Quem irá nos defender? Patriotismo constitucional e constitucionalismo popular em uma análise da PEC 33/2011 (Who will defend us? Constitutional patriotism and popular constitutionalism in an analysis of amendment proposal 33/2011)

July 17, 2017 | Autor: Andre Bogossian | Categoria: Constitutional Law, Political Theory, Constitutional Theory, Direito Constitucional
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Quem irá nos defender? Patriotismo constitucional e constitucionalismo popular em uma análise da PEC 33/2011 ANDRE MARTINS BOGOSSIAN L.M. candidate na Harvard Law School. Pesquisador Visitante na Brown University – Estados Unidos. Mestre em Direito (PUC-Rio). Graduado em Direito (UFRJ). Pesquisador da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (FGV Direito Rio). Advogado.

ALEXANDRE CORRÊA DE LUCA Mestrando em Direito (UFRJ). Graduado em direito (UERJ). Pesquisador da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro. Artigo recebido em 29/01/2015e aprovado em 11/05/2015.

SUMÁRIO: 1 Introdução 6HSDUD©¥RGHSRGHUHVGHVPLWLʼFDGD 3 O constitucionalismo popular HD¼OWLPDSDODYUDVREUHTXHVW·HVFRQVWLWXFLRQDLV 4 O patriotismo constitucional 5 Conclusão 6 Referências.

RESUMO: A Proposta de Emenda Constitucional no 3 de 2011 (PEC 33) foi duramente criticada, considerada uma séria violação à cláusula de separação de poderes SRU VXEPHWHU DV GHFLV·HV GR 6XSUHPR 7ULEXQDO )HGHUDO GH LQFRQVWLWXFLRQDOLGDGH de emendas constitucionais a posterior avaliação do Congresso Nacional e, ainda, GLUHWDPHQWHDRSRYR2REMHWLYRGHVWHWUDEDOKR«DSµVDGHVPLWLʻFD©¥RGDFO£XVXOD de separação de poderes, defender que o povo deve ser o último responsável pela guarda da Constituição, apoiando-se na teoria habermasiana de patriotismo constitucional e no constitucionalismo popular norte-americano. PALAVRAS-CHAVE: Separação de poderes Patriotismo constitucional Constitucionalismo popular

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Who will defend us? Constitutional patriotism and popular constitutionalism in an analysis of amendment proposal 33/2011 CONTENTS: 1 Introduction 6HSDUDWLRQRISRZHUVGHP\VWLʼHG 3 Popular Constitutionalism and the last word on constitutional matters 4 Constitutional Patriotism 5 Conclusion 6 References.

ABSTRACT: Constitutional Amendment Proposal number 33 of 2011 (PEC 33) was harshly criticized, considered a serious violation of the separation of powers clause for intending to submit judicial review decisions regarding the unconstitutionality of Constitutional Amendments to the Congress, who, opposing Brazilian Supreme Court’s decision, could call the people to decide directly. The goal of this paper LV DIWHU WKH GHP\VWLʻFDWLRQ RI WKH VHSDUDWLRQ RI SRZHUV FODXVH WR DUJXH WKDW WKH people themselves are the ultimate responsible for defending the constitution, with the support from the habermasian theory of constitutional patriotism and North American popular constitutionalism. KEYWORDS: Separation of powers Constitutional patriotism Popular constitutionalism.

Qui nous défendra? Le patriotisme constitutionnel et le constitutionnalisme populaire dans l’analyse de la proposition d’amendement constitutionnel 33/2011 SOMMAIRE: 1 Introduction '«P\VWLʼFDWLRQGHODV«SDUDWLRQGHVSRXYRLUV 3 Le constitutionnalisme populaire et le dernier mot en matière constitutionnelle 4 Le patriotisme constitutionnel 5 Conclusion 5«I«UHQFHV

RÉSUMÉ: La proposition d’amendement constitutionnel 33/2011 (PEC 33) a été sévèrement critiquée, considérée comme une grave violation de la séparation des pouvoirs, puisqu’elle prévoit de renvoyer les décisions d’inconstitutionnalité d’amendements constitutionnels de la Cour Suprême à l’évaluation ultérieure du Congrès 1DWLRQDO HW «JDOHPHQW DX[ FLWR\HQV /ȒREMHFWLI GH FH WUDYDLO HVW GH G«P\VWLʻHU OD V«SDUDWLRQGHVSRXYRLUVHWGȒDIʻUPHUTXHOHSHXSOHGRLW¬WUHOHUHVSRQVDEOHXOWLPH de la défense de laConstituition, en s’appuyant surla théorie habermasienne du patriotisme constitutionnel et sur le constitutionnalisme populaire américain. MOTS-CLÉS: Séparation des pouvoirs Patriotisme constitutionnel Constitutionnalisme populaire.

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1 Introdução

Ab

TXHPGHYHRSRYRFRQʻDUDJXDUGDGHVXDVOLEHUGDGHVHVVHQFLDLV"$TXHP pode o titular da soberania, convertida em supremacia constitucional, relegar o cuidado de um dos bens civilizatórios mais preciosos – a própria ConsWLWXL©¥R" 4XHP GHYH VHU R UHVSRQV£YHO SHOD VXD PDQXWHQ©¥R QRV PRPHQWRV GH FRQʼLWRLQVWLWXFLRQDO" O debate, que não é novo na literatura do direito constitucional, ganhou novos contornos no Brasil com a aprovação, na Comissão de Constituição e Justiça – CCJ da Câmara dos Deputados, da Proposta de Emenda Constitucional no 33, de 2011 – 3(&TXHGHQWUHRXWURVSRO¬PLFRVWHPDVSUHWHQGHVXEPHWHUDOJXPDVGHFLV·HV do Supremo Tribunal Federal – STF em sede de controle de constitucionalidade de emendas constitucionais ao Congresso Nacional, com possibilidade de posterior consulta popular1. Proposta em 2011, a PEC 33 voltou à tona em um momento de conturbadas UHOD©·HVHQWUHRVSRGHUHV-XGLFL£ULRH/HJLVODWLYR2SDSHOSUHSRQGHUDQWHHFDGDYH] maior que o Supremo vem desempenhando desde a promulgação da Constituição de 1988 – LQFOXVLYHHPTXHVW·HVSRO¯WLFDV – e a ânsia pela retomada de poder de um Parlamento que atravessa notória crise de legitimidade, podem sim ser considerados fatores importantes neste processo. Em verdade, a própria Exposição de Motivos

 1  RWHVHTXHDSURSRVWDVRPHQWHIDODHPGHFLV·HVSHODLQFRQVWLWXFLRQDOLGDGHPDWHULDOGHHPHQGDVQR ERMRGH$©·HV'LUHWDVGH,QFRQVWLWXFLRQDOLGDGHȔ$UWLJRo O art. 102 da Constituição Federal de 1988 passará a vigorar acrescido dos seguintes parágrafos: ‘Art. 102 [. ..]’”. § 2o$$VGHFLV·HVGHʻQLWLYDVGHP«ULWRSURIHULGDVSHOR6XSUHPR7ULEXQDO)HGHUDOnas ações diretas de LQFRQVWLWXFLRQDOLGDGHTXHGHFODUHPDLQFRQVWLWXFLRQDOLGDGHPDWHULDOGHHPHQGDV¢&RQVWLWXL©¥R)HGHUDO Q¥RSURGX]HPLPHGLDWRHIHLWRYLQFXODQWHHHʻF£FLDFRQWUDWRGRVHVHU¥RHQFDPLQKDGDV¢DSUHFLD©¥R do Congresso Nacional que, manifestando-se contrariamente à decisão judicial, deverá submeter a controvérsia à consulta popular. § 2o-B A manifestação do Congresso Nacional sobre a decisão judicial a que se refere o §2o-A deverá RFRUUHUHPVHVV¥RFRQMXQWDSRUWU¬VTXLQWRVGHVHXVPHPEURVQRSUD]RGHQRYHQWDGLDVDRʻPGR qual, se não concluída a votação, prevalecerá a decisão do Supremo Tribunal Federal, com efeito YLQFXODQWHHHʻF£FLDFRQWUDWRGRV §2o&‹YHGDGDHPTXDOTXHUKLSµWHVHDVXVSHQV¥RGDHʻF£FLDGH(PHQGD¢&RQVWLWXL©¥RSRUPHGLGD cautelar pelo Supremo Tribunal Federal.” (BRASIL, 2011a, grifos nossos).

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apresentada parece corroborar tal tese2. 'R TXH UHDOPHQWH HVW£ WUDWDQGR D 3(&  TXDQGR VXEPHWH DV GHFLV·HV HP controle de constitucionalidade de emendas constitucionais ao crivo parlamentar H SRSXODU" 2EYLDPHQWH D TXHVW¥R SDVVD SHOD GHʻQL©¥R GH XP PRGHOR GH VHSDração de poderes, mas não é só. O ponto mais sensível a ser analisado se refere a quem deve ser o responsável pela garantia da Constituição Federal de 1988 em sua essencialidade. Assim, o presente estudo está preocupado com uma análise da PEC 33 vinculaGDDHVVDQR©¥RGHJXDUGDGD&RQVWLWXL©¥R2REMHWLYRDTXLSRUWDQWRQ¥R«VDQWLʻFDU ou demonizar a atividade política ou de jurisdição constitucional, e nem mesmo de ROKDUDVSURSRVWDVRUDHVWXGDGDVFRPDSUHRFXSD©¥RGHVHXVSRVV¯YHLVVLJQLʻFDGRV políticos no contexto em que estão inseridas. Pretende-se uma análise estrita e conceitualmente jurídica, preocupada em oferecer aprimoramentos democráticos ao arranjo institucional vigente. Mais do que uma questão de alocação meramente interinstitucional de poder, pretende-se demonstrar que é possível e desejável pensar em desenhos constitucio2 “O protagonismo alcançado pelo Poder Judiciário, especialmente dos órgãos de cúpula, é fato notório nos dias atuais. A manifestação desse protagonismo tem ocorrido sob duas vertentes que, embora VHPHOKDQWHVSRVVXHPFRQWRUQRVGLVWLQWRVDMXGLFLDOL]D©¥RGDVUHOD©·HVVRFLDLVHRDWLYLVPRMXGLFLDO>@ Há ainda os casos da redução de vagas de vereadores, da súmula das algemas, e tantos outros. É tarefa simples enumerar os casos de explícito ativismo judicial. Difícil é mencionar exemplos de autocontenção de nossa Corte Suprema. 3RUµEYLRGHYHPRVUHFRQKHFHUDVGHʻFL¬QFLDVGR3RGHU/HJLVODWLYRTXHWHPSDVVDGRSRUY£ULDVFULVHV GHFUHGLELOLGDGH&RQWXGRHVVHDVSHFWRQ¥RGHYHMXVWLʻFDUWDLVPHGLGDVFRPRVHKRXYHVVHXPY£FXR político a ser ocupado pelo Supremo Tribunal Federal. O fortalecimento do Poder Legislativo deve ser debatido no âmbito da reforma político-eleitoral, mas não apenas nesse espaço. Há uma série de medidas de preservação e valorização da competência legislativa do Congresso Nacional que devem ser apreciadas, independentemente da aprovação de novas regras eleitorais. 2IDWR«TXHHPSUHMX¯]RGDGHPRFUDFLDDKLSHUWURʻDGR3RGHU-XGLFL£ULRYHPGHVORFDQGRERDSDUWH GRGHEDWHGHTXHVW·HVUHOHYDQWHVGR/HJLVODWLYRSDUDR-XGLFL£ULR'LVVRV¥RH[HPSORVDTXHVW¥RGDV D©·HVDʻUPDWLYDVEDVHDGDVHPFRWDVUDFLDLVDTXHVW¥RGDVF«OXODVWURQFRHWDQWDVRXWUDV $VGHFLV·HVSURIHULGDVQHVVHVFDVRVFDUHFHU¥RGHOHJLWLPLGDGHGHPRFU£WLFDSRUTXHQ¥RSDVVDUDPSHOR exame do Congresso Nacional. Estamos, de fato, diante de um risco para legitimidade democrática em nosso país. Há muito o STF deixou de ser um legislador negativo, e passou a ser um legislador positivo. E diga-se, sem legitimidade eleitoral. O certo é que o Supremo vem se tornando um superlegislativo. [...] ‹ EDVWDQWH FRPXP RXYLUPRV D DʻUPD©¥R GH TXH ¢ 6XSUHPD &RUWH FDEH D ¼OWLPD SDODYUD VREUH D Constituição, ou ainda, a Constituição é o que o Supremo diz que ela é. Na verdade, deve caber ao povo dizer o que é a Constituição. Precisamos, pois, resgatar o valor da representação política, da soberania popular e da dignidade da lei aprovada pelos representantes legítimos do povo, ameaçadas pela postura ativista do Judiciário. Restabelecer o equilíbrio entre os Poderes é, pois, o objetivo central da presente proposição”. (BRASIL, 2011a).

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nais que permitam que o povo seja o principal responsável pela guarda de sua Constituição, e que a PEC 33 poderia vir a ser um instrumento de mudança nesse sentido. 3DUDWDQWRVHU£XWLOL]DGRFRPRP«WRGRDUHYLV¥RELEOLRJU£ʻFDWDQWRGHREUDV clássicas da teoria constitucional quanto de textos contemporâneos. PrimeiramenWHVHU£QHFHVV£ULRHQIUHQWDUTXHVW·HVDIHWDVDXPDSRVV¯YHOYLROD©¥RGDSURSRVWD de emenda à cláusula de separação de poderes. Após essa questão preliminar, o foco será direcionado à hipótese que deve ser o povo o principal responsável pela GHIHVDGHVXDVLQVWLWXL©·HVHOLEHUGDGHVFRQVWLWXFLRQDLVXWLOL]DQGRVHSDUDLVVRGH argumentos advindos da teoria habermasiana do patriotismo constitucional e do FRQVWLWXFLRQDOLVPR SRSXODU QRUWHDPHULFDQR$R ʻP VHU¥R DSUHVHQWDGDV SURSRVL©·HVFRQFOXVLYDVHUHIXWDGDVSRVV¯YHLVREMH©·HV

2 Separação de poderes desmitificada 7DOYH] GRLV GRV PDLRUHV HUURV GRV TXH DʻUPDP KDYHU XPD QRWµULDYLROD©¥R DR princípio da separação de poderes na disposição atacada da PEC 33 sejam (i) o de que haveria uma formulação ideal e universal do que seria de fato a correta separação entre poderes; e (ii) o de considerar que a Constituição Federal prevê, em si mesma, um conteúdo claro e imutável a respeito de qual o arranjo institucional a ser seguido. 4XDQWR¢SULPHLUDDʻUPD©¥RQ¥R«GLI¯FLODSRQWDUIDOKDVHPVXDIXQGDPHQWDção. Em primeiro lugar, nem mesmo os teóricos de ciência política e direito consWLWXFLRQDOFRQVHJXHPDʻUPDUFRPSUHFLV¥RRTXHVHULDXPDLGHDOVHSDUD©¥RHQWUH SRGHUHVRXRTXHHVWDH[SUHVV¥RUHDOPHQWHVLJQLʻFDȏVHSDUD©¥RSRGHLQGLFDUDSHnas independência, ou independência e controle, ou interdependência, controle e GL£ORJRVHQWUHDVLQ¼PHUDVFRQFHS©·HVTXHH[LVWHPQDOLWHUDWXUDHVSHF¯ʻFD +£ XPD WHQG¬QFLD QD WUDGL©¥R RFLGHQWDO GH FRQVLGHUDU DV OL©·HV GH 0RQWHVquieu e a retomada da constituição mista como dogmas, como uma fórmula mágica SDVV¯YHO GH UHVROYHU WRGRV RV FRQʼLWRV HQWUH R SRGHU LQVWLWXFLRQDOL]DGR GH PRGR que qualquer forma de desvio dessa tradição acarretaria em uma clara violação ao SULQF¯SLRSUDWLFDPHQWHSHUVRQLʻFDGRSHOREDU¥R1DVSDODYUDVGH%UXFH$FNHUPDQ (2013), Montesquieu nos governa de seu túmulo mesmo duzentos anos após sua morte. Em palestra proferida no dia 14 de junho de 2013 na Fundação Getúlio VarJDVQR5LRGH-DQHLUR5-LQWLWXODGDȔ1RYDVFRQVLGHUD©·HVVREUHDQRYDVHSDUD©¥RGH poderes”, Ackerman enfatizou como uma obediência quase cega ao que se pensa ser uma concepção intocável de separação de poderes a partir da obra de Montesquieu tem levado a desconsiderar possíveis avanços e aprimoramentos institucionais obRevista Jurídica da Presidência

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tidos ao redor do globo por outras sociedades que não sofreram tão fortemente a LQʼX¬QFLDGHWDOGRXWULQD Talvez um dos grandes responsáveis por esta quase idolatria seja James Madison, para quem Montesquieu seria um “oráculo a ser sempre consultado”. Nas suas palavras – “se ele não é autor do inestimável preceito de que falamos, pelo menos foi ele quem melhor o desenvolveu e quem o recomendou de maneira mais efetiva à atenção do gênero humano” (HAMILTON; MADISON; JAY, 2003, p. 299). A adoção na Constituição Federal norte-americana da doutrina de Montesquieu quase como XPGRJPDLQʼXHQFLRXJHUD©·HVHFRQWLQHQWHVTXHYLYHUDPQRVV«FXORVVHJXLQWHV LQʻQG£YHLVPRPHQWRVFRQVWLWXLQWHV 3RUPDLVUHVSHLW£YHLVHVHGLPHQWDGDVTXHVHMDPDVOL©·HVGREDU¥RGH/D%UªGH Q¥R«FRQFHE¯YHOTXHXPDGRXWULQDSRVVDYDOHUPDLVTXHDVGLVSRVL©·HVSRO¯WLFDV autônomas de determinada sociedade. Seria absolutamente falacioso falar em um caráter inaugural, incondicionado e ilimitado do Poder Constituinte Originário caso este tivesse que se adequar aos balizamentos que certo sujeito (cuja notável relevância histórica não se pretende negar) ou sujeitos (ainda que se considere toda DWUDGL©¥RGHDXWRUHVTXHVHʻOLDUDPDWDLVSRVLFLRQDPHQWRV GHWHUPLQDUDPFRPR válidas há mais de dois séculos atrás. 1¥RVHTXHUQHJDUDLPSRUW¤QFLDGDVOL©·HVGH0RQWHVTXLHXPXLWRSHORFRQWU£rio, seus escritos são a baseTXHIXQGDPHQWRXWRGDVDVFRQVWUX©·HVQHVVDVHDUDQRV séculos que se passaram. O que se critica aqui é a imortalidade de um certo MontesTXLHX, imutável e absoluto, tal qual se passou a considerar pela doutrina constitucionalista moderna. Ora, se a própria vontade inicial do povo não pode ser óbice absoluto à alteração de seu ordenamento, seja pela inauguração de um novo sistema com uma nova ConsWLWXL©¥RVHMDSHODDOWHUD©¥RGHXPD&DUWDSRO¯WLFDYLJHQWH DLQGDTXHFRPUHVWUL©·HV como será visto adiante), não faz sentido adotar uma postura dogmática a um entendimento doutrinário cujo sentido e aplicabilidade devem sempre ser vistos no seu contexto temporal e local, e não tomado como algo único, imutável e infalível. Quanto a esta última característica que se pretende atribuir (incorretamente) a um possível arranjo ou conceito decorrente, vale rememorar os avisos de Hermann Heller: (P¼OWLPDLQVW¤QFLDVHPSUHYHUHPRVFRQʻUPDUVHDWHVHGHTXHD&RQVWLWXL©¥RUHDOFRQVLVWHQDVUHOD©·HVUHDLVGHSRGHU>@3RUPDLVFRQWUROHV que se estabeleçam, nunca se poderá resolver o problema: TXLV FXVWRGHW custodem" 3 

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Assim, melhor considerar a separação de poderes em sua real natureza: apenas um conceito, uma ferramenta operativa, um princípio de organização política (KELSEN, S HQ¥RXPDIµUPXODRXXPDUHJUDGHʻQLGD3DUDVHFKHJDUDRVHXUHDO VLJQLʻFDGRGHYHVHH[WUDLURTXHHVW£SRUEDL[RGHWRGRRVHGLPHQWRDFXPXODGRDR ORQJRGRVV«FXORVHGDVFRQVWLWXL©·HVEXVFDQGRVHDVXDQR©¥RPDLVE£VLFDHWDOvez, a mais importante, a de que o poder freie o poder (MONTESQUIEU, 2004, p.189). No mais, somente se pode concordar com Karl Loewenstein (1970, p. 149) que “a constituição é o dispositivo fundamental para o controle do processo do poder”, ou seja, o locus para que se coloque o poder em contraposição ao poder. Partindo de tal concepção, é possível avaliar como cada sociedade em seu tempo histórico utilizou essa ferramenta de origem inegavelmente liberal, adaptando-a às suas particularidades. Nesse sentido, é possível perceber, com Jeremy Waldron S TXHFDGDRUGHQDPHQWRGHFDGDVRFLHGDGHGHSRVLWDVXDFRQʻDQ©DQDV LQVWLWXL©·HVTXHPDLVOKHDIHL©RDPRXPHOKRUOKHUHSUHVHQWDPȔDFRUXMDGH0LQHUYD alça voo de um poleiro diferente na Inglaterra da década de 1680, cujo orgulho é seu parlamento, de seu poleiro nos Estados Unidos, cuja auto-imagem liberal perPDQHFHʻ[DGDQRWULEXQDOGH:DUUHQȕ Mas mesmo nos EUA, em que ainda prevalece na doutrina e jurisprudência da Suprema Corte a concepção de supremacia judicial, berço do judicial review e que posVXHPXPDYDVWDWUDGL©¥RGHFRQʻDQ©DHPVHXVµUJ¥RVGR3RGHU-XGLFL£ULRHPHQGDV¢ Constituição não são controladas pelo Judiciário. A ideia é simples: se a própria Constituição é alterada, não cabe à Suprema Corte analisar se o novo texto é compatível com o texto antigo. Isso quem decide é o povo, por meio de seus representantes. As emendas constitucionais são consideradas manifestação legítima do povo soberano e, portanto, inseridas em um plano que o Poder Judiciário não pode alcançar. Assim, durante o seu processo de consolidação, a própria Suprema Corte norte-americana delimitou sua competência, renunciando ao poder de controlar emendas constitucionais (com destaque para a decisão nesse sentido em Coleman vs. Miller, em 1939). Não se perca de vista que se trata da mesma Corte que inicialmente DʻUPRXVHXSRGHUGHGDUD¼OWLPDSDODYUDVREUHD&RQVWLWXL©¥RHGHFODUDUDLQFRPpatibilidade de atos normativos inferiores em relação à Constituição no famoso caso Marbury vs. Madison.  &RP LVVR « SRVV¯YHO DʻUPDU TXH D VXSUHPDFLD « GD FRQVWLWXL©¥R, e não do Poder Judiciário, frente à manifestação popular por meio de seus representantes: trata-se de um processo de natureza política e fora do alcance da Corte. Não se faz

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a distinção do material constitucional quanto à sua fonte, ou seja, se obra do Poder Constituinte Originário ou do Poder Constituinte Derivado. Ainda que a maior parte de suas emendas sejam aditivas de direitos e garantias – HQ¥RPRGLʻFDWLYDVRXUHVtritivas -, não se admite lá a possibilidade de considerar uma emenda constitucional como algo materialmente inconstitucional, inclusive quando as emendas vêm para UHYHUWHUHQWHQGLPHQWRVʻUPDGRVSHODSUµSULD6XSUHPD&RUWH Por outro lado, no Brasil se reconhece a existência de normas constitucionais substancialmente inconstitucionais. Aqui e em outros ordenamentos, se considera que, por mais que se diferenciem da legislação ordinária quanto à natureza constituinte derivada, as emendas constitucionais estão sujeitas a uma avaliação de compatibilidade com o texto original da Constituição. Em outros termos, a obra do Poder Constituinte Originário está em um patamar superior à obra do Poder Constituinte Derivado Reformador, que tem o dever de obediência àquela. Entretanto, mesmo Otto Bachoff (1977, p.54), autor da mais conhecida obra sobre o assunto, reconhece que pode uma norma de revisão constitucional aparentemente inconstitucional (contrária ao texto original) ser também um ato constituinte calcado na vontade do titular da soberania, do poder de constituição: “sim, também uma revisão da constituição, de fato originariamente inconstitucional, poderia transformar-se, por força da ulterior aprovação pela YRORQW«J«Q«UDOH, num ato FRQVWLWXLQWHDXW¬QWLFRHHʻFD]ȕ $DʻUPD©¥RID]UHWRUQDUDGLVFXVV¥R¢3(&HVXDMXULGLFLGDGHHPUHOD©¥RDR ordenamento brasileiro. Chega-se, ciente desta importante característica do direito constitucional pátrio, ao segundo grande erro inicialmente apontado, de que se SRVVDSHQVDUTXHD&RQVWLWXL©¥R)HGHUDOGHWHQKDGHʻQLGRHPVHXWH[WRFRP clareza qual arranjo institucional tenha adotado para a maior independência e harmonia entre seus poderes constituídos (artigo 2o). Por mais que se considere o Supremo Tribunal Federal como o guardião da Constituição (artigo 102, caput «SRVV¯YHODʻUPDUTXHDSUµSULD&DUWDGHQ¥RGHʻniu com clareza que caberia ao STF a última palavra sobre emendas constitucionais, o que é corroborado pelo fato de que o próprio Supremo, quando se deparou pela primeira vez com a questão, teve que fazer uma deliberação prévia para analisar se ele era competente para controlar a constitucionalidade das emendas. $O«PGHQ¥RWHUUHFRQKHFLGR QD &DUWD XP DUUDQMR FODUDPHQWHGHʻQLGR R 6Xpremo Tribunal Federal admitiu a possibilidade de que esta disposição original de distribuição de poderes decidida em 5 de outubro de 1988 fosse alterada pelas vias

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de reforma. Talvez os mais dramáticos exemplos tenham sido a criação das Agências Reguladoras – autarquias especiais, com autonomia em relação ao Poder Executivo centralizado – e o da Emenda Constitucional no 45, de 30 de dezembro de 2004, com a criação do Conselho Nacional de Justiça (BRASIL, 1988, Art. 92, I-A) e das súmulas vinculantes (BRASIL, 1988, Art. 103-A), instrumento que dá ao Supremo Tribunal Federal função legislativa positiva, muito além da mera função de legislador negativo tradicionalmente atribuída ao Poder Judiciário por Hans Kelsen (2005, p.383). Esses exemplos chancelados pelo STF de reforma expressa da Constituição com a alteração do arranjo institucional inicialmente previsto demonstram que não há uma fórmula imutável de separação de poderes que vigore no ordenamento brasileiro, que não há nada imanente à Carta de 1988 que indique um ou outro arranjo de alocação institucional de poder. Percebe-se, portanto, que se trata de uma questão muito mais política que juU¯GLFD 8P H[FHOHQWH H[HPSOR IRL YHULʻFDGR UHFHQWHPHQWH TXDQGR GRV GHEDWHV D respeito da Proposta de Emenda Constitucional no 37, de 08 de junho de 2011, que procurava solucionar um embate entre Ministério Público – MP e os órgãos de polícia federal e civis a respeito da competência em matéria de investigação criminal. A Constituição Federal não se manifestou originariamente a respeito, e a vivência jurídica foi construindo a prática de que também o Ministério Público teria competência nesta seara. A PEC37, que pretendia retirar essa parcela de competência do MP – ou seja, que pretendia alterar um arranjo institucional construído na prática constitucional e não delimitado pelo próprio texto – causou grave comoção em diversos segmentos da sociedade, culminando com a sua rejeição pelo Parlamento brasileiro. O que se nota com isso é que foi a própria atividade constituinte, no seu sentido mais puro, que tanto gerou a atual organização de competências (e, portanto, de poderes) quanto obstou que se procedesse a sua alteração. Viu-se um excelente exemplo de manifestação do caráter vivo e aberto da Constituição brasileira: vivo SRUVXDʼH[LELOLGDGHVXDPXWDELOLGDGHHDEHUWRDWRGDDVRFLHGDGHRVVHXVUHDLV destinatários e verdadeiros intérpretes. ‹QHVVHSRQWRLQHJ£YHODFRQʼX¬QFLDGDWHRULDGDVRFLHGDGHDEHUWDGHLQW«USUHtes da constituição na devolução da constituição para interpretação também pelas LQVW¤QFLDVGHPRFU£WLFDV$VVLPDʻUPD3HWHU+¦EHUOH No processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos

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HJUXSRVQ¥RVHQGRSRVV¯YHOHVWDEHOHFHUVHXPHOHQFRFHUUDGRRXʻ[DGR com numerus clausus de intérpretes da Constituição. [...] A interpretação constitucional é, em realidade, mais um elemento da sociedade aberta. Todas as potências públicas, participantes materiais do processo social, estão nela envolvidas, sendo ela, a um só tempo, elemento resultante da sociedade aberta e um elemento formador ou constituinte dessa sociedade. (1997, p.13).

3HUFHEHVHFRPLVVRTXHDPHUDDʻUPD©¥RGHTXHDSURSRVWDFRQWLGDQD3(& violaria a separação de poderes não pode prevalecer sem uma análise mais minuciosa, que, como se vê, leva a uma conclusão no mínimo cética quanto aos alegados danos ao citado princípio de organização política, entendido aqui verdadeiramente como um princípio, não como fórmula mágica e absoluta. Em nenhum dos ângulos sob os quais se procurou aproximar o tema houve argumentos que demonstrassem uma formulação sacrossanta do conceito de separação de poderes que impedisse que o Parlamento devolvesse ao povo a decisão a respeito de emendas constitucionais. Ao revés, observou-se uma profusão de argumentos, dos PDLVYDULDGRVDXWRUHVHWUDGL©·HVTXHSDUHFHPLQGLFDUMXVWDPHQWHRFRQWU£ULR Um maior controle do Poder Judiciário por parte do povo e do Parlamento não IHUHDVHSDUD©¥RGHSRGHUHVSHORFRQWU£ULRRTXHVHRS·HDWRGDWUDGL©¥RFRQVWLWXcionalista de separação dos poderes é, justamente, a falta de controle de qualquer poder da República, inclusive o Poder Judiciário.

3 Constitucionalismo popular e a última palavra sobre questões constitucionais ‹SRVV¯YHOLGHQWLʻFDUDSUREOHP£WLFDRUDHVWXGDGDHPXPDVLPSOHVLQGDJD©¥R TXHPWHPD¼OWLPDSDODYUDVREUHTXHVW·HVFRQVWLWXFLRQDLV"'DVOL©·HVGH&RQVWDQW (1989, p. 74-75) e seu Poder Moderador, neutro, intermediário superior e apartado da sociedade, exercido em uma monarquia limitada, até a prevalência do Tribunal Constitucional de Hans Kelsen (2003, p. 237-298), cuja combinação pode ter culminado, em nosso ordenamento, em uma Supremocracia (VIEIRA, 2009, p. 487) não é de se espantar o retorno – FRPYDULD©·HVREYLDPHQWHȏ¢TXHVW¥ROHYDQWDGDSRU Hans Kelsen, a respeito de quem deve ser o guardião da constituição (2003, p. 245). Se, por um lado, é verdade que o Poder Judiciário não deve assumir o papel de protagonista em um cenário de Estado Democrático de Direito, sendo o super-ego da soFLHGDGHLVWRQ¥RVLJQLʻFDTXHHOHSRVVDVHUUHEDL[DGR¢FRQGL©¥RVXERUGLQDGDGHPHUR ʻJXUDQWHVXMHLWR¢VGHFLV·HVSRO¯WLFDVGDPDLRULDȏH[SUHVVDVGRPRGRFRPRIRUHP3DUD

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DO«PGHXPDUHVSRVWDIHFKDGDK£ERDVUD]·HVSDUDDFUHGLWDUTXHD3(&SRGHULDUHpresentar uma abertura a um constitucionalismo popular e democrático ou, ao menos, ao diálogo HQWUHDVLQVWLWXL©·HVGHPRFU£WLFDVHGHVWDVFRPRWLWXODUGDVREHUDQLD Na verdade, não é apropriado falar em apenas um constitucionalismo popular e um constitucionalismo democrático, mas sim em constitucionalismos que pretendem colocar no povo um papel ativo e constante de controle sobre a interpretação e adjudicação do direito constitucional (POST; SIEGEL, 2004, p. 1026). Desde a mais radical tentativa de Mark Tushnet de “tirar a constituição das cortes” até as formuOD©·HVPDLVEUDQGDVGH5REHUW3RVWH5HYD6LHJHOTXHSRXFRTXHVWLRQDPDVXSUHmacia judicial, é possível ver um amplo espectro de teorias descritivas e normativas nesse campo do direito constitucional americano. Apesar de reconhecer as diferenças entre as teorias, será dada preferência à utilização do termo constitucionalismo popular, por ser tratado, por vezes, como gêneros da mesma espécie3. (QWUHWDQWR GHQWUH DV GLYHUVDV SRVL©·HV H[LVWHQWHV QHVVD]RQD LGHROµJLFD JDnhou maior destaque nos últimos anos a obra The People Themselves: popular constitutionalism and judicial review (KRAMER, 2004), que pretendeu demonstrar que o propósito original dos pais fundadores não foi o de criar uma república aristocrática, em que o poder apenas emanava do povo para os governantes eleitos – esta a proposta federalista, derrotada nas primeiras décadas de vida da Constituição norte-americana. Ao contrário, para este constitucionalismo popular presente na fundação, o poder residiria permanente no povo, a quem caberia o controle de todas as esferas de governo, inclusive o Poder Judiciário. Hoje haveria um desvio da fórmula original, resultado de um processo de apropriação, pela Suprema Corte norte-americana, de poderes que não haviam lhe sido conferidos pelo texto da Constituição americana. Se hoje a comunidade em geral não tem autoridade formal para interpretar a constituição – FRPLQʼX¬QFLDOLPLWDGD a escolher o Presidente da República, responsável por escolher os Justices4ȏʻFDQGR refém de uma Corte distante e autorreferenciada, o constitucionalismo na era da fundação era diferente. Nas palavras de Kramer: Naquela época, o poder de interpretar (e não apenas o poder de criar) a norma constitucional, pensava-se, residia com o povo. E não teoricamente

3 Matthew D. Adler faz referência ao constitucionalismo popular profundo (deep) de Tushnet, Waldron e Kramer, em oposição à versão rasa apresentada, por exemplo, por Post e Siegel. Para mais, conferir ADLER, 2006. 4 Os juízes da Suprema Corte norte-americana são intitulados Justices.

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4XHPLU£QRVGHIHQGHU"3DWULRWLVPRFRQVWLWXFLRQDOHFRQVWLWXFLRQDOLVPRSRSXODUHPXPDDQ£OLVHGD3(&

ou em abstrato, mas em um sentido ativo e contínuo. [...] Ele (o constitucionalismo popular) não presume que a interpretação jurídica autorizada posVDDFRQWHFHUDSHQDVQRVWULEXQDLVPDVDQWHVSUHVVXS·HTXHXPSURFHVVR de interpretação igualmente válido possa ser empreendido nos poderes políticos e pela comunidade em geral. [...] Assim, o constitucionalismo popular pauta-se e depende de uma cultura política na qual autoridades públicas, líderes comunitários e cidadãos comuns acreditam na distinção HQWUHOHLHSRO¯WLFDFRPSDUWLOKDPXPFRQMXQWRGHFRQYHQ©·HVVREUHFRPR argumentar dentro de cada domínio e levam a sério a diferença de papéis que isso produz. (2009, pp.87-91).

Trata-se, nas suas palavras, de um conceito geral ou uma ideia ampla, não de XPHVTXHPDʻ[RGHVROX©·HVDSUHVHQW£YHLVDRSUREOHPDQDUUDGRSRLVH[LVWLULDP “incontáveis arranjos institucionais pelos quais o controle popular pode se tornar VLJQLʻFDWLYRȕ .5$0(5S ‹SRVV¯YHODʻUPDUTXHWDLVLGHDLVIRUDPLQVSLrados na radicalidade democrática de Thomas Jefferson (1786), para quem a liberdade do povo americano não poderia estar segura a não ser nas suas próprias mãos. Também Madison, cuja aproximação teórica com Hamilton e os Federalistas é tida por Kramer (2009, p.96) como meramente estratégica, é considerado um defensor ferrenho do autogoverno, o ideal mais forte por trás de toda a formulação do constitucionalismo popular. É em um contexto de crítica aos dogmas que aos poucos se estabeleceram na teoria constitucional que se insere o importante debate conduzido pelos adeptos do constitucionalismo popular. Como visto, ambas as posturas pretendem dar maior força e participação ao titular da soberania – o povo – apesar de divergirem em DOJXPDV UHOHYDQWHV TXHVW·HV FRPR SRU H[HPSOR R SDSHO GDV &RUWHV 8PD LGHLD básica, porém, é apartar os conceitos que passaram, com o tempo, a se confundir (KRAMER, 2004, p. 143), de judicial review e judicial supremacy: o fato de as cortes SRGHUHPLQYDOLGDUOHLVQ¥RVLJQLʻFDQHFHVVDULDPHQWHTXHVHMDPRVGHWHQWRUHVGD última palavra a respeito da Constituição (WHITTINGTON, 2007, p. 5-6). Critica-se a concepção de que a Suprema Corte (ou qualquer Corte Constitucional) não é a DXWRULGDGH LQWHUSUHWDWLYD ʻQDO SRU VHXV P«ULWRV PDV R VHX P«ULWR HVW£ HP VHU D DXWRULGDGHLQWHUSUHWDWLYDʻQDO As propostas associadas a essas correntes democratizantes variam desde a retirada da constituição das cortes (TUSHNET, 2000) até o chamado departamentalismo advogado por Thomas Jefferson e hoje relativamente esquecido (POST; SIEGEL, 2004). 2VFRQVWLWXFLRQDOLVWDVSRSXODUHVHGHPRFU£WLFRVV¥RF«WLFRVTXDQWR¢DʻUPDção de que seria o Judiciário o menos temível dos três poderes, a quem dever-se-ia Revista Jurídica da Presidência

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conferir “todos os meios possíveis para defender-se dos outros dois.” (HAMILTON; MADISON; JAY, 2003, p. 458). Ironicamente, parece que o único meio de se sustentar e defender esse suposto ramo mais fraco de governo é tornando-o o mais forte de todos (KRAMER, 2004, p. 250). Como o próprio nome diz, o constitucionalismo poSXODUG£SULPD]LDQDVTXHVW·HVFRQVWLWXFLRQDLVDRDJHQWHVREHUDQRRSUµSULRSRYR Cabe aqui uma menção curiosa a Hamilton (2003, p. 460), em uma inusitada postura GHPRFU£WLFDDʻUPDQGRTXHQ¥RVHVHJXHGDSUµSULDIXQ©¥RMXULVGLFLRQDOGHȔGHWHUminar o sentido da Constituição” que o Poder Judiciário seja superior ao Legislativo; “segue-se, sim, que o poder do povo é superior a ambos”. Não parece ser grosseiro DʻUPDUQHVVDSULPHLUDDSUR[LPD©¥RDRWHPDTXHSUHYDOHFHSRUWDQWRDautoridade superior, o espírito de constituição do povo quando está a deliberar a respeito de matéria constitucional. No caso, além da deliberação política em sede representativa, em que o Legislativo se vê investido de uma representação extraordinária (SIEYÈS, 2001, p. 57), e da deliberação jurídica no colegiado da Corte Constitucional, há a deliberação do todo, a deliberação daquele que ultrapassa a barreira da dualidade formal/política e vai além. Cabe somente ao povo ligar e desligar as formas estabelecidas, não ao Poder Judiciário (a quem cabe defender a forma estabelecida) e nem ao corpo legislativo ordinário, considerado na passagem pelas chamadas maiorias eventuais. Ademais, se por um lado há uma notória crise de representatividade que assola os corpos legislativos brasileiros, e, por outro, um poder intrinsecamente contramajoritário, que não possui legitimidade ordinária (pois não foi eleito), em quem SRGHRVREHUDQRFRQʻDUDQ¥RVHUQHOHPHVPR"&RPRUHODWD/DUU\.UDPHU  p. 109), James Madison, na National Gazette de 20 de dezembro de 1792, indagouVHTXHPV¥RRVPHOKRUHVJXDUGL·HVGDVOLEHUGDGHVSRSXODUHV"$UHVSRVWDGHVHX personagem federalista, antirrepublicano, taxava o povo de estúpido e licencioso, TXHQ¥RSRGHULDFRQʻDUDVLPHVPRDSµVHVWDEHOHFHURJRYHUQRGHYHULDHVWHSRYR apenas obediência a seus sábios governantes. Ao que contrasta a resposta dada por 0DGLVRQHQFDUQDGRHPVHXSHUVRQDJHPUHSXEOLFDQRTXHDʻUPRXȔRSUµSULRSRYR$ responsabilidade sagrada não pode estar em lugar mais seguro que nas mãos mais interessadas em preservá-la”. É essa noção de guarda de suas liberdades essenciais – em última palavra, da Constituição – pelo povo que é compartilhada com o patriotismo constitucional habermasiano que se passa a analisar.

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4XHPLU£QRVGHIHQGHU"3DWULRWLVPRFRQVWLWXFLRQDOHFRQVWLWXFLRQDOLVPRSRSXODUHPXPDDQ£OLVHGD3(&

4 O Patriotismo Constitucional e a defesa da constituição A ideia de patriotismo constitucional nasce na Alemanha do pós-guerra. CindiGDHPGRLV(VWDGRVDXW¶QRPRVHPFULVHFRPVXDVWUDGL©·HVHSDGHFHQGRGHFXOSD pelas atrocidades levadas a cabo durante o regime nacional-socialista, era preciso achar um modelo de identidade que superasse o nacionalismo. Se, no passado, o nacionalismo estava na origem da cidadania democrática, nas sociedades pós-nacionais a ausência de uma homogeneidade inviabiliza a antiga conexão entre nacionalismo e republicanismo: não é mais possível recorrer a uma identidade nacional compartilhada, e o patriotismo constitucional vem para substituir o nacionalismo nesse contexto (CITTADINO, 2007, p. 60). Para o herdeiro de Frankfurt, ao invés de retomar sua identidade nacional tradicional, era preciso que o povo alemão desse um passo à frente, assumindo os erros do passado, ao invés de simplesmente escondê-los por meio de abordagens históricas revisionistas (MAIA, 2005, p. 20). Não é mais possível reconstruir uma identidade em torno de um ou alguns valores centrais, de modo que o conceito de patriotismo constitucional ancore sua concepção de cidadania capaz de gerar “solidariedade entre estranhos” (HABERMAS, 1995, p. 97) Esse patriotismo não estaria mais ancorado nas tradicionais referências de pertencimento linguístico, histórico e étnico, mas em procedimentos e princípios abstratos que, por sua vez, estariam relacionados à convivência e ao debate entre GLYHUVDVYLV·HVGHPXQGRSURWHJLGDVSRUGLUHLWRVLJXDLVRXVHMDHVVHVHJXQGRSDWULRWLVPRQ¥R«FXOWXUDOPHQWHDQFRUDGRQDVWUDGL©·HVPDVSROLWLFDPHQWHIXQGDGR na Constituição (MAIA, 2005, p. 21). Ele seria, para Habermas, o único tipo de patriotismo possível para os alemães após o holocausto (1998, p. 94). O nacionalismo alemão havia perdido toda legitimidade como fundamento de uma identidade coletiva. Era preciso substituí-lo por uma alternativa pós-nacional, ancorando-o no respeito e na estima pelos princípios do Estado Democrático de Direito. 5HYHODVHSRUWDQWRRFRPSURPLVVRPRUDOGRʻOµVRIRFRPDVQRUPDVXQLYHUVDOmente válidas de direitos humanos (MAIA, 2005, p. 23), constitucionalizados nas &DUWDV'HPRFU£WLFDV$V&RQVWLWXL©·HVVHPSUHH[HUFHUDPXPDIXQ©¥RSURWHWLYDGH certos valores essenciais – garantia de direitos fundamentais e contenção do poder são os caracteres básicos do constitucionalismo. No pós-guerra, passaram com ainda mais vigor a estabelecer uma série de mecanismos fundamentais à sobrevivência de um Estado Democrático de Direito, e é nesse sentido que a ancoragem sugerida por Revista Jurídica da Presidência

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Habermas deve aqui ser lida como uma ancoragem ao ordenamento democrático constitucional, aos ordenamentos constitucionais que institucionalizam tais valores fundamentais. Nas palavras de Cittadino: Quando não se pode recorrer a uma identidade política sustentada por uma história marcada por êxitos, uma identidade cívica baseada em compromissos com princípios constitucionais democráticos e liberais pode garantir a integração e assegurar a solidariedade. Como lealdade a uma certa tradição, o patriotismo constitucional apela para os princípios universalistas do Estado Democrático de Direito que serão distintamente assumidos, discutidos e interpretados em cada contexto histórico particular. (2007, p. 62).

Habermas tinha em mente que toda comunidade política é, em larga medida, uma comunidade cultural, dependente de suas memórias, experiências cotidianas HDW«PHVPRGDO¯QJXDPDVLVVRQ¥RVLJQLʻFDULDTXHHPVXDEDVHQ¥RSXGHVVHP ser encontrados princípios universais. É justamente por meio de memórias, valores, FRPSURPLVVRVSU£WLFDVHLQVWLWXL©·HVGHFRPXQLGDGHVSDUWLFXODUHVTXHDVSHVVRDV reconhecem e respondem ao chamado de princípios universais. Nesse caso, o universal não renega o particular, mas é imanente a ele. Em verdade, o autor parece ter sido bem explícito nesse ponto quando, afastando a crítica comunitarista de Charles 7D\ORUDRSDWULRWLVPRFRQVWLWXFLRQDODʻUPDTXH Porém, se olharmos mais de perto o texto de Taylor, descobriremos que ele FRQW«PDSHQDVDDʻUPD©¥RVHJXQGRDTXDORVSULQF¯SLRVXQLYHUVDOLVWDVGR Estado Democrático de Direito necessitam de algum tipo de ancoragem político-cultural. Ou seja, os princípios constitucionais não podem concretizar-se nas práticas sociais, nem transformar-se na força que impulsa o projeto dinâmico da criação de uma associação de sujeitos livres e iguais, se não forem situados no contexto da história de uma nação de cidadãos e se não assumirem uma ligação com os motivos e modos de sentir e pensar dos sujeitos privados. (HABERMAS, 1997b, p. 289).

Com isso, resta evidente que, não obstante essa cultura política democrática se ancorar em valores e princípios universais, é na realidade concreta de cada país que HOHVJDQKDPVHXVLJQLʻFDGRUHDO&DGDSD¯VSRVVXLVHXVGHVDʻRVGL£ULRVPHPµULDV de crises, rupturas e conquistas que dão forma a esses princípios sem que os mesmos percam seu caráter de universalidade. É na expressão singular de cada ordenamento, representativo da experiência viva de cada cultura política democrática, TXHVHLQVHUHRFLGDG¥RUHVSRQV£YHOSHODGHIHVDGHVXDVLQVWLWXL©·HVGHOLEHUGDGH Assim, o patriotismo constitucional não pode prescindir de uma determinada iden-

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4XHPLU£QRVGHIHQGHU"3DWULRWLVPRFRQVWLWXFLRQDOHFRQVWLWXFLRQDOLVPRSRSXODUHPXPDDQ£OLVHGD3(&

tidade política que, no entanto, consiste no modo da disputa pública, discursiva em torno da interpretação de um patriotismo da Constituição concretizado em cada FDVR FRQIRUPH DV FRQGL©·HV KLVWµULFDV HP TXH YLYHPRV H TXH FRQVWLWXHP QRVVD herança (Cittadino, 2007, p. 64). O que precisa ser ressaltado é que o Estado Democrático de Direito não depende de uma virtude cívica extrema do cidadão patriota radicalmente comprometido com seu país e integralmente dedicado à realização do bem comum. O que se exige não é o sacrifício supremo, a luta de vida ou morte pelo seu povo. Isso pode ter feito algum sentido em sociedades antigas e bélicas, como a Roma de Cícero, onde a guerra e os riscos de invasão eram uma realidade cotidiana, mas hoje soa completamente deslocada. O tipo de virtude pública da qual a cidadania moderna depende é mais sutil, mas não menos virtuosa. Trata-se de um exercício de cidadania sempre vigilante, mas nem sempre ativa, pois não exige do cidadão que dedique a totalidade de seu tempo e HVIRU©RVFRPRDVFRQFHS©·HVDQWHULRUHVH[LJLDP(VVDYLV¥RGHFLGDGDQLDVHDSUR[LPD da defendida por Bruce Ackerman em Nós, O Povo Soberano (2006, p. 430), em que DʻUPDTXHXPPRGHORGHGHPRFUDFLDGXDOLVWDVHULDR¼QLFRDGHTXDGR¢OLEHUGDGH moderna. Nele, o envolvimento das massas deve ser uma variável, não uma constante, pois o cidadão deve possuir espaço para perseguir interesses privados sem precisar HVWDULQWHJUDOPHQWHHQYROYLGRFRPRGHOLEHUD©·HVHGLVFXVV·HVSRO¯WLFDV‚VFRUWHV D Suprema Corte Norte-americana, no caso) caberia então o papel de promover a disFXVV¥RS¼EOLFDFRQYLGDQGRRVFLGDG¥RVGRSUHVHQWHDUHʼHWLUHPVREUHDVLPDJHQV GDVGHFLV·HVSRSXODUHVGRSDVVDGRSDUDTXHHQW¥RVHPRELOL]DVVHPSDUDPXGDUHVVDV GHFLV·HVFDVRQ¥RPDLVDJUDGDVVHP $&.(50$1S  Sem dúvida, nenhuma sociedade poderia existir por muito tempo se seus membros agissem sempre buscando interesses meramente privados e o direito tivesse apenas uma função de dissuasão dentro do cálculo racional do indivíduo. É preciso mais do que isso para que a convivência humana em uma comunidade de iguais seja possível. O que uma democracia moderna demanda é apenas um engajamento público mínimo que, sem comprometer completamente a busca humana por seus SUµSULRVREMHWLYRVLQGLYLGXDLVVHMDFDSD]GHJHUDUFRQʻDQ©DHQWUHVHXVPHPEURVH VXDVLQVWLWXL©·HVGHPRFU£WLFDVEHPFRPRUHVSHLWRHHVIRU©RSHODHIHWLYD©¥RGHVXDV normas jurídicas e constitucionais. É preciso, resumidamente, que haja a vontade sincera de viver junto a outros indivíduos em uma democracia constitucional. Na mesma linha, Dieter Grimm, analisando o sucesso da Lei Fundamental Alemã após a guerra, reconhece no patriotismo constitucional, no amor pela sua constitui-

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ção e no orgulho pela capacidade alemã de ter reconstruído com sucesso o Estado 'HPRFU£WLFRGH'LUHLWRXPHOHPHQWRLQGLVSHQV£YHOSDUDTXHIRVVHSRVV¯YHODHʻF£FLDGDFRQVWLWXL©¥R6HPHVVDLGHQWLʻFD©¥RMDPDLVDGHPRFUDFLDSRGHULDWHUFULDGR raízes tão sólidas e profundas: [...] é certo que o êxito do Estado Constitucional não depende apenas, ou, então, só depende em primeiro lugar, da qualidade jurídica das normas H VHQWHQ©D 2 PDLV LPSRUWDQWH « TXH D SRSXOD©¥R VH LGHQWLʻTXH FRP D &RQVWLWXL©¥RHQ¥RKRQUHYLROD©·HVFRQVWLWXFLRQDLVSRUSDUWHGHLQVW¤QFLDV políticas. (2006, p. 94).

Sem uma cultura pública de respeito e apreço pela Constituição, é impossível qualquer tipo organização política fundada em torno de uma Constituição. As memórias e experiência daquela comunidade imaginada darão a forma concreta desses princípios políticos e gerarão laços de afeto capazes de unir o povo à Constituição. Quando as &RQVWLWXL©·HVFRQʻJXUDPXPFRQMXQWRGHGLUHLWRVIXQGDPHQWDLVHODVFRQWH[WXDOL]DP princípios universalistas e, assim, transformam-se na única base comum a todos os cidadãos. Em mundos pós-convencionais, onde os indivíduos não integram sólidas coPXQLGDGHV«WQLFDVRXFXOWXUDLVV¥RDV&RQVWLWXL©·HVTXHLQFRUSRUDQGRXPVLVWHPDGH direitos, podem conformar uma nação de cidadãos (CITTADINO, 2007, p. 67). (VVDEDVHFXOWXUDOGDQD©¥RQ¥R«U¯JLGDHSHWULʻFDGDPDVʼXLGDHSDVV¯YHOGH reformas graduais. A construção dessa cultura constitucional não será monopólio de burocratas e elites intelectuais, mas de um povo composto de indivíduos com GLIHUHQWHV FRQFHS©·HV GH PXQGR TXH DWUDY«V GR GL£ORJR H GD FU¯WLFD RULHQWDGDV pelos princípios de justiça procedimental – que encontram sua expressão maior na Constituição – poderão constantemente reformar os seus vínculos. Desse modo, ainda que a identidade nacional não seja extinta, ela pode ser adequada à democracia e à diversidade cultural. Se, como colocado por Carl J. Friedrich (1974, p.76), “a individualidade desenvolve-se numa pessoa que aceita certas características dos valores e das crenças tradicionais para a sociedade em que ela nasce, rejeitando outras”, então o estabelecimento de uma grande tradição democrática é essencial SDUDTXHRXWUDVWUDGL©·HVPHQRUHVHGLIHUHQWHVLGHQWLGDGHVSRVVDPFRQYLYHUHPXP ambiente de respeito e tolerância. A função da tradição seria a de proporcionar uma EDVHGHPXLWDFRPXQLFD©¥RHDUJXPHQWD©¥RLQWHJUDWLYDHʻFD]2FRQVWLWXFLRQDOLVmo, com seus princípios de justiça universais, seria hoje a tradição dominante na (XURSD2FLGHQWDO )5,('5,&+S 3DUDQD©·HVPXOWL«WQLFDVHSOXUDLVFRPR a brasileira, a necessidade dessa cultura democrática é ainda maior.

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Ao mesmo tempo, então, em que o cidadão luta por sua Constituição, ele contribui para a criação desse sentimento democrático na sociedade. Por isso, a prática constitucional não pode ser delegada a um grupo de juízes isolados, de um corpo elitista e contramajoritário, mas à soberania popular (BUNCHAFT, 2007, p. 187). Ela exige o engajamento contínuo e direto da população, o que só se torna possível se as vias de participação democrática estiverem desobstruídas e abertas a todos. Ao invés de ouvir a última palavra, o cidadão deve ser chamado a se fazer ouvir. Como nota Bunchaft (2007, p. 186), Habermas resgata a ideia de comunidade aberta de intérpretes de Peter Häberle, defendendo um processo hermenêutico aberto e dialógico, na medida em que o potencial racionalizador do debate público seria fundaPHQWDOQDOHJLWLPD©¥RGDVGHFLV·HVGRVWULEXQDLVVXSHULRUHV +$%(50$6S  (P UHIRU©R DR DUJXPHQWR FDEH VHPSUH OHPEUDU TXH D HʻF£FLD FRQVWLWXFLRQDO não se realiza sozinha. Ela depende da participação ativa da comunidade jurídica, não só dos atores institucionais. Sendo, como visto, um documento vivo e aberto, a força normativa de uma Constituição depende do esforço de todos os cidadãos e, especialmente, que exista na consciência não só a vontade de poder, mas também a vontade de Constituição. Nas palavras de Konrad Hesse: Essa vontade de Constituição origina-se de três vertentes diversas. Baseia-se na compreensão da necessidade e do valor de uma ordem normativa inquebrantável, que proteja o Estado contra o arbítrio desmedido e disforme. Reside igualmente na compreensão de que essa ordem constituída é mais do que uma ordem legitimada pelos fatos (e que, por isso, necessita de estar em constante processo de legitimação). Assenta-se também na consciência de que, ao contrário do que se dá com uma lei do pensamento, essa ordem Q¥RORJUDVHUHʻFD]VHPRFRQFXUVRGDYRQWDGHKXPDQD(VVDRUGHPDGTXLUH e mantém sua vigência através de atos de vontade. Essa vontade tem consequência porque a vida do Estado, tal corno a vida humana, não está abandonada à ação surda de forças aparentemente inelutáveis. Ao contrário, todos nós estamos permanentemente convocados a dar conformação à vida do Estado, assumindo e resolvendo as tarefas por ele colocadas. (2009, p. 133).

+HVVH S LU£DʻUPDUTXHWDOIRU©DQRUPDWLYDGHSHQGHGDpráxis constitucional, de uma adesão à lei maior, ou seja, de uma vivência e defesa da própria constituição, exatamente como se pretendeu demonstrar no presente estudo. Se uma importante razão para o surgimento do patriotismo constitucional foi o aspecto progressivo e universal da Lei Fundamental alemã (MAIA, 2005, p. 22), não há motivos para crer que também no Brasil a Constituição Federal de 1988, com similar caráter progressivo e universal, não pode fazer surgir semelhante sentimento de vivência e defesa. Revista Jurídica da Presidência

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5 Conclusão Iniciou-se procurando argumentar pela constitucionalidade da PEC 33 no que se refere a uma possível violação à cláusula de separação de poderes, demonstrando não haver uma fórmula mágica aplicável a todo e qualquer ordenamento, ou até PHVPRXPDIµUPXODHVSHF¯ʻFDDGRWDGDSHORGLUHLWREUDVLOHLURFRPD&RQVWLWXL©¥R de 1988. Como visto, tal cláusula deve ser compreendida como um princípio de organização, de alocação institucional de poder, pelo que as forças institucionalizadas se controlam e limitam. Em seguida, argumentou-se pela possibilidade de reconhecimento do povo – como titular da soberania e maior interessado na proteção suas liberdades fundamentais – como o principal responsável pela guarda da Constituição, com base no constitucionalismo norte-americano, admitindo-se que é princípio fundamental de todo governo republicano reconhecer no povo o direito de mudar e abolir a Constituição existente quando ela lhe parecer contrária à sua felicidade. O reforço dessa possibilidade veio por meio do patriotismo constitucional, ao reconhecer o que uma Constituição, incondicional e contrafaticamente, deve ser SDUD FXPSULU VHX SDSHO FHQWUDO QD MXVWLʻFD©¥R PRUDO GD IRU©D MXU¯GLFD PRWLYDQGR uma convergência cognitiva intersubjetiva vivenciada pelo povo, a partir e por meio da própria Constituição. Se é da cidadania a tarefa de viver e defender sua Constituição, e se lhe é de GLUHLWRRSRGHUGHPRGLʻFD©¥RGDVUHJUDVIXQGDPHQWDLVʻFDDLQGDJD©¥RVHULD HVVH GLUHLWR GH PRGLʻFD©¥R LOLPLWDGR" 3RU XP ODGR TXHP SRGH R PDLV SRGH R menos; o mais aqui, porém, indicaria uma ruptura completa do sistema, o que SRGH Q¥R VHU QHP R GHVHMR GR SUµSULR SRYR VREHUDQR 1DV DOWHUD©·HV LQWHUQDV no embate de forças dentro do campo constitucional, enquanto sua estrutura não for rompida, deve aí o próprio poder constituinte ater-se aos termos do FRPSURPLVVRHVWDEHOHFLGR" &DEH¢V&RQVWLWXL©·HVGHOLPLWDURVPHFDQLVPRVGHSU«FRPSURPLVVRVHQGRDV cláusulas pétreas o mais radical de tais mecanismos incorporados ao texto constitucional. Esses limites materiais ao poder de reforma impedem não só a vigência de normas contrárias aos limites estabelecidos, mas também a mera deliberação nesses termos. Em um cenário de eventual vigência da PEC 33, preocupa a hipótese de uma emenda claramente inconstitucional e violadora de cláusula pétrea ser assim declarada pelo STF, mas ser considerada absolutamente constitucional pelo Parlamento e também pelo povo brasileiro. Revista Jurídica da Presidência

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4XHPLU£QRVGHIHQGHU"3DWULRWLVPRFRQVWLWXFLRQDOHFRQVWLWXFLRQDOLVPRSRSXODUHPXPDDQ£OLVHGD3(&

Obviamente, haveria mecanismos internos ao processo decisório popular que poderiam evitar tal extremo e improvável cenário, como a exigência de uma maioria TXDOLʻFDGD RX GH P¼OWLSODV YRWD©·HV SDUD TXH IRVVH FRQVLGHUDGD DSURYDGD XPD opção. Mas mesmo após todas essas barreiras, caso se entenda pela prevalência da vontade atual do povo, poder-se-ia argumentar que a normatividade das cláusulas pétreas estaria esvaziada, eis que não teriam força para prevalecer frente à emenda GHIHQGLGDSHOR3DUODPHQWRHUDWLʻFDGDSHORSRYR1HVVHFRQʼLWRGHQRUPDVFRQVtitucionais, o artigo 60, §4o cederia frente ao artigo 102 em sua nova redação, e a salvaguarda das cláusulas pétreas quedaria em sua inutilidade. 8PD VROX©¥R SRVV¯YHO QR FDVR GH DGR©¥R GDV GLVSRVL©·HV GD 3(&  VHULD R controle prévio por Mandado de Segurança impetrado por parlamentar durante o trâmite da Emenda, ainda no curso do processo legislativo. Isso porque, como visto, RWH[WRGDSURSRVWDGHHPHQGDVHUHIHUHXQLFDPHQWHDGHFLV·HVHPD©·HVGLUHWDV de inconstitucionalidade. O grande problema é que o acesso à instância de controle UHVWDULDEDVWDQWHUHGX]LGDM£TXHDMXULVSUXG¬QFLDSDF¯ʻFDGR67)VRPHQWHUHFRQKHce ao parlamentar a legitimidade para tal remédio constitucional, em contraste com o rol de legitimados para a propositura da Ação Direta de Inconstitucionalidade do artigo 103, caput, da Constituição Federal. Por mais que o número de parlamentares no Congresso Nacional seja expressivo, a limitação do acesso aos instrumentos de controle e salvaguarda das cláusulas pétreas a somente uma categoria de indivíduos causa razoável apreensão. Ainda, caso não haja a impetração do remédio constitucional e a consequente entrada em vigência da emenda, restaria a via difusa para defender o conteúdo esVHQFLDOGD&RQVWLWXL©¥R&DVRSDVVHPDVXUJLUGHFLV·HVFRQʼLWDQWHVTXHFRQVXEVWDQciem em controvérsia judicial relevante, pode a emenda questionada vir a ser objeto de Ação Declaratória de Constitucionalidade, em que uma decisão de improcedência pelo Supremo Tribunal Federal pode reverter a decisão parlamentar e popular pela constitucionalidade da emenda. Assim, todos os atores relevantes teriam voz nesse SURFHVVRGHJXDUGDGD&RQVWLWXL©¥RRTXHGHPRGRDOJXPVLPSOLʻFDDTXHVW¥R. Procurou-se demonstrar que a proposta não é uma aberração jurídica como se tem alardeado, apesar de não ser também isenta de críticas. Sua maior importância, talvez, esteja na oportunidade para o debate, para o enriquecimento da experiência constitucional brasileira. Pelo que se tem percebido, talvez a chave para sua solução possa ser PHOKRUFRPSUHHQGLGDHPWHUPRVGHFRQʻDQ©DHQWUHRUHSUHVHQWDQWHHOHLWRRMXL]FRQVWLWXFLRQDOHHOHPHVPRȏVREHUDQRHPTXHPGHYHRSRYRFRQʻDUSDUDOKHGHIHQGHU"

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