Quem vê Capas vê Corações

May 24, 2017 | Autor: Rita Gomes Ferrão | Categoria: Graphic Design, Book Cover Design, Editorial Design, Portuguese Design, Portuguese Design History
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Descrição do Produto

PÚBLICO, QUI 25 FEV 2016 | INICIATIVAS | 47 O PÚBLICO, em parceria com a editora A Bela e o Monstro, lança em banca uma nova edição de livros fac-similados, desta vez dedicada não só a grandes obras da literatura portuguesa, mas também a algumas das mais belas capas ilustradas por grandes capistas portugueses do séc. XX. Doze volumes que homenageiam todos aqueles que alguma vez, olhando um escaparate, se deixaram seduzir pelo irresistível desenho da capa de um livro. Aos sábados com o seu jornal por mais 5,95€

AGENDA DA COLECÇÃO 27 de Fevereiro 1.º Volume Novo Mundo, Mundo Novo Autor: António Ferro Capa: Bernardo Marques 5 de Março 2.º Volume Desenraizados Autor: Erich Maria Remarque Capa: António Domingues 12 de Março 3.º Volume Páscoa Feliz Autor: José Rodrigues Miguéis Capa: Fred Kradolfer 19 de Março 4.º Volume Histórias da Minha Rua Autor: Maria Cecília Correia Capa: Maria Keil 26 de Março 5.º Volume Noite sem Lua Autor: John Steinbeck Capa: Querubim Lapa (ilustrações de Costa Pinheiro) 2 de Abril 6.º Volume A Gata Autor: Colette Capa: Paulo Guilherme 9 de Abril 7.º Volume Eloi ou Romance Numa Cabeça Autor: João Gaspar Simões Capa: Victor Palla 16 de Abril 8.º Volume A Feira Autor: John Updike Capa: João Câmara Leme 23 de Abril 9.ª Volume Amok Autor: Stefan Zweig Capa: Júlio Amorim 30 de Abril 10.º Volume O Vento Autor: Claude Simon Capa: António Charrua 7 de Maio 11.º Volume Os Homens do Mar Autor: Victor Hugo Capa: Roberto Nobre 14 de Maio 12.º Volume O Mestre Autor: Ana Hatherly Capa: Sebastião Rodrigues

Novo Mundo, Mundo Novo

O grafismo cinematográfico de Bernardo Marques

Opinião Luís Gomes

Opinião

Lisboa: Editora Portugal-Brasil, [s.d. 1930?]. – [frontispício], 280 p. : il. : (19,5 cm). Ilustrado com uma fotografia do autor em frontispício. Capa de brochura por Bernardo Marques (18981962), assinada e datada XXX (1930). Publicado sem indicação de data, Novo Mundo, Mundo Novo teve duas edições, em que a primeira parece ter tido duas tiragens: uma em que a ilustração da capa é a encarnado e preto e outra em que a mesma ilustração é em azul e preto. Este livro, bem como o que António Ferro viria a publicar um ano mais tarde Hollywood, Capital das Imagens (1931), também com capa de Bernardo Marques, resulta da reunião de um conjunto de crónicas publicadas no Diário de Notícias enquanto enviado especial do jornal aos Estados Unidos em 1927. A longa viagem tinha o propósito principal de dar a conhecer a América e a comunidade portuguesa emigrada nos Estados Unidos ao público nacional. As crónicas sucedem-se ao ritmo do avião de Lindbergh, do automóvel, do “comboiopalace”, ... da máquina de escrever. A narrativa divide-se simetricamente entre o fascínio do autor pelo moderno, pela América — pelo arranha-céus, pelo jazz, pelo veloz — por... Nova Iorque!, e o orgulho no “Portugal na América” que encontra na Califórnia, “a verde Califórnia”. “Cheguei ao Minho!” escreve no começo da sua crónica do dia 22 de Abril; ou em New Bedford, onde os portugueses, “(...) trinta e cinco mil (...) [,] fazem mover a cidade” eles próprios, homens

A capa inaugural da colecção Quem Vê Capas Vê Corações transporta-nos a um momento histórico determinante na articulação entre novo e velho mundos, o inaugurar da década de 1930. Em 1927, António Ferro deslocase aos Estados Unidos em viagem jornalística, compilando mais tarde em livro os textos daí resultantes, em Novo Mundo, Mundo Novo (1930), bem como reflexões sobre cinema e o contexto da sua produção, em Hollywood, capital das imagens (1931). O capista escolhido para ambas as publicações foi Bernardo Marques (1898-1962), figura fundamental da ilustração e da boémia lisboeta dos anos 20. Marques virá mais tarde a afirmar-se como designer e decorador ao serviço do SPN-SNI, órgão responsável pela propaganda do Estado Novo, dirigido por Ferro entre 1933 e 1950. Da cumplicidade entre artista e escritor resultarão inúmeros projectos, incluindo frisos decorativos em papel pintado, para os interiores da residência de António Ferro e Fernanda de Castro, ao Bairro Alto, no mesmo edifício onde residia o casal Bernardo e Ofélia Marques. Como afirma José-Augusto França, Bernardo Marques foi um dos criadores dos anos 20: “Tendo ido até Berlim em 29, apressou-se a voltar, armado em Grosz, para

Rita Gomes Ferrão

Novo Mundo, Mundo Novo teve duas edições: uma em que a ilustração da capa é a encarnado e preto e outra em azul e preto. Pode escolher a que preferir na banca e mulheres do seu tempo, condutores de modernidade. Novo Mundo, Mundo Novo é um diário de viagem de um jornalista surpreendido — encantado, apanhado desprevenido por uma América que descobre, ao mesmo tempo que a dá a descobrir aos seus leitores — surpreso até pela estética despojada do gabinete do Presidente dos americanos, uma “nudez (...) sintética e expressiva da democracia”. Livreiro antiquário

lhes fixar as imagens consequentes pelos anos 30 fora.” A experiência alemã faz-se notar tanto na capa de Hollywood, Capital das Imagens, na qual envereda pelo universo caricatural, indubitavelmente herdeiro da linha de Georg Grosz, como em Novo Mundo, Mundo Novo, ainda que seguindo um caminho diverso. Marques fez parte, durante a década de 30, do núcleo de ilustradores de várias revistas de cinema, em especial da Imagem, tendo também trabalhado em cenários para filmes. Na capa de Mundo Novo ecoam as referências cinematográficas vindas dos cenários megalómanos de Metrópolis de Fritz Lang, 1927, mas em especial dos cartazes concebidos para o filme, pelo designer Boris Bilinsky. Numa gramática art déco, a composição sobre fundo branco é dominada pelo recorte geométrico de um arranha-céus novaiorquino, pontuado pela repetição das janelas a negro, ressonância do texto de Ferro: “Cidade formidável, impossível, com as reticências infinitas das suas janelas.” O corpo de letra do título em dois tamanhos, sublinhado por um ponto (círculo negro), em inversão de escala, reforça a distorção expressionista da perspectiva do “arranha-céus que foge da terra”. Bernardo Marques sintetiza a visão de António Ferro, transformando-a numa imagem de rara eficiência gráfica. Historiadora de Arte

PÚBLICO, QUI 3 MAR 2016 | INICIATIVAS | 51 O PÚBLICO, em parceria com a editora A Bela e o Monstro, lança em banca uma nova edição de livros fac-similados, desta vez dedicada não só a grandes obras da literatura portuguesa, mas também a algumas das mais belas capas ilustradas por grandes capistas portugueses do séc. XX. Doze volumes que homenageiam todos aqueles que alguma vez, olhando um escaparate, se deixaram seduzir pelo irresistível desenho da capa de um livro. Aos sábados com o seu jornal por mais 5,95€

AGENDA DA COLECÇÃO

Desenraizados

27 de Fevereiro 1.º Volume Novo Mundo, Mundo Novo Autor: António Ferro Capa: Bernardo Marques 5 de Março 2.º Volume Desenraizados Autor: Erich Maria Remarque Capa: António Domingues 12 de Março 3.º Volume Páscoa Feliz Autor: José Rodrigues Miguéis Capa: Fred Kradolfer 19 de Março 4.º Volume Histórias da Minha Rua Autor: Maria Cecília Correia Capa: Maria Keil 26 de Março 5.º Volume Noite sem Lua Autor: John Steinbeck Capa: Querubim Lapa (ilustrações de Costa Pinheiro) 2 de Abril 6.º Volume A Gata Autor: Colette Capa: Paulo Guilherme 9 de Abril 7.º Volume Eloi ou Romance Numa Cabeça Autor: João Gaspar Simões Capa: Victor Palla 16 de Abril 8.º Volume A Feira Autor: John Updike Capa: João Câmara Leme 23 de Abril 9.ª Volume Amok Autor: Stefan Zweig Capa: Júlio Amorim 30 de Abril 10.º Volume O Vento Autor: Claude Simon Capa: António Charrua 7 de Maio 11.º Volume Os Homens do Mar Autor: Victor Hugo Capa: Roberto Nobre 14 de Maio 12.º Volume O Mestre Autor: Ana Hatherly Capa: Sebastião Rodrigues

Opinião Luís Gomes REMARQUE, Erich-Maria, (pseud. de Erich Paul Remark, 18981970). -Desenraizados. Lisboa: Publicações Europa-América, 1960. – 448, [2] p. : (19,5 cm). Capas de brochura ilustradas por António Domingues (1921-2004). Traduzido da edição original com o título Flotsam (Boston: Litlle Brown, 1941), por Sacuntalá de Miranda (1934-2008), este é o 34.º título da Colecção Século XX que curiosamente se iniciou com dois outros títulos do mesmo autor: A Centelha da Vida (1955) com tradução de José Saramago e Tempo Para Amar e Tempo Para Morrer (1956) traduzido por Isabel da Nóbrega. Apesar de escrita originalmente em alemão (Liebe Deinen Nächsten), esta obra foi publicada pela primeira vez em inglês em 1941 e, no mesmo ano, adaptada para cinema com o título So Ends Our Night, numa realização de John Cromwell. Desenraizados, fruto da era da catástrofe, é um livro que conta dos preliminares da guerra pela experiência daqueles que só podem perder, arrancados à sua terra — os refugiados — neste caso refugiados alemães que sendo judeus ou católicos, artistas, comunistas ou democratas... eram perseguidos pelo regime nazi. Conta da forma como os países onde procuravam abrigo, se demitiam de o dar atemorizados pelas consequências, políticas e económicas, causadas pelas vagas de estrangeiros que lhes batiam à porta. Entre burocracias e vigilâncias policiais apertadas, os estrangeiros sem passaporte, eram perseguidos e expulsos, remetidos de volta ao lado de lá da fronteira, ao esquecimento... Mas, conta também da tenacidade, da resiliência, do engenho de quem,

tendo perdido a sua identidade, a sua família, a sua nação, quase tudo..., teme pela sua vida mas, continua a amar, a existir, está vivo, quer continuar a ser, quer continuar a estar. Desenraizados é um livro actual, algumas das realidades

Os preliminares da guerra pela experiência daqueles que só podem perder

de que dá conta, infelizmente, são em grande parte duma contemporaneidade gritante, feitas de ódios, de angústias, de fronteiras, de falta de solidariedade, de medo — de medo do Outro. Livreiro antiquário

O risco de António Domingues Opinião Rita Gomes Ferrão Profundamente envolvido no debate artístico dominante em Portugal, em meados do século XX, António Domingues (1921-2004), oscilou entre o Surrealismo, o Abstraccionismo e o Neorrealismo, afirmando-se como pintor e ilustrador. Enquanto estudante, foi maquetista numa litografia, especializando-se em artes gráficas. Como designer gráfico trabalhou na Câmara Municipal de Lisboa e colaborou com a Editorial Globo, onde inicia actividade como capista, pela qual será diversas vezes distinguido na Agência Editorial Brasileira, na Prelo ou nas Publicações Europa-América. Esta última, em 1960, seria responsável pela edição portuguesa de Flotsam de Erich Maria Remarque, publicado originalmente em 1941. Nesta edição, o título em inglês, referindo-se a uma população de refugiados como despojos de um naufrágio, é por opção de tradução convertido em Desenraizados, o que permitirá a António Domingues arriscar uma original solução imagética para a capa, eliminando qualquer possibilidade de referência às congéneres internacionais, ao dar corpo tanto ao título como à epígrafe: “Viver sem raízes

amargura o coração”. Capa, lombada e contracapa constituem uma peça gráfica una, com leitura sequencial, quase narrativa. António Domingues trata de modo dinâmico o processo de desenraizamento, centrando-se na estilização expressiva de um maciço de raízes arrancado ao solo. A acção é dada em três momentos, os dois primeiros concentrados na capa. No primeiro, a enorme raiz vermelha recorta-se em fundo negro, evocando o ambiente da “floresta (…) envolta em negrume, mistério e terror.” No segundo, em que a raiz, agora a púrpura, é violentamente arrancada, Domingues usa com mestria os seus conhecimentos litográficos, tirando partido da transparência das duas cores, cuja sobreposição origina um denso vermelho escuro, sublinhando o dramatismo do movimento através da gradação da cor. Por fim, no terceiro, situado na contracapa, com ramificações na lombada, a raiz, agora a vermelho sobre branco, permanece suspensa no vazio, segundo um eixo diagonal de modo a sublinhar o efeito de instabilidade. Também o tratamento do título constitui uma ruptura significante. Quebrando a palavra “DESEN-RAIZADOS” e mudando de linha, António Domingues enfatiza a ideia de desligamento, resolvendo em simultâneo um problema gráfico: a inserção de uma longa palavra em caixa-alta, num espaço exíguo. Na lombada, seguindo a mesma lógica, a separação silábica é sublinhada pela impressão em duas cores, preto e púrpura. De ascendência africana, Domingues seria um activo militante contra o regime Salazarista. A sua história pessoal e dos movimentos de libertação das colónias em que participou empenhadamente, talvez se tenham revelado nestas imagens. Historiadora de Arte

PÚBLICO, QUI 10 MAR 2016 | INICIATIVAS | 47 O PÚBLICO, em parceria com a editora A Bela e o Monstro, lança em banca uma nova edição de livros fac-similados, desta vez dedicada não só a grandes obras da literatura portuguesa mas também a algumas das mais belas capas ilustradas por grandes capistas portugueses do séc. XX. Doze volumes que homenageiam todos aqueles que alguma vez, olhando um escaparate, se deixaram seduzir pelo irresistível desenho da capa de um livro. Aos sábados com o seu jornal por mais 5,95€

AGENDA DA COLECÇÃO

Novela Páscoa Feliz

27 de Fevereiro 1.º volume Novo Mundo, Mundo Novo Autor: António Ferro Capa: Bernardo Marques 5 de Março 2.º volume Desenraizados Autor: Erich Maria Remarque Capa: António Domingues 12 de Março 3.º volume Páscoa Feliz Autor: José Rodrigues Miguéis Capa: Fred Kradolfer 19 de Março 4.º volume Histórias da Minha Rua Autor: Maria Cecília Correia Capa: Maria Keil 26 de Março 5.º volume Noite sem Lua Autor: John Steinbeck Capa: Querubim Lapa (ilustrações de Costa Pinheiro) 2 de Abril 6.º volume A Gata Autor: Colette Capa: Paulo Guilherme 9 de Abril 7.º volume Eloi ou Romance Numa Cabeça Autor: João Gaspar Simões Capa: Victor Palla 16 de Abril 8.º volume A Feira Autor: John Updike Capa: João Câmara Leme 23 de Abril 9.º volume Amok Autor: Stefan Zweig Capa: Júlio Amorim 30 de Abril 10.º volume O Vento Autor: Claude Simon Capa: António Charrua 7 de Maio 11.º volume Os Homens do Mar Autor: Victor Hugo Capa: Roberto Nobre 14 de Maio 12.º volume O Mestre Autor: Ana Hatherly Capa: Sebastião Rodrigues

Opinião Luís Gomes MIGUÉIS, José Rodrigues, (19011980). — Páscoa Feliz. Lisboa: Edições Alfa, 1932. — 166, [2] p.: (19cm). Capa de brochura ilustrada por Fred Kradolfer (19031968). Livro de estreia de José Rodrigues Miguéis e que lhe valeu o Prémio Literário da Casa da Imprensa (1932). Apesar de Páscoa Feliz, segundo Massaud Moisés, ser um dos romances mais importantes do autor e dos anos 1930 em Portugal, não foi sem padecimento que viu a luz do dia. No posfácio à segunda edição (Estúdios Cor, 1958), o autor dá conta das dificuldades que teve em encontrar editor para esta novela: Acabado o manuscrito, em papel almaço de trinta e cinco linhas, andei com ele algum tempo sem saber o que fazer. Onde estavam então os editores que hoje, por bem da nossa glória literária, pululam em Portugal? Chianca de Garcia leu-a e propôs-se publicá-la: mas a editorial a que estava ligado desapareceu, e com ela a esperança do prémio que ele me profetizava. Lia-a mais tarde a Câmara Reys, que deu à estampa, na “Seara Nova”, o segundo capítulo. Mas a novela continuava inédita. Até que um próspero sindicato operário condescendeu em editá-la: na Páscoa de 1932, com uma ortografia atrabiliária, impressa em mau papel, e com o único chamariz da capa de Fred Kradolfer.(...) O próspero sindicato a que se refere Miguéis é o Sindicato dos Arsenalistas (da Marinha

e do Exército), proprietário de O Arsenalista, jornal com sede na mesma morada das Edições Alfa (chancela criada para publicar este livro?), Campo de Santa Clara, 87. Esta é também a organização sindical para a qual Bento de Jesus Caraça, amigo e correligionário de Miguéis no então recém-criado Núcleo de Intelectuais Simpatizantes (do PCP), dá aulas a trabalhadores num curso livre (1931-1932). Mas se não foi fácil publicar a primeira edição, foram precisos vinte e seis anos e alguns contratempos para que os Estúdios Cor editassem a segunda (definitiva), desta feita com capa de Infante do Carmo. Acerca dela apareceu, há meia dúzia de anos, num dos leilões organizados pelo meu ilustre colega Luís Burnay, com o número de lote 196, uma carta de José Rodrigues Miguéis para David Mourão-Ferreira, Nova Yorque, 17 de Dezembro 1948, da qual o bibliógrafo teve o cuidado de transcrever alguns trechos de onde extraí esta pequena mas elucidativa nota: (...) Talvez não saibas que a Ática, que já tinha a 2ª edição da Páscoa toda composta e revista (e impressas as gravuras hors-texte do Keil), destruiu a edição, isto é, derreteu o metal! E já me tinham pago metade dos direitos de autor. (...) E depois queixam-se: “o Zé não faz nada !” Dá vontade de esquecer tudo e ir para a Lua. José Rodrigues Miguéis nasceu a 9 de Dezembro de 1901 na Rua da Saudade em Alfama, cidade de Lisboa e morreu a 27 de Outubro de 1980 na cidade de Nova Iorque. Livreiro antiquário

Fred Kradolfer, afinidades electivas Opinião Rita Gomes Ferrão Resultado do nomadismo artístico dominante no período entre as Guerras, em 1924, chega a Portugal o jovem Fred Kradolfer (1903-1968). De origem suíça, formado na Zürich Kunstgewerbeschule (Escola de Artes Aplicadas de Zurique) e na Akademie der Bildenden Künste München (Academia de Belas-Artes de Munique), com apenas vinte e um anos, Kradolfer havia já trabalhado em Roterdão, Bruxelas e Paris, na concepção de montras para vários estabelecimentos comerciais. A presença de Fred Kradolfer em Portugal foi determinante para a mudança de paradigma nas abordagens ao design de comunicação. O artista traz, para um país sem escola, novas metodologias e aproximações ao domínio das artes gráficas, influenciando um grupo de decoradores, ilustradores e designers que marcarão as décadas de 1930 e 40. O seu “receituário era acessível e de efeitos seguros”, com ele se “lançaram entre nós os fundamentos da publicidade artística organizada”, como explica Carlos Queirós, na revista Variante, em 1942. Como capista, Kradolfer associará desenho tipográfico e ilustração, criando peças inovadoras no contexto nacional. Trabalha sobretudo com as Edições Paulo Guedes, Portugália Editora, Livraria Bertrand e Editorial Inquérito, sendo responsável pela imagem gráfica de várias colecções de livros, ao longo de vários anos. Como afirma José Bártolo, “A introdução das linguagens gráficas modernas em Portugal é um dos méritos

de Fred Kradolfer, outro será a sua capacidade de, permanentemente, as actualizar e aculturar”. Deste processo de constante aculturação é testemunho a capa de Páscoa Feliz, 1932, uma peça atípica na produção gráfica de Kradolfer, bastante demonstrativa da aproximação ao contexto português. Obra de estreia, publicada antes de José Rodrigues Miguéis se fixar nos Estados Unidos, Páscoa Feliz centra-se na vida tumultuosa do protagonista, precipitada num turbilhão de acontecimentos trágicos. Na capa, Kradolfer transpõe graficamente o texto narrado na primeira pessoa, como se de um auto-retrato psicológico do protagonista se tratasse. Sobre vigorosas manchas gestuais a vermelho e negro, surge o traçado sensível de um retrato. Rosto a linha em negativo, sobre a mancha de cor texturada, numa técnica de gravura pouco convencional na obra do designer. À procura de uma caligrafia pessoal capaz de captar a identidade do protagonista, Kradolfer aproxima-se da linguagem plástica de artistas como Mário Eloy, um pintor da sua geração, cuja obra possui um forte efeito expressivo, especialmente no modo como trabalha rostos e olhares incertos, e mais ainda de Almada Negreiros, um artista da geração anterior, referência fundamental no contexto português, cujo desenho seguro e sintético aqui é inequivocamente convocado. Se a capa de Páscoa Feliz constitui uma excepção na produção gráfica de Fred Kradolfer, ela é também prova da sua aculturação, fazendo eco de afinidades electivas. Historiadora de arte

PÚBLICO, QUI 17 MAR 2016 | INICIATIVAS | 47 O PÚBLICO, em parceria com a editora A Bela e o Monstro, lança em banca uma nova edição de livros fac-similados, desta vez dedicada não só a grandes obras da literatura portuguesa mas também a algumas das mais belas capas ilustradas por grandes capistas portugueses do séc. XX. Doze volumes que homenageiam todos aqueles que alguma vez, olhando um escaparate, se deixaram seduzir pelo irresistível desenho da capa de um livro. Aos sábados com o seu jornal por mais 5,95€

AGENDA DA COLECÇÃO 27 de Fevereiro 1.º volume Novo Mundo, Mundo Novo Autor: António Ferro Capa: Bernardo Marques 5 de Março 2.º volume Desenraizados Autor: Erich Maria Remarque Capa: António Domingues 12 de Março 3.º volume Páscoa Feliz Autor: José Rodrigues Miguéis Capa: Fred Kradolfer 19 de Março 4.º volume Histórias da Minha Rua Autor: Maria Cecília Correia Capa: Maria Keil 26 de Março 5.º volume Noite sem Lua Autor: John Steinbeck Capa: Querubim Lapa (ilustrações de Costa Pinheiro) 2 de Abril 6.º volume A Gata Autor: Colette Capa: Paulo Guilherme 9 de Abril 7.º volume Eloi ou Romance numa Cabeça Autor: João Gaspar Simões Capa: Victor Palla 16 de Abril 8.º volume A Feira Autor: John Updike Capa: João Câmara Leme 23 de Abril 9.º volume Amok Autor: Stefan Zweig Capa: Júlio Amorim 30 de Abril 10.º volume O Vento Autor: Claude Simon Capa: António Charrua 7 de Maio 11.º volume Os Homens do Mar Autor: Victor Hugo Capa: Roberto Nobre 14 de Maio 12.º volume O Mestre Autor: Ana Hatherly Capa: Sebastião Rodrigues

Histórias da Minha Rua Opinião Luís Gomes CORREIA, Maria Cecília, 19191993; KEIL, Maria, 1914-2012, (il.) Histórias da Minha Rua. Lisboa: Portugália Editora, [s.d. 1953]. - [48] p. : il. : (24 cm). Com capa e ilustrações de Maria Keil, Histórias da Minha Rua é a primeira obra de Maria Cecília e foi com ela que, em 1953, autora e ilustradora ganharam o Prémio Maria Amália Vaz de Carvalho, criado pelo SNI (Secretariado Nacional de Informação) a fim de distinguir autores e ilustradores na área da literatura infanto-juvenil. Lindíssimo volume que reúne dez histórias que nos remetem para o imaginário de uma Lisboa onde o rural se entretecia na malha urbana, onde conhecíamos pelo nome o senhor do lugar da fruta, onde a Cilinha deu pela falta do Chico que adoeceu e que, naquele Natal, não entregou os pinheiros que sempre trazia. Intemporal como qualquer bom livro, este conta (e faz-nos lembrar) dos cheiros, das cores, dos sons, da rua da nossa infância, da rua do nosso bairro, espaço antigo de liberdade — que, apesar de público era uma extensão da casa de cada um — tomado de assalto por gerações de gaiatos que, apropriando-se dele, verdadeiramente aí reinavam. A brincar na rua, na nossa rua, unidos ao vizinho por laços de que não dávamos conta, aprendemos a viver em brincadeiras ancestrais, permanentemente reinventadas. Experimentávamos limites e alargávamos os horizontes para lá da nossa rua. E, assim, íamos aprendendo da vida e, algumas vezes, mais do que aquelas de que me quero lembrar, da morte... devagar... aos poucos... amigos de brincadeiras esfumaram-se pelas esquinas da rua e da vida. As relações com este lugar são,

sempre foram, geracionais; hoje, deixou de ser a nossa rua, parece já não ser o espaço de liberdade e de aprendizagem que sempre foi para a criançada, pelo menos, não, na grande cidade. É uma rua nova, é palco, tela, local de encontro, continua a ser usada como espaço de liberdade, aprendizagem e transgressão, mas sobretudo por grupos de adolescentes e jovens adultos; as crianças foram remetidas a parques higienizados, sob vigilância. A nova rua foi também incorporada como um espaço virtual combinando muitas das suas antigas valências com

alamedas e auto-estradas virtuais, em jogos mediados por ecrãs anónimos, onde os laços que unem os vizinhos, que podem estar noutro continente, são também eles, virtuais. E que tem tudo isto a ver com um livro para crianças? — pode perguntar-se quem lê este escrito. Tudo — direi eu — pois não é para despertar a imaginação do leitor, fazer pensar e sonhar que se escrevem livros? — e ainda mais quando eles são para crianças. Livreiro antiquário

Maria Keil, uma capa em azulejo Opinião Rita Gomes Ferrão O novo volume da colecção Quem Vê Capas Vê Corações, na sequência de Fred Kradolfer, não por acaso, celebra a obra gráfica de Maria Keil (19142012). Conhecida de um público alargado pelos revestimentos azulejares concebidos para as estações do Metropolitano de Lisboa, Maria Keil, com formação em Pintura pela Escola de Belas Artes de Lisboa, foi sobretudo ilustradora e artista gráfica. Membro do ETP (Estúdio Técnico de Publicidade), desde 1936, a formação de Maria Keil deve muito a Kradolfer. Numa entrevista, em 2008, a artista afirma: “Fred Kradolfer foi um sol que entrou cá para tirar as teias de aranha que nós tínhamos.” Este ascendente é sobretudo reconhecível na sua produção dos anos de 1940, dando lugar, na década seguinte, a uma abordagem própria, que alia à aprendizagem, o sentido de humor e a delicadeza da linha, completamente emancipada da solidez geométrica proposta pelo artista suíço. Na referida entrevista, Maria Keil comenta as suas ilustrações: “houve uma época um pouco dura e desagradável, nos anos 40, em que os desenhos não são bonitos, são um bocadinho secos. Eu sinto isso nas coisas que fiz, nota-se nas ilustrações para livros.” Com as ilustrações do livro Histórias da Minha Rua (1953), a artista inaugura a afirmação de uma linguagem pessoal, livre dos constrangimentos da década

anterior, onde a linha ganha vida e o fulgor cromático se materializa na utilização de contrastes de cores complementares, como por exemplo a combinação encarnado/verde. No entanto, é na capa que Histórias da Minha Rua surpreende pela antevisão do trabalho azulejar de Maria Keil. De facto, a rede gráfica unificadora da superfície parece desejar já o pano de parede revestido a azulejo, cujos primeiros projectos conhecidos datam do ano seguinte. Como é sabido, a artista será responsável por uma profunda renovação operada na produção azulejar portuguesa, decorrente sobretudo da sua apetência para as artes gráficas, conjugada com um especial entendimento das relações entre azulejo e arquitectura. No Metro de Lisboa, onde por imposição da encomenda e compreensão da natureza transitiva do espectador, optou pelo desenho de padrões abstractos, a concepção gráfica alia-se à superfície estampilhada do azulejo, criando o cenário perfeito para corpos em movimento e olhares fugidios. Já a rede gráfica da capa de Histórias da Minha Rua é concebida de modo a produzir a ilusão de movimento, alinhada com as pesquisas formais internacionalmente realizadas pelos artistas da Arte Op, criando um efeito óptico ondulante que enquadra a figura de uma menina, sentada no chão, perdida nas suas leituras. Esta rede faz eco das experiências pictóricas de Maria Helena Vieira da Silva, na década de 1930, em pinturas como “O Quarto dos Azulejos”, antecipando o padrão do painel azulejar O Mar (195658), na Avenida Infante Santo, em Lisboa, momento maior da obra de Maria Keil. Historiadora de arte

PÚBLICO, QUI 24 MAR 2016 | INICIATIVAS | 51 O PÚBLICO, em parceria com a editora A Bela e o Monstro, lança em banca uma nova edição de livros fac-similados, desta vez dedicada não só a grandes obras da literatura portuguesa mas também a algumas das mais belas capas ilustradas por grandes capistas portugueses do séc. XX. Doze volumes que homenageiam todos aqueles que alguma vez, olhando um escaparate, se deixaram seduzir pelo irresistível desenho da capa de um livro. Aos sábados com o seu jornal por mais 5,95€

AGENDA DA COLECÇÃO

Noite sem Lua

Querubim Lapa, dueto improvável

Opinião Luís Gomes

Opinião Rita Gomes Ferrão

STEINBECK, John, (1902-1968) Noite sem Lua : Romance. Lisboa: Ulisseia, 1955 - 176, [3] p. : il. : (19 cm). Capa e ilustrações (19) de Costa Pinheiro (1932-2015), tradução de Pedro Manuel de Figueiredo, publicado na colecção Sucessos Literários. Primeira edição portuguesa. O livro conta a ocupação militar de uma pequena e pacata cidade mineira, por um poderoso exército invasor que queria impor uma nova ordem ao mundo. Sem citar nomes ou locais, a narrativa sugere uma cidade norueguesa ocupada pelas tropas de Hitler. Apesar das críticas que recebeu por “humanizar” o inimigo, esta obra tornouse por toda a Europa ocupada um manifesto de resistência à opressão nazi, incitando à revolta e à sabotagem. Este romance teve inúmeras edições, mais ou menos clandestinas, traduzidas, distribuídas e introduzidas furtivamente nos países ocupados pelas forças alemãs. A posse de um exemplar era razão para brutais sanções: em Itália, fuzilamento. Com o título The Moon is Down, a edição original deste romance, publicada em 1942 pela editora nova-iorquina The Viking Press, tem a particularidade de ter tido duas tiragens. A primeira, apresentava um pequeno erro tipográfico (um ponto entre as palavras talk e this na página 112, linha 11) que foi corrigido na segunda tiragem. É fundamental referir algumas das edições, hoje raríssimas, heroicamente publicadas e colocadas em circulação durante a guerra: a primeira edição em norueguês foi impressa na Suécia com o título Natt Uten Mane e introduzida clandestinamente na Noruega em 1942. No mesmo ano, Maanen er skjult, título da

Nas publicações de grande tiragem, o desenho da capa e as ilustrações que acompanham o texto, conferem especificidade e originalidade à obra impressa, já que, a par com a tradução, são elas que definem a identidade de cada edição, distinguindo-a das suas congéneres nacionais e internacionais. Nas décadas de 1950 e 60, a editora Ulisseia foi responsável por uma renovação do design editorial em Portugal. Pela mão do seu criador, Joaquim Figueiredo Magalhães, artistas e ilustradores foram chamados a intervir em cada nova publicação. “Cada livro deveria ser uma obra artística, quer no texto quer na ilustração. Por isso cada obra tinha uma equipa: o capista, o ilustrador, o tradutor e o autor”, como explica o editor, citado por Catarina Portas, em 2008. O interesse de Figueiredo Magalhães pelas artes gráficas e a admiração pelo trabalho dos artistas, na mesma medida em que admirava o trabalho dos escritores, leva-o a fomentar inúmeras colaborações, muitas delas improváveis, dando origem a obras surpreendentes. Querubim Lapa (n. 1925), formado pela Escola de BelasArtes de Lisboa, integrante do movimento neo-realista, dá início, em 1954, ao trabalho cerâmico que mais tarde lhe trará notoriedade, realizando também as primeiras experiências em artes gráficas. Segundo nos conta o artista, terá sido o arquitecto Francisco da Conceição Silva, essencial dinamizador do panorama artístico lisboeta, que o terá levado ao contacto com Figueiredo Magalhães e à

27 de Fevereiro 1.º volume Novo Mundo, Mundo Novo Autor: António Ferro Capa: Bernardo Marques 5 de Março 2.º volume Desenraizados Autor: Erich Maria Remarque Capa: António Domingues 12 de Março 3.º volume Páscoa Feliz Autor: José Rodrigues Miguéis Capa: Fred Kradolfer 19 de Março 4.º volume Histórias da Minha Rua Autor: Maria Cecília Correia Capa: Maria Keil 26 de Março 5.º volume Noite sem Lua Autor: John Steinbeck Capa: Querubim Lapa (ilustrações de Costa Pinheiro) 2 de Abril 6.º volume A Gata Autor: Colette Capa: Paulo Guilherme 9 de Abril 7.º volume Eloi ou Romance numa Cabeça Autor: João Gaspar Simões Capa: Victor Palla 16 de Abril 8.º volume A Feira Autor: John Updike Capa: João Câmara Leme 23 de Abril 9.º volume Amok Autor: Stefan Zweig Capa: Júlio Amorim 30 de Abril 10.º volume O Vento Autor: Claude Simon Capa: António Charrua 7 de Maio 11.º volume Os Homens do Mar Autor: Victor Hugo Capa: Roberto Nobre 14 de Maio 12.º volume O Mestre Autor: Ana Hatherly Capa: Sebastião Rodrigues

edição original em dinamarquês, foi impressa em duplicador por De Danske Studenters Forlag; esta edição é ilustrada com um desenho que representa um fuzilamento. A primeira edição em francês, publicada em Abril de 1943 com o título Nuits sans lune em Lausanne na Suíça, foi censurada pelo Governo para evitar animosidades com vizinhos alemães. Assim, a 29 de Fevereiro de 1944, as Éditions de Minuit, editora da resistência francesa, lançaram uma nova tradução francesa, esta com o título Nuits noires. Ainda em 1944, com tradução e ilustração assinadas com nomes fictícios, as edições Bezige Bij de Utrecht, publicam De vliegenvanger (O apanha-moscas), título escolhido pelo tradutor fazendo referência a um dos capítulos. Para além das várias edições em livro e ainda numa lógica de propaganda antinazi e de apoio ao esforço de guerra, The Moon is Down foi adaptado ao teatro por Steinbeck e, em 1943, ao cinema numa realização de Irving Pichel. Se há livros que alguma vez fizeram a diferença, este foi sem dúvida um deles. Livreiro antiquário

realização de duas capas para a Ulisseia, em 1955. A primeira, para “O Ente Querido” de Evelyn Waugh, assenta sobre uma construção geométrica abstracta, próxima de alguns dos seus padrões azulejares e foi acompanhada por ilustrações de João Abel Manta. A segunda, para “Noite Sem Lua” de John Steinbeck, desenvolve-se sobre um pano de fundo vermelho claro, contínuo e unificador, centrando-se na representação de uma mulher com uma tesoura no regaço. Esta figura é Molly Morden, personagem que vinga o assassinato do marido usando uma tesoura como arma. O utensílio doméstico, empregado nos lavores e objecto simbólico do universo feminino, é colocado em evidência, aberto, emoldurado pelas mãos da figura. Ultrapassando a ortodoxia neo-realista, Querubim parece actualizar a temática da sua pintura “As Costureiras” (1949), conferindo-lhe um conteúdo psicanalítico, num desenho moderno, decomposto em secções de cores contrastantes. À complexidade da figura da capa, opõem-se as ilustrações da autoria de António Costa Pinheiro (1932-2015), ainda que incipientes, demonstram já um fino sentido de humor e uma notável capacidade de síntese. Fazendo uso exclusivo da linha, sublinhada por tramas gráficas, Costa Pinheiro desenvolve uma linguagem clara, para lá da descrição. O jovem artista partiria para Munique, dois anos depois, onde frequentaria a Academia de Belas-Artes, fixando-se posteriormente em Paris, onde seria co-fundador do Grupo KWY, responsável pela revista com o mesmo nome. Historiadora de arte

PÚBLICO, QUI 31 MAR 2016 | INICIATIVAS | 43 O PÚBLICO, em parceria com a editora A Bela e o Monstro, lança em banca uma nova edição de livros fac-similados, desta vez dedicada não só a grandes obras da literatura portuguesa mas também a algumas das mais belas capas ilustradas por grandes capistas portugueses do séc. XX. Doze volumes que homenageiam todos aqueles que alguma vez, olhando um escaparate, se deixaram seduzir pelo irresistível desenho da capa de um livro. Aos sábados com o seu jornal por mais 5,95€

AGENDA DA COLECÇÃO

A Gata

Paulo-Guilherme, o ar do tempo

27 de Fevereiro 1.º volume Novo Mundo, Mundo Novo Autor: António Ferro Capa: Bernardo Marques 5 de Março 2.º volume Desenraizados Autor: Erich Maria Remarque Capa: António Domingues 12 de Março 3.º volume Páscoa Feliz Autor: José Rodrigues Miguéis Capa: Fred Kradolfer 19 de Março 4.º volume Histórias da Minha Rua Autor: Maria Cecília Correia Capa: Maria Keil 26 de Março 5.º volume Noite sem Lua Autor: John Steinbeck Capa: Querubim Lapa (ilustrações de Costa Pinheiro) 2 de Abril 6.º volume A Gata Autor: Colette Capa: Paulo Guilherme 9 de Abril 7.º volume Eloi ou Romance Numa Cabeça Autor: João Gaspar Simões Capa: Victor Palla 16 de Abril 8.º volume A Feira Autor: John Updike Capa: João Câmara Leme 23 de Abril 9.º volume Amok Autor: Stefan Zweig Capa: Júlio Amorim 30 de Abril 10.º volume O Vento Autor: Claude Simon Capa: António Charrua 7 de Maio 11.º volume Os Homens do Mar Autor: Victor Hugo Capa: Roberto Nobre 14 de Maio 12.º volume O Mestre Autor: Ana Hatherly Capa: Sebastião Rodrigues

Opinião Luís Gomes COLETTE (1873-1954) A Gata. Lisboa: Estúdios Cor, 1959. — 177, [7] p. : (20 cm). Tradução de João Belchior Viegas (1926-2004). Capa de brochura ilustrada por Paulo Guilherme (Paulo-Guilherme Tomás d’Eça Leal 1932-2010), primeira edição portuguesa, número 35 da colecção Latitude. La Chatte, título original deste romance, teve a sua aparição pública, distribuída em nove partes (folhetins), na revista Marianne, de Gaston Galimard, entre 12 de Abril e 7 de Junho de 1933, a primeira edição em livro editada por Bernard Grasset sairia ainda em Junho desse mesmo ano. Sidonie-Gabrielle Colette, ou apenas Colette como escolheu ser conhecida, nasceu a 28 Janeiro de 1873 em Saint-Sauveur-enPuisaye, Borgonha, em França. Sem preconceitos nem tabus, Colette incorporou as suas muitas e variadas experiências de vida nos livros que escreveu, de tal forma que obra e biografia quase se fundem. É um mito nacional, a primeira mulher a ocupar o cargo de presidente da Académie Goncourt, uma das maiores escritoras francesas de sempre. Com uma obra vastíssima, a escrita foi apenas uma das muitas facetas desta mulher tão complexa; a dança, o teatro, a cenografia, o jornalismo, foram algumas das formas que cultivou e usou para expressar a sua complexidade criativa. Foi, e ainda é, uma autora apreciada no mundo inteiro. Em Portugal, procurando na muito útil Porbase da Biblioteca Nacional, podem encontrar-se oito registos de títulos traduzidos e publicados no nosso país entre 1953 e 2009 (alguns com várias edições e traduções). Mesmo admitindo que a Biblioteca Nacional não possui toda as obras de Colette publicadas

em Portugal, estranha-se as poucas traduções em edição nacional, sobretudo num país francófilo no que respeita à literatura. O registo mais antigo disponível é tardio, de 1953, A Vagabunda, tradução de Tomaz de Figueiredo (Guimarães Editores). Interrogo-me sobre essa lacuna, que não me parece mero fruto do desinteresse por parte dos editores. Uma possível explicação pode dever-se ao elevado conhecimento e domínio da língua francesa por sucessivas gerações de leitores. Sabendo que Chéri,

traduzido por Saramago (Estúdios Cor, 1960), esteve no rol dos livros proibidos até 1974, acredito que a principal razão para uma pobre acção editorial portuguesa à volta da obra de Colette está no que António Ferro, um dos primeiros a reconhecer o génio de quem nas suas palavras representava a mulher do futuro, sobre ela escreveu: “(...) heroína de uma nova civilização (...) que luta pela Vida – vis-à-vis dos homens.” Livreiro antiquário

Opinião Rita Gomes Ferrão O volume sexto da colecção “Quem Vê Capas Vê Corações” transporta-nos novamente a referências cinematográficas, através da obra de um dos capistas mais produtivos das décadas de 1950 a 70. Paulo Guilherme d’Eça Leal (1932-2010) herdou do pai, Olavo d’Eça Leal, o espírito ecléctico e virtuoso. Embora tenha frequentado o curso de Pintura da Escola de Belas-Artes de Lisboa, foi no meio em que cresceu e se formou que fez escola. No ano do seu nascimento, o pai era redactor e ilustrador da revista Imagem, a mais sofisticada revista portuguesa de cinema da década de 30. Olavo d’Eça Leal, locutor da Emissora Nacional e autor de inúmeras peças de teatro radiofónico e televisivo, desenvolveu vasta obra literária e artística, foi correspondente em Berlim durante a II Guerra Mundial, colaborou em diversas publicações periódicas, trabalhou em publicidade e coleccionou arte e antiguidades. O seu filho Paulo-Guilherme (como assinava os trabalhos, abdicando do nome de família) segue-lhe as pisadas, afirmando-se como personalidade independente e autodeterminada. Beneficiando de uma educação privilegiada, enformada pela diversidade de interesses do pai e pelo círculo de intelectuais e artistas com que conviveu desde cedo, Paulo-Guilherme emancipa-se muito jovem,

dando início a uma carreira multifacetada. A sua produção alarga-se às artes gráficas, publicidade, arquitectura e design de interiores, cenografia, fotografia, cinema e escrita, reflectindo um modo de estar cosmopolita e informado, atento às tendências internacionais. Foi um capista regular, colaborando com inúmeras editoras na criação de algumas das soluções gráficas mais criativas e eficientes do séc. XX, em Portugal. No caso da capa de A Gata (1959), a composição triangular, herança da pintura clássica e das sínteses geométricas modernas, parece querer materializar a estrutura narrativa, um triângulo amoroso. No entanto, no desenho da figura feminina afagando o felino, a imagem extravasa a referência literária, estabelecendo relações de proximidade com o contexto da época. Mais precisamente com o filme Bell, Book and Candle (1958), estreado em Portugal com o nome Sortilégio de Amor, uma comédia romântica realizada por Richard Quine, que perpetua o par hitchcockiano de Vertigo, Kim Novak e James Stewart. A actriz desempenha o papel de uma bruxa que utiliza o seu gato siamês para enfeitiçar o vizinho. Numa das mais famosas sequências, Novak, vestida de negro, hipnotiza Stewart com o seu olhar penetrante, comparável apenas ao do gato que acaricia. Um sucesso mediático, as imagens do filme inundaram revistas e cartazes, tomando conta da memória visual dos espectadores. Aludindo deliberadamente ao filme ou não, Paulo-Guilherme, inteligentemente, cria uma imagem que com ele dialoga, inscrevendo a capa de A Gata no universo de referências do momento. Historiadora de Arte

PÚBLICO, QUI 7 ABR 2016 | INICIATIVAS | 53 O PÚBLICO, em parceria com a editora A Bela e o Monstro, lança em banca uma nova edição de livros fac-similados, desta vez dedicada não só a grandes obras da literatura portuguesa, mas também a algumas das mais belas capas ilustradas por grandes capistas portugueses do séc. XX. Doze volumes que homenageiam todos aqueles que alguma vez, olhando um escaparate, se deixaram seduzir pelo irresistível desenho da capa de um livro. Aos sábados com o seu jornal por mais 5,95€

AGENDA DA COLECÇÃO 27 de Fevereiro 1.º volume Novo Mundo, Mundo Novo Autor: António Ferro Capa: Bernardo Marques 5 de Março 2.º volume Desenraizados Autor: Erich Maria Remarque Capa: António Domingues 12 de Março 3.º volume Páscoa Feliz Autor: José Rodrigues Miguéis Capa: Fred Kradolfer 19 de Março 4.º volume Histórias da Minha Rua Autor: Maria Cecília Correia Capa: Maria Keil 26 de Março 5.º volume Noite sem Lua Autor: John Steinbeck Capa: Querubim Lapa (ilustrações de Costa Pinheiro) 2 de Abril 6.º volume A Gata Autor: Colette Capa: Paulo Guilherme 9 de Abril 7.º volume Elói ou Romance Numa Cabeça Autor: João Gaspar Simões Capa: Victor Palla 16 de Abril 8.º volume A Feira Autor: John Updike Capa: João Câmara Leme 23 de Abril 9.º volume Amok Autor: Stefan Zweig Capa: Júlio Amorim 30 de Abril 10.º volume O Vento Autor: Claude Simon Capa: António Charrua 7 de Maio 11.º volume Os Homens do Mar Autor: Victor Hugo Capa: Roberto Nobre 14 de Maio 12.º volume O Mestre Autor: Ana Hatherly Capa: Sebastião Rodrigues

Elói ou Romance Numa Cabeça Opinião Luís Gomes SIMÕES, João Gaspar, 1903-1987 Elói ou Romance Numa Cabeça. Lisboa : Arcádia, [s.d. 1959]. – 181, [5] p. : (23 cm). Capa de brochura ilustrada por Victor Palla (19222006). Publicado na colecção Autores Portugueses, nr. 6. Terceira edição novamente revista, conforme se lê na nota final do volume: Publicado em 1932, obteve este romance o 1.º prémio do Concurso Literário da Imprensa conferido nesse mesmo ano. Em 1941 fez-se uma segunda edição de Elói, que foi publicado com o seu título completo. Esta é a terceira edição, revista como a segunda, pelo próprio autor. Obra da mocidade, pois a escreveu João Gaspar Simões antes dos 30 anos, embora revista, conserva, intocável, muito do que ingénuo e de inábil entrou na sua composição original. Assim o quis o autor, para que o seu primeiro romance nada perdesse da frescura com que o escreveu no momento em que tinha por fundamental na arte da ficção o verismo da transcrição psicológica. João Gaspar Simões foi um dos mais importantes, influentes e controversos críticos literários do século XX. De grande ecletismo, a sua produção intelectual é vasta e a sua capacidade de trabalho lendária. Com José Régio e Branquinho da Fonseca, fundou a célebre Presença: Folha de Arte e Crítica (1927-1940), marco seminal do modernismo em Portugal. Além da recensão e crítica literárias que regularmente publicou na imprensa periódica — Diário de Notícias, Diário de Lisboa, Diário Popular, Primeiro de Janeiro, entre outros — e que mais tarde reuniu em seis volumes, João Gaspar Simões escreveu romance, ensaio, teatro, memórias e biografias; destas

distinguiram-se as de Eça de Queirós, O Homem e o Artista (Dois Mundos, 1943) à qual foi atribuído o prémio O Primeiro de Janeiro, e Vida e Obra de Fernando Pessoa (Bertrand, 1950). Gaspar Simões fundou e dirigiu a Portugália Editora; com Luís de Montalvor, preparou e editou os primeiros volumes das Obras Completas de Fernando Pessoa (Ática, 19421945); traduziu e editou, entre outros, Cocteau, Dostoievski,

Tolstoi, Tchekov, Gogol, Thomas Mann, etc. Bibliotecário da Biblioteca da Imprensa Nacional, com uma vida inteiramente consagrada aos livros e à escrita, João Gaspar Simões, prestou sem dúvida um contributo ímpar para divulgação e conhecimento da literatura contemporânea em Portugal. Livreiro antiquário

Victor Palla, vanguardas revisitadas Opinião Rita Gomes Ferrão Uma figura fundamental das várias áreas da criação em Portugal, é incontestavelmente Victor Palla (1922-2006), autor multidimensional, arquitecto de formação e também pintor, ilustrador, ceramista, fotógrafo, galerista, escritor, tradutor e editor. Afirmou-se como capista e designer editorial, no tempo em que “compor” era uma palavra bonita e “computar” uma palavra “com laivos de obscena”, como ironiza em texto enviado a António Sena da Silva, em 1984. Após várias experiências editoriais, entre 1957 e 1960, Victor Palla, em colaboração com Fernando Namora, tomará a cargo o plano editorial e gráfico da Editora Arcádia, para onde realizou uma centena de capas de livros. Desse período faz parte Elói ou Romance Numa Cabeça, de João Gaspar Simões (1959), onde Palla parece retomar as premissas desenvolvidas na capa de O Pão da Mentira, de Horace McCoy (1952), da Editorial Gleba, projecto anterior para o qual concebera o célebre logótipo da colecção Os Livros das Três Abelhas, que transitou entre editoras, difundindo-se em maior escala através das Publicações Europa-América. Na capa de O Pão da Mentira convivem ecos de um cubismo sintético tardio conjugados com signos reconhecíveis em propostas de designers como Paul Rand ou Saul Bass, fortes influências internacionais. Por

comparação, a capa de Elói sofre um processo de simplificação que lhe retira todos os elementos supérfluos, numa desconstrução do espaço que se aproxima das soluções encontradas pelo De Stijl, evocando as composições de Theo van Doesburg para vitral. Através da paleta de cores tipicamente neoplasticista, composta por preto, branco, amarelo, azul e vermelho, insinuase um espaço arquitectónico plano e abstracto. Numa abertura rectangular, como uma janela, aparece a silhueta estilizada a negro, em contraluz, da “cabeça” sugerida no título, cujo olho expressionista é dado pelo “ó” de “Elói”. O enquadramento é reforçado pela moldura tipográfica composta pelo nome do autor e o título do livro, em caixa baixa e tipos sem serifa, apenas no nome do protagonista, “Elói”, são usados tipos em caixa alta, com serifa triangular, a vermelho, semelhantes aos que Palla utilizou na capa da sua mais notável obra, Lisboa, Cidade Triste e Alegre, em co-autoria com o arquitecto Costa Martins, publicada no mesmo ano. Esta fonte tipográfica pode também ser encontrada em várias capas desenhadas para a Arcádia no ano anterior e continuará a ser usada por Palla em 1960. Retomando as propostas das Primeiras Vanguardas, a capa de Elói estabelece relações directas com o trabalho arquitectónico de Victor Palla, tanto pelas soluções encontradas na organização do espaço, como pela utilização de recursos semelhantes ao desenho de padrão. O uso de cores vivas e contrastantes, em composições geométricas dinâmicas, é uma constante em várias obras deste período, concebidas em colaboração com Joaquim Bento d’Almeida, no atelier dirigido por ambos os arquitectos. Historiadora de Arte

PÚBLICO, QUI 14 ABR 2016 | INICIATIVAS | 47 O PÚBLICO, em parceria com a editora A Bela e o Monstro, lança em banca uma nova edição de livros fac-similados, desta vez dedicada não só a grandes obras da literatura portuguesa mas também a algumas das mais belas capas ilustradas por grandes capistas portugueses do séc. XX. Doze volumes que homenageiam todos aqueles que alguma vez, olhando um escaparate, se deixaram seduzir pelo irresistível desenho da capa de um livro. Aos sábados com o seu jornal por mais 5,95€

AGENDA DA COLECÇÃO

A Feira

O cosmopolitismo de João da Câmara Leme

27 de Fevereiro 1.º volume Novo Mundo, Mundo Novo Autor: António Ferro Capa: Bernardo Marques 5 de Março 2.º volume Desenraizados Autor: Erich Maria Remarque Capa: António Domingues 12 de Março 3.º volume Páscoa Feliz Autor: José Rodrigues Miguéis Capa: Fred Kradolfer 19 de Março 4.º volume Histórias da Minha Rua Autor: Maria Cecília Correia Capa: Maria Keil 26 de Março 5.º volume Noite sem Lua Autor: John Steinbeck Capa: Querubim Lapa (ilustrações de Costa Pinheiro) 2 de Abril 6.º volume A Gata Autor: Colette Capa: Paulo Guilherme 9 de Abril 7.º volume Elói ou Romance numa Cabeça Autor: João Gaspar Simões Capa: Victor Palla 16 de Abril 8.º volume A Feira Autor: John Updike Capa: João Câmara Leme 23 de Abril 9.º volume Amok Autor: Stefan Zweig Capa: Júlio Amorim 30 de Abril 10.º volume O Vento Autor: Claude Simon Capa: António Charrua 7 de Maio 11.º volume Os Homens do Mar Autor: Victor Hugo Capa: Roberto Nobre 14 de Maio 12.º volume O Mestre Autor: Ana Hatherly Capa: Sebastião Rodrigues

Opinião Luís Gomes UPDIKE, John, 1932-2009. A Feira. Lisboa: Portugália, [s.d. ]. — 185, [7] p.: (17cm). Primeira edição portuguesa, tradução de Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007) com a colaboração de Walter J. Hossman. Número 28 da colecção O Livro de Bolso, capa de brochura ilustrada por João da Câmara Leme (1930-1983). Publicado pela primeira vez em 1959, The Poorhouse Fair, título original desta obra, foi o romance de estreia de John Updike, que, no ano seguinte ao seu lançamento, recebeu o Rosenthal Award do National Institute of Arts and Letters. A acção decorre no espaço de um dia, o dia da festa em que um asilo de idosos pobres abre as portas à comunidade local, numa feira/quermesse onde se vendem em várias bancas os trabalhos feitos pelos pensionistas. Ao contrário do que Conner, jovem provedor do asilo, pretendia, este dia não era vivido pelos velhos como um dia de festa mas, sim, como um dia de humilhação, um dia em que se sentiam expostos à curiosidade local como animais num zoo, principalmente desde que o eficaz e bem intencionado Conner tinha mandado colocar placas com o nome de cada um nas cadeiras do alpendre. A Feira remete-nos para uma realidade que, com o passar dos anos e as conquistas da medicina, está cada vez mais presente nas sociedades contemporâneas ocidentais — a velhice. Asilos ou lares de terceiraidade aparecem hoje como lugares “próprios” para assegurar o “conforto” e a “segurança”, condições necessárias e legalmente consignadas aos idosos. Mas, esquecendo que a velhice é sobretudo um fenómeno cultural, uma categorização e que resulta da forma como valorizamos a

juventude (e o aspecto saudável), estes lugares funcionam em grande parte como espaços marginais, de abandono, onde cometemos os nossos velhos sob pretextos utilitários mais ou menos reais. Se estas instituições prestam por lei e por contrato os cuidados mínimos de manutenção da vida são também elas que, sob pretextos mais ou menos altruístas e benignos, desenraízam e fazem tábua rasa de vidas

inteiras, destruindo identidades que se reconstroem com forma terapêutica mais ou menos puerilizadas, muitíssimo mais simples, logo mais económicas, de gerir. É justamente da luta de resistência, contra políticas que minimizam e reduzem pessoas a idosos (quem sabe, reflexo do eterno confronto de gerações), travada por um grupo de anciãos dentro do microcosmos do asilo que o autor do livro de hoje tão bem conta. Livreiro antiquário

Opinião Rita Gomes Ferrão A disseminação do livro de bolso de grande tiragem atinge o seu auge nos anos 1960. Em crescendo desde a década anterior, nascem várias colecções promovidas por diversas editoras que publicam autores contemporâneos. A distribuição estende-se às colónias ultramarinas, procurando fidelizar o maior número possível de leitores. Neste contexto, a Portugália Editora, dirigida pelo industrial e coleccionador Agostinho Fernandes, seu fundador em 1942, reformula a estratégia editorial, contando com a preciosa colaboração do ilustrador e capista João da Câmara Leme (1930-1983). Agostinho Fernandes colaborara com Fred Kradolfer nos anos 1940, tendo sido também financiador da revista Contemporânea, a partir de 1922. Dirigida gráfica e editorialmente por José Pacheco ( José Pacheko, como assinava), a Contemporânea foi um órgão fundamental na consolidação e divulgação do Modernismo português, distinguindo-se também pela qualidade gráfica. O editor possuía, portanto, especiais capacidades para entender e valorizar as propostas gráficas de Câmara Leme, com quem trabalhará profusamente durante a década de 1960. Como afirma Pedro Piedade Marques: “as exegeses do design editorial tendem a esquecer que um portefólio de capas e ilustrações se faz numa dialética complexa, implacável por vezes, entre designer e editor.” A dialéctica entre Agostinho

Fernandes e Câmara Leme frutificou, resultando num dos mais consistentes e cosmopolitas corpos de trabalho em design editorial produzidos em Portugal. Câmara Leme trabalhou em Paris, em vários estúdios gráficos e em Helsínquia, onde colaborou com a agência de publicidade SEK. Casa com a designer finlandesa Mirja Toivola, regressando a Portugal em finais dos anos 1950, ambos colocando os conhecimentos das tendências e metodologias de trabalho internacionais ao serviço da renovação do design nacional. A obra gráfica de Câmara Leme é vasta e diversificada, no entanto ficará para sempre associada à reformulação da imagem da Portugália Editora. Concebe o logótipo da colecção O Livro de Bolso, num neorealismo estilizado, acentuando a bidimensionalidade e o sintetismo da imagem, uma enorme mão segurando um pequeno livro aberto com a inscrição do nome da colecção. O desenho é composto apenas pela linha de contorno espessa, procurando enfatizar a pequena escala do livro, como convém a uma publicação de bolso. Desta colecção faz parte A Feira, de John Updike (1961), cuja concepção da capa se desenvolve organicamente, a partir de uma só ilustração, tirando partido da mancha aguada e do forte traço a negro. O título ocupa a parte central da composição, sendo o único elemento colorido. À mesma escala, uma pequena figura fumante sentada numa cadeira representa o protagonista, Hook. A personagem, articulase com a letra “A”, sendo parte integrante de um intrincado esquema construtivo, composto de encruzilhadas e encaixes, funcionando como uma metáfora gráfica do conteúdo do livro. Historiadora de arte

PÚBLICO, QUI 21 ABR 2016 | INICIATIVAS | 47 O PÚBLICO, em parceria com a editora A Bela e o Monstro, lança em banca uma nova edição de livros fac-similados, desta vez dedicada não só a grandes obras da literatura portuguesa mas também a algumas das mais belas capas ilustradas por grandes capistas portugueses do séc. XX. Doze volumes que homenageiam todos aqueles que alguma vez, olhando um escaparate, se deixaram seduzir pelo irresistível desenho da capa de um livro. Aos sábados com o seu jornal por mais 5,95€

AGENDA DA COLECÇÃO

Amok

A linha clara de Júlio Amorim

Opinião Luís Gomes

Opinião Rita Gomes Ferrão

ZWEIG, Stefan, 1881-1942 Amok (O doido da Malásia). Porto : Livraria Civilização, 1942. – 201, [7] p. : (20 cm). Terceira edição portuguesa. Tradução de Alice Ogando (1900-1981), capa de brochura ilustrada por Júlio de Amorim (1909-1988). A edição original de Amok é de 1922 (InselVerlag, Leipzig). Em Portugal Amok teve pelo menos 19 edições, sendo a primeira de 1937 (Civilização) e a última de 2008 (Gótica). Stefen Zweig, escritor austríaco que nasceu em 1881 e, com a sua mulher, Lotte, pôs termo à vida a 22 de Fevereiro de 1942, em Petrópolis, no Brasil ,do seu exílio, não sem antes ter declarado por escrito que: o mundo da minha língua está perdido e o meu lar espiritual, a Europa, autodestruído[...]. Oriundo de Viena, de uma burguesa e abastada família judaica, Zweig cresceu num ambiente e num tempo propícios ao desenvolvimento das qualidades literárias e humanistas que veio a demonstrar. Viena, centro europeu das artes, das letras e das ciências, viu nesse tempo nascer vários, e famosos, grupos de discussão e debate por uma esclarecida e moderna intelectualidade vienense em que participaram, entre muitos outros, Freud, Wittgenstein, Mahler e Klimt. No decorrer da sua existência completamente devotada às letras como romancista, jornalista, poeta, conferencista... , Stefen Zweig foi autor de uma vastíssima obra — a edição da sua Obra Completa, em alemão, é constituída por 36 volumes, que não incluem as suas jornalísticas, mais de quinhentas —, foi um dos escritores mais famosos e mais traduzidos do seu tempo, os seus livros foram durante anos a fio best-seller em

A ilustração publicada em Portugal durante a década de 1940, tanto em revistas de banda desenhada, como O Mosquito ou a Diabrete, como em livros infanto-juvenis e outro tipo de publicações, é na sua maioria subsidiária da ligne claire francobelga, vinda da década anterior. Com maior ou menor realismo, mais ou menos humor, regra geral é um desenho respeitador da percepção fotográfica do espaço, claramente delineado, eventualmente sofrendo processos de estilização que lhe conferem alguma rigidez. Júlio Amorim (1909-1988), autor de ilustrações bemcomportadas, herdeiras da ligne claire, muitas vezes de temática histórica ou religiosa, veiculando os valores do Estado Novo, foi também responsável por um considerável e variado número de capas. Filho do desenhador com o mesmo nome, fundador da Litografia Amorim, seguiu a carreira do pai, dedicando-se também às artes gráficas. Nos anos 30, começou por colaborar com a revista desportiva Stadium, de design editorial inovador, pela profusão de imagens e paginação, publicando mais tarde ilustrações na revista de banda desenhada Tic-Tac. Nas décadas seguintes, Júlio Amorim assume-se como prolífico ilustrador e capista, trabalhando para as editoras Romano Torres e Livraria Civilização, ambas clientes da Litografia Amorim. Para a Romano Torres realizará capas e ilustrações para as colecções Manecas, Salgari e Grandes Mistérios, Grandes Aventuras, iniciada em 1943. A capa de Amok, de Stefan Zweig (1942), aproxima-se

27 de Fevereiro 1.º volume Novo Mundo, Mundo Novo Autor: António Ferro Capa: Bernardo Marques 5 de Março 2.º volume Desenraizados Autor: Erich Maria Remarque Capa: António Domingues 12 de Março 3.º volume Páscoa Feliz Autor: José Rodrigues Miguéis Capa: Fred Kradolfer 19 de Março 4.º volume Histórias da Minha Rua Autor: Maria Cecília Correia Capa: Maria Keil 26 de Março 5.º volume Noite sem Lua Autor: John Steinbeck Capa: Querubim Lapa (ilustrações de Costa Pinheiro) 2 de Abril 6.º volume A Gata Autor: Colette Capa: Paulo Guilherme 9 de Abril 7.º volume Elói ou Romance numa Cabeça Autor: João Gaspar Simões Capa: Victor Palla 16 de Abril 8.º volume A Feira Autor: John Updike Capa: João Câmara Leme 23 de Abril 9.º volume Amok Autor: Stefan Zweig Capa: Júlio Amorim 30 de Abril 10.º volume O Vento Autor: Claude Simon Capa: António Charrua 7 de Maio 11.º volume Os Homens do Mar Autor: Victor Hugo Capa: Roberto Nobre 14 de Maio 12.º volume O Mestre Autor: Ana Hatherly Capa: Sebastião Rodrigues

todo o mundo ocidental. Portugal não foi excepção, pelo menos três gerações de leitores portugueses “devoraram” avidamente as muitas obras de Stefan Zweig traduzidas para português ou francês. A Livraria Civilização, editora portuguesa da obra de Zweig, entre 1937 e 2002, publicou mais de três dezenas de títulos, todos com várias edições; a Antígona e a Assírio & Alvim publicaram há alguns anos novas traduções de uns quantos títulos. Não é raro encontrar ainda hoje em bibliotecas das casas dos nossos pais ou avós, ou no mercado alfarrabista, muitos dos livros deste celebrado autor. Stefan Zweig passou por Portugal duas vezes: em 1936, em escala entre Southampton e Rio de Janeiro, e em 1938, quando esteve hospedado clandestinamente durante três semanas no Estoril. Segundo o jornalista Alberto Dines, autor do livro Morte no Paraíso, nesse período, enquanto representante da comunidade judaica internacional, terá tido conversações com os governantes portugueses na tentativa de encontrar, em Angola, um lugar de refúgio para a diáspora judaica. Livreiro antiquário

da linguagem gráfica usada nas publicações pulp ou nos romances policiais. Embora editada pela Livraria Civilização e não impressa na Litografia Amorim, esta obra parece anteceder directamente outras, realizadas por Júlio Amorim para a colecção Grandes Mistérios, Grandes Aventuras, com várias capas não assinadas, possivelmente também de sua autoria. Impressas em offset, em gradações de azul ultramarino, estas imagens usam abundantemente recursos característicos do film noir, como o alto contraste e as sombras projectadas, de modo a criar fortes efeitos dramáticos. Em Amok, Amorim domestica eficientemente o expressionismo das décadas anteriores, perceptível nos cartazes dos filmes de Fritz Lang, Dr. Mabuse Der Spieler (1922) e especialmente Das Testament des Dr. Mabuse (1933). Ambos os filmes foram exibidos em Portugal, tendo sido abundantemente publicitados através de material gráfico, o último, apesar de só ter estreado na Alemanha, após a II Guerra Mundial, devido a restrições impostas pelo Partido Nazi, estreou-se noutros países, como Portugal e França, em 1933, com bastante divulgação dos cartazes franceses. Nestes cartazes, tal como na capa de Amok, a composição centra-se no rosto do protagonista, em alto contraste, enfatizando o olhar hipnótico da personagem. Guiado pela dimensão psicanalítica da narrativa, Júlio Amorim cria uma linguagem híbrida, onde a força expressionista é suavizada pela elegância do desenho, criando uma imagem paradoxalmente atractiva e perturbadora. Historiadora da arte

PÚBLICO, QUI 28 ABR 2016 | INICIATIVAS | 47 O PÚBLICO, em parceria com a editora A Bela e o Monstro, lança em banca uma nova edição de livros fac-similados, desta vez dedicada não só a grandes obras da literatura portuguesa mas também a algumas das mais belas capas ilustradas por grandes capistas portugueses do séc. XX. Doze volumes que homenageiam todos aqueles que alguma vez, olhando um escaparate, se deixaram seduzir pelo irresistível desenho da capa de um livro. Aos sábados com o seu jornal por mais 5,95€

AGENDA DA COLECÇÃO

O Vento

O gesto de António Charrua

Opinião Luís Gomes

Opinião Rita Gomes Ferrão

SIMON, Claude, 1913-2005 O Vento: tentativa de reconstituição de um retábulo barroco: Romance. Lisboa: Portugália Editora, [s.d. 1963]. — 272, [3] p. : (20cm): Colecção Contemporânea, 42. Tradução de Mário de Cesariny de Vasconcelos (1923-2006). Capa de brochura ilustrada por António Charrua (1925-2008). Primeira edição portuguesa.

Durante a vigência do Estado Novo, inúmeros artistas construíram carreiras alicerçadas em práticas diversificadas, dedicando-se às artes aplicadas e gráficas como alternativa ao débil mercado da arte, quase inexistente ou demasiado dependente de encomendas estatais. A história do design gráfico foi enriquecida por múltiplos contributos de arquitectos, pintores, escultores e muitos outros, sem formação académica em artes visuais, que lhe conferiram diversidade, através de propostas heterodoxas, bastas vezes surpreendentes. António Charrua (1925-2008) faz parte do conjunto de artistas que, durante as décadas de 1950 a 70, participaram na construção do universo do design editorial português, realizando várias capas de livros, muitas vezes sob o pseudónimo de “A. Dias”. Trabalhou para a Portugália Editora, a Editorial Presença e a Sociedade de Expansão Cultural, onde se estreou como capista, em 1954, numa edição especial de Manhã Submersa, de Vergílio Ferreira, seu amigo e importante influência na sua formação. Neste trabalho inaugural, que também ilustrou em linogravura, desenvolveu uma linguagem expressionista, de um primitivismo sintético. A necessidade de subsistência, gerou experimentação em várias áreas disciplinares, permitindo o desenvolvimento de uma obra multifacetada. O artista concebeu cartões para tapeçaria, vitral, azulejaria, obras de arte pública, para além de pintura, desenho e escultura.

27 de Fevereiro 1.º volume Novo Mundo, Mundo Novo Autor: António Ferro Capa: Bernardo Marques 5 de Março 2.º volume Desenraizados Autor: Erich Maria Remarque Capa: António Domingues 12 de Março 3.º volume Páscoa Feliz Autor: José Rodrigues Miguéis Capa: Fred Kradolfer 19 de Março 4.º volume Histórias da Minha Rua Autor: Maria Cecília Correia Capa: Maria Keil 26 de Março 5.º volume Noite sem Lua Autor: John Steinbeck Capa: Querubim Lapa (ilustrações de Costa Pinheiro) 2 de Abril 6.º volume A Gata Autor: Colette Capa: Paulo Guilherme 9 de Abril 7.º volume Elói ou Romance numa Cabeça Autor: João Gaspar Simões Capa: Victor Palla 16 de Abril 8.º volume A Feira Autor: John Updike Capa: João Câmara Leme 23 de Abril 9.º volume Amok Autor: Stefan Zweig Capa: Júlio Amorim 30 de Abril 10.º volume O Vento Autor: Claude Simon Capa: António Charrua 7 de Maio 11.º volume Os Homens do Mar Autor: Victor Hugo Capa: Roberto Nobre 14 de Maio 12.º volume O Mestre Autor: Ana Hatherly Capa: Sebastião Rodrigues

O Vento é a única das, cerca de vinte, obras de Simon a ter sido traduzida e publicada em Portugal. Além da acima referida, este livro teve, entre nós, apenas outra edição, publicada já em 2006 pela Quasi Edições. Com o título Vent : tentative de restitution d’un retable baroque, saiu a público pela primeira vez nas Editions de Minuit em 1957, o que, de acordo com o próprio autor, marca na sua carreira o ponto de viragem, coloca-o juntamente com Robbe-Grillet, Samuel Beckett e Nathalie Sarraute, entre outros, numa posição de vanguarda em relação ao que veio a designar-se como Noveau Roman (Novo Romance), movimento literário que a partir do final dos anos 1940 renovou a forma de escrever ficção em França, e não só. Dentro desta corrente experimental, Claude Simon caracteriza-se por dar à linguagem e às palavras — numa trabalhada montagem quase cinematográfica —, em detrimento das personagens e da cronologia narrativa, uma importância basilar na estrutura ficcional. Quando, em 1985, apesar da sua discreta exposição mediática, lhe é atribuído o Prémio Nobel da Literatura, o comité escreve a propósito de

Claude Simon que “nos seus romances concilia a criatividade do poeta com a do pintor com uma consciência profunda do tempo na representação da condição humana”. Claude Simon, francês, de profissão viticultor, como quis que constasse na sua biografia, nasceu em 1913 na então colónia de Madagáscar, onde o seu pai, militar de carreira, prestava serviço. Em 1914, no início da Guerra, o pai é morto em combate perto de Verdun. Simon regressa a França com a mãe e passa a infância em Perpignan, onde a família materna de aristocratas rurais tinha as suas propriedades. Em 1924, ano da morte da sua mãe, Simon vai para Paris estudar matemáticas, curso que abandona para se dedicar ao estudo da pintura com André Lhote. Em 1936, na Catalunha, junta-se aos republicanos espanhóis contrabandeando armas. Em 1939, com o início da Segunda Guerra, é mobilizado, ingressa na cavalaria (31eme Dragons) e em 1940 é feito prisioneiro. No mesmo ano, evade-se e junta-se à resistência. Em 1945, após a libertação de França, publica o seu primeiro livro Le Tricheur, iniciando a sua carreira de escritor/viticultor, que viria a culminar com o Nobel em 1985. Claude Simon morre a 6 de Julho de 2005. Livreiro antiquário

Em 1960, como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, Charrua inicia uma série de viagens pela Europa, contactando directamente com a realidade artística do seu tempo. Da década anterior, vinham as referências picassianas, especialmente notadas na sua produção cerâmica, e a participação nas mais importantes exposições colectivas realizadas em Portugal. O novo interesse pelas correntes gestualistas e informalistas, durante os anos 1960, irá manifestar-se no seu trabalho. Desta fase, é a capa de O Vento, de Claude Simon (1964), nascida de uma combinação de gestos. Segundo conta o artista a Jorge Silva Melo, no documentário sobre a cooperativa Gravura, esta era a sua capa favorita, de entre as muitas que desenhou. A Gravura — Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses, fundada em 1956, desempenhou um papel fundamental na renovação das artes gráficas em Portugal, tendo muitos dos seus membros sido também capistas e ilustradores. Na capa de O Vento, Charrua sintetiza o movimento remoinhante, através da mancha que evolui sobre o fundo branco. Este gesto resoluto, condensando a dinâmica, é simultaneamente gráfico e pictórico, aproximando-se dos recortes de papel pintado, desenvolvidos por Matisse na década de 1940. As cores são planas, dando origem a um inusitado contraste de complementares. O amarelo do nome do autor e o violeta do título, ambos escritos na vertical, sublinham a fluidez da forma verde ascendente. Historiadora da arte

PÚBLICO, QUI 5 MAI 2016 | INICIATIVAS | 47 O PÚBLICO, em parceria com a editora A Bela e o Monstro, lança em banca uma nova edição de livros fac-similados, desta vez dedicada não só a grandes obras da literatura portuguesa mas também a algumas das mais belas capas ilustradas por grandes capistas portugueses do séc. XX. Doze volumes que homenageiam todos aqueles que alguma vez, olhando um escaparate, se deixaram seduzir pelo irresistível desenho da capa de um livro. Aos sábados com o seu jornal por mais 5,95€

AGENDA DA COLECÇÃO

Os Homens do Mar

Roberto Nobre, o cinéfilo

Opinião Luís Gomes

Opinião Rita Gomes Ferrão

HUGO, Victor, 1802-1885 Os Homens do Mar. 2 vols. em 1 : [2], 192; 182, [2] p.: (20 cm). - Lisboa: Guimarães, [s.d]. Terceira edição. Capa de brochura (assinada e datada de 1935) por Roberto Nobre (19031969). Com tradução anónima. Esta obra foi publicada pela primeira vez em 1866 (Lacroix e Verboeckhoven: Paris e Bruxelas) com o título Les travailleurs de la mer. No mesmo ano (1866), teve em Portugal duas edições com títulos diferentes: Os Operários do Mar, numa tradução de Francisco Ferreira da Silva Vieira (Gonçalves Lopes: Typographia do Futuro) e com tradução anónima, Os Homens do Mar (Typographia da Gazeta de Portugal). Ainda entre nós, resultado de uma tradução conjunta de Maria Teresa Seixas e Aureliano Sampaio, uma outra tradução publicada pela Civilização do Porto em 1976 foi, aparentemente e segundo os registos da Biblioteca Nacional, a última edição entre nós dada à estampa. No Brasil, ao contrário do que se passou em Portugal, foram muitas as edições deste livro; refere-se a primeira de muitas, logo em 1866, que resulta de uma admirável tradução de Machado de Assis. O autor da obra, Victor Hugo, escritor e polemista francês, antiesclavagista, activista do movimento de abolição da pena de morte, liberal e declarado opositor a Napoleão III, escreveu, durante os quase 20 anos de exílio (1851-1870) que o levaram a Jersey, Bruxelas e finalmente a Guernsey, algumas das mais importantes obras literárias do século XIX, nomeadamente Os Miseráveis (1862). Os Homens do Mar, escrito entre 1864 e 1865, é dedicado à ilha onde o autor se

Na recta final da colecção Quem Vê Capas, Vê Corações, retomamos as referências cinematográficas que pontuaram o desenho de muitas das capas de que aqui fomos falando. O diálogo entre grafismo e cinema é constante, como não podia deixar de acontecer ao longo de um século dominado pela arte de filmar e compor imagens fílmicas. As artes gráficas e os seus protagonistas estiveram muitas vezes directamente ligados à indústria ou às publicações e crítica cinematográficas. Roberto Nobre (1903-1969), ilustrador da obra de Ferreira de Castro, conviveu com os pintores Eduardo Viana e Mário Eloy, passou fugazmente pela Escola de Belas-Artes de Lisboa, durante a década de 1920, fixando-se na capital. O cinema e a crítica interessaram-lhe, tornando-se cineasta e começando a escrever e a publicar ainda nessa década. Vários são os momentos em que esta actividade se sobrepõe à de ilustrador e capista, colaborando em diversos periódicos e assinando dois livros de referência: Horizontes do Cinema (1939) e Singularidades do Cinema Português (1964). Como o descreve José Bártolo: “Roberto Nobre ganhará uma dimensão única quando conhecido nas suas múltiplas facetas: importante cinéfilo e crítico de cinema, literato e cidadão politicamente interventivo, ilustrador talentoso capaz de, atravessando quatro décadas, assimilar referências que nos levam da Secession vienense ao

27 de Fevereiro 1.º volume Novo Mundo, Mundo Novo Autor: António Ferro Capa: Bernardo Marques 5 de Março 2.º volume Desenraizados Autor: Erich Maria Remarque Capa: António Domingues 12 de Março 3.º volume Páscoa Feliz Autor: José Rodrigues Miguéis Capa: Fred Kradolfer 19 de Março 4.º volume Histórias da Minha Rua Autor: Maria Cecília Correia Capa: Maria Keil 26 de Março 5.º volume Noite sem Lua Autor: John Steinbeck Capa: Querubim Lapa (ilustrações de Costa Pinheiro) 2 de Abril 6.º volume A Gata Autor: Colette Capa: Paulo Guilherme 9 de Abril 7.º volume Elói ou Romance numa Cabeça Autor: João Gaspar Simões Capa: Victor Palla 16 de Abril 8.º volume A Feira Autor: John Updike Capa: João Câmara Leme 23 de Abril 9.º volume Amok Autor: Stefan Zweig Capa: Júlio Amorim 30 de Abril 10.º volume O Vento Autor: Claude Simon Capa: António Charrua 7 de Maio 11.º volume Os Homens do Mar Autor: Victor Hugo Capa: Roberto Nobre 14 de Maio 12.º volume O Mestre Autor: Ana Hatherly Capa: Sebastião Rodrigues

exilara nessa época, Guernsey — sempre severa e meiga, meu actual asilo, meu túmulo provável. Difícil de encaixar numa qualquer classificação, pode dizer-se que este livro — obra que evoca o universo marítimo, rodeada de água por todos os lados como a ilha em si, e que, ao mesmo tempo, convoca uma atmosfera de ruína e naufrágio (de uma França devastada) — é, sobretudo, não uma verdadeira história de amor, mas uma história de amor verdadeiro, a história de um abnegado herói, de um homem só (como o autor), insulado do Mundo que, por amor, tudo e todos enfrenta, homens, medos e monstros, na tentativa de resgatar das profundezas escuras de um mar de escolhos a máquina (símbolo do progresso e de um mundo novo), ao mesmo tempo que faz prova do seu amor, não correspondido, a que tudo sacrifica... Mas devo ficar agora por aqui, sob pena de estragar, ao leitor, o prazer de uma entusiasmante leitura. Livreiro antiquário

realismo social, passando pelo fulgor Déco.” Estas variações estilísticas são bem visíveis no desenho de capas e ilustrações para revistas como a ABC, Seara Nova, Ilustração, Renovação, Magazine Bertrand ou Civilização. Como capista, trabalhou com várias editoras, prolongando a sua colaboração com a Guimarães & C.ª, Editores, até à década de 1950. A capa de Os Homens do Mar, de Victor Hugo (1935), é talvez a mais cinemática de todas as que desenhou para esta editora, sendo evocativa da sua pintura da década anterior, como a define José-Augusto França: “Uma pintura futuro-expressionista, à moda alemã, que o cinema (de que foi o maior crítico da sua geração em Portugal) lhe trazia”. Em Os Homens do Mar, a composição, orientada pela grande diagonal, organiza-se num enquadramento dinâmico, evocativo de um Futurismo tardio. Numa gramática tipicamente Art Déco, o tratamento lumínico e a cena representada, descritiva de um episódio da narrativa, remetem inevitavelmente para os filmes de aventuras com monstros marinhos. Aqui, na luta entre a figura humana e o polvo gigante, pressentem-se ecos do cinema expressionista alemão dos anos 20 e do subsequente Film Noir, sobretudo pelo claro-escuro e a distorção das formas. Esta é uma capa que vive da expressividade da ilustração, sendo atractiva exactamente por isso. Funciona como uma janela para o interior da narrativa, transportando-nos para um momento da acção, enchendo-nos de curiosidade. Historiadora da arte

PÚBLICO, QUI 12 MAI 2016 | INICIATIVAS | 47 O PÚBLICO, em parceria com a editora A Bela e o Monstro, lança em banca uma nova edição de livros fac-similados, desta vez dedicada não só a grandes obras da literatura portuguesa, mas também a algumas das mais belas capas ilustradas por grandes capistas portugueses do séc. XX. Doze volumes que homenageiam todos aqueles que alguma vez, olhando um escaparate, se deixaram seduzir pelo irresistível desenho da capa de um livro. Aos sábados com o seu jornal por mais 5,95€

AGENDA DA COLECÇÃO

O Mestre

Sebastião Rodrigues, o mestre

Opinião Luís Gomes

Opinião Rita Gomes Ferrão

HATHERLY, Ana, 1929-2015 O Mestre. Lisboa : Arcádia, 1963. - 138, [2] p. : (18 cm). Publicado na série Livros de Bolso Arcádia, é o número 38 da Colecção Autores Portugueses. Capa de brochura ilustrada por Sebastião Rodrigues (1929-1997). Esta é a primeira de cinco edições, tendo sido a última publicada pela Ulisseia em 2010.

O último volume da colecção Quem Vê Capas, Vê Corações reúne dois nomes maiores da cultura portuguesa do século XX. A autora Ana Hatherly, com uma vasta obra de experimentação nas fronteiras entre a literatura e as artes visuais, também ela mais tarde responsável por várias capas para as suas obras literárias, e Sebastião Rodrigues (1929-1997), o designer de comunicação mais influente do seu tempo. O mestre das gerações vindouras. Vindo do ensino industrial, a escola de Sebastião Rodrigues faz-se sobretudo pela prática, trabalhando em estúdios de publicidade. A partir do final da década de 1940, trabalha abundantemente com a equipa do SNI (Secretariado Nacional de Informação), composta por notáveis designers como Fred Kradolfer, Eduardo Anahory ou Bernardo Marques, entre outros. A colaboração continuada com Manuel Rodrigues é fundamental para a sua formação, estabelecendo as bases da sofisticação que caracterizará o seu trabalho futuro, especialmente ao serviço da Fundação Calouste Gulbenkian. Prolífico capista, colaborando com várias editoras, Sebastião Rodrigues é inicialmente influenciado pela obra gráfica de Victor Palla, pioneiro da renovação desta disciplina. Referência importante é também o trabalho desenvolvido por Alvin Lustig para a editora New Directions, segundo os ensinamentos do checo Ladislav Sutnar no uso dos caracteres tipográficos como elementos gráficos

27 de Fevereiro 1.º volume Novo Mundo, Mundo Novo Autor: António Ferro Capa: Bernardo Marques 5 de Março 2.º volume Desenraizados Autor: Erich Maria Remarque Capa: António Domingues 12 de Março 3.º volume Páscoa Feliz Autor: José Rodrigues Miguéis Capa: Fred Kradolfer 19 de Março 4.º volume Histórias da Minha Rua Autor: Maria Cecília Correia Capa: Maria Keil 26 de Março 5.º volume Noite sem Lua Autor: John Steinbeck Capa: Querubim Lapa (ilustrações de Costa Pinheiro) 2 de Abril 6.º volume A Gata Autor: Colette Capa: Paulo Guilherme 9 de Abril 7.º volume Elói ou Romance numa Cabeça Autor: João Gaspar Simões Capa: Victor Palla 16 de Abril 8.º volume A Feira Autor: John Updike Capa: João Câmara Leme 23 de Abril 9.º volume Amok Autor: Stefan Zweig Capa: Júlio Amorim 30 de Abril 10.º volume O Vento Autor: Claude Simon Capa: António Charrua 7 de Maio 11.º volume Os Homens do Mar Autor: Victor Hugo Capa: Roberto Nobre 14 de Maio 12.º volume O Mestre Autor: Ana Hatherly Capa: Sebastião Rodrigues

O Mestre foi a obra com que a autora se estreou na ficção; em entrevista concedida ao programa Câmara Clara, em 2011, disse deste livro que — esta é uma novela de duas personagens; o mestre e a discípula, em que a discípula se apaixona pelo seu mestre homossexual — e ainda que — a singularidade desta novela, em relação a outras que tratam igualmente do amor, é a maneira extremamente subversiva de encarar a incomunicabilidade, em geral e com o amor. É um livro extremamente agressivo e ao mesmo tempo perturbador, de uma originalidade sui generis. Ana Hatherly nasceu no Porto em 1929, foi professora, poetisa, ficcionista, ensaísta, tradutora, artista plástica e cineasta. Em 1958, publicou, em edição de autor, o seu primeiro livro, Um Ritmo Perdido, um pequeno volume, com 80 páginas, de poesia. No ano seguinte, deu à estampa aquele que foi o primeiro poema de Poesia Concreta em Portugal: poeta arca seta. No início da década de 60, com António Aragão, Herberto Hélder e E. M. de Melo e Castro, entre outros, Hatherly esteve na génese do Experimentalismo português e colabora no segundo número dos cadernos Poesia Experimental – Po.Ex (1966). Fundou, dirigiu e

escreveu em diversas e marcantes revistas literárias portuguesas como Loreto 13, Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Claro-Escuro e Incidências. Com a sua exposição individual “Anagramas”, realizada na Galeria Quadrante em 1969, a artista iniciou uma trajectória ímpar nas artes plásticas em Portugal, que se pautou, principalmente, pela procura de uma síntese entre a caligrafia e a pintura, dando forma e significado à palavra, também enquanto elemento visual e artístico. As suas obras encontram-se em algumas das mais importantes colecções públicas e privadas portuguesas, como é o caso do Museu de Arte Contemporânea (Serralves), da Fundação Calouste Gulbenkian, da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento e da Cinemateca Portuguesa — Museu do Cinema. Ana Hatherly morreu em Lisboa, na manhã de 5 de Agosto de 2015. Livreiro antiquário

plenos de simbologia visual. Esta prática, abundantemente experimentada por Sebastião Rodrigues na revista Almanaque, iniciada em 1960, valeu-lhe a dedicatória do poema Divertimento, escrito por Alexandre O’Neill a partir dos caracteres tipográficos por si desenhados, publicado na mesma revista: “A Sebastião Rodrigues, que se divertiu a apurar este divertimento”. Um dos raros momentos em que a literatura reconhece a importância do design gráfico, homenageando as relações entre ambos. “No exercício das Artes Gráficas, a rotina é inevitável. Porém, moderando as ambições e usando de uma certa frieza, é possível ultrapassá-la para, com muito rigor, obter qualidade razoável no desenho de um livro, de uma capa, de um título ou de um cartaz. Desígnios mais ambiciosos: acontecem…” afirma Sebastião Rodrigues. Cumprindo estes desígnios, para O Mestre, de Ana Hatherly (1963), o designer irá conceber uma capa onde existencialismo visual dialoga com o existencialismo literário do conteúdo. O grafismo lacónico confronta o leitor/espectador com o essencial, o título, de desenho tipográfico orgânico, simultaneamente escondendo e revelando. Sobre o fundo branco, a mancha de um azul IKB (o International Klein Blue de Yves Klein) é sublinhada pela ilustração de uma mosca. A presença do animal parece lembrar-nos de que o livro é um objecto com espessura, onde qualquer insecto pode pousar, trazendo-nos do domínio da imagem para o domínio do concreto. Historiadora da arte

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