lugar por conta da construção da usina hidrelétrica de Itaipu. Durante esse período, eram predominantes as preocupações com a soberania nacional, com a defesa militar do território, com o tratamento das fronteiras como região especial. Esta tendência, em parte, foi intensificada com a interiorização do desenvolvimento econômico no Brasil, especialmente depois de 1970, quando os regimes militares viabilizaram a expansão da fronteira econômica e a ocupação da região mais ocidental do Brasil (sobretudo na parte norte e central) de forma agressiva, desorganizando as populações camponesas e indígenas já residentes, submetendo-as a processos de acumulação de capital e a modos de vida que impactaram fortemente as suas existências. O expressivo crescimento da população, em boa parte resultado de fluxos migratórios de outras regiões do Brasil, especialmente no estado de Rondônia, pode ser constatado na tabela abaixo:

Tabela 1 População Residente nos Estados do Acre e Rondônia 1950 – 2000

219

1950

1960

1970

1980

1990

2000

Acre

114.755

158.184

215.299

301.303

417.718

557.226

Rondôni

36.935

69.792

111.064

491.069

1.132.692

1.377.792

51.

70.070.457 93.139.037 119.002.706 146.825.475 169.590.693

a Brasil

944.397 Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)

Ao lado dessa dinâmica interna, que foi acompanhada da ampliação da rede de rodovias, transportes, comunicação, estabelecimento de agronegócios, infra-estrutura aeroportuária, um segundo movimento de natureza mundial, representado pela internacionalização da economia, estreitou os vínculos das regiões de fronteira com os fluxos globais de capitais, bens e serviços e mesmo mão-de-obra. E na esteira desse movimento, as economia ilegais (contrabando, tráfico de armas, pessoas, drogas) tornaram-se mais robustas e passaram a usar mais intensamente as zonas fronteiriças. Em decorrência do aumento de atividades criminosas nessas regiões, também houve um crescimento nos índices de violência, como se verá adiante. Em contrapartida, nas duas últimas décadas, cresceram as iniciativas de uma maior integração política e econômica entre os países latino-americanos que apontam para novas propostas de abordagem da questão das fronteiras que superam aquela voltada exclusivamente para a defesa do território e muitas vezes para a hostilização dos povos vizinhos.

Contexto atual

Por regulamentação político-jurídica, a chamada região de fronteira no Brasil, hoje, corresponde a 27% de seu território total, onde residem aproximadamente 10 milhões de pessoas, de um total de cerca de 190 milhões. Ao longo de cerca de 15.700 km de extensão, a região de fronteira compreende todos os municípios (588) que estão numa faixa de 150 quilômetros a partir da linha limítrofe entre o Brasil e os países vizinhos. A lei 6.634 de 1979, que regulamentou a faixa de fronteira, foi concebida ainda no regime militar e tinha por orientação muito mais o controle econômico e, sobretudo, militar da faixa de fronteira em relação aos demais países, o que significou a

220

imposição de uma série de limitações às atividades econômicas que poderiam ser desenvolvidas naquela faixa. Na América do Sul, o Brasil só não faz fronteira com o Chile e Equador. Os 588 municípios que se encontram na faixa de fronteira estão distribuídos espacialmente de forma bastante desigual: 418 estão na parte Sul (estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul), também denominado Arco Sul, envolvendo limites com o Uruguai, Paraguai e Argentina. Só no estado do Rio Grande do Sul estão 197 dos 418 municípios. Já na região mais central do Brasil (Arco Central), outros 99 municípios dos estados de Rondônia, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, têm seus limites com o Paraguai e a Bolívia. Os demais 71 municípios estão espalhados numa vasta área de fronteira na região norte do Brasil (Arco Norte) que tem limite com a Bolívia, Peru, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa. Os municípios do Arco Norte pertencem aos estados do Amapá, Pará, Roraima, Amazonas e Acre. Das 27 unidades da federação (26 estados e um distrito federal), 11 tem limites com países da América do Sul. Tomando-se os homicídios como um dos principais indicadores da violência, constata-se que dos cinquenta municípios brasileiros138 com as maiores taxas médias de homicídio entre 2002 e 2006, oito pertenciam à faixa de fronteira. Nesses cinquenta municípios, as taxas estavam entre 107,2 e 68 mortos por cem mil habitantes. Em termos internacionais, essas taxas são elevadíssimas, levando-se em consideração que nos países europeus em geral as taxas estão abaixo de dois dígitos. Até mesmo em termos nacionais, as taxas são bastante elevadas, pois o Brasil em 2006 tinha a taxa de 26,2 homicídios por cem mil habitantes139. Embora os municípios da faixa de fronteira (588) representem cerca de 10% do total de municípios existentes no Brasil, e concentrem apenas cerca de 5% da população brasileira, três deles (Coronel Sapucaia, no Mato Grosso do Sul, Foz do Iguaçu e Guaíra, no Paraná) estavam entre os dez municípios mais violentos do país. Além disso, Foz do Iguaçu e Guaíra lideravam o ranking das cidades brasileiras com as maiores taxas de homicídio por armas de fogo entre 2002 e 2006140. Os três municípios estão localizados na fronteira com o Paraguai (Foz do Iguaçu faz fronteira também com a Argentina).

138

Dos mais de cinco mil e quinhentos e sessenta em todo o país Ver www.datasus.gov.br 140 Ver Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros, 2008. 139

221

Documento do Ministério da Integração Nacional apontava, em 2005, que as principais ameaças ao Estado na faixa de fronteira estavam, “no progressivo esgarçamento do tecido social, na miséria que condena importantes segmentos da população ao não exercício de uma cidadania plena, no desafio cotidiano perpetrado pelo crime organizado e na falta de integração com os países vizinhos”141. Pela grande extensão das fronteiras do Brasil, esse diagnóstico varia de norte ao sul. Enquanto no Arco Norte estão grandes municípios em extensão territorial, população pouco numerosa, presença de diversos povos indígenas, urbanização recente e predomínio de atividades agrícolas, com baixa integração com os países vizinhos, no Arco Sul, predominam concentrações urbanas mais antigas, base fundiária de pequenas e médias propriedades, áreas industriais ligadas a alimentos, intensas relações econômicas com os vizinhos, impulsionadas pelo Mercosul. É, porém, no Arco Central (Rondônia, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul) que o documento do Ministério da Integração Nacional constatou os maiores problemas em termos de atividades ilícitas e violência:

O principal entrave ao desenvolvimento das interações fronteiriças no Arco Central é o trafico de Cannabis sativa e cocaína, procedentes, respectivamente, do Paraguai e da Bolívia, e o contrabando de madeira em tora e soja na fronteira paraguaia. O que torna a questão mais complicada é que grande parte do tráfico e das zonas produtoras de Cannabis sativa no Paraguai está na mão de brasileiros, que também controlam as redes de contrabando. É certo que empresários vinculados aos agronegócios da soja, incluindo produtores rurais e grandes redes de firmas de armazenamento e secagem também se expandiram em terras paraguaias e mesmo bolivianas de forma legal, comprando terras e atraindo levas de imigrantes brasileiros atrás. (...) Os negócios ligados às atividades ilegais estimulam da pior maneira possível a economia urbana das localidades fronteiriças, uma vez que atraem indivíduos de todas as regiões do país sem comprometimento nenhum com o lugar. Curiosamente, no caso das Sub-regiões do Cone Sul-mato-grossense e Dourados, municípios não-lindeiros como Dourados e Amambaí, não “contaminados” pela imagem negativa dos municípios lindeiros, são os mais importantes núcleos logísticos do tráfico e do contrabando, e talvez os que mais capitalizaram de forma produtiva seus ganhos. Na Faixa de Fronteira de Rondônia (Sub-região Fronteira do Guaporé), ocorre situação similar, Rolim de Moura, Vilhena e outras municipalidades na retaguarda da Faixa capitalizaram os ganhos com o tráfico, enquanto que a imagem negativa permanece associada aos municípios lindeiros (Cabixi, Pimenteiras do Oeste, Costa Marques)”142

141

Ver Proposta de Reestruturação do Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira do Ministério da Integração Nacional, p. 6. 142 Ver Proposta de Reestruturação do Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira do Ministério da Integração Nacional, p. 58-9.

222

A observação mais detalhada das várias sub-regiões dentro desses arcos vai indicar a presença do tráfico de drogas como uma constante. Na sub-região do Cone Sul Matogrossense, na fronteira com o Paraguai, além das atividades de tráfico de drogas, uma complexa rede de atividades híbridas, legais e ilegais, tem se formado nos núcleos urbanos, usando mão-de-obra informal, tecnologia avançada e produção doméstica, entre outras, no setor de confecções que está articulado aos grandes centros urbanos do país como São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba, além de núcleos urbanos regionais importantes dos estados do Paraná e São Paulo143. Em maio de 2009, a operação Da Shan da Polícia Federal, realizada simultaneamente em três estados brasileiros (Rondônia, São Paulo e Pernambuco) revelou a complexidade de ações criminosas nacionais e internacionais envolvendo tráfico de pessoas, contrabando, regiões de fronteira do país e circuitos da economia ilegal. A operação teve por objetivo desarticular uma quadrilha especializada em introduzir ilegalmente cidadãos chineses no território brasileiro, através de Rondônia. Esses chineses em sua maioria eram provenientes de uma das regiões da China que mais produz produtos pirateados. Além de traficar pessoas, o grupo criminoso, liderado por uma pessoa de São Paulo, seria também responsável por mercadorias contrabandeadas da China e distribuídas em São Paulo e Pernambuco. Segundo a Polícia Federal o grupo mantinha parte dos chineses em situação de trabalho escravo.

Novas abordagens

Os cenários rapidamente esboçados apontam para alguns desafios de interpretação. Como afirmado anteriormente, os acontecimentos ocorridos no Acre e em Rondônia remetem imediatamente ao da “fronteira”. Mas, na verdade, pode-se considerar que a idéia mesma de fronteira constitui o imaginário do Estado moderno. As funções centralizadoras e ordenadoras do Estado têm como seu correlato as fronteiras, os limites da centralização, os espaços de dominação e conflito e, ao mesmo tempo, de cidadania, pois o Estado, com afirmam Veena Das e Deborah Poole (2008), é sempre um projeto incompleto, que deve ser constantemente enunciado e imaginado e que invoca os limites do fora, do lugar do selvagem, do vazio e do caos.

143

Ver Proposta de Reestruturação do Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira do Ministério da Integração Nacional, p. 237.

223

José de Souza Martins (2008) enfatiza as diferentes temporalidades da fronteira no Brasil, frente de expansão da sociedade nacional, vizinha a outros estados e, ao mesmo tempo, ocupada por povos indígenas. Aí ele descreve um cenário altamente conflitante, cenário de intolerância, ambição e morte. A ênfase da análise recai, deste modo, na multiplicidade de fronteiras, em seu aspecto legal, mas também cultural, racial, étnico, nas quais as sociedades se formam, se desorganizam ou se reproduzem. Não se trata apenas, deste modo, de uma fronteira geográfica, mas também da civilização, fronteira da história, nas quais pioneiros e vítimas se confrontam permanentemente.

E

Martins

(2008)

enfatiza,

sobretudo,

a

diversidade

de

temporalidades históricas, a fronteira como combinação de tempos históricos e sociais que mesclam o poder pessoal dos latifundiários, as formas rituais de justiça institucional e as tradições locais dos povos originários. Martins ainda observa que, em geral, a fronteira não se constitui como área do novo, da modernização, mas exatamente como o espaço da recriação/renovação do arcaico (por exemplo, o trabalho escravo, o extermínio de indígenas etc.). O avanço da frente de expansão econômica, da racionalidade empresarial, burocrática não suprimiu as formas sociais e econômicas existentes nas áreas alcançadas, mas foram acomodadas e recompostas nas formas de dominação pessoal, na captura das instituições públicas pelos interesses privados, na adoção da violência como prática de solução de conflitos. A consolidação política e administrativa dos estados colocou igualmente desafios em termos governamentais, com novas elites locais, novas disputas pelos recursos públicos e privados, nova gestão dos “ilegalismos”. É preciso ir, assim, para além dos esquemas rotineiros de análise da fronteira e de seus conflitos – que colocam em jogo, em última instância, o imaginário da soberania – para problematizar mais profundamente as múltiplas dinâmicas e temporalidades da fronteira. Para isso, as reflexões de Michel Foucault (2005 e 2008) sobre a constituição do estado moderno são fundamentais. A idéia do triângulo envolvendo os dispositivos da soberania, das disciplinas e da gestão governamental permite dissecar as múltiplas dimensões que se desenvolvem nas fronteiras: de delimitação e garantia do poder soberano, de organização e institucionalização dos espaços econômicos e sociais e igualmente de gestão cotidiana das populações. Talvez seja preciso, assim, falar menos em fronteiras como espaços limites e periféricos ao poder central, e mais em margens que se multiplicam tanto na periferia quanto no centro, como indicam Veena Das e Deborah Poole (2008). É necessário

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problematizar a imagem do estado como forma administrativa de organização política racionalizada, que tende a debilitar-se ou desarticular-se apenas ao longo de suas margens territoriais e sociais, repensar os limites entre centro e periferia, entre o público e o privado, entre o legal e o ilegal, analisar tais margens como linhas de tensão que atravessam tanto as Democracias Liberais, completas ou incompletas, quanto os assim chamados estados fracassados. Se a violência e as práticas estatais ordenadoras são chaves para se pensar o problema das margens, também o são as práticas administrativas, as múltiplas linhas de divisão do legal e do ilegal, do normal e do desviante, do cidadão e do não-cidadão, bem como as resistências, as formas de pluralidade legal, econômica, cultural etc. Como sustentam Veena Das e Deborah Poole:

(...) as margens (...) são simultaneamente lugares onde a natureza pode ser imaginada como selvagem e descontrolada e onde o estado está constantemente redefinindo seus modos de governar e de legislar. Estes lugares não são meramente territoriais: são também (e talvez seja este seu aspecto mais importante) lugares de prática nos quais a lei e outras práticas estatais são colonizadas mediante outras formas de regulação que emanam das necessidades prementes das populações com o fim de assegurar a sobrevivência política e econômica. (Das e Poole, 2008, p.24) A fronteira fluida entre o legal e o ilegal, o lícito e o ilícito e as ameaças ao estado de direito democrático não são um privilégio, entretanto, de estados brasileiros fronteiriços, mas aparecem de forma episódica ou crônica em diferentes regiões do país: o estado de São Paulo viveu episódios de ataques atribuídos a um grupo do crime organizado (o PCC – Primeiro Comando da Capital) que se estenderam por quatro meses em 2006 (Adorno e Salla, 2007); o estado do Espírito Santo, em um passado também não muito distante, quase sofreu intervenção do governo federal para que se pudesse restabelecer a segurança pública (Soares, 2009): no Rio de Janeiro têm havido múltiplas evidências de que o Estado não têm efetivo domínio sobre todo o território (Misse, 2006); e no final de 2009 veio à tona um forte esquema de corrupção e fraudes no governo do Distrito Federal, envolvendo diretamente o próprio governador, que foi preso, além de deputados e outras autoridades. É a partir destas e outras problematizações que se trata de identificar e analisar as tensões e conflitos existentes entre a afirmação soberana do Estado Nação, o desenvolvimento econômico da região de fronteira, a construção administrativa dos

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aparelhos estatais locais – com toda a nova economia de gestão dos ilegalismos diversos – e a afirmação tardia do Estado de Direito, que acaba sendo mais reivindicação de entidades e grupos do que consolidação efetiva das instituições democráticas. Em termos metodológicos, o estudo dos acontecimentos de violência e de corrupção ocorridos nos estado do Acre e Rondônia permite a construção de tipos ideais referentes ao não-Estado de Direito no país. Tais estudos de caso buscam aprofundar a compreensão acerca das relações entre Estado, fronteiras e margens, ao viabilizarem um diagnóstico mais aprofundado de situações que, embora possivelmente potencializadas nestes espaços “fronteiriços”, podem estar igualmente presentes nas demais unidades da federação , indicando as margens da cidadania que se distribuem tanto no centro quanto na periferia.

Novos campos de pesquisa

As questões apontadas acima permitem a estruturação de uma reflexão inovadora voltada para a própria dinâmica da economia e do estado nacional brasileiro com seus desafios na consolidação do estado democrático de direito. Porém, um vasto campo de pesquisa se abre, também, a partir dessa abordagem no que diz respeito às relações entre os estados sul-americanos, sobretudo em decorrência da formação de mercados regionais e do estabelecimento de uma integração política mais estreita entre eles. O padrão de colonização ocorrido na América do Sul, a proximidade dos processos de independência, a renovação da população por fluxos migratórios voluntários ou forçados que se fizeram presentes no continente sugerem, para alguns autores, um campo privilegiado de interesse para o estudo das fronteiras, sobretudo pelas tensões “entre le géant lusophone et ses voisins hispanophones, tout particulièrement l'Argentine et, entre eux, les deux États tampons du Paraguay et de l'Uruguay”. (Pradeau, 2003, p.125). A presença de brasileiros plantadores de soja no Uruguai e principalmente Paraguai, o intenso processo de expansão da tríplice fronteira e dos fluxos econômicos ali legais e ilegais, estabelecem dinâmicas que tornam ainda mais porosas as fronteiras que historicamente os estados buscaram controlar de forma mais estreita. Como observou Jean-François Bayart (2004) os espaços remotos, selvas, pântanos, desertos etc. podem servir de refúgio para populações, grupos de dissidentes políticos ou religiosos em relação a determinados estados. Esses grupos e locais acabam

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sendo um pouco o reverso do que é o centro, eles são a margem também num sentido simbólico. Porém, o que parece interessante é que com a economia mundial esses grupos podem manter atividades que não passam pela interferência direta do estado e se incorporam diretamente a fluxos de economias ilegais. Esse parece ser o caso de outras áreas de fronteira do Brasil, principalmente com a Colômbia, onde atuam as FARC, e com a Bolívia com as ligações ao tráfico de drogas. Embora exista uma intensificação dos circuitos econômicos internacionais, que passam a alcançar por meio do sistema de transportes e comunicação áreas cada vez mais remotas ou pouco integradas àqueles circuitos, as regiões de fronteira ainda são ocupadas por uma população pequena em relação ao conjunto da população dos países, mas que começa a padecer dos transtornos mais intensos da economia globalizada, dos tipos de economia ilegal que, com certa facilidade, se enraízam nas estruturas locais de poder (polícia, administração local) e acabam submetendo a população a conviver com um perfil de violência que, sem erradicar velhas práticas (como a pistolagem), se associam a novas formas criminosas mais globalizadas. Constitui-se em um desafio para os estados sul-americanos, mas em particular para o Brasil, com a sua ampla faixa de fronteira, desenvolver políticas de desenvolvimento econômico e social local que reduzam a presença das economias ilegais, fonte de corrupção e de ativação de formas variadas de violência, que promovam a cidadania, que fortaleçam, em consequência, as instituições públicas. Sendo a tendência para o futuro de um progressivo adensamento de população nessas áreas, além de uma ampliação das atividades econômicas e de estreitamento de relações entre as populações de países que fazem fronteira, a redução das atividades criminosas e da violência delas decorrentes passa necessariamente por ações articuladas entre os estados envolvidos, do contrário os esforços serão fadados ao fracasso.

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A contribuição de David Garland: a Sociologia da Punição 144

Leis penais e instituições são sempre propostas, discutidas, legisladas e operadas por meio de códigos culturais definidos. Elas são estruturadas em linguagens, discursos e num sistema de signos que corporificam significados culturais específicos, distinções e sentimentos que devem ser interpretados e entendidos quando se quer tornar inteligível o sentido social e aquilo que motiva a punição. Dessa forma, mesmo que alguém queira discutir que interesses econômicos e políticos formam a base determinante das políticas penais, esses `interesses´ devem, necessariamente, operar por meio das leis, linguagens institucionais e categorias penais que estruturam e organizam as ações penais. (Garland, 1990, p. 198)145

Introdução O período que se estende entre o final dos anos 60 e o começo dos anos 80 do século XX foi marcado por transformações significativas que afetaram o perfil da economia mundial, a composição do Estado, as formas de atuação política de velhos e novos atores sociais, bem como as formas de sociabilidade até então existentes. No terreno da criminalidade e das formas de seu gerenciamento e combate, o período foi igualmente marcado por uma série de importantes modificações. Desde os anos 1950 até meados da década de 1970, os crimes, na maior parte dos assim chamados países desenvolvidos, vinham se mantendo em taxas estáveis. As políticas de contenção ao crime e de imposição de penalidades eram fortemente marcadas pela percepção de que a sociedade era em parte responsável pela emergência dos crimes e como tal deveria assumir a responsabilidade pela recolocação do indivíduo no seio da sociedade. O abrandamento das penas, a oposição sistemática à pena de morte e à prisão perpétua, por exemplo, encontravam terreno fértil para avançar.

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ALVAREZ, M. C.; SALLA, F.; GAUTO, M. (2006) A contribuição de David Garland: a Sociologia da Punição. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, São Paulo, vol.18, nº1, pp. 329-350. 145 As traduções citadas do livro de David Garland – Punishment and Modern Society – são de nossa autoria.

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No entanto, desde meados da década de 1970, vem ocorrendo, na maior parte dos países do Ocidente, um deslocamento importante na forma pela qual as sociedades modernas tratam os crimes e os criminosos e que, por certo, guarda relação com os acontecimentos políticos, sociais e econômicos mais gerais que marcam o contexto histórico recente. A percepção em relação às causas dos crimes, aos mais adequados mecanismos para combatê-los, às formas de tratamento penal a serem impostas aos criminosos vai se alterar de modo significativo e praticamente no sentido contrário das tendências até então em vigor. Com base nessa nova forma de perceber o mundo do crime, leis foram criadas ou alteradas e as instituições da justiça criminal, especialmente as policiais e prisionais, passaram por processos profundos de recomposição. Pode-se dizer que a punição aos crimes assumiu novo rumo com a emergência de leis associadas ao Three strikes and you are out, que se disseminaram em diversos estados norte-americanos e que ampliaram decisivamente a população encarcerada com a prisão perpétua. Ao mesmo tempo, houve uma recolocação da pena de morte no debate público que acabou se desdobrando senão na sua adoção oficial, ao menos na conquista da simpatia de amplas parcelas da população. Os efeitos dessa percepção se fizeram sentir no aumento dos contingentes policiais e mesmo em todo o complexo de justiça criminal. Programas de policiamento urbano conhecidos como “Tolerância Zero” passaram a servir de paradigma para o que se passou a entender por boa ordem. A consequência mais imediata desse endurecimento penal e das formas radicais de controle das pequenas ilegalidades foi a ampliação considerável da população encarcerada na maior parte dos países. O caso mais dramático é o dos Estados Unidos que encarcera no início do século XXI cerca de 2 milhões de pessoas, com uma taxa de 715 presos por 100 mil habitantes, quando em 1985 essa mesma taxa era de 200 e era praticamente a metade desta no início dos anos 1970146. Esse crescimento da população encarcerada trouxe consigo alterações na própria ideologia de reabilitação dos criminosos que até então predominava. Uma política severa de controle dos presos passa a predominar e se concretiza no aparecimento das unidades especiais de encarceramento – special units, supermax –, nos dispositivos cada vez mais sofisticados e hard de organização e funcionamento da prisão147.

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Os dados sobre a população encarcerada norte-americana podem ser obtidos no site do Departamento de Justiça: www.ojp.usdoj.gov/bjs. 147 Um dos melhores estudos sobre essas unidades nos EUA é de Roy D. King (1999).

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Tudo isso ocorre em meio a mudanças no perfil securitário que vão assumindo as políticas de segurança, envolvendo uma concepção de controle severo sobre as ilegalidades populares, a adoção de sofisticados mecanismos (muitos deles eletrônicos) de imposição de punições legais e restrições à liberdade de locomoção, a privatização dos serviços segurança, com as milícias particulares, e, ao mesmo tempo, com a presença cada vez mais acentuada de empresas na prestação de serviços para as prisões e mesmo na sua gestão direta. São essas mudanças nas concepções e ações que norteiam as práticas de controle da violência, de aplicação das punições e de construção de políticas de segurança na contemporaneidade que têm atraído a atenção de cientistas sociais, muitos dos quais têm repensado os paradigmas de análise que até então buscavam explicar esse conjunto de fenômenos.

Violência, Globalização e crise do Estado de Bem-Estar Social

Autores no campo da teoria social como Michel Wieviorka (1997), Loïc Wacquant (2001), Zygmunt Bauman (1999) e David Garland (1990, 2001), entre muitos outros, têm buscado apresentar explicações para a emergência desse novo cenário no que diz respeito à criminalidade e sua contenção na sociedade contemporânea. Michel Wieviorka, por exemplo, busca uma formulação bastante ambiciosa, ao considerar que as mudanças econômicas, políticas e sociais que ocorreram a partir dos anos 60 do século XX terminaram por desenhar um novo “paradigma da violência”. Mais do que uma mudança circunscrita às práticas e percepções acerca do crime e da criminalidade ou das formas de controle social e de punição, estaria ocorrendo na atualidade uma transformação mais geral da violência e de suas representações no mundo contemporâneo. Por um lado, é como se esse novo paradigma em parte atualizasse significações que caracterizaram o início da era industrial, quando as classes contestadoras eram percebidas como classes perigosas e bandos juvenis ocupavam as manchetes de jornais (cf. Wieviorka, 1997). Por outro lado, manifestações de violência que caracterizaram grande parte do século XX, como a violência política e o terrorismo de extrema-esquerda, a violência de extrema-direita, voltada para o controle do Estado, e a violência decorrente das lutas de libertação nacional, entram em refluxo, substituídas

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em grande medida pela violência de extrema-direita voltada para manter atividades privadas fora do controle do Estado ou por práticas de violência articuladas a identidades étnicas e religiosas. No plano das representações, se o emprego da violência perde legitimidade nas discussões públicas das democracias ocidentais, se toda referência positiva à violência é abolida, mesmo entre os intelectuais, em contrapartida ganham força percepções e representações de medo diante da alteridade, da diferença cultural ou religiosa. E, diante deste conjunto de transformações materiais e simbólicas, ainda de acordo com Wieviorka, também as Ciências Sociais foram obrigadas a rever seus modelos interpretativos para explicar as novas faces da violência, a partir de teorias mais complexas. As mudanças, citadas anteriormente, na forma como a sociedade contemporânea responde ao crime e estabelece práticas punitivas e mecanismos de controle social poderiam ser vistas, seguindo-se as indicações de Wieviorka, como articulados a esse novo e complexo perfil da violência na contemporaneidade. De alguma forma, as mudanças nas práticas penais e nas políticas de segurança poderiam ser vistas como resultado do crescimento do medo e da insegurança diante da emergência dessas novas formas de violência. Outros autores, no entanto, buscam analisar as mudanças nas práticas punitivas e nas políticas de segurança menos como respostas a um novo perfil da violência e mais como complexas estratégias de poder, articuladas a fenômenos tais como a globalização e a crise do Estado de Bem-Estar Social. Nesta direção, Zygmunt Bauman (1999) vai abordar com bastante astúcia o tema da relação entre a estrutura social e as formas de punição, sob a globalização. Embora a questão da punição não seja um foco prioritário em sua obra, Bauman foi um dos primeiros autores a estabelecer uma interessante relação entre o perfil fortemente globalizado da economia, a partir dos anos 1970, a reorganização do Estado e uma nova composição das políticas de punição. De um lado, uma ampla mobilidade do capital e dos capitalistas, volatilidade dos investimentos, deslocamentos de capitais financeiros e mesmo de bases industriais, por todos os cantos do planeta. De outro lado, os párias gerados por esta economia e pela desmobilização do estado do bem-estar, as massas largadas à própria sorte que buscam nas estratégias de sobrevivência, nem sempre legais, um lugar ao sol – párias que serão cada vez mais imobilizados nos guetos, nas periferias, circunscritos à miséria de sua existência, que passarão a frequentar as prisões que se revitalizam nesse período e que voltam a ser territórios definidos e cada vez mais severos de punição: “A prisão é a forma última e mais radical de confinamento

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espacial” (Bauman, 1999, p. 114). Num plano, a fluidez quase que total, o desenraizamento, o mundo das viagens, da ausência das barreiras e de fronteiras. Noutro plano, o enraizamento de massas humanas nos territórios da pobreza, a imobilização forçada nos guetos, a quase que completa paralisação de seus membros nas prisões. Bauman associa a emergência das prisões de segurança máxima – supermax, como são conhecidas –, nesse mesmo período, onde os presos permanecem 23 horas por dia na cela, sem qualquer atividade laborativa, recreativa ou educativa, a uma estratégia política de contenção daquelas massas. A globalização radicalizou a dissolução de ‘tudo o que é sólido’ e não se tem mais necessidade de uma sociedade fundada na ética do trabalho. Daí porque não é mais necessário que os criminosos se regenerem, trabalhem nas prisões, tornem-se virtuosos, basta que sejam contidos e, acima de tudo, imobilizados em poucos metros quadrados nessas instituições que antes eram o marco disciplinar da sociedade, o aparelho disciplinador por excelência e que agora não passam de fortalezas que paralisam os miseráveis indóceis. O Estado, sob a globalização, é chamado a abandonar o seu perfil de welfare state para assumir uma função meramente policial, gendarme do capital, garantidor das atividades de acumulação de capital:

No mundo das finanças globais, os governos detêm pouco mais que o papel de distritos policiais superdimensionados; a quantidade e qualidade dos policiais em serviço, varrendo os mendigos, perturbadores e ladrões das ruas, e a firmeza dos muros das prisões assomam entre os principais fatores de ‘confiança dos investidores’ e, portanto, entre os dados principais considerados quando são tomadas decisões de investir ou de retirar um investimento. (Bauman, 1999, p. 128)

Enfatiza-se, assim, que a globalização vem alterando não apenas as teias das relações econômicas, ao estreitar as distâncias e ao homogeneizar a paisagem mundial, mas é acompanhada igualmente de mudanças consideráveis no perfil do Estado. O Estado do Bem Estar, implantado sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, passa a ser o alvo de uma onda neoliberal que clama pela sua desmontagem, pela redução de seus custos de operação, por uma reformulação que o coloque em dimensões mínimas necessárias. É esse Estado que vai abdicando de sua capacidade de proporcionar os requisitos básicos da existência das populações, ao assumir um perfil de Estado policial.

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Loïc Wacquant (2001), por sua vez, faz um relato do processo de criminalização da miséria e dos miseráveis pelo qual passou os Estados Unidos e que vem tomando conta da Europa através da expansão das ideologias dos think tanks conservadores americanos. Também para ele a doutrina da Tolerância Zero americana é resultado de um movimento de desmantelamento das políticas de assistência social aos mais pobres, a partir do qual o principal efeito é o recrudescimento da ação policial e das sanções penais para os mais diversos tipos de inadequação aos códigos de comportamento vigentes. No processo de transição do Estado-Providência para o Estado-Penal, os recursos destinados à assistência social foram reduzidos à medida, e na mesma proporção, em que os recursos destinados ao sistema carcerário e policial aumentavam, tudo isso apoiado por uma mudança nas concepções políticas e sociais que transformaram a imagem daqueles que são beneficiários das políticas sociais em pessoas dependentes/parasitas do Estado social. Citando o livro Losing Ground, de Charles Murray, Wacquant ilustra o conteúdo da produção intelectual dos think tanks:

(... ) a excessiva generosidade das políticas de ajuda aos mais pobres seria a responsável pela escalada da pobreza nos Estados Unidos: ela recompensa a inatividade e induz à degenerescência moral das classes populares, sobretudo essas uniões “ilegítimas” que são a causa última de todos os males das sociedades modernas – entre os quais a ´violência urbana` (Wacquant, 2001, p. 22).

A resposta à maior degradação social, deflagrada pelas mudanças nas políticas sociais, é o desenvolvimento de um complexo sistema de vigilância dos pobres, não só a partir de instrumentos tecnológicos, mas de todo um sistema de assistência social que controla os passos daqueles que recebem o benefício, inclusive sendo obrigados a trabalhar em troca do recurso. A política de Tolerância Zero é o instrumento para controlar as camadas populares dando respaldo jurídico para o encarceramento ao menor sinal de delinquência, fazendo com que a população carcerária aumente de forma estrondosa; mas as prisões não ficam lotadas de criminosos perigosos e sim de pessoas presas por uso de drogas, furto ou simples atentados à ordem pública. As penas ficam cada vez mais rigorosas e diminuem os casos de liberação de presos em regime de sursis e liberdade condicional:

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Essa mudança de objetivo e de resultado traduz o abandono do ideal de reabilitação, depois das críticas cruzadas da direita e da esquerda na década de 70 e de sua substituição por uma “ nova penalogia”, cujo objetivo não é mais nem prevenir o crime, nem tratar os delinquentes visando seu eventual retorno à sociedade uma vez sua pena cumprida, mas isolar grupos considerados perigosos e neutralizar seus membros mais disruptivos mediante uma série padronizada de comportamentos e uma gestão aleatória dos riscos, que se parecem mais com uma investigação operacional ou reciclagem de `detritos sociais` que com o trabalho social (Wacquant, 2001, p. 86). Os autores citados até aqui, no entanto, não tiveram como centro de sua preocupações aprofundar especificamente a reflexão sobre o sentido da punição presente nesse novo cenário e como ele permite estabelecer um diálogo com a tradição do pensamento sociológico. David Garland, em contrapartida, tem buscado justamente desenvolver essa preocupação no interior da reflexão da teoria social clássica e contemporânea.

Punição e Teoria Social

Na verdade, a questão da punição ganhou destaque nos debates da teoria social no século XX sobretudo a partir do impacto de trabalhos como os de Rusche e Kirchheimer e Michel Foucault. Rusche e Kirchheimer apresentaram, na sua obra já clássica sobre as relações entre a estrutura social e as formas de punição, publicada em 1939, questões fundamentais para a Sociologia dos sistemas penais que se tornariam recorrentes nas interpretações posteriores sobre essa temática. Dentre essas questões, pode-se apontar: qual é a relação entre a ocorrência de crimes e o contexto social? Por que alguns métodos de punição são adotados ou rejeitados numa dada situação social? Em que medida os métodos de punição são determinados pelas relações sociais básicas presentes numa determinada sociedade? Segundo eles, a punição não poderia ser encarada como uma simples consequência do crime nem o seu reverso, mas antes como um fenômeno social, em grande medida independente dos conceitos jurídicos e dos fins sociais.

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Preocupados em analisar as causas das mudanças nos sistemas de punição e seus desdobramentos, as bases para a escolha ou rejeição de métodos penais específicos em determinados períodos históricos, Rusche e Kirchheimer foram enfáticos em sustentar que a transformação nos sistemas penais não pode ser explicada somente a partir da necessidade de mudanças impostas pela guerra contra o crime, embora essa guerra tenha o seu papel nessas mudanças. Na verdade, todo sistema de produção tende a desenvolver formas de

punição que correspondam às suas relações de produção.

Segundo eles: (...) é necessário investigar a origem e o destino dos sistemas penais, o uso ou a rejeição de punições específicas, e a intensidade das práticas penais na medida em que elas são determinadas por forças sociais, acima de tudo pelas forças econômicas e mesmo fiscais. (Rusche e Kirchheimer, 1939, p. 5) Nesse sentido, esses autores proporcionam uma reflexão de inspiração marxista, ao estabelecer uma relação estreita entre as formas específicas de punição e determinados estágios do desenvolvimento econômico. Assim, a escravidão como uma forma de punição só é possível com a existência de uma economia escravista, ao passo que o trabalho prisional só é possível numa economia com manufatura ou indústria ou as multas para todas as classes numa economia monetária. Michel Foucault, por sua vez, foi igualmente um autor de fundamental importância para a construção de novas formas de pensar a punição no âmbito da teoria social contemporânea. Ao mesmo tempo em que admite – em seu livro principal sobre essa temática, Vigiar e Punir, publicado originalmente em 1975 – seu débito em relação ao trabalho pioneiro de Rusche e Kirchheimer, sua abordagem implicará numa nova agenda para a pesquisa nesse campo. Foucault deslocará o foco da análise para as práticas de punição não simplesmente como instrumentos de uma dominação de classe, tal como em Rusche e Kirchheimer e outros, mas sim como tecnologias de poder complexamente articuladas às demais práticas sociais. Ao adotar essa “perspectiva do poder” (cf. Garland, 1995), Foucault abrirá espaço para interpretações mais multidimensionais acerca do sentido da punição nas sociedades modernas. David Garland tem a ambição de, apropriando-se criticamente do legado de Foucault – e igualmente considerando como a questão da punição foi tratada pelos demais clássicos da teoria social – desenvolver um modelo mais sofisticado de análise do papel da punição na sociedade moderna, capaz de ir além da “perspectiva do poder”,

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construída por Foucault. Para Garland, Foucault teria uma concepção por demais instrumental e funcionalista da punição, a partir da qual as práticas penais aparecem exclusivamente como formas de controle social, uma vez que ao identificar punição e poder Foucault perderia de vista outras dimensões das práticas penais já exploradas anteriormente por autores como Émile Durkheim. Especificamente no livro Punishment and Modern Society – A study in Social Theory148, a contribuição de David Garland (1990) reside sobretudo no fato de que o autor faz uma análise detalhada de diferentes correntes teóricas com enfoque no que essas teorias têm a contribuir para a questão da punição. Dessa forma, aborda criticamente as análises de Émile Durkheim, Rusche e Kirchheimer, Karl Marx, Michel Foucault, Max Weber e Norbert Elias a respeito da questão. O objetivo desse estudo é refletir acerca do que o autor denomina sobredeterminação – overdetermination – das práticas penais. Garland emprega essa noção149 para enfatizar a necessidade de uma abordagem mais pluralista e multidimensional da questão da punição. Ao valer-se das teorias já existentes que abordam aspectos particulares e específicos da punição, busca construir um amálgama de teorias que tem por objetivo pensar a punição ao levar em conta seus diferentes aspectos sociais, como a economia, a política e, sobretudo, a cultura. Para Garland, a atividade de refletir teoricamente sobre conceitos e discussões já existentes tem como meta principal mudar a forma como pensamos e tratamos diferentes objetos sociológicos; ele vê também a teorização como uma forma de ação simbólica, sendo que seu efeito depende do fato de se essa ação simbólica é capaz, de alguma maneira, de afetar as formas por meio das quais as pessoas e instituições lidam consigo mesmas. A necessidade da teorização acerca da sobredeterminação das práticas penais se apoia no fato de que a sociedade moderna é pluralista e multidimensional, o que faz com que seja necessária uma aproximação do objeto no mesmo sentido, para que se possa compreender o desenvolvimento histórico e a prática corrente da punição. Consequentemente, Garland opta por buscar a complexa e tensa articulação entre as diferentes causas, os múltiplos efeitos e significados da punição, ao invés de focar em apenas um único princípio explicativo para a questão:

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GARLAND, D. Punishment and Modern Society – A study in Social Theory. Claredon Press. Oxford. 1990. 149 De acordo com Garland, a noção de sobredeterminação foi desenvolvida inicialmente por Freud, sendo posteriormente apropriada pelos historiadores e cientistas sociais (cf. Garland, 1990, p.280).

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Sobredeterminação não significa uma gama de forças que fluem suavemente juntas para uma mesma direção, com a intenção de um mesmo resultado. Ela implica um constante conflito, tensão e comprometimento, e sugere resultados que são mais únicos na sua particularidade do que uniformemente desenhado por um modelo pré-definido. (Garland, 1990, p. 284) É na percepção e teorização de Garland sobre a importância da cultura e seus diferentes âmbitos e símbolos e na insistência da necessidade de pensar a punição como uma instituição social – tal como a família, a escola, o governo e o mercado, instituições que agregam uma gama de variáveis e fatores que influenciam seu funcionamento – que reside sua principal contribuição para uma Sociologia da Punição.

A Punição como instituição social

David Garland sugere que a punição e suas práticas devem ser vistas e estudadas como fatores constitutivos de uma instituição social, sendo esta organizada sobre uma área específica da vida social e que coloca à disposição uma estrutura reguladora e normativa para a conduta dos indivíduos nesta área. As práticas penais não devem ser vistas como um evento singular e específico e, sim, como uma instituição social que vincula uma estrutura complexa e densa de significados. A necessidade de uma análise que leva em conta este aspecto está no fato de que, apesar da aparência de autonomia, as instituições sociais (independente do tipo) se ligam com outras instituições e com o mundo exterior, ao receberem a influência de aspectos econômicos, políticos, culturais e tecnológicos que constituem o ambiente. Aprender a pensar a punição como uma instituição social, e colocá-la nesses termos, nos dá um meio de descrever o caráter complexo e multifacetado desse fenômeno em uma única imagem-mestre. Isso nos possibilita localizar as outras imagens da punição na estrutura mais ampla ao mesmo tempo em que sugere a necessidade de ver a pena conectada a uma rede mais ampla de ação social e significado cultural. (Garland, 1990, p. 282) Para estabelecer as relações entre as práticas e discursos penais e a cultura como agente social, Garland reconstrói a argumentação de Norbert Elias (1993) e Pieter Spierenburg (1984), ao traçarem a trajetória histórica das mudanças nas mentalidades e

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nas sensibilidades dos indivíduos em diferentes épocas e contextos. O argumento principal de Elias, ainda segundo Garland, é o de que as sociedades civilizadas passam por um constante processo de transformação do comportamento com o aprimoramento e refinamento de suas sensibilidades, processo esse que se dá pela internalização de hábitos e costumes que buscam retirar da cena pública “atividades corporais”, por exemplo, que eram consideradas impulsos animais ou comportamentos bárbaros. Esse processo de refinamento determina o que é e o que não é aceitável dentro de uma sociedade, sua moralidade – um processo de aprendizagem social, que tem consequências importantes na formação da psique dos indivíduos: Na sequência da emergência do poder centralizado na sociedade, que monopoliza o uso da violência e impõe sua norma para os sujeitos, e com o desenvolvimento de códigos de conduta que requerem maneiras sociais mais refinadas e um maior envolvimento com atores sociais, se faz necessário para o indivíduo a crescente auto-imposição de restrições à sua conduta. Demonstrações públicas de agressão ou, da mesma forma, de emoção espontânea de qualquer tipo são cada vez mais proibidas pela força da lei ou por prudência social. (Garland, 1990, p. 219) Garland aponta para o fator-chave da discussão de Elias que é o processo de privatização de certos aspectos da vida que passam a ser escondidos atrás das cortinas da vida social, sendo um desses aspectos, e o que mais importa para a presente discussão, o uso indiscriminado da violência; esta passa a não ser mais tolerada no diaa-dia da esfera pública. O processo civilizador se desenvolveu historicamente da sociedade européia do século XVII, que vivia sob um estado absolutista que tinha como prática penal corrente a punição dos criminosos com castigos corporais aplicados em praça pública, para uma sociedade moderna na qual a aplicação da pena é realizada de forma científica, distante dos olhos do público em geral, tirando da cena o sofrimento dos corpos. Garland utiliza a teoria de Spierenburg para nos mostrar que o desaparecimento das guilhotinas e dos cadafalsos da esfera pública é resultado do desenvolvimento de sensibilidades que ocorreu primeiro, e principalmente, entre as elites. O refinamento da etiqueta e da consciência eram atributos de sociedades educadas e isso era utilizado pelas elites para desprezar aqueles que se encontravam em pior posição social e que não eram considerados civilizados. Esse argumento vai ao encontro da descrição do processo civilizador de Elias, segundo a qual a elite governante – os grupos de status weberianos – adotam certas maneiras e estilos de vida

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para se diferenciar dos “outros”. O desenvolvimento desse processo é o resultado de uma consequente generalização dessas maneiras na sociedade, fazendo com que fosse novamente necessária a diferenciação da elite, gerando novos hábitos e estilos de vida, num processo de diferenciação que desenha um ciclo infinito. Tal como o processo de refinamento das sensibilidades e mentalidades, a prática da punição passa por um processo civilizador no qual a aplicação de penas ao corpo, causando sofrimento físico, deixa de ser um instrumento de punição, dando lugar a outras formas de sofrimento como a privação da liberdade ou a cassação de recursos financeiros, ou, mais recentemente, a pena de morte através de uma injeção letal, ao invés da cadeira elétrica. O mesmo também acontece com a linguagem referente às práticas punitivas, que tem seus termos mudados para formas mais sutis de dizer a mesma coisa. Essa questão é um importante argumento para o que Garland nos diz sobre a necessidade de teorizar (ou melhor, agir) sobre a questão da punição, pois ele nos mostra que o refinamento das técnicas punitivas tira da esfera pública a percepção do sofrimento daqueles que recebem a pena, mas o sofrimento continua lá150, sendo consumido de uma maneira muito mais lenta e sutil, por um período maior de tempo, e com consequências psicológicas e sociais (como a total marginalização desses indivíduos do conjunto da sociedade) das quais a sociedade moderna não vai tomar conhecimento, sobretudo porque esse sofrimento está disfarçado como uma simples perda de liberdade e não é reconhecido o sofrimento e as perdas sociais que o encarceramento provoca nos familiares dos criminosos: Porque o público não escuta a angústia dos prisioneiros e suas famílias, porque o discurso da mídia e da criminologia popular apresenta os criminosos como `diferentes´, e menos que totalmente humanos, e porque a violência das penas é geralmente sanitária, situacional e de pouca visibilidade, o conflito entre as sensibilidades civilizadas e a frequentemente brutal rotina da punição é minimizada e feita tolerável. A punição moderna, portanto, é ordenada institucionalmente e representada em um discurso que nega a violência inerente das suas práticas. (Garland, 1990, p. 243) Outro aspecto ressaltado por Garland é que, nos dias de hoje, essa consequente marginalização dos criminosos, que é resultado da privatização e institucionalização do

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Aqui há uma convergência com o argumento desenvolvido por Foucault, que afirma que, da passagem da pena suplício para a prisão disciplinar, permanece um fundo supliciante nas práticas punitivas modernas que apenas não se mostra mais como um espetáculo público (cf. Foucault, 1987).

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sistema, acaba por cortar laços sociais e interromper um processo de solidarização da sociedade em relação aos criminosos, ao limitar o acesso às informações sobre a situação em que se encontram e inibindo a solidariedade e a identidade entre os dois grupos. Aponta ainda o conflito existente entre a amenização das práticas penais e a preocupação com a garantia de segurança, a necessidade de prevenção e a crescente hostilidade em relação aos criminosos cada vez mais presentes nas sociedades ditas civilizadas. Uma consequência disso é a instrumentalização da insegurança na sociedade para fins políticos, fazendo da punição uma questão ideológica. Da mesma forma que instituições sociais podem educar os sentimentos da população, trazendo o refinamento dos sentimentos e uma crescente sensibilidade aos direitos e sofrimento dos outros, uma política mais reacionária, pode começar a desfazer o processo civilizador e liberar agressões, hostilidades e egoísmo na esfera pública. Forças culturais e políticas, consequentemente, lutam para criar sensibilidades e sentimentos entre o grupo social para o qual eles falam. Da mesma forma, as sensibilidades referentes às práticas penais de uma sociedade podem ser gradualmente aumentadas ou erodidas por meio do exemplo governamental e da persuasão política.(Garland, 1990, p. 246)

Punição: Causa e Efeito

Segundo Garland, a punição deve ser pensada a partir dos efeitos provocados por sua ação social – qual o efeito provocado nos criminosos que a recebem? – e a partir dos efeitos produzidos no comportamento do público mais amplo ao qual as sanções penais também são dirigidas – o que significam, em termos de símbolos, de sinais, de declarações e de retórica, as sanções penais para a sociedade na qual estão inseridas. O argumento do autor é que as práticas penais falam à sociedade não somente sobre crime e castigo mas servem como uma estrutura de raciocínio que ajuda a organizar o mundo que conhecemos através daquilo que entendemos como bom e ruim, normal e anormal, legitimidade e ordem; e tudo isso ensina a julgar, a preservar a ordem e a comunidade: À sua maneira, as práticas penais estabelecem uma armação cultural estruturante, sendo que suas declarações e ações servem como uma grade interpretativa a partir da qual as pessoas avaliam a conduta e fazem julgamentos morais sobre suas próprias experiências. A punição, portanto, atua como um

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mecanismo social regulador em dois distintos aspectos: ela regula a conduta diretamente através da ação social física, mas ela também regula significados, pensamentos, atitude - e conduta - através de um meio de significação um tanto diferente. (Garland, 1990, p. 252) Mesmo com a privatização da aplicação da punição, com a abolição dos atos em praça pública, Garland nos mostra que a comunicação simbólica entre a instituição penal e o conjunto da sociedade se dá por meio da forma como as sentenças são pronunciadas e/ou publicizadas e como o juiz se refere a elas; essa comunicação tem como interlocutores-alvo a vítima, os criminosos potenciais e a sociedade em geral. Além disso, Garland aponta que as práticas rotineiras da instituição penal têm muito mais a dizer sobre os valores e significados sociais e culturais da punição do que simplesmente os documentos oficiais e relatórios, porque cada vez que um procedimento é adotado, ou uma linguagem técnica é empregada, essa prática comunica um padrão de significados e formas simbólicas. O que se quer reforçar aqui é o argumento de que toda prática social, independente do tipo, comunica significados sobre como o autor da prática está julgando, por exemplo, a necessidade da ação. Garland enfatiza a importância da sentença de um julgamento e da linguagem específica utilizada pelos agentes do sistema penal, pois essa linguagem específica rapidamente passa a ser utilizada pelo público em geral também para classificar os indivíduos e ações na esfera pública. Também os termos técnicos empregados no âmbito dos agentes penais promovem uma imagem específica do Estado e sua autoridade, além de sua relação com os criminosos e com os cidadãos. A mídia é um intermediário fundamental nessa comunicação de valores e significados entre o Estado e seus cidadãos, pois é ela quem apresenta os eventos penais para a sociedade, apresentação essa que vem influenciada por interesses comerciais e editoriais que restringem e selecionam os símbolos que serão comunicados. A retórica é uma questão importante abordada por Garland pois os discursos, sobre o que quer que eles sejam, são pensados a partir de um público-alvo e têm a função de persuadir, gerar identificação e mover os ouvintes para a ação. Para ter sucesso, qualquer retórica deve gerar reconhecimento naqueles que a escutam - seu público deve reconhecer suas preocupações, estar familiarizado com sua linguagem, se sentirem especialmente endereçados pelo locutor. (Garland, 1990, p. 260)

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Como já foi dito, o discurso penal tem três importantes interlocutores, a saber, os criminosos condenados, os agentes do sistema penal (seja o policial ou o juiz) e, por último, o público em geral. Os criminosos condenados são os interlocutores imediatos porque a sanção penal tem como objetivo ensinar-lhes uma lição, convencê-los do pecado que cometeram e de que sua punição é justa; ou seja, uma função de educação moral. Garland aponta para a ineficiência do sistema penal em cumprir essa função moral; segundo o autor, são as práticas institucionais diárias dos regimes internos das prisões que cumprem a função de fixar o significado da privação da liberdade – se as práticas dentro da prisão são justas e humanas, é possível que alguns aprendam algo sobre cidadania; se as práticas forem arbitrárias, brutais e injustas, o resultado será ressentimento e oposição por parte dos interlocutores. O segundo grupo de interlocutores dos discursos penais são os agentes que fazem o sistema funcionar, pois este grupo se vê envolvido nos detalhes das práticas penais e são diretamente afetados pelas formas que essas práticas tomam. Para Garland, a forma como a punição é aplicada ajuda muito mais a identificar o caráter daqueles que trabalham no sistema penal do que propriamente a natureza de quem é punido. Um grande cuidado é tomado para assegurar que termos adequados sejam usados, que a linguagem seja apropriada e aceitável para as partes interessadas, e que o imaginário projetado pelo documento ou prática não afete negativamente a moral ou auto-percepção do grupo mais diretamente envolvido.” (Garland, 1990, p. 262) O terceiro interlocutor dos discursos penais é a sociedade em geral. É também o interlocutor definitivo para todo o simbolismo da punição pois, em sociedades democráticas, toda prática jurídica é uma ação do Estado e, portanto, passível de revisão pelo público em geral. Dessa forma, quando o Estado não consegue dar forma simbólica apropriada para um evento jurídico, a ação do Estado passa a ser a de limitar ao máximo a disseminação das informações e possíveis representações151. Dada a diferenciação social que existe na sociedade moderna, o `público em geral´ é frequentemente uma platéia dividida e seus vários setores vão divergir na sua receptividade a formas particulares de retórica. Políticas particulares, estilos de representação e linguagens de punição vão apelar para diferentes setores da platéia, e políticos modernos são habilidosos em manipular o 151

Na história brasileira, esse argumento pode ser exemplificado pela ação do Estado em relação ao massacre ocorrido no Complexo do Carandiru, em São Paulo, em 1992.

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simbolismos da `lei e da ordem´ para fazer conexão com os medos, as inseguranças e os preconceitos da platéia para a qual se dirige.” (Garland, 1990, pp. 264-5) Para demonstrar a relação entre a lei e a criação de uma ordem cultural, Garland faz uma breve análise de como alguns aspectos da vida social estão representados na punição. O primeiro deles é o desenvolvimento da autoridade social através dos diferentes contextos. Durante o Estado absolutista, a autoridade foi construída como absoluta, inspirada no poder divino. No estado liberal do século XIX, por sua vez, o Estado é representado como aquele que corporifica o contrato social e aquele que assegura direitos e deveres aos cidadãos de acordo com a lei. Já o Estado moderno do século XX é visto como um Estado social que quer assistir, cuidar e, quando necessário, exercer controle sobre os sujeitos. As práticas penais carregam concepções específicas de subjetividade e, ao mesmo tempo, autorizam formas específicas de identidade individual. Para Garland, a punição “oferece um modelo básico para o nosso entendimento sobre as outras pessoas e sobre nós mesmos.” (Garland, 1990, p. 268). As práticas penais também estabelecem os limites e os tipos de conduta individual que serão toleradas nas relações sociais e a qualidade dessas relações. Dessa forma, as práticas penais dão sentido e definição aos laços que conectam os indivíduos entre si (a relação do criminoso com as vítimas, por exemplo) e com as instituições centrais da sociedade (a relação dos indivíduos com o Estado, com a polícia, com a família) e também sugerem as reações emocionais esperadas em relação a comportamentos desviantes, como a raiva, a indignação, a compaixão e a indiferença: O drama do crime e da punição impulsiona um conflito `real´ entre os instintos e a repressão que a maioria dos adultos experimentou em algum nível. Sendo essa a questão, os símbolos da punição parecem ter relação com as memórias pessoais e associações individuais particulares, produzindo atitudes e envolvimentos que poderiam não surgir de nenhuma outra forma. (Garland, 1990, p. 275) Considerações Finais

Como já foi dito, para Garland a reflexão teórica a respeito da Sociologia da punição não pretende circunscrever apenas um campo de debate acadêmico mas busca igualmente empreender uma ação simbólica mais ampla, capaz de transformar o modo

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como as pessoas e as instituições pensam a punição no mundo contemporâneo. Por isso, em outros trabalhos, Garland não se esquivará de polemizar com campos vizinhos de conhecimento voltados igualmente para o estudo do crime e da punição – como a Criminologia –, nem de discutir o rumo das políticas criminais no mundo contemporâneo. No âmbito da Criminologia, por exemplo, Garland (1999), ao estudar o caso britânico, vê duas tendências contraditórias de desenvolvimento das teorias criminológicas. De um lado, ganha força uma nova “Criminologia do eu” ou uma “Criminologia da vida cotidiana”, que vê o crime como um fato normal e o criminoso como um agente racional, uma espécie de consumidor racional. Baseadas por vezes em teorias como a da “Escolha Racional”, tais concepções insistem no fato de que os delinquentes calculam suas ações e de que o crime é um aspecto trivial da sociedade moderna, um “risco” que deve ser calculado ou um “acidente” a ser evitado. De outro lado, permanece uma “Criminologia do outro”, de matriz lombrosiana, que vê o criminoso como uma espécie de monstro, totalmente diferente do indivíduo nãocriminoso. É a tensão entre essas duas racionalidades distintas, ao expressar conflitos mais amplos da própria sociedade contemporânea, que está presente nos debates e na definição das políticas de segurança e penais: A criminologia oficial mostra-se, assim, cada vez mais dualista, polarizada e ambivalente. Há uma “criminologia do eu” que faz do criminoso um consumidor racional, à nossa imagem e semelhança, e uma “criminologia do outro”, do pária ameaçador, do estrangeiro inquietante, do excluído e do rancoroso. A primeira é invocada para banalizar o crime, moderar os medos despropositados e promover a ação preventiva, ao passo que a segunda tende a satanizar o criminoso, a provocar os medos e as hostilidades populares e a sustentar que o Estado deve punir mais. (Garland, 1999, p.75)

Uma Sociologia da punição, por sua vez, baseada numa perspectiva mais complexa que enfatiza sobretudo a dimensão cultural das instituições penais poderia assim contribuir para uma crítica teórica e prática da racionalidade penal do mundo contemporâneo152. Neste sentido, em trabalho recente, Garland (2001) estuda justamente as mutações das políticas de controle do crime na modernidade tardia. Nessa 152

Para um outro exemplo da inserção mais ampla do autor nas discussões criminológicas contemporâneas, consultar a coletânea por ele organizada sobre Criminologia e teoria social (Garland e Sparks, 2000).

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obra, Garland indica que no início dos anos 1970 mudanças estruturais na ordem capitalista provocaram reflexos importantes em todos os domínios da vida social e política. Transformações substanciais ocorreram, como por exemplo, o aumento dos desempregados, a fragilização dos sindicatos, a depressão dos salários etc. Garland aponta que essas modificações teriam provocado também uma crise na ordem familiar, nos padrões tradicionais, nos projetos coletivos, e teriam fomentado novos conflitos e ressentimentos, que acabaram provocando ainda um forte crescimento da criminalidade. Segundo Garland, a forma de enfrentamento dessa crise e particularmente do aumento da criminalidade está diretamente associada a uma nova percepção do crime e do criminoso, da mesma forma que se tem uma nova forma de conceber as políticas de combate à criminalidade. Para ele, entre os anos 50 e 70, vigora o Penal Welfarism, que tinha como concepção básica a reforma e a intervenção social para prevenir e combater o crime. Esse período gera teorias criminológicas ecléticas (etiquetamento, anomia, privação relativa, teoria das subculturas, carreiras delinquenciais etc.) que acreditavam num certo humanismo e tinham como pressuposto as socializações imperfeitas e a crença na capacidade de intervenção do Estado. Tais teorias escapavam do pensamento único e mantinham como centro da atenção o criminoso. Ao mesmo tempo, o Estado era visto como peça central no controle sobre o crime e promotor de métodos racionais de reinserção do criminoso. No entanto, seguindo as mudanças estruturais que se deram a partir do início dos anos 1970, novas teorias criminológicas passam a ser produzidas e o que predomina nos últimos trinta anos é o reverso do Penal Welfarism. O criminoso deixa de ser o foco da atenção em detrimento da vítima e as políticas criminais assumem maior severidade. A criminologia deixa de ser eclética, segundo Garland, e se direciona para uma teoria do controle social, na qual os indivíduos são vistos apenas em suas condutas anti-sociais, auto-referidas e criminais que só se detém a partir da imposição de mecanismos de controle. O crime e o controle do crime ingressam na agenda política e fortalecem o que se denomina de populismo, com as soluções fáceis mas que estimulam os receios da população e suas inquietações. Como conclusão, o crime passou a ser visto não mais dentro de uma agenda de solidariedade e direitos mas como quebra da ordem. Sem dúvida, suas idéias são, por vezes, bastante polêmicas. Apenas para apontar um exemplo, Garland parece atribuir, em sua discussão acerca dos principais paradigmas de análise no campo da Sociologia da punição, uma concepção por demais

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instrumental e funcionalista aos trabalhos de Michel Foucault nesse campo, a partir da qual as práticas penais apareceriam exclusivamente como formas de controle social, uma vez que ao identificar punição e poder Foucault perderia de vista, ainda segundo Garland, outras dimensões das práticas penais já exploradas anteriormente por autores como Durkheim. A crítica de Garland, no entanto, baseia-se equivocadamente na idéia de que Foucault pensaria o poder exclusivamente como forma de controle e de administração dos corpos individuais, posição essa dificilmente defensável já que o próprio Foucault por diversas vezes enfatizou a necessidade de uma concepção mais multidimensional do poder e, sobretudo nos seus últimos trabalhos, colocou em relevo as práticas de subjetivação como indissociáveis da temática mais vulgarizada acerca da relação poder-saber. Ironicamente, Matthews (2002) faz uma crítica similar ao trabalho do próprio Garland, ao afirmar que o diagnóstico que este realiza a respeito das transformações da natureza do controle do crime na modernidade tardia permaneceria por demais unidirecional, ao apontar exclusivamente para um crescimento contínuo e mais restritivo das formas de regulação dos comportamentos na atualidade. Essas polêmicas, de qualquer modo, apontam para a importância da discussão realizada por Garland no debate contemporâneo acerca do crime e da punição no mundo contemporâneo. Embora o Brasil tenha colocado na agenda política certa prioridade para a questão da violência e das formas de seu controle, particularmente o combate ao crime, as idéias de Garland acerca da Sociologia da punição e seu diagnóstico acerca da cultura do controle do crime no mundo contemporâneo ainda foram pouco explorados nos meios acadêmicos. O Brasil não apenas apresenta diversas tendências apontadas por Garland – o crescimento do encarceramento, a maior severidade nas penas, a criminalização da miséria etc. – como ainda é afetado por expressivos dilemas na recomposição de seus aparatos de justiça criminal, em meio ao processo de democratização vivido nas últimas décadas. Deste modo, a incorporação do pensamento de Garland parece de grande valia para se aprofundar a compreensão do cenário brasileiro, uma vez que ainda são quase que inexistentes as análises sobre como os criminosos percebem a punição que lhes é imposta, da mesma forma que são modestos os estudos sobre as percepções dos integrantes dos aparatos de implementação das políticas punitivas. A prática da tortura, dos maus tratamentos nas prisões, as execuções sumárias com envolvimento de policiais, são alguns exemplos que ilustram a necessidade de um conhecimento mais aprofundado da persistência dessas práticas na

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sociedade brasileira. E ainda parece relevante a contribuição de Garland para se tentar esclarecer como e porque a sociedade em geral no Brasil dá aval para práticas punitivas que correm muitas vezes à revelia da lei ou que se limitam a alcançar os seus estratos mais pobres e privados dos mais elementares direitos. Se, como observou Garland, a punição moderna se coloca por detrás de um discurso que nega a violência inerente nas suas práticas, pode-se pensar se no Brasil existe tal dimensão coexistindo com práticas de violência que se ‘legitimam’ de forma explícita na impunidade dos operadores das instituições que as praticam e sobretudo na conivência de amplas camadas da sociedade para com tais práticas.

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Considerações Finais Quando, de volta , viajares para Ítaca roga que tua rota seja longa, repleta de peripécias, repleta de conhecimentos. (...) Ítaca te deu essa beleza de viagem. Sem ela não a terias empreendido. Nada mais precisa dar-te. Se te parece pobre, Ítaca não te iludiu. Agora tão sábio, tão plenamente vivido, bem compreenderás o sentido das Ítacas. Konstantinos Kaváfis

Como afirmado na introdução desta tese de livre-docência, aqui foram reunidos trabalhos diversos, a maior parte já publicada, bem como algumas discussões inéditas. Apesar da dispersão de questões e de temas, a reunião de tal conjunto de reflexões e de pesquisas revela as linhas gerais de meu percurso intelectual desde o doutorado. Para além da divisão didática adotada, que permitiu repartir os trabalhos expostos em três conjuntos principais – “caixa de ferramentas”, “história do presente” e “atualidade” – há um forte imbricamento, tanto nas discussões teórico-metodológicas apresentadas, quanto nos trabalhos específicos de pesquisa. Na primeira parte, os textos voltados para a caracterização e problematização do percurso intelectual de Michel Foucault foram desenvolvidos tendo em vista a instrumentalização, no âmbito da Sociologia, de conceitos e de investigações elaborados pelo filósofo francês. Assim, noções como de discurso, saber, poder, disciplinas, governamentalidade etc., embora exploradas aqui autonomamente, sempre foram trabalhadas tendo em vista a instrumentalização em contextos de pesquisa circunscritos, exemplificados na segunda e na terceira parte. O eixo organizador da segunda parte da tese remete à já citada perspectiva da “história do presente”, ao buscar, a partir de diversas investigações de escopo histórico mais amplo, problematizar as condições de possibilidade das práticas de poder contemporâneas, sobretudo no que diz respeito à sociedade brasileira. A terceira parte, por sua vez, desdobra a reflexão crítica e a perspectiva histórica, exploradas anteriormente, em questões relacionadas à sociedade brasileira

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contemporânea: o tratamento legal e institucional voltado para os adolescentes em conflito com a lei, as percepções em relação à vítima no âmbito penal e o desafio da gestão das fronteiras. O texto que encerra a tese remete ao debate contemporâneo, no âmbito internacional, no que diz respeito à Sociologia da Punição e ao estudo das formas de controle próprias da contemporaneidade. Como igualmente afirmado inicialmente, dado o entrelaçamento dos trabalhos reunidos, os textos podem ser lidos na direção inversa, dos trabalhos de investigação para as reflexões de cunho mais teórico e metodológico. Por exemplo, foram as pesquisas no âmbito do projeto “Violência e Fronteiras no Brasil”, desenvolvido junto ao NEV/USP, que levaram à retomada da discussão acerca da questão do poder em Foucault, com ênfase na noção de governamentalidade. Buscar, nessas considerações finais, contornar a fragmentação das reflexões e das pesquisas realizadas ao longo dos anos, para além do que foi aqui exposto, seria um exercício um tanto quanto artificial e exterior ao caminho de pensamento e de investigação realmente desenvolvido. Mais interessante é apontar, em contrapartida, que o quadro aqui apresentado continua em aberto pois praticamente todas as frentes de pesquisa elencadas permanecem ativas, quer por meio dos trabalhos de meus orientandos, quer das investigações que continuo desenvolvendo no Departamento de Sociologia da FFLCH-USP ou do NEV/USP. Nesse sentido, os trabalhos reunidos nessa tese de livre-docência não indicam um ponto de chegada, nem se voltam apenas para a fixação de uma trajetória passada, mas ainda pretendem indagar a atualidade e abrir perspectivas para o futuro.

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