\"Que Corpo Deficiente é Esse?\": Notas Sobre Corpo e Deficiência nos Disability Studies

June 13, 2017 | Autor: Marco Gavério | Categoria: Disability Studies, Queer Theory, Sociologia
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

"QUE CORPO DEFICIENTE É ESSE?": NOTAS SOBRE CORPO E DEFICIÊNCIA NOS DISABILITY STUDIES

MARCO ANTONIO GAVÉRIO

SÃO CARLOS, SP

Fevereiro, 2015

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

"Que Corpo Deficiente é Esse?": Notas Sobre Corpo e Deficiência nos Disability Studies

Marco Antonio Gavério Monografia apresentada como requisito parcial para conclusão de curso de graduação em Ciências Sociais, da Universidade Federal de São Carlos, sob a orientação do Prof. Dr. Jorge Leite Júnior.

SÃO CARLOS, SP

Fevereiro, 2015

GAVÉRIO, Marco Antônio. "Que Corpo Deficiente é Esse?": Notas Sobre Corpo e Deficiência nos Disability Studies/Marco Antônio Gavério. – São Carlos: UFSCar, 2015 Trabalho de Conclusão de Curso – Universidade Federal de São Carlos, 2015. 1. deficiência, 2.corporalidade, 3.disability studies, 4.sociologia da deficiência; 5.sociologia do corpo

MARCO ANTÔNIO GAVÉRIO

"QUE CORPO DEFICIENTE É ESSE?": NOTAS SOBRE CORPO E DEFICIÊNCIA NOS DISABILITY STUDIES

Monografia apresentada à Universidade Federal de São Carlos, como parte dos requisitos para a conclusão do curso de Ciências Sociais.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________ Orientador Prof. Dr. Jorge Leite Jr. Universidade Federal de São Carlos

_________________________________ Convidada Doutoranda. Anahí Guedes de Mello Universidade Federal de Santa Catarina

À todos e todas que, de alguma forma, se aleijam e degeneram-se

Agradecimentos O ato de escrever, criar uma peça de trabalho acadêmico ou literário, sempre me chamou atenção por sua configuração ambígua. Por um lado essa criação é extremamente solitária, como se não houvesse uma alternativa além do esforço e da intensa batalha de traduzir os pensamentos em uma narrativa coerente. Por outro, essa mesma solidão é atravessada por uma série de vivências e experiências sociais que transformam e transbordam a todo momento as mesmas ideias que se busca organizar. Esta monografia é fruto destas ambiguidades incontáveis contidas em conversas, ideias, caminhos, pensamentos, sentimentos, experiências e pessoas que compõe os pequenos e fundamentais momentos de epifania compartilhada que me motivaram à escrita desse trabalho (e que nenhuma racionalização, por mais incessante e neutra que pretenda ser, não consegue conter, em sua descrição). Um trabalho de criação solitária permeada por inúmeras ligações que a todo momento direcionavam e conduziam meus entendimentos daquilo que propunha investigar. Com isso quero dizer que nada aqui escrito, relatado contado, estruturado, narrado é original ou é meu no sentido de algo único e individual. Quero exatamente colocar que o próprio ato de criar solitariamente esse trabalho - o que pressupôs um constante diálogo coletivo com pessoas próximas e distantes, conhecidas e desconhecidas - me produziu constantemente enquanto "pesquisador" ou, mais corretamente, aspirante a pesquisador/acadêmico /intelectual. Termos tão distantes, ou distanciados, daquilo que se diz de quem produz saberes através de uma experiência pessoal/cotidiana, como se a própria pesquisa científica fosse isenta das inconstâncias mundanas. Esse texto é, assim, um agradecimento àquelas e àqueles que atravessaram minha vivência acadêmica/universitária - direta e indiretamente - e que se plasmaram em minhas experiências pessoais, a questionando, criticando, duvidando e transformando, mesmo que muitas e muitos não o saibam. Agradeço à Universidade Federal de São Carlos pelo acolhimento institucional oferecido a mim e à minha família, com relação às condições específicas para minha permanência física na Universidade. Há muito ainda que ser discutido, mas o diálogo já está aberto. Agradeço ao financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) da pesquisa de iniciação científica que fundamentou esse trabalho. Agradeço a todos e todas as funcionários (as) e professores, dos departamentos de Ciências Sociais e Sociologia da UFSCar que fizeram e ainda fazem parte da minha formação como cientista social. À prof.ª Vera Alves Cepeda por sua imensa generosidade e amizade; ao secretário da coordenação de curso Ronaldo José Hipólito e a prof.ª Maria Inês Rauter Mancuso pelas primeiras táticas de sobrevivência burocrática dentro de uma universidade; ao prof. Geraldo Luciano Andrello pelos primeiros ouvidos antropológicos sobre minhas ideias de pesquisa; ao prof. Richard Miskolci pelas oportunidades de trocas, indicações e acessos a leituras fundamentais nesta pesquisa; e especialmente meu muito obrigado a meu orientador, prof. Jorge Leite Júnior, que confiou nas minhas inquietações

sem pestanejar e encarou, com muita paciência e atenção, os desafios das minhas propostas de pesquisas sobre deficiência desde 2010. Agradeço aos/as camaradas pesquisadores – principalmente, mas não somente dos grupos de pesquisa Sexualidade e Entretenimento e Quereres, os quais participei mais ativamente ao longo da minha graduação - pelas sessões de discussões extremamente motivadoras. Agradeço aos professores e terapeutas ocupacionais Stella Nicolau, Daniel Cruz e à Mirela Figueiredo pelas oportunidades de dialogar e aprender novas maneiras de debater sobre nossas ideias de corpo e potência; e a outra terapeuta ocupacional, Lu Saponi, por me puxar de lado e dizer, “cara, você precisa conhecer os disability studies”. Agradeço à Pamela Block e à Francisco Ortega pelo convite para participar de um dos primeiros encontros sobre disability studies no Brasil e pela consequente oportunidade de estreitar laços com muitos(as) outros(as) pesquisadores na área emergente em contexto nacional. Agradeço a Franco Ezequiel Harlos, Anahí Guedes de Mello e a Peter Torres Fremlin por todas as possibilidades teóricas de “deficientizar” o mundo. Agradeço a Terezinha Marron por me encorajar com muito carinho a ler o mundo por várias perspectivas literárias e afetivas. Agradeço aos amigos e as amigas, de São Carlos e UFSCar, que fizeram/fazem parte, de alguma forma, todo meu processo. Agradeço à Thais por me buscar pela mão e me encorajar a discutir coisas que me eram inimagináveis e pelas contribuições da leitura da primeira versão desse texto; à Fernando pelas leituras de meus textos, por suas recomendações carinhosas e conversas sociológicas incríveis. Aos moradores, agregados e agregadas – do passado, presente e futuro - da república e família Dragão Fumeta; Aos companheiros e companheiras de graduação – em especial a turma 010. Um salve aos parceiros e as parceiras de AT-Zero que colocaram na roda muitas das ideias desenvolvidas neste trabalho. E agradeço imensamente, e finalmente, aos meus amados Silvia, Abílio e Flávio. Sem vocês segurando as pontas nada disso seria minimamente possível, até por que essa história não começou hoje. Mãe, pai e maninho: Amo vocês.

Resumo Esta pesquisa é um breve panorama bibliográfico de como o considerado “corpo deficiente” é pensado e problematizado na teoria social contemporânea a partir de um campo das humanidades conhecido como disability studies (estudos sobre/da deficiência). Esses estudos originariamente sociológicos sobre deficiência, com suas problematizações “primeiras” situadas entre o final dos anos 1970 e durante os anos 1980, passaram a projetar teórica e analiticamente a deficiência como uma construção social e cada vez mais distante de determinantes exclusivamente biológicos. A pesquisa se desdobrou em duas frentes: A primeira ficou por conta da base metodológica do trabalho. Após definido meu ‘campo’ de pesquisa, a literatura dos disability studies, busquei traçar o histórico-social desses estudos para compreender melhor o contexto das suas críticas, uma vez que já havia percebido certa heterogeneidade de abordagens ‘construcionistas’ sobre deficiência. A segunda frente da pesquisa é específica ao se debruçar sobre o “corpo deficiente” nos disability studies. Esse objetivo se liga à metodologia anteriormente referida se pensarmos que o que se constitui como “corpo deficiente” nesses estudos – como fora dele - pode ser um processo de intensas disputas teóricas e analíticas. Se a medicina, de maneira geral, postulava o corpo deficiente como receptáculo de inúmeras ‘falhas’ e ‘defeitos’, os disability studies – seja pela consideração da deficiência como minoria ou um grupo oprimido - passaram a questionar o estatuto natural e normativo imposto nessas configurações médicas da deficiência. Contudo, mesmo sendo ponto de relativo consenso crítico nos disability studies a grande autoridade que a medicina exerce sobre os corpos considerados deficientes, durante os anos 1990, devido a relação com muitas críticas que centralizavam a corporalidade nas suas problemáticas - como o feminismo, teorias críticas raciais e estudos sobre sexualidades - os estudos sobre/da deficiência começaram a questionar sobre qual corpo deficiente se falava nas teorizações que o abordavam. Palavras-chave: deficiência; corporalidade; disability studies; sociologia da deficiência; sociologia do corpo

Abstract This research is a brief bibliographic overview on how the considered "disabled body" is thought and questioned in contemporary social theory from a field of humanities known as disability studies. These originally sociological studies on disability, with its "firsts" problematizations situated between the late 1970s and during the 1980s, began to design theoretical and analytical the disability as a social construction and increasingly distant exclusively from biological determinants. The research was divided into two fronts: the first was the methodological basis of the work. After set my research 'field', the literature of disability studies, I tried to trace the social historic of these studies to better understand the context of its criticism as I had noticed certain heterogeneity of 'constructionists' approaches to disability. The second prong of the research is specific to look into the "disabled body" in disability studies. This goal binds the methodology referred above if we think that what constitutes as "disabled body" in these studies - and outside of it - can be a process of intense theoretical and analytical disputes. If the medicine in general, postulated the disabled body as receptacle of countless 'failures' and 'defects', the disability studies - by the consideration of disability as minority or oppressed group began to question the natural and normative laws imposed in these medical settings of disability. However, even though existing a relative consensus on the great authority that medicine has on the bodies deemed disableds, during the 1990s, due to relationship with many criticisms that centered corporeality in their concerns - such as feminism, critical race theories and sexuality studies – disability studies began to question about what disabled body have been talke about in theories that approached it. Key-words: disability; corporeality; disability studies; sociology of disability; sociology of the body

Sumário 1

Introdução............................................................................................................. 10 1.2

Deficiência e disability studies: qual a intersecção? ............................................. 14

1.3 Caminho de pesquisa.................................................................................................... 26 2

PARTE I .................................................................................................................. 28 2.1 Uma trajetória teórico-política: Os movimentos políticos deficientes e seus desdobramentos teóricos .................................................................................................. 28 2.2 A abordagem construcionista da deficiência: entre o modelo minoritário e o modelo social ...................................................................................................................... 35 2.3

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Corpo x deficiência: tensões conceituais ............................................................... 45

PARTE II ................................................................................................................. 50 3.1 Caracterizando o corpo deficiente: corpo nos disability studies ................................ 52 3.2 Corporalidade em foco: fenomenologia, sexualidade e o corpo “perfeito” em algumas abordagens nos disability studies ....................................................................... 67

4. Considerações finais ................................................................................................... 76 5.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 78

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Introdução

Quando comecei minhas investigações em 2010, baseadas em buscar um sentido sociológico para a deficiência, não era tão iminente quanto hoje a possibilidade de se deparar com um conjunto teórico que estivesse nitidamente construindo uma abordagem social para compreendê-la. Assim, ao longo da minha graduação em ciências sociais, conforme fui emaranhando-me na busca de tal sentido, me deparei com algumas teorizações – principalmente norte-americanas e britânicas - que postulavam a deficiência, fundamentalmente, como uma construção social1. Ao mesmo tempo, eu entrava em contato com uma série de pesquisadoras e pesquisadores, nacionais e internacionais, que já estavam traçando análises sociológicas e antropológicas que explicitavam o caráter social da deficiência, principalmente, através do que se denominava de “modelo social”. Minha proposta nessa introdução é compor e deixar em aberto, muito menos do que reconstituir, minha trajetória teórica. Quero pensar exatamente a contingência de alguns encontros e trocas que vivenciei, demonstrando que o contexto acadêmicouniversitário no qual me inseri a partir de determinado momento, possibilitou criar e acessar caminhos para tentar compreender exatamente termos que surgiam nas minhas leituras e que faziam ressonância na minha experiência ‘pessoal’ como deficiente. Termos como sociologia da deficiência, modelo social da deficiência, disability studies, se tornavam cada vez mais corriqueiros nas leituras e encontros com outras/as outros pesquisadores tanto das ciências sociais quanto de áreas como a terapia ocupacional e educação especial. Explicitarei melhor as condições que permearam a emergência dessas nomenclaturas ao longo da segunda metade do século XX já nesta introdução, e veremos que em boa parte das pesquisas que versam sobre as origens sóciohistóricas dos disability studies2 garantem a emergência desses estudos a partir da construção do muito citado modelo social da deficiência3.

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Informalmente minhas investigações sociológicas e bibliográficas começaram em 2011. Com os dados bibliográficos e informações que concentrei foi possível montar o projeto que resultou no financiamento (PIBIC\CNPq), entre 2013-14, de minha pesquisa de iniciação científica. Os resultados comunicados no relatório final da pesquisa intitulado “Outros Corpos: Abordagens do Corpo Deficiente no Pensamento Social Contemporâneo” (Processo: 156668/2013-0) foi base fundante desta monografia. 2 Nome dado a um circuito teórico que pensa a deficiência criticamente a colocando como produto das relações sociais e não somente uma condição individual/corporal (DINIZ, 2007) 3 Aprofundaremos melhor sua possível definição, mas por ora o modelo social da deficiência surge como tal nas teorizações sociológicas britânicas sobre deficiência (disability) durante os anos 1980 e se destaca por operar em uma espécie de distinção entre indivíduo e sociedade em

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Posso dizer que fui apresentado ao termo disability studies antes de conhecer o modelo social. Isso foi em 2010, ano de meu ingresso nas ciências sociais na Universidade Federal de São Carlos, em uma mesa redonda no XX encontro da Terapia Ocupacional da mesma universidade4. Como iniciante nas ciências sociais, e mesmo já tendo algum contato com alguns textos do periódico Disability and Society5, ainda não tinha vislumbrado os disability studies como um possível campo de estudos que concentra uma produção de conhecimento sobre deficiência a considerando para além de seus atributos biológicos6. A partir desse encontro dialógico aquelas profissionais e pesquisadoras e munido dessas informações direcionei minhas iniciais investigações a fim de colher material bibliográfico que me pusessem a par dessa movimentação teórica. Foi neste mesmo período, ainda em 2010, de buscas para começar a conhecer as possíveis abordagens sobre deficiência que eram inclusas (e consequentemente as que eram excluídas) sob a rubrica de disability studies, tive a oportunidade de dividir um espaço de diálogo na UFSCar com o pesquisador Franco Ezequiel Harlos. Harlos à época construía sua dissertação no programa de pós-graduação em educação especial – ficando nítida mais uma das contingências de alguns encontros teóricos que mencionei há pouco – sob uma “face sociológica dos Disability Studies/Estudos da Deficiência denominada Sociologia da Deficiência (ênfase minha)” (HARLOS, 2012, p. 37). Essa obra destacase, em partes, ao buscar, em um grande esforço de investigação bibliográfica, deslindar as origens de tal sociologia (sociology of disability). Segundo Harlos, o mote de sua investigação surgiu após menção da possível subárea sociológica – sociology of disability - em um relatório da American Sociological Association (ASA) e fez com que o pesquisador pudesse acessar duas fontes acadêmicas de seu desenvolvimento: a revista Disability and Society e o banco de dados da Asociación Española de Sociología de la Discapacidad (ASESDIS). O contato com a construção teórica da pesquisa de Harlos foi o que me possibilitou ter um primeiro panorama histórico social do que de fato começava a se que a lesão (impairment) seria do campo biológico, individual e a deficiência (disability) o resultado opressivo imposto socialmente sobre os corpos com lesões. 4 Neste encontro tive a oportunidade de estreitar laços com a terapeuta ocupacional e pesquisadora Stella Nicolau, hoje na UNIFESP e com a terapeuta ocupacional Lu Saponi a quem me apresentou, efetivamente, para os disability studies. 5 O retomaremos posteriormente, mas seu desenvolvimento nos anos 80, concomitante ao desenvolvimento de outro periódico importante da área, o norte americano Disability Studies Quarterly, é reconhecido atualmente como fundamental ao desenvolvimento dos disability studies. 6 O que posteriormente se mostrou uma constatação contextual pois, como veremos, os disability studies surgiram teoricamente como fruto de ‘inspirações sociológicas’.

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desdobrar perante a mim como um novo marco teórico para pensar deficiência. Sua pesquisa corroborou positivamente com meus primeiros dados bibliográficos sobre disability studies e ainda me possibilitou acessar (direta e indiretamente através de suas referências) outras produções acadêmicas brasileiras e internacionais – anteriores ao trabalho de Harlos - que não exatamente defendiam uma sociologia da deficiência, mas nitidamente trabalhavam no marco teórico do que já se colocava como disability studies. Eu já havia me deparado com periódicos como Disability and Society, Disability and Sexuality, Disability Studies Quarterly e Review of Disability Studies, mas foi somente a partir da consistência e análise sistemática feita por Harlos de muitos artigos advindos dessas revistas que me foi possível vislumbrar um circuito teórico consistente com relação a uma produção sociológica sobre deficiência. Nas minhas buscas por contatos de outras e outros interlocutores sobre a temática no Brasil, as Antropólogas Pamela Block, Débora Diniz e Anahí Guedes de Mello me trouxeram questões e informações que ora coincidiam e ora entravam em choque com outras referências que também clamavam por estar sob a rubrica dos disability studies. Block (2002, BLOCK et al., 2008) se destaca por suas pesquisas sobre sexualidade e deficiência (algumas delas tendo como campo o Brasil), principalmente a relação entre sexualidade, deficiências cognitivas e discursos normalizadores. Diniz é amplamente referida como um dos principais nomes dos disability studies no Brasil, principalmente por seu reconhecido panorama histórico e teórico em O Que é Deficiência? sobre a “gênese dos estudos sobre deficiência (ênfase minha) no Reino Unido nos anos 1970 e as principais críticas feministas e pós-modernas nas décadas de 1990 e 2000” (2007, p. 11). Por sua vez, Mello (2009) desenvolveu uma investigação antropológica – partindo da configuração analítica proposta pelo “modelo social da deficiência” – da construção da pessoa na experiência da deficiência, atentando-se para elementos como corpo e subjetividade nesta vivência. Mello não somente propõe uma leitura antropológica da deficiência como busca discutir a importância da deficiência ser pensada como uma categoria útil para as análises antropológicas. Em meio a esse turbilhão de ideias e novas informações que se postavam ao meu redor, pude apresentar um trabalho, em parceria com Harlos, no I simpósio internacional sobre disability studies organizado por Pamela Block e Francisco Ortega – através do IMS/UERJ - na cidade do Rio de Janeiro em meados de 20117. Foi a primeira vez que Block (CONNOR et al, 2014) faz menção a esse evento no artigo “Brazil and Disability Studies: On the Map. Notes from The First International Symposium on Disability Studies in São Paulo”, 7

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me deparei com um encontro de discursos críticos sobre deficiência numa única reunião que propunha – entre seus participantes - de fato questionar as bases do conhecimento canônico sobre deficiência produzidos até então no Brasil e no mundo. Pensar criticamente, e socialmente, a deficiência era de alguma forma fazer disability studies.8 Mas a incursão teórica que proponho nesta monografia foi fundamentalmente inspirada em um modo de fazer sociologia sensível e, de certa forma, entrelaçado às chamadas “teorias subalternas”9. Segundo Richard Miskolci estas teorias passam a fazer crítica à “discursos hegemônicos na cultura ocidental” e passam a se referir, a partir do final dos anos 1980, à teoria queer e aos estudos pós-coloniais10 como alguns desses contra discursos que poderiam mobilizar estratégias políticas e teóricas que extrapolassem e fizessem “oposição a certa corrente ortodoxa [do Marxismo] que se tornara hegemônica [desde os anos 1950], ao mesmo tempo em que deixava de responder às demandas de grupos sociais de sua época, inicialmente operários, aos quais se somaram os imigrantes, negros, mulheres e homossexuais” (MISKOLCI, 2009, 158-159). Ou ainda, nas palavras da filósofa e historiadora queer Beatriz Preciado (CARRILO, p.383. Citada também em MISKOLCI, 2009, p. 160)

publicado em parceria com outros pesquisadores internacionais, sobre a situação dos disability studies no Brasil e pode ser acessado no endereço http://dsq-sds.org/article/view/4026/3531 8 Entretanto, é preciso ponderar essa minha afirmação. Anahí Guedes de Mello ao analisar esta monografia, e como pesquisadora e participante deste simpósio, me alerta, neste ponto, para o fato de que à época nem todas as posições sobre deficiência eram críticas nos termos dos disability studies, como veremos adiante. Cito a correspondência de Mello sobre a questão: “nem todos os participantes presentes no 1º Simpósio Internacional de Estudos sobre Deficiência, realizado no IMS/UERJ, Rio de Janeiro, pensaram a deficiência de forma crítica, havia disputas sobre a melhor forma de definir e mesmo nomear deficiência. Em termos de comunicações orais, houve de tudo um pouco e em excesso: a voz do sofrimento, histórias de vida baseadas na “tragédia pessoal”, poucas análises sociais, salvo algumas exceções”. 9 Também conhecidos como saberes subalternos. Para um dossiê sobre esses saberes consultar o volume 2, número 2, da revista Contemporânea de sociologia da UFSCar que pode ser acessada no endereço http://www.contemporanea.ufscar.br/ 10 Para um panorama de alguns desdobramentos históricos, teóricos e políticos que propiciaram o surgimento da hoje reconhecida teoria queer, a partir de uma perspectiva crítica e sociológica, ver: MISKOLCI, 2005 e MISKOLCI, 2009. O termo queer é uma gíria de origem inglesa que expressa um xingamento, uma diminuição ofensiva da(o) outra(o). Variando de estranha(o) esquisita(o), estranho(a) até bicha ou viado, o termo foi resignificado politicamente por e para designar aquelas e aqueles que não se enquadram, e muitas vezes fazem questão de não se enquadrar, nas normas ou estilos canônicos de comportamento (principalmente sexual). Intimamente ligada ao potencial disruptivo de sexualidades consideradas ‘anormais’, o sociólogo Richard Miskolci salienta que a teoria queer é “originada a partir dos Estudos Culturais norteamericanos [...] como contraponto crítico aos estudos sociológicos sobre minorias sexuais e à política identitária dos movimentos sociais” (MISKOLCI, 2009, p. 150). Neste mesmo texto Miskolci nos indica que, por sua vez, a teoria pós colonial surge entrelaçada em explorar as designações de “grupos sociais submetidos ao domínio de uma potência estrangeira, cuja subordinação se mantinha mesmo após a descolonização” não propondo uma mudança de perspectiva dentro dos pólos Ocidente/Oriente, mas de explorar a interdependência que funda aparentes oposições” (MISKOLCI, 2009, p. 158-159).

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A crítica pós-colonial e queer responde, em certo sentido, à impossibilidade de o sujeito subalterno articular sua própria posição dentro da análise da história do marxismo clássico. O lócus da construção da subjetividade política parece ter-se deslocado das categorias tradicionais de classe, trabalho e da divisão sexual do trabalho, para outras constelações transversais como podem ser o corpo, a sexualidade, a raça, mas também a nacionalidade, a língua, o estilo ou, inclusive, a linguagem. Instigado por colocações como essa e imerso em um contato próximo com as(os) pesquisadores, em principal, da linha de pesquisa Cultura, Diferenças e Desigualdades do PPG-Sociologia da UFSCar, comecei a me contaminar pela possibilidade da deficiência estar circunscrita dentro dessas outras “constelações transversais” mencionadas por Preciado. Até que ponto deficiência pode ser independente ou dependente, como categoria analítica, de outras categorias como corpo, sexualidade, raça/etnia, gênero dentre tantas outras? Mesmo que neste trabalho eu não tenha condições de me aprofundar em todas essas possíveis intersecções, a própria chance de encontrá-las proporcionou alguns dos desdobramentos que estão condensados neste texto, principalmente sobre corpo e deficiência.

1.2 Deficiência e disability studies: qual a intersecção? Deficiência poderia ser, por um lado, como sempre vivenciei e sempre me foi reiterado através dos discursos e práticas médicas, um atributo biológico, uma característica fisiológica gerada por algum distúrbio, déficit, falha, defeito em alguma função do organismo. Deficiência para o conhecimento biomédico é basicamente o resultado de uma falha, congênita ou adquirida, que afetará o funcionamento normal do corpo ou de algumas de suas partes. Assim como a cirrose é uma deficiência na produção da bílis, a falta de membros, sentidos ou de um nível esperado de cognição também são consideradas deficiências (física, sensorial e intelectual). No meu caso, possuo todos os membros, sentidos e estou dentro das expectativas cognitivas, porém o que me torna deficiente, na linguagem médica, é um defeito genético que causa a não produção de uma proteína medular responsável por dissipar os impulsos elétricos cerebrais que coordenam minhas funções motoras. Esse diagnóstico recebe o nome de amiotrofia muscular espinhal, uma doença, uma patologia que 'deficientiza/desabilita/discapacita’' (disables) meu corpo de suas funções consideradas normais, uma vez que sua principal consequência é a atrofia dos músculos. Nessa visão, portanto, deficiência é o resultado de 14

uma falha, congênita ou adquirida, que afetará o funcionamento normal do corpo ou de algumas de suas partes. Por outro lado, e o que ficava cada vez mais aparente nas minhas investigações, deficiência poderia também ser parte de um processo social que englobaria até mesmo as classificações e os discursos biológicos/medicalizantes sobre ela. Nesse sentido, comecei a retomar algumas das nomenclaturas que, direta ou indiretamente, sempre foram usadas para referirem-se a mim. Uma das primeiras denominações que recebi foi defeituoso. Por dois motivos: eu havia nascido com um defeito genético. A amiotrofia espinhal me causava uma degeneração muscular. Assim eu cresci como uma criança que possuía um defeito (genético), uma doença que me causaria degeneração (muscular) enquanto vivesse. O segundo motivo foi quando, devido as projeções do diagnóstico da doença, me foi receitado fisioterapia. Aos 4 anos de idade virei paciente, por 15 anos, da Associação de Assistência à Criança Defeituosa, AACD, hoje Associação de Assistência à Criança Deficiente. Essa mudança nos termos de uma das principais instituições de reabilitação do Brasil – e arrisco dizer a com maior visibilidade midiática na atualidade11 - que pude vivenciar ativamente, exemplifica que que o termo “pessoa com deficiência” veio substituir muito recentemente, também no Brasil, e a partir das reivindicações de grupos políticos-identitários, termos considerados antiquados ou eufemísticos para designar aquelas e aqueles com características físicas, sensoriais e cognitivas “distoantes”. No caso da AACD desde sua fundação, em 1950, até a mudança no nome da instituição, o que só veio a ocorrer no ano 200012, o termo “criança defeituosa” não era usado como um eufemismo para “criança deficiente”, antes mesmo indicava um tipo específico de criança a ser assistida ali13. Ainda hoje o termo “deficiente” causa problemas semânticos quando 11

Desde 1998 é televisionado em cadeia aberta nacional anualmente, com transmissão original do SBT, a maratona televisiva filantrópica Teleton. As 24 horas de programação e entretenimento são focadas em arrecadar fundos para construção de mais centros de reabilitação AACD e a manutenção dos já existentes. 12 As informações foram retiradas diretamente da página online da instituição e pode ser acessada no link: http://aacd.com.br/voce_estudante_faq.asp 13 Com fim ilustrativo e para mostrar algumas noções que permeiam a deficiência publicamente, a partir do apelo por recursos para angariar fundos para tratamentos reabilitativos, transcrevi um trecho da fala de abertura da programação do apresentador e anfitrião Silvio Santos no primeiro Teleton de 1998: “[...] se der certo, e eu tenho certeza que vai dar, faremos um Teleton por ano e faremos um hospital por ano. Eu tenho certeza. Esse ano não foi possível reunirmos todas as emissoras de televisão. Esse ano não foi possível reunirmos as emissoras de rádio. Esse ano não foi possível reunirmos jornais e revistas. Mas eu tenho certeza que a cada ano, como no Chile, mais emissoras vão se juntar, mais gente vai trabalhar e, talvez, consigamos reunir os meios de comunicação para ajudarmos crianças e pessoas que têm enormes problemas. Foi uma surpresa, como eu já disse, pra mim e pra minha esposa ver, através destes filmetes que serão repetidos ao longo da programação - destes filmetes tão bem feitos pela nossa equipe foi uma surpresa ver o trabalho de gente que dedica horas dos seus dias tentando recuperar

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o assunto é como denominar os que não ouvem, falam, veem, andam ou pensam. Anahí Guedes de Mello (2009, p. 52), ao comentar sobre a mudança de nomenclatura em uma das cartilhas do SUS, de pessoas portadoras de deficiência (2003) para pessoas vivendo com deficiência (2006), argumenta que A nova definição lembra que se trata de uma pessoa que apresenta um estado de saúde com o qual convive, algo que não é efêmero, como o termo “portador”. Assim, no Brasil as expressões “portador de deficiência”, “deficiente” e “pessoa deficiente” têm sido cada vez mais substituídas por “pessoa com deficiência” pelos movimentos sociais da área. O argumento é que essas pessoas não portam uma deficiência da mesma forma como se porta uma carteira de identidade em que se pode tirá-la a qualquer momento. Quanto a “deficiente”, este termo tem a desvantagem de tomar a parte pelo todo, sugerindo que a pessoa inteira é deficiente. Romeu Kazumi Sassaki (2003) nos indica que “esse termo [pessoa com deficiência] faz parte do texto da Convenção Internacional para Proteção e Promoção dos Direitos e Dignidade das Pessoas com Deficiência [...] aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 2003”. Essa mudança de termos vem em consonância com as intenções políticas das então “pessoas com deficiência” que reivindicam: 1) escolher a nomenclatura com que querem ser chamadas(os) e 2) rechaçar termos como “pessoas portadoras de deficiência” e “pessoas com necessidades especiais” por seus eufemismos e distanciamento das realidades das pessoas que buscam nomear. Ainda para Sassaki (2010. Citado também em MELLO, 2009, p. 49), esses “eufemismos [...] não atingem o objetivo mais importante dos nomes, ou seja, caracterizar grupos ou pessoas para diferenciá-los de outros.” Porém, se retomar o exemplo da AACD, durante muitos anos pude ler nos letreiros, todas as semanas, “criança defeituosa” e me reconhecer – acredito que como

uma criança para a família e para a sociedade. Vocês não têm ideia o que é ter em casa uma criança, como vocês viram, bonita, inteligente, com vontade de ser útil e não poder por falta de ajuda, por falta de dinheiro e, principalmente, por falta de uma unidade hospitalar que a recupere e a ensine a despertar e a desfrutar da vida com o problema que ela tem e que nem sabe por que razão ela nasceu diferente dos nossos filhos que, felizmente, são criaturas perfeitas com todos os movimentos e sentidos. Nestas 26 horas de maratona pela televisão nós vamos ver o quanto nós somos felizes; nós vamos ver quão pequenos são os nossos problemas e vamos ver o quanto Deus foi generoso e bondoso conosco. É claro que nós estamos atravessando problemas difíceis [...], mas podem crer, nenhum desses problemas se compara ao de uma família que recebe em seu lar, não se sabe por quê, uma criança que não é normal”. Para uma crítica deficiente (disability criticism) sobre teletons e sua relação com noções estigmatizadas de deficientes/deficiência ver o artigo “The Cultural Framing of Disability - Telethons as a Case Study, de Paul k. Longmore (2005).

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muitas crianças à época - naqueles termos, assim como, anos depois, tive que me reconhecer sobre os auspícios da correta nomenclatura “pessoa deficiente” entrelaçada com a ascensão, nos anos 2000, do termo jurídico-legal “pessoa com deficiência”. Irônico é que, ao mesmo tempo que todas me classificavam e afetavam tão intimamente, nenhuma delas foi escolha minha e são elas que, ao mesmo tempo, são resignificadas e re-operadas cotidianamente por aquelas e aquelas que se enquadram sob elas. Dessa maneira, a escolha de meu tema, a deficiência, e meu “objeto” de pesquisa, o corpo, não é com neutralidade. Minhas experiências públicas como “criança defeituosa” e depois como “pessoa deficiente/com deficiência”14, acabaram por ser fundamentais para eu começar a me questionar sociologicamente: qual o sentido que os indivíduos imprimem em suas atitudes comigo? Durante minha graduação a única leitura sociológica que havia feito e que mais alocava a deficiência como produto de relações sociais foi Estigma (1988), do sociólogo canadense Erving Goffman. Esta obra sem dúvida influenciou minhas curiosidades de pesquisa iniciais, dentro da disciplina sociológica, principalmente por enfatizar o caráter estruturante do universo simbólico das interações pessoais. A análise de Goffman coloca o estigma15, aquilo que seria um atributo identitário individual, como fruto de um processo estigmatizante. Ou seja, o estigma é o rotulo que aquele que não corresponde aos atributos exigidos pelo “outro” recebe ao se tornar desacreditado pelo rotulador. Aquele que rotula, por sua vez, partilha e se insere dentro de um esquema classificatório em que sua posição é tida como “normal”, só assim tornando o rotulado um desviante.

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Neste trabalho privilegiarei a nomenclatura deficiente. Esta escolha vem em consonância tanto com essas minhas experiências institucionais de classificação quanto a uma disputa semântica dos termos pessoa deficiente e com deficiência. Diniz (2003, 2007, p. 10-11; 19-22) utiliza pessoa deficiente em menção à posição político-identitária e teórica dos teóricos britânicos do modelo social (Diniz, 2003; Mello, 2009). Deficiente, em inglês é referente à disabled. Assim é comum a tradução de disabled people por pessoas com deficiência ou pessoas deficientes sem muita discriminação. Contudo, como vimos, o termo deficiente também pode ser considerado pejorativo – pela analogia do indivíduo e sua deficiência - sendo preferida a distinção e uso do termo pessoa com deficiência. Como na maioria dos artigos e textos lidos para esse trabalho, principalmente os de língua inglesa, é imensa a quantidade do termo disabled people/person – o que pode ser verificado nos termos originais traduzidos por mim – resolvi manter o termo traduzido como deficiente. Deficiente também serve para indicar uma reapropriação política da figura referente a “O Deficiente” (The Disabled) – pensado em uma totalidade orgânica falha de maneira homogênea – para a figura do deficiente como uma totalidade de relações sócio-políticas. 15 Goffman nos indica que, em sua obra, “O termo estigma, portanto, será usado em referência a um atributo profundamente depreciativo, mas o que é preciso, na realidade, é uma linguagem de relações e não de atributos. Um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem, portanto ele não é, em si mesmo, nem horroroso nem desonroso.” (GOFFMAN, 1988, p. 6)

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Se o desvio é sempre relativo aquilo que foge à norma, deficiência também poderia ser uma dessas formas de classificar e hierarquizar pessoas socialmente de acordo com determinadas características (morfológicas/morfofuncionais/anatomofisiológicas), que por sua vez podem ser alocadas dentro do campo do “estigmatizante” se fugirem da expectativa ou da norma relativa a elas. Goffman menciona nitidamente que um tipo de estigma são “as abominações do corpo – as várias deformidades físicas” (GOFFMAN, 1988, p. 7). Apesar da visão de Goffman ser um tanto estática com relação ao corpo – e muitas vezes parecer fixar um corpo “anormal” - deficiência, então, poderia ser parte de um “processo social estigmatizante” em que um indivíduo, por determinadas condições que fujam ao esperado, se torna específico. O aleijado, o cego, o surdo, o deformado, o desfigurado, o retardado – termos utilizados pelo autor – seriam resultados desse processo. Sobre esse processo de nomeação do desviante, o qual Howard Saul Becker em 1963 chamou de “rotulação” (BECKER, 2009), já está presente na teoria socoantropológica brasileira através da obra de Gilberto Velho (VELHO, 1985; VIANNA et all, 2013)16. A primeira edição de Desvio e Divergência é de 1974 e, em seu primeiro capítulo, Velho aborda como o desvio, ou o comportamento desviante, primeiramente foi visto exclusivamente como uma patologia individual e depois, dentro de uma perspectiva sociológica estrutural-funcionalista norte americana, foi deslocada para a sociedade como lócus do desvio, ou da patologia social. Para Gilberto Velho (1985) os interacionistas foram a ruptura com a determinação estática do social e do cultural do estruturalfuncionalista e, citando Becker, propõe que: "o desviante é aquele a quem tal marca foi aplicada com sucesso, o comportamento desviante é o comportamento assim definido por pessoas concretas" (VELHO, 1985, p. 22; BECKER, 2009, 22) Ao me pensar as minhas interações sob os preceitos de Goffman, eu me via quebrando (deficientizando?) a expectativa de uma relação “normal”; as minhas marcas corporais contribuíam para que o outro já me rotulasse como deficiente: um corpo um tanto fora de padrões estéticos hegemônicos – magro e aparentemente muito frágil - que se locomove com o uso de cadeira de rodas motorizada; uma maneira de se locomover que, muitas vezes, não condiz exatamente com os espaços e mobiliários destinados a locomoção de corpos mais “autônomos e dinâmicos” que enxergam, ouvem, andam e 16

Agradeço a Anahí Guedes de Mello a chamada de atenção para esse ponto teórico com atenção a obra de Gilberto Velho.

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pensam na velocidade do cobiçado indivíduo moderno-iluminado-ocidental. Segundo Rosemarie Garland-Thomson (1997, p. 32) [a] Teoria do estigma é útil porque desembaraça os processos que constroem tanto o normativo como o desviante e porque revela as semelhanças entre todas as formas de opressão cultural, enquanto ainda permite que específicas identidades desvalorizadas permaneçam visíveis. Ela [a teoria do estigma] realoca o ‘problema’ da deficiência do corpo da pessoa deficiente para o enquadramento social desse corpo. Por fim, a teoria do estigma nos lembra que os problemas que enfrentamos não são a deficiência, etnia, raça, classe, a homossexualidade ou sexo; e sim as desigualdades, atitudes negativas, confusões e práticas institucionais que resultam do processo de estigmatização.17 (Ênfase e tradução18 minhas) Nesse mesmo período de buscas por explicações sociológicas para a deficiência, que via como sendo pouco ou quase nada especificamente exploradas na literatura canônica das ciências sociais, uma serie de produções brasileiras e internacionais foram ganhando destaque nas minhas buscas sobre uma abordagem social ou “sociológica” da deficiência. Uma nomenclatura era corriqueira nestas leituras: disability studies. Autoras e autores como Diniz, (2007), Mello (2009) e Costa C. Andrada (2013) defendem o uso da expressão traduzida como “estudos sobre deficiência”; outros autores como Ortega (2009) e Harlos (2012) traduzem a expressão inglesa para “estudos da deficiência”19. Ao seguir essas obras conheci que aquilo que ficou posteriormente conhecido como disability studies já vinha se constituindo desde os anos 1970 como uma série de estudos e teorizações que problematizavam as premissas das considerações estritamente biomédicas, e dominantes, sobre deficiência. Através de referenciais teóricos advindos mais amplamente das ciências sociais, especificamente da sociologia, e posteriormente das ciências humanas, esses estudos se caracterizam por “construir socialmente” deficiência (DINIZ, 2003, 2007; DAVIS, 2006; SANTOS, 2008; MELLO, 2009;

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Stigma theory is useful, then, because it untangles the processes that construct both the normative as well as the deviant and because it reveals the parallels among all forms of cultural oppression while still allowing specific devalued identities to remain in view. It essentially resituates the "problem" of disability from the body of the disabled person to the social framing of that body. Finally, stigma theory reminds us that the problems we confront are not disability, ethnicity, race, class, homosexuality, or gender; they are instead the inequalities, negative attitudes, misrepresentations, and institutional practices that result from the process of stigmatization. 18 Todas as demais traduções encontradas nesta pesquisa são de minha livre autoria. Devido a este motivo, todos os trechos traduzidos contarão com seus termos originais em notas de rodapé. 19 Devido a essa ambiguidade na tradução exata dos termos, resolvi manter a expressão em sua originalidade.

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HARLOS, 2012, COSTA C. ANDRADA, 2013). Assim, eu comecei a perceber que era possível pensar e problematizar uma “identidade deficiente” que se construa de acordo com nossas relações sociais e não fosse somente fruto de um dado biológico fixo. Nesse sentido acabei por questionar minha própria construção identitária enquanto "pessoa com deficiência”. Aqui chegamos a um dos questionamentos que nortearam o trabalho: Então como emergem os disability studies? Como parte da revisão bibliográfica feita para a pesquisa, durante a leitura dessas obras citadas acima, pude notar que haviam semelhanças e descontinuidades entre as caracterizações dos autores sobre o que seriam tais estudos. Por um lado, é consenso que eles se baseiam primordialmente na junção entre teoria e a experiência daquelas(es) nomeadas(os) como deficientes e os anos 1960 se tornam um marco na história social desses estudos. É reputado aos ativistas dos Movimentos pelos Direitos dos(as) Deficientes (Disability Rights Movement), uma série de reivindicações sócio-políticas insurgentes a partir daquela década em algumas partes do mundo, toda uma reconfiguração do que significava ser deficiente que afetou diretamente as análises sociais e políticas posteriores sobre o tema da deficiência. Segundo o teórico literário e pesquisador da deficiência Lennard J. Davis (2006b, p. XVI) […] há uma conexão recíproca entre as práticas políticas das pessoas com deficiências e a formação de uma categoria discursiva dos disability studies. Ou seja, pessoas com deficiência existiram ao longo da história, mas é somente nos últimos vinte anos20 que as pessoas de um braço só, tetraplégicos, o cego, pessoas com doenças crônicas (ênfase minha), e daí por diante, se viram como única, aliada, unida minoria física’21 O que os(as) ativistas deficientes reclamavam era que se mudasse a maneira de ver o problema da deficiência que não mais deveria ser considerada [...] um problema do ‘corpo’ individual e então algo a ser tratado pelos profissionais de saúde ou assistência social, mas sim como um problema construído política e socialmente com foco nas barreiras deficientizantes [incapacitantes/debilitantes] encaradas 20

A referência faz menção à segunda edição do manual The Disability Studies Reader de 2006. Contudo a introdução, da onde esse trecho foi retirado, é a mesma da primeira edição escrita em 1997. 21 […] there is a reciprocal connection between political praxis by people with disabilities and the formation of a discursive category of disability studies. That is, there have been people with disabilities throughout history, but it has only been in the last twenty years that one-armed people, quadriplegics, the blind, people with chronic diseases, and so on, have seen themselves as a single, allied, united physical minority.

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por pessoas com lesão [impedimentos]22. (Watson et al, 2012, p. 3) Exploraremos melhor essas movimentações político-identitárias de deficientes a fim de conhecer duas de suas vertentes mais mencionadas, a norte-americana e a inglesa, contudo é importante salientar que somente em meados dos anos 1980 a nomenclatura disability studies irá começar a figurar no meio acadêmico. Assim aquelas movimentações políticas em torno de direitos, emergentes ao longo dos anos 1960, criaram um espaço profícuo em que deficiência passou a ser considerada para além de suas demarcações e limites biológico-corporais, tanto politicamente quanto teoricamente. Por outro lado, um ponto de relativa tensão entre as abordagens, e que vai ser mais contundente a partir dos anos 1990, é o local do corpo nessas teorizações. Essa tensão é referente a uma das metodologias mais conhecidas dentro do marco teórico dos disability studies: o modelo social da deficiência. As obras brasileiras que têm explorado esse marco teórico garantem um grande destaque a esse modelo (DINIZ, 2003, 2007; MEDEIROS, DINIZ, 2004; ORTEGA, 2009; MELLO, 2009; COSTA C. ANDRADA, 2013). Segundo a antropóloga Débora Diniz (2007), uma das primeiras pesquisadoras brasileiras a trazer essas teorizações para o Brasil (DINIZ, 2003, 2007; MEDEIROS e DINIZ, 2004), é em torno do modelo social que os disability studies podem se desenvolver enquanto um campo de investigação social da deficiência. Dentro do contexto de minha pesquisa - que tenta mostrar, dentre outras coisas, não exatamente a origem de um campo de estudos, mas minimamente caminhos que possibilitaram um pensamento teórico-social sobre deficiência – não encontrei um texto anterior ao de Diniz (2003), no Brasil, que explicitamente colocasse os termos disability studies (DINIZ, p. 6) em jogo e devesse, como faz esta antropóloga, o surgimento do campo ao desenvolvimento de sua simbiose analítica, o modelo social da deficiência Esse modelo opera uma distinção metodológica, analítica e conceitual importante: a separação entre lesão e deficiência. Respectivamente os termos traduzem impairment e disability. Impairment é um substantivo que também pode ser traduzido como lesão, impedimento, dano, prejuízo, diminuição e significa o fato ou o estado de estar lesado/lesionado; danificado; impedido (impaired). Impaired é relativo a uma condição corporal debilitada que causa impedimento/incapacidade/impossibilidade de

[…] a problem of the individual’s ‘body’ and thus something to be treated by health and social care professionals, but instead it should be seen as a political and socially constructed problem with a focus on the disabling barriers faced by people with an impairment. 22

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exercer determinadas funções físicas, sensoriais e cognitivas de acordo com uma norma fisiológica; deficiência, em contraponto, é aquilo que não está no corpo individual em si e traduz a desvantagem social de se viver em uma sociedade que não respeita a neutralidade da variabilidade corporal humana. No livro O Que É Deficiência? (2007), a intenção da antropóloga Débora Diniz é “apresentar a gênese dos estudos sobre deficiência no Reino Unido nos anos 1970 e as principais críticas feministas e pós-modernas nas décadas de 1990 e 2000” (2007, p. 11). Assim, na seção do livro chamada “Os estudos sobre deficiência – a entrada acadêmica”, a autora salienta que “um passo importante para a consolidação acadêmica dos estudos sobre deficiência foi [...] o curso intitulado ‘a pessoa deficiente na comunidade’” ofertado pela Open University em 1975 no Reino Unido e ministrado pelo ativista deficiente sulafricano Vic Finkelstein (DINIZ, 2007, p. 29). Também no Reino Unido teria se ministrado na Universidade de Kent “o primeiro curso de pós-graduação, onde se registrou pela primeira vez a expressão ‘estudos sobre deficiência’ para delinear o campo disciplinar de pesquisas sociológicas e políticas sobre a deficiência’” (DINIZ, 2007, p. 29). Porém, gostaria de problematizar tais considerações de Diniz um pouco. Finkelstein também foi um dos ativistas da UPIAS – como Diniz menciona - e seu curso realmente foi fundamental para transmitir as ideias dessa organização e embasar teoricamente o que ficou conhecido entre os anos 1980 e 1990 como modelo social da deficiência (BARNES et al, 2002; DINIZ, 2007; BARNES e THOMAS, 2008). Entretanto, segundo os teóricos britânicos Colin Barnes e Carol Thomas (2008, p. 16) a expressão “disability studies” chega ao Reino Unido somente em 1992, o que teria ocorrido após os empreendimentos do sociólogo e ativista deficiente norte americano Irving Kenneth Zola – também durante os 1980. Outro ponto é que Diniz não menciona a existência do periódico norte americano Disability Studies Quarterly de 1986 (criado em 1982 como Disability and Chronic Disease Newsletter), relegando ao britânico Disability & Society de 1993 (criado em 1986 como Disability, Handicap & Society) o título de “o primeiro periódico cientifico especializado em estudos sobre deficiência” (DINIZ, 2007, p. 32). Para esta antropóloga “o que existia até aquele momento eram revistas compromissadas com o modelo médico e especializadas em subáreas do conhecimento, em especial a medicina da reabilitação, a educação especial e a psicologia” (DINIZ, 2007, p. 32). Decerto sua intenção é mostrar a gênese desses estudos na Inglaterra, o que poderia fazê-la ao não mencionar as produções norte americanas como também fundantes dos disability studies, entretanto, como veremos, as obras norte 22

americanas têm nítida importância no mesmo período que este modelo social se desenvolve na Grã-Bretanha23. Nesse contexto, Débora Diniz (2007, p. 61, 72) faz uma única menção a Zola como um autor do “campo da sociologia médica”24. Apenas um outro exemplo de como o modelo social [britânico] é considerado o grande precursor dos disability studies é a obra de outra antropóloga Anahí Guedes de Mello (2009, p. 26) que, de maneira direta, postula que é como contraponto ao “modelo médico da deficiência” que os “estudos sobre deficiência” (disability studies) surgiriam “ao propor uma teoria social da deficiência, que ficaria conhecida como o modelo social da deficiência”. Para a pesquisadora, O modelo social da deficiência, em oposição ao paradigma biomédico, não se foca nas limitações funcionais oriundas de deficiência, mas sim a concebe como o resultado das interações pessoais, ambientais e sociais da pessoa com seu entorno. [...] Neste sentido, as experiências de opressão vivenciadas pelas pessoas com deficiência não estão na lesão corporal, mas na estrutura social incapaz de responder à diversidade. (MELLO, 2009, p. 26-7) Retomaremos as implicações e algumas críticas específicas feitas a esse modelo britânico mais à frente nesta pesquisa, mas me refiro a ele agora por dois motivos: 1) apesar de suas premissas surgirem no final dos anos 1970, dentro dos escritos dos ativistas deficientes membros da organização britânica UPIAS25, essa divisão vai se condensar em um modelo específico de entendimento da deficiência durante todos os anos 1980. É o pesquisador britânico e ativista deficiente Mike Oliver que o nomeia desta maneira em

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É importante dizer que Diniz não escamoteia a literatura norte-americana. Ao longo do texto emergem inúmeras referencias que hoje são incontestavelmente nomeadas como disability studies. Como exemplo estão as obras de teóricas/os como Rosemarie Garland-Thomson, Lennard J. Davis, Susan Wendell e Simi Linton, por exemplo. Anahí Guedes de Mello, ao comentar esta monografia, me alerta o seguinte: “o surgimento dos estudos sobre deficência no Brasil coincide com o momento em que Debora Diniz volta ao Brasil em 2002, logo após frequentar um curso de disabilty studies em Nova Iorque, EUA, ministrada por Eva F. Kittay e Anita Silvers, duas proeminentes teóricas dos estudos sobre deficiência de matriz feminista” (sobre esse e outros desenvolvimentos históricos dos disablity studies, ver: MELLO et all, 2014 e MELLO et all, 2015 (no prelo). Entretanto, em sua obra mas geral sobre o campo, O que é Deficiencia? (2007), Diniz não menciona tal curso. 24

A sociologia médica é criticada pela maioria dos teóricos britânicos do modelo social até hoje por equiparar doença e deficiência, uma relação que será defendida e explorada pelas feministas mais fortemente nos anos 1990 já dentro de um contexto mais afeito a discursos sociais sobre deficiência. Para maiores desdobramentos das interlocuções e conflitos entre deficiência e doença ver MERCER & BARNES, 1996. Para outros desdobramentos de tal relação, porém a partir da teoria feminista consulte WENDELL, 1996, 2001, 2006; MORRIS, 2001; GARLANDTHOMSON, 2005; HALL, 2011; MELLO e NUERNBERG, 2012 25 Union of Phisically Impaired Against Segregation; União dos Fisicamente Lesados Contra Segregação. Atentaremo-nos a essa organização política adiante.

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1983 e o reveste com uma análise sociológica mais aprofundada em seu livro The Politics of Disablement de 1990 (BARNES et al., 2002; MEEKOSHA, 2004; SHAKESPEARE, 2006; MELLO, 2009; HARLOS, 2012); 2) o modelo social britânico da deficiência26 aparece, então, como contraponto aos entendimentos “individualistas” da deficiência, principalmente àqueles orquestrados a partir de pressuposições biomédicas, que tendem a analisar a deficiência – nas palavras de Oliver - como “uma tragédia pessoal”. Assim, lesão está nos domínios médicos, pois se configura como um traço individual, relativo ao corpo disfuncional; deficiência, em contrapartida, é a situação opressiva e discriminatória exercida socialmente sobre os corpos com lesões. Separar analiticamente deficiência de lesão, para essa linhagem teórica, é evidenciar a opressão estrutural que determinados corpos sofrem socialmente. Deficiência é uma desvantagem social causada por estruturas sociais pouco flexíveis, não uma desvantagem social causada por estruturas orgânicas pouco flexíveis. É nesse sentido que deficiência se torna uma construção social para esse modelo. Enquanto eu buscava mais elementos bibliográficos que pudessem me contextualizar melhor na área que me inseria, os textos indicavam que entre o final dos 1990 e começo dos anos 2000 os disability studies adentram em sua “segunda onda” (DAVIS, 2006a; 2006d). Segundo Lennard J. Davis (2006a, p. XIII) enquanto na primeira onda - que estaria situada entre os anos 1980 e 1990 - a preocupação era estabelecer “ideias fundamentais, formar uma identidade unificadora para uma ampla

Aqui neste ponto, sobre o “modelo social da deficiência” como um empreendimento teórico especificamente britânico, me baseio especificamente em TITCHKOSKY; MEEKOSHA, 2004 e SHAKESPEARE, 2006. Contudo, é importante dizer que saliento essa “origem” do modelo social como britânico para chamar atenção específica a ele por duas razões: falar em um modelo social da deficiência, implica 1) tanto em uma generalização de variadas relações teóricas e políticas que foram surgindo ao longo da metade do século XX, responsáveis por cada vez mais desconsiderar a deficiência como uma falha (‘biopsicossocial’), quanto 2) salientar a importância, para a emergência de um pensamento crítico sobre deficiência, do “modelo social da deficiência” como um empreendimento britânico é, antes de mais nada, considerar a heterogeneidade de abordagens que permeiam a emergência das análises socioculturais sobre deficiência. Nas palavras de Titchkosky (2000, p. 212), “O que quer que seja novo sobre os disability studies não é expresso como uma reação a outros nem derivado de uma pessoa em particular, uma mãe ou pai fundador. No entanto, a natureza da abordagem tradicional para o estudo da deficiência caracteriza-se: ela fornece uma narrativa fluida que se encaixa em, e reflete, suposições culturais de deficiência tomadas como dados” *. [*”Whatever is new about Disability Studies is not expressed as a reaction to others nor derived from a particular person, a founding mother or father. Yet, the nature of the mainstream approach to the study of disability is characterized: it provided a seamless narrative that fit into, and reflected, taken-for-granted cultural assumptions of disability”] 26

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gama de lesões, enquanto exigia-se respeito, reconhecimento e pesquisa”27, os(as) investigadores(as) de segunda onda [...] irão questionar e produzir novas concepções sobre as “verdades” do campo. Temos visto esses questionamentos já ocorrerem nas áreas de formação de identidades, as diferenças (ao invés das similaridades) entre lesões, a aparente incompatibilidade entre modelos (principalmente entre os do Reino Unido e os dos Estados Unidos), questões da relação entre teoria e prática, e o papel do intelectual frente ao ativista28 (Ênfases minhas). O que ficou perceptível nas minhas leituras, então, foram essas tentativas de se delimitar uma área específica de um conhecimento que tem se preocupado em pensar a deficiência como um produto de variadas relações (sociais, culturais, históricas, politicas). Nesse sentido, foi o predomínio de duas vertentes de análise sobre a deficiência, que circulam como disability studies, que me chamaram atenção: de um lado, os chamados disability studies norte-americanos que teriam sido desenvolvidos a partir da obra do sociólogo já mencionado Irving Zola (BARNES et al., 2002; ALBRECHT, 2002; SNYDER et al., 2002; MEEKOSHA, 2004); por outro, os disability studies britânicos fundamentados, basicamente, sob os preceitos do “modelo social da deficiência” desenvolvido pelo sociólogo e ativista britânico Mike Oliver (BARNES et al., 2002; SHAKESPEARE, 2006; BARNES e THOMAS, 2008; DINIZ, 2007). Assim, minha proposta foi tentar mapear brevemente o que tem se produzido teoricamente sob o termo de disability studies, porém atentando para o fato de como o ‘disabled body’29 figura nessas teorias. Com relação a esse ponto a socióloga australiana Raewyn Connel (2011, p. 1368) argumenta que ‘foundational ideas, assembling a coherent identity for a wide range of impairments, and pushing for respect, recognition, and research’ 28 […] will ask questions and make new assertions about the “truths” of the field. We can see this questioning already occurring in the areas of identity formation, the differences (rather than the similarities) between impairments, the seeming incompatibility between models (notably those of the United Kingdom and the United States), questions about the relation of theory to praxis, and the role of the intellectual vis à vis the activist. 29 Corpo deficiente. Resolvi manter a expressão em sua originalidade neste trecho para já deixar nítido o contraponto feito pelos disability studies entre disabled person e able-bodied person que podem ser traduzidas de várias maneiras conforme o sentido que quer ser explorado. Dentre as possíveis traduções estão respectivamente: Deficientes (os que teriam “corpos inábeis/inaptos/incapazes”) e Não-Deficientes (os que teriam “corpos hábeis/aptos/capazes”). Able-bodied Person ainda pode se referir genericamente a “Pessoa Normal”, bem como Disabled Person a “Pessoa Anormal”. Para maiores pontuações históricas dessas nomenclaturas emergentes no bojo das movimentações civis norte-americanas consultar LONGMORE, 1985 e ZOLA, 1993. 27

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A abordagem sócio construtivista de deficiência que desafiou o modelo biomédico nos anos 1980 e 1990 foi parte de uma ampla reformulação dos corpos e da sociedade. Ideias semelhantes estavam sendo trabalhadas no feminismo, sociologia, estudos da ciência e tecnologia, estudos culturais, saúde pública, pesquisa sobre sexualidade e outros campos. Surgiram desafios para modelos biomédicos de causalidade, para classificações ahistóricas de corpos e para o poder profissional sobre grupos marginalizados. A capacidade das estruturas sociais e discursos culturais para distribuir e especificar corpos, e para moldar a experiência corporal, foi reconhecida30. Chamo atenção inicial para todas essas considerações para indicar previamente a escolha do meu campo de pesquisa, os disability studies, como um processo teórico em disputa e transformação, inspirado por uma série de movimentações políticas emergentes pós anos 1960. Com isso minha intenção não é ‘inventar a roda’ e buscar sintetizar em uma definição única o que são os disability studies, mas explorar algumas descontinuidades na história da formação deste campo e que são importantes serem mencionadas, inclusive para poder ampliar nossas bases e fontes de pesquisa.

1.3 Caminho de pesquisa Como objetivo geral inicial desta investigação, então, me preocupei em buscar elementos teóricos e conceituais que propiciassem a mínima compreensão de como o “corpo deficiente” figura no pensamento social contemporâneo. Devido a vasta bibliografia que pode ser alocada dentro da noção de “pensamento social contemporâneo” resolvi focalizar nesse campo de estudos relativamente novo, os disability studies, que, como mencionei, aparecia com grande recorrência na literatura acessada em torno das teorizações sociais sobre deficiência e corpo, concentrado grande parte das teorizações socioculturais sobre deficiência na atualidade. Dessa forma, para alcançar o objetivo, percebi que era fundamental uma compreensão mais aprofundada sobre este novo campo do conhecimento, em outras palavras, era necessário explorar como os disability studies têm se consolidado enquanto campo de produção de conhecimento podendo, assim, ter mais claramente quais as 30

The social-constructionist approach to disability that challenged the biomedical model in the 1980s and 1990s was part of a broad rethinking of bodies and society. Similar ideas were at work in feminism, sociology, science and technology studies, cultural studies, public health, sexuality research, and other fields Challenges arose to biomedical models of causation, to ahistorical classifications of bodies, and to professional power over marginalised groups. The capacity of social structures and cultural discourses to sort and define bodies, and to shape bodily experience, was recognized.

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implicações teóricas que os trabalhos focados no corpo trazem para este campo e, consequentemente, para as teorias sociais sobre deficiência. Uma incursão mais pontual nas teorizações dos disability studies foi feita tentando alocar historicamente como se constitui a deficiência em sua perspectiva teóricosocial. Em seguida, privilegiei textos que lidam de maneira mais centralizada com o objeto selecionado para esta pesquisa, algumas abordagens do “corpo deficiente” nos disability studies, fazendo leitura paralela de obras relacionadas a teorias sociais e culturais do corpo. Para tal investigação, pesquisei em periódicos sobre o tema como o Disability & Society, Disability Studies Quarterly, Body & Society, dentre outros que foram considerados relevantes ao longo do período de construção dos dados bibliográficos a fim de selecionar artigos para intensa análise, além de livros específicos aos fins deste trabalho. Conduzi esta pesquisa observando como a teorização sobre a deficiência ganha novos caminhos a partir de uma possível “centralidade” dada ao corpo deficiente. Analisei como os primeiros(as) autores(as) dos disability studies restringem a deficiência às estruturas sociais não considerando como prioridade sociológica os corpos dos indivíduos. Em seguida foquei as análises em textos (artigos e livros) que se auto referem dentro do marco teórico dos disability studies que enfatizam o corpo a fim de compreende como, e se, categoricamente, ele ganha força e como é posto em evidência, não deixando passar despercebidas as críticas que possam advir com relação aos autores(as) que não o privilegiaram antes, sendo possível traçar a dinâmica teórica das abordagens corporais proposta por estes estudos, sempre que coerente, com teorias sociais do corpo.

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PARTE I

2.1 Uma trajetória teórico-política: Os movimentos políticos deficientes e seus desdobramentos teóricos Os disability studies possuem duas origens políticas amplamente mencionadas. Uma delas estaria situada nos EUA, alavancada pelos movimentos de deficientes em busca de direitos civis a partir dos anos 1960. A outra, encontrada sobre território britânico, teria se propagado mais fortemente desde a publicação dos ‘Princípios Fundamentais da Deficiência’ pela UPIAS em 1976. Essa dupla movimentação política caracteriza o pano de fundo em que se credita o florescimento de uma perspectiva teórica crítica sobre deficiência. Antes de prosseguir, portanto, é importante recapitular essas histórias como contexto necessário a essa pesquisa. Dentre as obras que me serviram de referência sobre esses movimentos sócio-políticos estão DINIZ, 2007; MELLO, 2009; CORDEIRO, 2011; HARLOS, 2012. Essas obras, de maneira geral, entendem que o cerne para uma reconceitualização, uma ressignificação teórico-política sobre deficiência enquanto ‘construção social’ se deu a partir das reivindicações orquestradas pelos(as) próprios(as) deficientes ao redor do mundo. A figura do ativista norte-americano Edward Verne Roberts (1939-1995) é sempre mencionada por seu caráter contestatório nas tentativas de acesso ao espaço público e, principalmente, por ter sido responsável em grande parte pelo estabelecimento do ILM (independent Living Movement; movimento pela vida independente, MVI) e posteriormente dos CIL (centre for independent living; centro pela vida independente, CVI). Retornaremos a esses termos mais adiante. Os questionamentos de Roberts – ‘tetraplégico com apenas um leve movimento em uma das mãos e dependente de um pulmão artificial para respirar’ (BURCH, 2009, p. 782)31 - se tornam proeminentes quando nos anos 1960, mais precisamente em 1962, Roberts mesmo sendo estudante da Universidade de Berkeley, Califórnia, não é permitido morar no campus devido a seu grande pulmão artificial (BURCH, 2009, p. 564) 32. Após algumas lutas judiciais Ed ‘quadriplegic with only slight movement in one hand and was dependent on an iron lung to breathe’ 32 Segundo a Enciclopédia da História da Deficiência Americana (BURCH, 2009, p. 507) “Um pulmão artificial é um gabinete de aço grande o suficiente para caber uma pessoa dentro, fechado hermeticamente no pescoço com uma proteção de borracha. A cabeça da pessoa permanece fora do tanque. A máquina realmente "respira" o indivíduo, que opera com pressão negativa.” * 31

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Roberts consegue fazer da enfermaria sua moradia na universidade. É nesse contexto que surgem os Rolling Quads, um grupo de estudantes da Universidade de Berkeley severamente deficientes que ao longo dos anos 1960, junto com Roberts, irão questionar e modificar as estruturas e atitudes do campus com relação às suas necessidades de autonomia e independência33 (MELLO, 2009; CORDEIRO, 2011; HARLOS, 2012). É dessa forma que se funda o Movimento pela Vida Independente, partindo de um entendimento de apoio mútuo e comunitário que permita aos deficientes as assistências necessárias para sua participação social, considerando, acima de tudo, o protagonismo de suas próprias vidas. Para Mello (2009, p. 34): O conceito de vida independente parte do princípio de que apenas as pessoas com deficiência sabem o que é melhor para si mesmas. Entende-se que a pessoa com deficiência, dependendo do tipo e grau ou severidade da deficiência, pode não realizar, sozinha, determinadas atividades, dependendo, por isso mesmo, de terceiros. Mas a elas deve-se ser creditado o poder de tomar decisões sobre essas atividades, respeitando suas opiniões e desejos. A partir de um fundo governamental estadunidense (BURCH, 2009, p. 783), em 1972 o primeiro Centro de Vida Independente do mundo é criado na cidade de Berkeley, dirigido por Ed Roberts de 1973 a 1975, e é fruto da iniciativa de anos anteriores alavancada por Roberts e pelos Rolling Quads, dentro do campus da Universidade de Berkeley, chamada “Programa para os Estudantes Fisicamente Deficientes” (Physically Disabled Students Program)34. Segundo Burch (2009, p. 647) * “An iron lung is a steel cabinet large enough to fit a person inside, sealed airtight at the neck with a rubber sleeve. The person’s head stayed outside the tank. The machine actually “breathed” the individual, operating with negative pressure.” 33 Segundo Burch (2009, p. 784), “Cercados pelas atividades dos movimentos anti-guerra e de libertação no campus, os Rolling Quads incorporaram técnicas organizacionais e midiáticas semelhantes para obter maior controle de suas próprias vidas. Típicos da década de 1960, os Rolling Quads tinham uma vaga organização, não seguiam estatutos, deveres, ou eleições, mas frequentemente se reuniam informalmente para longas discussões. No entanto, eles reclamavam status como uma organização oficial do campus, que lhes dando direito a uma pequena dotação anual dos fundos do campus. Os alunos, por sua vez pressionaram a universidade para remover barreiras arquitetônicas e para inclusão de alunos deficientes dentro dos fundos institucionais gerais. Ambos os empreendimentos foram razoavelmente bem-sucedidos para a época.” * “Surrounded by the roiling activity of antiwar and liberation movements on the campus, the Rolling Quads incorporated similar organizing and media techniques to achieve greater control of their own lives. Typical of the 1960s, the Rolling Quads were loosely organized, had no bylaws, dues, or elections, but frequently met informally for long discussions. Nevertheless, they claimed status as an official campus organization, entitling them to a small annual allocation of campus funds. The students in turn pressured the university to remove architectural barriers and to include disabled students in general institutional funding. Both endeavors were reasonably successful for that era.” 34 para maiores informações, além dos livros supracitados, ver: http://www.cilberkeley.org/

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O programa focava em questões como a manutenção de cadeira de rodas, habitações acessíveis no campus e serviços de assistente pessoal. O grande sucesso do programa lançou as bases para a criação do Centro de Vida Independente em 1972 para atender às necessidades dos recém-graduados e dos não estudantes35. Nesse mesmo período que Edward Roberts vai se tornando símbolo americano de uma série de contestações dos(as) próprios(as) deficientes, reivindicando reconhecimento e direitos, envolvendo debates sobre igualdade e cidadania, na Inglaterra um movimento semelhante começava a ocorrer. Em 1962, Paul Hunt (1937-1979) já havia organizado um grupo com outros deficientes para reconfigurar os limites estabelecidos pela instituição que residia, especializada em deficientes físicos. Franco Ezequiel Harlos salienta que “o grupo reivindicava especialmente maior autonomia e direito de escolha”. Nas palavras de Paul Hunt (1981, p.38. Citado também em HARLOS, 2012, p. 62): Queríamos ter representação na gestão da instituição, controle sobre nossa liberdade individual, expressa em liberdades como escolher a nossa hora de dormir, ingerir bebidas alcoólicas, liberdade para se relacionar e fazer sexo sem interferências, liberdade para sair do prédio sem ter de notificar as “autoridades”. Acreditamos que especialistas em dinâmicas de grupos podiam nos ajudar a nos tornar parte mais ativa na tomada de decisões sobre nós mesmos. Tendo sido ignorados nessas suas primeiras reivindicações, Hunt em 1966 publica uma compilação chamada ‘Stigma: The Experience of Disability’ (DINIZ, 2007; MELLO, 2009; HARLOS, 2012), no qual tenta estabelecer ligações entre o conceito de Goffman de estigma e suas experiências como deficiente institucionalizado desde 1956. Depois, em 1972, e em constante sintonia com suas reivindicações anteriores, Hunt publica uma carta no jornal britânico The Guardian (apud DINIZ, 2007, p. 13-4), que dentre outras coisas salienta: Senhor editor, as pessoas com lesões físicas severas encontramse isoladas em instituições, onde suas ideias são ignoradas, onde estão sujeitas ao autoritarismo e, comumente, a cruéis regimes. Proponho a formação de um grupo de pessoas que leve ao parlamento as ideias das pessoas que, hoje, vivem nessas instituições e das que potencialmente irão substituí-las.

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The program focused on such issues as wheelchair repair, accessible campus housing, and personal attendant services. The great success of the program laid the foundation for the establishment of the Center for Independent Living in 1972 to meet the needs of recent graduates and nonstudents.

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É este o estopim para que outras(os) deficientes em condições semelhantes respondessem e se unissem a Hunt, a partir de seu apelo, consolidando em 1976 a UPIAS (Union of Phisically Impaired Against Segregation; União Dos Fisicamente Lesados Contra A Segregação). Segundo a antropóloga Débora Diniz (2007, p. 14) a UPIAS “foi, na verdade, a primeira organização política sobre deficiência a ser formada e gerenciada por deficientes” sendo também responsável [...] por um feito histórico, pois redefiniu lesão e deficiência em termos sociológicos, e não mais estritamente biomédicos. [...] o principal objetivo da UPIAS era redefinir a deficiência em termos de exclusão social. A deficiência passou a ser entendida como uma forma particular de opressão social, como a sofrida por outros grupos minoritários, como as mulheres e os negros. Assim, nos termos ativistas da UPIAS (1976, p.4), “[...] é a sociedade que desabilita pessoas com lesões físicas. A deficiência é algo imposto em cima da nossa lesão, pela forma como somos desnecessariamente isolados e excluídos da plena participação social. Assim pessoas deficientes são um grupo oprimido na sociedade”36. Com relação aos Centros de Vida Independente, o primeiro deles, como vimos há pouco, surgiu na Califórnia em Berkeley a partir dos esforços de Ed Roberts e outros(as) deficientes que buscavam orientações jurídico-políticas e assistências sociais e pessoais visando autonomia e independência. Particularmente nos Estados Unidos os CVI’s são tidos como o aparato organizacional do Movimento pela Vida Independente. É através desses centros e dos recursos federais garantidos a eles que se constitui uma rede de assistência e apoio legislativo de e para deficientes. Atualmente existem mais de 50 CVI’s em território estadunidense (BURCH, 2009). Para a pesquisadora Mariana Prioli Cordeiro (2011), o MVI chega com sua influência ao Brasil nos anos 1980. Seu primeiro centro é construído em 1988 na cidade do Rio de Janeiro a partir das experiências de deficientes já envolvidos em movimentações políticas contestatórias da época. Ainda com Cordeiro, seguindo um levantamento de 2006, existem 24 CVI’s pelo Brasil (op. Cit, p. 44), propagando e plasmando de acordo com o contexto nacional o lema considerado original do Movimento pela Vida Independente: Nada sobre nós, sem nós! De maneira geral, foram esses movimentos que fizeram parte de toda uma construção político-identitária ao longo da segunda metade do século XX em torno do

“ [...] is society that disables physically impaired people. Disability is something imposed on top of our impairments by the way we are unnecessarily isolated and excluded from full participation in society. Disabled people are therefore an oppressed group in society. 36

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que se caracterizava como deficiência. Até então deficiência estava amplamente correlacionada aos compêndios médicos, circunscrita às suas etiologias e consequências corporais. Historicamente é com o discurso cientifico em ascensão a partir do século XIX que A diferença corporal/mental paulatinamente deixa de ser entendida como um castigo divino e passa a ser vista como um erro da natureza, um acidente natural a ser corrigido pela ciência. A transformação desta identidade da deficiência na de um “defeituoso” ou “retardado” decorre de um deslizamento conceitual que captura o indivíduo como objeto do saber médico. O poder de normalização passa, então, a se exercer pela via terapêutica, incidindo sobre o corpo/mente anormal (COSTA C. ANDRADA 2013, p. 18) O que essas reivindicações trouxeram de novidade foi a consideração de que é possível posicionar deficiência em termos políticos; em que ela não fosse somente um atributo biológico, uma característica fisiológica gerada por algum distúrbio, déficit, falha, defeito em alguma função ou parte do organismo. O corpo deficiente do discurso biomédico é aquele que desvia de sua integralidade orgânica perante uma norma biológica-funcional; é esse desvio da norma que torna a deficiência, e o indivíduo que a possui, um problema a ser corrigido/tratado/reabilitado e devolvido ao convívio social. Atualmente, é essa a definição de deficiência encontrada no site da Organização Mundial da Saúde37 Deficiência é um termo guarda-chuva (Ênfase minha), cobrindo lesões, limitações de atividade, e restrições a participação. Uma lesão é um problema na função ou estrutura do corpo; uma limitação de atividade é uma dificuldade encontrada por um indivíduo ao executar determinada ação ou tarefa; enquanto uma restrição a participação é um problema experimentado por um indivíduo envolvido em situações cotidianas. Deficiência, contudo, não é um problema de saúde. É um fenômeno complexo que reflete a interação entre características do corpo de uma pessoa e características da sociedade em que ele ou ela vive [...]38

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http://www.who.int/topics/disabilities/en/ Disabilities is an umbrella term, covering impairments, activity limitations, and participation restrictions. An impairment is a problem in body function or structure; an activity limitation is a difficulty encountered by an individual in executing a task or action; while a participation restriction is a problem experienced by an individual in involvement in life situations. Disability is thus not just a health problem. It is a complex phenomenon, reflecting the interaction between features of a person’s body and features of the society in which he or she lives. 38

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O que de fato essas movimentações políticas de deficientes proporcionaram foi uma reconsideração do que era ser deficiente, do que era viver com uma lesão ou uma doença crônica que causasse qualquer tipo de restrição social. Apesar da OMS atualmente deflagrar a deficiência como um ‘fenômeno complexo’, algo que situa-se além das fronteiras dos corpos individuais, não eram essas as premissas enfrentadas pelos(as) ativistas dos anos 1960, 70. Como vimos nos casos de Roberts e Hunt, suas posturas colocam em conflito as respostas sociais dadas aos deficientes, deflagrando a complexidade de negociações que se é preciso orquestrar, para além das definições e autoridades médicas, a fim de criar novas formas de habitar e reivindicar-se no mundo. A socióloga feminista Miriam Adelman (2009) argumenta que a efervescência política inerente desse período que ficou conhecido como “os anos 1960” (p. 25) é fruto de profundas transformações históricas e sociais que se deram após a segunda guerra mundial e que alçaram à esfera pública o que chama de “novos movimentos sociais”. Para a autora, mudanças na concepção de sujeito político são alavancadas com esses novos movimentos, possibilitando a emergência de “novos sujeitos”39 na cena política mundial que não mais se baseavam em concepções de mobilização política clássica (a saber, principalmente a lógica marxista da luta de classes, que tem no proletariado seu sujeito político por excelência). Essas reconfigurações sociais, culturais e políticas vão influenciar diretamente as produções acadêmicas e teóricas em várias áreas do conhecimento, principalmente as ciências sociais e humanas. Assim, nos EUA dos anos 1950, 1960 – foco histórico principal da pesquisadora – o movimento pelos direitos civis dos negros, ‘o primeiro grande movimento social do pós guerra’ (ADELMAN, 2009, p. 33), representa, de certa maneira, o esgotamento da tendência de alocar a esfera política como uma simples derivação da estrutura econômica. O que passa a ser levado em consideração são problemáticas que não mais se situam nas resoluções de distribuição de renda ou igualdades que advenham de medidas econômicas. A cultura então ganhará forte conotação política enquanto universo que se abria a disputas menos ‘materiais’ e mais ‘simbólicas’. A efervescência do período pós anos 1960 contribuiu, então, para que negros(as), mulheres, gays, lésbicas se reconhecessem em torno de uma identidade coletiva positivada e deflagrassem sua condição de ‘não-sujeitos ou cidadãos de segunda classe’

Adelman (2009, p. 84) salienta que seu uso da expressão “novos sujeitos” precisa ser compreendido “no sentido de voz, de articulação, de conquista de legitimidade no uso da palavra e no ato”. 39

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(ADELMAN, 2009, p. 36). Para Adelman, é importante considerar que determinados avanços sociais reconhecidos hoje são fruto desse momento histórico e de seus movimentos sociais e culturais como “o empoderamento de várias ‘minorias’, a deslegitimação da dominação masculina e a maior tolerância em relação a grupos anteriormente sujeitos às mais brutais formas de estigmatização” (ADELMAN, 2009. 54). Como temos visto, é nesse contexto que deficiência passa a ser interpretada como um ‘problema’ para além de determinados corpos ‘defeituosos’, sendo então pensada como uma questão política e que assim precisa ser compreendida.40 Devido ao crescente aparecimento desses ‘novos atores’ na cena mundial em 1981 a ONU declarou o ‘Ano Internacional da Pessoa Deficiente’, significando o reconhecimento da deficiência como questão de direitos humanos (BARNES, 2012; CORDEIRO, 2011). No mesmo ano se encontrou pela primeira vez em Cingapura a ‘Internacional das Pessoas Deficientes’ (DPI, Disabled People International), com o intuito de estabelecer a deficiência e os deficientes no centro das decisões e organizações políticas que concerniam às pessoas deficientes (BARNES, 2012; DINIZ, 2007; CORDEIRO, 2011; HARLOS, 2012). Em 1982, o ativista e sociólogo Irving Zola auxiliou a criar a Sessão para o Estudo da Doença Crônica, Lesão e Deficiência (Section for the Study of Chronic Illness, Impairment, and Disability), renomeada em 1986 para Sociedade para os Disability Studies (Society for Disability Studies, SDS). Esta sessão, até 1986, possuía um periódico chamado ‘Disability and Chronic Disease Newsletter’, sendo então renomeado por Zola como Disability Studies Quarterly. (BURCH, 2009; HARLOS, 2012). Essa publicação será uma das principais referências na área, possibilitando o fortalecimento do campo, principalmente no Estados Unidos, durante os anos 1990. Em 1986, os teóricos e ativistas britânicos Mike Oliver e Len Barton criam o periódico Disability, Handicap & Society, e, em 1993, mudam seu nome para Disability & Society (DINIZ, 2003, 2007; BARTON & THOMAS, 2008; HARLOS, 2012;). Segundo Harlos (2012z p. 69), essa publicação “condensou explicações sociológicas que ampliaram todas as perspectivas de análise da deficiência, enfocando as dinâmicas sócio40

Por exemplo, em 1973 o governo norte-americano passou uma lei federal chamada Rehabilitation Act, considerado um marco na conquista dos direitos civis para os/as deficientes. A lei previa um maior amparo estatal às pessoas com deficiência que não podiam trabalhar ou bancar seus estudos. A sessão 504 (section 504) criminalizava qualquer ofensa ou discriminação, inclusive de órgãos e programas governamentais, que se desse sobre as especificidades corporais e funcionais da pessoa com deficiência. (BURCH, 2009; ALBRECHT, 2006)

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político-culturais do complexo processo de deficiência’. Em 1990, como parte da Escola de Sociologia e Política Social da Universidade de Leeds, na Grã-Bretanha, foi criada a Unidade para Pesquisa em Deficiência (Disability Research Unit, DRU). Já nos anos 2000 a DRU é renomeada como Centro para os Disability Studies (centre for disability studies, CDS), estabelecendo a interdisciplinaridade do campo e firmando o modelo social como abordagem privilegiada nas pesquisas dessa unidade.41 anos 1990, p. DeficiênciaÉ assim, basicamente, que a partir dos anos 1960 os disability studies podem clamar sua emergência político-acadêmica, tendo já nos anos 1980 os dois primeiros periódicos da área que serão responsáveis pela guinada teórica, dentro das ciências sociais e humanas: o Disability Studies Quarterly, nos Estados Unidos e o Disability & Society, na Inglaterra

2.2 A abordagem construcionista da deficiência: entre o modelo minoritário e o modelo social Até aqui refiz o percurso histórico de dois movimentos políticos da deficiência, usando-os como exemplo para demonstrar que são eles que trazem um novo léxico para se problematizar e questionar politicamente as visões que ligavam diretamente as ‘falhas biológicas’ das pessoas deficientes e sua situação socialmente desprivilegiada. Assim como outras identidades antes marginalizadas e positivadas na busca por garantia de direitos, a deficiência passa a ser explorada como identidade política e as experiências daqueles(as) considerados(as) deficientes pelo discurso biomédico serão a base dessa ressignificação. O que os disability studies proporcionaram, como um empreendimento teórico elaborado por deficientes, foi a possibilidade desses “novos sujeitos”, nos termos de Adelman, 2009 [Ver nota 36], se tornarem objetos e sujeitos da teoria social. Em uma análise sobre o que chama de “duas tradições de disability studies”, a socióloga australiana Helen Meekosha (2004, p.

721) propõe explorar “os

desenvolvimentos teóricos divergentes nos disability studies do Reino Unido e Estados Unidos e postula algumas explicações para essas diferentes trajetórias”43. Seu esforço ao longo do texto é mostrar que as nuances entre essas perspectivas, e a maneira de responder socialmente às “políticas da diferença associadas à deficiência”, são fruto das diferenças

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http://disability-studies.leeds.ac.uk/about/ The divergent theoretical developments in the UK and US disability studies and posits some explanations for these differing trajectories. 43

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contextuais e da maneira de “interpretar a diferença social bem como as práticas de engajamento social relacionadas a elas” (MEEKOSHA, 2004, p. 721). De maneira geral - tanto nos desenvolvimentos teóricos britânicos, quanto nos norte-americanos - o que se buscou foi retirar do indivíduo deficiente (até então entendido estritamente em sua dimensão biológica “disfuncional”, “deficitária”) a causa de sua desigualdade social, alocando no arranjo sociocultural e político os processos que tornam esse indivíduo um “desajustado”. Segundo Meekosha (2004, p.723) as “abordagens sócio construtivistas sobre deficiência estavam se desenvolvendo amplamente sob a influência de novos insights da ciência social e das atividades dos movimentos sociais”44. Assim, dentro da literatura que foi possível analisar conseguimos localizar dois modelos construcionistas da deficiência constantemente mencionados e diferenciados entre si. Nos EUA desenvolveu-se o que ficou conhecido como “modelo minoritário” ou “modelo de direitos” (DAVIS, 2006d; SHAKESPEARE, 2006; TREMAIN, 2010; HARLOS, 2012); enquanto no Reino Unido se configurou, baseando-se numa perspectiva histórica e materialista, o reconhecido “modelo social da deficiência” (DINIZ, 2003, 2007; MEDEIROS & DINIZ, 2004; DAVIS, 2006d; SHAKESPEARE, 2006; MELLO, 2009; TREMAIN, 2010; HARLOS, 2012). Ambos emergiram ao longo dos anos 1980, como produto das necessidades de buscar maneiras de reinterpretar a deficiência em outros enquadramentos teóricos e epistemológicos e que, ao mesmo tempo, servissem como ferramenta prática de luta política. Segundo Tremain (2010) o modelo minoritário, com suas bases teóricas inseridas no contexto norte-americano, partiu principalmente das investigações do ativista deficiente e cientista político Harlan Hahn (1985) que, ao constatar a pouca exploração da deficiência por seus colegas de disciplina, propôs que ela fosse interpretada dentro do que chamou de uma “perspectiva sócio-política”. Hahn argumentava que “o estudo da deficiência está experimentando mudanças significativas que têm afetado todas as ciências sociais”. Segundo este autor: Muitas dessas mudanças podem ser atribuídas a um deslocamento de definição de orientação médica, que se concentra nos impedimentos funcionais, e uma abordagem econômica, que destaca as limitações de formação profissional, para uma perspectiva sócio-política que considera a deficiência como produto da interação entre indivíduo e ambiente. A última 44

Social constructivist approaches to disability were developing widely under the influence of new social science insights and the activities of social movements.

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perspectiva levou a nova ênfase em medidas contra discriminação e a um modelo minoritário de deficiência, que reconhece que o ambiente é moldado pelas políticas públicas e que a política é um reflexo de atitudes e valores sociais dominantes45. Esse modelo basicamente se preocupou em redefinir a deficiência e o(a) deficiente, como uma minoria (física, sensorial, cognitiva) que estava destituída não de capacidades orgânicas normais que as(os) impedia de exercer funções sociais, mas de direitos e igualdades civis. Como vimos, essa interpretação relacional da deficiência que considera o espaço público como limitador da atividade humana, já era mobilizada praticamente pela filosofia do Movimento pela Vida Independente. Dessa maneira, passou-se a teorizar a deficiência sob a perspectiva que ela fosse uma identidade política minoritária, com vistas a criar uma maior homogeneidade coletiva para reclamar direitos perante uma ‘dominant ableist majority’46 (DAVIS, 2006d, p. 232). Nesse sentido Agustina Palacios (2008, p. 107) nos reforça que A luta pelos direitos civis para os negros, com sua combinação de táticas convencionais de lobby e da ação política de massas, proveu maiores estímulos para o surgimento de um ‘movimento de direitos das pessoas com deficiência’. Os pilares da sociedade Norte Americana - capitalismo de mercado, independência, liberdade política e econômica - foram reproduzidos no foco do movimento de vida independente. Que por sua vez sublinhou, entre outras questões, os direitos civis, apoio mútuo, a desmedicalização e a desinstitucionalização”[das pessoas deficientes]47.

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Many of these changes can be traced to a definitional shift from a medical orientation, which focuses on functional impairments, and an economic approach, which stresses vocational limitations, to a socio-political perspective which regards disability as the product of the interaction between the individual and the environment. The latter view has led to a new emphasis on antidiscrimination measures and to a "minority-group" model of disability, which recognizes that the environment is molded by public policy and that policy is a reflection of prevalent social attitudes and values. 46 “Maioria ‘normal’ dominante”. É difícil traduzir este termo (ableist), porém é possível se referir a ele ora como adjetivo a um tipo especifico populacional, aqueles que se constituem como não tendo deficiências, que não são disableds; ora como uma maneira hierárquica de pensar e enquadrar e moralizar corpos – deficientes ou não deficientes - segundo normatizações de suas capacidades de funcionamento orgânico. Sobre essa última possível definição consultar Campbell (2009). 47 La lucha por los derechos civiles de las personas negras, con su combinación de tácticas de lobby convencional y acciones políticas de masas, proveyó un mayor estímulo a un emergente “movimiento de derechos de las personas con discapacidad”. Las piedras angulares de la sociedad americana —capitalismo de mercado, independencia, libertad política y económica— fueron reproducidas en el enfoque del movimiento de vida independiente. Esto acentuó —entre otras cuestiones— los derechos civiles, el apoyo mutuo, la desmedicalización, y la desinstitucionalización.

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O modelo minoritário/de direitos está no cerne dos entendimentos que auxiliaram a caracterizar um enquadramento sociológico e político ao fenômeno da deficiência no contexto norte americano a partir dos anos 1980. Esse modelo é citado como parte característica dos disability studies americanos e possui como pano de fundo as mudanças sociais em torno da deficiência que ocorriam dentro do território estadunidense, e que foram alavancadas pelos(as) próprios(as) deficientes em busca de uma sociedade menos restrita à sua plena participação. Por outro lado, suas primeiras teorizações se dão a partir das considerações advindas da sociologia da medicina, também chamada de sociologia da saúde e doença, e do interacionismo simbólico (que tem sua principal referência, para as análises sociopolíticas da deficiência, a proposta de Goffman do estigma como uma marca corporal socialmente significada) (ALBRECHT et al, 2001; ALBRECHT, 2002; BARNES et al, 2002; MEEKOSHA, 2004; SHAKESPEARE, 2006). Dentre os teóricos norte-americanos considerados os precursores dos disability studies, está o sociólogo da medicina e ativista da deficiência Irving Kenneth Zola. Seu livro ‘Missing Pieces: a chronicle of living with disability’, publicado pela primeira vez em 1982, é considerado um dos marcos na abordagem sociológica sobre deficiência (BARNES et al, 2002). Esta obra possui grande destaque nas pesquisas norte-americanas principalmente, arrisco dizer, pela crônica sobre a deficiência que o próprio autor se recusava a “aceitar” – Zola havia contraído poliomielite aos 16 anos e em seguida vítima de um acidente que prolongou sua recuperação, lhe relegando uso de bengalas e aparelhos ortopédicos. Um dos principais pontos explorados por Zola no seu relato etnográfico encontrado em Missing Pieces foi a possibilidade dele mesmo se reconhecer como deficiente a partir do convívio relativo com as(os) moradores de uma vila institucional holandesa (Het Dorp) construída para abrigar moradores deficientes. Assim como a Mike Oliver (que veremos logo mais), Helen Meekosha (2004, p. 725) também se refere a Irving Zola como um dos ‘pais fundadores’ desses estudos. Alguns anos antes, Rosemarie Garland-Thomson na apresentação de sua organização de artigos sobre deficiências e Freak Shows, Freakery (1996), dedica a obra à memória de ‘Irv’ Zola e o considera o “pai dos disability studies americanos”. Dessa maneira, fui percebendo que o nome de Zola era frequentemente citado, principalmente nas análises que abordavam as teorizações advindas da América do Norte. Assim, ao procurar maiores

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referências sobre esse sociólogo, percebi que existem vários indícios que sua obra inaugura, de certa maneira, os disability studies nos Estados Unidos48. Contudo, a abordagem construcionista mais mencionada em grande parte das obras que venho analisado sobre disability studies, talvez por sua “radicalidade” (ORTEGA, 2009), é a abordagem britânica chamada de modelo social da deficiência (BARNES et al, 2002; DINIZ, 2003, 2007; SHAKESPEARE, 2006; MELLO, 2009; HARLOS, 2012; COSTA C. ANDRADA, 2013). No Brasil, a literatura que tem trabalhado dentro do marco teórico dos “estudos sobre deficiência”, ao tratar do histórico relativo ao surgimento do campo, reconhece no desenvolvimento desse modelo a origem dos próprios disability studies (DINIZ, 2003, 2007; MEDEIROS & DINIZ, 2004; MELLO, 2009). O modelo social tem sua gênese ligada aos preceitos lançados pela UPIAS em 1976, mas só aparece como uma 'metodologia' para se analisar socialmente a deficiência ao longo dos anos 1980, principalmente a partir da obra do sociólogo e ativista deficiente Mike Oliver (OLIVER, 1990; BARNES et al. 2002; SHAKESPEARE, 2006; DINIZ, 2007; HARLOS, 2012). Palácios (2008, p. 108) também nos relembra do contexto político em que se deram essas movimentações teórico-políticas [...] o movimento das pessoas com deficiência no Reino Unido tem se concentrado em atingir grandes mudanças na política social e dos direitos humanos. [...] Assim, no Reino Unido, as organizações das pessoas com deficiência, mobilizaram inicialmente a opinião de sua categorização tradicional como um grupo vulnerável que necessita de proteção. Reivindicou o direito de definir suas próprias necessidades e serviços prioritários, e se posicionaram contra a dominação dos prestadores de serviços tradicionais.49 48

A obra desse sociólogo que tive acesso, é crítica com relação as instituições médicas e ao poder normalizador operado por elas, bem como é crítico aos entendimentos funcionalistas entre saúde/doença alavancados pela obra sociológica de Talcott Parsons (ZOLA, 1972, 1977). Não é possível fazer aqui uma genealogia da influência deste autor para a produção teórica dos disability studies, tampouco quero corroborar as noções que considerem alguns autores como ‘pais fundadores’ (algo que será passível de críticas, principalmente feministas, pelo caráter androcêntrico de se relatar a história social de formação de um campo de investigação). Entretanto esses foram os dados que encontrei durante minhas leituras e que se tornaram relevantes para mapear minimamente as possibilidades de emergência de uma área de estudos. Segundo Barnes (2012, p. 17-8) é após o surgimento do periódico norte-americano Disability Studies Quarterly que já em 1986 podem existir 26 cursos sobre disability studies nas universidades estadunidenses. 49 [...] el movimiento de personas con discapacidad en el Reino Unido se ha concentrado en alcanzar cambios en la política social y en la legislación de derechos humanos. [...] Así, en el Reino Unido, las organizaciones de personas con discapacidad movilizaron inicialmente la opinión contra su categorización tradicional como un grupo vulnerable necesitado de protección. Reivindicaron el derecho a definir sus propias necesidades y servicios prioritarios, y se proclamaron contra la dominación tradicional de los proveedores de servicios.

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Basicamente, a radicalidade do modelo social é postular que as causas da deficiência (disability) não são intrínsecas aos indivíduos, como postula o entendimento biomédico. Para esse último deficiência é analisada como efeito direto de um 'desajuste' físico, sensorial ou cognitivo. Esse desajuste seria causado por algum tipo de 'lesão' (impairment) em determinada parte do organismo, o que geraria uma condição 'deficientizante/debilitante' (disabling condition). Deficiência, no saber biomédico, é interpretada somente como disfunção alocada no organismo que limitaria as funções corporais normais. Nas palavras do próprio Oliver (1981, 28. Citado também em BARNES, 2012, p. 18) [com relação ao que viria a ser conhecido como modelo social]: “Este novo paradigma envolve nada mais ou menos fundamental do que um distanciamento do foco sobre as limitações físicas de indivíduos em particular para a forma como o ambiente físico e social impõe limitações sobre certas categorias de pessoas”50. O que se propõe é um desenvolvimento teórico mais aprofundado do que os ativistas da UPIAS já haviam sinalado (que a deficiência é algo imposto em cima da lesão). Débora Diniz (2007, p. 17) define bem essa questão colocada pelo documento oficial da UPIAS de 1976 que visava exatamente uma redefinição dos termos biomédicos para deficiência em termos sociológicos: Lesão: Ausência parcial ou total de um membro, ou organismo, ou mecanismo corporal defeituoso; Deficiência: Desvantagem ou restrição de atividade provocada pela organização social contemporânea, que pouco ou nada considera aqueles que possuem lesões físicas e os exclui das principais atividades da vida social Em linhas gerais, mais especificamente seguindo o discurso crítico dos(as) modelistas sociais britânicos(as), a biomedicina ao advogar a biologização ou a naturalização do corpo deficiente, patologizava os indivíduos lesionados e os colocava como casos isolados que necessitavam do aparato biomédico para a solução do “problema”. Ao questionar essa lógica, o modelo social britânico insere a deficiência como construída socialmente através da opressão social sobre um grupo, considerando primordialmente a separação entre características físicas, sensoriais e corporais

‘This new paradigm involves nothing more or less fundamental than a switch away from focusing on the physical limitations of particular individuals to the way the physical and social environment impose limitations upon certain categories of people’ 50

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(lesões/impairment) e condições do ambiente social incompatíveis a tais características (deficiência/disability). Jenny Morris (1991, p. 11 Citada também em PALACIOS, 2008, p. 103), ativista, feminista, deficiente e teórica da deficiência exemplifica dizendo que “Uma incapacidade ao andar é uma lesão, enquanto uma incapacidade ao entrar em um edifício devido a entrada ser composta por escadas é uma deficiência”. Durante os anos 1980 e 1990, através dessa dicotomia entre lesão/deficiência e baseando-se no materialismo histórico proposto pela teoria marxista, os disability studies britânicos se conformaram em torno de análises que privilegiaram o sistema social e suas relações de produção dentro de um contexto capitalista. Essas relações deixariam de lado aqueles que não são considerados produtivos para a lógica capitalista, que por sua vez, ao serem considerados incapazes de gerar riqueza nesse sistema se tornam também fonte de gasto. Assim, deficiência não é mais uma ‘tragédia pessoal’ – como falaria Oliver – mas uma opressão social que se configura em uma sociedade organizada em torno de um arranjo econômico que não permite o respeito e a absorção do corpo lesionado em seu funcionamento. Porém, nem só de marxismo o modelo social é formado. Meekosha, assim como alguns autores(as) analisados(as) até aqui, dentre outras(os) (MORRIS, 2001; SHAKESPEARE, 2006; TREMAIN51, 2000, 2005) argumentarão que uma das principais inspirações para a operação dicotômica do modelo social veio da teoria feminista. A separação analítica feita entre sexo e gênero operada pela teoria feminista, em que o gênero (masculino e feminino) é o produto histórico e cultural que organiza socialmente as relações entre os sexos (macho e fêmea), foi fundamental para que se desvinculasse o corpo com lesão de sua condição social inferiorizada, como causa de sua opressão social, 51

Veremos mais adiante que no caso desta autora, a sua proposta metodológica de analogia entre a separação lesão/deficiência e a dicotomia sexo/gênero não parte do pressuposto de que o sexo é um dado (biológico) e o gênero o aspecto cultural que é impresso no corpo. Shelley Lynn Tremain fará sua análise a partir da crítica feminista da filósofa Judith Butler a um dos principais pressupostos da teoria feminista de então: o corpo como um fato natural cujo sexo somente seria um dado neutro em que o gênero é sobreposto. Para Tremain o ‘corpo lesado’ não é um dado em si em que a deficiência é colocada de maneira opressiva sobre. Em um dos seus textos mais recentes, ao fazer uma crítica a autoras(es) contemporâneos nos disability studies que ainda insistem em elaborar suas teorias sobre a dicotomia lesão/deficiência, a autora se posiciona: “Eu, no entanto, continuo comprometida com a alegação de que a lesão não é uma característica humana ‘natural’ (ou seja, biológica), de valor neutro e objetiva, ou um aspecto da existência humana que certas pessoas possuem ou incorporam, mas sim é o produto naturalizado e materializado de uma classificação inicialmente gerada em contextos médicos e jurídicos para facilitar a normalização” (TREMAIN, 2010, p. 580). [‘I nevertheless remain committed to the claim that impairment is not a ‘‘natural’’ (i.e., biological), value neutral and objective human characteristic, or aspect of human existence that certain people possess or embody, but rather is the naturalized and materialized outcome of a classification initially generated in medical and juridical contexts to facilitate normalization’]

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e se alocasse a deficiência como um produto social e sociológico. O ‘problema’ está na sociedade e não nos corpos dos indivíduos. Dentre as duas posições teóricas construcionistas que apresentei brevemente acima - a norte-americana que foca na construção social da deficiência como uma minoria política e a britânica que se preocupa em construir socialmente a deficiência a distinguindo de qualquer dado biológico (lesão) - talvez a diferença mais perceptível entre ambas fica por conta da tentativa britânica de realocar radicalmente a deficiência o mais distante possível de concepções individualistas que se baseassem estritamente no ‘corpo lesado’ para defini-la conceitualmente. Segundo o teórico da deficiência britânico Tom Shakespeare (2006, p. 34) é a distinção entre lesão e deficiência que “[...]está no cerne do modelo social. É esta distinção que separa os direitos deficientes britânicos e os disability studies da família mais ampla de abordagens sócio-contextuais da deficiência”.52 Na primeira parte de sua obra, a qual focalizei para esta pesquisa, este autor nitidamente coloca o modelo social britânico como uma das possíveis ‘abordagens sóciocontextuais’ sobre deficiência e, especificamente, ressalta que os desenvolvimentos da abordagem minoritária norte-americana estavam em concomitância histórico-intelectual com as problemáticas insurgentes no Reino Unido a partir do final dos anos 1970. Nas palavras de Shakespeare (2006, p. 24) Enquanto os teóricos norte-americanos e ativistas desenvolveram uma abordagem social para definir deficiência, estas perspectivas não foram tão longe em redefinir ‘deficiência’ como opressão social como o modelo social britânico. Em vez disso, a abordagem norte-americana principalmente desenvolveu a noção de pessoas com deficiência como um grupo minoritário, dentro da tradição do pensamento político dos EUA. Pesquisadores de grupos minoritários argumentaram que o preconceito e a discriminação contra as pessoas com deficiência têm de ser combatidos através da legislação dos direitos civis, que irá garantir os direitos individuais.53

“[...] lies at the heart of the social model. It is this distinction which separates British disability rights and disability studies from the wider family of social-contextual approaches to disability.” 53 While North American theorists and activists have developed a social approach to defining disability, these perspectives have not gone as far in redefining ‘disability’ as social oppression as the British social model. Instead, the North American approach has mainly developed the notion of people with disabilities as a minority group, within the tradition of US political thought. Minority group writers have argued that prejudice and discrimination against people with disabilities have to be combated through civil rights legislation, which will guarantee individual rights. 52

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Um outro exemplo que explicita essa diferenciação de modelos, origens e localidades inerentes aos disability studies é articulado em outro texto de Lennard J. Davis (2006d). Davis reconstitui brevemente a trajetória política e histórica que possibilitam surgimento de modelos de entendimento sobre deficiência. O autor propõe que mesmo a categoria deficiência “[...] tendo existido por um longo tempo, sua atual configuração como uma formação política e cultural surge por volta dos anos 1970 e ganha maior notoriedade ao final dos 1980” (DAVIS, 2006d, 231)54. Nesta colocação, onde deficiência é uma categoria que começa a ser ressignificada academicamente durante os anos 1970, o autor faz menção a dois modelos que considera mais “progressivos” de enquadrar a deficiência: 1) o modelo dos direitos civis e 2) o modelo social. Fazendo um contraponto às interpretações sobre deficiência de modelos anteriores, que denomina de caritativo e médico, nos quais “pessoas com deficiência foram compreendidas inúmeras vezes como pobres criaturas carentes necessitadas da ajuda da igreja ou como vítimas desamparadas de doenças precisando da correção oferecida pelos modernos procedimentos médicos” (DAVIS, 2006d, p. 232)55. O modelo dos direitos civis, localizado nos EUA, advém das lutas anteriores na busca dos mesmos direitos levantadas pelos movimentos negros norte-americanos e, juntamente com o retorno de veteranos de guerra ‘lesionados’ do Vietnã, proporcionou que uma movimentação em torno de direitos civis para pessoas com deficiência se estabelecesse. Assim, origina-se o entendimento de que “[...] pessoas com deficiência são cidadãs minoritárias privadas de direitos por uma ableist (ver nota 43) maioria dominante” (DAVIS, 2006c, p. 232) culminando em 1990 na legislação Americans With Disabilities Act (ADA)56. Nesta mesma temporalidade em que essas reformulações políticas e teóricas sobre deficiência ocorrem nos EUA, continua Davis, o modelo social da deficiência, localizado na Grã-Bretanha, começa a articulá-la como uma categoria construída socialmente e não intrínseca aos corpos, a partir da separação metodológica característica desse modelo, como já vimos, entre deficiência (disability) e lesão/impedimento

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Although the category has existed for a long time, its present form as a political and cultural formation has only been around since the 1970s, and has come into some kind of greater visibility since the late 1980s. 55 people with disabilities were seen variously as poor, destitute creatures in need of the help of the church or as helpless victims of disease in need of the correction off ered by modern medical procedures. 56 Para maiores contextualizações e informações sobre tais transformações em solo norteamericano no pós segunda guerra, ver Hanh (2008) e Serlin (2006)

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(impairment). Lennard J. Davis (2006d, p. 232) explica esse movimento teóricometodológico da seguinte maneira: Lesão é o fato físico da falta de um braço ou uma perna. Deficiência é o processo social que transforma uma lesão em algo negativo ao criar barreiras ao acesso. O exemplo mais claro dessa distinção é visto no caso de usuários de cadeiras de rodas. Eles têm lesão que limitam a mobilidade, mas não são deficientes a menos que estejam em ambientes sem rampas, elevadores e portas automáticas57. Se podemos resumir, então, as diferenças entre as abordagens norte-americanas e britânicas que surgiRam ao longo dos anos 1980, salientaria aquela que parece ser a diferença mais pontual: a dicotomia entre lesão e deficiência levada adiante pelos britânicos, mas desconsiderada nesta separação radical pelos(as) teóricos(as) que construíam os disability studies a partir do contexto norte-americano. Na visão dos(as) modelistas sociais que consideram primariamente a separação entre lesão e deficiência para construí-la como um problema sociológico, por exemplo, acredita-se que levar em consideração a dimensão individual que rodeia a questão da lesão é estar corroborando com a reprodução da noção médica e dominante sobre deficiência. Nesse sentido, e retornando à Shakespeare (2006, p. 11) Durante pelo menos quatro décadas, e em muitos países diferentes, cientistas sociais e ativistas de deficiência têm considerado a deficiência como ligada ao contexto social e chamaram a atenção para a desvantagem, a exclusão social e até mesmo a opressão vivida por muitas pessoas deficientes. Mas apenas o modelo social britânico redefiniu a deficiência como opressão (ênfase minha)58. Reitero, contudo, que essas duas abordagens nunca estiveram isoladas e desconhecidas entre si e, portanto, são colocadas em separado nesta investigação de maneira artificial. Meekosha (2004, p. 731) destaca em sua análise que “embora não desejando dar a entender uma trajetória cultural determinista, e reconhecendo a produção cruzada que existe entre o Atlântico, no entanto, as fronteiras dos disability studies

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Impairment is the physical fact of lacking an arm or a leg. Disability is the social process that turns an impairment into a negative by creating barriers to access. The clearest example of this distinction is seen in the case of wheelchair users. They have impairments that limit mobility, but are not disabled unless they are in environments without ramps, lifts, and automatic doors. 58 Over at least four decades, and in many different countries, social scientists and disability campaigners have regarded disability as bound up with social-context, and have drawn attention to the disadvantage, social exclusion and even oppression experienced by many disabled people. But only the British social model redefined disability as oppression

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precisam ir além dos limites da corrente do Golfo que parecem existir”59. É possível que essa mútua influência entre posturas teóricas e politicas dentro dos disability studies seja até mesmo efeito histórico advindo propriamente das movimentações políticas dos(das) deficientes que vimos anteriormente. Mello (2009) e Harlos (2012) concordam que a filosofia do Movimento pela Vida Independente esteve presente entre os ativistas da UPIAS (inclusive quando a UPIAS se desfez no começo dos anos 1990 e seus membros se ligaram a organizações de vida independente); Cordeiro (2011), por sua vez, relata que o modelo social britânico também já era conhecido pelos ativistas ligados ao MVI desde sua chegada ao Brasil. Assim, minha proposta não é discutir extensivamente a profundidade teórica da separação deficiência/lesão, por exemplo, e sim buscar – no limite desta pesquisa - o que tem se produzido teoricamente sob o termo de disability studies. Podemos entendê-los como um processo teórico-metodológico e político que vem se constituindo academicamente (e criticamente) desde os anos 1980, intimamente relacionado aos movimentos sociais político-identitários de pessoas deficientes que ganharam força a partir dos anos 1960 em alguns locais do mundo.

2.3 Corpo x deficiência: tensões conceituais É importante dizer que essa análise foi construída em consonância com o interesse em pensar o local do corpo deficiente nesses estudos. Se por um lado o modelo social britânico representava o esquecimento da experiência fenomenológica do corpo60 (HUGHES & PATERSON, 1997; TURNER, 2001; SHAKESPEARE, 2006; DINIZ, 2007; COSTA C. ANDRADA, 2013); por outro, pude perceber que a separação elaborada pelos teóricos deste modelo social, entre lesão versus deficiência, ao longo dos anos 1980, mesmo sendo localizável mais pontualmente na Grã-Bretanha (DAVIS, 2006d; SHAKESPEARE, 2006) também era existente na literatura norte-americana. Teóricos(as) norte-americanos (as) ao longo dos anos 1980 como Irving Zola, Harlan Hahn e mais tarde, no final dos anos 1990, Rosemarie Garland-Thomson, também, talvez não de maneira tão explícita, desvinculam o corpo, suas possíveis lesões, das suas concepções

‘While not wishing to imply a culturally determinist trajectory, and recognising the crossfertilisation that does exist across the Atlantic, nevertheless the cutting edge of Disability studies needs to move beyond the boundaries of the Gulf Stream that seem to exist’. 60 Essa veio a ser uma das críticas mais contundentes aos disability studies britânicos e sua principal metodologia, o modelo social. Veremos mais adiante especificamente o motivo dessas críticas. 59

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socioculturais e políticas. Contudo, um ponto de entre essas duas formas de desvincular o corpo (entendido biologicamente) e seus significados (entendidos sociologicamente) – distinção feita principalmente pelos defensores do modelo social - está exatamente na causa sociológica da deficiência. Os autores britânicos Barnes et al. (2002) fazem uma rápida retomada histórica para salientar que a sociologia euro-americanas dos anos 1960 e 1970 que se preocupava em investigar a deficiência, era por grande parte influenciada pelas interpretações funcionalistas de doença do sociólogo Talcott Parsons. Segundo esses autores (BARNES et al, 2002, p. 3), “para Parsons a doença, seja de curta ou a longa duração, é um desvio da norma. Consequentemente, a análise sociológica das respostas sociais à deficiência tornou-se em grande parte preservada entre sociólogos interessados na reação e gestão do desvio social”61. Após essa consideração, os autores citam algumas obras sociológicas dentre o final dos anos 1960 e dos 70, consequentemente anteriores às criticas condensadas nos disability studies, interessadas na “área geral da ‘deficiência’”62, porém argumentando que “[...] mesmo esses trabalhos reconhecendo a importância dos fatores econômicos, sociais e culturais na produção da deficiência, as causas das privações econômicas e sociais generalizadas encaradas pelas pessoas deficientes foram localizadas no indivíduo e sua lesão”63 (BARNES et al., 2002, p. 4) Barnes et al., alguns dos considerados fundadores dos disability studies britânicos e amplos defensores da perspectiva materialista para pensar deficiência (MEEKOSHA, 2004), irão criticar esses posicionamentos sociológicos anteriores e defenderão que “ao invés de identificar deficiência como uma limitação individual, o modelo social [britânico] identifica a sociedade como problema, e busca por mudanças

61

For Parsons sickness, whether short or long term, is a deviation from the norm. Consequently, the sociological analysis of the social responses to disability became largely the preserve of sociologists interested in the reaction to and management of ascribed social deviance. 62 A maioria desses trabalhos eram advindos da sociologia médica, ou sociologia da saúde e doença e tinham um contato intenso com áreas como serviço social e rehabilitação (ALBRECHT, 2002). Nesse sentido, algumas obras citadas por Barnes et al (2002, p.4) são, nos EUA, The Making of Blind Men (1969) de Robert Scott's e a edição feita por Gary Albrecht chamada The Sociology of Physical Disability and Rehabilitation (1976); na Grã-Bretanha, The Meaning of Disability (1976) de Mildred Blaxter's e de Peter Townsend Poverty in the United Kingdom (1979) 63 […] while this work recognized the significance of economic, social and cultural factors in the production of disability, the causes of the widespread economic and social deprivation encountered by disabled people were located within the individual and their impairment.

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políticas e culturais fundamentais a fim de gerar soluções”64 e é referido como a “grande ideia” para pensar a discriminação, exclusão e opressão dos deficientes, em suas relações sociais. (Barnes et al., 2002, p. 5). Estes autores se referem às abordagens sobre deficiência dos anos 1970 e 1980 – inclusive citando a obra de Zola como parte dessas abordagens – argumentando que elas (BARNES et al, 2002, p. 7) […] falham em reconhecer a importância da distinção entre lesão e deficiência que caracteriza a abordagem do modelo social britânico. Ao manter as tradições do pragmatismo americano, os argumentos pelos direitos civis para pessoas deficientes esteve ligado com a abordagem do grupo minoritário, ao invés de propor uma explicação teórica compreensível para deficiência e exclusão das pessoas deficientes do principal da vida cotidiana65. A crítica dos(as) modelistas sociais britânicos(as) é que a deficiência é uma opressão que se aloca no corpo lesionado devido a estrutura social insensível a esses corpos. Nesse sentido, qualquer análise social da deficiência deve seguir, antes de mais nada, a clivagem corpo-lesão X sociedade-deficiência, uma vez que as especificidades biológicas dos corpos não são a causa de sua deficiência. Para Debora Diniz (2007, p. 7) deficiência não é “mais uma simples expressão de uma lesão que impõe restrições a participação social de uma pessoa. Deficiência é um conceito complexo que reconhece o corpo com lesão, mas que também denuncia a estrutura social que oprime a pessoa deficiente”. Para os(as) modelistas sociais britânicos, em específico, os disability studies seriam a generalização teórica dessa divisão entre deficiência e lesão, entre corpo e sociedade66. Essa dicotomia, aparece como fundamental para teorizar socialmente sobre deficiência; e teorizar socialmente sobre deficiência é, de certa maneira, também, fazer disability studies. Colin Barnes ao responder genericamente às críticas feitas a esse modelo social, em um texto recente de 2012 (já citado aqui e que é uma versão revisitada da introdução escrita com seus colaboradores em Barnes et al, 2002), coloca de maneira dramática: “[…] sem o modelo social [britânico] da deficiência, os disability studies não terão

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Rather than identifying disability as an individual limitation, the social model identifies society as the problem, and looks to fundamental political and cultural changes to generate solutions. 65 […] failed to recognize the significance of the distinction between impairment and disability that characterized the British social model approach. In keeping with the traditions of American pragmatism, the arguments for civil rights for disabled people were linked with a minority group approach, rather than providing a comprehensive theoretical explanation for disability and the exclusion of disabled people from the mainstream of everyday life. 66 Mello (2009) faz analogia semelhante com essa problemática ‘moderna’ de dicotomias, mas com relação ao ‘paradigma antropológico’ da separação natureza-cultura.

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sentido. Consequentemente, a luta por uma sociedade mais legítima e justa será um pouco mais difícil”67 (p.12). Algumas páginas depois o autor defende o modelo das acusações “pós-modernas” de que a separação entre lesão/deficiência é uma “[...]grande teoria totalizante que exclui dimensões importantes da experiência e conhecimentos vividos das pessoas deficientes”68 (BARNES, 2012, p.22). Para Barnes (loc. cit.) é importante Reiterar que a dicotomia lesão, deficiência do modelo social é pragmática e não nega que algumas lesões limitem a capacidade das pessoas de funcionar independentemente. Tampouco nega que as pessoas deficientes tenham doenças em variados pontos de suas vidas e que intervenções médicas apropriadas são algumas vezes necessárias69. Nesse caso a distinção fica por conta da pessoa não ter uma deficiência e sim uma lesão. Este indivíduo com lesão ao adentrar em um arranjo social que não absorve sua variabilidade corporal se torna deficiente (disabled); a sociedade que não respeita o corpo

com

lesão

o

‘deficientiza’,

(disable

it);

o

corpo

se

torna

desabilitado/incapacitado/deficiente (disabled). Tantos 'disableds' exprimem um processo opressivo que incide em um determinado corpo. O corpo com lesão, sem um membro ou com alguma doença que restrinja alguma função orgânica, só se torna “corpo deficiente” (disabled body), quando sua lógica funcional não for respeitada no arranjo social especifico. Hughes e Paterson (1997, p. 328-29), a respeito de tal separação, escrevem: No modelo social [britânico], o corpo torna-se sinônimo de sua lesão ou disfunção física. Ou seja, é definido - pelo menos implicitamente - em termos puramente biológicos. Ele não tem história. É uma essência, atemporal, uma fundação ontológica. Lesões são, portanto, opostas com relação à deficiência: não são socialmente produzidas. Com relação ao corpo e lesão, o modelo social não faz concessão para o construcionismo ou relativismo epistemológico: ele postula um corpo desprovido de história (ênfase minha)70.

“[…] without the social model of disability, disability studies will be rendered meaningless. Therefore, the struggle for a fairer and more just society will be that bit harder. 68 […] totalizing grand theory that excludes important dimensions of disabled people’s lived experience and knowledge’. 69 To reiterate the social model impairment, disability dichotomy is a pragmatic one that does not deny that some impairments limit people’s ability to function independently. Nor does it deny that disabled people have illnesses at various points in their lives and that appropriate medical interventions are sometimes necessary. 70 In the social model, the body is rendered synonymous with its impairment or physical dysfunction. That is to say, it is defined - at least implicitly - in purely biological terms. It has no history. It is an essence, a timeless, ontological foundation. Impairment is therefore opposite in character to disability: it is nor socially produced. With respect to the body and impairment, the 67

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Esta dicotomia possui certa semelhança com a mais difundida concepção moderna ocidental do corpo. Tal visão surge após uma ruptura entre corpo e ‘homem’ que teve sua modelagem na quebra de valores medievais e no desenvolvimento da anatomia em confluência com a filosofia mecanicista, tornando o corpo a fronteira da pessoa nas sociedades individualistas (LE BRETON, 2007). Francisco Ortega (2006, p. 105), ao analisar o papel das tecnologias médicas, que emergem durante o século XX, na apreensão social de discursos, que traduzem inquietações científicas, sobre o que entendemos e reconhecemos como “nosso corpo” argumenta que A imagem do corpo fornecido pelas novas tecnologias [biomédicas] é a de um corpo fragmentado, objetivado e desmaterializado, recortado do ambiente. É o corpo-objeto da tradição anatomofisiológica, sem opacidade nem subjetividade. O nosso corpo é reconstruído a partir do modelo do corpo fornecido pela medicina e pela mídia como um corpo objetivado e fragmentado, privado de sua dimensão subjetiva, o corpo como algo que temos e não algo que somos. Nesse sentido, talvez pensar o corpo deficiente, ou o corpo lesionado, separado de ou anterior a seu “macrocosmo” ou considerá-lo subjugado a “uma estrutura social opressiva” é fazer uma analogia com a separação cartesiana entre corpo e mente, desconsiderando os contextos e projeções socioculturais e históricas do corpo, reafirmando a lesão como dispensável aos domínios dos saberes sociais. Para o antropólogo David Le Breton (2007, p. 32) O Corpo não existe em estado natural, sempre está compreendido na trama social de sentidos, mesmo nas suas manifestações aparentes de insurreição, quando provisoriamente uma ruptura se instala na transparência da relação física com o mundo do ator (dor, doença, comportamento não habitual, etc.) Na próxima sessão do texto abordarei a literatura sobre disability studies localizada entre os anos 1990 e 2000 em que essas noções críticas sobre o corpo se tornaram mais pontuais e abrangentes nas análises sociais sobre deficiência. Também é nesse período que os disability studies se caracterizaram como uma área investigativa interdisciplinar e das humanidades, o que tornou teoricamente e analiticamente viável questionar o estatuto fixamente biológico e natural do “corpo lesado” ou “deficiente”.

social model makes no concession to constructionism or epistemological relativism: it posits a body devoid of history.

49

3

PARTE II

Como rapidamente tentei discutir na primeira parte deste texto, o campo dos disability studies é diverso desde suas origens externas à academia. Disto resulta eu ter traçado um histórico ambivalente da trajetória do campo focada em duas localidades distintas, a produção norte americana e a britânica, mesmo que de maneira um tanto esquemática e ainda superficial, mas salientando que ambas nunca estiveram exatamente isoladas. Tanto autores(as) britânicos(as) como americanos(as) têm se citado ativamente em suas produções principalmente após os anos 1990. Também é importante dizer que minha intenção não é cristalizar ou corroborar simplesmente uma origem bifurcada dos disability studies, mas antes tentar explorar que a deficiência passa por um processo de disputas epistemológicas, historicamente marcadas, que vão possibilitar a emergência desses saberes críticos sobre o tema. Nos anos 2000 esse trânsito global de “teoria da deficiência” (disability theory) será considerado praticamente um fato (ALBRECHT et al, 2001; SNYDER et al, 2002; BARNES et al, 2002; DAVIS, 2006). Essa expansão dos disability studies pelo mundo, principalmente após os anos 2000, é vista hoje com mais facilidade. Além dos dois periódicos antes mencionados – Disability and Society e Disability Studies Quarterly - ao longo das minhas investigações foram surgindo informações de outros grupos e publicações que emergem mais fortemente após meados dos anos 1990 interessadas em privilegiar as abordagens socioculturais sobre deficiência. Para citar alguns exemplos da busca e/ou dialogo com tais perspectivas temos o ALTER (the European Journal of Disability Research) e o Journal of Literary and Cultural Disability Studies (WATSON et al, 2012); o núcleo espanhol ASCEDIS (HARLOS, 2012); e o periódico Disability and Sexuality. Além dessas publicações é interessante notar que essa crescente influência dos disability studies ao redor do mudo começa a possibilitar a emergência de investigações em localidades que começam a ser melhor exploradas recentemente. Refiro-me, ao trabalho de autoras e autores produzindo a partir da Austrália (MEEKOSHA e JAKUBOWSKI, 2002; MEEKOSHA e SHUTTLEWORTH, 2009) e Portugal (MARTINS, 2005; PEREIRA, 2008), por exemplo. No Brasil, mesmo ainda sendo uma área pouco explorada, os disability studies vem ganhando cada vez mais proeminência como relevante para se pensar criticamente sobre deficiência. Em 2013, na cidade de São Paulo, também ocorreu mais um evento internacional em torno das questões alavancadas pelos disability studies. O Memorial da 50

Inclusão (órgão da Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência do estado de São Paulo) e o Diversitas (Núcleo de Estudo das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos – FFLCH/USP) proporcionaram a realização do também I Simpósio Internacional de Estudos sobre a Deficiência71. Já em 2014 destaco o Grupo de Trabalho chamado “Etnografias da deficiência”, que fez parte da programação da 29ª Reunião Brasileira de Antropologia – 29ª RBA, em Natal/RN, como um flerte que cada vez mais se destaca entre

antropólogos e antropólogas brasileiros(as) em torno de novas maneiras de pensar, teorizar e se engajar nas investigações socioculturais sobre deficiência72. Nesta sessão do trabalho explorarei algumas inflexões teóricas que os disability studies apresentam durante os anos 1990 e 2000 em sua expansão interdisciplinar nas ciências humanas73 (SNYDER et al., 2002; DAVIS, 2006; DINIZ, 2007; MELLO e NUERNBERG, 2012; COSTA C. ANDRADA, 2013). Dentre essas inflexões me preocuparei em pontuar aquelas que se buscaram questionar o estatuto do corpo deficiente dentro das teorias que visavam construir socialmente a deficiência. Nesse sentido, dentro dos limites relativos a essa pesquisa, argumentarei como os disability studies passam a ser mais influenciados por obras que vão além das referências estritamente sociológicas e disciplinares que inauguraram o campo. Como meu interesse foi seguir alguns indícios dos rumos que o corpo deficiente tomou nessas teorizações, é após o final dos anos 1980 que o ‘corpo’ apareceu mais fortemente como um dos focos investigativos dos disability studies (ABBERLEY, 1987; ZOLA, 1991; GARLAND-THOMSON, 1996; 1997; SHAKESPEARE, 1996; HUGHES E PATERSON, 1997; TREMAIN, 2000; 2005; MCRUER, 2006). Nesse mesmo período as ciências sociais estão se confrontando com questões de objetividade e subjetividade 71

Maiores detalhes deste evento podem ser encontradas no endereço eletrônico: http://diversitas.fflch.usp.br/sied. Este evento gerou um artigo-comentário internacional sobre a expansão dos disability studies no Brasil no periódico Disability Studies Quarterly já mencionado anteriormente (ver nota 6). 72 Este GT, o qual apresentei um trabalho em co-autoria com meu orientador Jorge Leite Jr., mesmo que possa ser alegado que não reflita exatamente os preceitos referentes ao campo dos disability studies, é indiscutível que já aponta para várias correlações acadêmicas que podem ser articuladas entre um conhecimento sobre deficiência etnografado em contextos brasileiros e as discussões feitas pelos trabalhos internacionais mais facilmente reconhecidos como disability studies. Os trabalhos apresentados neste GT podem ser acessados através do link: www.fb.me/NkLpxXnI . Agradeço imensamente ao empenho do antropólogo Wagner Xavier Camargo (UFSCar) e da antropóloga Adriana Dias (UNICAMP) ao me ajudarem com o pôster e participação online no GT referido. 73 Segundo Robert McRuer (2006, p. 60) em 1992, “Discourses of Disability in the Humanities”, na Universidade de Puerto Rico, Mayaguez, foi a primeira conferencia dedicada especialmente aos disability studies nas humanidades; a segunda, ainda conforme McRuer, foi “This/Ability: An Interdisciplinary Conference on Disability and the Arts” em 1995 na Universidade de Michigan em Ann Arbor.

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em suas pesquisas e o corpo passa a ser notado também como um ponto de disputas epistemológicas (TURNER, 2001; HOWSON & INGLIS, 2001; SHILLING, 2007; CINTRA & PEREIRA, 2010). Diante desse contexto, para demonstrar como o corpo deficiente, e os questionamentos sobre suas verdades e fixidez, se tornou ponto de problematizações e debates nos disability studies,- e consequentemente no debate mais amplo sobre “deficiência” - focalizarei brevemente algumas abordagens de autores e autoras que vão questionar os pressupostos “corporais” que vinham se cristalizando na área. Dessa maneira, para compreendermos como corpo e deficiência se entrelaçam mais pontualmente no final dos anos 1990 nas teorizações dos disability studies, já avançamos quando, na primeira parte desse trabalho, exploramos como se dá a problematização da deficiência como uma construção social que almeja cindir-se, das experiências corporificadas dos indivíduos com lesão como causa da deficiência – entendida como “falha” social. A partir de agora, explorando algumas publicações situadas nos anos 1990, acessaremos tanto parte da crítica feminista que discutirá diretamente as premissas do modelo social - como uma teoria masculina e limitada a uma corporalidade específica (CROW, 1996; MORRIS, 2001; DINIZ, 2003, 2007; SHAKESPEARE, 2006) - quanto algumas abordagens feministas sobre deficiência da américa do norte que reconhecem em suas análises a construção sociocultural da deficiência e a existência histórica do “corpo deficiente” (disabled body) (GARLANDTHOMSON, 1997, 2001; TREMAIN, 2005, 2006, 2010). Esse reconhecimento do caráter histórico do corpo deficiente também está presente entre as abordagens de Hughes e Paterson (1997), que defendem uma “sociologia da lesão” como maneira de teorizar as diferenças corporais que compõe a deficiência, e nas investigações de dois outros autores que farão parte de nossas considerações: a já mencionada Shelley Lynn Tremain (2000, 2005), com uma proposta queer e Foucaultiana de historização do corpo deficiente dentro dos discursos biomédicos, e Robert Mcruer (2006), com sua noção de que o corpo não-deficiente (able body) é culturalmente compulsório em sua suposta naturalidade (normalidade).

3.1 Caracterizando o corpo deficiente: corpo nos disability studies Como vimos, sendo uma investigação através do modelo social ou do modelo de minorias/de direitos, a deficiência antes de mais nada se aloca no social e não no individual em si. Conforme esses estudos, deficiência não é mais um atributo biológico e 52

sim uma maneira política e social de alocar determinados indivíduos como ‘incapazes’, ‘improdutivos’, ‘inferiores’, a partir de suas configurações corporais ‘limitadas’ (MCRUER, 2002). O principal pressuposto que veio sendo formulado nas teorizações sociais sobre deficiência é que ela não é intrínseca aos corpos e sim é fruto de arranjos sociais opressivos e discriminatórios que precisam ser reformulados para incluir o máximo de variabilidades corporais e reduzir ao máximo respostas segregacionistas. Contudo, o que pude destacar da literatura que acessei entre os anos 1990 e 2000 é uma preferência em questionar essa noção dicotômica que coloca em campos distintos de análise a deficiência e aqueles(as) que são classificados(as) como deficientes (GARLAND-THOMSON, 1996, 1997; HUGHES & PATERSON, 1997; TREMAIN, 2000, 2005; DINIZ, 2003, 2007; DAVIS, 2006; SHAKESPEARE, 2006; MCRUER; 2006; MELLO, 2009; FREMLIN, 2011; HARLOS, 2012; COSTA C. ANDRADA, 2013). Ao tentar compreender essa crítica nesta breve investigação teóricobibliográfica, foi possível perceber que o que se disputa, de certa maneira, é a própria noção de ‘corpo deficiente’. O privilégio teórico e analítico dado à estrutura social como produtora de deficiências, entre o fim dos anos 1970 até meados dos 1990, foi o mote para começar a se retirar do domínio médico e da inevitável explicação biológica a vulnerabilidade social e econômica daqueles considerados deficientes. Nas palavras dos teóricos da deficiência norte-americanos Susan Snyder e David Mitchell (2001, p. 374): Desde que os corpos deficientes sofreram historicamente classificações debilitantes, os disability studies propositadamente se abstiveram de formular as experiências corporificadas das pessoas com deficiência. Esta negligência foi intencional e estratégica: ela explicitamente procurou deixar uma entidade sobre-analisada misericordiosamente sozinha. Em vez disso, o olhar crítico estava ligado às práticas avaliativas físicas, ocupacionais e psicológicas e sobre as instituições que autorizavam tal olhar […]74. Então, o que passará a ser problematizado mais veementemente nos disability studies, desde o fim dos anos 1990, é como teorizar corpo e deficiência de maneira correlacionada: evitando considerar o corpo somente como receptáculo inerte de atributos

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Since disabled bodies had endured such a history of debilitating classifications, disability studies purposely refrained from formulating the embodied experiences of disabled people. This neglect was willful and strategic: it explicitly sought to leave an overanalyzed entity mercifully alone. Instead, the critical gaze was turned on the practitioners of physical, occupational, and psychological evaluations and on the institutions that authorized their gaze.

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organicamente deficitários, como propunha a noção biomédica; ao mesmo tempo que busca ressignificar as experiências de opressão e discriminação social, propostas nas abordagens construcionistas, como experiências corporificadas. Segundo Lennard J. Davis (2006b, p. XVI) ao longo dos anos 1990 perspectivas como a dos estudos literários, da história da arte, de estudos pós-coloniais e feministas vão acompanhar a expansão dos disability studies nas humanidades. Contudo, é impossível nos remetermos aos disability studies sem nos referirmos à separação entre corpo e sociedade, entre lesão e deficiência proposta mais fortemente pelos autores britânicos entre os anos 1980 e 90. Apesar do modelo social britânico não ser a única abordagem sociológica de análise da deficiência, como vimos, acredito que devido a sua radicalidade metodológica, ele tenha se tornado a 'grande ideia’ (BARNES et al. 2002) para se pensar a deficiência como um 'problema' social que precisava ser resolvido. Costuma-se falar em primeiros teóricos do modelo social, aqueles envolvidos desde o final dos 70 na criação da UPIAS. Porém, como dito anteriormente é Oliver que estrutura durante os anos 1980 o modelo social como conhecemos hoje. É esse autor também que propõe, como contraponto a esse modelo, a existência de um modelo individual, ou da tragédia pessoal - que depois serão genericamente chamados de modelo médico. Assim, argumenta-se que essa primeira geração de modelistas sociais é uma vertente mais 'dura/radical' do modelo social britânico. Essa versão mais rígida seria contraposta às versões menos contundentes desse modelo que surgiram nos anos 1990 a partir da crítica feminista (DINIZ, 2003, 2007; MEDEIROS & DINIZ, 2004; SHAKESPEARE, 2006; MELLO, 2009; MELLO, NUERNBERG, 2012; HARLOS, 2012; COSTA C. ANDRADA, 2013). Essas críticas feministas se voltariam para uma revisão e ampliação desse modelo. Para Diniz, principalmente, são as feministas que trazem para o modelo social as experiências da dor, do corpo com lesão e da dimensão do cuidado. Segundo Diniz (2003, 2007) é a crítica feminista e pós moderna, insurgentes nos anos 1990 e 2000, que “definiu a segunda geração de teóricos do modelo social” (Diniz, 2007, p. 58). Ainda conforme Diniz (2007, p. 60-1) foram as [...] teóricas feministas que trouxeram à tona temas esquecidos na agenda de discussões do modelo social. Falaram do cuidado, da dor, da lesão, da dependência e da interdependência como temas centrais à vida do deficiente. Elas levantaram a bandeira da subjetividade do corpo lesado, discutiram o significado da transcendência do corpo por meio da experiência da dor, e assim 54

forçaram uma discussão não apenas sobre deficiência, mas o que significava viver em um corpo doente ou lesado. Nesse sentido, a ativista britânica feminista e deficiente Jenny Morris (1991, p. 10. Citada também em OLIVER, 1996, p. 11) (uma das autoras mencionadas durante o texto supracitado de Diniz) dialoga criticamente com o modelo social britânico dizendo Há uma tendência dentro do modelo social da deficiência de negar a experiência de nossos próprios corpos, insistindo que as nossas diferenças físicas e restrições são criadas inteiramente socialmente. Enquanto as barreiras ambientais e atitudes sociais são uma parte crucial da nossa experiência de deficiência - e, de fato, nos deficientiza - sugerir que isto é tudo o que existe [sobre deficiência] é negar a experiência pessoal de restrições físicas ou intelectuais, da doença, do medo de morrer75. Morris também é reconhecida por suas críticas aos fundadores do modelo social britânico por tentarem universalizar em suas teorias uma noção de deficiência que estava intimamente ligada à posição desses sujeitos. A crítica de Jenny Morris (1991) deflagrou o caráter masculinista e branco que se atrelou a uma noção exclusivamente física e estática de deficiência (DINIZ, 2003; 2007; MELLO, NUERNBERG, 2012; HARLOS, 2012). Levando em consideração que a maioria daqueles ativistas e teóricos eram lesionados medulares (DINIZ, 2007), Morris argumentava que as teorizações do modelo social estavam fadadas a reproduzir uma lógica que não considerava como central as experiências femininas na deficiência, além de outros aspectos que poderiam ser de extrema valia para interpretá-la socialmente [assim como dito anteriormente com relação a se viver com dores crônicas ou a interdependência gerada pelo cuidar do(a) outro(a)]. Juntamente a essa expansão crítica feminista que toma maior força durante os anos 1990 nos disability studies, inclusive entrando em diálogo com as proposições do modelo social britânico - como Diniz bem indica - é no mesmo período que começa a haver um maior movimento interdisciplinar na área. Em artigo de 1999 Davis (p.508-9) já pontuara que Por 20 anos, disability studies têm sido o domínio de cientistas políticos e sociólogos. A Society for Disability Studies (SDS) e sua publicação, The Disability Studies Quarterly, juntamente com a revista britânica Disability and Society, são todos dominados 75

There is a tendency within the social model of disability to deny the experience of our own bodies, insisting that our physical differences and restrictions are entirely socially created. While environmental barriers and social attitudes are a crucial part of our experience of disability - and do indeed disable us - to suggest that this is all there is to it is to deny the personal experience of physical or intellectual restrictions, of illness, of the fear of dying.

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por cientistas sociais. Mas, recentemente, os disability studies tomaram uma nova direção, através do impulso pelos estudos culturais, e se desviaram para as humanidades, cultura popular, a teoria literária, e assim por diante76. Para esse autor, a deficiência pode ser capturada através das representações culturais encontradas nas obras literárias. Uma vez que a literatura é produzida dentro de contextos socioculturais específicos, é possível perceber que dentre as personagens as Protagonistas são quase sempre definidas como tendo corpos normais, a configuração padrão de fisicalidade em romances. Quando as personagens têm deficiências, o romance é geralmente exclusivo sobre essas qualidades. No entanto, a personagem com deficiência nunca é importante para si mesma. Em vez disso, a personagem é colocada na narrativa "para" as personagens não deficientes visando ajudá-las a desenvolver simpatia, empatia, ou como um contrapeso a algum problema na vida da personagem "normal". (DAVIS, 1999, p. 510) 77 Neste sentido e poucos anos antes ao texto supracitado de Davis, a obra já mencionada da autora Rosemarie Garland-Thomson (1997) nos fornece mais informações para pensarmos os alicerces teóricos que foram constituindo o que já se nomeava disability studies durante os anos 1990. Garland-Thomson (1997, p. 15-6)78 descreve este seu livro como [...] um manifesto que coloca os disability studies no contexto das humanidades. Mesmo os disability studies tendo se desenvolvido como um subcampo de pesquisa nos campos acadêmicos da sociologia, antropologia médica, educação especial e medicina reabilitativa, quase nenhum estudo nas humanidades explicitamente situa deficiência em uma perspectiva politizada e social construcionista. Um dos objetivos deste livro é começar a

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For 20 years, disability studies has been the domain of political scientists and sociologists. The Society for Disability Studies (SDS) and its publication, The Disability Studies Quarterly, along with the British journal Disability and Society, are all dominated by social scientists. But recently disability studies has taken a new direction, given a boost by cultural studies, and has veered toward the humanities, popular culture, literary theory, and so on. 77 Protagonists are almost always defined as having normal bodies, the default setting of physicality in novels. When characters have disabilities, the novel is usually exclusively about those qualities. Yet the disabled character is never of importance to himself or herself. Rather, the character is placed in the narrative "for" the nondisabled characters to help them develop sympathy, empathy, or as a counterbalance to some issue in the life of the "normal" character. 78 Na nota 18 (p. 142), referente a este trecho citado, a autora menciona três obras que abordam a deficiência nesse contexto cultural e literário: The Cinema of Isolation de Martin Norden; Lennard J. Davis, ed., The Disability Studies Reader (New York: Routledge, 1996); e Lennard J. Davis. Enforcing Normalcy.

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formular o que os disability studies poderiam parecer como um subcampo na crítica literária e estudos culturais.79 A autora então buscará, a partir de considerações advindas da teoria feminista (em principal) e da teoria crítica literária, pontuar “[...] como representações vinculam significados às diferenças físicas que chamamos deficiência” (GARLAND-THOMSON, 1997, p. 30)80. Para pensar as intersecções sobre corpo e cultura a autora invocará obras que, segundo ela, não especificamente lidam com gênero e deficiência. Segundo GarlandThomson algumas obras de autores como Goffman, Foucault e Mary Douglas, propõe análises socioculturais que podem ser aproveitadas para formulação de uma “teoria da deficiência” [disability theory] (GARLAND-THOMSON, 1997, p. 30). Dentre esses autores, Garland-Thomson chama atenção para Goffman como o único que aponta diretamente deficiência em sua teoria sociológica do estigma. Para ela a análise de Goffman em Estigma - Notas Sobre A Manipulação Da Identidade Deteriorada (publicado pela primeira vez em 1963), “[...] alicerça o nascente campo dos disability studies nas ciências sociais. Como a teoria feminista, a teoria do estigma fornece um proveitoso vocabulário para alocar a deficiência em contextos sociais” (GARLANDTHOMSON, 1997, p. 30).81 O que quero chamar atenção nesta pequena parte que considerei do debate proposto por Rosemarie Garland-Thomson em seu livro é para uma possível ‘constituição política da deficiência’ a partir de outros referenciais teóricos que não o modelo social da deficiência britânico. Garland-Thomson não cita a produção inglesa em sua obra como uma teoria da deficiência, aliás a autora não faz menção alguma ao modelo social britânico, mesmo que quase o descrevendo em sua análise, com termos muito semelhantes aos preceitos considerados advindos deste modelo. Por exemplo, ao mencionar que os movimentos liberacionistas em busca por igualdade (no contexto norte-americano pósanos 1960), postularam gênero e raça como diferenças ao invés de desvios, GarlandThomson (1997, p. 23 )pontua que a

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A manifesto that places disability studies within a humanities context. Although disability studies has developed as a subfield of scholarly inquiry in the academic fields of sociology, medical anthropology, special education, and rehabilitative medicine, almost no studies in the humanities explicitly situate disability within a politicized, social constructionist perspective. One of my aims in this book, then, is to begin formulating what disability studies might look like as a subfield in literary criticism and cultural studies. 80 ‘[…] how representation attaches meaning to the physical differences we term disability’ 81 ‘[…] underpins the nascent field of disability studies in the social sciences. Like feminist theory, stigma theory provides a useful vocabulary for placing disability in social contexts’

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[...] deficiência ainda permanece como inadequação corporal ou catástrofe a ser compensada pela pena ou boa vontade, ao invés de ser acomodada por mudanças sistêmicas baseadas nos direitos civis. De um lado, então, é importante usar o argumento construcionista para afirmar que deficiência não é insuficiência corporal, e sim algo que advém da interação de diferenças físicas em um ambiente. Do outro, a particular, existência histórica do corpo deficiente demanda duplamente acomodação e reconhecimento. Em outras palavras, as diferenças físicas como usar cadeira de rodas ou ser surdo, por exemplo, devem ser reivindicadas, mas não consideradas como perda/falta 82. Como disse, é possível essa leitura discursiva, essa leitura que historiciza corpos e suas materialidades na tentativa de questionar o aparente estatuto apolítico que os saberes hegemônicos sobre o corpo – como a medicina e a própria sociologia – inferem sobre ele. O meu ponto nessa discussão é que o corpo deficiente não foi em si resgatado nos debates socioculturais sobre deficiência, como parecem sugerir alguns autores e autoras (HUGHES & PATERSON, 1997; SNYDER & MITCHELL, 2001), mas o corpo se torna foco de um debate político em transformação. Se durante os anos 1970-80 a deficiência se torna uma identidade positivada politicamente, ela se positiva perante a vontade de participar da ordem que a excluía/oprimia como uma experiência legítima. O discurso do modelo social aloca essa experiência socialmente e desconsidera a dimensão de determinadas experiências corporais. Separar deficiência de lesão, é evidenciar a opressão estrutural que determinadas pessoas sofrem por causa de seus corpos. Basicamente, corpo é visto por essa teorização como um receptáculo de simbologias sociais e culturais. O corpo lesado ou lesionado, do modelo social, paradoxalmente, não é causa nem consequência da deficiência (TREMAIN, 2006; FREMLIN, 2011). Nas palavras de Mike Oliver: “‘Deficiência não tem nada a ver com o corpo’ e que a ‘lesão é de fato nada menos do que uma descrição do corpo físico’” (Apud. PATERSON & HUGHES, 1997, p. 32) 83.

‘[…] disability is still most often seen as bodily inadequacy or catastrophe to be compensated for with pity or good will, rather than accommodated by systemic changes based on civil rights. On the one hand, then, it is important to use the constructionist argument to assert that disability is not bodily insufficiency, but instead arises from the interaction of physical differences with an environment. On the other hand, the particular, historical existence of the disabled body demands both accommodation and recognition. In other words, the physical differences of using a wheelchair or being deaf, for example, should be claimed, but not cast as lack.’ 83 ‘Disablement has nothing to do with the body’ and that ‘impairment is in fact nothing less than a description of the physical body’ 82

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Dessa maneira podemos considerar tanto o construcionismo social britânico sobre deficiência, fortemente baseado na dicotomia lesão/deficiência, quanto o construcionismo social norte-americano, baseado no modelo minoritário ou de direitos, estão ligados a essa noção geral do debate entre corpo e sociedade, no qual o corpo, deficiente ou não, é matéria orgânica, objetivo exclusivo do saber biomédico, dos modelos clínicos; e socialmente falando, esse corpo é somente ancoragem de simbologias e interpretações que variam de acordo com os preceitos de cada sociedade ou cultura. Assim, se pensarmos a constituição dos disability studies a partir dessas problematizações gerais em torno do “corpo”, perceberemos que nos anos 1970-80 a visão de corpo nas ciências sociais – as primeiras referências diretas dos primeiros estudos sociais sobre deficiência – é exatamente a de um dado orgânico em que se investe simbologias. O corpo seria o suporte do signo, um fato biológico que varia de acordo com percepções culturais inscritas em sua materialidade orgânica universal. Em artigo de 201084 a psicóloga Maria Elisa Rizzi Cintra e o antropólogo Pedro Paulo Gomes Pereira abordam como nas ciências sociais alguns autores e autoras têm centrado suas perspectivas a partir do corpo, mas que não necessariamente contestam as bases mais deterministas de se pensar a corporalidade: O corpo vem se firmando como um terreno privilegiado para se entender as disputas em torno de novas identidades, da preservação de identidades históricas, da ascensão de híbridos culturais ou das recontextualizações locais de tendências globais. As polêmicas análises sobre a temática afirmam seu caráter essencial para a compreensão das sociedades contemporâneas. Todavia, diante dessas questões e da multiplicidade de análises, talvez devêssemos, para replicar aqui uma indagação de Miguel Vale de Almeida, insistir numa simples pergunta: de que falamos quando falamos de corpo? (Ênfase minha) (CINTRA e PEREIRA, 2010). A provocação teórica da citação acima me fez considerar outra questão seguindo os termos dessa pesquisa: de que corpo deficiente falamos então? Esta é uma indagação importante que foi sendo formulada no andamento da pesquisa e acredito não possuir resposta exata. Conforme avançava nas leituras fui me deparando com maneiras diversas de teorizar socialmente sobre deficiência. Minha aparente implicância com os modelos

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O texto não possui paginação especifica e está online http://periodicos.ses.sp.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S151818122010000100010&lng=en&nrm=iso

no

endereço

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construcionistas sociais sobre deficiência é fruto da minha inquietação, em partes responsável pela dúvida “que corpo é esse que figura em tais teorizações?” e também em compreender mais profundamente como deficiência se constitui como um problema sociológico aparentemente desprovido de corpo. Ou seja, nas primeiras leituras sobre disability studies que tive contato deficiência se “desvincula” do corpo para ser constituída como um problema político e depois sociológico, por exemplo. Porém, o que se começou a argumentar fortemente nas teorias sociais pós anos 1990 é que o próprio corpo humano não é anterior as práticas e saberes que o delimitam como saudável, completo, funcional ou não (ABBERLEY, 1987; ZOLA, 1991; HUGHES & PATERSON, 1997; TREMAIN, 2000; 2005; SNYDER & MITCHEL; 2001; BRECKENRIDGE & VOGLER, 2001) Sem conseguir entrar nos pormenores que se relacionam à descrição biológica do que seria o corpo deficiente focalizei em pensar a deficiência como fruto de relações sociais, em que sua dimensão biológica, ou melhor, o que se produz hegemonicamente sobre deficiência no saber biomédico, pode ser considerada dentro desse complexo relacional. Logo abaixo abordarei, mesmo que de maneira abrangente e histórica, a descrição biológica a qual me refiro, contudo já é preciso salientar que ela conecta-se à visão médica e anatômica de um organismo morfofuncional determinado e reconhecível sob o olhar objetivo do saber biomédico. Para essa maneira de pensar deficiência, o corpo deficiente é aquele que possui determinado déficit, perante uma norma estabelecida, seja ele efeito de variadas naturezas e causas (desde o ser mulher, negro(a), desejar pessoas do mesmo sexo ou desejar que uma de suas pernas sejam amputadas85, não possuir visão ou sentir dores crônicas). O corpo então é receptáculo da deficiência, de um atributo, congênito ou adquirido, organicamente deficitário, um defeito, falha, lesão, que impeça o funcionamento considerado normal do corpo humano. Nesse sentido, colocar a deficiência dentro de um complexo relacional, como mencionei, implica em pensar a

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Aqui me refiro às pessoas conhecidas como wannabes (querem ser). Os e as wannabes são pessoas que, de maneira geral, querem ter seus corpos transformados em ‘deficientes’ através de intervenções médicas, como amputações e paralizações. Segundo o blog ‘O Universo dos Desejos Tortos’ < http://deficientesedevotees.blogspot.com.br/ >: “São considerados wannabes pessoas que de fato tentaram uma auto mutilação e estão intrinsecamente ligados à amputação”. O caso de maior repercussão midiática sobre esse ponto se deu no começo dos anos 2000, quando tornaram-se públicas as cirurgias de amputação voluntária de membros saudáveis (de duas pessoas sem deficiências) feitas pelo cirurgião escocês Robert Smith ao fim dos anos 1990 (ELLIOTT, 2000; SULLIVAN, 2005; BAYNE; LEVY, 2005). Smith se defendeu da opinião pública chocada com as intervenções desnecessárias em um artigo de 2004 no qual aborda que as pessoas que o buscaram para realizar as operações sofriam de Transtorno da Identidade Amputada (Amputee Identity Disorder) (SMITH, 2004).

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deficiência como fruto de um conjunto de relações sociais, culturais, históricas e políticas, principalmente pela perspectiva crítica ao 'discurso pela falta', levado pela medicina, ser ligado as movimentações politicas das pessoas deficientes pelo mundo. Então, não é considerar o corpo deficiente como um espaço de ausências, como não é só criticar o discurso biomédico como simples normalizador de corpos, mas tentar alocar historicamente determinados conhecimentos e discursos como mediadores dos entendimentos sobre os corpos e não meros descritores neutros do que seriam as diferentes formas, culturais ou não, de possuí-los. Através do discurso biomédico, por exemplo, alguns corpos puderam ser hegemonicamente reconhecidos e caracterizados como deficientes, ou seja, o conhecimento médico, anatômico e fisiológico do corpo humano estabeleceu uma norma, uma estatística mensurável de como o corpo humano deveria ser e se comportar (ORTEGA, 2008). O ideal de um corpo a ser alcançado é substituído por uma norma mensurável de lógicas orgânicas e populacionais. Essa norma é uma descrição estatística da morfologia e cognição humanas que passa a ser considerada média em uma população. Todos os desvios desse ponto normal passam a ter que ser examinados e classificados (DAVIS, 2006c). Segundo o histórico das práticas de normalização abordado pelo sociólogo Richard Miskolci (2005, p. 10) o que acontece durante o século XIX é o crescente avanço da '[...] medicina social, a qual passou a enquadrar as práticas sociais a partir de seus próprios conceitos. Progressivamente toda forma de comportamento que não se enquadrava no crescente padrão burguês de sociabilidade passou a ser vista como anomalia e desvio'. Com isso, Miskolci (2005, p. 12) nos alerta que 'fenômenos históricos e socialmente criados' - como a prostituição, criminalidade, desemprego - 'passam a ser vistos de maneira naturalizada' principalmente a partir do desenvolvimento dos grandes centros urbanos característicos do avanço capitalista e da organização social burguesa. Ecoando as análises do filósofo francês Michel Foucault, o autor explica que 'todo desvio passou a ser considerado doença, assim como o desviante passou a ser declarado um degenerado' devido ao advento do poder disciplinar, 'um meio de intervenção e normalização social que foi responsável pela criação do desvio' (MISKOLCI, 2005, p. 12). Para esse sociólogo (MISKOLCI, 2005, p. 13) [...] o poder disciplinar se caracteriza por uma técnica positiva de intervenção e controle social baseada na norma, a qual qualifica e corrige ao mesmo tempo. A norma não visa excluir, antes é a pedra de toque de uma técnica positiva de intervenção e

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transformação social. Os dissidentes passam a ser classificados e corrigidos. Seria dessa forma, então, que o desvio - como um perigo a integração social - se originaria em um momento histórico de constante vigilância sobre a vida humana, uma constante observação quantificável e normalizadora sob o poder do discurso médico social. Essa relação recíproca entre o desvio e a normalização que o produz, só é possível a partir da consolidação do biopoder no século XVIII. Novamente ecoando Foucault, Miskolci (2005, p. 13) nos indica que biopoder é 'um conjunto de práticas e discursos que constituem a sociedade burguesa através do foco nos corpos e na vida' (ênfases minhas). O biopoder se preocupa em gerenciar, através de uma política da vida, a reprodução social, econômica e biológica necessária a manutenção dessa ordem social e moral burguesa que já vinha se estabelecendo desde o começo século XIX. Nas palavras de Michel Foucault (1999, p. 293): “A biopolítica lida com população, e a população como problema político, como problema a um só tempo científico e político, como problema biológico, como problema de poder [...]”. Para Francisco Ortega o corpo contemporâneo está emaranhado em um discurso bioascético sobre saúde que o autor denomina healthism86. Healthism ‘que pode ser traduzido como a ideologia ou a moralidade da saúde’ é ‘a forma que a medicalização adquire na biosociabilidade’. Segundo esse filósofo, foi com tal moralidade que “a saúde tornou-se não só uma preocupação, tornou-se também um valor absoluto um padrão para julgar um número crescente de condutas e fenômenos sociais. Menos um meio para atingir outros valores fundamentais, a saúde assume a qualidade de um fim em si [...]” (ORTEGA, 2008, p. 31). Assim, “força, rigidez, juventude, longevidade, saúde, beleza são novos critérios que avaliam o valor da pessoa e condicionam suas ações” (ORTEGA, 2008, p. 34). O eu que busca ser ‘saudável’ precisa ser ‘refletido’ na materialidade do corpo, que também terá aspectos de boa saúde. Um empreendimento moral se dá entre ‘essência’ e ‘aparência’. Para Ortega, a vigilância do corpo – para manutenção de suas boas capacidades funcionais - e a tentativa de discipliná-lo - para extrair-lhe todas suas

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Mesmo Francisco Ortega não mencionando, este conceito já encontrava-se em circuito sociológico desde o final dos anos 1970. A edição Disabling Professions (1977) traz um texto do sociólogo Irving Zola chamado Healthism and Disabling Medication. Devido a influência deste sociólogo para os disability studies, as ideias do ‘saudismo’, podem ser consideradas como um espectro de suas investigações sociais sobre deficiência.

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potencialidades - possibilita pensar o corpo contemporâneo como extremamente maleável, como uma tela em branco em que o indivíduo irá se expressar. Essa flexibilidade, essa capacidade do eu de modular a corporalidade, baseia-se numa normativa de “contenção de riscos que orienta suas escolhas comportamentais” a partir da responsabilidade individual. Nas palavras de Ortega (2008, p. 33) Na atualidade, [n]o discurso do risco [...] o indivíduo se constitui como autônomo e responsável, [...] [tendo seu] corpo e o self modelados pelo olhar censurador do outro que leva à introjeção da retórica do risco, resultando na constituição de um indivíduo responsável, que orienta suas escolhas comportamentais e estilos de vida para a procura da saúde e do corpo perfeito e o afastamento dos riscos [que poderiam abalar sua a integridade orgânica] O que quero mostrar com essa colocação de Francisco Ortega é a alocação histórica de determinadas maneiras de pensar o corpo. Nesse sentido, quando o autor se refere ao “portador de deficiência”, como ànalogo ao “corpo envelhecido”, “gordo”, “da mulher”, ele está se referindo à deficiência como uma relação geral, um efeito da nossa biosociabilidade – calcada em pressupostos fisicalistas – que depende da noção de déficit, como algo a ser compensado socialmente (ORTEGA, 2008, p. 36). Assim, a noção de deficiência surge como ancoragem para que o bioascestismo continue a propagar como norma os corpos malhados do fitness e ágeis e jovens do capitalismo flexível. Ao mesmo tempo que a ênfase na autonomia do indivíduo sobre si, que será medida na capacidade de cada um manter seu corpo o mais saudável e o mais integro possível, fará de determinados corpos objetos morais, uma vez que aqueles considerados incapazes serão medidos de acordos com seus déficits, suas deficiências a serem compensadas socialmente. Bem, essa é uma leitura sobre deficiência. Uma leitura que aborda não só deficiência, como mencionei, mas o corpo, a corporalidade contemporânea mediada por essas relações biossociais ao mesmo tempo que é fruto dessa mesma biosociabilidade. Essa consideração do corpo humano, segue a genealogia foucaultiana do biopoder. A materialidade corporal, antes de mais nada, é uma possibilidade discursiva. Se no biopoder as instituições em principal vigiavam e puniam os corpos – que internalizava a disciplina e produzia o sujeito - na biosociabilidade algumas mudanças ocorrem e essa disciplina corporal se volta para si; o indivíduo irá se medir com relação a si mesmo, primeiramente, através de seu corpo. Esse posicionamento é ascético na medida em que 63

exige uma ‘superação/transmutação’ de algo pelo indivíduo, mas é bioascético quando essa superação/transmutação se volta cada vez mais para produção de individualidades corporais com barreiras cada vez mais definidas em torno de um corpo moralmente e organicamente saudável (ORTEGA, 2008). Com tais considerações históricas, quero retomar o argumento da socióloga já citada Raewyn Connel que exemplifica dizendo que as próprias ciências biomédicas têm reconhecido que os corpos também são resultados de processos sociais e pontua que “biologia e sociedade não podem ser mantidas separadas; mas também não podem ser simplesmente somadas” e defende que, sobre essa relação, “uma interconexão mais profunda e complexa deve ser reconhecida”87 (CONNEL, 2011, p. 1370). É sobre esse noção que a autora irá situar a 'abordagem construcionista social sobre deficiência', insurgente nos anos 1980, perante um contexto histórico de ideias críticas às classificações estanques biomédicas que ocorriam em outras áreas do conhecimento. Além da sociologia, o ‘feminismo, estudos da ciência e tecnologia, estudos culturais, saúde pública, pesquisa sobre sexualidade e outros’ - áreas que foram produtoras de variadas referencias para os disability studies – possibilitaram o reconhecimento da 'capacidade das estruturas sociais e dos discursos culturais em separar e definir corpos, além de moldar experiências corporais' (CONNEL, 2011, p. 1368). Utilizando o modelo social britânico como exemplo, por ter sido uma maneira de resistir ao domínio biomédico da 'política da deficiência' (disability policy), a autora ressalta que o grande foco desse modelo no sistema social como determinante da deficiência, não “[...] reconhece a agência dos corpos, não somente sua materialidade enquanto objeto, mas também seu poder produtivo nas relações sociais” (CONNEL, 2011, p. 1370)

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. Para esta autora esse reconhecimento possibilita pensarmos tais

relações através de seu conceito de 'corporificação social' (social embodiment). Segundo Connel (2011, p. 1370-1), esse conceito refere-se [...] ao processo reflexivo e coletivo que emaranha corpos nas dinâmicas sociais e dinâmicas sociais nos corpos. Quando falamos em 'deficiência', enfatizamos o primeiro lado da corporificação social, o modo que corpos são participantes nas dinâmicas sociais; quando falamos de 'lesão', enfatizamos o

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Biology and society cannot be held apart; but also cannot simply be added together. A much deeper and more complex interconnection must be acknowledged. 88 […] recognize the agency of bodies, not only their materiality as objects, but also their productive power in social relationships.

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segundo lado, o modo que as dinâmicas sociais afetam os corpos89. As ponderações colocadas por essa socióloga são importantes, pois concebem as problemáticas sobre deficiência a partir de uma crítica bem comum hoje aos(as) pesquisadores(as) da área dos disability studies, a de tentar superar as dicotomias inerentes ao próprio campo - como a operada, mais diretamente pelo modelo social britânico, entre lesão e deficiência. Alguns trabalhos brasileiros que articulam suas questões no marco teórico dos disability studies, os quais foram analisados nesta pesquisa (e que sem dúvida me guiaram com suas percepções teórico-metodológicas, sendo de extrema importância para conhecimento e busca de novas referências bibliográficas) - como os de Mello (2009), Peter Torres Fremlin (2011) - são exemplos recentes de como o corpo deficiente tem sido privilegiado metodologicamente, problematizado em suas aparentes certezas objetivas e deslocado de sua condição anterior às próprias relações sociais e interpessoais daqueles e daquelas já considerados deficientes. Mello (2009) e Fremlin (2011) partem de investigações antropológicas sobre corpo, subjetividade e pessoa, se valendo do método etnográfico para compreender como essas categorias se formam e concatenam-se na experiência vivida das pessoas deficientes. A abordagem antropológica do trabalho de Anahi Guedes de Mello (2009, p. 12) sobre deficiência é aquela que ‘englobaria os diferentes sentidos ou modos de definila, percebê-la, vivenciá-la, tratá-la, etc., o que nos remonta às categorias nativas em torno da experiência da deficiência’. Assim a autora nos indica que um dos objetivos de seu trabalho é pensar [...] como a deficiência é articulada pelas pessoas com deficiência, através de suas narrativas, tendo como foco de análise as questões de construção da pessoa, do corpo e da subjetividade. O objetivo é compreender como essas categorias se articulam na manifestação da deficiência como parte da identidade política das pessoas com deficiência. (MELLO, 2009, p. 11) A outra proposta antropológica sobre deficiência que me referi, a do antropólogo Peter Fremlin (2011) difere um pouco da visão anterior, mas não a exclui. Nessa

[…] to the collective, reflexive process, that embroils bodies in social dynamics, and social dynamics in bodies. When we speak of ‘disability’, we emphasize the first side of social embodiment, the way bodies are participants in social dynamics; when we speak of ‘impairment’, we emphasise the second side, the way social dynamics affect bodies. 89

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abordagem uma das coisas que o pesquisador buscará é dar conta do que chama de ‘corporalidades’. Nesse sentido é valido citar em especifico a própria fala do autor sobre seu trabalho, que a meu ver, resume bem a problemática que aborda Não se trata da ‘deficiência’ de uma pessoa, ou como essa ‘deficiência’ é construída, mas de desenvolver uma visão para entender corpos e seus movimentos que não se limite à noção de ‘deficiência’. Chamo essa visão mais ampla de ‘corporalidades’. [...] Definirei corporalidades como conjunções entre corpos, objetos e palavras. (FREMLIN, 2011, p. 4-5) Para Fremlin a tríade corpos-objetos-palavras formam a maneira 1) em que alguém apreende o próprio ‘corpo’, que pode ser dependente de outros corpos para transitar (por exemplo, alguém que necessite ter sua cadeira de rodas empurrada); 2) como o ‘objeto’ necessário à locomoção, como muletas, são dependentes de conjunções materiais para esses deslocamentos (como ruas, calçadas, ônibus etc.); e 3) como essas movimentações e conflitos são discursados e interpretados (FREMLIN, 2011, p. 5). Assim, Peter Fremlin pode perceber, ao mesmo tempo, ‘corporalidades como as relações que constroem o corpo e a sua inserção no mundo’ quanto entender ‘os limites físicos do corpo e as suas circunstâncias’ (FREMLIN, 2011, p. 6). Em resumo, o pesquisador está mais “interessado em ver o que alguém faz com o ‘comprometimento’ do seu corpo do que em relativizar a noção de comprometimento” (FREMLIN, 2011, p. 7). Foi a partir da leitura desses trabalhos mais recentes que pude notar o crescente interesse em se focalizar o corpo, o corpo considerado deficiente, entre os(as) teóricos(as) envolvidos(as) nos disability studies. Foi a partir delas que resolvi investigar brevemente, então, como esse corpo se torna tão produtivo teoricamente. Como tentei argumentar, o ‘corpo deficiente’ sempre figurou como um dos pontos chaves para se teorizar e problematizar socialmente a deficiência. Se em um primeiro momento a tentativa nos estudos que se configuraram posteriormente como disability studies era desvincular o corpo ‘deficitário’ e ‘lesionado’ – do discurso biomédico – como causa da segregação e opressão social sofrida pelas pessoas deficientes – que por sua vez eram reduzidas às representações medicalizadas de suas supostas ‘disfunções’; em outro instante, conforme as posições políticas das pessoas deficientes ganhavam maior visibilidade, juntamente com seus corpos, durante o fim do século XX, o movimento teórico nos disability studies em busca de ressignificar o ‘corpo deficiente’ das representações normativas biomédicas, retirando as aspas dos termos ao afirmá-lo como lócus de disputas políticas e culturais e não mero receptáculo de doenças e falhas orgânicas que imediatamente causam 66

sofrimento e angústia. Nesse sentido a teórica feminista deficiente norte-americana Simi Linton (Apud. DAVIS, 1999, p. 500) provoca ao constatar que "[...] atualmente nós [deficientes] estamos em toda parte, rodando e mancando pela rua, batendo nossas bengalas, chupando nossos tubos de respiração... Podemos babar, falar em sílabas entrecortadas, usar cateteres para recolher a nossa urina, ou viver com um sistema imunológico comprometido"90. De maneira semelhante Diniz (2007, p. 7-8), no começo de seu livro ao retomar a história do escritor argentino e cego Jorge Luís Borges, salienta que “ser cego é uma das muitas formas corporais de estar no mundo. Mas, como qualquer estilo de vida, um cego necessita de condições sociais favoráveis para levar adiante seu modo de vida”. Para Lennard J. Davis (1999, p. 500) essas movimentações, contestações e aparições "[...] revelam algo do espectro que assombra a normalidade no final do século XX. Esse espectro pode ser aleijado, surdo, cego, espasmático, ou cronicamente doente, mas claramente não está mais disposto a ser relegado às margens da cultura e do estudo acadêmico"91. Diante desse contexto buscarei fechar o texto explorando algumas temáticas específicas, insurgentes entre o fim dos anos 1990 e meados dos anos 2000, que têm tido grande ressonância na atualidade, principalmente por questionarem tanto os pressupostos internos ao campo dos disability studies com relação ao corpo deficiente, quanto por se manterem alinhadas a um compromisso crítico de teorizar social e culturalmente a deficiência, incluindo suas bases históricas. Minha intenção não é abordar essas temáticas como

o

suprassumo

das

teorias

sociais

contemporâneas

sobre

corpo-

deficiente/deficiência, mas indicar minimamente o que elas apresentam de possibilidades para futuras problematizações no campo dos disability studies. 3.2 Corporalidade em foco: fenomenologia, sexualidade e o corpo “perfeito” em algumas abordagens nos disability studies Os teóricos britânicos Bill Hughes e Kevin Paterson, já citados neste trabalho anteriormente, foram um dos primeiros a absorver a noção feminista de deficiência

"[…] we are everywhere these days, wheeling and loping down the street, tapping our canes, sucking on our breathing tubes... We may drool, speak in staccato syllables, wear catheters to collect our urine, or live with a compromised immune system” 91 “[…] it reveals something of the specter haunting normality at the end of the twentieth century. That specter may be crippled, deaf, blind, spasming, or chronically ill, but it is clearly no longer willing to be relegated to the fringes of culture and academic study.” 90

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corporificada perante seus colegas britânicos mais afeitos às teorizações estruturais do modelo social. Para eles, mesmo o modelo social sendo uma importante crítica ao modelo médico, há uma convergência entre as duas abordagens, uma vez que ambos lidam com o corpo deficiente como se fossem sinônimos de lesão, ou, nas palavras de Hughes e Paterson (2007, p. 329) criam suas problemáticas a partir do “modelo biomédico de corpo como ‘maquina imperfeita’”92. Quando o modelo social britânico estabelece a divisão entre lesão e deficiência, o debate em torno da deficiência perde seu senso biológico e médico, porém o ‘corpo deficiente’ do discurso biomédico cede espaço ao ‘corpo lesado’ do modelo social (HUGHES & PATERSON, 1997). Segundo os autores “a distinção entre deficiência e lesão desmedicaliza a deficiência, mas ao mesmo tempo deixa o corpo lesado na jurisdição exclusiva da hermenêutica médica [...] A relação das pessoas deficientes com seus corpos é mediada pela medicina e terapia, e não tem nada a ver com normas e política 93 (HUGHES & PATERSON, 1997, p. 330, 331). Em resumo, enquanto para medicina, deficiência e lesão são praticamente sinônimos da materialidade de determinados corpos, para o modelo social a deficiência não possui materialidade corporal alguma, uma vez que sua causa são as estruturas sociais do capitalismo. Assim, quando o modelo social retira o fundacionalismo biológico desse embate, o corpo individual continua sendo um corpo lesado/defeituoso, pois se desvincula inteiramente da noção de deficiência como opressão produzida socialmente. A saída que Hughes e Paterson propõem ao próprio modelo social e sua herança dicotômica cartesiana é o que denominam de “sociologia da lesão” (sociology of impairment). Os autores não pontuam uma definição exata do que seria tal sociologia, mas argumentam implicitamente que ela traz “[...] uma necessidade epistemológica, [a de] que o corpo lesionado é parte do domínio da história, cultura e significado, e não como a medicina o considera - um objeto a-histórico, pré-social e puramente natural (HUGHES & PATERSON, 1997, p.326)”94. O caminho teórico que a sociologia da lesão deve perseguir para constituir suas bases seriam o pós-estruturalismo e a fenomenologia.

biomedical 'faulty machine’ model of the body The distinction between disability and impairment de-medicalises disability, but simultaneously leaves the impaired body in the exclusive jurisdiction of medical hermeneutics […] The relationship of disabled people to their bodies is mediated by medicine and therapy, and has nothing to do with policy and politics 94 […] an epistemological necessity, that the impaired body is part of the domain of history, culture and meaning, and not - as medicine would have it - an ahistorical, pre-social, purely natural object. 92 93

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Argumentando que a “linguagem e metáfora são veículos que dão sentido a sensações e ações corporais” os autores apontam que o pós-estruturalismo leva essa noção um pouco mais adiante ao defender que "devemos entender a linguagem em termos de seus efeitos" além de sugerir "que as sensações somáticas em si são discursivamente construídas" (HUGHES & PATERSON, 1997, p. 332) 95. Mencionando Michel Foucault e Judith Butler como pós-estruturalistas, Hughes e Paterson (1997, p. 333) indicam que nas abordagens desse e dessa filósofo(a) o "significado segue a nomeação (ou o rótulo do diagnóstico), e sua iteração e reiteração produz um tipo particular de corpo com seus sinais, sintomas, comportamento e expectativas normativas. [...] Lesão, em outras palavras, é um produto das práticas discursivas; como o sexo é um efeito, em vez de uma origem [...]"96. Entretanto, mesmo considerando a abordagem pós-estruturalista válida, é na fenomenologia que a sociologia da lesão parece se apoiar mais fortemente. Os autores indicam que os pós-estruturalistas “trocam o essencialismo biológico pelo discursivo” (HUGHES & PATERSON, 1997, p. 333) e, por isso, não dão conta de explorar a dimensão vivida do corpo. Recapitulando o fenomenólogo97 Merleau-Ponty, Hughes e Paterson (1997, p. 334) sustentam que "[...] O corpo - seja lesado ou não - é um agente sensível, ele próprio um sujeito e, portanto, um local de significado e fonte de conhecimento sobre o mundo. O corpo deficiente é um ‘corpo vivido’”98. Assim, uma “sociologia do corpo fenomenológica” postula que “o social é corporificado e o corpo é social” o que equivaleria dizer, na proposta desses autores, que “deficiência é corporificada e a lesão é social” (HUGHES & PATERSON, 1997, p. 336) 99.

“Language and metaphor are vehicles for making sense of bodily sensations and actions” ; “we should understand language in terms of its effects” ; “that somatic sensations themselves are discursively constructed” 96 “Meaning follows the name (or diagnostic label), and its iteration and re-iteration produce a particular genus of body with its appropriate signs, symptoms, behavior and normative expectations. […] Impairment, in other words, is a product of discursive practices; like sex it is an effect, rather than an origin […]” 97 Segundo Bill Hughes e Kevin Paterson (1997, p. 336) a "Fenomenologia interroga o ‘mundo sentido’, em que o carnal, o emocional, o cognitivo e o cultural são indistinguíveis. ‘A experiência vivida’ é em si um conceito que se refere ao colapso desses domínios analiticamente separados em uma unidade perceptiva [...]" [Phenomenology interrogates the ‘felt world’ in which the carnal, the emotional, the cognitive and the cultural are indistinguishable. ‘Lived experience’ is itself a concept that refers to the collapse of these analytically separable domains into a perceptual unity […]] 98 “[…] the body - be it impaired or not - is an experiencing agent, itself a subject and therefore a site of meaning and source of knowledge about the world. The impaired body is a ‘lived body’”. 99 “phenomenological sociology of the body”; “the social is embodied and the body is social’; “disability is embodied and impairment is social” 95

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Ainda com relação a separação lesão e deficiência, outra autora que se destacou nas leituras que tive acesso foi a também já referida teórica canadense Shelley Lynn Tremain. Como mencionei [ver nota 48 na primeira seção desta pesquisa], essa teórica entra em discussão com o modelo social da deficiência britânico, mas não parte de sua dicotomia para problematizar a deficiência como produto histórico e cultural (TREMAIN, 2005, 2006, 2010). Em um texto de 2000, Tremain (p. 292) discute as possíveis intersecções entre “identidades e sexualidades queer” e a sexualidade dos e das deficientes abordadas em estudos recentes (na época) denominados pela autora como “estudos da sexualidade deficiente” (disabled sexuality studies). Sua proposta é menos afirmar a positividade das “experiências de deficientes queer” (experiencies of disabled queers) do que “[...] produzir um trabalho que seja mais astuto teórica e politicamente do que o feito no passado” em que “teóricos(as) e pesquisadores(as) no campo dos estudos da sexualidade deficiente (e nos disability studies de maneira geral) revisem suas concepções de sexo e gênero que assumem em suas análises” (TREMAIN, 2000, p. 292) 100

. Na verdade, a autora está criticando certa “matriz heterossexual” (TREMAIN,

2000, p. 298) presente nas discussões de deficiência que se interseccionam com a já reconhecida categoria de gênero, pois, segundo a autora, tais discussões estão fixadas no sistema binário de interpretação do sexo/gênero operacionalizado primeiramente nas ciências sociais pela feminista e Antropóloga cultural Gayle Rubin (TREMAIN, 2000, p. 293). Neste sistema, sexo e gênero são opostos em que o primeiro termo é pré-discursivo, atributo ou propriedade intrínseca aos corpos, enquanto o segundo é uma interpretação ou expressão cultural especifica e variável. Nesse sentido, como parte de suas críticas, Shelley Tremain relembra que Foucault no seu livro História da Sexualidade – A Vontade de Saber indica que “[...] a categoria fantasmática do ‘sexo’ facilita a inversão de relações causais pelo qual ‘sexo’ (um efeito das relações de poder hegemônicas) efetivamente passa como causa de um desejo humano heterossexual naturalizado” (TREMAIN, p. 296) 101. A proposta de Michel Foucault serve para a autora reconstituir minimamente parte das críticas a essa divisão binaria insurgente no feminismo de segunda onda,

[…] to produce work that is more theoretically and politically astute than that done in the past, theorists and researchers in the field of disabled sexuality studies (and in disability studies more broadly) must revise the conceptions of sex and gender they assume in their analyses. 101 […] the phantasmatic category of ‘sex’ facilitates a reversal of causal relations whereby ‘sex’ (an effect of hegemonic power relations) actually comes to pass as the cause of a naturalized heterosexual human desire 100

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enquanto lança mão da filósofa feminista Judith Butler para questionar tanto a materialidade pré-discursiva do sexo, quanto para argumentar, como numa analogia ao problema de gênero alanvacado por Butler, que o próprio corpo não é independente e anterior aos discursos autorizados sobre ele. Segundo Tremain (2000, p. 297) “Butler argumenta que ‘sexo’ não pode ser pensado como antecedente ao gênero como a distinção entre sexo-gênero indica, uma vez que o próprio gênero é exigido a fim de pensar ‘sexo’ no final das contas.”102 103 É com base nesses discursos críticos sobre as pressuposições do sexo como elemento natural em que o gênero incide culturalmente sobre, que a autora fará sua analogia crítica com relação à separação entre deficiência e lesão. Entrando no embate direto com os proponentes britânicos dessa divisão, Tremain (2006, p. 191) argumenta que nos termos desse modelo “lesão não é igual, tampouco causa a deficiência”, porém, de maneira implícita, continua Tremain, para esse mesmo modelo “lesão é uma condição necessária para deficiência”104, uma vez que esses modelistas não consideram como deficientes nem as pessoas discriminadas e excluídas por causa de sua cor (raça/etnia) e nem as estigmatizadas por serem intersexuadas (exemplos usados pela autora). A intenção da pesquisadora com essa retórica é mostrar o caráter específico, político e histórico da própria lesão105. É válido citar integralmente o trecho do texto acima referido para termos uma noção mais nítida com o que Tremain (2006, p. 192) se preocupa: Se as ‘lesões’ que supostamente embasam a deficiência são na verdade constituídas a fim de manter, e até mesmo aumentar, os arranjos sociais atuais, elas não devem mais ser teorizadas como características (atributos) essenciais, biológicas de um corpo ‘real’ em que condições reconhecidamente deficientizantes são impostas. Em vez disso, tais lesões supostamente ‘reais’ devem agora ser identificadas como construções de um saber/poder Butler has argued that ‘sex’ cannot be thought as prior to gender as the sex-gender distinction implies, since gender is required in order to think ‘sex’ at all. 103 Para uma noção de como a categoria de gênero (o que designa alguém como masculino e feminino) já está de certa maneira implícita nas distinções anatomofisiológicas do sexo (o que designa alguém como macho ou fêmea) ver: LEITE JUNIOR, Jorge. Nossos Corpos Também Mudam (2011). Numa investigação histórica de tais categorias esse sociólogo demonstra como a figura ambígua ocidental do hermafrodita serviu de ancoragem para a busca de distinções cada vez mais objetivas entre o que significa ser homem ou mulher de ‘verdade’. 104 “impairment neither equals, nor causes, disability”; “impairment is a necessary condition for disability” 105 A respeito dessa problematização histórica entre deficiência e lesão Lennard J. Davis - ao colocar em dúvida se devemos caracterizar como lesão ou deficiência condições consideradas doenças hoje e que não existiam no passado, como anorexia ou Transtorno do Déficit de Atenção (DAVIS, 2006d, p. 237) – provoca: “Nos é intrínseca a lesão, ou ela pode ser uma criação de um complexo médico-tecnológico-farmacêutico?” (DAVIS, 2006d, p. 238). [“Is the impairment bred into the bone, or can it be a creation of a medical—technological—pharmaceutical complex?”] 102

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disciplinar que são absorvidas nos auto-entendimentos de alguns sujeitos. Como efeitos de um discurso político historicamente específico (ou seja, o biopoder), as lesões são materializadas como atributos universais (propriedades) dos sujeitos através da iteração e reiteração de normas e ideais de regulação culturalmente específicos sobre (por exemplo) a função e estrutura humana, competência, inteligência e capacidade. Como atributos universalizados de sujeitos, e além disso, as lesões são naturalizadas como uma identidade interior ou essência em que a cultura age de forma a camuflar as relações de poder historicamente contingentes que as materializaram como natural. Em suma, lesão tem sido deficiência o tempo todo.106 De acordo com a pesquisa que realizei, Shelley Tremain é uma das primeiras autoras no marco dos disability studies a lidar com as possíveis intersecções entre as teorias sociais sobre deficiência e as noções críticas e históricas sobre sexualidade propostas pela teoria queer (MCRUER, 2006, p. 210). Também é reputado ao livro Exile and Pride - Disability, Queerness and Liberation de 1999, da ativista queer e deficiente Eli Clare, uma das primeiras obras a abordar tais intersecções (MCRUER, 2006, p. 210). Em 2003, o periódico internacional de estudos gays e lésbicos GLQ publica um número especial chamado Desiring Disability: Queer Theory Meets Disability Studies107 (em uma tradução livre teríamos algo como “Desejando Deficiência: Teoria Queer Encontra os Disability Studies”) organizado por Robert Mcruer e Abby L. Wilkerson. Trago essas informações por dois motivos: 1) indicar um profícuo campo de investigação que, infelizmente, não poderei traçar aqui e agora qualquer genealogia de suas possíveis origens e desdobramentos durante os anos 2000; 2) salientar a importante contribuição de um dos editores desse mencionado número especial da GLQ, Robert Mcruer, para os chamados queer/disability studies e que tive a oportunidade de acessar108. If the “impairments” alleged to underlie disability are actually constituted in order to sustain, and even augment, current social arrangements, they must no longer be theorized as essential, biological characteristics (attributes) of a “real” body upon which recognizably disabling conditions are imposed. Instead, those allegedly “real” impairments must now be identified as constructs of disciplinary knowledge/power that are incorporated into the self-understandings of some subjects. As effects of an historically specific political discourse (namely, bio-power), impairments are materialized as universal attributes (properties) of subjects through the iteration and reiteration of rather culturally specific regulatory norms and ideals about (for example) human function and structure, competency, intelligence, and ability. As universalized attributes of subjects, furthermore, impairments are naturalized as an interior identity or essence on which culture acts in order to camouflage the historically contingent power relations that materialized them as natural. In short, impairment has been disability all along. 107 O número pode ser visualizado nesse endereço: http://glq.dukejournals.org/content/9/1-2.toc 108 Agradeço especialmente ao Quereres - Núcleo de pesquisa em Diferenças, Gênero e Sexualidade, principalmente sob as figuras do coordenador do grupo, Prof. Dr. Richard Miskolci, e de meu orientador, Prof. Dr. Jorge Leite Junior, por me proporcionarem gentilmente o acesso 106

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A contribuição de Mcruer a qual me refiro é seu livro Crip Theory – Cultural Signs of Queerness and Disability (2006)109. Uma das principais intenções deste teórico é mostrar como a noção de able-bodied tem sido colocada “como uma não-identidade, como a ordem natural das coisas” (1). Segundo Mcruer, ao buscar uma definição para o termo nos dicionários, argumenta que “ter um corpo capaz/apto” é estar “livre de deficiências físicas, e ser capacitado para os esforços físicos que [um corpo livre de deficiências] requer; em boa saúde corporal; robusto” (MCRUER, 2006, p. 7) 110. Assim como a heterossexualidade que, para se constituir e manter-se como a ordem natural das coisas (invisível/natural/normal) teve que especificar e corporificar no ‘homossexual’ uma ameaça a essa suposta ordem natural (1), o “corpo normal, sem deficiências” (able-body) só pode surgir em um sistema de ‘normalidade compulsória’ em que se especifica e corporifica na figura do(da) “deficiente” sua oposição. Nesse sentido, Robert Mcruer (2006, p. 6-7) relembra que anos de crítica feminista e queer tornaram possível atualmente […] reconhecer prontamente que heterossexuais e homossexuais na verdade não são identidades iguais e opostas. Em vez disso, a subordinação contínua da homossexualidade com relação a heterossexualidade permite a esta ser institucionalizada como "as relações normais entre os sexos", enquanto a institucionalização da heterossexualidade como as "relações normais entre os sexos" permite a subordinação da homossexualidade111. Able-bodiedness é, em última instancia, oposta a deficiência – e conceitualmente definida pelas instituições que a contém. Assim como a heterossexualidade é compulsória - em sua lógica que se dissemina a partir da contenção da existência homossexual como uma ‘anormalidade’, um ‘desvio’ - a compulsão pelo corpo-sem-deficiência (ablebodied) se dá pela contenção de existências deficientes, também consideradas ‘anormais’ a determinadas leituras, através da aquisição de 3 obras internacionais sobre disability studies para a biblioteca do núcleo, que foram fundamentais para o desenvolvimento das problemáticas de pesquisa aqui brevemente apontadas. São elas: Handbook of Disability Studies (2001); Disability Studies: Enabling the Humanities (2002); Crip Theory: Culural Signs of Queerness and Disability (2006). 109 Devido aos propósitos desta pesquisa discorrerei brevemente sobre alguns pontos do livro encontrados fundamentalmente na introdução, o que me permite dar um panorama geral sobre a obra e, principalmente, como esse autor aborda o corpo deficiente. 110 “having an able body” ; “free from physical disability, and capable of the physical exertions required of it; in bodily health; robust.” 111 […] to acknowledge quite readily that heterosexual and homosexual are in fact not equal and opposite identities. Rather, the ongoing subordination of homosexuality to heterosexuality allows for heterosexuality to be institutionalized as “the normal relations of the sexes,” while the institutionalization of heterosexuality as the “normal relations of the sexes” allows for homosexuality to be subordinated

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e ‘desviantes’. Então, able-bodiedness e heterossexualidade se entrelaçam, a partir de discursos normativos quando, para restaurar um estatuto de naturalidade da heterossexualidade ameaçada, por exemplo, lança-se mão da “marginalidade homossexual”

como

“desvio”

físico/comportamental.

Em

suma,

evoca-se

a

homossexualidade como uma deficiência materializada a partir do binário hétero/homo, postulando

outro

binarismo:

a

heterossexualidade

como

normalidade

corporal/comportamental (able-bodied) e a homossexualidade como anormalidade (disability) visível, especificada em um corpo incapaz (disabled body) de seguir a ordem heterossexual. Nas palavras de Mcruer (2006, p. 32) a Heterossexualidade compulsória se confunde com a ablebodiedness compulsória; ambos os sistemas funcionam para (re)produzir o corpo capaz e a heterossexualidade. Mas, precisamente porque estes sistemas dependem de uma existência queer/deficiente que nunca pode ser exatamente contida, a hegemonia da heterossexualidade do corpo-capaz/apto está sempre em perigo de colapso112. Em outras palavras, assim como 'homosexualidade e deficiência' se entrelaçam em suas alocações ‘anormais’, bem como a teoria queer e os disability studies, para Mcruer existe uma 'conexão entre heterossexualidade e uma identidade able-bodied' pouco explorada, contribuindo para que essas duas noções permaneçam como 'ordem natural das coisas' (MCRUER, 2006). Diante desse contexto, a proposta de Robert Mcruer, é problematizar as contenções normativas de determinados corpos e comportamentos. Voltando-se mais especificamente para as problemáticas relativas à deficiência, o autor sugere o desenvolvimento do que chama de ‘teoria crip’ (crip theory). Fazendo uma analogia ao termo queer, a palavra crip é diminutivo de cripple, que pode ser traduzida como aleijado(a), defeituoso(a) e tem sido resignificada e usada de maneira geral e estratégica, principalmente pela comunidade deficiente ativista, como uma tentativa de romper com definições estanques e objetivas que categorizam e especificam, perante uma norma préestabelecida, corpos, deficiências e comportamentos (MCRUER, 2006, p. 34). Nesse sentido, a ideia geral da teoria crip é perceber, nas palavras de Mcruer (2006, p. 33), “como corpos e deficiências foram concebidos e materializados em vários locais 112

Compulsory heterosexuality is intertwined with compulsory able-bodiedness; both systems work to (re)produce the able body and heterosexuality. But precisely because these systems depend on a queer/disabled existence that can never quite be contained, able-bodied heterosexuality’s hegemony is always in danger of collapse.

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culturais, e como podem ser entendidos e imaginados como formas de resistência à homogeneização cultural.”113

“how bodies and disabilities have been conceived and materialized in multiple cultural locations, and how they might be understood and imaged as forms of resistance to cultural homogenization.” 113

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4. Considerações finais Minha tentativa com esta investigação bibliográfica, apesar de ter sido breve em suas análises críticas, foi tentar mapear o máximo possível da atual situação das produções teóricas, dentro do campo das ciências sociais, sobre deficiência. Com essa meta tão abrangente, acabei encontrando relações em comum, e mais específicas, entre algumas produções sobre deficiência dentro das ciências sociais brasileiras e algumas bibliografias de origens norte-americana e britânica que versavam sobre deficiência como uma ‘construção social’. O ponto em comum entre elas era um marco teórico, um campo, uma ‘nova’ área de estudos reconhecida como disability studies ou estudos sobre/da deficiência. Tanto as obras brasileiras que analisei, quanto as norte-americanas e britânicas, se referiam a esses estudos como um espaço acadêmico privilegiado para se problematizar a deficiência. Deficiência não seria apenas mais um dado estatístico biológico, mas um processo social e cultural vivido por determinadas pessoas que, por sua vez, tem desafiado as noções que as totalizam como falhas ou defeitos perante uma suposta normalidade humana. Com essas indicações de possibilidades de se pensar a deficiência como um complexo de relações políticas e históricas fui delimitando meu campo bibliográfico de pesquisa e percebendo a ligação mútua entre toda uma movimentação política coletiva de deficientes, insurgente nos anos 1960, e o que posteriormente, nos anos 1980, começaria a ficar conhecido com disability studies. Foi um pouco dessas trocas que busquei elaborar brevemente na primeira parte do texto. Na segunda seção, já minimamente ambientado de maneira mais sistemática com o que chamava de disability studies, tentei articular algumas teorias mais recentes dentro desses estudos que percebia focalizar de maneira mais contundente o ‘corpo deficiente’ como um importante espaço de disputas teórico-políticas. Se em um primeiro movimento os disability studies retiram do corpo o peso por condições desigualmente sociais, um segundo movimento desses estudos argumentará que não basta somente retirar o corpo dessas disputas, mas antes colocá-lo sob outros termos que possibilitem pensá-lo também como elemento a ser resignifcado social, política, cultural e historicamente. Com isso, meu intuito não é produzir uma diretriz ou uma prescrição de qual caminho é melhor para se pensar criticamente a deficiência como um produto de relações sociais. Uma vez que o grande mote originário desses estudos acadêmicos foram as próprias experiências dos(as) deficientes, pensadas, problematizadas e transformadas por 76

eles(as) mesmos(as) em dados de pesquisa, as dimensões subjetivas e objetivas estiveram borradas desde o começo. Eu mesmo, ao ler estes textos e tentar minimamente sistematizar as informações encontradas ali – tentando dialogar com o que há de sociológico nessas discussões - me tornei inseguro em definir exatamente o que é deficiência. ‘Ser uma pessoa deficiente’ e pesquisar deficiência talvez implique em determinados ‘distanciamentos’ e ‘reaproximações’ com aquilo que se constitui como seu objeto; e nitidamente o objeto dos disability studies é a deficiência. O que quero explorar rapidamente nesse sentido é que minhas experiências com o que eu experimentava, conhecia e nomeava como deficiência, e que fizeram parte de toda minha vida (como deficiente), mudaram. A partir do acesso a essas teorias pude compreender que não só é possível ‘construir socialmente’ a deficiência – tentando separá-la do universo discursivo biomédico reducionista – como é possível pensá-la como uma identidade política instável e um ‘estilo de vida’ ambíguo que se constrói em oposição a qualquer maneira reducionista de se pensar sobre deficiência. Nesse sentido a análise de Stuart Hall (1997) me ajuda a argumentar que as identidades politicas se forjam mesmas a partir de uma relação com a cultura (significados compartilhados que tornam possível o reconhecimento mutuo das ações sociais), daquilo que se discursa – de maneira heterogênea – sobre o objeto. Com isso também acredito ser possível dizer que, se a deficiência e aquilo que se vincula culturalmente sobre ela é compartilhado socialmente, a própria deficiência é uma noção em efervescente disputa - seja entre os(as) que defendem a autoridade da experiência como a única fonte legítima de reconhecimento da deficiência como um processo político, seja entre os(as) que defendem a deficiência como uma categoria de análise social, uma variável importante para a compreensão das relações sociais.

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