Quimeras em diálogo: grafismo e figuração nas artes indígenas, Lagrou, Els & Severi, Carlo eds.

July 15, 2017 | Autor: Els Lagrou | Categoria: Amerindian Studies, South American Indians, Anthropology of Arts
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Descrição do Produto

Quimeras em diálogo: grafismo e figuração nas artes indígenas

carlo severi els lagrou (orgs.)

Quimeras em diálogo sociologia & antropologia

coleção

grafismo e figuração nas artes indígenas

© 2013 Carlo Severi e Els Lagrou

programa de pós-graduação em sociologia e antropologia instituto de filosofia e ciências sociais da universidade federal do rio de janeiro

Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.

(ppgsa/ifcs/ufrj)

Coordenação Editorial Isadora Travassos Produção Editorial

Coleção Sociologia & Antropologia

Cristina Parga Eduardo Süssekind Rodrigo Fontoura Sofia Soter Victoria Rabello

Conselho Editorial

Imagem de capa Sonja Ferson

cip-brasil. catalogação-na-fonte sindicato nacional dos editores de livros, rj Q61 Quimeras em diálogo: grafismo e figuração nas artes indígenas / organização Carlo Severi; Els Lagrou. – 1. ed. – Rio de Janeiro: 7Letras, 2013. il. (Sociologia & Antropologia)

Beatriz Heredia Bila Sorj Elina Pessanha Felícia Silva Picanço Glaucia Villas Bôas José Ricardo Ramalho Marco Antonio Gonçalves Marco Aurélio Santana Maria Laura V. C. Cavalcanti Michel Misse Mirian Goldenberg Yvonne Maggie

isbn 978-85-421-0181-2 1. Índios da América do Sul - Brasil - Religião e mitologia. 2. Índios da América do Sul – Brasil – Pintura. 3. Artes. 4. Mito. I. Severi, Carlo. II. Lagrou, Els. III. Série. 13-07891

2013 Viveiros de Castro Editora Ltda. Rua Visconde de Pirajá 580, sobreloja 320 – Ipanema Rio de Janeiro | rj | cep 22410-902 Tel. (21) 2540-0076 [email protected] | www.7letras.com.br

cdd: 398.2 cdu: 398.2

UFRJ

Sumário

Agradecimentos

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Introdução Els Lagrou & Carlo Severi

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O espaço quimérico. Percepção e projeção nos atos do olhar Carlo Severi

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Podem os grafismos ameríndios ser considerados quimeras abstratas? Uma reflexão sobre uma arte perspectivista Els Lagrou Perspectiva xamânica: relações entre rito, narrativa e arte gráfica. Esther Jean Langdon Homens, Guaribas, Mandiocas e artefatos. Alguns sentidos da pintura entre os Wajana (Wayana) Lucia Hussak van Velthem

67 111

139

Arte gráfica Asuriní do Xingu: Corpo, mito e pensamento Regina Polo Müller

163

O trançado, a música e as serpentes da transformação no Alto Xingu Aristóteles Barcelos Neto

181

Movimento e profundidade no kene shipibo-konibo da Amazônia Peruana Luisa Elvira Belaunde

199

Kempiro. A arte gráfica dos traços fortes entre os Ashaninka do Oeste Amazônico Peter Beysen

223

Figurar e desfigurar o corpo: peles, tintas e grafismos entre os Mebêngôkre (Kayapó) André Demarchi

247

Tambor e espaço virtual no xamanismo cacasse Charles Stépanoff

277

A máscara do animista: quimeras e bonecas russas na América indígena Carlos Fausto

305

Os autores

333

Agradecimentos

Agradecemos às instituições e pessoas que colaboraram com este volume, possibilitando sua realização. Ao PPGSA/IFCS/UFRJ pelo financiamento da publicação e das traduções; ao convênio CAPES-COFECUB por possibilitar a organização do seminário e das viagens que propiciaram o intercâmbio acadêmico que resultou neste livro; aos Museus Quai Branly (Paris), Museu do Índio (Rio de Janeiro) e Museu de Arqueologia e Etnologia (USP – São Paulo), por permitir a utilização das imagens; aos colegas antropólogos e povos indígenas que gentilmente concordaram com a utilização das imagens reproduzidas neste volume.

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Introdução Carlo Severi & Els Lagrou

Este livro é sobre grafismo e figuração indígena.1 A partir da relação do grafismo (pintado, trançado ou tecido) com os diversos suportes sobre os quais se aplica e que ajuda a constituir, propomos uma antropologia da percepção que analisa o estatuto e a agência da imagem na sua relação com o universo cognitivo particular no qual opera. Constatamos na arte indígena ameríndia um particular minimalismo figurativo que insiste em sugerir muito mais do que mostrar. A arte ameríndia leva ao extremo a tensão entre imagem material e imagem mental e é por esta razão que os grafismos que aderem aos corpos tendem a uma abstração que oculta uma figuração virtual (Lagrou, 1998, 2007, 2011). É neste contexto que um diálogo com o conceito de quimera se impõe. O que é uma quimera? Há alguns anos (2003), um de nós propôs chamar assim toda imagem múltipla que, associando em uma só forma índices visuais provindos de seres diferentes (um pássaro e um ser humano, uma serpente e um jaguar, ou um lobo e um leão marinho...), provoca uma projeção por parte do olho, que faz surgir uma imagem implicando ao mesmo tempo a presença destes seres diferentes. 1

Na origem deste livro está um simpósio organizado no Rio de Janeiro em 2011 pelos editores, Carlo Severi e Els Lagrou, que levava o nome “xamanismo, grafismo e figuração”. Este simpósio foi realizado no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais dentro do quadro do projeto de pesquisa internacional CAPES/COFECUB (convênio entre os programas do PPGAS e PPGSA, respectivamente do Museu Nacional e do IFCS da UFRJ (com coordenação de Carlos Fausto), e a École des Hautes Études, Musée du Quai Branly e Collège de France de Paris (com coordenação de Carlo Severi). Estavam presentes no colóquio Esther Jean Langdon, Dominique Gallois, Regina Müller, Charles Stépanoff, Pedro Cesarino, Isabel Penoni, Carlos Fausto, Carlo Severi e Els Lagrou. Praticamente todos os participantes no colóquio contribuíram com artigos para o livro. Outros especialistas no tema, cuja contribuição consideramos importante, foram incorporados. Deste modo surgiu um livro que não deixa de evocar um marco na história da etnologia da arte no Brasil: o livro Grafismo indígena, editado por Lux Vidal em 1992. Os trinta anos que separam os dois livros testemunharam uma marcada guinada na abordagem teórica do tema: de uma ênfase na arte enquanto sistema de comunicação para uma abordagem praxiológica onde se dá destaque à centralidade da agência da imagem (uma proposta reveladora desta guinada se encontra em Gell, 1998).

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quimeras em diálogo

Uma quimera deste tipo é portanto uma representação plural onde o que é dado a ver apela necessariamente à interpretação do que é implícito. Esta parte invisível da imagem se encontra totalmente engendrada a partir de índices dados em um espaço mental. Um único princípio subjaz à estrutura destas representações: a condensação da imagem em alguns traços essenciais supõe a interpretação da forma por projeção, e portanto por preenchimento das partes faltantes. Este processo, que podemos descrever como uma intensificação da eficácia da imagem pela mobilização de suas partes invisíveis, operada pela inferência visual, é muito comum e seria fácil dar exemplos provindos da África, da Oceania e da América do Norte. Mas o que ocorre na Amazônia? Este livro, que reúne um conjunto de textos consagrados à figuração e aos grafismos indígenas da Amazônia, se propõe a testar esta definição, buscando definir sob quais formas quimeras podem existir na área amazônica. O livro reúne textos que exploram dois tipos de relação entre grafismo e figuração num universo marcado por uma ontologia que tem o xamanismo como sua prática ritual constitutiva: a relação entre grafismo e a figuração (e/ou desfiguração) dos corpos, por um lado, e a relação entre cognição e percepção, por outro. Neste último caso a imagem surge como instrumento de mediação entre os lados visível e o invisível do mundo fenomenológico. Atenção particular é dada à relação entre ritual e criação artística, assim como à relação entre os diferentes meios artísticos que no contexto da performance ritual revelam todo seu potencial sinestésico: constata-se, deste modo, que as relações, correspondências e transformações entre música, ritmo, movimento e grafismo se mostram tão ou mais relevantes no contexto ritual ameríndio quanto a relação entre a narrativa da experiência xamanística e o conteúdo gráfico dos instrumentos e corpos envolvidos. Através dos exemplos trabalhados neste livro revela-se a especificidade e multiplicidade das relações possíveis entre o processo perceptivo sensorial e a narrativa verbal. O material reunido neste volume aponta, deste modo, para uma produtiva complementaridade entre as abordagens praxiológicas e ontológicas. Desde sua definição como perspectivismo (Viveiros de Castro, 1996), a ontologia ameríndia foi definida como estabelecendo uma tensão peculiar entre interioridade (intencionalidade e agência) e exterioridade (fisicalidade) (Descola, 2005). O xamã seria o especialista por excelência a saber transitar entre as diferentes manifestações dos seres, seja por meio de uma capa/aparência animal, seja como sujeito que se dirige ao Outro na sua forma humana. Neste universo povoado por agências cognoscentes muito do que é pode estar oculto para a visão. 12

introdução

A fluidez das formas que povoam mundos, onde a transformabilidade dos corpos e a comunicação das interioridades que neles se escondem é um dado da experiência, supõe técnicas específicas de percepção e materialização das imagens que até então foram pouco analisadas (Lagrou, 1998, 2007). São estas relações entre a produção e percepção de imagens, por um lado, e a figuração e desfiguração dos corpos numa ontologia específica, por outro, que os textos neste livro procuram iluminar. O artigo que abre o volume, de autoria de Carlo Severi, parte de uma discussão antropológica e estética sobre a natureza da imagem para chegar na constelação específica de uma representação que pode ser caracterizada como especificamente quimérica. Em resposta aos debates suscitados por seu livro Le príncipe de la chimère, une anthropologie de la mémoire, de 2007, este artigo propõe um aprofundamento da noção de representação quimérica, proposta no livro citado. A ideia inicial foi a de tentar elaborar novos instrumentos de análise para o campo da antropologia das imagens. A partir de uma breve incursão no estudo da perspectiva, convenção visual que nos é mais familiar, o autor define a apreensão de uma imagem como uma relação, variável e específica a uma tradição, entre um quadro perceptivo e o exercício da projeção de saberes adquiridos, ou das “categorias interpretativas” (Baxandall, 1985: 48) neles implicadas. Num primeiro momento, a análise se concentra em noções potencialmente universais, tais como a interpretação do simbolismo por projeção, a transitividade das imagens, a reflexividade do enquadramento e os atos do olhar. Em seguida, essas noções são aplicadas à representação quimérica. Esta se revelou, do ponto de vista morfológico, fundada em um princípio de organização do espaço que faz da relação entre uma forma exibida e uma forma imputada pelo pensamento o meio para engendrar uma ilusão específica. Do ponto de vista lógico, o autor conclui que o tipo de operação mental suposta nessa representação baseia-se em uma articulação específica entre representação icônica e indicação indiciária. Do ponto de vista estético, por fim, se confirmou que o espaço quimérico designa uma relação instável, de complementaridade alternada entre o tema iconográfico e seu espaço liminar e entre a percepção e as operações de projeção. Na parte final do artigo, Severi mostra, a partir de dois estudos de caso, a iconografia wayana e yekuana, como o universo estético ameríndio ilustra de modo exemplar a lógica, estética e fenomenologia da representação quimérica. O segundo artigo, de Els Lagrou, dialoga de perto com a abordagem da imagem proposta por Severi, seguindo, no entanto, um caminho inverso. Partindo da análise de um contexto etnográfico concreto, o papel do grafismo na cultura 13

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visual kaxinawa (grupo de língua pano que habita a fronteira entre o Brasil e o Peru), a autora propõe uma abordagem comparativa dos grafismos ameríndios da região da Amazônia ocidental, mostrando como estes partilham não somente um conjunto sistemático de técnicas formais, mas também uma ontologia perspectivista que faz do desenho abstrato uma técnica privilegiada para agenciar e tornar perceptível/cognoscível a coexistência de mundos distintos e a eminente transformabilidade do mundo fenomenológico. Através do detalhamento dos contextos rituais nos quais o grafismo desempenha o papel de focalização do olhar na passagem entre o lado visível e invisível do mundo e dos corpos (apontando para a correspondência e comunicação entre seu interior e exterior), fica evidente o papel deste estilo gráfico, essencialmente indicial e muito pouco iconográfico, numa cultura perceptiva específica onde muito do que pode ser visualizado não se dá a ver. É na convivência e retroalimentação deste grafismo minimalista com a prática xamânica da busca por visões, e com uma ontologia da transformabilidade das formas corporais, que deve ser procurado sua agentividade específica. Este tipo de grafismo sempre adere a corpos, revelando sua potencial transparência e permeabilidade a forças que nela impingem do exterior, assim como realça o caráter eminentemente relacional do órgão da pele. Em diálogo com o conceito de quimera de Severi, Lagrou propõe chamar o tipo particular de imagem sob estudo de “quimera abstrata”. A quimera abstrata ameríndia se caracteriza por uma tensão constitutiva entre o que é e o que não é dado a ver, levando a economia indicial a tal ponto que o olhar é ativamente engajado naquilo que é dado a ver, sendo obrigado a completar motivos que foram apenas esboçados. Outra característica deste estilo cognitivo e visual é a sutil transição entre imagens figurativas e abstratas: o que parece à primeira vista uma imagem abstrata pode se abrir, sugerindo uma figura. O que pode ser vislumbrado no desenho, sem nunca ser explicitado, será completado pelo olho mental, na experiência de examinar um desenho assim como na experiência onírica e visionária. Como acontece com a noção de quimera proposta por Severi, a quimera abstrata ameríndia é antes do que a imagem de algo, a representação das relações expressas pela imagem. Assim como no exame da arte abstrata (Severi, 2011), interessa aqui a dinâmica relação entre as linhas sobre o suporte que produzem uma percepção espacial própria ao campo gráfico, capturando o olhar e projetando-o para dentro do campo da visão, produzindo profundidade no campo perceptivo e dando vida ao corpo ou objeto desenhado. Na arte amazônica, as linhas chamam a atenção para o que conecta e não para o que separa corpos e seres distintos, é uma arte do entre-dois: conectando seres humanos e animais pela qualidade de possuírem desenho, assim como os lados visíveis e invisíveis, pela mesma razão, além de apontar para a relação entre 14

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díades complementares, como homem e mulher, ser humano e espírito. O que se desenha é, antes que sua forma, a relação que os conecta e constitui. O terceiro artigo, de Esther Jean Langdon, propõe analisar a lógica gerativa dos desenhos gráficos dos Siona (grupo de língua tukano da Amazônia colombiana, na fronteira com o Equador) no contexto performático no qual são percebidos e utilizados: é durante a ingestão ritual do yagé (ayahuasca) pelo xamã e seus discípulos que se aprende a ver os desenhos. A arte gráfica dos Siona, considerada autêntica ou xamânica ( iko toya), é aquela que remete à experiência visionária do xamã, aos seres vistos durante as visões. Não se trata, no entanto, de desenhos representativos. Os desenhos atestam o conhecimento que o xamã possui do outro lado, “transmitem a identidade do artista como xamã”, mas não representam os espíritos. A autora explora a articulação entre as diferentes linguagens artísticas que constituem a performance xamanística entre os Siona. Na poética dos cantos, nas narrativas e na música se encontra o mesmo uso de repetição e redundância para expressar esteticamente a natureza do universo fractal que se encontra nos grafismos. A autora mostra como os artistas se inspiram nas figuras geométricas dos fosfenos percebidos durante a experiência visionária e que são resultantes da ingestão de yajé; estas são extremamente repetitivas e estão em constante reconfiguração. A mesma lógica gerativa do desenho pode ser encontrada nos desenhos pintados nos rostos dos xamãs experientes: os desenhos são sempre parecidos mas nunca iguais, indexando em vez de revelando sua experiência subjetiva. O paralelismo, consistindo no uso extensivo da repetição, diferencia o contexto ritual da linguagem cotidiana, na fala, nos gestos, na música e nos grafismos. Assim como acontece em outros contextos rituais onde a percepção do desenho se dá num contexto ritual visionário, como entre os Shipibo e Kaxinawa neste volume, existe uma íntima relação sinestésica entre canto e desenho. As capacidades de “cantar”, “ver” e “pensar” estão deste modo intimamente interligadas. A arte gráfica, como parte de um universo intertextual que liga diferentes modos performáticos, contribui para estabelecer as diretrizes para os noviços sobre como entender a alteridade num universo fractal. O artigo de Lucia Hussak Van Velthem,“Homens, guaribas, mandiocas e artefatos – alguns sentidos da pintura entre os Wajana (Wayana)” explora as características cromáticas e iconográficas da pintura presente nos corpos de humanos e não humanos. A autora mostra como as diferenças estilísticas, iconográficas e cromáticas dos corpos pintados “garante(m) a necessária diferenciação entre os corpos e faculta(m) aos Wajana os instrumentos de afirmação de sua humanidade, face aos demais componentes cosmológicos”. A teoria de criação wajana (povo indígena de língua carib que vive no norte do Estado do Pará) localiza nos tem15

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pos primordiais dos demiurgos (kuiulitom) a produção de modelos tecnológicos a serem seguidos até hoje na produção de seres humanos e artefatos. A fabricação de cestaria com arumã, especialidade masculina, é a técnica mais valorizada e considerada a mais complexa, a última a ser experimentada tanto pelos demiurgos quanto pelos aprendizes. Foi com esta técnica que os demiurgos fabricaram as primeiras mulheres, primeiros seres humanos, depois das tentativas fracassadas com cera e argila. É por considerarem as técnicas de produção dos corpos dos humanos, dos animais e dos artefatos tão similares que a sua diferenciação precisa ser garantida por meio da aplicação da sua decoração. É através de pinturas com urucu e jenipapo, de escarificações, adornos plumários e outros materiais, entre os quais se destacam as miçangas e a tanga de tecido industrial vermelho, que se marca e produz a humanidade wajana de um corpo. Artefatos são igualmente decorados e partilham com os corpos várias de suas características; sua grande diferença com os últimos, no entanto, consiste no fato de os primeiros serem “corpos despedaçados”. Uma primeira diferenciação que pode ser notada na decoração das superfícies de corpos e artefatos consiste na diferença entre cores uniformes, motivos pontilhados e motivos listrados. Estes três motivos correspondem, grosso modo, a três domínios, o humano, o animal e o sobrenatural. Nos artefatos os três registros podem ser combinados de modo que os artefatos apontam para as relações constitutivas entre os três domínios. Se em publicações anteriores (2003) a autora explora a diferença entre técnicas decorativas (como pintar, gravar e amarrar), ou a diferença acima citada entre motivos (uniforme, pontilhado ou listrado), neste artigo o foco recai sobre a trilogia cromática branco/vermelho/negro e sobre como esta trilogia opera como código classificador que recobre os distintos espaços humanos e não humanos, desde os alimentos aos animais, seguindo uma lógica cromática que oscila entre os polos da carência e do excesso. O texto de Regina Polo Müller, “Arte gráfica asurini do Xingu – corpo, mito e pensamento”, revisita a arte gráfica asurini em sua relação com a mitologia e com certas categorias do pensamento, através do cotejamento entre este sistema expressivo e a performance ritual. Se o corpo decorado com desenhos geométricos – no cotidiano assim como no ritual – aponta para sua condição social, o corpo todo pintado de preto constitui a negação de seu caráter humano, sendo figurado enquanto Outro por ocasião do ritual de separação entre vivos e mortos, o Turé. Além da pintura preta, a penugem branca enfatiza este processo liminar e perigoso. Cada um desses dois estilos de pintura remete a um personagem mítico distinto. Se a roupagem liminar de pintura preta com penugem branca evidencia o estado de incorporação do personagem mítico Kavara, cujo mito traz a noção da 16

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divisão do eu, causada pela morte, a pintura com desenhos geométricos remete ao encontro dos humanos com o ser mitológico Anhyngakwasiat, que traz a noção de multiplicidade, carregando em seu corpo todos os desenhos possíveis, porém de modo desordenado, “como uma colcha de retalhos”. Os humanos, ao realizarem os desenhos aprendidos, introduzirão o princípio de ordenação, tanto em termos estruturais quanto em termos de distinção entre motivos femininos e masculinos. Uma característica marcante do estilo asurini, identificada pela autora em 1990, é retomado aqui sob uma nova luz. Trata-se do padrão tayngava, padrão que aponta para a inter-relação dos domínios cósmicos. Por mais que haja variações sobre o motivo, a regra formal das variações cujos nomes se referem a animais, plantas, artefatos e grafismos é ditada pelo padrão tayngava – ângulo de 90º –, cujo referente é “a figura antropomórfica, objeto ritual xamanístico cujo nome é traduzido como “imagem humana” (t = possuidor humano + ayng = imagem+av (a) = sufixo formador de nome de circunstância). O traço mínimo do padrão tayngava pode ser considerado o braço-perna desta figura. Através dela se consubstancia o princípio vital, ynga, que os xamãs transmitem dos espíritos aos pacientes. Assim, para além de uma representação, a própria imagem se constitui no princípio que define humanos e outros seres viventes, isto é, os que possuem a substância ynga. Vemos deste modo que, para os Asuriní, “a imagem é constitutiva da existência dos seres”. O artigo de Aristóteles Barcelos retoma, a partir do material wauja (grupo de língua arawak do Alto Xingu), o tema das serpentes e sua ligação com as artes (a tecelagem, a música e os grafismos), temática esta que encontraremos em vários artigos presentes neste livro. Podemos afirmar, desta forma, que além da temática quimérica que permeia a discussão teórica de vários textos aqui apresentados, a cobra constitui outro conceito chave e fio condutor a unir os universos artísticos aqui apresentados em termos ontológicos: como entre os Wauja, os mitos de origem da tecelagem, do grafismo e dos cantos que os acompanham entre os Kaxinawa, Shipibo-Konibo e Ashaninka remetem todos às serpentes. Como mostra Lagrou neste livro, a figura da serpente une em sua forma e na decoração de sua pele todas as possibilidades da figuração, sendo o princípio gerativo das formas e do gênero. Em seu texto “O trançado, a música e as serpentes da transformação no Alto Xingu”, Barcelos explora um tema de suma importância para a etnologia das expressões artísticas ameríndias, detectado no começo dos anos oitenta no material etnográfico da Amazônia ocidental e do alto Xingu, mas até agora pouco explorado: a relação sinestésica entre a produção de cantos e desenhos. Entre os Pano, os estudos de Gebhart-Sayer e Bruno Illius para os Shipibo-Konibo, de 17

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Townsley para os Sharanahua e de Lagrou para os Kaxinawa (respectivamente 1986, 1987 e 1988, apud Lagrou, 1991 e 2007) apontam para a intrínseca relação entre o canto e a visualização do desenho durante a experiência visionária: é o canto que gera o desenho e vice-versa. O mesmo fenômeno foi constatado entre os Siona por Langdon (neste volume). Para o sistema ritual xinguano, Bastos propõe que “as formas verbais, sonoras e visuais agem em cadeias de transformações semióticas” (Menezes Bastos, 1990), cujo próprio pivô da transformação é a música e o campo de realização o ritual”. Neste artigo Barcelos procura explorar esta hipótese a partir da análise de três mitos/artefatos wauja de origem de serpentes: o mito do herói Arakuni, do trocano (que é uma anaconda) e o mito de Kamalu Hai (a gigantesca cobra-canoa que carrega nas suas costas as panelas cantoras) e o mito de Kulupiene: todos são exemplares da complexa interdependência das imagens sonoras e visuais. O mito de Kulupiene retoma o clássico tema ameríndio do incesto entre irmãos e sua descoberta pela marca do desenho em jenipapo no corpo do transgressor. Uma vez descoberto o incesto, Kulupiene (em vez de se transformar em lua como nos mitos pano e tukano), decide abandonar os humanos transformando-se em serpente. Para tanto tece um cesto como roupa e pendura um chocalho na sua cauda, enquanto canta sua paixão e sua dor pela perda da irmã. Este mito de origem da serpente conta também a origem dos desenhos que surgem com a pele da cobra. O mito xinguano retoma aqui um tema recorrente dos mitos de origem do desenho amazônicos, nos quais desde os Waiãpi e Wayana aos Kaxinawa, Shipibo e Ashaninka se atribui à cobra a origem dos desenhos. Através da análise dos processos de transformação sofridos pelos personagens dos mitos, Barcelos mostra como a sonoridade e os motivos gráficos remetem à alteridade e à cadeia transformativa entre gente, animal e espíritos, onde se nota uma “verdadeira fusão sinestésica em que o que se vê é o que se ouve e o que se ouve é o que se vê”. O artigo de Luisa Elvira Belaunde,“Movimento e profundidade no kene shipibo-konibo da Amazônia peruana”, é focado na dinâmica do desenho ShipiboKonibo, assim como na sua relação com os diferentes suportes sobre os quais se aplica. A autora desvenda a lógica gráfica do desenho Shipibo a partir do acompanhamento do processo de produção sequencial de várias camadas de grafismo num vaso antropomorfo Shipibo. A arte gráfica Shipibo se caracteriza pelo colorido dos seus traços e pela diferença em grossura entre as linhas. A ceramista pinta o vaso primeiramente com traços grossos para mais tarde preenchê-los com traços curvilíneos mais finos. A produção de desenhos em camadas produz um efeito de percepção de movimento entre as linhas, assim como de percepção de 18

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profundidade no espaço coberto pelo grafismo. O efeito paradoxal deste tipo de grafismo é o de sugerir a transparência da pele e a agência do desenho que, como no caso kaxinawa, funciona como uma armadilha para o olhar que é capturado pela trama. A arte Shipibo se constitui deste modo num excelente exemplo da lógica da quimera abstrata identificada para a arte gráfica da região por Lagrou. A autora descreve igualmente como a arte gráfica, presente na cerâmica, nos corpos e nas vestimentas das mulheres, ajuda a moldar os corpos em movimento, participando de uma estética da sedução muito presente na região e conscientemente manipulada pelas artistas Shipibo-Konibo. O artigo “Kempiro – a arte gráfica dos traços fortes entre os Ashaninka do Oeste amazônico”, de Peter Beysen, parte da descrição da feitura do cushma, kempiro, vestimenta paradigmática dos Ashaninka e de outros grupos da região do lado peruano (os Ashaninka são um grupo de língua arawak que habita a região fronteiriça entre o Brasil e o Peru, são vizinhos dos Kaxinawa para o Sul e dos Shipibo-Konibo para o Norte). No Brasil o cushma é a marca identitária que distingue os Ashaninka dos seus vizinhos (apesar dos Manchineri, também de língua arawak, terem começado também a timidamente retomar a produção de cushmas). A articulação dos mitos de origem do cushma com o modo de produção e de tintura do mesmo levam o autor à constatação de que a roupa dos Ashaninka é concebida por estes como sendo uma pele de serpente, que passa pelo mesmo processo de envelhecimento até o momento de ser descartado como o é a pele de uma cobra. O texto segue mostrando como todo o universo artefatual a envelopar o corpo ashaninka remete ao universo das serpentes. Se as serpentes doadoras de imagens (abstratas e figurativas) entre os Kaxinawa e Shipibo pertencem ao gênero constritor e não venenoso (jiboia e anaconda), entre os Ashaninka as serpentes donas dos colares, do cushma e dos motivos que adornam os corpos e rostos de adultos e crianças são as mais venenosas que existem na região. Desta maneira, entre os Ashaninka como entre os Wayana, o belo é a fera. Entre os Ashaninka beleza, perigo e sedução são conceitos intimamente ligados e se Gebhart-Sayer pôde falar de uma “terapia estética” entre os Shipibo (1986), onde a cura consiste na refeitura pelo xamã dos desenhos invisíveis que cobrem o corpo do paciente, entre os Ashaninka é legítimo falar de uma perigosa sedução estética, onde o objeto do desejo é capturado através de desenhos cheirosos que remetem ao veneno da serpente. O cushma e os txoxiki, colares que são como cobras, e que também descascam, são instrumentos a aproximar o guerreiro ashaninka das capacidades agentivas da cobra: a procura da imortalidade através da troca da pele, a invisibilidade e a força para atrair a vítima. Na análise formal dos grafismos ashaninka, por outro lado, Beysen revela a mesma estética minimalista presente em 19

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outros grupos da região, como entre os pano vizinhos (ver Lagrou neste volume). Encontramos aqui, não somente desenhos onde o motivo é apenas sugerido para ser interrompido por um recorte em um desenho infinito que solicita do olho mental que seja completado além do suporte, como nos exemplos analisados por Lagrou, mas também desenhos pontilhados onde se requer do ato do olhar que o desenho seja completado mentalmente traçando linhas entre os pontos. O texto de André Demarchi, “Figurar e desfigurar o corpo. Peles, tintas e grafismos entre os Mebêngôkre (Kayapó)”, visa explorar a relação intrínseca entre diferentes tipos de pintura corporal e os processos de figuração e desfiguração do corpo humano nas diferentes fases de vida e contextos rituais examinados. Tomando emprestado de Michael Taussig o conceito de desfiguração (defacement) que “ao trazer as profundezas para a superfície, revela mistérios”, o autor procura “entender o processo vivido pelos Mebêngôkre durante os resguardos como períodos de desfiguração momentânea, quando a superfície do corpo está, temporariamente, “estragada” e, por isso, vulnerável, podendo tanto ser invadida do exterior para o interior por agências não humanas como levar à tona aspectos de suas profundezas, como o sangue e a alma”. Como Regina Müller e Lagrou neste volume, Demarchi parte do contraste entre pinturas rituais que marcam a fabricação de um corpo socialmente integrado, pinturas estas caracterizadas por uma aplicação precisa de delicados grafismos, e pinturas usadas em estados liminares, que vão desde a cobertura da pele toda com a tinta preta do jenipapo ao uso do grafismo kran a mehn ‘ôk, nomeado pelo autor como “dripping selvagem”. Esta última pintura, antes de ser a imagem de algo, é analisada como a cristalização de uma performance, como a “visualização ritualística da capacidade daqueles corpos suportarem tal desorganização gráfica”. Se mulheres e crianças precisam da simetria do desenho, a assimetria total do grafismo dos jovens apontaria para a construção de um corpo forte. Retomando a associação dos vários motivos e estilos de pintura corporal às fases de vida e ao gênero das pessoas pintadas, abordagem esta inaugurada por Lux Vidal (1992) e Terence Turner (1980) e retomada por Clarice Cohn (2000) no seu estudo das pinturas sobre crianças, Demarchi desloca a ênfase de uma análise da função comunicativa do grafismo para sua agência terapêutica. O autor mostra como em contextos rituais específicos, a pintura serve para refazer paulatinamente a pele, em outros para endurecer, não somente a pele, mas também o corpo de jovens e adultos, preparando-os para suportar o peso de perigosos enfeites durante os rituais. Fechamos o livro com dois textos que retomam de modo explícito o diálogo iniciado no começo do livro em torno do conceito de quimera proposto por Severi (2007). O artigo “Tambor e espaço virtual no xamanismo cacasse”, de Charles 20

introdução

Stépanoff, centra sua análise na organização espacial da iconografia no tambor do xamã, explorando a relação desta, não tanto com o discurso verbal e as narrativas sobre o cosmos, mas sobretudo com o próprio corpo do xamã em movimento durante a performance. O autor não observou o tambor em uso, pela simples razão de os tambores siberianos não serem mais produzidos e usados desde sua proibição pelo regime comunista russo. Para a análise dos tambores, Stéponoff tem à sua disposição os tambores guardados em coleções museológicas, representações pictográficas dos tambores e textos escritos sobre eles. Os etnológicos que escreveram sobre o tema seguem uma abordagem semiótica e cosmográfica que consiste em tratar a iconografia no tambor como representações da visão de mundo dos grupos em questão. Stépanoff, no entanto, nota que esta representação nunca é completa e aponta as limitações de uma abordagem que considera a iconografia como mero “reflexo” da cosmologia. Ao prestar atenção ao que consta nos documentos do que os próprios xamãs tinham a dizer sobre as figuras, surge uma leitura totalmente diferente. “Os xamãs não parecem considerar que os desenhos transmitem uma mensagem, afirmando antes que as imagens os ajudam a “se orientar em sua viagem”, a “avançar”, a “se orientar nos países obscuros”. O leitor notará a correspondência entre estas afirmações dos xamãs siberianos com as dos xamãs amazônicos neste livro, onde para os Kaxinawa, Shipibo e Siona os desenhos servem igualmente para guiar o olhar do xamã na sua viagem visionária. Se, diferentemente das quimeras abstratas dos grupos acima citados, os desenhos cacasse são figurativos, esta característica não os impede de servirem mais para orientar o xamã na sua viagem do que para representar os seres encontrados no seu caminho. O autor prossegue: “Ora, o que é “orientar-se” senão estabelecer uma coordenação cognitiva e sensorial particular entre seu próprio corpo e o espaço circundante? As indicações dos usuários dos tambores sugerem assim que os desenhos poderiam ser esclarecidos à luz das relações entre corpo e espaço, no contexto particular da ação ritual”. Segundo o autor, no ritual siberiano, os gestos do xamã contribuem tanto ou mais que seus cantos para evocar “o espaço não ordinário que serve de moldura mental para a ação”. Deste modo, propõe-se uma abordagem “sensório-motora” das imagens, pois é na motricidade que corpo e espaço se coordenam. Em “A máscara do animista – quimeras e bonecas russas na América indígena”, Carlos Fausto propõe uma reflexão comparativa em torno do tema das máscaras ameríndias nas Américas do Norte e do Sul. O título já anuncia o diálogo proposto. Parte-se de um contexto animista onde as máscaras anunciam a possibilidade de transformação entre humanos e animais. Em Fabrique des Images, Philippe Descola (2010) mostra como as máscaras dos povos da Costa Noroeste da 21

quimeras em diálogo

América, nas quais uma figura de animal se abre para mostrar um rosto humano, se constituem como uma das figurações mais claras da lógica animista, que postula que uma exterioridade animal pode esconder uma subjetividade humana. Animais que escondem uma subjetividade humana podem, por sua vez, esconder espíritos poderosos que se ocultam em corpos humanos tanto quanto em corpos de animais. A duplicidade deste tipo de imagens, por outro lado, foi chamado por Severi de “um “antropomorfismo latente” que não é representado figurativamente como a simples presença de um humano no interior de um animal, mas antes como uma “conjunção específica entre o animal e o humano”. Como se realiza comparativamente a representação deste tipo particular de subjetividade, marcada por uma capacidade de transformação e por uma identidade múltipla, é o que Fausto se propõe a explorar neste artigo, usando para este fim duas noções formais: a de “encaixe recursivo” e a de “referência múltipla”. O autor parte do fato de a máscara sempre precisar ser vestida por uma pessoa para apontar o primeiro encaixe, assim como o primeiro fator a produzir uma “instabilidade cognitiva”: cria-se uma tensão instável em torno da máscara em movimento, cuja identidade é difícil de ser decifrada. Se a face da máscara é a face humana de um não humano, dentro da máscara se esconde um humano. A partir dos desdobramentos múltiplos entre humanos, animais e faces de espíritos presentes nos exemplos das máscaras norte-americanas, o autor exemplifica as duas lógicas propostas, a do “encaixe recursivo” e a de “referência múltipla”. A parte final do artigo é reservada para a análise das máscaras na América do Sul, onde o desdobramento humano/animal não ocorre da mesma maneira que no Norte. As máscaras da América do Sul são antes máscaras onde a referência múltipla se dá pela figuração pouco antropomorfa do ser, pela forma que não representa nem humano nem animal e pela fusão das referências, o uso de diversos grafismos e cores que referem à presença simultânea de diversos seres. O conceito de pessoa múltipla cunhado por Strathern para o contexto melanesiano ganha aqui outro contexto de aplicação convincente. Outro ponto importante a assinalar é que, assim como vimos em outros textos neste livro, na Amazônia a pintura na pele pode funcionar como um primeiro invólucro a afetar a metamorfose do ser portador da pintura. Deste modo, afirma o autor, o portador da máscara é transformado em espírito, entre os Kuikuru assim como entre os Tikuna, pela aplicação de pintura preta no seu corpo, antes mesmo de usar a máscara. Esta pintura servirá de camada a separar a máscara da pele nua do seu portador. O leitor terá notado nesta breve síntese dos argumentos apresentados pelos autores aqui reunidos que a junção dos artigos escolhidos em torno de uma temática bem específica – o grafismo e a figuração na sua relação com a performance 22

introdução

ritual e a ontologia xamanística ameríndia – resultou em um livro surpreendentemente coeso em termos teóricos e nos modos propostos para abordar a temática: encontramos assim como fios condutores desta empreitada reflexões sobre a análise do fenômeno da sinestesia no contexto performático das artes xamanísticas, uma ênfase na análise praxiológica tanto da produção quanto da recepção dos grafismos e das figurações, assim como uma análise formal aliada a uma antropologia da percepção, associando deste modo preocupações estéticas e cognitivas. O conjunto dos artigos reunidos, inclusive aqueles que não dialogam diretamente com o conceito proposto, representam uma rica contribuição à recente reflexão em torno do potencial teórico do conceito de quimera, além de contribuir de modo decisivo para uma proposta de análise da especificidade das técnicas perceptivas e expressivas ameríndias, técnicas estas ligadas a uma ontologia xamanística. referências bibliográficas BAXANDALL, Michael. L’Œil du Ouattrocento. Paris: Gallimard, 1985 [1972]. COHN, Clarice. “A criança indígena: a concepção Xikrin da infância e do aprendizado”. Dissertação de mestrado, São Paulo, USP, 2000. DESCOLA, Philippe. Par-delà nature et culture. Paris: Gallimard, 2005.

______. La fabrique des images. Visions du monde et formes de la représentation. Paris: Museu du Quai Branly-Somogy, 2010. ILLIUS, Bruno. Ani shinan: Schamanismus bei den Shipibo-Conibo (Ost-Peru). Tese de doutorado, Tübingen, Verlag S&F, 1987. GEBHART-SAYER, Angelika. “The geometric designs of the Shipibo-Conibo in ritual context. In: Journal of Latin American Lore v. 2 (2), p. 143-175, 1985. LAGROU, Els. Caminhos, duplos e corpos. Uma abordagem perspectivista da identidade e alteridade entre os Kaxinawa. Tese de doutorado, São Paulo, USP, setembro de 1998. ______. A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). Rio de Janeiro: Topbooks, 2007. ______. “Le graphisme sur les corps amérindiens. Des chimères abstraites?”, Dossier Pièges à voir, pièges à penser, in: Gradhiva. Revue d’Anthropologie et d’Histoire des Arts., v. 13. Paris: Museu du Quai Branly, p. 69-93, 2011. MENEZES BASTOS, Rafael de. A festa da Jaguatirica: uma partitura crítico-interpretativa. Tese de doutorado em Antropologia Social, Universidade de São Paulo, 1990. ______. “Ritual music of the Kayapó-Xikrin, Brazil”. In: Yearbook of the International Council for Traditional Music. Nova York, v. 28, p. 231-233, 1996. MÜLLER, Regina Polo. Os Asuriní do Xingu. História e Arte. Campinas, Unicamp, 1990. SEVERI, Carlo. “Warburg anthropologue, ou le déchiffrement d’une utopie. De la biologie des images à I’anthropologie de Ia mémoire”, L’Homme 165 (numéro spécial – Image et anthropologie), Carlo Severi (éd. l), p. 77-129, 2003. 23

quimeras em diálogo

______. Le Principe de la chimère. Une anthropologie de la mémoire. Paris, Éditions rue d’Ulm-musée du quai Branly «Aësthetica»), 2007. ______. “l’univers des arts de la mémoire. Anthropologie d’un artefact mental”. In: Annales H55 2, p. 463-493, 2009. STRATHERN, Marilyn. The Gender of the Gift. Berkeley: University of California Press, 1988. TAUSSIG, Michel. Defacement. Public secrecy and the labor of negative. Stanford: Stanford University Press, 1999. TOWNSLEY, Graham. Ideas of Order and Patterns of Change in Yaminhaua Society. Tese de doutorado, Cambridge, Cambridge University, 1988. TURNER, Terence. “The social skin”. In: CHERFAS, J.; LEWIN, R. Not work alone: a cross-cultural study of activities superfluous to survival. Londres: Temple Smith, p. 111-140, 1980. VELTHEM, Lucia Hussak van. O Belo é a Fera. A estética da produção e da predação entre os Wayana. Lisboa: Museu Nacional de Etnologia, 2003. VIDAL, Lux (org.). Grafismo indígena. São Paulo: Studio Nobel, FAPESP/EDUSP, 1992. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio”. In: Mana. Estudos de Antropologia Social, 2(2), p. 115-144, 1996.

O espaço quimérico. Percepção e projeção nos atos do olhar1 Carlo Severi

Vi toda uma paisagem refratar-se no olho de uma pernalta que mergulhava: os mil círculos que encerram cada vida, o azul sussurrante do céu tragado pelo lago, a emergência num outro lugar – eis o que são as imagens: a emergência num outro lugar. franz marc (1996 [1914])

Figura 1: Enguerrand Quarton, Coroamento da Virgem, detalhe, 1454, óleo sobre painel. Museu Pierre de Luxembourg, Villeneuve-lès-Avignon © Musée Pierre de Luxembourg/ Giraudon/The Bridgeman Art Library. 1

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Este texto foi originalmente publicado em francês na revista Gradhiva, n. 13, 2011, traduzido para o português por Alberto Goyena, com revisão técnica por Els Lagrou.

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o espaço quimérico

O museu Pitt Rivers de Oxford possui uma argola de marfim singular, encontrada na Sibéria (Figura 2). Veem-se nela duas formas idênticas que podem ser interpretadas de maneiras diferentes: como o contorno de uma cabeça de lobo ou como o corpo inteiro, provavelmente, de um leão marinho. Esse objeto não constitui unicamente a representação de dois animais diferentes pelos mesmos meios visuais; ele é testemunho de um ato do olhar. Inserindo uma linha curva em dois contextos diferentes, a imagem passa da representação pela imitação de um animal à interpretação complexa e plural de uma forma. Enquanto traço material, a representação faz emergir um trabalho mental, uma série de operações mentais (ou, simplesmente, de pensamentos) que se associam a uma linha e que dela fazem surgir, em ambos os casos, uma parte invisível ou potencial. Há alguns anos, havíamos proposto chamar de quimérica esse tipo de representação (Severi, 2003), assinalando que ela se caracteriza pela condensação da imagem em alguns traços essenciais. A condensação engendra, por projeção, uma ou mais interpretações da forma. Aquilo que pode ser visto é considerado, implicitamente, uma parte de outra forma, cuja presença é imputada e eventualmente representada. Num ato do olhar como esse, o invisível prevalece sobre o visível e parece indicar o contexto. Formulamos a hipótese de que, nas tradições habitualmente chamadas de “orais”, esta estrutura, “por indícios”, confere à imagem um aspecto particular que lhe permite desempenhar um papel crucial nas práticas sociais, tanto ligadas à memorização como à consolidação de um saber. A saliência visual destas imagens, ligada à mobilização da inferência que elas implicam, pode se tornar, assim, um traço mnemônico capaz de veicular e de preservar sentidos.

Figura 2: Argola siberiana de leão marinho em marfim, museu Pitt Rivers, Oxford.

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Essa primeira definição, que intencionava aludir aos modos de funcionamento de certa quantidade de exemplos específicos, suscitou novos debates e pesquisas no marco de uma teoria antropológica da memória. Dentre as questões provocadas, um primeiro grupo concerne à interpretação etnográfica: como apreciar, em novos campos, a capacidade heurística da noção de quimera? Seria possível, a partir dessas primeiras análises, definir um tipo geral de representação, a qual se poderia chamar de “quimérica”, da mesma forma como se fala, por exemplo, de representações “realistas”, “abstratas” ou “simbólicas”? Como identificar modos de variação, no espaço ou no tempo, das representações quiméricas? Conforme definida nos primeiros exemplos, a representação “quimérica” seria própria das artes não ocidentais? Se for o caso, como diferenciar o que seria próprio das quimeras ameríndias, oceânicas ou africanas de tudo aquilo que a tradição ocidental denominou de imagem fantástica, dupla, ambígua ou simplesmente, segundo a recente definição de Dario Gamboni (2004), imagem “potencial”? Outros questionamentos concernem aos aspectos mais propriamente lógicos desta noção. Se o essencial da ideia de quimera não diz respeito a um tipo de imagem definida por uma morfologia específica, mas sim ao tipo de operações mentais que a invenção e a apreensão desse tipo de imagem implicam (seleção de traços visuais, projeção, indução, estabelecimento de sequências etc.), cabe perguntar: o que distingue a representação quimérica? Qual o exercício do pensamento que a caracteriza e que permite, eventualmente, opô-la a outros modos de pensamento? Algumas questões foram também formuladas a partir de um ponto de vista mais próximo da estética. Concordaremos, dentro dessa perspectiva, que um dos efeitos da representação quimérica é intensificar uma imagem graças à mobilização de seus aspectos invisíveis. Mas poder-se-ia objetar, a rigor, que toda obra de arte suscita um trabalho do pensamento concernente ao que não está materialmente representado. Todos os clássicos do pensamento estético moderno destacaram esse ponto. Em seu Essais sur la peinture (Ensaios sobre a pintura), Diderot já descrevia com grande precisão esse jogo do olhar, essa máquina que faz surgir, através de um cálculo cuidadoso do espaço e das proporções, a parte invisível de um quadro: Tentem, meus amigos – escrevia ele ao se dirigir, em particular, aos desenhistas –, supor toda a figura transparente e foquem o olhar no centro: de lá vocês observarão todo o jogo exterior da máquina; vocês verão como certas partes se dilatam, enquanto outras se encurtam; como há as que encolhem, enquanto outras inflam; e, perpetuamente ocupados de um conjunto e de um todo, vocês lograrão mostrar, na parte do objeto que seu desenho apresenta, toda a correspondência com aquilo que não se vê, 27

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e, oferecendo apenas uma face, vocês forçarão minha imaginação a ver a face oposta; só então direi que vocês são desenhistas surpreendentes (1951: 1.118).

Como precisar, desse terceiro ponto de vista, o que é próprio à apreensão estética da representação quimérica? E como conceber, posto que toda obra de arte supõe uma reflexão, uma imagem que não fosse quimérica? O esforço no sentido de buscar responder a esses questionamentos pode nos permitir não apenas afinar nossas ferramentas de análise (e até esclarecer alguns mal-entendidos), mas também renovar nossa compreensão sobre o tipo de exercício do pensamento que se exprime no seio de uma tradição iconográfica. Passaremos, assim, da perspectiva que leva a definir uma tipologia das representações à identificação da lógica das relações representadas pela imagem no seio de uma tradição. Para mostrar como é possível operar essa mudança de perspectiva, tentaremos inicialmente precisar a definição e os desenvolvimentos possíveis da noção de quimera, a partir dos três pontos de vista identificados: o morfológico, o lógico e o estético. Em um segundo momento, tentaremos mostrar como essa nova abordagem permite interpretar um caso etnográfico preciso. Retomemos os questionamentos suscitados pelo debate sobre a representação quimérica e consideremos a questão, levantada segundo uma perspectiva estética, da singularidade do quimérico no que tange à relação estabelecida entre a obra de arte e as operações do pensamento.

i O artista deve saber oferecer mais ao espírito do que ao olhar... é próprio da pintura poder representar as coisas invisíveis, situadas no passado ou no futuro. winckelmann, Réflexions sur l’imitation de l’art des Grecs, 1973.

No aforismo acima, Winckelmann formula um dos fundamentos do pensamento estético moderno: longe de mobilizar um processo de percepção passivo ou mecânico, a obra do artista suscita sempre no observador um ato do olhar. Numa percepção próxima à de Diderot, Winckelmann afirma que aquilo que emerge na experiência estética é resultado de um diálogo entre o que é exibido sobre uma tela pintada e o processo de exploração/interpretação, onde o observador desempenha um papel paralelo ao do autor.

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Figura 3: Anônimo, A Trindade, século XVIII, óleo sobre madeira (43,5 x 28,5 cm). Museu Carolino Augusteum, Salzburgo.

Nessa perspectiva, a obra ultrapassa e até se opõe à imagem. A partir daquilo que vê, o sujeito que se constitui como observador faz emergir uma experiência estética, a qual, ainda que parcialmente imaginada pelo artista, só se realiza plenamente no seio do olhar do observador. De Goethe – para quem “o mundo exterior carece de cor: somente a fagulha de luz que reside no olho confere ao mundo o seu cromatismo” (2000 [1808: 21]) – a Lévi-Strauss – em La pensée sauvage (O pensamento selvagem), que falava de um observador “que se sente, confusamente, mais criador que o próprio criador” (2008: 586) –, a ideia da obra como resultado de um diálogo travado por meio de um ato do olhar (e não pela simples percepção visual) desenvolveu-se ao longo de toda uma tradição de pensamento. Em L’Œil du Quattrocento, Baxandall (1985) formulou uma versão particularmente clara que pode servir como introdução às análises propostas neste artigo. Em um breve capítulo dedicado à relação entre experiência ótica e conhecimento cultural, o historiador inglês sugere um tipo de experimentação visual. Observemos a Figura 4. O que ela representa? 29

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Figura 4: Santo Brasca, plano do Santo Sepulcro em Jerusalém, Leonardus Pachel e Uldericus Scinzenzeler, Itinerario alia Santissima ctttà di Gerusalemme, Milão, 1481: 58v.

Pode-se ver, por exemplo, uma forma redonda, muito vagamente traçada, ladeada de projeções alongadas em forma de L. Ou então, de um ponto de vista mais geométrico, um círculo chapado sobre um retângulo truncado. A percepção possível dependerá, para além do processo mecânico que rege a percepção visual, “das capacidades interpretativas, das categorias, dos modelos e dos hábitos de dedução e de analogia” que formam o que se poderia chamar de “estilo cognitivo” de um dado observador (Baxandall, 1985: 48). Saber que essa imagem provém de uma descrição da Terra Santa publicada em Milão, em 1481, e que ela está acompanhada da legenda “Esta é a forma do Santo Sepulcro de Nosso Senhor Jesus Cristo” traz dois elementos importantes para a percepção da imagem. Primeiramente, segundo Baxandall, o observador poderá se referir a possíveis experiências, por meio de certas convenções representacionais. Ele, ou ela, julgará, talvez, que a imagem se destaca da projeção plana. Trata-se de uma convenção de leitura segundo a qual, uma vez observadas verticalmente, as linhas que representam os muros periféricos de um edifício se desenham a partir do solo. Em seguida, se estivermos familiarizados com a arquitetura italiana do século XV, deduziremos pelo desenho que o círculo representa uma edificação redonda, talvez coberta por uma cúpula, que as alas retangulares são vestíbulos e que o quadrado no interior do círculo designa o espaço onde se localiza a tumba (ibid.: 49). São três as variáveis que, ligadas à cultura, agem no modo como nosso espírito interpreta formas que, até então, poderiam parecer desprovidas de sentido: “uma variedade de modelos, de categorias, de métodos dedutivos; o treinamento numa série de convenções para representar as coisas e, finalmente, a experiência baseada nos modos plausíveis de visualizar aquilo sobre o que não temos mais do que uma informação incompleta” (ibid.). Chegaremos à conclusão de que em todo ato do olhar, tal como ele se exerce em uma dada cultura, a percepção como processo fisiológico e a projeção de certos saberes adquiridos encontram-se estritamente associadas. Como operações mentais, elas são indissociáveis de todo ato do olhar. Contudo, isso não significa que essa relação entre percepção e projeção, definidora do processo de construção cultural de uma imagem, se estabeleça sempre dentro 30

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das mesmas convenções – como se as convenções visuais referidas por Baxandall constituíssem uma sorte de gramática da cultura, cujas regras seriam fáceis de enunciar ou de fixar para sempre. Instável, variável segundo o contexto, ligada à hipótese ou à inferência, sempre em reconstrução, a relação entre percepção passiva e olhar interpretativo pode variar não somente de um indivíduo a outro, mas também conforme o tipo de diálogo que uma convenção visual (ou o conjunto de uma tradição iconográfica) propõe ao olhar de um observador. Desse ponto de vista, se quisermos compreender o que é próprio da representação quimérica, será necessário atentar para os tipos e as modalidades de representação que a relação entre projeção e percepção implica. Para compreender as quimeras será central identificar as coordenadas do espaço quimérico. Consideremos agora a convenção visual que nos é mais familiar, a da perspectiva ocidental. ii A relação mais simples entre percepção e projeção é sem dúvida a de encastramento (enchassement), que leva a inscrever o exercício de uma operação no marco conceitual fornecido pela outra. Portanto, a projeção se exerce em um quadro visual virtualmente fixo, a exemplo do observado na perspectiva ocidental. Nesse sentido, projetar significa tornar-se capaz de traduzir indicações estáticas, dispostas sobre uma superfície, em indicações de profundidade dotadas de um movimento implícito, antes mesmo de começar a se decifrar o significado de uma imagem. Tal tipo de apreensão da imagem, que nos parece tão familiar, está longe de ser universal. Ele foi analisado em detalhe, sobretudo por Florensky (1992), como um dispositivo cultural de funcionamento ótico. Mas é, sem dúvida, em Le problême de la forme (O problema da forma), de Hildebrand (2001 [1893]), que encontramos, de um ponto de vista formal, a descrição mais clara desse processo de decifração da profundidade, por meio da percepção de imagens dispostas sobre uma superfície plana – ao qual a existência mesma da perspectiva enquanto convenção visual nos habituou. Sigamos o raciocínio do autor: a obra de arte suscita operações do pensamento, escreve Hildebrand, porque, longe de se basear na observação direta do real, ela resulta de um processo complexo de rememoração da imagem real: Ver e representar um objeto são dois processos muito diferentes: para obter uma prova disso, observe um objeto atentamente e dê-lhe as costas. O que resta em seu espírito é muito diferente da primeira impressão que teve: uma parte da imagem desapareceu, mas outros traços persistem. O primeiro ato é uma percepção; o segundo é uma representação. O ato que preside a representação é, portanto, próprio da lembrança e não da percepção (2001[1893]: 122). 31

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Figura 5: Véronèse (Paolo Caliari), presumido autorretrato como caçador, afresco da villa Maser, detalhe, 1560-1561, Vicence © 2011. Foto Scala, Florença.

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Figura 6: Juan de Flandes, A decapitação de São João Batista, detalhe, entre 1496-1499. © Musé d’Art et d’Histoire, Ville de Genève, inv. no CR 365/ Foto Bettina Jacot-Descombes.

Logo, a memória visual propriamente dita é a “matéria mental” sobre a qual o artista intervém. O seu trabalho implica, segundo a expressão de Hildebrand, uma constante “avaliação das aparências”. Mas essa atenção dada ao real não visa à imitação da natureza, mas, sim, à identificação de um princípio organizador da percepção que se exprime pela presença de uma forma. O conceito não designa, para Hildebrand, nem um fenômeno próprio à aparência do mundo exterior nem um aspecto da experiência que pertenceria somente à atividade artística. O sentimento da forma, para ele, remete “à percepção inconsciente do espaço que orienta constantemente o nosso olhar”. Tal “sentimento” (que hoje chamaríamos, preferencialmente, de reflexo inconsciente) orienta constantemente nossos movimentos e marca a presença do nosso corpo no espaço. Nesse marco conceitual, toda imagem que nos permite ver a profundidade e o movimento implícito, como na convenção visual da perspectiva, visa à representação do espaço através das operações do olhar, e não à imitação da aparência. Hildebrand conclui que o artista 32

trabalha sempre “lá, onde as representações do espaço são produzidas inconscientemente” (ibid.: 228). Atingir esse substrato, torná-lo sensível, é, ao mesmo tempo, explorar o trabalho do olhar e suscitar o sentimento inconsciente do espaço. Não será necessário retomar aqui outros aspectos da concepção de Hildebrand sobre a forma. Atenhamo-nos apenas a um ponto essencial: sua definição oferece um modelo, ao mesmo tempo abstrato e elementar, da relação de encastramento entre percepção e projeção que se realiza no seio da convenção visual da perspectiva. No seio dessa convenção, que se tornou dominante no Ocidente, só se pode apreender a forma (e, portanto, interpretar corretamente a perspectiva), fazendo surgir, a partir de indicações dispostas sobre uma superfície, a profundidade e o movimento implícito que caracterizam uma representação. Fundador do formalismo, mais teórico do espaço estético do que historiador de arte, Hildebrand apresenta apenas uma interpretação idealizada das relações que podem ser estabelecidas entre percepção e projeção. Na verdade, a história das práticas ligadas à perspectiva está longe de se reger apenas pelas regras da geometria. Uma vez que o quadro se fixa sob o modelo albertiano, tais práticas originaram progressivamente um espaço partilhado, com suas permanências, seus problemas típicos, seus dilemas, seus reencontros e suas ressonâncias. Sua complexa evolução se situa, sem dúvida, no longo prazo (dans la longue durée). Dando prosseguimento à reflexão de Baxandall e de Shearman (1992), Svetlana Alpers (2005) comparou esse espaço a um laboratório científico onde o artista, seu modelo e seu mecenas desempenham cada um, ao seu modo, um papel essencial. No interior desse universo (uma espécie de teatro do olhar, onde, do Quattrocento aos impressionistas, todo elemento da cena pode variar: a ideologia do mecenas, as técnicas da representação, a atitude do modelo ou mesmo, como mostrou Fried (1990), seu modo de se dirigir ao observador), diversas modalidades de relação entre projeção e percepção são possíveis. Mesmo correndo o risco de simplificar, pode-se dizer que o meio mais simples de se mobilizar uma projeção para interpretar uma imagem inscrita sobre a superfície plana, desde a Renascença, consiste em conferir-lhe um valor simbólico. Baxandall (1985, 1989) e Settis (2005) mostraram, por exemplo, que toda iconografia religiosa da Renascença italiana está rigorosamente codificada a partir das instruções detalhadas que a Igreja ditava aos artistas, a fim de orientar e instigar a imaginação dos fiéis. Retenhamos aqui o exemplo da representação de Cristo, do qual Baxandall mostrou que ela não estava, de forma alguma, relegada à imaginação. Sua figura devia acompanhar a descrição dada num relatório supostamente enviado por Lentulus, governador da Judeia, ao Senado romano. Lentulus (sem dúvida um personagem legendário), que teria 33

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conhecido Cristo, dizia ser ele “um homem de estatura mediana ou baixa... seus cabelos eram da cor de castanha madura e caíam retos até a altura das orelhas e, em seguida, formavam cachos grossos até os ombros... sua testa era vasta, polida e serena, seu rosto era desprovido de rugas, e sua barba, da mesma cor dos cabelos, assemelhava-se à primeira barba de um rapaz”.

Figura 7: Albrecht Dürer, Hieroglifos para o Arco do Triunfo do imperador Maximiliano, por volta de 1515. Coleção privada/The Bridgeman Art Library.

Poucas pinturas, de fato, contradizem esse modelo (Baxandall, 1985: 91). Deve-se sublinhar, contudo, que no interior desse marco iconográfico, admitia-se inteiramente que o aspecto conceitual de uma representação poderia contradizer sua verossimilhança. Atenhamo-nos à representação de Jesus Cristo como um rapaz: em um Coroamento da Virgem, pintado por volta de 1454, perto de Avignon, Enguerrand Quarton, para mostrar que não pode haver diferença entre o Pai e o Filho, os representa com rostos idênticos (Figura 1) (Baschet, 2008: 170-172). De maneira análoga, Bramantino, na mesma época, pinta uma Virgem com criança, cujos traços são tão próximos aos de um rapaz que o quadro pareceu enigmático durante muitos anos. Suida mostrou que se tratava, para os mecenas da obra, por um lado, de relembrar a natureza divina do Cristo – que pode também contrariar as aparências e surgir através do rosto de sua mãe – e, por outro lado, de evocar, por meio da semelhança da mãe com o filho, uma definição canônica e mais rara da Virgem como “Virgem Mãe, Filha de seu Filho” (Vergine madre, figlia del tuo figlio, disse Dante no Canto XXXIII do Paraíso) (Suida, 1953: 98-100). Encontramos os mesmos jogos de “semelhança impossível” em Bosch, quando ele dá à Santa Liberata, sacrificada na cruz, o rosto de Cristo (Figura 8). Mais tarde, um anônimo alemão do século XVIII (inscrevendo-se em tradição muito antiga) não hesitará em representar a trindade como uma figura tripla de rapaz (Figura 3). 34

Figura 8: Jérôme Bosch, O martírio de Santa Liberata, óleo sobre painel (104 x 119 cm). Palácio dos Dogos, Veneza. © Palazzo Ducale/The Bridgeman Art Library.

A referência à antiguidade grega, latina ou egípcia produziu, naturalmente, uma iconografia convencional muito influente, analisada pela escola de Warburg e sobre a qual não insistiremos aqui. Contudo, retomando Baxandall, notaremos que esses dados iconográficos de base não são mais do que um repertório, relativamente estável, o qual se pode citar, modificar, contradizer ou renovar conforme a ocasião. Pensemos nos “hieroglifos” desenhados por Dürer, por volta de 1515, para o Arco do Triunfo do imperador Maximiliano (Figura 7). Neles, toda uma tradição iconográfica neoegípcia (Barasch, 2003; Panofsky, 1943; Wittkower, 1977) foi completamente reinventada, no que diz respeito tanto ao estilo como ao significado dos símbolos. Para além da tradição cristã, tais usos da imagem simbólica parecem se organizar, conforme reconheceu Warburg (2010), segundo dois eixos: ou remetem ao retorno do Antigo (segundo o uso italiano) ou se referem à tradição à francesa, que Warburg identificou quando estudou as tapeçarias da Borgonha, das coleções dos Medici, em Florença (ibid.: 5). Esse modo francês (rapidamente difundido em toda a Europa, incluindo a Itália) consiste em situar as cenas extraídas de um texto antigo, do Evangelho ou da Bíblia, em uma época contemporânea à do artista e de seu mecenas. A Degola de São João Batista (Décollation de Saint 35

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Jean-Baptiste), de Juan de Flandes (Figura 6), pintada em 1496-1499, oferece um exemplo marcante das variações inovadoras do simbolismo. O mestre flamengo (que faz alusão a um texto de Mateus, que trata da beleza sensual de Salomé e da crueldade que ela demonstrou ao demandar a Herodes a decapitação de São João Batista) nos mostra a princesa acompanhada de uma dama de sua corte. Vestida, assim como sua companheira, em um traje muito elegante, Salomé parece perfeitamente indiferente diante do guarda que, consternado, lhe mostra a cabeça decapitada de João Batista. Ao fundo, pousados sobre o muro que circunda o castelo, há dois pavões maravilhosos. Em contraposição a uma luz vespertina dourada, as aves parecem elegantes, indiferentes e cruéis, assim como as damas. Essa primeira analogia adquire uma intensidade singular, ao passo que o observador percebe que o pintor superpõe, face ao eixo damas/aves, outro eixo análogo relacionado às cabeças do guarda e do santo decapitado, representadas com traços marcados pela dor, quase idênticos. A encarnação de uma crueldade controlada, sem emoção aparente, se opõe a uma representação tão intensa do sofrimento que chega a ser quase uma alucinação. Seria muito difícil encontrar exemplo mais eloquente do estilo à francesa: inteiramente dedicado à invenção de imagens, o texto e seu simbolismo estão presentes, sem que nada remeta explicitamente ao Evangelho.

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semifictício, semirreal, no qual aquele que olha fica enredado. Descobre-se o que Shearman, ao retomar a definição clássica de Riegl (2009 [1902]) e os trabalhos de Gombrich (1969, 1982), chamou de transitividade da perspectiva. Trata-se de sua capacidade, inteiramente formal, de suscitar a presença de um observador engajado na imagem. Enquanto convenção visual, ela implica não somente a existência de um “ponto de fuga”, que organiza em um espaço coerente a percepção da profundidade, mas também de dois campos visuais: um situado no interior do quadro e outro que se projeta para o exterior do espaço pintado, marcando assim o lugar implícito do observador (Shearman, 1992: 36).

iii Inspirado pela antiguidade, pela tradição religiosa ou pelos costumes da vida na Corte, o simbolismo é testemunha do trabalho de projeção de diferentes saberes, os quais, na Renascença, se associam à interpretação visual de um quadro. Mas esse trabalho da projeção (esse ato do olhar que, face à obra, mobiliza um saber adquirido), que vimos até aqui operar no nível semântico, pode ir além da decifração de imagens simbólicas e adentrar no espaço mesmo da representação. O marco formal da perspectiva (e o tipo de articulação que ele supõe entre percepção e projeção) deixa, então, de aparecer como um dado a ser reproduzido mecanicamente e tende a adquirir um aspecto reflexivo. A hipótese sobre a qual se destaca a perspectiva como convenção visual, quer seja, a existência de uma continuidade entre o espaço pintado e o espaço real (e, em particular, da parte do espaço real, a qual se pode chamar de liminar, na medida em que ela “designa a fronteira do espaço representado sem dele fazer parte” [Shearman, 1992: 59]), deixa de funcionar de modo implícito e emerge como sujeito da representação. O olhar do observador passa, então, da decifração dos significados simbólicos das figuras à interpretação da ação representada e do espaço que ela implica. Surge uma série de gestos, de olhares e de posturas, supondo a existência de um espaço 36

Figura 9: Andrea Mantegna, São Sebastião, em torno de 1459, têmpera sobre painel (68 x 30 cm). Kunsthistorisches Museu de Viena. © Kunsthistorisches Museum/ Ali Meyer/The Bridgeman Art Library.

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Figura 10: Andrea Del Sarto, Virgem com harpias, 1517, óleo sobre painel (178 x 207 cm). Galerie des Offices, Florence © Galleria degli Uffizi/The Bridgeman Art Library.

Quando a operação da projeção se volta para a moldura da representação, a imagem inclui no espaço fictício que ela mostra certos elementos do espaço real onde se situa. Representa então, por assim dizer, nela mesma, as condições de sua própria percepção. Tal mise en abyme faz emergir aquilo que se poderia chamar de aspectos pragmáticos do ato do olhar.2 Esse tipo de composição (que inclui na cena apresentada suas condições de percepção visual) marca uma relação nova entre o exercício da percepção visual e o da projeção. Vimos que, no âmbito da perspectiva, eles se articulavam por encastramentos. Ora, essa relação implica que o aspecto convencional da visão, quadro da atividade de interpretação, não seja representado como tal. Quando o espectador traduz indicações dispostas sobre uma superfície plana, por projeção, em termos de profundidade e de movimento implícito, as coordenadas formais do quadro que orientam a percepção desaparecem da consciência. O “sentimento da forma”, na convenção visual que 2

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O nível de análise que Karl Bülher chamou, em sua teoria da linguagem (1990 [1934]), de EU, AQUI, AGORA do enunciado se tornaria assim pertinente para a representação visual, o que permitiria renovar a interpretação da “agência” (no sentido Gell [1998]) atribuída à imagem.

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torna possível a perspectiva, se mostra, como Hildebrand o definiu, “um reflexo inconsciente do espaço que orienta inconscientemente a posição do corpo e do olhar” (2001 [1893]: 228). Compreende-se que esse tipo de encastramento opera, a fortiori, quando o olhar do observador interpreta uma representação simbólica, cuja percepção da profundidade (bem como a do movimento implícito) fornece o contexto formal. Ora, quando a estratégia da representação se torna, através do surgimento de uma reflexividade do enquadramento, “transitiva”, a imagem deixa transparecer um deslocamento inédito entre aquilo que é exibido e o que é inferido por projeção. O marco da percepção e o tema iconográfico simbolicamente interpretado não estão mais tão estritamente associados, a ponto de um não ser percebido sem o outro. Como nessa misteriosa nuvem que Mantegna pintou em forma de cavaleiro em seu São Sebastião de Viena (Figura 9), torna-se visível alguma coisa da ordem da convenção inconsciente que tacitamente rege a percepção visual do espaço (Damisch, 1972; Gamboni, 2011: 147-156). Mostra-se aí o processo da projeção. Excepcionalmente dissociado do quadro perceptivo, que comumente oculta a existência desta, ele deixa traços sobre a imagem. O encastramento entre percepção e projeção, que normalmente permanece no estado de “sentimento inconsciente do espaço” (Hildebrand), revela suas limitações, permitindo se entrever seu caráter fictício. Tal maneira de pôr em evidência o espaço liminar aparece bastante cedo na Renascença, por volta de 1530. Shearman mostrou que, nessa época, Andrea del Sarto, em Virgem com harpias (Vierge aux harpies) (Figura 10), insere na sua composição estranhas “nuvens de incenso”, que só podem vir do altar originalmente situado sob o quadro. Logo comentado e louvado por Vasari (que fala com admiração de uma “fumaça de nuvens transparentes sobre a arquitetura” surgindo por trás do grupo de figuras [citadas por Shearman, 1992: 60]), essa invenção confere sem dúvida “uma estranha propriedade atmosférica” (Shearman, 1992: 59) à composição. Mas designa também, indiretamente, um espaço liminar que marca a fronteira entre aquilo que a composição exibe e o espaço no qual essa mesma composição se situa. Destarte, a presença da fumaça revela, por excesso, o estatuto ficcional da pintura e o grau cuidadosamente calculado da ilusão que ela gera. Veronese inventará, deste mesmo jogo, uma versão, ao mesmo tempo profana, elegante e vertiginosa, nos afrescos que pintou na villa Maser (Figura 5). Juan de Flandes dará, por sua vez, uma versão dramática e espetacular. Morando até o final de sua vida na Espanha, pintará uma série de composições, datadas de por volta dos anos 1505-1506, onde um São Miguel armado, inteiramente coberto por uma couraça metálica negra, esmaga sob seus pés um animal monstruoso (Figura 11). Sobre a superfície preta da armadura, a qual reflete a luz, Juan pinta verdadei39

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ras visões do Apocalipse, onde parecem surgir campos de batalha devastados e cidades incendiadas, como em um espelho escuro e semiopaco refletindo o espaço onde o observador se encontra. Como na Degola de São João Batista (Décollation de saint Jean-Baptiste) exposta no Museu de Arte e de História de Genebra, o simbolismo está presente, mas as condições de sua interpretação mudaram. Não se trata mais de decifrar um sentido oculto, mas de estabelecer uma nova relação entre o espaço da ficção e o lugar do observador. A invenção da armadura-espelho de São Miguel faz do observador (até então simples “leitor” do sentido simbólico) um protagonista da cena representada: a cidade incendiada e suas cenas de violência encontram-se, graças ao segundo plano da representação que a imagem espelhada situa no exterior do quadro, atrás de suas costas.

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iv Interpretação do significado simbólico, projeção do quadro, explicitação e exploração dos atos do olhar onde percepção e projeção se articulam. Operações estéticas desse tipo não são próprias nem da Renascença nem do maneirismo nem do período barroco. Poder-se-ia até mesmo pensar que um grande mestre do século XX, como Barnett Newman, na esplêndida série dos Onements pintada em Nova York nos anos 1950 (vide Figura 1), explora, pelos meios da pintura abstrata, precisamente, o traço dessa dupla presença do observador. Por meio de uma calibragem exata das dimensões da tela e da intensidade da luz, o observador se situa na frente e, simultaneamente, dentro do espaço infinito e anicônico que a imagem apresenta. De Juan de Flandes a Andrea Del Sarto, de Bramantino a Mantegna, de Dürer a Barnett Newman, fica claro que os deslocamentos entre tema iconográfico e enquadramento, entre percepção e projeção, não são nem episódicos nem raros na nossa tradição. Uma imagem pode esconder outra (Une image peut en cacher une autre), exposição dedicada à ambiguidade visual, realizada no Grand Palais em 2008, permite dar um passo além. Jean-Hubert Martin e Dario Gamboni demonstraram que os jogos reflexivos mobilizam, cada um a seu modo, tanto o simbolismo como o quadro da representação, não sendo próprios a uma época ou a uma cultura específica. A relação entre o quadro perceptivo e seu conteúdo, que rapidamente pusemos em evidência, no que diz respeito à convenção visual da perspectiva (e que, na nossa tradição, vai constituir um dos eixos da modernidade, de Piranesi a Goya, de Manet a Newman, a Jasper Johns ou a Markus Raetz), pertence, sem dúvida, aos termos constitutivos de toda representação pela imagem. Toda tradição iconográfica possui sua própria transitividade, se ela for definida como a forma implícita da ilusão (ou do apelo ao olhar) que ela implica.3 É, então, do ponto de vista das formas da relação entre projeção e percepção que poderemos agora voltar ao conceito de quimera, no intuito de precisar segundo quais modalidades esta relação entre reflexividade do quadro e espaço liminar, por um lado, e entre percepção e projeção, por outro, pode se estabelecer no caso da representação quimérica. 3

Figura 11: Juan de Flandes, Tríptico de São Miguel, detalhe, em torno de 1506. Museu diocesano, Salamanca © Album/Oronoz/akg-images.

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As análises que Gell (1996, 1998) dedicou às técnicas que em certas artes não ocidentais tendem a capturar o olho numa representação labiríntica devem ser indubitavelmente interpretadas como caso de transitividade. Outro exemplo é o da arte funerária chinesa e, notadamente, de certa quantidade de monumentos funerários (datados de entre 618 e 713, dinastia T’ang), onde, como demonstrou recentemente Jonathan Hay (2010), a representação da tumba é disposta do ponto de vista do espírito do morto.

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Mas detenhamo-nos ainda sobre um ponto concernente à distinção entre ambiguidade visual e representação quimérica. A imagem dupla ou potencial e, de maneira mais geral, o universo de deslocamentos visuais que pode se estabelecer entre percepção e projeção foram utilizados, na tradição primitivista, como uma chave para interpretar tudo aquilo que, nas artes não ocidentais, mobiliza a ambiguidade visual. Foi possível, nessa perspectiva, comparar um nu de Degas, que se revela, simultaneamente, interpretável como uma paisagem (Figura 24), a uma cimeira A-tshol da tradição baga, onde vários seres são representados simultaneamente (Figura 14). Podemos ver, de fato, se lermos a imagem da esquerda para a direita, a cabeça de um homem, e, da direita para a esquerda, a forma de um pássaro. Passaríamos, em seguida, a uma pintura de Arcimboldo, e, daí, a Dalí ou a Johns. Em todos esses casos, veríamos na obra o mesmo espírito de “dupla significação” ou decifração de uma imagem implícita. Trata-se de um erro que deriva de uma redução drástica, não das “significações” evidentemente diferentes de suas imagens, mas, precisamente, da estratégia de invenção visual que se faz, a cada momento, presente na obra. Como veremos, uma imagem dupla, ou composta, não é necessariamente quimérica. v Consideremos mais um exemplo. O museu Getty possui um elmo muito singular, conhecido tradicionalmente como o Elmo de Filipe V da Macedônia, datado de entre 350 e 300 antes de Cristo (Figura 13). Trata-se, à primeira vista, de uma imagem múltipla: sobre o topo do elmo surge de fato a representação de um animal mítico, uma espécie de grifo com bico de pássaro. Esse detalhe levou especialistas a interpretarem-no como um objeto ritual, provavelmente associado ao culto que o rei Filipe dedicava ao herói Perseu. Mas o artefato nos interessa também por outra razão. Nele, aparece uma invenção que nos permitirá precisar nossa linguagem e nossas ferramentas de análise, tanto no que diz respeito à morfologia da representação quimérica como para esclarecer a lógica icônica operante. Ao redor do rosto, nessa zona do elmo que Riegl (2009) e Shearman (1992) nos ensinaram a chamar de liminar (compreendendo a testa e as sobrancelhas como o limite extremo), o autor desse admirável artefato gravou, muito levemente, com uma destreza técnica extraordinária, os contornos das sobrancelhas e os rastros de uma cabeleira. Esses cabelos, dispostos habilmente sobre a testa e ao redor das orelhas, onde se juntam aos pelos da barba, marcam a fronteira entre o artefato e a pessoa cuja presença é imputada. Imediatamente compreendemos que, de fato, pertencem ao jovem guerreiro que, supostamente, deve portar o elmo. O primeiro 42

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efeito dessa invenção é o de tornar perceptível (e, portanto, pertinente) um espaço vazio. Se, por um ato do olhar consciente, concentrarmos nossa atenção no contorno dos cabelos, dispostos em volta da testa e até o queixo do guerreiro, não é a imagem do celebrante que aparece no espaço que devém subitamente sensível em torno do objeto, mas sim um conjunto de indícios (realizados com uma destreza extraordinária) de sua presença imputada. Quando, no seio do olhar, o elmo e o guerreiro aparecem juntos, não é uma imagem dupla que surge, de forma alguma. Se recorrermos à linguagem analítica de Peirce (1978), constataremos que, para designar um ser plural, a invenção do escultor evoca, por um lado, um ícone, e, por outro, um índice, sob a forma de fragmento visual. Temos aqui, no que tange aos exemplos de representação dupla ou composta que pudemos evocar, duas transformações radicais. Por um lado, a reduplicação da imagem nunca é encontrada no universo das representações quiméricas, do qual Elmo de Filipe V da Macedônia é um modelo memorável. Até mesmo nas situações de elaboração formais mais acabadas, a representação plural é sempre composta por uma imagem dada a ver e por um pensamento suscitado. Por outro lado, o surgimento da cabeça invisível do jovem guerreiro, ainda que implícito, não aparece como um deslocamento marginal em relação a um modelo de organização do espaço que, assim como a perspectiva, possui uma existência independente. A pluralidade é, nesse caso, como em todos os exemplos de representação quimérica que estudamos, o princípio mesmo da organização do espaço que orienta, em um mesmo movimento, tanto o exercício da percepção como o da projeção. Não se trata, nesse caso, de um espaço fictício, regido por regras abstratas (por exemplo, como visto aqui, geométricas), onde uma transgressão apareceria no nível do simbolismo ou da transitividade da imagem. O elo entre o visível e o invisível coincide aqui com a definição mesma do espaço: sem essa pluralidade do olhar, que é imediatamente oferecida, não surgiria nenhum espaço liminar entre aquilo que é exibido e inferido. O caminho da imagem quimérica é, portanto, diferente do caminho da imagem dupla. Voltemos à já citada cimeira baga (Figura 14). Se é verdade que há, nessa representação, uma elaboração pela imagem de uma fronteira entre o que é mostrado e o que é oferecido à projeção (cabeça humana ou pássaro), não se percebe aí nenhum desdobramento. Como no elmo (cujo princípio ela multiplica, já que podemos interpretá-la segundo diferentes direções, da direita para a esquerda e vice-versa), e como na quimera hopi (Figura 12), que analisamos alhures (Severi, 2007), essa cimeira não é dupla. Os contornos que marcam aqui a fronteira entre percepção e projeção (os temas visuais “pássaro”, “nuvem”, “relâmpago” etc.) não funcionam como ícones ecoando outras imagens, mas como índices de uma presença a ser 43

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decifrada. Não temos aqui, portanto, como na paisagem-mulher de Degas (Figura 24), interferência ou eco entre duas representações icônicas no interior de uma mesma definição do quadro visual. Onde procurávamos uma reduplicação, encontramos uma articulação inédita entre a imagem de uma totalidade e a de um fragmento, funcionando não como uma revelação do que é simplesmente implícito, mas como a prefiguração possível de uma presença inteiramente diferente e, na maioria das vezes, antagonista. Não desvendamos aqui, nem de forma potencial, nem materialmente realizada, a presença de dois ícones remetendo, por ambiguidade ou duplo sentido, um ao outro. O que caracteriza essa representação, e a torna plenamente quimérica, é a sua remissão, mediante uma indicação icônica fragmentária, a uma presença representada por índices, que só se torna imagem quando o olhar, ao mobilizar “capacidades interpretativas, categorias, modelos e hábitos de dedução e de analogia”, que formam “aquilo que se pode chamar de estilo cognitivo” de um dado observador (Baxandall, 1985: 48), funciona por projeção.

partida, uma definição que compreenda, nas operações de pensamento suscitadas pela imagem, tanto os aspectos puramente ópticos como o conjunto de processos de dedução deflagrados pela representação (assim como o conjunto de fenômenos de projeção que ela suscita). Digamos, portanto, que é quimérica toda imagem que, ao designar um ser plural por meio de uma só representação, mobiliza suas partes invisíveis, por meios puramente ópticos ou por um conjunto de inferências.

Figura 12: Pássaro-serpente hopi, cerâmica policromada. Estilo D.

Figura 13: Anônimo, Elmo de Filipe V da Macedônia, século IV a.C., bronze (28 x 20 x 66 cm) © The J. Paul Getty Museum, Villa Collection, Malibu, California.

A leitura do Elmo de Filipe, assim como a da cimeira baga, nos permite formular duas primeiras indicações sobre o grau de complexidade que caracteriza a representação quimérica. A primeira concerne à passagem da ambiguidade visual do estatuto de deslocamento entre projeção e percepção (no marco de um espaço formulado por meios ópticos independentes) ao estatuto de princípio organizador do espaço. A segunda diz respeito ao estabelecimento de uma articulação lógica entre uma representação icônica e uma marca indiciária de presença. Poder-se-ia concluir que, se quisermos compreender as representações quiméricas, não será suficiente assimilá-las prematuramente a um fenômeno de ambiguidade visual. Será necessário, pelo contrário, apreciar com exatidão as condições de possibilidade que caracterizam sua própria complexidade. Assumiremos, como ponto de 44

A partir dessa primeira definição, será possível responder a três interrogações que surgiram a propósito da noção de quimera: uma questão morfológica (como definir um tipo geral de representação quimérica? Trata-se de uma representação típica das artes não ocidentais?), uma questão lógica (qual o exercício do pensamento que caracteriza esse tipo de representação?) e uma questão estética (o que é próprio da apreensão de uma representação quimérica?). Do ponto de vista morfológico, é próprio desse tipo de representação um princípio de organização do espaço que, ao deflagrar diversos tipos de projeção, faz do deslocamento entre uma forma exibida e uma forma imputada o meio para engendrar uma ilusão específica (no sentido que Gombrich [1969] e Florenski [1992] atribuíram a esse termo). 45

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Nessa perspectiva, em vez de uma tipologia das iconografias (que diferenciaria imagens “realistas“, “abstratas“ ou “simbólicas”), será preferível uma tipologia dos espaços, definidos como o conjunto de formas possíveis da relação, estabelecida pela visão pura ou pela inferência, entre forma e fundo. Concluiremos, assim, que uma representação fragmentária, mas não plural – como o quadro n° 1, Losango com quatro linhas e cinza (Lozange avec quatre lignes et gris), de Mondrian4 –, ou plural, mas não fragmentária, não são, nem uma nem outra, representações quiméricas no sentido que nos propomos dar ao termo. Do ponto de vista lógico, reservaremos o termo “quimérico” à articulação específica entre representação icônica (por imitação e convenção) e indicação indiciária (visual, tátil ou outra) de uma presença cujo modo de existência, sobretudo mental, não se realiza materialmente. Trata-se de uma imagem imputada pelo pensamento, da qual a realização nunca é considerada mais do que um índice (exatamente como na argola siberiana de Pitt Rivers). Tal índice pode aparecer na forma de um fragmento indicando a região liminar da imagem, como no caso do Elmo de Filipe V, ou segundo a ordem de uma série de fragmentos, como no caso da cimeira baga ou da quimera hopi. Do ponto de vista estético, enfim, o que caracteriza o espaço quimérico não é nem uma relação estável de encastramento entre percepção e projeção, como na representação simbólica no quadro da perspectiva, nem um deslocamento episódico, onde o quadro da percepção se torna objeto mesmo da projeção. Trata-se, acima de tudo, de uma relação instável, de forma alguma casual, de complementaridade alternada entre o tema iconográfico e seu espaço liminar. No seio desse espaço, um fragmento visual pode de fato tornar-se inteligível graças ao fundo no qual ele surge. O inverso, contudo, é sempre possível. No âmbito dessa convenção visual específica, o fundo poderá alternar seu papel com a forma: é exatamente o que acontece, em duas etapas, na argola siberiana dupla que nos serviu de ponto de partida. É assim que, no âmbito de um ato do olhar que visa à designação de um ser múltiplo, uma imagem, cujo sentido é adquirido por projeção, funciona como um princípio (latente ou realizado) de construção (ou de quadro organizador) da percepção do outro. No seio de uma representação quimérica há, no enquadramento, uma reflexividade que existe paralelamente a um registro de interpretação simbólica. O que é dado como marco de percepção (ainda que sob a forma elementar de um fundo) pode sempre tornar-se princípio de interpretação projetiva (portanto, forma enquanto testemunho das operações do olhar, no sentido de Hildebrand), e vice4

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Imagem disponível em: . Acesso em out. 2013.

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versa. Longe de inscrever-se em um marco visual fixo, a quimera reflete um jogo constante de pressuposição recíproca entre percepção e projeção, já que, no âmago desse tipo de espaço, a projeção e a percepção apenas se exercem quando estabelecem uma complementaridade provisória – a forma e o fundo, o fragmento e a totalidade, o focalizado e o periférico –, intercambiando incessantemente os seus papéis.

Fgura 14: Cimeira baga antropo-zoomorfa, Guiné. © Musée du Quai Branly/Foto Thierry Ollivier, Michel Urtado.

Por mais que a decifração de significados esteja sempre presente (como se verá nos exemplos da Amazônia que vamos estudar), esse jogo de complementariedade possível entre tema e enquadramento não abrange, em primeiro lugar, o nível do simbolismo. Se o fragmento que se oferece à interpretação projetiva tem um sentido (designando, por exemplo, dentro de um sistema como o da Costa Noroeste, uma barbatana, uma cabeça, um bico de pássaro, uma cauda, ou, no da Amazônia, uma onça, um abutre, ou uma anaconda), o que torna possível o jogo de remissões é seu caráter fragmentário e, portanto, sua relação com o marco que engendra uma forma específica de reflexividade; esse sentido está muito longe daquilo que identificamos no caso mais familiar da perspectiva. É esse jogo incessante entre fragmento e quadro reflexivo que, como veremos nos casos amazônicos, torna o espaço quimérico iterativo, recursivo e potencialmente infinito. 47

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Retomemos, para concluir essas primeiras reflexões sobre a representação quimérica, a máscara haida, cujo estudo nos permitiu, com outros exemplos, formular um conceito. A interpretação projetiva de certos traços de imagem (“é um rosto!”) fornece, em um primeiro momento, o marco visual para designar a presença de um ser humano, ainda que um detalhe, como o nariz, seja de difícil interpretação. Todavia, é sempre possível inverter o jogo: quando, ao se interpretar o nariz do rosto como um bico, diz-se “é um corvo!”, o resto do rosto humano se curvará a representar, como numa espécie de anamorfose espontânea, a cabeça de um pássaro ao redor desse bico. Mais uma vez, o enquadramento tornará possível a interpretação projetiva e vice-versa. Aquilo que, no sistema ocidental, não aparenta ser mais do que um deslocamento episódico ou excepcional torna-se aqui um princípio de organização do espaço, que poderíamos chamar de ilusão sem perspectiva, não mais fundado na percepção de uma profundidade, mas, acima de tudo, na apreensão dos limites (e das relações possíveis) de uma dada imagem. Tal princípio pode se desenvolver, seja em termos de visão, na oposição dual à série, seja nas relações possíveis entre imagem, som, palavra e representações do movimento. Vale precisar: nenhum dos traços por nós identificados é suficiente para definir um tipo iconográfico canônico da representação “quimérica”. O trabalho que nos permitiu sua identificação leva a uma operação diferente: trata-se de esclarecer, para além da quimera como representação, por um lado, as coordenadas do espaço quimérico e, por outro, uma lógica das relações expressas pela imagem. Uma quimera não representa seres, mas relações, possíveis ou pensadas como tais, entre seres. A ideia de representação quimérica não se inscreve em uma tipologia das iconografias, mas em uma lógica das relações icônicas, que se desdobra tanto nas imagens como nos atos do olhar que elas implicam. vi Vejamos agora um exemplo dessa lógica das relações entre os seres, que a imagem quimérica permite formular em termos icônicos. Consideremos duas tradições iconográficas ameríndias, nas quais a representação quimérica constitui sem dúvida a convenção visual dominante: os Yekuana e os Wayana. Trata-se de populações de caçadores e agricultores tropicais, falantes de diferentes línguas da família caribe, e que vivem hoje em dia na região do Alto Orinoco, entre o Brasil e a Venezuela. O caso das cestarias yekuana, em que toda sorte de criatura mitológica é representada, nos permitirá introduzir os primeiros elementos de nossa análise. Os trabalhos de um certo número de etnólogos (Civrieux, 1970; Wilbert, 1981) nos permitiram adquirir um conhecimento relativamente detalhado da mitologia 48

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desses caçadores e agricultores amazonenses. Trata-se de um longo ciclo de histórias que relatam os episódios sangrentos de um conflito percebido pelos indígenas como dominando todo o universo. O conflito opõe Wanadi, personagem positivo associado ao sol e que preside a cultura dos humanos (técnicas de agricultura, de pesca, de caça, de fabricação de artefatos etc.), a seu irmão gêmeo Odosha, encarnação do mal, dos infortúnios, das doenças e da morte. Esse conflito cósmico não representa, para os Yekuana, um simples esquema explicativo da origem do universo. Remontando à origem dos tempos, a luta entre esses dois irmãos inimigos nunca termina: ela marca a vida quotidiana dos homens e carrega consigo, amiúde, consequências trágicas. Essa ruptura de equilíbrio corresponde a uma dissimetria original entre o bem e o mal, e entre a existência dos humanos e de seus inimigos potenciais, animais ou vegetais. Para os Yekuana, o mal sempre prevalece sobre o bem. É por isso que Wanadi, seu aliado, habita uma região afastada do céu e mantém poucas relações com o mundo de baixo. Seu gêmeo Odosha, cercado de seus demônios (comumente representados como “mestres” invisíveis dos animais e plantas), é uma figura sempre presente, próxima e ameaçadora. O que explica também que Odosha possa ser representado mediante uma extensa série de seres maléficos – macacos, serpentes, onças ou canibais estrangeiros –, enquanto Wanadi, refugiado em seu céu, é o único a defender os indígenas. De fato, cada ato ligado à pesca, à caça ou à agricultura se realiza, de acordo com os Yekuana, contra a vontade de uma multidão de “mestres invisíveis” que possuem os animais e as plantas. Esse universo povoado de inimigos potenciais, sempre ameaçadores, é o de Odosha e seus demônios. Cada ato necessário à vida dos humanos suscita, então, uma vingança esperada, mesmo que constantemente conjurada por cantos específicos. A esse princípio de dissimetria entre o bem e o mal associa-se a ideia de um processo de transformação constante de um no outro: toda aquisição cultural (quer se trate de armas, de cestos, de ornamentos ou de pinturas corporais) é, para os Yekuana, o resultado de uma transformação do mal ou dos seres que dele dependem. Provém daí a ideia de uma constante ambiguidade que atinge todos os seres do universo: tudo aquilo que é útil e benéfico (incluindo a cestaria decorada pelos homens como preparação para seu casamento) inclui uma “parte transformada” de um ser maléfico. Guss (1989) demonstrou que a memória visual da mitologia depende de uma iconografia específica, que restitui uma espécie de “catálogo” desses seres e seus nomes. De fato, em lugar de tentar representar este ou aquele episódio em um espaço mais ou menos “realista”, a cestaria yekuana reflete um nível mais profundo de organização do saber mitológico: cada ser encontra-se associado, por meios puramente gráficos, à sua parte invisível. Como vimos, os dois importantes moti49

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vos dessa mitologia são a oposição constitutiva entre dois grandes grupos de personagens e a ideia de um processo de transformação contínua que a todos afeta. Essas metamorfoses têm duas modalidades. Por um lado, pode-se ter a noção de uma criatura múltipla que (como Odosha) “assume a forma” de toda uma série de outros seres. Caminha-se, conforme esse ponto de vista, do indivíduo à série. Por outro lado, esse processo de metamorfose incessante (onde a ideia do bem é resultado de um processo de domesticação do mal) pode conduzir a dotar uma mesma criatura de uma ambiguidade constitutiva que configura simultaneamente uma instância positiva e negativa. Passa-se, assim, de uma série de seres à representação de um único ser complexo. A iconografia yekuana permite traduzir em termos visuais, de forma sucinta e precisa, esses dois princípios de organização do mundo mítico. Os termos visuais que traduzem os nomes dos espíritos derivam todos de um mesmo tema gráfico, uma espécie de “T” invertido que representa Odosha. Toda a série de outros personagens da mitologia é engendrada a partir desse primeiro tema gráfico, mediante transformações geométricas simples. Tais grafismos traduzem, ao mesmo tempo, a multiplicidade de animais (macaco, serpente e sapo) e sua unidade, como formas derivadas de um mesmo ser original. Os diferentes personagens são assim construídos a partir de uma única forma básica, em um sistema que permite representar não apenas seres bem identificados, mas também suas possíveis relações. Essas relações entre figuras (analogia, inclusão ou transformação) indicam uma organização interna própria de um sistema de representações que se baseia em um critério único: trata-se sempre de representar, pela via quimérica, a pluralidade potencial de cada criatura mitológica. Mas o debate não se encerra aqui. A técnica visual descrita implica também em um jogo de forma e fundo que permite representar (por meio de uma interpretação reflexiva do marco que engendra, como em toda representação quimérica, um jogo de complementaridade entre projeção e percepção) ao mesmo tempo um ser específico e uma de suas possíveis metamorfoses. Essa possibilidade de uma representação em forma de ser potencialmente duplo diz respeito a vários personagens da mitologia: os macacos, os morcegos ou os sapos. O exemplo mais marcante é, sem dúvida, o do tema gráfico chamado de woroto sakedi (“máscara do onça”, Figura 15), que representa alternadamente, dependendo do foco de atenção, a forma ou o fundo da imagem, Odosha ou Awidi, quer seja, uma de suas transformações em forma de serpente. Reconhece-se aqui a relação instável, de complementariedade alternada, entre o tema iconográfico e seu espaço liminar e entre percepção e operações de projeção, que caracteriza o espaço quimérico. De fato, como sublinhou Guss, o verdadeiro sujeito dos grafismos yekuana não é esse ou aquele personagem, mas “a relação dinâmica em forma de transformação latente” de um no outro (1989: 106, 121-124). Encontramos, 50

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então, nessa série iconográfica aparentemente simples, uma organização do espaço propriamente quimérica que se complexifica a partir de uma forma elementar, onipresente e em transformação. No seio desse espaço, todo ser (inclusive o próprio Wanadi) resulta da forma de Odosha. Acréscimos, variantes, relações de inclusão, de repetição e de inversão se estabelecem entre tais formas e manifestam, assim, uma unidade profunda. O universo quimérico da mitologia é traduzido em termos visuais por meio dessa técnica que interage ao mesmo tempo com o simbolismo e com um tipo específico de reflexividade do marco (cadre). vii Esse tipo de iconografia, na qual a representação dos seres é indissociável da representação de suas relações, não é algo excepcional ou isolado, se considerada toda a região amazônica. Uma breve análise da cestaria wayana, vizinhos dos Yekuana na região do Alto Orinoco, permite demonstrar que essa lógica imagética, fundada na noção de variação a partir de um conjunto de modelos gráficos relativamente elementares, pode ser adotada para atingir grande complexidade. Encontra-se entre os Wayana uma concepção da representação iconográfica (e mesmo certos temas gráficos, como o que é associado à onça [Velthem, 2003: 352-356]) muito próxima à dos Yekuana. Para eles, assim como para seus vizinhos, uma representação iconográfica se organiza sempre em torno de motivos geométricos simples como o triângulo, o quadrado, a espiral e as linhas cruzadas ou paralelas. Para eles, também, o universo desse tipo de representação concerne apenas ao relato mitológico, a seu comentário e a sua memória – ainda que esse exercício de memorização das histórias tradicionais pareça menos formalizado entre os Wayana, para quem, segundo Lucia Hussak van Velthem, encontramos, acima de tudo, um esquema narrativo geral, referente à predação, que oferece, no entanto, inúmeras ocasiões para comentar em termos míticos experiências ligadas à vida quotidiana. Mas a etnografia wayana se distingue daquela das populações vizinhas pela complexidade do discurso relativo à representação visual. Um tema geométrico não é apenas, para os Wayana, a marca ou o emblema gráfico de um ser mitológico. Ele é o reflexo de um conhecimento específico, denominado wayaman, que se encontra metaforicamente situado na pupila daquele ou daquela que conhece a técnica da cestaria. O wayaman é a “figura invertida” de um espírito, em forma humana, que se apresenta na pupila daquele ou daquela que fabrica o objeto e que se constitui como o verdadeiro “autor” do objeto. Esse tipo de conhecimento (ou melhor, essa perspectiva, esse tipo de olhar que revela a “verdadeira natureza” da cestaria) diz respeito, acima de tudo, à forma dos objetos. Concebida como um “pensamento”, 51

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mas também como o reflexo desse “outro” habitante dos olhos de quem constrói um artefato e que, por assim dizer, “guia sua mão”, tal forma não se revela plenamente, senão quando o objeto é confeccionado seguindo as regras da técnica tradicional, permitindo ao artefato revelar sua verdadeira natureza e mostrar-se “semelhante a um ser vivo”. De fato, segundo a tradição wayana, os artefatos, os humanos e os não humanos podem (e às vezes devem) partilhar a mesma decoração. É assim que eles “assumem a mesma pele”. Essa noção é muito importante, uma vez que, para os Wayana, “a pele, ou melhor, a pele pintada conforme um esquema reconhecível representa um elemento que permite identificar a natureza de um ser, o meio pelo qual é possível definir sua especificidade própria” (Velthem, 2003: 129). Na medida em que os artefatos e, notadamente, os artefatos de uso ritual usam a mesma pele que os seres predadores ancestrais – cujos modelos são a anaconda, o urubu e a onça –, eles são sempre pensados como “réplica” ou “imitação”. Por conta dessa “identidade do desenho”, os artefatos podem “dançar”, “falar” ou mesmo “atacar”, como fazem os predadores. De fato, os Wayana não se limitam a afirmar, como os Yekuana, que a cestaria é “objeto-corpo”. Posto que seu criador fabricou a primeira mulher humana utilizando precisamente a técnica do trançado, segundo acreditam, um único processo “engendra”, inclusive em termos sexuais, os artefatos e os humanos. Diz-se não apenas que a cestaria, como outros seres vivos, é dotada de palavra, de movimento (ibid.: 197) ou de sexo (ibid.: 135), mas também que os humanos e os animais, precisamente porque eles podem portar os mesmos grafismos sobre a pele, são compostos da mesma matéria dos artefatos. A ideia de “pele pintada – explica Lucia Hussak van Velthem – é indissociável das ideias de cópia e de reprodução, uma vez que é por meio desse elemento que, conforme os Wayana, todo ser é engendrado. A produção de todo indivíduo supõe a produção de uma nova pele, um ato técnico que se funda na observação de um modelo preexistente” (ibid.: 240). Desse ponto de vista, a pele de um recémnascido está “simbolicamente associada a um tecido de plumas”. A de um adulto é sempre pensada como um entrelaçado de desenhos, como uma cestaria decorada. Em poucas palavras, no universo wayana, a identificação entre humanos e artefatos não se funda em uma semelhança direta, mas sim na ideia de que todo ser vivo é definido por uma decoração ou um desenho específico, representando ao mesmo tempo a pele, seu emblema e seu nome visual. Contudo, nos enganaríamos ao pensar que a aparência dos seres do mundo está fixada, para os Wayana, conforme modelos preestabelecidos. No mundo dos Wayana tudo que existe está em processo de transformação constante. Todo ser pode assumir, a cada instante, a “pele” de outro e até, por vezes, a de vários ouros seres simultaneamente. Velthem lembra o caso das danças que acontecem na casa 52

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dos homens. A casa é um lugar “habitado pelos peixes tukuxi”, representados com outros seres no pilar central da cobertura da grande casa cerimonial. Os peixes são também representados como “colibris de bico comprido”. Quando os homens mascarados “agem como peixes”, eles se tornam, ao mesmo tempo, “colibris de bico comprido”.

Figura 15: O tema “máscara da onça” (woroto saketi), cestaria yekuana.

Figura 16: O tema complexo “caranguejo/olho de anta”, cestaria wayana.

Essa ideia de transformação potencial e incessante de todos os seres está muito disseminada no universo amazônico. Entre os Yekuana, ela se exprimia por meio da oposição de dois irmãos inimigos, Wanadi e Odosha. Os Wayana partilham dessa ideia de uma dualidade original dos seres. Para eles, também, os seres do mundo se dividem em predadores e não predadores. Essa foi, aliás, uma das primeiras tarefas realizadas por seu criador mítico, o qual, segundo eles, literalmente construiu o universo distinguindo os predadores dos outros, tanto os animais como os vegetais e os humanos. Não se trata aqui, de forma alguma, 53

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assim como entre os Yekuana, de seres individuais dotados de uma personalidade distinta. Enquanto os Yekuana inventam personagens paradigmáticas, os Wayana raciocinam por classes. Em lugar de opor Wanadi a Odosha, eles distinguem diferentes modos de existência que podem caracterizar qualquer indivíduo de qualquer natureza – animal, vegetal, humana ou artefato. Profundamente enraizada no pensamento tradicional, essa categorização é também lexicalizada na língua. Tomemos o exemplo da anaconda, como um dos modelos do predador. “Seus atos predatórios – prossegue Velthem – possuem um caráter tão paradigmático que não apenas remete sempre à dimensão sobrenatural, mas pode também se aplicar a toda outra espécie animal. [...] Essa concepção permite atribuir a outros seres, como às larvas de borboleta, às centopeias, aos peixes e aos pássaros, instintos de predação num marco sobrenatural, associado à anaconda” (ibid.: 105). Inversamente, nessa ocasião, a anaconda “portará o nome e a pele desses animais”. Van Velthem assinala que: “A identificação desse par de seres é sinalizada pelos sufixos okoin e koimë, que significam “enquanto anaconda” e se aplicam ao nome de uma espécie específica.” (ibid.) Haverá, por exemplo, sob a denominação de kiapo-koimë, o “tucano enquanto anaconda”, representado como uma serpente provida de um bico longo e cuja pele é coberta de plumas de cores contrastantes. Da mesma forma, emprestar-se-á a um pássaro formigueiro, considerado “enquanto anaconda”, a imagem de um réptil que canta como um pássaro. Um processo análogo diz respeito à onça, cuja presença é assinalada por outro sufixo (kaikuxin), a qual engendrará seres que, como o roedor quatipuru, podem ser considerados e denominados “enquanto onça”. Temos aqui o exemplo daquilo que gostaríamos de chamar de “quimeras verbais”, designando seres múltiplos e cambiantes, definidos como membros de uma só classe, a partir de uma categorização construída por meio de um sufixo comum. O conceito de série, também presente na tradição iconográfica dos Yekuana, aparece aqui sob uma forma muito mais complexa. O exemplo mais claro dessa profusão de séries nos é oferecido pelas danças de iniciação masculina, analisadas por Van Velthem, em que as máscaras vestidas pelos neófitos designam um ser múltiplo, não apenas constituído por espíritos diferentes (arara, falcão, peixe, sol, arco-íris), mas também por formas múltiplas desses espíritos “enquanto” encarnações de diferentes predadores: onças, urubus ou anacondas (ibid.: 212). Passa-se assim da quimera à série de seres quiméricos. Com essa dupla série de marcas corporais dos neófitos, o conceito de representação quimérica alcança um nível de complexidade até agora desconhecido. O ritual torna-se lugar de transformação, onde os jovens rapazes mascarados, progressivamente, “portarão a pele pintada” com uma série de espíritos animais, vegetais ou humanos, sujeitos também a inúmeras metamorfoses. A transição lógica essencial 54

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que caracteriza o caso wayana é aquela que vai da representação de diferentes indivíduos (personagens, como já dissemos) à representação de membros de classes, e até mesmo, como no caso da dança ritual, à representação daquilo que poderíamos chamar de séries de séries de seres quiméricos.5 Como pode essa lógica complexa, e a ontologia que ela implica, ser traduzida em termos visuais? Devemos pensar que o caso wayana não tem mais nada em comum com aquele, mais simples, dos Yekuana, que parecia limitar-se à tradução visual de uma série restrita de nomes próprios? Ou devemos admitir que essas categorias de complexidade crescente, vistas em curso durante a ação ritual, pertencem somente à dimensão da exegese, sendo apenas discurso, sem relação com a iconografia? A representação de seres individuais na forma de motivos geométricos simples, como identificada entre os Yekuana, não está de forma alguma ausente na tradição wayana. Van Velthem menciona 47 temas gráficos para as cestarias e 29 para a cerâmica. Ainda assim, os Wayana não se contentam, como os Yekuana, com simples listas de temas. Eles jogam com um princípio de classificação dos temas gráficos reagrupados em três categorias distintas: aqueles que “pertencem” às pinturas corporais de anaconda, os que são associados à pele da onça e os que se referem à pele de “monstros antropomorfos” (uma categoria que abrange os inimigos, logo, os Brancos). Alguns motivos visuais, que guardam sua significação específica, são, em seguida, associados à designação de grupos ou categorias de seres. Consideremos um primeiro caso. “Uma das formas paradigmáticas da predação é o ato de ‘ferir, picar, perfurar’” (Velthem, 2003: 327). O ato que os sintetiza, “flechar” ou “atingir atravessando a pele”, é característico de um artefato, a flecha, e de vários animais, como cobras, vespas, escorpiões e certas aves, entre elas a cegonha maguari (Florida caerulea). “Essa ave, reconhecida como o protótipo dos seres que picam, é representada, no seio da iconografia wayana, pelo motivo ‘bico de maguari’ (Figura 17), cujo contorno gráfico indica uma posição de vigilância própria desse animal. [...] De fato, o grafismo representa a flecha enquanto artefato, assim como qualquer animal, enquanto predador, que deve ‘atingir sua presa ao modo de uma flecha’. A flecha redobrada poderá, portanto, designar de maneira indeterminada ‘tudo aquilo que pica”. Temos assim uma primeira forma de sair da representação de um ser individual para passar à representação da série. Uma vez estabelecido, esse princípio se aplica a outros casos. “Um tema gráfico 5

Os seres considerados enquanto anacondas seriam aqueles capazes de estrangular e de devorar os humanos. Aqueles que associamos às “larvas de borboleta”, considerados “enquanto onças”, compreenderiam, por sua vez, todos os seres capazes, de maneira quase imperceptível, de “morder do interior” os humanos, por exemplo, por meio de doenças (Velthem, 2003: 320).

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wayana”, prossegue Velthem, “pode ser múltiplo e referir-se, simultaneamente, a vários seres” (ibid.: 313). A imagem se decompõe, então, em diversas partes, possuindo cada uma significados independentes. É desse modo que o tema gráfico do “caranguejo” (Figura 16) contém aquele que designa o “olho de anta”. A interpretação se efetua, nesse caso, seguindo o que Velthem chamou de “diálogo interno” das formas no interior dos temas gráficos. Essa representação de um ser por meio de temas gráficos que designam suas possíveis transformações também pode se realizar através do desenho de um só animal “portando em sua pele” os temas gráficos que representam outros seres. É esse o caso da onça-caramujo (Figura 18).

eles mesmos híbridos (anacondas-jacarés e peixes que “possuem características próprias dos mamíferos e das aves”), mas cuja série representa, em seu conjunto, a “raia enquanto anaconda”. Estamos diante de uma espécie de uso recursivo do mesmo princípio de categorização. O ser quimérico wayana não se contenta em associar vários fragmentos de seres diferentes em um só corpo: graças ao princípio de autonomia dos desenhos em relação às diferentes superfícies onde podem aparecer, pode associar temas gráficos diferentes em um só corpo, assim como temas diferentes em corpos diferentes, eles mesmos combinados em sequências que representam coletivamente, como na maruana, seres sobrenaturais concebidos como séries de transformações (a raia enquanto anaconda).

Figura 18: O tema onça-caramujo, pintura wayana. Figura 17: O tema da cegonha maguari, cestaria wayana.

Essas representações de um único “ser complexo” ecoam em diversos documentos coletados por Barcelos Neto (2002) entre os Wauja do Alto Xingu, entre os quais encontramos representações de anacondas sobrenaturais definidas por sequências de temas gráficos, que se referem a outros animais (ver página 190, figura 2). Mas o sistema wayana é ainda mais complexo. Estudamos, até o momento, casos nos quais uma única representação iconográfica se refere a vários seres do mundo. A iconografia wayana possui também o caso inverso, no qual séries de desenhos designarão coletivamente um único ser. Encontramos aí a noção de predador ancestral, um ser que, manifestando-se por meio de uma série de metamorfoses, encontra-se representado como um ser coletivo ou serial. A ilustração mais eloquente desse processo nos é fornecida pelas pinturas que decoram, como já assinalamos, a roda de teto (maruana) da casa cerimonial (Figura 19). Vemos aparecer uma série de temas gráficos que remetem a diversos seres, 56

Notemos também que, mesmo quando ocorre, sob formas diversas, a passagem da designação de seres específicos à representação de séries de estatuto lógico diferente, a iconografia wayana permanece ligada à representação de listas de nomes próprios, ponto cuja importância foi sublinhada alhures (Severi, 2007). Não obstante, os nomes próprios não mais designam personagens individuais (mesmo “disfarçados” ou transformados, como podiam sê-lo entre os Yekuana, Odosha ou Wanadi), e sim séries organizadas de seres. Os nomes traduzidos em termos visuais por temas gráficos funcionam entre os Wayana como “definições verbais” que mobilizam vários nomes de espécies. No que tange à memorização de nomes, assistimos ao estabelecimento de um duplo processo. Um único tema gráfico representa o nome visual de uma série de seres reunidos em uma única classe, mediante a utilização de critérios taxonômicos distintos. Ou uma série de temas gráficos, dispostos em sequências ordenadas, ilustra a série de transformações que designam a “verdadeira natureza” de um único ser. 57

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Resta um terceiro caso de figura, onde o ser ancestral não é representado diretamente, mas encontra-se designado apenas pela relação, expressa em termos exclusivamente visuais, que ele pode manter com outros seres. É o caso, por exemplo, do roedor quatipuru, que pode ser representado em sua relação com outros animais, sem ser necessariamente figurado. Veremos outra maneira de traduzir em termos visuais o conceito de “quimera verbal”, típica da estética da predação wayana, em que vários tipos de “passagem à série” são utilizados. Sigamos a descrição dada por Velthem, pois ela nos permite uma aproximação com o conceito wayana de iconismo. Guiada, certamente, por seus interlocutores, Velthem distingue, por um lado, o ukuktop, a “imagem perceptual” do animal tal como visto na floresta próxima à aldeia, com sua morfologia, seu comportamento típico, o alimento que prefere, e, por outro, o mirikut, tema gráfico que designa esse mesmo animal na iconografia tradicional da cestaria (Figuras 21). “Embora todo mirikut seja naturalmente uma imagem, segundo a distinção formulada explicitamente pelos Wayana, nem toda imagem tem o estatuto de mirikut”, assinala Velthem (2003: 317). Isso permite de fato interpretar a verdadeira natureza (ou “decifrar a pele pintada”) do animal do qual se tem uma imagem cotidiana. Vejamos como pode se realizar essa constante operação de exegese das aparências. Tomemos o exemplo do quatipuru e do maguari, um pequeno roedor e uma variedade de cegonha que fazem parte do meio familiar dos Wayana. São representados na iconografia tradicional por dois temas gráficos: a dupla flecha que já conhecemos (Figura 17) e uma figura geométrica que poderíamos associar a uma representação “realista” do quatipuru (Figura 20).

Figura 19: Roda de teto (maruana), séc. XX, Estado do Pará, rio Paru do leste, Brasil, Wayana-aparaí © Musée d’Ethnographie de Genève (MEG). Foto Jonathan Watts.

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Figura 20: O quatipuru e o tema quatipuru, cestaria wayana.

A interpretação indígena dessas imagens advém da interpretação de um tema isolado por contraposição a um grupo de temas. Uma vez reconhecida a semelhança dos temas (mirikut) com as “imagens perceptuais” (ukuktop) desses dois animais, será afirmado primeiramente que o mirikut difere da imagem dos animais, por representar seus “duplos sobrenaturais”. O tema geométrico não representa (apenas) um ou outro animal (familiar e inofensivo), mas sua “réplica monstruosa e normalmente invisível” (2003: 319). Lembramos que a tradição wayana distingue diferentes classes de temas, os quais pertencem a diferentes predadores. Considerando os dois temas desse ponto de vista, reconhece-se que a dupla flecha e o pequeno roedor denominado quatipuru “pertencem ambos” às pinturas corporais que figuram no ventre da anaconda. É a esse predador que eles estão associados. Poderão, inclusive, enquanto membros de uma série, fazer parte de sua representação. O tema do quatipuru se traduziria, nesse caso, como escreve Velthem, por “imagem (ukuktup) e pintura corporal (imirikut) da anaconda” (ibid.: 317). Contudo, enquanto representação de um ser invisível, o tema do quatipuru contém também uma possível referência a outro predador, a onça. Por quê? Basta associá-lo ao tema da onça (Figura 21) para perceber que um único detalhe os distingue: a cauda, voltada para o exterior, no caso do quatipuru, e para o interior, no caso da onça (ibid.: 318). Essa comparação traz um “ponto de conexão” inesperado entre os dois temas gráficos, que permaneciam invisíveis quando se tratava de associar o roedor quatipuru à cegonha maguari. Esse aspecto em comum não diz respeito apenas aos grafismos, mas também aos dois seres representados. Deve-se 59

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concluir que esses dois animais (considerados sob o ponto de vista revelado por seu mirikut) possuem “um corpo de felino”, o que confirma a natureza da onça (ou melhor, o modo de existência possível “enquanto onça”) do quatipuru. Reconhecemos aqui o caráter essencialmente serial da iconografia wayana: um ser nunca é pensado apenas em sua singularidade. Ele é sempre definido pela “pele pintada” que ele veste, enquanto membro de uma classe ou de uma sequência de “modos de existência” possíveis.

Figura 21: O tema da onça, cestaria wayana.

A propósito desse tipo de representação, Van Velthem está certa ao falar de “formas mnemônicas” (2003: 319). Como foi possível constatar em outros casos (Severi, 2007, 2009), diferentemente de como acontece com as relações semióticas, as relações mnemônicas não se estabelecem entre um signo (ou desenho) e seu referente. Trata-se de um conjunto de inferências visuais baseadas na decifração de imagens complexas, que estabelece uma relação entre, por um lado, a memória espacial relacionada aos temas gráficos e, por outro, a memória das palavras. A eficácia das práticas ligadas à memorização das tradições iconográficas não se deve à tentativa mais ou menos bem-sucedida de imitar o caminho da referência própria à escrita, mas à relação que essas práticas estabelecem entre diferentes níveis de elaboração mnemônica. Os casos yekuana e wayana designam, nesse sentido, dois diferentes graus de complexidade de um mesmo espaço quimérico. Claro está que reencontramos, na decifração dos temas gráficos wayana, os dois princípios que governam a memorização dos nomes próprios dos Yekuana, ordem e saliência. O estabelecimento de uma ordem afeta as séries iconográficas ligadas às “séries de seres” organizadas por categorias de predadores. A consolidação de uma saliência própria a cada tema permite a identificação de cada termo da série e de cada série no interior daquilo que denominamos de “séries de séries”. Em ambos os casos, a prática da decifração de imagens quiméricas supõe um exercício de inferência 60

e de projeção, orientado pela tradição. O confronto entre os temas do quatipuru e da onça, que se desdobram simultaneamente no plano da presença marcante (junção de corpos “felinos” em comum) e da saliência (cauda orientada no sentido oposto, para o exterior ou para o interior), nos oferece um exemplo claro. O grafismo wayana (mirikut) é, portanto, uma espécie de nome visual, que utiliza traços icônicos provenientes da imagem natural (ukuktop) de vários seres para construir, serialmente, a imagem de seres complexos. Se não estivessem também presos em um processo de encarnação constante e provisório, esses seres complexos, que escapam à vista, seriam percebidos como puramente concebidos, porque escapam da vista. Essa atenção dada aos aspectos potenciais e implícitos da representação por temas gráficos, sujeitos a se fragmentarem e multiplicarem constantemente, em uma espécie de movimento perpétuo da representação rumo à dimensão quimérica, sugere que a lógica dessas iconografias ainda pode ser aprofundada. Seria possível, por exemplo, transferir esses procedimentos de referência serial de imagens a outros meios de expressão, além da visão. Tal hipótese de trabalho nos levaria a estudar as relações que se estabelecem, notadamente, entre os Wayapi – habitantes da mesma região que os Wayana –, entre seus temas gráficos e suas “imagens sonoras”, que assumem a função de representar os predadores e suas metamorfoses, como, por exemplo, nas suítes musicais chamadas de touré (Beaudet, 1998), função assumida até aqui somente pelos grafismos. Passaríamos assim das sequências dos Yekuana, organizadas segundo uma ordem geométrica simples, às representações seriais dos Wayana, para atingir, em seguida, um nível de complexidade ulterior onde as séries de representações seriam compostas tanto de imagens visuais como de imagens sonoras. Poderíamos, em seguida, utilizar outro meio de expressão e perceber o uso que certos cantos xamânicos fazem da onomatopeia verbal, deflagrada como uma verdadeira imagem sonora dos seres, permanecendo lexicalizada enquanto signos linguísticos na língua indígena. Em suma, até aqui esboçamos alguns elementos de um campo de investigação vastíssimo, ainda a ser explorado. Concluamos, por ora, que as tradições iconográficas aqui brevemente estudadas, Yekuana e Wayana, recorrem a meios comparáveis, quer se trate da representação geométrica de séries de traços (que pode ser constantemente reduzida a seus componentes elementares ou organizada em uma configuração mais complexa), quer da relação entre iconografia e linguagem, também variável. Em ambos os casos, a representação do mundo dos espíritos conserva sempre seu caráter semioticamente híbrido, “ao mesmo tempo representativo e conceitual” (Velthem, 2003: 306), uma vez que seu iconismo, ainda que refinado e frequentemente imprevisível, está sempre associado a um nome próprio ou a uma definição verbal do ser 61

o espaço quimérico

representado (que poderíamos chamar de nome-série). No seio desse último sistema, do qual o universo permanece limitado ao relato mitológico, será estabelecida uma dupla relação entre a representação iconográfica e a sua definição verbal. Em alguns casos, as séries de seres ou de “nomes próprios complexos” serão representadas com um único tema gráfico, assim como acontece com certos predadores. Em outros casos, serão utilizadas séries de temas gráficos designando um único ser. Isso se passa com a raia enquanto anaconda, mediante sua evocação como “nome de uma série” ou com o quatipuru enquanto onça, como o termo intermediário implícito designado pela justaposição parcial de seu tema gráfico com o da onça. Tanto para os Yekuana como para os Wayana o espaço quimérico está presente, com seu característico jogo constante de complementariedade instável entre percepção e projeção. A diferença entre essas duas iconografias diz respeito, por um lado, à passagem da representação dos indivíduos “personalizados” à de séries de seres em transformação constante e, por outro, à quantidade de termos intermediários, de caráter linguístico ou iconográfico, utilizados para designar um ser específico. Enquanto o trabalho etnográfico nos levaria a pensar em tradições diferentes, a análise dos temas iconográficos, tal como das operações mentais que eles implicam, revela uma unidade subjacente. Em ambos os casos opera uma mesma lógica ligada à representação quimérica das relações. viii Para responder aos debates suscitados pela noção de representação quimérica, tentamos inicialmente elaborar novos instrumentos de análise para o campo da antropologia das imagens. A partir de um breve estudo da perspectiva, convenção visual que nos é mais familiar, definimos a apreensão de uma imagem como uma relação, variável e específica a uma tradição, entre um quadro perceptivo e o exercício da projeção de saberes adquiridos, ou das “categorias interpretativas” (Baxandall, 1985: 48) neles implicadas. A análise nos levou a concentrar nosso estudo em noções potencialmente universais, tais como a interpretação do simbolismo por projeção, a transitividade das imagens, a reflexividade do marco e os atos do olhar. Em seguida, aplicamos essas noções à representação quimérica. Esta nos pareceu, do ponto de vista morfológico, fundada em um princípio de organização do espaço que faz da relação entre uma forma exibida e uma forma imputada pelo pensamento o meio para engendrar uma ilusão específica. Do ponto de vista lógico, pudemos concluir que o tipo de operação mental suposta nessa representação baseia-se em uma articulação específica entre representação icônica e indicação indiciária. Do ponto de vista estético, por fim, concluímos que o espaço quimé62

carlos severi

rico designa uma relação instável, de complementariedade alternada entre o tema iconográfico e seu espaço liminar e entre a percepção e as operações de projeção. Este trabalho de análise nos permitiu concluir que a representação quimérica é, antes de tudo, uma representação das relações expressas pela imagem. Desse ponto de vista, ela não se inscreve numa tipologia de representações iconográficas (“realista”, “anicônica”, “abstrata” etc.), mas sim em uma lógica de relações icônicas. A análise de duas tradições amazônicas, nas quais a representação quimérica constitui a convenção visual dominante, nos permitiu mostrar até que ponto a designação por projeção de uma presença imputada engendra a ideia de uma essência própria dos seres quiméricos. No caso yekuana, essa essência é representada por grandes personagens concebidos como seres submetidos a uma constante transformação, presentes nas narrativas mitológicas. No caso wayana, a essência daquilo que é quimérico se desenvolve em uma lógica plural onde vemos aparecer, no lugar dos personagens, classes (e, por vezes, classes de classes) de seres híbridos. Nessas tradições, como em outros lugares da Amazônia, a representação quimérica se associa à definição essencialista de uma classe de seres cujos traços definidores jamais coincidem com aqueles que, no seio do mundo humano, animal ou vegetal, definem uma espécie. O jogo incessante entre fragmento e marco (cadre), e entre percepção e projeção, que torna o espaço quimérico iterativo, recursivo e, dentre os Wayana, potencialmente infinito, designa não apenas uma estética, mas também um modo de existência dos seres sobrenaturais no mundo amazônico. Concluímos que o estudo da representação quimérica permite ampliar entendimentos e visões não apenas a respeito das artes, mas também da ontologia dessas tradições. Eis aqui, sem dúvida, uma das questões antropológicas do espaço quimérico, cujos primeiros elementos procuramos esboçar. referências bibliográficas ALPERS, Svetlana. Les Vexations de I’art. Vélasquez et les autres. Paris: Gallimard, 2005. BARASCH, Moshe. “Renaissance Hieroglyphics”. In: ASSMANN, Aleida; ASSMANN, Jan

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Podem os grafismos ameríndios ser considerados quimeras abstratas? Uma reflexão sobre uma arte perspectivista Els Lagrou

Figura 1: pintura dos adultos.

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uma reflexão sobre uma arte perspectivista

introdução Partindo da análise do papel desempenhado pelo sistema gráfico na vida perceptual dos Kaxinawa da Amazônia brasileira, onde tenho mostrado como um desenho “abstrato” opera a passagem entre o visível e o invisível num mundo ameríndio caracterizado pela intercambiabilidade das formas, sugiro a possibilidade de estender minha hipótese a outros sistemas gráficos ameríndios aparentados.1 Proponho que consideremos as imagens e os grafismos ameríndios como instrumentos perceptivos que implicam operações mentais específicas sustentadas por uma ontologia na qual a transformabilidade das formas e dos corpos ocupa um lugar central. O reconhecimento do caráter perspectivista (Viveiros de Castro, 1996) e animista (Descola, 2005) das ontologias ameríndias colocou em evidência este fenômeno da transformabilidade das formas, assim como o contraste constitutivo entre uma interioridade e uma exterioridade não necessariamente coincidentes, onde um ser humano pode se esconder num corpo não humano e vice-versa. Este postulado tem importantes consequências para o estudo das imagens materiais e virtuais produzidas por estas sociedades. Pretendo mostrar como diversos procedimentos formais característicos do grafismo kaxinawa e de outros povos da região podem ser interpretados como técnicas perspectivistas (Lagrou, 1998, 2002a, 2007), i.e., técnicas que permitem ao expectador mudar de ponto de vista graças a um enquadramento (framing) específico (Bateson, 1977). Há algum tempo meu tema de reflexão tem sido o de tentar relacionar um estilo de ver e de mostrar com um estilo de pensar (Lagrou, 1996, 1998). E não me parece um acaso que a arte ameríndia amazônica tem se especializado mais na arte de sugerir do que naquela de mostrar, de representar. Esta ideia ganha novo relevo no diálogo proposto aqui. Neste artigo proponho um diálogo entre o contexto imagético marcado pelo perspetivismo ameríndio e o conceito de quimera como formulado por Severi em Le principe de la chimère (2007). Tomo como ponto de partida a possibilidade, sugerida por Severi, de considerar o grafismo kaxinawa como uma “quimera abstrata”.2 Esta sugestão seguiu minha exposição 1

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Minha pesquisa de campo com os Kaxinawa da área indígena do Alto Purus no Estado do Acre (Brasil) se iniciou em 1989. O período de campo na aldeia durou aproximadamente 18 meses entre 1989 e 1995. Depois vim desenvolvendo trabalhos de curta duração com os Kaxinawa na minha casa. A população kaxinawa é estimada entre 7 mil e 8 mil pessoas. Tive a oportunidade de discutir as ideias desenvolvidas neste artigo em vários seminários e simpósios organizados no contexto do Projeto Capes-Cofecub “Arte, Imagem, Memória: Horizontes de uma antropologia da arte e da cognição”, em Paris e no Rio (entre 2007 e 2010), e agradeço particularmente a Carlo Severi, Anne-Christine Taylor, Denise Vidal, Aparecida Vilaça, Bruna Franchetto, Marco Antonio Gonçalves e Carlos Fausto por seus comentários e sugestões; assim como aos participantes do colóquio que deu origem a este volume. A hipótese que está na base deste artigo foi igualmente

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da lógica formal do grafismo kaxinawa onde mostrava que este grafismo induzia uma focalização da atenção que visava antes agenciar e direcionar o olhar do que representar figuras exteriores ao espaço gráfico. Tinha igualmente assinalado o dinamismo deste grafismo que, apesar de abstrato, podia se abrir para a percepção de uma figuração virtual, imagem mental que não é dada a ver no desenho, mas pode ser vislumbrada para quem está preparado e em circunstâncias específicas. É a partir desta descrição que surge a possibilidade de considerar este estilo gráfico como versão abstrata da lógica quimérica das imagens explorada por Warburg e Severi para imagens figurativas e pictogramas. Foi ao relacionar o estilo formal da arte gráfica kaxinawa com os contextos rituais de seu uso que se revelou mais claramente para mim a relação entre um estilo de pensar, um estilo de perceber e um estilo particular de mostrar que consiste em ocultar sistematicamente a maior parte do que poderia ser visto. A técnica aponta para o fato de muitas formas latentes só se darem a ver através de um engajamento ativo do olhar com a trama das linhas. Na minha análise da arte gráfica kaxinawa (1998a e b), isolei os seguintes princípios formais, visando mostrar como o jogo estilístico que produz um desiquilíbrio entre simetria e assimetria aponta para a simultaneidade de mundos visíveis e invisíveis, onde o olhar não se fixa sobre uma figura delineada por um fundo, mas oscila entre a possibilidade de perceber uma figura simultaneamente com outra, a contrafigura, produzindo um efeito kinestésico que dá vida ao suporte e que captura o olhar de quem contempla o desenho. Temos assim os seguintes princípios que pretendo explorar mais adiante: t4JNFUSJBBTTJNFUSJBPEVBMJTNPFNQFSNBOFOUFEFTFRVJMÓCSJP t4UVEJVNQVODUVNPQFRVFOPEFUBMIFEFTUPBOUF t&OHMPCBEPFOHMPCBOUFBQSPEVÎÍPEFQSPGVOEJEBEFOPFTQBÎPQFSDFQUJWP t4VQPSUFHSBĕTNPBSFMBÎÍPEJOÉNJDBFOUSFPTVQPSUFUSJEJNFOTJPOBMFPEFTFOIP que adere ao corpo; t"CTUSBÎÍPĕHVSBÎÍPVNBSFMBÎÍPTVUJMEFUSBOTGPSNBÎÍPFOUSFVNBSFMBÎÍPFOUSF linhas e a sugestão de uma silhueta delineando uma figura; exposta no colóquio “Mundos visuais e sensoriais andinos e amazônicos”, organizado por Aristóteles Barcelos Neto e por mim mesma em São Carlos, e agradeço aos colegas ali presentes por suas contribuições, particularmente a Cristiana Barreto, Fabíola Silva, Luisa Elvira Belaunde, Marcia Arcuri, Denise Gomes e Aristóteles Barcelos. Esta é uma versão substancialmente alterada de uma primeira versão desta hipótese comparativa que foi publicada na revista Gradhiva, n. 13, 2011. A hipótese foi posteriormente exposta no colóquio “Mostrar y Ocultar en el arte y el ritual”, na UNAM, México (2012), e agradeço a Johannes Neurath, Pierre Olivier Dittmar, Carlo Bonfiglioli e colegas pela discussão e pelas sugestões.

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ti1FSDFQÎÍPJNBHJOBUJWBwFiJNBHJOBÎÍPQFSDFQUJWBwJMVTUSBEBQFMBTJTUFNÈUJDBJOUFSrupção do desenho sugerindo sua continuação além do suporte e pelo motivo umin kene, o desenho quase imperceptível por não trabalhar com cores contrastantes.

No que segue tentarei explorar as implicações desta associação entre os conceitos de “quimera” e “abstração” para os “povos com desenho”. A expressão “povos com desenho” é uma autodesignação utilizada por alguns grupos pano da Amazônia Ocidental na fronteira entre o Peru e o Brasil. Os Kaxinawa, Shipibo-Konibo e Marubo, por exemplo, se autodesignam como huni keneya, aqueles que possuem o desenho e estendem este reconhecimento aos seus vizinhos Piro (Yine, de língua arawak). Sugiro que esta categoria se estenda, por razões de afinidade estilística e de significação geral do sistema gráfico, a outras etnias produtoras de “sistemas complexos de desenho” (expressão utilizada por Gow, 1988), como os tupi Yudjá (Juruna), Asurini e Waiãpi, assim como os Kadiwéu de língua Guaikuru.3 As populações do complexo cultural do Alto Xingu utilizam igualmente pinturas que cobrem o corpo inteiro com motivos entrelaçados, assim como os Kayapó. Este conjunto de pinturas corporais contrasta com aquelas que marcam o corpo com pequenos desenhos isolados que não cobrem a superfície inteira do suporte, como encontramos entre os Ashaninka (Beysen, 2008), Ashuar (Taylor, 2003), Culina e tantos outros grupos que habitam a mesma região da Amazônia Ocidental onde identificamos os “povos com desenho”. usos rituais do grafismo entre os kaxinawa Foi através do estudo do uso do grafismo kaxinawa em três contextos rituais diferentes que pude compreender o sentido da agentividade do kene – estilo gráfico kaxinawa – como instrumento de transformação da percepção (Lagrou, 1998a e b, 2007, 2009b). O primeiro destes contextos é o Nixpupima, rito de passagem para meninos e meninas na idade da troca dos dentes de leite por dentes permanentes, onde os corpos das crianças são remodelados, os dentes fortalecidos com nixpu e os ossos estimulados a crescer através da dieta do milho e o pulo forçado. Neste rito o desenho exerce um papel importante ao fazer da pele um mediador entre o exterior e o interior do corpo. O segundo é o rito de fertilidade, onde os participantes se pintam com urucum, mascarando-se. O terceiro contexto é a ingestão ritual da ayahuasca pelos homens caçadores, onde o desenho é evocado no canto e 3

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Para os Shipibo-Conibo, ver Roe (1975), Gebhart-Sayer (1986), Illius (1987) e Belaunde (2009 e neste volume); para os Asuriní, ver Müller (1990); para os Waiãpi, Gallois (2002); e para os Kadiwéu, Lévi-Strauss (1955).

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visualizado pelo participante. Deste modo, o desenho produz uma mediação entre o espaço perceptível da vida cotidiana e o espaço visionário da ayahuasca. Em dois dos três casos rituais examinados, o rito de passagem das crianças (com desenhos colocados no corpo) e o uso ritual da ayahuasca (com desenhos evocados no canto), um desenho abstrato opera a passagem entre o visível e o invisível. Durante o ritual de fertilidade, por sua vez, a pintura opera como máscara.

1. Nixpupima e Katxanawa: fabricação e transformação Em todos os rituais kaxinawa o grafismo é percebido em relação com um suporte.4 No rito de passagem das crianças, o uso da pintura corporal e facial com jenipapo segue a lógica da fabricação do corpo. Para que a intervenção ritual seja eficaz, o corpo deve ser pintado. O desenho sobre o corpo das crianças em processo de fabricação aumenta a permeabilidade da pele, abrindo o corpo à intervenção ritual. Enquanto os desenhos usados pelos adultos e jovens que já passaram pelo rito de passagem são feitos com traços finos e precisos, no caso das crianças que estão sendo iniciadas o desenho pintado sobre a pele deve ser grosso e “malfeito” (tube kene) para que os cantos, as rezas e os banhos medicinais possam penetrar melhor em sua pele. Ou seja, os traços grossos tornam a pele mais permeável à ação ritual. Os recém-nascidos, quando saem pela primeira vez do mosquiteiro, por sua vez, têm o corpo inteiro coberto com tinta de jenipapo para fechá-lo e protegê-lo das influências externas. Os grafismos acompanham as etapas da transformação corporal. A diferença entre os desenhos não se manifesta, como no caso Kayapó, nos motivos utilizados: usam-se os mesmos motivos para ambos os sexos e para todas as idades, com exceção dos recém-nascidos e da pintura de saída da reclusão.5 A diferença reside no estilo de execução utilizado. 4

Boas e Lévi-Strauss, nas suas respectivas análises da pintura da Costa Noroeste (1928) e da pintura facial dos Kadiwéu (1955), notaram a relação intrínseca entre corpos e grafismo. Lévi-Strauss relata o caso de uma mulher Kadiwéu que, para representar a pintura facial sobre papel, desenha um rosto em forma de coração, como se fosse necessário, para representar o grafismo numa superfície plana, escalpar a pele e esticá-la. Boas mostra igualmente que se podem ver os mantos heráldicos dos povos da Costa Noroeste como “animais dissecados”. Quando se juntam as partes do corpo desenhadas no manto numa caixa, se obtém um “corpo” coberto por uma pele.

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Se para os Kaxinawa a pintura participa no processo de fabricação, esta lógica não se verifica entre os Piro e os Xinguanos, onde o corpo em reclusão, em processo de fabricação, é nu. Segundo Gow, a pintura corporal dos Piro é considerada o resultado dos “pensamentos das mulheres”. A beleza compulsiva dos desenhos focaliza a atenção na perfeição das formas da jovem mulher recentemente saída da reclusão. Assim como os Kaxinawa, os Piro afirmam que os humanos partilham com a onça e a anaconda a qualidade de “possuir desenho” (keneya, em kaxinawa). Assim como entre os Kaxinawa (Lagrou, 1995 e 2007) e os Ashaninka (Beysen neste volume), o resultado paradoxal da arte das mulheres é de produzir um ser cuja beleza se assemelha a de um ser perigoso – à do jaguar, no caso Piro, e à

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Figura 2: pintura de neófito.

Figura 3: pintura de recém-nascido. da anaconda, no caso Ashaninka e Kaxinawa. Os Piro não se pintam na vida cotidiana, quando estão entre si, mas somente para se encontrar com aqueles com os quais não se vive bem (Gow, 2001: 103129). Também no Alto Xingu podemos notar que o grafismo marca o estágio final da fabricação do corpo (um processo ocultado aos olhos do público) e o encontro com parceiros distantes que se quer impressionar e intimidar pela beleza feroz.

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No rito de fertilidade, katxanawa, se aplica uma pintura de urucum sobre o rosto de homens ou mulheres por cima dos desenhos em jenipapo. Neste caso, o uso da pintura facial equivale a cobrir o rosto humano com a pele de um animal, transformando, para fins rituais, seres humanos em onças e/ou espíritos da floresta (ni yuxin), como se se tratasse de uma máscara. Neste contexto ritual se pode constatar que as manchas de urucum servem para diferenciar as metades, uma adotando o motivo da onça pintada (inu kenenya) e outra, da onça pardo (txaxu inu). Esta pintura se chama dami, transformar, mascarar, e difere radicalmente do kene kuin, desenho ou grafismo. O grafismo (kene) com jenipapo não mascara, não transforma a identidade do seu portador, mas a fabrica. Lévi-Strauss qualifica o desenho com jenipapo como “segunda pele”, uma “pele social”, e afirma que todas as pinturas corporais ameríndias obedecem à esta logica da máscara. Me parece, no entanto, que estamos lidando aqui com dois fenômenos diferentes: um releva da fabricação de um corpo específico, kaxinawa, e outro, das tecnologias da “alteração”. As manchas de urucum, associadas às vestimentas de folhas de jarina e às vezes a máscaras dentadas feitas de cuias (munti deteya), transformam a pessoa em espírito da floresta que se prepara para invadir a aldeia. Na foto (Figura 4) vemos uma versão do katxanawa onde há inversão de papéis quanto ao gênero: vestindo-se e agindo como homens, as mulheres “viram homem”, e, vestindo-se e agindo como mulheres, os “homens viram mulheres”. Nesta versão do ritual, as mulheres se tornam também yuxin da floresta a serem recebidos pela outra metade de mulheres na aldeia, munidas de espingardas e flechas. Este tipo de pintura com urucum se chama dami, transformar, mascarar, e difere radicalmente do kene kuin, o desenho feito com jenipapo. O uso ritual do dami reatualiza os processos de transformação dos tempos míticos nos quais seres humanos se pintaram com as pinturas, marcas corporais dos animais nos quais queriam se transformar (Capistrano, 1941 [1914]). A utilização pelo líder do canto da “roupa do Inka” (inkan tadi), tanto durante o rito de passagem como no ritual de iniciação do líder do canto (txidin), segue a mesma lógica: transforma o especialista em Inka para a duração do ritual. O líder de canto canta com a voz do Inka e invoca a presença deste durante o tempo do ritual. A roupa do Inka é tadi keneya (roupa com desenho), uma longa túnica (cushma) com desenhos, sobre o qual são bordados seus dau, enfeites-feitiços, plantas cheirosas e penas que completam a indumentária. O líder presentifica assim o inimigo prototípico, deus da morte e destino futuro dos humanos. Vestimentas, pinturas e folhas de jarina constituem assim maneiras de pôr em ação perspectivas outras. 73

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Figura 4: jovem mulher vestindo-se de yuxin da floresta.

Os diferentes usos da pintura, especialmente aquela de jenipapo, que ora veda a pele inteira, ora a cobre com uma fina filigrana, ou a abre através de traços grossos para a intervenção ritual (Figuras 1, 2, 3), nos permitem ver a pele pintada como um tecido ou um trançado: a pele como lugar de contato e de passagem entre o interior e o exterior, entre conteúdo e continente. É a pele que possibilita a criação de um “corpo” suscetível de esconder uma interioridade. Na sua introdução a Wrapping in images, Gell (1993) propõe reflexões interessantes sobre o que poderia constituir uma antropologia da pele, ligando a pele à placenta. Trata-se de uma estrutura que lembra a garrafa de Klein mencionada por Lévi-Strauss na Oleira ciumenta, onde o interior se desdobra no exterior e vice-versa, onde não há ruptura explícita entre interior e exterior (1985). A relação entre pele e placenta é importante também para os Piro, que consideram a placenta, com sua superfície coberta por uma teia saliente de veias, como “o primeiro desenho” (Gow, 1999, 2001). Esta placenta, o “primeiro desenho” da criança, também chamado de seu “gêmeo”, precisa ser enterrada para que a criança possa viver. A criança fica temporariamente sem desenho, até que as mulheres a pintam pela primeira vez. Entre os Kaxinawa, “para que a criança possa nascer facilmente”, o canto ritual menciona suas “roupas velhas que estão queimando”. Tudo indica que esta “roupa velha” que a criança tem que trocar por um novo tecido no qual será embrulhado é sua placenta (Lagrou, 1998, 2007). 74

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Podemos enveredar nesta antropologia da pele por um caminho não explorado por Gell e Gow, analisando conjuntamente a fabricação de artefatos e pessoas. Van Velthem explora o paralelo entre artefatos e corpos, mostrando como os Wayana utilizam os mesmos termos técnicos para falar da produção e da decoração de artefatos e humanos (2003). O mito de origem da mulher wayana mostra que ela é fabricada para agir: a primeira tentativa de fabricação revelava que a argila era pesada demais para se fazer uma mulher, a segunda que a cera derretia sob o calor do sol. Foi finalmente a mulher cesto que se revelou apta a executar as tarefas femininas. O corpo da mulher wayana foi trançado, como o foi o corpo da boa entre os Kaxinawa e Wauja. Os Asuriní também dão prioridade ao trançado, que é como aprenderam seus motivos gráficos (Müller, 1990). A associação entre trançado, tecelagem, desenho e o corpo da anaconda é extremamente recorrente na Amazônia (Lagrou, 1991, 1996, 2009 e 2011; Barcelos, 2008: 231; e neste volume). Entre os Kaxinawa é também no mito que encontramos a ideia da pele como tecido. A origem da anaconda/boa, dona(o) dos desenhos e de todas as imagens virtuais possíveis, dona(o) também do fluxo do sangue, se situa no mito do grande dilúvio. Diversos artefatos se transformaram por esta ocasião em animais; a borduna (bina) se transformou em poraquê; o fuso, em arraia; o cesto com desenho (kakan keneya) se tornou a cabeça da anaconda; e o casal Sidika e Yube, que na hora do dilúvio estava deitado numa rede decorada com desenhos (disi keneya), se transformou em anaconda. No interior desta anaconda, ser sobrenatural andrógeno, se encontram as agências femininas e masculinas combinadas; sua pele é a rede com desenho. No fundo do rio estes desenhos não são visíveis, e a anaconda é chamada de anaconda branca. Os desenhos só se revelam no contato com o sol, quando a boa sobe para a terra para revelar seu desenho aos humanos. Para os Kaxinawa, a boa e a anaconda são transformações uma da outra. Quando é jovem, a boa vive na terra para ensinar os humanos; quando se cansa porque está ficando velha, se retira para a água onde reina como “grande chefe”, como “presidente”. Foi o espírito da boa que ensinou às mulheres a arte do desenho (kene), enquanto a experiência com ayahuasca, o mundo das imagens (dami) e dos espíritos (yuxin), foi ensinada aos homens pela anaconda. A ayahuasca (nixi pae, cipó forte [embriagante]) ou nawan huni (gente estrangeiro/grande) é o sangue ou a urina da ana6

Ingold (2007) propõe uma abordagem comparativa dos múltiplos sentidos da palavra “linha” e sugere que a relação entre linha traçada e linha tecida está presente na história do Ocidente pré-moderno, assim como em contextos culturais não ocidentais. Para este autor, a linha remete aos movimentos do corpo e ela teria sido endireitada a partir do advento da impressão, que afastou o traço do movimento do braço que escrevia. O que nos interessa aqui, no entanto, é outro tipo de movimento, aquele da percepção mental que opera a passagem entre o que é visível e o que não o é ainda.

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conda (dunuan himi, dunuan isun), Yube, dono(a) do mundo aquático. É neste último contexto ritual da ingestão da ayahuasca que podemos encontrar um discurso explícito sobre a passagem da abstração à figuração na percepção daqueles que tomaram a bebida e sentiram seus efeitos.

2. Ingestão ritual do nixi pae (ayahuasca) No contexto do consumo da ayahuasca (nixi pae), o desenho não é materializado, mas ativamente visualizado. O desenho possui um papel crucial na experiência porque opera a passagem de uma percepção visual para uma percepção visionária. “Tem que ficar dentro do desenho” é a recomendação que se dá aos aprendizes para que não se percam nas suas visões. “O desenho cantado é um caminho”7 e “cada desenho se abre para a revelação de uma figura (dami) e depois de um espírito (yuxin)”. A anaconda é a dona dos desenhos, das imagens e dos fluidos: Na pele de Yube tem todos os desenhos possíveis. A cobra tem vinte e cinco malhas, mas cada uma dá vários outros desenhos. No fim das contas, todos os desenhos pertencem à mesma pele da jiboia. (Agostinho Manduca Kaxinawa) O desenho da cobra contém o mundo. Cada mancha na sua pele pode se abrir e mostrar a porta para entrar em novas formas. Tem vinte e cinco manchas na pele de Yube, que são os vinte e cinco desenhos que existem. (Edivaldo Domingos Kaxinawa) Quando a gente toma o sangue dele, ele nos mostra tudo que ele fez na vida, sua aldeia, sua ciência. Yube se transforma em várias coisas, várias cobras, plantas, cipós, em gente, em água, em pássaro. Todas as malhas dele podem se transformar em miração. O kene é Yube se apresentando. Dami, as figuras, é que nem yuda baka, a sombra do corpo. Você vê, mas você não segura. Vai embora depois do nixi pae. É o dami, a transformação do nixi pae do yuxibu. Ele morreu, mas não morreu. Porque seu corpo se transformou no cipó. Yube é nosso Deus. Ele deixou essa bebida para seu pessoal não chorar mais, não ter mais saudades dele, porque ele está aí, se mostrando. Assim como seu filho vai ver tudo que você fez na vida, porque ele veio de dentro, o cipó, quando está dentro de você, te faz ver aquilo que é dele.” (Agostinho Manduca, Kaxinawa).

Estas citações se referem claramente ao tema da passagem do grafismo à figuração virtual, imagem mental que não se dá a ver no desenho, mas que pode ser vislumbrada por aqueles que estão preparados para tal a partir de um engajamento real do olhar com a experiência visual sugerida, ativado pelo canto e pelo nixi pae. As frases nos remetem ao tema da técnica da transformação visual. Os Kaxinawa conhecem várias técnicas de mediação que os permitem passar de um 7

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Igualmente, entre os Siona “depois de ingerir o yagé, os cantos do xamã transformam-se em caminhos visuais que guiam as viagens dos participantes pelo cosmos” (Ver Langdon neste volume).

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ponto de vista a outro, e todas estas técnicas têm a ver com processos controlados de percepção e produção das formas. As gotas de plantas com desenhos espremidas nos olhos para aumentar a capacidade perceptiva e fazer sonhar com desenhos é muito recorrente na região e constitui um momento importante no rito de passagem kaxinawa. Um caçador que deseja ser eficaz como caçador precisa ver os macacos como presas (yuinaka). O xamã, por sua vez, os vê como gente, o que o impede de matá-los. Os animais mortos liberam um duplo, sua imagem. Esta imagem se caracteriza desde então por sua relação instável com o corpo, posto que está em busca de um, o que se traduz na capacidade destes duplos de produzirem doenças nos humanos. Para proteger sua saúde e a dos seus próximos, o caçador deve, depois de ter matado ou comido uma caça, ingerir regularmente o nixi pae em contexto ritual. No caso de ter matado e cheirado a fumaça do pelo queimado do macaco cairara, por exemplo, o caçador poderá sentir dor de cabeça. O canto ritual identificará o duplo do animal que está se vingando, dançando na cabeça do seu matador, e o retirará no mesmo ato. Deste modo o caçador escapa da armadilha montada pela sua própria vítima. Segundo Leôncio, mais respeitado especialista kaxinawa do ritual de nixi pae e filho de um importante xamã, com quem trabalhei na tradução dos cantos de ayahuasca, é preciso cantar tudo que se ingeriu, tudo que se comeu, os macacos, as queixadas, e também o tabaco, a pimenta, e, evidentemente ,os próprios ingredientes da bebida do nixi pae, o cipó forte (Banisteriopsis caapi) e a folha kawa (chacrona). O laço entre substância e imagem é direto: a pessoa vê o (duplo daquele) que ingeriu. A pessoa se torna parcialmente o que comeu/matou. Para se vingar, os duplos dos seres mortos ou comidos por alguém procuram cobrir o bedu yuxin (espírito do olho) do matador com suas roupas, tadi (no caso da queixada), suas decorações corporais, seus colares e desenhos (no caso do dono da ayahuasca, Yube, a anaconda). Todos estes atributos são agenciamentos do ponto de vista do duplo do animal ingerido que vem capturar o yuxin do agressor para aprisioná-lo em um novo corpo, aquele que o duplo perdeu. O que vê aquele que está sob o efeito do nixi pae não é simplesmente ou somente o outro sob a forma de uma humanidade comum, mas sua própria interioridade – seu espírito do olho – englobada pelas roupas, peles e decorações corporais daqueles outros que ele acabou de ingerir, aquele que, englobado pela ingestão, retorna para englobar seu agressor com suas imagens. A relação entre imagens, substâncias, fluidos e corpos é portanto altamente relacional e transformacional. Os grafismos aderem às peles tanto durante a vida cotidiana como durante a experiência visionária, tornando a pele transparente e permeável, e é deste modo que corpos se tornam também intercambiáveis. 77

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a figuração dos corpos As sociedades ameríndias, especialmente as amazônicas, produzem muito pouca figuração, tão pouca que poderíamos nos perguntar se os amazônicos são “iconofóbicos” (Taylor, 2010; Lagrou 2005, 2007). Onde estão as imagens?8 Proponho a hipótese de que o extenso uso da abstração e a economia no uso da representação figurativa nas expressões bidimensionais ameríndias (pintura corporal, tecelagem e cestaria) se explicam pelo fato de os motivos serem aplicados e ajudarem a constituir superfícies que contêm corpos. O fato de muitos mitos de origem dos sistemas gráficos ameríndios fazerem o aprendizado ou a aparição dos motivos gráficos coincidir com a técnica do trançado ou da tecelagem sugere que o desenho é um elemento constitutivo na fabricação da pele e da superfície do artefato em geral. Outros mitos, por sua vez, apresentam a pintura do corpo com determinados motivos como técnica de transformação utilizada em tempos míticos por humanos querendo devir animais. Ambos grupos de mitos se reforçam mutuamente. Estes sistemas gráficos coexistem com uma arte figurativa muitas vezes minimalista que desenvolve ao extremo a lógica do “modelo reduzido” de Lévi-Strauss (1964), como se pode notar nos antropo- e zoomorfismos discretos dos bancos xinguanos e tukano, dos bonecos karajá, dos vasos shipibo, das efígies asuriní e dos maracás araweté, para dar apenas alguns exemplos. Estes artefatos são todos considerados como quase corpos. As indicações de sua especificidade corporal vão desde indícios extremamente sutis à figuração completa.9 Para Lévi-Strauss, o conhecimento estético do mundo implica no poder de agir sobre o mundo. A fabricação do modelo reduzido, um método privilegiado pela arte para fazer face à complexidade cognitiva do mundo, é ao mesmo tempo um modo de obter a capacidade de agir sobre este mesmo mundo. O banco utilizado pelas crianças kaxinawa é um exemplo desta lógica segundo a qual os artefatos são como modelos reduzidos de corpos. A fabricação deste banco reproduz a fabricação do corpo da criança, que é um artefato tanto quanto o banco o é. O 8

Se os criptogramas funcionam em articulação com contextos de enunciação verbal, como Severi demonstrou para o caso Cuna, os grafismos amazônicos são, na maioria dos casos, associados a conceitos de pessoa e corporalidade. Onde encontramos figurações iconográficas, como na cestaria dos Wayana e Yekuana na região das Guianas, notamos a produção de imagens minimalistas dos grandes predadores sobrenaturais trançados pelos homens em contextos associados à transmissão de conhecimentos esotéricos e míticos (Van Velthem, 2003; e Guss, 1989). No caso yekuana, no entanto, Guss nota uma maior valorização da abstração do que da figuração. Na medida em que o aprendiz avança na sua iniciação na arte do trançado e da narração dos mitos, os motivos utilizados se tornam cada vez mais abstratos.

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Nota-se que artes indígenas produzidas para fora, tanto no contexto educativo como no de venda, se tornam mais figurativas e alegóricas. Em estudo sobre os vasos funerários amazônicos, Barreto (2008), arqueóloga, nota que os vasos arqueológicos da região amazônica apresentam muito mais figuração que a cerâmica indígena contemporânea.

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canto ritual designa o banco pela fórmula “duas pernas com um buraco no meio”, figurando a base do corpo, que o sustenta. O banco é feito das raízes tubulares da sumaúma, considerada “árvore da vida” (Lagrou, 2002b, 2007b). Este banco é esculpido pelo pai – como o é o feto na barriga da mãe – e pintado com jenipapo pela mãe – como o será a criança durante o rito de passagem e depois dele. A imagem sintetiza os elementos mínimos que caracterizam a maneira de agir do modelo, e é por esta razão que ela é um índice antes que um símbolo ou ícone do seu modelo (Gell, 1998; Lagrou, 2003). O tipiti entre os Wayana, por exemplo, é um artefato que partilha com a boa a capacidade de espremer, e é isso que se quer que ele faça com a pasta de mandioca. O tipiti, no entanto, não tem nem cabeça nem rabo, o artefato precisa ser incompleto para não correr o risco de se transformar na boa, seu modelo, um ser independente que devora seres humanos (Van Velthem, 2003: 130; Lagrou, 2009a). O mesmo entrelaçamento entre técnicas de produção de seres vivos e artefatos se encontra entre os Pirahã, que afirmam imitar, nos seus exercícios permanentes de inventar coisas novas, as técnicas que Igagai, deus criador, utilizou para criar os animais e artefatos nos níveis celestes. Como ele, os Pirahã fabricam primeiro miniaturas que serão retomadas em escala maior quando bem-sucedidas. Os acidentes sofridos pelos humanos em consequência de agressões predatórias de animais ou plantas produzem por sua vez os abaixi, seres celestes caracterizados pelas deformações sofridas pelos corpos humanos (Gonçalves, 2001). A origem dos seres celestes é assim o resultado de uma fabricação invertida, uma sorte de antiprodução que tem o evento e sua imprevisibilidade como motores. abstracionismo Desde o final dos anos 1980, vários especialistas americanistas assinalaram a importância de uma tendência à abstração nos grafismos ameríndios e colocaram em questão a abordagem representacionalista da arte indígena.10 Em vez de se concentrar unicamente numa possível relação entre o grafismo e a comunicação verbal, como era a regra até então nos estudos de antropologia da arte, estes autores perceberam que o sentido do grafismo residia frequentemente antes nas características globais do estilo do que nas unidades mínimas de significação. Os precursores desta abordagem são Lévi-Strauss nos seus escritos sobre a pintura facial kadiwéu (1973 [1955], 1974 [1958]); Boas na sua obra sobre a arte dos índios do Norte das Américas (1928); e, fora do ambiente americano, Bateson no seu artigo sobre a pintura 10 Roe, 1975; Gow, 1989, 1999, 2001; Gebhart-Sayer, 1986; Illius, 1987; Guss, 1989; Lagrou, 1991, 1995, 1998, 2003, 2005, 2007, 2009b; Taylor, 2003, 2010.

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balinesa (1977). Este último argumentava que a mensagem metacomunicativa de um quadro, acessível pelo estilo que faz perceber a necessária complementariedade entre os opostos, é mais importante que o tema explícito representado (ver Lagrou, 1998, 2007). Lévi-Strauss, por outro lado, focaliza a atenção sobre o estilo global do grafismo, a relação entre as linhas, assim como entre o grafismo e o suporte.11 A utilização do termo “abstrato” num contexto radicalmente distinto daquele da arte ocidental não é evidente e precisa ser justificada. Grafismo “geométrico” ou “anicônico” poderia ser considerado como alternativa, mas estes termos significariam mais uma conclusão do que um ponto de partida para a análise. O termo anicônico, por exemplo, não dá conta da especificidade de sistemas gráficos que podem conter índices icônicos velados.12 Nosso caso também não corresponde a uma geometrização de imagens que possuem figuras como modelo. O modelo está antes em um modo de execução que veda a visualização da figura final para garantir o equilíbrio da relação entre as linhas. Esta observação encontra confirmação no fato de os sistemas gráficos serem sistematicamente associados à escrita antes do que à figuração, pelos indígenas. As figuras que se escondem nos grafismos parecem antes efeitos secundários de uma lógica gráfica própria que tem por principal interesse as relações entre as linhas do que um fim em si. Os povos que distinguem conceitualmente grafismo e figura tendem a associar o primeiro à escrita dos brancos e a segunda ao domínio dos duplos, como os reflexos na água ou no espelho, as fotos, os filmes e os espíritos. O termo “abstrato” abre possibilidades de interpretação interessantes, porque permite explorar as “conexiones parciais” (Strathern, 2004) entre arte abstrata ocidental e “sistemas complexos de desenho” da Amazônia ocidental, colocando em evidência os mecanismos cognitivos do pensamento formal. Se, citando Severi, estas tradições iconográficas não ocidentais se fundam em princípios muito diferentes da imitação da natureza, o problema da representação “abstrata” não é “(…) nem própria à arte moderna, nem reservada à tradição ocidental” (Severi, 2012: 60). Um trabalho recente de Severi sobre “o que está em jogo na relação de Lévi-Strauss com as imagens” conduz a uma análise antropológica da arte ocidental que “visa a abstração”. Minha aproximação vai na direção contrária, propondo uma análise da arte ameríndia que tende à abstração.

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Lá onde não se quer ver outra coisa que o vazio, uma falta de referência à natureza, encontra-se uma reflexão sobre o olhar. (Severi, 2012: 61)

O que tenho tentado demonstrar nos meus estudos sobre os Kaxinawa ilustra uma ideia afim a esta expressa por Kandinsky (Lagrou, 1991, 1995, 1998, 2002a, 2007, 2011). Este grafismo, como técnica de educação do olhar, compreende a este último como um envolvimento ativo do espectador com o espaço cinético criado pela relação entre as linhas. Como os artistas ocidentais do movimento abstracionista, os artistas kaxinawa e seus congêneres de outros povos amazônicos visam produzir uma percepção espacial nova através do jogo entre as linhas que não substitui um espaço preexistente, mas se superpõe a este. A transformação artística da percepção espacial consiste, portanto, numa superposição e não em uma substituição. Esta superposição permite por sua vez passar alternadamente de uma percepção a outra, como em um jogo de contraste entre figura e contrafigura. O aparecimento de detalhes assimétricos que rompem a simetria do conjunto do desenho é um fenômeno estético que se encontra com certa recorrência em diversos estilos gráficos (Gell, 1998: 160). Entre os Kaxinawa, este pequeno detalhe assimétrico, que batizei alhures de punctum (1991, 1998, 2002, 2007), é introduzido de maneira totalmente intencional e sistemática, o que o torna cognitivamente saliente. No pensamento ameríndio, a ideia de duplo implica em diferença (Lévi-Strauss, 1991). A dualidade na singularidade é possível, mas a igualdade duplicada, não. A ideia é de criar seres de uma mesma classe, jamais a de produzir clones ou réplicas. Uma simetria perfeita é inconcebível no mundo e na arte kaxinawa (Lagrou, 1998, 2002, 2007).

Para a arte espiritual (termo que para ele é sinônimo de abstrato) que professa Kandinsky, o mundo não é mais o tema da representação. O que o artista deve visar, abandonando as aparências, é o ato mental que a percepção do mundo supõe (...) 11 Ver Lagrou (2012) para uma análise das raízes do paradigma presentacionalista na etnologia ameríndia nos escritos dos anos setenta de autores como Clastres, Deleuze e Guattari e Lévi-Strauss. 12 Para uma discussão crítica da distinção entre os termos “icônico” e “anicônico”, ver Gell, 1998.

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Figura 5: banco kaxinawa, punctum.

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Entre os Ameríndios, o jogo entre simetria e assimetria é variado. No grafismo kadiwéu se nota uma tensão entre a aparente assimetria do desenho (cujos surpreendentes arabescos não se repetem nunca de maneira totalmente idêntica) e a simetria englobante da “representação desdobrada”: invertidas, as duas metades são separadas por um eixo oblíquo como numa carta de naipe. Nos encontramos, neste caso, frente a uma simetria disfarçada de assimetria. O mesmo jogo de desdobramento invertido e oblíquo pode ser encontrado na cestaria pareci, mas desta vez trata-se de uma assimetria disfarçada de simetria aparente.

Figura 6a: foto kadiwéu (autoria: Darcy Ribeiro, Coleção Museu do Índio, Rio de Janeiro).

Figura 7: cesto pareci.

Figura 6b: desenho kadiwéu (coleção Darcy Ribeiro, Museu do Índio, Rio de Janeiro).

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A produção de profundidade no espaço perceptivo, através de uma dialética entre as linhas mais grossas do desenho que englobam linhas mais finas que prenchem o espaço, pode ser notada com mais clareza na arte gráfica piro e shipibo-konibo, assim como em várias artes arqueológicas – na cerâmica marajoara e de Santarém, por exemplo –, do que no grafismo kaxinawa. Esta diferença estilística pode estar relacionada ao fato de estes estilos gráficos terem o corpo e a cerâmica como suporte e técnica original, enquanto o grafismo dos Kaxinawa e 83

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outros estilos gráficos amazônicos têm a tecelagem e o trançado como origem dos motivos (ver mitos citados acima). Se no caso dos tecedores a dinâmica de inversão entre figura e contrafigura é mais desestabilizante, no caso dos ceramistas a relação assimétrica entre dois tipos de linhas possui como efeito a produção de mais profundidade perceptiva e de uma maior transparência do suporte (Lagrou, 2010, 2012 e Belaunde neste volume).13 A intercambiabilidade entre figura e fundo visa antes desfazer a possibilidade de delimitar uma figura sobre um fundo do que confirmá-la. David Guss para os Yekuana e Peter Roe para os Shipibo-Konibo foram os primeiros a notar, no universo dos grafismos ameríndios, uma afinidade entre um estilo de ver e um estilo de pensar. Existiria uma afinidade entre a inversão de figura e fundo, consequência de uma simetria cinética dos motivos, e a percepção indígena de uma simultaneidade entre os lados visíveis e invisíveis da realidade, segundo Guss (1989), e entre esta ambiguidade estilística e uma “ambiguidade mental”, segundo Roe (1975). Na sua análise da relação entre ver e pensar, os autores não vão além desta observação (Lagrou 1998, 2002, 2007). O resultado deste jogo entre figura e contrafigura nos grafismos ameríndios, no entanto, vai além, pois projeta o espectador para dentro do espaço gráfico delineado pelo grafismo. Este aspecto atuante dos grafismos labirínticos também foi observado por Alfred Gell (1998: 66-95): dos labirintos gregos ao kola indiano, estes labirintos gráficos capturam o olhar e fazem a pessoa ou o espírito que os olha se perder como em um labirinto. O aspecto de armadilha do kene, ligado a sua estrutura labiríntica, aparece de maneira explícita na fala kaxinawa, a começar pela palavra kene, que designa desenho, escrita, cerca (o recinto onde a moça púbere está reclusa durante sua primeira menstruação) e armadilha (Montag, 1981: 183). Se a ideia de encerramento do kene remete à capacidade do desenho de delimitar e desta maneira criar um espaço, a ideia de armadilha se refere ao aspecto animado do desenho. Era por esta razão que um doente não podia dormir em uma rede coberta por desenhos; seu bedu yuxin (espírito do olho) poderia ser capturado pelos desenhos e não conseguir mais voltar a seu corpo (Keifenheim, 1996; Lagrou, 1998, 2007). Outro aspecto notado por Gell é a “viscosidade” (stickiness) deste tipo de ornamentação. A ornamentação serviria para amarrar o proprietário a seu objeto. Um objeto com desenhos é animado, adquire agência própria pelo dinamismo interno ao grafismo (Gell, 1998). 13 Lagrou, 2010 e 2012: papers apresentados no seminário de São Carlos e no Quai Branly (ver nota 2). Belaunde neste volume desenvolve esta hipótese de produção de profundidade e movimento para o caso shipibo-conibo.

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Figura 8a: tecido shipibo.

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Figura 9: morteiro de tabaco kaxinawa.

Figura 8b: cerâmica marajoara (Cristina Barreto GI 148 A).

Figura 8c: cerâmica asurini (foto: Els Lagrou, coleção Regina Müller, Museu do Índio, Rio de Janeiro).

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Quando o punctum, o detalhe assimétrico, se torna demasiadamente visível, passa a ser o ponto de partida para a produção de um novo motivo dentro do mesmo tecido (Lagrou, 1998, 2007). Um motivo gera outro, e nenhuma destas imagens é imagem de outra coisa a não ser deste movimento intraimagético. Este último princípio formal das pequenas variações que podem resultar em novos motivos se encontra nos grafismos kaxinawa, wauja, waiãpi e sharanhua.14 Neste sentido, vemos que o punctum constitui uma tecnologia da transformação interna à estrutura da imagem. Barcelos notou igualmente o rendimento das pequenas variações no grafismo wauja, onde as variações mínimas entre os motivos são uma maneira eficaz de assinalar a proximidade das máscaras entre si (2005). Outro aspecto formal é crucial para prosseguir com minha comparação destes grafismos ameríndios com o abstracionismo. Trata-se da interrupção sistemática do desenho no momento em que ele se torna reconhecível, o que sugere a continuidade do desenho para além do suporte. Este dispositivo estilístico é um elemento importante da significação do desenho na ontologia kaxinawa: o papel que joga na transição entre percepção imaginativa e imaginação perceptiva (Lagrou 1998, 2007). Atualmente os Kaxinawa produzem frequentemente, originalmente para venda, mas também para uso próprio, tecidos inteiramente cobertos por desenho (Figura 11), enquanto, nas coleções antigas (de Schultz, H. 1950-1951, São Paulo, usp/mae e de Kensinger, cf. Dwyer, 1975), somente uma faixa estreita do tecido era com desenho (Figura 10). Se os desenhos são armadilhas para o espírito do olho, somente os tecidos destinados aos brancos constituem armadilhas completas. As armadilhas produzidas para uso interno se contentam em dar as pistas. Notamos o mesmo procedimento na tecelagem Yudjá (Figura 16) e na cestaria xinguana (Figura 13). 14 Wauja (Barcelos Neto, 2008); Waiãpi (Gallois, 2002); Sharanhua (Déléage, 2007).

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Os Shipibo vão ainda mais longe na importância atribuída à percepção imaginativa. Não existe consenso entre os especialistas sobre se, antigamente, os Shipibo-konibo usavam a pintura corporal no cotidiano, como o fazem os Kaxinawa e os Kayapó, por exemplo, ou se a pintura corporal marcava eventos rituais importantes, como a festa da moça nova entre os Piro. É fato, no entanto, que hoje em dia não se usa a pintura corporal em dias comuns. Todas as pessoas, apesar disso, possuem seu desenho corporal, mas este é invisível para os olhos humanos. Somente os xamãs podem visualizá-lo, diagnosticar seu estado e consertá-lo quando sob os efeitos da ayahuasca (Gebhart-Sayer, 1986; e Illius, 1987). Também entre os Asuriní e os Karajá (Figura 15), o desenho sugere continuidade além dos limites do suporte. Dawson (1975) e Müller (1990: 232) qualificam este aspecto como “janela ao infinito”. Os Kaxinawa valorizam este aspecto de independência do grafismo com relação ao suporte, colocando o motivo de modo oblíquo sobre o suporte. Outra maneira de jogar com a tensão entre visibilidade e invisibilidade é tecer ou trançar sem utilizar cores contrastantes. O umin kene, nome dado a esta técnica utilizada para as redes, é muito valorizado pelos Kaxinawa por causa da sua dificuldade tanto na fabricação como na percepção. Os cestos são trançados seguindo a mesma técnica. Quando são novos, podem ter os contornos dos motivos realçados com urucum, mas esta ajuda à percepção se apaga aos poucos com o tempo (Figura 14).

Figura 11: rede com motivos dunuan kene (desenho da anaconda) e hua kene (desenho de flor). Figura 10: saia feminina com motivo de nawan kene (desenho do inimigo) (Coleção Schultz, MAE, São Paulo, 1950-1951).

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Figura 14: cesto kaxinawa sem contraste de cor. Figura 12: rede contemporânea com faixa de desenho.

Figura 15: banco karajá.

Figura 13: cesto xinguano com faixa de desenho com cores contrastadas.

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A quimera (pode ser definida) como a associação em uma só imagem de traços heterogêneos provenientes de seres diferentes. A quimera grega, corpo monstruoso, que associa serpente, leão e pássaro, é um exemplo bem conhecido (Severi, 2007: 69-70).

Segundo Philippe Descola, este tipo de imagem, ser composto no qual se mantém a diferença entre as partes que o compõem, é um procedimento de figuração que ilustra bem o pensamento analogista (2010b: 22-24). Severi observa, entretanto, uma diferença crucial para nosso argumento entre a quimera grega e a quimera hopi, diferença que nos coloca no caminho da transformação própria à arte ameríndia:

Figura 16: saia yudjá (coleção Tania Stolze Lima).

a quimera Como o movimento abstracionista da arte ocidental, o grafismo kaxinawa e outros estilos ameríndios induzem a uma focalização da atenção que visa mais o agenciamento e enquadramento do olhar – produzindo transparência, movimento e profundidade no interior do próprio espaço gráfico – do que a representação de figuras externas. Mas há mais. Apesar de “abstrato”, este grafismo pode abrir para a percepção de uma figuração virtual, imagem mental que não é dada a ver, mas que é formalmente sugerida. É por esta razão que o grafismo kaxinawa pode ser visto como uma versão “abstrata” da lógica quimérica das imagens exploradas por Warburg e Severi para as imagens figurativas (Severi, 2007). O que é uma quimera? O termo pode remeter a dois tipos de fenômenos que é importante distinguir. A definição proposta por Severi toma como ponto de partida o caso da quimera hopi, povo norte-americano estudado por Warburg. Em um estudo de desenhos infantis, Warburg encontrou imagens de serpentes-relâmpago: o relâmpago no céu é representado por uma serpente de duas cabeças. Com o propósito de generalizar o tipo de operações mentais envolvidas nestes desenhos, Severi utiliza primeiro uma definição englobante do fenômeno quimérico: 92

Não obstante, está claro que a quimera hopi oferece aos olhos muito menos detalhes, ela simplifica sua estrutura. É sobre a base desta convencionalização (…) que ela provoca uma projeção que é realizada pelos olhos e que, desta maneira, faz ativamente surgir sua imagem completando-a. Aqui temos que observar dois pontos: não somente a imagem se divide em duas partes, uma material e outra mental, mas o espaço no qual a imagem se completa é inteiramente mental. Na cerâmica hopi, somente o suporte da vasilha, plana ou convexa, dá aos olhos alguma indicação sobre o espaço no qual situar a imagem. Qualquer outra indicação é o fruto de um ato do olhar que é feito ao mesmo tempo de projeção e de associação. Descobrimos desta maneira uma diferença crucial entre a quimera grega e a quimera hopi. Nem sua relação com o invisível nem sua maneira de engendrar um espaço mental são do mesmo tipo. Enquanto resultado de uma convencionalização iconográfica, a quimera hopi é, portanto, um conjunto de índices visuais onde o que é dado a ver convoca necessariamente a uma interpretação do implícito. Esta parte invisível da imagem se encontra totalmente engendrada a partir de índices dados dentro de um espaço mental. Existe um princípio que sustenta a estrutura destas imagens-quimeras, onde a associação de traços heterogêneos implica necessariamente uma articulação particular entre o visível e o invisível. Esta estrutura por índices, onde a condensação da imagem em alguns traços essenciais supõe sempre a interpretação da forma por projeção, e portanto por preenchimento das partes faltantes, tem uma consequência importante: ela confere à imagem uma saliência particular que a distingue de outros fenômenos visuais (Severi, 2007: 70) (Obs.: Os grifos no texto são meus).

Para além da capacidade mnemônica deste tipo de imagem, sublinhada por Severi, o que me interessa aqui é a relação entre uma ontologia específica, que coloca a transformação no centro das suas preocupações, e um estilo gráfico que joga constantemente com a tensão entre o que é e o que não é mostrado. Se olharmos para um objeto a partir das operações mentais que estão implicadas nele, perceberemos uma grande diferença entre a quimera grega, realista e híbrida, e a quimera hopi, minimalista, apelando a uma capacidade cognitiva de visualizar mentalmente os aspectos latentes que não são visíveis. O caso do grafismo 93

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kaxinawa e de outros povos com desenho dialoga evidentemente mais com a quimera hopi que com a grega. O caráter quimérico dos grafismos ameríndios se refere mais ao movimento de transformação entre os corpos que ao caráter composto dos seres, apesar da tensão resultante da simultaneidade das diferenças também estar presente. Para indicar una interioridade comum e para mostrar a possibilidade da passagem da figura humana à figura de um urso ou vice-versa, Descola mostra, em La Fabrique des Images, uma escultura asiática metade urso, metade humano, como que em processo de transformação (Descola, 2010). Me parece, no entanto, que na maioria dos casos ameríndios será na arte abstrata do grafismo, geralmente feita por mulheres, que encontraremos os índices de uma arte da percepção que não revela a transformação, mas mostra o caminho para sua percepção. O espírito, dono das imagens fluidas, de fato nunca se deixa capturar; o que ele faz é gerar mais e mais imagens perceptíveis entre as linhas de sua pele.15 da abstração à figuração Espero que os exemplos mostrados tenham convencido o leitor do interesse de se colocar em diálogo os grafismos ameríndios com o que chamamos aqui de “quimera abstrata”. Passamos agora a examinar um dos aspectos do caráter quimérico destes grafismos, que consiste no fato de muitos deles sugerirem a possibilidade de passar da imagem abstrata à imagem de uma figura a partir de índices sutis. Sugiro a hipótese de existirem continuidades para os ameríndios, sobretudo na Amazônia, entre os modos de figuração, de um lado, e os grafismos, de outro. Proponho abordar concomitantemente as diferenças (conceituais e fenomenológicas) e as relações entre figurações e grafismos. Sugiro que no quadro de uma cosmologia transformacional amazônica a relação entre grafismo e figura seja também uma relação de transformabilidade, o grafismo sendo um caminho para a visualização de imagens virtuais. É por esta razão que os desenhos não representam outra coisa além do próprio ato de ver que se foca na superfície para ultrapassá-la. “O desenho é um caminho”, dizem literalmente os Kaxinawa, assim como seus vizinhos pano,16 uma “porta de entrada”: ele se refere a outras imagens, todas elas igualmente em movimento. As exegeses explícitas fornecidas pelos Kaxinawa 15 La chute du ciel, de Davi Kopenawa e Bruce Albert (2010) e A floresta de cristal, de Viveiros de Castro (2006) apontam na mesma direção de uma ontologia xamanística onde, se o espírito é imagem (os dois conceitos são usados de modo indistinto por Davi), nunca existirá a verdadeira ou única imagem a representar o espírito. Ver também Lagrou (2012). A intensidade vai acompanhada de multiplicidade. 16

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Para os Yaminahua, ver Townsley, 1993: 449-468.

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sobre seus esquemas visuais me permitem formular esta hipótese do desenho enquanto passagem para a figuração virtual, mas penso que se pode estender esta hipótese a outros sistemas gráficos. Os Asuriní nos oferecem uma ilustração paradigmática do que acabo de dizer. Em vez de distinguir conceitualmente grafismo e figuração, como o fazem os Kaxinawa, Piro, Wayana, Wauja e tantos outros, os Asuriní percebem a figuração do invisível como parte integrante da “unidade mínima de significação” que é o motivo tayngava (um ângulo de noventa graus), presente na maioria das pinturas corporais. Aqui toda abstração já aponta, portanto, para a figuração.17 A imagem aflora entre as linhas do grafismo que aderem ao corpo, mas se torna uma verdadeira figura somente quando se fabrica uma efígie, boneca muito minimalista que representa a alma nos rituais xamanísticos. Para os Asuriní, o grafismo se transforma aqui claramente numa figuração virtual, permitindo-os, a partir de índices mínimos, completar mentalmente a imagem da tayngava em imagem virtual de espíritos a’anga. Cito Müller: (N)a mitologia, os heróis criadores são humanos: os animais têm a forma humana e os espíritos atuais são antropomorfos. Os Asuriní dizem destes seres que eles eram todos avá (pessoas) no passado mítico. O homem se encontra, assim, no centro do pensamento asuriní: o homem é a imagem do ser, tayngava (Müller, 1990: 250).

Figura 17: motivo tayngava asuriní (coleção Darcy Ribeiro, Museu do Índio, Rio de Janeiro). 17 O mesmo fenômeno parece ser encontrado em outros grupos de língua tupi estreitamente aparentados aos Asuriní (Fabíola Silva, antropóloga e arqueóloga especialista dos Asuriní, com. pess.).

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Recentemente, um motivo muito parecido foi identificado entre diversos povos do complexo interétnico do Alto Xingu. O motivo, aparentemente abstrato, recebeu vários nomes nos diferentes povos xinguanos, desde “motivo de peixe” a “desenho de borboleta”, mas tanto o material wauja como o kalapalo apontam para seu caráter antropomorfizante. Todo ser que recebe este desenho tem capacidade de ação humana, e o próprio esquema do motivo aponta para os elementos mínimos de representação da figura humana (Barcelos Neto, 2008; Guerreiro, 2012). O motivo nawan kene poderia ser analisado na mesma direção como um motivo que aponta para a antropomorfização dos seres, mas é importante observar que, neste caso, se trata mais de linhas que apontam para a relação entre dois do que de uma unidade mínima de significação. O grafismo kaxinawa não é unitário ou identitário: mostra que seres surgem do entre-dois,18 do tocar das linhas entre as quais se pode vislumbrar uma figura. Entre os Kaxinawa, a arte gráfica e a experiência visionária falam de uma mesma capacidade perceptiva que consiste em vislumbrar o ser a partir de uma relação entre as linhas que se tocam.

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A arte do kene não revela sua tendência à figuração facilmente; as únicas imagens que revelam o que a arte abstrata quimérica do kene insiste somente em sugerir são os desenhos a meio caminho entre kene e dami feitos pelos homens para um público não indígena. Constatamos o mesmo fenômeno no seguinte tecido Shipibo, feito para venda:

Figura 19: tecido Shipibo com figura de boa e anta.

Os Kaxinawa possuem muitos nomes de motivos e desenhos, mas insistem em afirmar que seu desenho “é um só” (habiaski) e que ele serve para assinalar o que os “seres com desenho” (keneya) têm em comum, não o que os diferencia. Os “seres com desenho” possuem também um yuxin forte, são os donos da transformação (Lagrou, 1995), como “a onça pintada” (inu keneya), a anaconda (yube) e a boa (sidika), certas plantas utilizadas para modificar a percepção,19 como o bawe e o mani pei keneya, as borboletas com desenho, a tartaruga e outros. As mulheres me confirmavam diversas vezes que os nomes dos motivos são somente nomes, e uma anciã me confiou: “nukun kene yuxinin hantxaki” (nosso desenho é a língua dos espíritos) (Lagrou, 1998, 2007). Por outro lado, já que todo “ser com desenho” (keneya) possui seu desenho, assim como seu nome e seu canto, estes três índices funcionam como operadores mnemotécnicos: o nome, o canto e o desenho. Figura 18: desenho nawan kene. 18 Para uma elaboração etnográfica aprofundada do conceito “entre-dois”, ver Lima (2005).

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19 Plantas que mudam a perspectiva se encontram em toda a área pano, entre os Shipibo-Conibo (Colpron, 2004 ; Belaunde 2009 ; e.o.), entre os Yaminahua, Katuquina (Cofacci, 2000 ; cf. Lagrou, 2007), Yawanawa (Perez, 1999 ; cf. Lagrou, 2007) e Sharanahua (Déléage, 2009).

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Figura 20: Isu meken (mão de macaco), desenho de Augusto Feitosa Kaxinawa.

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Figura 21: Viagem com ayahuasca, de Arlindo Daureano Kaxinawa.

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O desenho resultante era malfeito e corria o risco de se tornar uma figura (dami) em vez de um grafismo (kene) de verdade (kuin), o verdadeiro desenho que segue as regras da composição estilística.20 Ficou claro para mim neste evento que pintar desenhos sobre a pele não equivalia à projeção de um dispositivo sobre uma superfície qualquer. Foi a partir deste momento que me pus a observar o processo de composição de um desenho pelas pintoras kaxinawa, processo este que reconstituo na figura que segue (Lagrou, 1991, 2007). Compreendi então que se a desenhista se concentra sobre a relação entre as linhas, ela obtém um desenho que é visualizado enquanto tal somente no final, desenho este que responde às exigências estilísticas de alternância entre figura e fundo. O resultado é uma percepção labiríntica que não revela de imediato as figuras possíveis.

Figura 22: desenho sobre papel por Francisco Filó Kaxinawa, que sugere a passagem do kene (grafismo) ao dami (figura).

A importância perceptiva da diferença entre desenho gráfico (kene) e figura (dami) se revelou para mim quando vi a reação à primeira pintura facial que executei em campo, depois de ter me exercitado longamente sobre um papel. A jovem mulher que eu tinha pintado, depois de se olhar no espelho, não escondia sua insatisfação e se apressou em apagar o desenho malfeito. Eu tinha pecado, visivelmente, pela técnica de composição, ao não respeitar a focalização perceptiva que a preside normalmente. Eu tinha de fato visualizado mentalmente o motivo final que queria obter. E foi justamente aí que residiu o problema: ao desenhar a figura geométrica, perdi de vista a relação entre as linhas (elas tinham que se tocar, que manter a mesma distância entre elas), assim como entre as linhas e a superfície irregular do rosto. A dinâmica própria ao grafismo tinha sido, deste modo, perdida, especialmente sua capacidade de criar uma alternância entre duas percepções alternativas, dependendo do que se identifica como fundo ou figura: meu desenho só dava a ver uma figura estável sobre um fundo estável. 100

Figura 23: desenho reproduzindo a constituição progressiva de dois motivos kaxinawa, o isu meken (mão de macaco) e o xamanti (colocar no meio) (Lagrou, 1991: 142; 2007). 20 Ver Langdon (1992 e neste volume) sobre como os Siona distinguem “desenhos de verdade” de “desenhos feitos à toa” a partir da obediência de algumas regras precisas de composição. No caso siona, a capacidade perceptiva do aprendiz depende da sua experiência xamanística com ayahuasca (yagé). Somente verdadeiros xamãs, aqueles que de fato viram os espíritos, são capazes de gerar os desenhos que a eles se referem; estes “desenhos do yagé” seguem uma lógica estilística precisa que consiste numa relação exata entre as linhas (não se pode fazer qualquer tipo de ângulo, eles devem ser retos, não curvos etc.).

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Recentemente, Déléage constatou um procedimento similar entre os Sharanahua, vizinhos pano dos Kaxinawa: Em vez de desenhar uma cruz pela interseção, no meio, de dois traços idênticos, os Sharanhua traçam primeiramente um ângulo reto de 90 graus (chevron) no qual colam em seguida seu reflexo simetricamente invertido (Figura 24a). O quadrado, por sua vez, não se realiza através de um traço contínuo, mas resulta da mesma operação de simetria invertida aplicada a estes mesmos ângulos retos de 90 graus (Figura 24b). Uma vez isolado, este simples motivo, para o qual os Sharanahua não possuem nome particular, permite reconstruir todos os motivos de seu repertório gráfico (Déléage, 2007: 100-101).

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lógica, aquela de combinar as linhas sem visualizar a figura, obedecendo à dinâmica da “representação desdobrada” (Lévi-Strauss, 1955, 1958; Boas, 1928). Entre os Sharanhua e Yaminahua, contrariamente aos Kaxinawa, os desenhos não cobrem a face inteira. Eles combinam desenhos de contornos delimitados, colocados nas bochechas, com motivos que cobrem partes do rosto, como o queixo e os cantos da boca até as orelhas. O que sugere a lógica de composição que encontramos em Déléage, no entanto, é que estes motivos escondem uma mesma lógica combinatória das linhas que são interrompidas desde o momento em que o motivo se torna reconhecível. Esta interpretação revela a grande continuidade formal entre os diferentes estilos de grafismo pano.

Figuras 24 a e b: Como os Sharanahua desenham uma cruz ou um quadrado (desenho a partir de Déléage).

Tendo deste modo identificado os elementos de base não nomeados, o autor menciona as operações gráficas que “colocam em jogo as leis bem-conhecidas da composição onde reconhecemos a simetria (em espelho ou invertido), a translação e a rotação” (Wasburn e Crow, 1988) (ibid.). Mas olhemos mais de perto a constituição dos “motivos simples”, o quadrado e a cruz. Se compararmos as figuras kaxinawa e sharanahua, constatamos que sua composição segue a mesma 102

Figura 25a: foto de mulher com yaminahua kene nas bochechas.

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Figura 25b: yaminahua kene (benimai kene: desenhos para alegrar) a partir dos desenhos yaminahua usados pelos Kaxinawa por ocasião do ritual de caça.

Um último exemplo da mesma região ainda merece nossa atenção; trata-se de vários desenhos ashaninka, grupo de língua arawak, da teia de aranha. Esta teia é sugerida através de uma pintura facial aplicada sobre o rosto e que funciona como armadilha “para atrair energias boas” (Wenki Pianko apud Beysen, 2008). Existem duas maneiras de sugerir uma teia, e ambas apontam para o recorte no desenho que se dá antes mesmo de o desenho se tornar reconhecível. A primeira usa linhas: Nos motivos da teia de aranha [reproduzidos nas figuras 8 e 9 do artigo de Peter Beysen (p. 242)], se realiza um recorte surpreendente. O que se vê é uma faixa com linhas entrecruzadas, onde a teia apenas se sugere, não se completa. A faixa faz um recorte num desenho invisível que continua além do suporte, ao modo dos motivos kaxinawa (Lagrou, 2007). Este tipo de motivo surge nos carimbos esculpidos na madeira. No desenho, Wenki Pianko fez questão de enfatizar o ponto central da teia. Quando este desenho é transposto para a pintura facial, o ponto central é igualmente desenhado (Beysen, 2008; e neste volume).

Se a primeira técnica lembra o estilo dos vizinhos pano, a segunda é diferente. Ali vemos somente os pontos da teia, que precisa ser preenchida com linhas pelo olhar: “Temos a impressão de ver sugerida a costura, o encontro das linhas” (Beysen, 2008 e neste volume). 104

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Para Lévi-Strauss, a artificialidade da ordem espacial, imposta pelo grafismo sobre a geografia anatômica do rosto, tornava visível a dupla identidade de seu portador, ao mesmo tempo em que transformava profundamente sua aparência. Longe da lógica da maquilagem que serve para reforçar a fisionomia natural do rosto e para esconder suas imperfeições, nos encontraríamos aqui na lógica da máscara – uma máscara, no entanto, que, em vez de esconder a aparência original, intencionava sua transformação ambivalente, deixando transparecer a dualidade constitutiva da pessoa, que se tornaria duas em uma. O grafismo cria deste modo, poderíamos dizer, uma “identidade complexa”, uma “quimera”. A tensão dinâmica entre desenho e rosto, entre grafismo e suporte, pode, no entanto, remeter à outra dualidade que não aquela da oposição entre natureza e cultura presente na metáfora da máscara usada por Lévi-Strauss. Se levarmos em conta o fato de o grafismo ajudar na constituição de uma pele, é importante atentar para seu papel de mediação na constituição de uma interface entre um conteúdo e um continente, um interior e um exterior. As linhas traçadas não deixam intacto seu suporte, mas o transformam. Quando os Kaxinawa, Shipibo e Kadiwéu pintam o próprio rosto, eles o secionam segundo eixos espaciais pertencentes à lógica estilística em questão: horizontalmente, verticalmente ou em diagonal. As linhas traçadas vão gradualmente preenchendo o espaço demarcado à maneira de uma filigrana, de um labirinto. O grafismo, ao produzir uma dinâmica e uma espacialidade próprias e internas às relações entre as linhas constitutivas do desenho, torna visível a permeabilidade da pele, sua proximidade com as matérias tecidas e sua profundidade velada. conclusão Neste artigo visamos demonstrar como os Kaxinawa e seus congêneres se utilizam de várias “técnicas de mediação” para concretizar a passagem entre diferentes pontos de vista. O estudo da “quimera abstrata” pode nos ajudar a examinar com mais atenção as operações mentais específicas que permitem a passagem entre diferentes modos de conhecimento no mundo ameríndio. A condensação ritual engendra uma “realidade complexa”, diferente da realidade cotidiana (Houseman e Severi, 1994). A prática estética gera igualmente realidades complexas que não encontramos na realidade comumente observável. Neste sentido, o ritual, a arte – enquanto produção de imagens virtuais e materiais – e o xamanismo são todos “técnicas de mediação” entre o visível e o invisível, mostrando uma realidade que não é observável a olho nu.

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Na combinação de um antropomorfismo discreto com um grafismo em filigrana que os recobre, encontra-se uma aplicação da centralidade da transformação e das metamorfoses no mundo amazônico. O conceito de quimera abstrata, quando aplicado de forma seletiva ao contexto ameríndio, nos permite elaborar uma abordagem precisa das técnicas formais e cognitivas que são postas em ação no grafismo dos “sistemas complexos de desenho” amazônicos enquanto forma ativa e instrumento no aprendizado da passagem da percepção visual à percepção virtual. O grafismo aplicado aos corpos, aos artefatos e às visões é uma técnica de visualização dos processos perceptivos de transformação, que nos permite pensar como se produzem as passagens entre pontos de vista, como corpos se tornam transparentes, como se passa de uma linha a um rosto. referências bibliográficas ABREU, João Capistrano de. Rã-txa hu-ni-kui~: A língua dos Caxinauás do rio Ibuaçú. Rio

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Perspectiva xamânica: relações entre rito, narrativa e arte gráfica. Esther Jean Langdon

Neste artigo, pretendo reexaminar meus dados sobre a arte gráfica dos índios Siona da Amazônia colombiana, na fronteira com o Equador. Num artigo anterior, analisei a arte gráfica siona, numa tentativa de explorar os significados dos desenhos geométricos inspirados pelos rituais com a ingestão de yajé (Banisteriopsis sp.),1 e cujos motivos adornavam os rostos das pessoas detentoras de conhecimento xamânico e seus objetos, tais como panelas de barro, lanças, portadores de dardos etc. (Langdon, 1992). Aqui faço uma reflexão sobre a relação entre perspectiva e arte, a partir do conceito de performance. Em vez de analisar a arte gráfica isoladamente, os desenhos são examinados como parte da relação dinâmica entre modos performáticos que constroem a cosmologia siona e que indexam perspectivas diferentes, estes sendo rito, narrativa e arte. Todas as expressões artísticas siona, sejam estas a literatura oral ou os desenhos gráficos, podem ser consideradas arte xamânica. No caso dos desenhos, os Siona admiram e distinguem os desenhos autênticos – desenho yajé ( iko toya) – daqueles que não têm valor – “mero desenho” (do toya). Estes últimos não transmitem o conhecimento xamânico do artista, não sendo portanto valorizados esteticamente. A arte autêntica, iko toya, é inspirada na experiência do artista com o lado invisível do cosmos, que se faz presente nas performances dos ritos com a ingestão de yajé ( iko). Através do rito, os participantes conhecem os espíritos, relacionam-se com eles e com o lado invisível do cosmos como uma experiência vivida, e não como ilusão ou alucinação. Os espíritos vêm cantando e identificam-se. São cheirosos, ornamentados e brilham com desenhos geométricos que 1

Segundo Uribe (2002) a grafia mais correta é yajé e não yagé.

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adornam seus rostos e suas roupas. As paredes de suas casas, os bancos e os outros objetos domésticos também têm toya. São estes desenhos que o participante, na sua volta para o “lado de cá” ( i kã ko), pinta no rosto e em outros objetos para evidenciar o que viu no “lado de lá” (yeki kã ko). A relação entre arte, xamanismo e uso de substâncias psicoativas entre os índios das terras baixas sul-americanas tem recebido bastante atenção nas últimas duas décadas. Porém, na década de 1970, quando realizei meu primeiro estágio de campo, os trabalhos mais relevantes para a reflexão sobre os Siona eram os de Reichel-Dolmatoff (1972, 1978) que estudou vários aspectos da cosmologia e da simbologia do xamanismo dos índios Desana, do Departamento de Vaupés. Este grupo compartilha com os Siona várias características cosmológicas, tais como realidades visíveis e invisíveis; um universo dividido em regiões e habitado por seres invisíveis, que afetam o mundo cotidiano e os processos de saúde e doença; uma visão cíclica da vida e a preocupação com os processos de vida e morte.2 Os Desana também produzem desenhos geométricos que são inspirados pela experiência ritual com yajé. Reichel-Dolmatoff argumenta que estes possivelmente são inspirados durante o primeiro estágio da ingestão da substância psicotrópica, um estágio universalmente caracterizado por fosfenos ou formas geométricas que são resultados de impulsos elétricos nos olhos (Noll, 1985). Após esta fase, aparecem cenas realistas com paisagens e figuras humanas, mas as formas geométricas sempre as acompanham como pano de fundo. A análise simbólica dos motivos dos Desana revela que eles funcionam como metáforas, representando os conceitoschave de cosmologia, sexualidade e fertilidade, mitologia e organização social. No meu primeiro trabalho de campo, entre 1970 e 1973, havia vários anciãos que possuíam a habilidade de pintar suas experiências com yajé; dois irmãos, Estanislao e Ricardo Yaiguaje, eram reconhecidos como os mais hábeis. Desses dois, Ricardo era o único que por iniciativa própria conservava a prática de pintar seu rosto diariamente e adornar certos objetos com iko toya. Seu irmão aprendeu a fazer os desenhos em papel quando estava no internato dos missionários capuchinhos, mas não os reproduzia espontaneamente no cotidiano. Meu trabalho (Langdon, 1992), comparando a arte destes dois com a dos que não eram xamãs demonstra que a composição das formas geométricas reconhecidas como iko toya é o resultado do arranjo de elementos mínimos de desenho segundo regras de combinação, gerando um tipo de análise “sintática” dos motivos, seguindo as 2

Ambos os grupos pertencem à família tucano, mas os Desana falam uma língua da seção oriental e os Siona pertencem aos falantes de tucano ocidental, incluindo os Siona, os Makaguaje, os Coreguaje, os Secoya e outros povos localizados na região amazônica dos rios Putumayo, Caqueta, Napo, e tributários da Colômbia, do Equador e do Peru.

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linhas desenvolvidas por Peter Roe (2004). Ou seja, os inúmeros motivos registrados desses dois artistas podem ser explicados como o resultado de duas operações: seleção e combinação. Com esses dois processos, eles produziam desenhos caracterizados por alta repetição e redundância, mas, apesar da repetição marcante, nunca observei o mesmo desenho duas vezes. Os desenhos com motivos muito semelhantes em sua combinação de elementos sempre tinham alguma diferença na simetria, fosse esta diferença quase imperceptível ou nem tanto. No entanto, as minhas expectativas de identificar os desenhos ou os motivos individuais como metáforas que simbolizam os princípios da cosmologia, os espíritos ou os reinos específicos do lado invisível foram frustradas. Quando mostrei os desenhos para outros Siona, para descobrir como eles os interpretavam, minhas indagações sobre os significados específicos dos toya resultaram em respostas vagas e gerais. Em contraste com as pesquisas de Reichel-Dolmatoff, eu não consegui uma interpretação específica compartilhada entre os Siona e tampouco pude identificar significados específicos nos motivos ou desenhos. Na avaliação da arte criada por seus colegas, meus colaboradores foram capazes de reconhecer a autenticidade dos desenhos e opinar sobre seu valor estético, admirando alguns desenhos mais do que outros. Entretanto, foram relutantes em opinar sobre os significados dos desenhos alheios, sempre comentando as qualidades estéticas como evidência do conhecimento xamânico do artista, mas negando-se a interpretar o que o desenho representava. Desenhos de yajé ( iko toya) são arte autêntica porque representam o mundo invisível, mas, segundo os Siona, só o próprio artista pode falar de onde ele o viu. Os desenhos de um xamã são índices do mundo invisível e de sua experiência, mas não representam para os outros nem espíritos nem metáforas específicas. Partindo do comentário de Viveiros de Castro (2006), segundo o qual as imagens dos espíritos são representantes, e não representacionais, os desenhos siona evidenciam a experiência xamânica de seu artista, mas não demonstram terem uma função comunicativa análoga à dos Desana, como apontado por Reichel-Dolmatoff em relação a essa etnia; ou uma função de discurso, como analisada por Munn (1962, 1966), em relação aos aborígenes australianos. Como arte, eles transmitem as qualidades da experiência com o outro mundo, mas não em forma narrativa.3 O grupo não compartilha interpretações homogêneas de o que os desenhos dos outros representam.

3

Para uma crítica da abordagem representacionalista dos grafismos ameríndios, ver Gow, 1988, 1999, e Lagrou, 1995, 1998, 2007. Esta abordagem tem como precursores Boas e Lévi-Strauss e se consolidou com Gell (Lagrou, ibidem).

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o mundo fractal e iko toya Os princípios ontológicos e epistemológicos da cosmologia xamânica siona assemelham-se àquelas de outros grupos amazônicos que têm sido enfocados por discussões etnológicas desde a década de 1970 (Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro, 1987; Viveiros de Castro, 1996, 2006). É uma cosmologia marcada pelo princípio da transmutação de formas, a depender do ponto de vista. Neste mundo transformacional, as distinções da racionalidade ocidental – natureza/cultura; animal/ humano; natural/sobrenatural – não operam. O cosmos é constituído por uma multiplicidade de donos/mestres, e suas coletividades sociais se replicam infinitamente numa “lógica fractal” (Kelly, 2001; Cesarino, 2010: 153). A característica transformativa das entidades do universo e a mudança de perspectiva são expressas pelos Siona através do conceito de “lado” (kã ko), em que o observador se encontra; ou seja, a percepção e a experiência têm lados diferentes: “o lado de cá”, o visível, e “o lado de lá”, das forças ocultas que influenciam e interferem nos processos do bem-estar da vida coletiva. O lado de cá (literalmente “este lado”), que também pode ser expresso como “esta região” ( i de oto), é o mundo da consciência ordinária, aquele que normalmente percebemos e no qual vivemos. Contém três domínios principais, cada um com seus distintos habitantes – a selva, o rio e o domesticado. A selva é a região dos animais. O jaguar é a figura dominante, com todo o seu poder e toda a sua força. O rio é o domínio dos peixes e dos animais aquáticos, e aí a anaconda é soberana. Na região domesticada, encontram-se as casas e os sítios das comunidades siona, com seus animais e plantas domesticados. O xamã é o chefe que cuida dos membros de seu grupo, estes também chamados de “seus domesticados” (hoya). O lado de lá (literalmente o “outro lado”) é o domínio dos espíritos e das forças invisíveis que operam em espaço e tempo não ordinários. O cosmos é organizado em cinco níveis hierárquicos, em forma de discos planos. Os três primeiros (o subterrâneo, o primeiro céu e o segundo céu) são reflexos uns do outros, no sentido de que cada um é dividido em regiões ou territórios que são habitados por diferentes povos. Estes grupos compartilham a mesma forma de socius que existe no lado visível, cada um liderado pelo chefe-xamã-dono que cuida de seu povo. O Sol, a Lua, as Plêiades e o Trovão constam como as principais figuras míticas xamânicas na esfera celestial que está além do alcance dos olhos, na divisão entre o “primeiro céu” e o “segundo céu”. Não há uma palavra única para classificar os habitantes no outro lado, e, dependendo da perspectiva, estes podem aparecer como humanos (bãĩ), animais (wa i) ou watí; este último grupo são os seres potencialmente malévolos, dependendo do contexto e de sua intenção. 114

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As atividades no outro lado influenciam o desenvolvimento de pessoas, plantas, animais e forças da natureza nas atividades de subsistência (agricultura, caça e pesca); nas relações intra e intercomunitárias; e nos estados de saúde e doença. Assim, para entender eventos que irrompem no fluxo cotidiano, tais como doenças graves ou outros infortúnios, é necessário entrar no outro lado para descobrir as atividades dos seres invisíveis e negociar com eles. Os xamãs são os principais mediadores entre os mundos, pois têm o saber e a habilidade para entrar à vontade no “outro lado” e negociar com os espíritos e as forças lá encontradas. Eles têm os poderes de transformação, e suas formas mais frequentes no outro lado são a onça, nas regiões da selva, ou a anaconda, no rio. Seu saber e seu poder são obtidos através da frequente ingestão do yajé, de forma dirigida e controlada (Langdon, 1979, 1986) durante uma longa aprendizagem para acumular o conhecimento necessário. toya: experiência ritual Tradicionalmente, espera-se que todos os jovens adolescentes siona se comprometam com a aprendizagem xamanística. O jovem aprendiz inicia sua formação com um xamã conhecido e confiável, geralmente um parente, pedindo ao xamã que “lhe mostre sua pinta (toya)”. Durante vários anos, ele realiza reclusões na floresta, dietas e outras prescrições, preparando-se para o uso intensivo do yajé. Quando ele está pronto, o mestre começa a administrar-lhe o líquido. Ele continua fazendo uso da substância psicoativa até experienciar através do rito as pintas que o mestre pretende ensinar-lhe. O aprendiz passa por uma sequência de desenhos que o mestre tem para mostrar-lhe, adquirindo o conhecimento sobre os vários domínios do universo, seus habitantes e seus cantos. Depois, procura outros para mostrar-lhes seu toya, dentro de uma rede xamânica que se estende aos grupos vizinhos da região. A aprendizagem é concebida como o desenvolvimento do conhecimento sobre os domínios do universo e seus seres, através das experiências rituais, e é expressa como “ver o desenho”. Conhecer o desenho, neste sentido amplo, requer o desenvolvimento de três capacidades interdependentes: “cantar”, “ver” e “pensar”; a disciplina, a persistência e a coragem se fazem necessárias. Os Siona contavam que normalmente se leva três “noites” (rituais) para chegar a ver o toya desejado, ou seja, para ver que o aprendiz chegou à região específica e se relacionou com seus habitantes, conhecendo sua roupa e sua ornamentação corporal, e escutando seus cantos. Alguns reinos do mundo cosmológico são mais difíceis de alcançar do que outros, e nem todos os xamãs têm as mesmas capacidades. Por exemplo, 115

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para chegar à lua, com seu belo povo flamingo, precisa-se de muito conhecimento. Um xamã iniciado disse-me que “só vi de longe, mas não consegui chegar”. Assim, o aprendiz passa por uma progressão de toya com seu mestre xamã, pouco a pouco experienciando os reinos do outro lado da realidade e aprendendo a dialogar e relacionar-se com seus habitantes. Experienciar um desenho particular através do rito resulta na aquisição de conhecimento. O conhecimento é corporal, concebido como uma substância “delicada” que se acumula no corpo e possibilita ao xamã: “ver” as atividades no mundo oculto; “escutar”, para poder cantar sua música; e “pensar”, ou ter consciência de si, para poder interagir com o mundo invisível. Essas três capacidades, em conjunto, constituem o poder xamânico, empoderando o xamã, para que ele possa negociar com os espíritos e transformar seu pensamento em ação. As capacidades xamânicas expressam-se em três categorias: “mero homem” (do imigi); “cantador” (sa isigi); e “onça”, “vidente” ou “bebedor de yajé” (yai, ũkigi, iyagi), considerado o mais poderoso. O cantador é o homem que já iniciou sua aprendizagem e conhece alguns espíritos, seus desenhos e seus cantos. Ele tem poder para curar doenças específicas através dos cantos. Porém, não o suficiente para liderar os outros nos ritos de yajé. Essa capacidade é atributo do último nível, em que o mestre xamã, a onça, guia a experiência dos outros num mundo de multiplicidade infinita. Além disso, ele já tem os poderes para “colocar a roupa da onça”, ou de outros seres e animais, a fim de transformar seu corpo enquanto viaja para o outro lado. Porém, o conhecimento ou poder atribuído aos xamãs sempre é relativo e heterogêneo; cada um tem capacidades diferentes e conhecimentos subjetivos baseados em suas habilidades e relações estabelecidas com o mundo invisível. A diferença entre as pessoas que experienciam incursões exitosas ao lado oculto e as que têm experiências desafortunadas com a alteridade é a capacidade de manter a “consciência”, ou seja, a capacidade de pensar, não “se esquecendo” de sua essência humana, e de ter o poder de agir adequadamente na situação em que se encontra (Langdon, 2004). Para não se decepcionar com as aparências, é necessário que o indivíduo esteja consciente de sua identidade (conhecimento de si) e de onde ele está (conhecimento do lugar), para saber como relacionar-se com os seres, que aparecem como humanos, mas que não o são. Se ele não se lembra disso, ou confunde este lado com o outro, “perde-se”, como eles expressam, e o resultado é a doença ou a morte. A habilidade de ter a perspectiva adequada da situação, ou seja, de reconhecer com quais seres se está lidando, é necessária para a interpretação e o entendimento do que está acontecendo no lado oculto. Todos têm um pouco desta capacidade, principalmente porque todos sonham (Langdon 2004; 116

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Kracke, 1987), mas, para os Siona, as performances dos ritos de yajé constroem as experiências coletivas de viagens ao outro lado e capacitam os homens para serem xamãs. No passado, quase todos atingiam o primeiro nível de conhecimento. toya: sinestesia e experiência No seu sentido mais amplo, toya conota a experiência da performance ritual em que a mudança de perspectiva é efetuada. No rito, os participantes passam do lado cotidiano para o outro lado, viajando por um universo fractal caracterizado por uma multiplicidade intensa que pulsa ao ritmo da experiência sinestésica criada pelos cantos xamânicos e pela ação ritual, junto aos efeitos neurofisiológicos dos químicos psicoativos da preparação do yajé. Depois de ingeri-lo, os cantos do xamã transformam-se em caminhos visuais que guiam as viagens dos participantes pelo cosmos. O xamã invoca entidades específicas, sejam estas o povo yajé, os aliados mais importantes – também conhecidos como o povo tenro – ou o povo do Sol, da Lua, da onça etc. Como humanos bem-pintados, estes descem e dialogam com o xamã, que se junta a seus assistentes para guiarem a performance enquanto cantam, tocam flauta ou outros instrumentos e movimentarem-se no espaço ritual dramatizando suas ações no mundo invisível. O xamã é o guia da experiência para que os outros não se percam num universo em constante transmutação. O participante do rito experiencia esta viagem como se fosse a sua própria. Como Townsley (1993: 466) observa em relação aos Sharanahua, o sistema cosmológico dos Siona não é um universo acabado, mas um universo improvisado, guiado pelo xamã e que emerge através da performance ritual. Neste sentido, ele é sempre provisório e está sempre em construção, sendo vivido através da ação ritual realçada pelas substâncias que alteram a consciência dos participantes. Junto a isto, é necessário reconhecer que a experiência emergente, compartilhada por aqueles presentes no ritual, também tem uma qualidade altamente subjetiva e individual. É importante reconhecer que a multiplicidade e a fractalidade do cosmos que emergem na performance ritual não devem ser caracterizadas como uma realidade virtual nem como uma alucinação (Schieffelen, 1985). Para os Siona, é uma mudança de perspectiva, em que o outro lado, normalmente escondido, se torna visível, e o rito deve ser considerado como uma experiência vivida. Os efeitos visuais, auditivos e corporais operam sinestesicamente num modo recursivo, transformando a perspectiva. Portanto, os Siona descrevem suas experiências como caracterizadas por uma qualidade luminosa com cores mais brilhantes do que aquelas percebidas no mundo cotidiano, e como um mundo fractal de cená117

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rios em constante movimento e transformação, cada qual com seu povo vestido e pintado com os próprios desenhos. Embora os Siona afirmem que eles experienciam os cantos como diálogos com os espíritos que guiam suas viagens pelo outro mundo e que cada povo tem sua linguagem particular, é difícil especificar o papel dos cantos e da música independentemente do conjunto de efeitos sensoriais do rito; não tenho exemplos suficientes para conduzir uma análise mais pormenorizada deles. Durante minha pesquisa de campo, os Siona não estavam conduzindo rituais com yajé (Langdon, 2010), e eles se recusaram a cantar seus cantos xamânicos fora do contexto ritual.4 Os poucos exemplos que foram registrados indicam que eles funcionam como representantes ou índices do mundo fractal, através de paralelismo, mas não narram literalmente o que representam os eventos vividos pelo xamã.

4

Hwĩhagi daiya Hwĩhagi daiya Hwĩhagi daiya Hwĩhagi daiya Hwĩha zĩ wagi Hwĩha zĩ wagi Hwĩha zĩ wagi

Vem pessoa tenra Vem pessoa tenra Vem pessoa tenra Vem pessoa tenra Criança tenra Criança tenra Criança tenra

Hwĩhagi daiya Hwĩha zĩ wagi Hwĩhagi daiya Hwĩha zĩ wagi Hwĩhagi daiya Hwĩha zĩ wagi Hwĩha zĩ wa nã daya Hwĩha zĩ wa nã daya Bãĩ wa nã daya Bãĩ wa nã daya Hwĩha zĩ wa nã Hwĩha zĩ wagi daya

Vem pessoa tenra Criança tenra Vem pessoa tenra Criança tenra Vem pessoa tenra Criança tenra Vêm crianças tenras Vêm crianças tenras Vêm pessoas Vêm pessoas Crianças tenras Vem criança tenra

Hwĩha zĩ wa nã Hwĩha zĩ wa nã Hwĩha zĩ wa nã Hwĩha zĩ wa nã

Crianças tenras Crianças tenras Crianças tenras Crianças tenras

Suspeito de que a razão disso seja o fato de que os cantos são performativos, no sentido de Austin (1990), que têm ação sobre o mundo quando cantados.

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Hwĩhagi daiya Hwĩhagi daiya a hi i i i hi5

Vem pessoa tenra Vem pessoa tenra a hi i i i hi

Os Siona comentam que o xamã comunica aspectos ou elementos da viagem que ele está experienciando – identificando os nomes dos espíritos, suas cores e outras características –, mas que cada participante, na sua experiência subjetiva, completa as sensações corporais, visuais e auditivas numa experiência pessoal e individual. Assim, apesar da natureza coletiva dos ritos, em que cada participante se concentra para seguir a viagem do xamã-guia, para ver seu toya, cada indivíduo tem sua perspectiva subjetiva e pessoal. Como comentado acima, o mundo cosmológico está em constante construção, em formação contínua, e é o individuo que faz o sentido do que está vivendo na performance (Langdon, 2013). toya: arte gráfica e experiência Conforme descrição sobre os Campa (Weiss, 1973) e os Sharanahua (Siskind, 1973, e Déléage, 2009), as performances rituais criam uma experiência coletiva em que os participantes procuram acompanhar o xamã, enquanto ele viaja para o outro lado via ingestão de yajé, transforma-se em onça e canta e dialoga com os espíritos nos respectivos reinos do universo. Várias estratégias contribuem para estabelecer as expectativas da performance. Antes do rito, o xamã anuncia o reino espiritual a ser visitado e escolhe qual tipo de yajé será preparado para o desenho desejado (Langdon, 1986). O conhecimento de viagens anteriores aos reinos espirituais faz parte do cotidiano dos Siona. Os desenhos pintados nos rostos dos xamãs iniciados, na cerâmica e em outros objetos, são índices destas experiências nos reinos invisíveis (Langdon, 1992). Finalmente, os xamãs transmitem suas experiências através de narrativas em performance, que relatam as viagens para os outros mundos e preparam os novatos para o que podem encontrar. Em processos de intertextualidade entre performances com yajé, narrativas em performance e desenhos pintados pelos xamãs, o mundo invisível torna-se conhecido, e esses atos de performance apresentam os índices da troca de perspectiva entre este lado e o lado oculto. O conjunto desses três modos performativos preparam os novatos para ver também o mundo oculto em suas experiências futuras. O conhecimento xamânico trata da capacidade de navegar num mundo oculto de multiplicidades infinitas e estabele5

Fragmento do canto de yajé de Lisandro Yocuro, na aldeia de San Diego em 1968, gravado por Carlos Garibello, do Instituto Colombiano de Antropologia. Lisandro cantou a pedido do Prof. Garibello, e o resto da canção segue com as repetições e variações presentes neste fragmento.

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cer relações com seus seres. Para isto, é preciso perceber e interpretar corretamente a experiência com a alteridade, e os processos de intertextualidade e indexicalidade presentes nas performances são centrais para a transmissão do conhecimento. Em vários artigos, tenho analisado e discutido como as narrativas xamânicas dos Siona expressam a memória subjetiva associada com a experiência ritual, os sonhos ou os eventos infortunados, quando a pessoa se encontra sozinha na selva. Sua arte gráfica, a arte autêntica, é a outra expressão performativa da experiência xamânica, mas ela se distingue bastante do modo narrativo. Na performance narrativa, o narrador assume a responsabilidade de compartilhar sua experiência com os outros, contando-a numa sequência temporal e espacial, ligando eventos e espíritos com sua interpretação pessoal do que está acontecendo. A performance narrativa dramatiza as ações e os eventos no outro mundo através da linguagem poética, que se distingue da linguagem cotidiana. A performance narrativa, neste sentido, é um evento que ressalta a experiência vivida e cria a presença do outro mundo para a plateia (Bauman, 1977; Schechner, 2003). Na poética da performance oral, as ações e os eventos experienciados no outro mundo são mostrados através de detalhes que descrevem como os seres aparecem como humanos e como são suas práticas e suas intenções. Tais narrativas também referenciam as mudanças de perspectiva, em que a plateia é levada da perspectiva cotidiana para a dos mundos em constante transformação, em que as aparências dependem do ponto de vista. No modo narrativo, o contador cria o mundo invisível para os outros, construindo a experiência a partir de suas memórias do mundo invisível, habitado por inúmeros seres que podem ser conhecidos através da aprendizagem xamânica. Dada a estrutura sequencial e temporal das narrativas, a experiência da intensa e infinita multiplicidade do mundo fractal é menos evidente que a da performance ritual. Porém, o narrador fornece informações sobre a mudança de perspectiva com a entrada no mundo invisível, através de comentários explícitos e índices que contrastam perspectivas. As performances narrativas das experiências descrevem o mundo invisível como sendo semelhante a este lado, em espaço e tempo, criando a imagem em que ele parece ser paralelo à realidade finita espacial. É como se pudesse ser feito um mapa do cosmos. Posto que a arte gráfica não tem este caráter descritivo, como o das narrativas, sua função estética transmite a experiência qualitativa do universo fractal através da produção dos motivos geométricos estimulados pelo yajé. Segundo os Siona, estes motivos são uma característica sempre presente nas viagens xamânicas, e são experienciados em transformação e movimento contínuo. Estes motivos, reconhecidos nas ciências como os fosfenos que dominam as fases iniciais após a ingestão do yajé ou de outra substância psicoativa, estão presentes como pano de 120

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fundo na próxima fase em que passagens realistas e figuras aparecem. Estas cenas são indexadas nos cantos do xamã, como se vê no exemplo do canto reproduzido acima, em que a descida do povo tenro é descrita com frases repetitivas. Cada grupo de seres tem seus próprios desenhos, que são pintados nos seus rostos, roupa, bancos e paredes das casas. São estes desenhos que o artista cria através de sua memória do toya vivenciado no ritual. Assim, a arte gráfica não deve ser analisada como uma forma discursiva ou representacional, mas deve ser entendida como uma expressão comunicativa das qualidades estéticas da experiência e representante dos habitantes do mundo invisível. Semelhantes à fractalidade dos fosfenos estimulados pelo yajé, os motivos pintados pelos Siona são desenhos geométricos com muita repetição de elementos, mas não dos motivos como um todo. Eles captam a fractalidade da experiência via duplicação dos elementos e diferenciação das combinações. Assim, iko toya é julgado pelos outros por sua beleza, mas não permite que as pessoas interpretem o significado dos desenhos no sentido de identificar quais seres do universo eles representam. A criação da arte gráfica é uma produção da memória da experiência subjetiva, e somente o artista pode associar seus desenhos com os espíritos que os inspiraram. O elemento de repetição nos desenhos simétricos reflete a experiência fractal de yajé, sendo um diferente do outro, enquanto o artista pinta seu rosto e objetos pessoais com novas combinações do toya dos espíritos, que só ele conhece.6 memória, arte e corpo performativo Ricardo e Estanislao Yaiguaje eram descendentes de uma família de reconhecidos xamãs da comunidade. Como mencionado acima, apenas Ricardo (1990-1985) expressou ativamente seu conhecimento xamânico através da pintura de desenhos delicados no seu rosto e nos artefatos que ele fabricava, tais como lançadores de dardos, lanças e bordas de coroas. Fabricava também enfeites de penas coloridas, sementes, dentes de onça, contas, além de outros objetos que representavam também os adornos dos espíritos que ele conhecera nas suas viagens aos mundos invisíveis. Foi, em sua época, o ancião conhecido por ter mais conhecimento xamânico que os outros e expressou seu conhecimento e sua experiência através de suas narrativas e seu toya. Todavia, por causa de ataques perpetrados por outros xamãs, que causavam doenças, seu conhecimento foi comprometido e 6

Um exemplo de arte representativa, feito por um jovem Siona com experiência xamânica, encontra-se em Mallol de Recasens (1963). Estes desenhos não seriam considerados iko toya pelos Siona, mas as explicações do artista referenciam o significado dos desenhos.

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suas capacidades xamânicas ficaram limitadas. Quando seu irmão mais velho, o xamã-líder (cacique-curaca) da comunidade, morreu, os homens da comunidade juntaram-se para beber yajé, na esperança de que Ricardo demonstrasse através da performance ritual sua capacidade de assumir a liderança xamânica. Porém, contra todas as esperanças, Ricardo falhou na performance ritual. Ele não viu o que esperou, só escuridão e, para a frustração de todos, foi incapaz de guiar os outros nos caminhos do céu (Langdon, 1979, 2004). Ser um xamã poderoso era um objetivo importante na vida de Ricardo, e durante os quinze anos durante os quais eu o conheci, ele recomeçou suas viagens xamânicas em ritos guiados por seu cunhado, para fortalecer seu poder xamânico e renovar suas alianças com os seres dos domínios do cosmos. Ricardo transmitiu suas experiências tanto através da performance narrativa como da arte gráfica. Seu hábito de pintar o rosto todos os dias evidenciava sua experiência xamânica e sua identidade, e, enquanto ele renovava seu conhecimento com seu cunhado, observei que seus desenhos faciais se tornaram mais complexos. Este aumento de complexidade pode ser entendido dentro do paradigma da performance. A aplicação dos desenhos em seu rosto e em outros objetos constituem um ato performativo, evidenciando para os outros seu conhecimento xamânico e a memória viva de suas viagens e dos seres com quem ele estabelecera alianças. Durante minha pesquisa, Ricardo e eu nos encontramos quase diariamente, em sessões de gravação em que Ricardo contava narrativas na linguagem poética dos mitos. Das mais de cem narrativas registradas, a maioria tratava de xamãs e suas atividades no passado mítico ou histórico. Os temas de um grande número destas narrativas tratavam de viagens para os mundos invisíveis do universo nos ritos xamânicos ou em sonhos, e várias destas são experiências pessoais. Estas narrativas e nossas sessões subsequentes, nas quais verifiquei minhas transcrições e traduções, resultaram em longas discussões sobre a natureza do cosmos e seus habitantes. Devo uma grande parte de meu entendimento sobre a cosmologia siona às narrativas de Ricardo e a suas explicações sobre os conceitos-chave que me foram bastante difíceis de traduzir. Conversamos sobre arte com muito menos frequência. Durante um ano, fiz esboços no meu diário sobre seus desenhos faciais, mas pouco falamos sobre eles. Num certo período, Ricardo adoeceu, tendo uma alergia de pele, e parou de pintar seu rosto durante vários meses. Ele se curou através de uma visita a seu cunhado xamã, onde passou dois meses tomando yajé. Além de buscar a cura através das performances rituais com seu cunhado, Ricardo também renovou suas experiências no mundo espiritual e retornou otimista e em boa saúde à sua aldeia. Retomou seu hábito de pintar o rosto, desta vez com os motivos referenciando 122

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suas experiências recentes. Seus desenhos estavam mais complexos no número de combinações de elementos e também no uso de duas cores, o vermelho de urucum (ma), que usava no passado, e um novo, mais brilhante, que se aproximava do magenta, chamado hē he kuri. Esta cor é extremamente valorizada por ser mais brilhante, refletindo para os Siona a experiência cromática de suas viagens, e é relacionada ao verbo hē he, que se traduz como “brilhar”. Kuri é um nome que denota dinheiro, prata, ou algo brilhante. Em narrativas, conota a qualidade da luminosidade da experiência visual no rito de yajé, ou seja, a luminosidade do toya. Hē he kuri é índice da luminosidade e dos desenhos dos espíritos nas narrativas que descrevem as viagens ao outro lado. Por exemplo, na viagem à casa das onças (Langdon, 2013), Ricardo descreve as roupas e os enfeites corporais do povo onça que ele vira quando foi a esta casa com seu pai, que lhe explicara o que ele estava vendo. kagina iyato ai bãĩ ba i bãĩ yai domi gato de ona yai domi bai i. Enquanto ele (o pai) falou, vi muitas pessoas, mulheres onças; muito belas mulheres onças havia! yai beto ga wanã ye bãĩra bãĩ bai i. Com colares de coco de onça, este povo havia. ba ihĩ, bõsi yai bõsi gato hē he kuri, hē hesiko a bai i. Havia jovens onças, todas brilhando, seres brilhantes havia. hē hesikota bako a mi hu ba iye hē hesiko a bai i Brilhando assim, pessoas com seus bigodes pintados havia.

Neste trecho, Ricardo enfatiza a beleza das mulheres onça e chama a atenção aos jovens que brilham com o hē he kuri dos desenhos dos seres do outro lado, cujos rostos têm os bigodes desenhados para indexar sua forma animal. Adicionalmente, hē he kuri associa os desenhos às práticas instituídas pelos xamãs ancestrais, Lua e Sol (Langdon, 1995) e relatados nos mitos. Quando andavam pela Terra, havia entre estes dois uma rivalidade que se expressava através de truques (tricks – trickster). Em uma narrativa, a Lua é a prima mais nova do Sol e anda com uma vara mágica que usa para transformar as pessoas em animais. Numa outra narrativa, na qual ela ascende ao céu, condenada a vigiar as atividades dos seres humanos durante a noite, ela é enganada pelo Sol, que lhe tira sua vara de condão e a joga para o alto. Cada vez que a Lua pula para pegá-la, o Sol a faz subir mais alto, até que finalmente a Lua sobe, no último pulo, até o céu e lá fica para sempre. 123

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O rosto da Lua, como xamã ancestral, fornece o modelo do rosto como superfície a ser pintada. De alguma maneira, seus truques dão origem à pintura facial. O primeiro é expresso no mito em que a Lua visita sua irmã à noite para com ela ter relações sexuais, e esta, a fim de descobrir quem é que a visita à noite, usa jenipapo para tingir seu rosto. Para os Siona, este mito explica os desenhos na face da Lua e associa a lua cheia a uma superfície a ser pintada. Isso é visto também no modo como os Siona tradicionalmente preparavam seus rostos para aplicar os desenhos. Retiravam todos os pelos faciais, incluindo as sobrancelhas, criando uma “tela” limpa para aplicar motivos delicados nas bochechas, ao redor dos olhos e na testa, utilizando justamente o lugar das sobrancelhas.

Além desta narrativa, que associa a Lua ao desenho facial, há uma outra que também associa o uso de duas cores a uma expressão do poder xamânico que a Lua usa para assustar o Sol e seu povo, que só pintavam com urucum. Um fragmento deste mito foi contado por um ancião como parte da sequência de enganos ou truques entre os dois, antes de ascenderem ao céu. Neste, a Lua aparece com uma cara diferente, seus motivos pintados com hē he kuri, e não apenas com urucum. Esta novidade, sua “cara diferente”, era assustadora para os outros. Tĩ ãgina iyato tĩ zia bagi ba kina, hē he kuri nakoni bõsa zia hē hēsiki nakoni bõsa zia hē hesiki ba kiña Quando a Lua chegou, foi vista com uma cara diferente. Estava brilhando com hē he kuri, com urucum; seu rosto bicolor brilhava. Hã ãka ĩyahĩ ai kikireña si a ko a Vendo a ele assim, todos se assustaram muito.

Foto 1: Ricardo depois do banho.

124

Assim, na sua volta à aldeia, após dois meses de ingestão de yajé com seu cunhado, Ricardo retomou o hábito de pintar seu rosto, desta vez com motivos mais elaborados e frequentemente com as duas cores, urucum e hē’he kuri. Além de pintar seu rosto, também continuou a fabricar colares, brincos e outros enfeites de penas, contas, cocos e dentes de onça inspirados pelos encontros com seus aliados espirituais. Iniciou um período de maior experimentação de motivos, aplicando desenhos nas lanças ornamentais, coroas etc. Diferente de seu irmão, ele sempre se negou a fazer desenhos em papel para mim, argumentando que tinha a mão trêmula. No entanto, ele continuou pintando durante a década de 70, acumulando poder xamânico e curando doenças. Quando voltei, em 1980, sua família me mostrou vários desenhos que ele realizara com lápis em papel, expressando sua recente experiência xamânica. Estes iko toya eram mais complexos que os de seu rosto, com mais combinações de elementos para elaborar os motivos (vide Langdon, 1992: 78). Nos últimos meses da minha pesquisa de doutorado, mostrei-lhe meus esboços de seus desenhos faciais e de outros, das lanças e coroas que ele tinha espontaneamente criado. Perguntei-lhe o que representavam os desenhos e os nomes dos desenhos. Obtive nomes específicos de motivos de combinações que comunicam a forma (layout) do desenho, tais como cruzado, arredondado, quadrado, esqueleto e outros. Estes se referiam ao tipo de montagem ou combinação para produzir o motivo, mas não necessariamente eram associados a seres específicos (vide Langdon, 1992). Porém, quando falávamos dos desenhos apli125

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cados a seu rosto, como uma tela, ele indicava que cada conjunto representava os desenhos mostrados pelos espíritos que ele conhecera em suas viagens. Ou seja, apesar de os outros não saberem identificar onde foram vistos seus desenhos, ele, como artista, pintava suas lembranças dos espíritos aliados que ele conhecera em suas experiências com yajé. Pelos nomes que ele indicou, podemos saber quais eram os espíritos que a ele se mostravam mais frequentemente em tais ritos: hwĩha bãĩ – o povo tenro, aliados principais dos xamãs. yahe bãĩ – o povo yajé, uma referência alternativa para o hwĩha bãĩ. yai bãĩ – o povo onça. wakara bãĩ – o belo povo flamingo. usebo bãĩ – o povo plêiades, que fundaram as tradições de beber yajé. ñaña bãĩ – o povo lua. mačoko bãi – o povo estrela. behi bãi – o povo datura, associado a esta planta, quando ingerida. miaza bãi – o povo luminoso, possivelmente associado à estrela da manhã, uma variedade do hwĩha bãĩ associado à madrugada.

Assim, o rosto como tela indexava, para Ricardo, os desenhos dos espíritos que ele conhecia, e, em alguns deles, ele especificava o local onde os viu, como na roupa, nas paredes ou nos bancos. Em outros desenhos faciais, ele indicava se uma parte (bochecha ou testa), mas não todo o desenho do rosto, fora vista num local específico. Tais especificações expressam a experiência toya no seu sentido mais amplo, em que a fase inicial de fosfenos transformava-se na fase seguinte, de cenas de pessoas e paisagens com os motivos geométricos presentes ao fundo. As figuras 1 e 2 contêm desenhos feitos antes de ele retomar seu treinamento xamânico com seu cunhado, em 1972; e as figuras 3, 4, 5, 6 e 7 demonstram o aumento de complexidade dos motivos e das cores, após sua retomada dos ritos de yajé e as identificações que ele indicou.

figura 1

1.1 – hwĩha bãĩ

1.2 – yai bãĩ bõsi

1.3 – wakara bãĩ

1.4 – hwĩha bãĩ

1.5 – yai bãĩ

1.6 – yai bãĩ

Legenda:

126

Vermelho

Magenta

127

perspectiva xamânica

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figura 2

figura 3

2.2 – wakara bãĩ

2.1 – usebo bãĩ

3.2 – ñaña hwĩha bãĩ

3.1 – usebo bãĩ

ñu isaiwi (bochechas)

ñu isaiwi (bochechas)

2.3 – yai bãĩ

2.4 – yai bãĩ

3.3 – yai bãĩ

3.4 – ñãta krusu bãĩ

3.5 – ñãta bãĩ

wi e (testa) / ñu isaiwi (bochechas)

ñata krusu (testa) / ñu isaiwi (bochechas)

ñu isaiwi (testa) / hu i kãya (bochechas)

ñu isaiwi (testa) / mačoko e ñu isaiwi (bochechas)

2.6 – behi bãĩ

3.6 – hwĩha bãĩ kãya

ñu isaiwi (testa e bochechas)

ñu isaiwi (bochechas)

2.5 – usebo bãĩ (testa) wakara bãĩ ñu isaiwi (bochechas)

Legenda:

128

Vermelho

Magenta

Legenda:

3.7 – yahe

Vermelho

Magenta

129

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figura 4

figura 5

4.2 – ñaña hwĩha bãĩ kãya

4.1 – behi bãĩ

5.1 – wakara bãĩ wi eña

5.2 – ñaña bãĩ kãya

5.3 – yahe bãĩ toyasi kãya ñu isaiwi (testa)

sē ke kãya toya (testa)

4.3 – behi bãĩ kãya

5.4 – mačoko bãĩ

5.5 – usebo bãĩ

se ke ñu iwi (testa) kãya toya (bochechas)

ñu isaiwi (bochechas)

ñu isaiwi (testa) / mačoko (bochechas)

hu i kãya (testa) / ñu isaiwi (bochechas)

4.5 – usebo bãĩ toya kãya

4.6 – ñaña de oto bãĩ

5.6 – ñaña bãĩ

5.7 – yai bãĩ ñu isaiwi

se ke ñu isaiwi (testa)

ñu isaiwi (bochechas)

Legenda:

130

4.4 – mačoko bãĩ

Vermelho

Magenta

Legenda:

Vermelho

Magenta

131

perspectiva xamânica

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figura 6

6.1 – yai bãĩ ñu isaiwi

figura 7

6.2 – mačoko bãĩ te e gina yariba (bochechas)

6.3 – usebo bãĩ

6.4 – usebo bãĩ hu i kãya / yai toya ga wa

6.5 – wakara bãĩ kãya / yai

wi eña (testa) / ñu isaiwi (bochechas)

6.6 – usebo bãĩ

6.7 – usebo bãĩ te ewi kãya / yai bãĩ

ñu isaiwi (testa)

ñu isaiwi (bochechas)

Legenda:

132

Vermelho

Magenta

7.2 – yahe bãĩ

7.1 – miaza bãĩ / hwĩha bãĩ kuri ñu isaiwi (testa) / sē ke toya ba ko a kãya (bochechas)

7.3 – yai bãĩ bosi

7.4 – yai bãĩ bosi he he

7.5 – hwiha bãĩ

7.6 – yai bãĩ

Legenda:

Vermelho

Magenta

133

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performance, intertextualidade e indexicalidade Este artigo examina o xamanismo como um modo performático, em que o mundo xamânico é experienciado e construído através da performance ritual, de narrações da literatura oral e da arte gráfica. Estes três modos de performance são interligados através dos mecanismos de intertextualidade e indexicalidade, tanto para construir a cosmologia siona enquanto uma experiência vivida como para estabelecer expectativas em relação à natureza desta realidade para o futuro. Estes três modos também têm uma relação com a produção de toya, um conceito multivocal que tem várias conotações: (1) toyá como conhecimento que se refere à viagem que um xamã pode mostrar aos outros no seu rito; (2) as descrições destas experiências nas narrativas dos xamãs; (3) desenho gráfico que representa os seres invisíveis conhecidos pelo xamã. A toya, no seu sentido amplo, é, na performance ritual, a experiência mais saliente e dramática. Através do uso de roupas e enfeites especiais, num espaço afastado de cotidiano e música e movimento que pulsam com os efeitos de yajé, uma experiência sinestésica age corporalmente de tal maneira que a realidade ordinária se torna o mundo oculto, luminoso e habitado por uma multiplicidade infinita de seres. Cada participante do rito se esforça para acompanhar o xamã nos seus caminhos pelo universo. Por um lado, o rito é uma experiência coletiva, em que os participantes compartilham o toya que o xamã tem para mostrar. Por outro, é uma experiência subjetiva, influenciada pelo conhecimento do participante e por suas habilidades de ver, ouvir e pensar sua viagem particular para fazer alianças com os espíritos. As experiências resultantes, coletivas e individuais, não estão isoladas da construção desta realidade que emerge das performances de narrativas xamânicas e da arte gráfica, que devem ser pensadas como atos performativos. Em particular, a arte gráfica, com suas constantes variações de motivos aparentemente repetitivos, indexa a experiência subjetiva e também a qualidade fractal do universo produzido pela ingestão de yajé, a de padrões escalares autossimilares (Kelly, 2001: 95) que se replicam. Analogamente, os padrões de socius repetem-se através dos povos que vêm cantando e se apresentando nas passagens e nas cenas da experiência no mundo oculto. Como argumentei num outro trabalho (2013), a performance narrativa descreve e indexa os seres invisíveis e a mudança de perspectiva que marca a passagem entre a realidade visível e a oculta. Assim, onças, nas suas casas do outro lado, aparecem como seres humanos, e suas roupas, ou peles, estão penduradas nas paredes, esperando serem vestidas quando o povo-onça vem para este lado. Esta roupa se refere a sua forma animal, não sendo, pois, representação. Igual134

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mente, seus adornos corporais e seus desenhos indexam suas características físicas quando são vistas deste lado. Algumas das mulheres-onça usam colares de coco de onça (talvez a Panthera onca, com suas pintas pretas no pelo do pescoço); outras têm o cabelo amarrado com pentes (talvez indexando o pelo ressupino orientado em sentido contrário ao pelo do resto do corpo do pescoço do Felis pardalis ou wiedii). A roupa da onça pintada (possivelmente Felis tigrina) caracteriza-se por seus desenhos. Alguns jovens são pretos, pintados com jenipapo (jaguarondi ou felis concolor), e outros pintam seus bigodes.7 As narrativas também indexam os diálogos entre o xamã e os espíritos que se escutam uns aos outros nos ritos através do uso da estratégia de intertextualidade. Cada grupo de seres – humanos, animais ou watí, independente de sua aparência como humano ou não – tem sua própria língua, e a aquisição de conhecimento xamânico exige a aprendizagem de sua língua ou de seus cantos. As performances dos ritos são vivenciadas como dialógicas, em que os participantes escutam os xamãs dialogarem com seus aliados e outros seres com quem estejam interagindo no outro lado. Em narrativa, este diálogo é representado como “fala citada”, uma característica importante que evidencia a veracidade do evento. Vimos aqui, também, considerando os mitos sobre a Lua e o Sol, que há uma relação intertextual entre narrativa e desenho. comentários finais A arte gráfica dos Siona, considerada arte autêntica ou xamânica ( iko toya), não deve ser vista como representativa, no sentido de que ela não comunica via metáfora. Ao contrário, ela expressa a emergência qualitativa do universo fractal que é construído nas performances rituais. É, pois, arte performativa e faz parte das outras artes performativas do grupo, ou seja, as narrativas e os ritos. No caso da arte gráfica, os desenhos do artista evidenciam suas experiências xamânicas e seu conhecimento do outro lado. Transmitem a identidade do artista como xamã. Além disso, a arte gráfica compartilha com o rito a linguagem poética dos cantos xamânicos e das narrativas, o uso de repetição e redundância para expressar esteticamente a natureza do universo fractal. As figuras geométricas dos fosfenos resultantes da ingestão de yajé são extremamente repetitivas e estão em constante reconfiguração, e é nelas que os artistas se inspiram para pintar suas experiências subjetivas. Semelhantemente à repetição e à diferenciação entre os motivos dos desenhos, o paralelismo opera na linguagem poética dos cantos xamânicos e das 7

Segundo as descrições das espécies da família Felidae (Emmons, 1990: 148-153).

135

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narrativas para expressar a qualidade da performance ritual. Ambas as expressões poéticas são caracterizadas pelo uso extensivo de repetição, que as distingue da linguagem cotidiana. Os cantos, em particular, desafiam uma interpretação literal ou semântica de seu conteúdo. São cantados para estimular a experiência visual e auditiva dos participantes, não para descrevê-la. Os desenhos gráficos, produzidos nos rostos dos xamãs com alta repetitividade e redundância, mas sempre com variação, indexam esta experiência subjetiva. Finalmente, a arte gráfica, como parte da intertextualidade entre os outros modos performáticos da ação ritual e das narrações orais, contribui para estabelecer as expectativas nos outros sobre como entender a alteridade num universo fractal. referências bibliográficas AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Porto Alegre: Artes Médicas,

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Homens, guaribas, mandiocas e artefatos. Alguns sentidos da pintura entre os Wajana (Wayana)1 Lucia Hussak van Velthem

Desde os primeiros encontros entre europeus e índios na costa brasileira, a estética corporal dos Tupinambá foi objeto da atenção dos cronistas. Assim, Pero Vaz de Caminha, Hans Staden e Jean de Léry fazem referência às suas pinturas vermelhas e negras, e descrevem os seus ornatos faciais de pedra. Nos séculos posteriores, cientistas, viajantes e artistas mencionam a ornamentação corporal de inúmeros povos indígenas na Amazônia e produzem valiosos documentos iconográficos, entre os quais se destaca Hercules Florence, que registrou as pinturas e as tatuagens dos Munduruku no Pará (Velthem, 2008). O estudo da pintura corporal dos povos indígenas foi introduzido na antropologia brasileira a partir das pioneiras pesquisas de Claude Lévi-Strauss (1984) e Darcy Ribeiro (1979) entre os Kadiwéu de Mato Grosso. Essas análises interpretativas influenciaram muitas das pesquisas subsequentes, voltadas para a compreensão dos significados dos meios de transformação corporal: pinturas, tatuagens, escarificações, adornos de materiais diversos, com destaque para a plumária. Enfatizaram igualmente que essas práticas precisavam ser apreendidas de forma articulada, pois as mesmas integram, nas sociedades indígenas, uma função cognitiva e estética global, mas que delineia visões de mundo específicas. Constituem-se, ademais, em experiências que se legitimam através da incorporação das características estilísticas de uma filiação cultural que afirma e confirma uma pessoa, individual e socialmente. 1

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Professores wayana da Terra Indígena Rio Paru d’ Este reuniram-se recentemente a fim de estabelecer parâmetros para a escrita desta língua e deliberaram que o etnônimo deve ser grafado como Wajana, e não mais Wayana ou Waiana. O presente artigo acata essa decisão.

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A elaboração da corporalidade e a noção de pessoa enquanto temas centrais da vida indígena são enfatizados através de múltiplas referências e vários estudos.2 Existiria inclusive um princípio generalizante segundo o qual saberes e conceitos da existência humana, para serem reconhecíveis, devem primeiro ser localizados e registrados pelo corpo (Mentore e Santos Granero, 2006). Diferentes povos indígenas desenvolveram práticas e técnicas para modificar a natureza e o aspecto de um corpo e assim dotá-lo das qualidades sociais requeridas. Essas intervenções exprimem a humanidade de um corpo de modo individual e, ao mesmo tempo, remetem a uma identidade coletiva, uma vez que os membros de determinado povo indígena reconhecem-se enquanto congêneres através do uso das mesmas pinturas corporais e de atavios de materiais diversificados. Tendências recentes na antropologia brasileira enfatizam análises do estatuto do humano ou da pessoa a partir do estudo das relações estabelecidas com diferentes tipos de não humanos, sejam eles extraterrestres, animais, artefatos, grafismos, células ou genes (Sautchuk, 2009: 1). Neste contexto, sobressai um importante campo, a cultura material, cujas abordagens destacam a corporalidade existente nos objetos manufaturados.3 Esse aspecto emergiria de expressões formais que envolvem uma série de faculdades compartilhadas entre humanos e artefatos, tais como a imitação, a antropormofia, a existência de um ciclo vital. Segundo essa acepção, os objetos não seriam coisas que foram produzidas para terem um fim utilitário, mas expressariam antes “pontos de convergência” (Barcelos Neto, 2008: 31) que aglutinariam intenções, relações, propósitos. Evocando sempre alguma coisa que está além de sua função e também de seu aspecto formal, um artefato seria assim, para alguns, um “precipitado de sentido e de essência cultural” (Bazin, 2002: 287), e para outros, um campo constituído por um “borbulhar de corpúsculos que se agregam, porque sensíveis entre si” (Goulard, 2011: 14). Entretanto, a própria noção de “objeto” deve ser expandida, pois entre muitos povos indígenas esse elemento pode se expressar de diferentes formas, algumas das quais seriam consideradas inimagináveis. O propósito das páginas seguintes é discorrer sobre alguns dos sentidos e das formulações da pintura entre os Wajana – povo indígena de língua carib que vive em aldeias ao longo do rio Paru de Leste, no norte do Estado do Pará – e sobre como ela se manifesta em corpos de diversa constituição, humanos e não humanos. Entre esses índios, os corpos dos componentes cosmológicos são compreendidos como 2

Como foi apontado no seminal trabalho de Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro (1979) e, entre outros exemplos possíveis, nas reflexões de Vilaça (2005).

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Como pode ser apreendido através de recentes publicações (Lagrou, 2007; Barcelos Neto, 2008; e Goulard e Karadimas, 2011).

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dotados de pinturas que apresentam características cromáticas e iconográficas. Esse fato garante a necessária distinção entre esses corpos e, através dessa característica, permite que os Wajana disponham de meios para afirmarem e confirmarem sua humanidade. Partimos do pressuposto de que a necessidade de diferenciar os componentes cosmológicos é decorrente da existência de algo que acarreta, justamente, a sua indistinção. Cabe então indagar qual seria esse elemento, como ele se apresenta e, sobretudo, descrever quais são as formas de diferenciação que engendra. a criação dos corpos Para os Wajana, as produções humanas pertencem ao domínio terrestre, o lugar onde vivem e onde desenvolvem tecnologias e habilidades que precisam ser aprendidas e executadas de acordo com regras sociais. Essas ações resultam em pessoas, artefatos e alimentos, e estão intimamente conectadas à noção de que são exercidas a partir de modelos criados nos tempos primordiais pelos demiurgos (kuiulitom). As tecnologias demiúrgicas são descritas no mito de criação e são constituídas por um saber intrínseco, não adquirido, o qual se exerce prontamente, adequando-se às necessidades eventuais. A sua principal característica é a de possuir um componente de metamorfose e de expressar a grande ebulição criativa dos primeiros tempos. As criações dos demiurgos são compreendidas pelos Wajana enquanto modelos a serem reproduzidos na fabricação de humanos e dos bens necessários a sua perpetuação física. Os primeiros elementos fabricados foram mulheres, modeladas a partir das matérias-primas disponíveis: cera, argila e arumã. Essas matérias-primas, sucessivamente experimentadas pelos seres demiúrgicos, revelam um sentido de escalonamento na elaboração e no aprendizado técnico, tanto primordial como atual. Para os Wajana, o uso desses insumos delimita domínios que opõem a infância à vida adulta e os homens às mulheres, uma vez que é próprio das crianças modelarem brinquedos de cera, das mulheres confeccionarem vasilhas de argila e dos homens empregarem o arumã nos trabalhos de cestaria. Dentre todas as mulheres fabricadas pelos demiurgos, a que foi tecida com lascas de arumã logrou preencher os objetivos fundamentais de uma criação/produção. Portanto, segundo esses ditames, ela adquiriu estrutura (forma), um corpo humano; identidade (decoração) sob a forma de uma “pintura” castanho-avermelhada, resultante do uso do arumã com casca; e também movimento (funcionalidade), pois como narra o mito: Aí [o demiurgo] fez mulher de arumã. Outro dia está viva, moça bonita. Como vai, acordou? Vai trabalhar hoje, tu vai buscar bebida prá mim. Mandioca tu traz, eu 141

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estou ensinando. Aí está pau pra cavar, aí está jamanchim. Aí Arumana, nome dela, foi na roça. Arrancou mandioca, trouxe. Ralou, fez hakula [uma bebida fermentada] (Velthem, 2003: 399).

Em outros termos, uma produção tanto primordial como atual corresponde à modelagem do informe para a construção de uma estrutura, a imposição de marcas nessa estrutura para conferir identidade e a adequação de uso e de função, os indicadores da eficácia daquilo que foi criado. Pessoas, animais, vegetais, artefatos, produzidos segundo esses parâmetros, são valorizados porque suas qualidades revelam corpos que foram criados, fabricados e aprovados há muito tempo, aspecto que tem o poder de ampliar as suas potencialidades. As criações demiúrgicas são paradigmáticas porque, ao reunirem esses predicados, revelam obras estruturadas, embelezadas e dotadas de ação. Nos tempos primordiais, determinadas matérias-primas permitiam aos demiurgos criarem e confeccionarem seres que possuíam corpos diferenciados, mas que comungavam de mesma essência. Os mitos Wajana relatam que naqueles tempos os animais, as coisas, compartiam com os humanos uma mesma aparência física, pois todos “eram gente”. No presente, o sentido criativo e produtivo Wajana conecta pessoas e coisas, e assim um mesmo verbo (tïhé) indica que a ação humana, ao ser exercida sobre matérias corporais – como sangue e sêmen –, vai produzir filhos, mas ao atuar sobre matérias naturais, como caniços, folhas, cipós, madeiras argila, e penas vai resultar em objetos de uso cotidiano e ritual. A estreita associação entre pessoas e coisas enquanto corpos fabricados é evidenciada de muitas formas. Há o reconhecimento de que a construção e a manutenção dos corpos – humanos e não humanos – depende de insumos. O termo tëkamhe designa as trocas de coisas assemelhadas, sobretudo de alimentos: beijus, carnes cozidas, bebidas fermentadas, insumos de perpetuação do corpo humano e também de matérias-primas: argila, fios de algodão, pigmentos, cana de ubá, os elementos necessários para a confecção dos corpos dos artefatos. Os objetos produzidos revelam as características formais de seus modelos, seres corporificados, de forma integral ou parcelados. Assim, o banco monóxilo (kololo) representa a carapaça do jabuti e a roda de teto (maluana) da casa cerimonial, a arraia de água doce que é profusamente pintada. Por outro lado, o corpo humano possui algo dos artefatos, pois suas partes constitutivas podem ser referidas, figurativamente, como objetos, como o útero que é comparado a uma cuia (kalapi) para bebidas, e o ventre, ao cesto pïlasi. Contudo, um dos mais importantes elementos de um corpo (-pun) é a coloração que ele exibe, porque é ela que vai estabelecer diferenciações fundamentais. 142

Figura 1: A roda de teto, aliás, a arraia de água doce (IL).

os corpos pintados Entre os Wajana, prevalece o pensamento de que a humanidade de um corpo não é inata, mas deve ser construída culturalmente, de forma contínua. Através de técnicas e materiais variados são efetivadas mudanças corporais que constituem, fundamentalmente, elaborações que são dotadas de intenção estética, próprias de um embelezamento corporal (tëpetukwai), o qual estaria associado a uma característica cultural e também à saúde e à longevidade (Chapuis, 1998). Essas intervenções são geralmente rotuladas pela antropologia sob a expressão “decoração corporal”, e entre os Wajana ela é efetivada através de pinturas de base vegetal, vermelha do urucu4 e negra do jenipapo,5 de escarificações, de adornos plumários e de outros materiais, entre os quais se destacam as miçangas e a tanga de tecido industrial vermelho. Não devem ser esquecidos os constantes banhos, o corte de cabelos, a depilação de sobrancelhas, a retirada de piolhos. Constituindo parte essencial do processo de constituição da pessoa e se transformando continuamente, esses componentes, essas técnicas e práticas, comunicam diferentes intenções e são impor4

Bixa orellana.

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Genipa americana

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tantes meios de sustentação da identidade Wajana, e indicam o fundamental papel do corpo e da pele nessa sociedade. O corpo humano não detém, contudo, a exclusividade das intervenções dotadas de sentido estético. Essa intenção também pode ser encontrada nas roças, nas aldeias, na casa cerimonial e nos objetos utilizados na vida cotidiana, tais como cestos, remos, bancos, cuias, cabaças e evidentemente em artefatos que comparecem nos momentos rituais, como máscaras, flautas, bancos, recipientes cerâmicos. Humanos e objetos são igualmente decorados porque compartilham uma série de faculdades, entre elas o antropomorfismo, uma vez que os artefatos são compreendidos enquanto seres corporificados, ou melhor, constituem corpos, integrais ou parcelados. Isso significa que é possível reconhecer em objetos rituais e de uso cotidiano um corpo por inteiro ou apenas uma de suas partes, tal como a cabeça, o tronco, os membros ou os olhos. Na configuração parcelada, a identificação do ser representado é conferida pelo “traço definidor” (Velthem, 2003: 306), que vem a ser a materialização do elemento crucial que permite associar um artefato a seu modelo prototípico, permitindo, assim, identificá-lo. Corpos integrais ou divididos, concretizados nos artefatos, delineiam uma visão de mundo específica a partir da qual uma forma aparentemente humana não constitui uma garantia de humanidade (Vilaça, 2005). Segundo esse pressuposto, os artefatos Wajana não detalhariam necessariamente corpos humanos, pois seus modelos são antes a anatomia de animais, de seres arquetípicos ou de sobrenaturais, esses últimos adquirindo, por essas artes, visibilidade e a capacidade de agir. Isso ocorre sobretudo nos momentos rituais, através dos objetos produzidos neste contexto, tais como a máscara olok, que reproduz nos mínimos detalhes o sobrenatural antropomorfo Olokïmë. A essa representação são agregados movimentos, odores, sons, peculiares ao sobrenatural, e é o acúmulo de especificidades que permite ao artefato desencadear os processos metamórficos, fundamentais para o ritual em que é empregado. É evidente que os humanos e os artefatos não estão sozinhos no cosmos Wajana, pois muitos outros elementos também dotados de corpos o povoam: animais, vegetais, sobrenaturais, demiurgos. Um importante componente anatômico, a pele (pïtpë) é compartilhada por todos esses seres, quer sejam humanos ou não, uma vez que é indispensável a qualquer tipo de corpo a posse de um revestimento. A ênfase conferida a este elemento deriva do fato de ele ser, para os Wajana, um elemento mediador, que confirma sua sociabilidade.6 Representa, ademais, um importante meio para o estabelecimento de identidades, operante entre os membros de 6

Ver Chapuis (1998) sobre as funções gerais da pele, as representações associadas e o seu papel entre os Wayana.

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um mesmo domínio e entre os de diferentes domínios. Efetivando-se por intermédio de elementos gráficos e cromáticos que são compreendidos como “pintura corporal”, resulta que os humanos e os demais elementos do cosmos não seriam apenas dotados de peles, mas sim de “peles pintadas”, o paradigma da decoração/ transformação corporal. As peles pintadas dos componentes cosmológicos possuem dois níveis de apreensão, porque cada qual deriva de uma técnica específica. No mais evidente ela é aplicada, como ocorre na pintura corporal dos humanos e em determinados objetos, como os vasilhames cerâmicos. Na outra modalidade, a pintura e o suporte se entrelaçam e se tornam inseparáveis, como se verifica nos artefatos trançados, uma característica igualmente percebida na “ornamentação” dos não humanos.

Figura 2: Abano com pintura entrelaçada (LVV).

Figura 3: Recipiente de cerâmica com pintura aplicada (LVV).

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A pintura corporal dos humanos é aplicada e, portanto, cambiável, pois se adapta às mudanças básicas e polarizadas da vida. Em uma época relativamente recente, essa prática era extremamente marcada, pois no cotidiano os Wajana untavam-se com uma tintura uniforme e vermelha à base de urucu, a qual se contrapunha aos meandros gráficos, produzidos com tinta preta do sumo do jenipapo, e apropriados para os tempos rituais até o presente. Essa alternância identifica os humanos enquanto seres “temporariamente pintados”. Neste caso, a pele permite a construção de uma identidade social e individual que é reforçada justamente pela capacidade que os humanos têm de cambiar a sua estética corporal e, desta forma, se transformar. Uma ornamentação intrínseca, ou seja, uma pintura corporal que, em sua origem, constitui o próprio suporte, a própria pele, representa uma característica dos não humanos. Esse fato indica que esses seres são “permanentemente pintados” porque não possuem meios de modificar sua estrutura epitelial, uma vez que ela denota a sua própria natureza. A pintura corporal, temporária ou permanente, constitui fundamental elemento de identificação. Sua expressividade e sua importância decorrem do fato de estarem intimamente ligadas a uma elaboração cromática. As cores, por seu turno, proporcionam a mais fundamental das ordenações, uma vez que conectam domínios inicialmente desconexos, como humanos, animais, objetos, plantas, sobrenaturais. Neste sentido, a principal função das cores é a de ser um veículo que aguça a percepção de identificação, a qual é necessária para a ordenação cosmológica. Desta forma, são identificados os diferentes seres e domínios cosmológicos, uma vez que cada qual está relacionado a uma configuração específica: unicolor, pontilhada e listrada. Reconhecidas como estéticas, essas configurações são iconográficas porque descrevem com precisão a estética corporal de um ser paradigmático, identificando-o e, paralelamente, ao domínio a ele associado. Uma superfície recoberta uniformemente de pintura representa o “unicolor” (tonophe). O paradigma dessa modalidade é uma pintura de tonalidade vermelho vivo, obtida das sementes de urucu, e constitui a decoração corporal por excelência dos humanos. Essa tintura vegetal, por ser justamente uma elaboração cultural, simboliza a própria condição social do “ser Wajana” e não propriamente do “ser gente”. Esta última condição se estrutura a partir de uma decoração que não é adquirida culturalmente, mas reflete a própria cor da epiderme, a qual permite classificar os humanos em dois grupos abrangentes. Os Wajana e os demais povos indígenas conhecidos são os kuekëkom, pois reconhecem que têm a mesma coloração epitelial. Os que têm peles de outros matizes são identificados como kapekom, uma categoria que é integrada pelos descendentes de europeus e de africanos. 146

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A epiderme do branco europeu e brasileiro é percebida como “embranquecida” (tïkoloke). Dessa mesma tonalidade é julgada a pele dos Wajana depois de prolongada doença, tal como a pele dos adolescentes após o resguardo, o que pode ser um fato ou apenas uma metáfora. A coloração preta da epiderme dos Saamaká, Ndujka, Aluku e dos brasileiros afrodescendentes é identificada como “enegrecida” (talilime). São considerados desta cor os Wajana que viajam expostos ao sol, sem elementos de proteção contra os raios solares. Deve ser sublinhado que não é apenas a epiderme dos Wajana que muda de cor. A própria tintura de urucu sofre alteração de tonalidade e, assim, pode amarelar (takpiletawan), o que constitui um mau presságio – e, por esse motivo não é apreciada –, ou então escurecer e tornar-se castanho-avermelhado (tamalë), um matiz que é extremamente valorizado, pois remete à tonalidade da pele da mulher primordial, criada pelos demiurgos a partir de arumã com casca. Outra forma distintiva se define enquanto uma superfície recoberta por pontos ou “pontilhada” (tïmilike), ou ainda por manchas circulares em tom contrastante. O pontilhado reproduz iconicamente a pelagem da onça-pintada,7 que representa para os Wajana um dos mais significativos animais, devido ao seu tamanho e à sua ferocidade. Essa configuração a representa e, metonimicamente, aos demais seres que com ela convivem nas matas e nos espaços da natureza. Marcas corporais similares, mas que conformam elementos gráficos, constituem atributos de uma categoria de seres de aspecto antropomorfo (iolok), cujos componentes vivem nos confins da floresta e são especialmente associados às práticas xamânicas. Uma superfície que possui riscas ou listras de cores contrastantes constitui o “listrado” (tëpiatse), que se diferencia em composições horizontais (tipkëlelei) e verticais (huuman). Quando são multicores (kinoloimëman) expressam o colorido da pele do peixe pirarara.8 As listras descrevem de modo iconográfico o arco-íris, a manifestação física de uma enguia/serpente sobrenatural, Walamuïme. O listrado encarna este ente específico, e outros sobrenaturais, pois todos comungam das mesmas potencialidades. Em numerosos artefatos podem ser percebidas composições que conjugam cores uniformes e elementos pontilhados e listrados.9 Apresentam-se sob diferentes formas, pois devem se adaptar às técnicas de cada categoria artesanal. A sua 7

Panthera onca.

8

Phractocephalus hemioliopterus.

9

Trata-se de algo semelhante ao que foi referido por Müller, 1990: 233 como “unidades mínimas de significação”.

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principal função estética consiste no preenchimento dos campos vazios, isolados pelo tracejado dos motivos gráficos. Como é possível que a pintura corporal ou a pintura dos artefatos, apresentem concomitantemente todas as unidades mencionadas, evidencia-se um sentido de recapitulação cosmológica que é a essência da arte Wajana, influenciando de alguma forma o seu estilo.

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aspecto uniforme ou conformar padrões iconográficos ou listrados pelo contraste cromático. Com pintura, os homens decoram as rodas de teto, as flechas, os talos de arumã que serão trabalhados na cestaria, as bordunas cerimoniais, os saiotes para máscaras. As mulheres a aplicam no próprio corpo e no de pessoas aparentadas, e ainda nas rodas de teto, na cerâmica, nos bancos cerimoniais e em utensílios de cuia e cabaça, quando empregam tições. Idealmente, a pintura corporal de urucu é suspensa quando os Wajana estão de luto ou doentes, ou por ocasião do nascimento dos filhos e nas fases pós-ritual. A reintrodução da pintura é gradativa e em sua fase inicial recobre apenas os pés e as pernas até os joelhos, depois o tronco e finalmente o corpo todo.

Figura 4: Desenho de pintura corporal (Sipatae).

O revestimento corporal, ou melhor, a pele dos integrantes do cosmos constitui o suporte que revela tanto uma estética atribuída aos humanos e às suas fabricações, como outra, intrínseca, que é peculiar aos demais componentes. Os revestimentos dos humanos e dos não humanos se submetem a procedimentos que propiciam diferentes marcas/pinturas corporais, e, por conseguinte, é através da técnica da pintura que melhor podem ser apreciadas as potencialidades produtivas, destrutivas e também estéticas desses componentes cosmológicos. Entre os Wajana, a mais importante das técnicas transformativas10 dos corpos é a pintura (onoptop), pela diversidade tanto dos pigmentos utilizados como dos suportes em que é aplicada. A pintura é empregada por homens e mulheres, e se define basicamente pela ausência de relevo. O resultado de sua aplicação pode ter 10 Outra técnica é a amarração (tipumuhé), que corresponde ao envolvimento ou entrelaçamento de fios de algodão ou de miçanga; o entalhe (pahié) é representado tanto pelas escarificações corporais como pelas gravuras em madeira ou em outro suporte.

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Figura 5: Pintura de um banco cerimonial (LVV).

Na aplicação da pintura sobre os diferentes suportes,11 homens e mulheres utilizam os dedos e diversos instrumentos. Os dedos proporcionam superfícies uniformes na pintura corporal e na cerâmica, na qual produzem um efeito que se equipararia ao de um “banho de tinta”. Em outros artefatos, sobretudo em flechas e panelas, a superfície pintada é posteriormente arranhada com as unhas, o que 11 Nos últimos anos, o desenho e a pintura sobre papel se tornaram importantes meios de registro e de expressão artística entre os Wajana e os Aparai.

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permite conformar grafismos. Essa modalidade (tëwupkai) apresenta analogias formais com as marcas produzidas pelas garras dos felinos, também designadas por esse termo. Os grafismos produzidos com essa técnica são altamente valorizados, porque são comparáveis a intervenções estéticas produzidas por predadores que teriam executado, com suas garras, desenhos na superfície dos mencionados artefatos. Os instrumentos empregados nas pinturas são variados tipos de pincéis, rígidos e flexíveis. Os primeiros são confeccionados com finas talas de palmeiras providas de pontas de algodão (tiktikmatop) e empregados na pintura de cerâmica e de bancos. Os flexíveis, entalhados em taboca (kulupëetop), são exclusivos da pintura corporal de jenipapo, mas os que são feitos de argila e do cabelo da própria artista (umletpë) permitem um tracejado extremamente fino e se destinam a pintar os vasos de cerâmica e a roda de teto da casa comunitária. Os diferentes pincéis são compreendidos como dotados de atributos especiais porque “fazem grafismos” (miliktop), uma vez que os possuem em si, de forma inerente. Essa característica, aproximada a uma forma de conhecimento, é própria dos pincéis e constitui o elemento que dota esses implementos de ação. Os “saberes” dos pincéis não são indiscriminados, e, assim, os de tala de palmeira possuem/conhecem a decoração dos grandes felinos porque são pontilhadores; os flexíveis têm em si as pinturas corporais da sucuri sobrenatural, porque proporcionam um tracejado fino e acurado, o que representa uma característica dessas pinturas e de sua técnica reprodutiva. Outra técnica para se produzir grafismos é através do fogo e dos tições ardentes, uma decoração que é considerada pintura. Com o primeiro elemento, os homens traçam grafismos em claro-escuro nas varetas de reforço dos cestos cargueiros. Tições ardentes são, entretanto, utilizados para “esfolar” (tïkuihé) cuias e cabaças verdes e assim produzir elementos gráficos contrastados, uma arte exclusivamente feminina. Na pintura, os pigmentos empregados podem ter origem mineral12 ou orgânica. A paleta dos corantes minerais, retirados dos leitos de igarapés, compreende as cores branca, vermelho-castanho, ocre e preto-acinzentado. Para a formação das tintas, os corantes são triturados em uma pedra plana, diluídos com um pouco de água e aplicados sobre diferentes suportes com os referidos pincéis.

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Caolin para o branco, óxidos e hidróxidos de ferro para o vermelho e o ocre e o óxido de manganês para o preto.

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Figura 6: Produção de pigmentos minerais (LVV).

Os pigmentos de origem vegetal fornecem duas colorações básicas, o negro e o vermelho. A tintura negra paradigmática, empregada na pintura corporal e nas hastes das flechas, é tanto originária do jenipapo (kulupë) como do jenipapim (pisusuk).13 O primeiro frutifica na mata e o segundo cresce na beira do rio e é utilizado quando os Wajana não conseguem o jenipapo. Para a obtenção da tinta (kulupë anon), os frutos do jenipapo são ralados e espremidos, e ficam de repouso de um dia para o outro; os do jenipapim são assados em folhas de bananeira e esmagados, misturados com água e postos a decantar. O urucu (onot) constitui o paradigma dos pigmentos vermelhos. É cultivado nos roçados e na periferia das aldeias, e para ser empregado sofre demorado processamento: as sementes são lavadas e fervidas até serem reduzidas a uma pasta que será moldada em forma de um “pão” alongado, posteriormente posto para secar. Para aplicação no corpo humano, o urucu é misturado ao óleo de andiroba ou a outras emulsões, como a gordura derretida do macaco coamba ou do peixe pacu, ou ainda de uma substância extraída do cipó waiali. O uso das diferentes emulsões é decorrência direta de sua disponibilidade e também de uma apreciação olfativa. A pintura de urucu possui nítidos propósitos de afastamento dos 13

Tocoyena formosa.

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odores corporais, considerados desagradáveis e desaconselhados no contato de uma pessoa com os demais membros da comunidade. As relações sociais devem ser idealmente mediadas pelo rescender do cheiro do urucu fresco misturado a uma emulsão odorante, pois esse é o paradigma do aroma apreciado pelos Wajana. A pintura facial é particularmente estruturada e complexa, e possui certa autonomia em relação à pintura do corpo. Além do urucu, são empregadas tinturas variadas, de coloração negra e vermelha de base vegetal, algumas das quais superpostas. Uma se destaca por comportar um elemento oloroso (palili), e em sua composição entram a fuligem recolhida em uma panela de argila, o óleo de andiroba e a seiva do breu de incenso. Outra tinta (sipê) tem coloração avermelhada e é composta de urucu processado, misturado ao óleo de andiroba e à seiva de uma árvore não identificada (alakuhelë ), extremamente odorífera. Mencionou-se anteriormente que a mais elementar identificação corporal é a que considera um aspecto cromático. Enquanto resultado de uma pintura, essa percepção é justamente designada como anon, “tinta”, “cor”, “pigmento”. Esse vocábulo nomeia o resultado de uma manipulação técnica e estética que se traduz em uma superfície uniformemente pintada ou em um grafismo particular ou mesmo em um elenco de grafismos. Executados com pigmentos liquefeitos podem ser visualizados no corpo humano e também em artefatos sem, contudo, representarem um repertório, pois essa noção está vinculada aos sobrenaturais e a outras esferas cosmológicas.14 O termo anon possui outros regimes de percepção, mas todos estão conectados a uma qualidade estética que advém de uma concepção ampla de “pintura corporal”. Assim sendo, a tonalidade da pelagem dos mamíferos e o colorido das plumas das aves amazônicas também são designadas como anon. Muito embora sejam, na atualidade, percebidos como intrinsecamente dotados de pinturas, houve uma época em que esses seres tiveram cores indistintas, ou melhor, eram “descoloridos” (anonpïla). Para adquirirem especificidade, passaram por um processo transformativo, e assim foram pintados ou então se pintaram. guariba, tucano, mandioca e outros seres pintados As narrativas míticas dos Wajana enfatizam que nos tempos primordiais os animais compartilhavam com os humanos uma mesma aparência física. Neste estado, muitos foram pintados pelos demiurgos, como parte do processo de fabricação a que estavam subordinados. O veado e a cotia tiveram apenas as costas untadas 14 Por esse motivo usamos a designação “repertório” para o conjunto de padrões dos sobrenaturais e “elenco” para os padrões empregados pelos Wajana.

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com a tinta vermelha do urucu, mas o macaco guariba foi integralmente “passado no urucu” (onotiau). O macaco coamba, por sua vez, foi inteiramente pintado de negro (kulupeiau) com o sumo extraído do jenipapo. Este é motivo porque esses dois símios15 constituem os arquétipos da dupla cromática vermelho/negro e assim representam o referencial que nomeia uma infinidade de invertebrados e muitas outras coisas, as quais possuem cores que são assimiladas a um ou a outro desses símios.16

Figura 7: Macacos coamba e guariba (Mukaia).

Ao contrário dos mamíferos, as aves não foram pintadas, mas resolveram se pintar sozinhas. Um mito descreve a forma como adquiriram as suas brilhantes cores, estas contidas no sangue do muçum sobrenatural, que é inteiramente pintado com listas multicores por ser a manifestação do arco-íris. Na narrativa mítica,17 o primeiro pássaro que viu o corpo do sobrenatural todo pintado foi o joão-bobo (tutu). Desejoso de ter penas coloridas, convidou os demais para pegarem as tintas e com elas se pintarem: 15 O macaco guariba, mais especificamente guariba-vermelho, pertence ao gênero Alouatta. O macaco coamba (Ateles paniscus) é também conhecido como coatá de cara vermelha ou macaco aranha. 16 Como, por exemplo, a aranha-caranguejeira, que compreende as subespécies referidas como “caranguejeira guariba”, porque é avermelhada, e “caranguejeira coamba”, porque é negra. 17 Ver a versão completa do mito em Velthem (2003: 415-16).

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Eles [os pássaros] começaram bicando o muçum, mas não conseguiram furar. Logo, tucano e arara desistiram. João-bobo continuou. Bicou, bicou, até que furou, espalhando sangue. Ali estavam as tintas de Walamuimë: vermelho do urucu, preto do jenipapo, outras tintas. Tutu pegou urucu bem vermelho, pintou seu penacho. Awök [mutum] passou jenipapo, por isso é todo preto. Akawak [jacu] e markao [inambu] só pintaram com urucu as pernas, que ficaram vermelhas. O urucu de kuiali [arara] era velho, por isso ficou pintada de vermelho-escuro. O de kinolo [arara canindé] amarelou, por isso tem o peito amarelo. Kiapok e këlu [tipos de tucanos] quiseram imitar walamúimë, se pintaram fazendo listas amarelas, vermelhas, pretas (Aimore, 1991).

As cores da plumagem dos pássaros são “desejadas pelos olhos” (ëwumakpe) porque constituem cores que estão em harmonia e assim são agradáveis de serem vistas. Essa mesma conotação é aplicada a pessoas consideradas bonitas e a muitas fabricações humanas, masculinas e femininas, entre as quais os adornos tecidos com miçangas, sobretudo quando associam as cores vermelho-coral e azulcobalto, ressaltando assim o grafismo elaborado. Como narra o mito, desde os tempos primordiais as cores e a técnica da pintura representam o paradigma da diferenciação/decoração corporal, e, por conseguinte, tudo o que não está pintado, também não está decorado, pois está “sem tinta” (anonnumná). Entretanto, segundo as concepções dos Wajana, essa possibilidade é praticamente inexistente, porque todos os componentes do universo possuem cor, a qual se manifesta através do revestimento corpóreo, permitindo assim que todos os seres sejam dotados de alguma forma de pintura corporal. A coloração percebida no revestimento dos diferentes componentes cosmológicos tem como referência as tonalidades fundamentais, citadas em diferentes narrativas míticas. Compreende o vermelho (-pile), o branco (-koloké) e o negro (tariri). Essa trilogia representa, segundo a acepção dos Wajana, os pigmentos mais puros, os que denominamos “cores primárias”, as que não podem ser criadas através de mistura (Cole, 1994: 62). Outros matizes, como o amarelo-alaranjado (tawa), de acordo com a intensidade se aproximam do branco ou do vermelho, resultando no que conhecemos como uma “cor secundária”. A percepção visual das cores primárias destaca um paradigma que é o elemento que contém o tom ideal. A este tom, os Wajana comparam, por aproximação, outros matizes, naturais e industriais, que em conjunto operam de modo classificatório. A coloração branca (tïkoloké) possui como paradigma o caolin e como matizes aproximados: bege, areia, gelo, ocre, amarelo-limão, azul-cerúleo, rosa-claro, verde-claro e também prateado. A cor vermelha (takpile) tem como padrão a tinta de urucu quando fresca, cuja coloração é a da laca chinesa. Os matizes que se aproximam desta cor são: amarelo-ouro, laranja, vermelho-sangue, castanho-avermelhado, 154

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carmim, púrpura, ferrugem, fulvo e também dourado. A coloração negra (taririman) possui como paradigma uma tintura produzida com fuligem, misturada a um mordente. Os matizes conectados são: cinza, marrom, azul-marinho, violeta, roxo, azul rei, azul cobalto, verde escuro e também os metais escuros. O cromatismo também possui uma dimensão individual, e em sua classificação percebe-se que ocorre uma distinção entre as tonalidades industriais e as demais. As primeiras são encontradas nas miçangas de vidro para adornos corporais de homens, mulheres e crianças, tal como nos tecidos para tangas e mosquiteiros. Os diferentes matizes das miçangas possuem uma nomenclatura descritiva, extremamente detalhada. Para a cor azul, por exemplo, existem quinze designações que definem com precisão as suas diferentes tonalidades. A trilogia branco/vermelho/negro é importante para a vida dos Wajana porque representa um código classificador que determina diferentes estados físicos e sociais dos humanos, e igualmente dos não humanos de distintos espaços, tanto terrestres como aquáticos. Essas operações classificatórias têm como base o registro simbólico de cada cor e oscila entre os polos da carência e do excesso. Genericamente indica que o branco está associado à carência e a situações periféricas, o negro ao excesso e ao mundo não social, o vermelho à sociabilidade e à moderação. A trilogia cromática extrapola os âmbitos mais propriamente “decorativos” para se converter em fundamental vetor de identificação cosmológica. Assim sendo, identifica e ao mesmo tempo revela a diferença existente entre os regimes de cheia e vazante apresentados pelas águas de rios e lagos,18 assim como a maior ou menor fertilidade dos solos em relação à agricultura e aos próprios cultivares. Desta forma, para as terras cultiváveis a percepção cromática e o simbolismo atribuído às cores se evidenciam através de uma variação produtiva que distingue os solos amarelados ou brancos (tilótawaman), que são de baixo rendimento, dos avermelhados (tïlópilem) de média produção, e ambos dos solos escuros ou pretos (tïlópumen), que são de alto aproveitamento. Esse mecanismo classificatório, ao operar em muitos domínios, assume um caráter fundamental para a vida dos Wajana, pois a citada trilogia permite identificar ainda cada vegetal e animal comestível, estabelecendo assim os parâmetros para proibições e permissões que são inerentes ao sistema alimentar. Neste sistema, o branco identifica os nutrientes que são propícios a todos, devido aos atributos de escassez que dotam as substâncias desta cor de qualidades neutras e mediadoras. Os alimentos “brancos” são paradigmaticamente representados atra18

Neste regime, por exemplo, as águas rasas do rio são consideradas “brancas”, as águas montantes são “vermelhas” e o rio cheio, no auge do inverno, é percebido como “negro”.

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vés do beiju de mandioca, que nunca cessa inteiramente de ser consumido, e de uma espécie de peixe piaba,19 que representa a primeira proteína ingerida após uma restrição alimentar. Afastando-se desse ideal de neutralidade estão os alimentos considerados vermelhos, como o são muitas frutas e muitos tubérculos, tal como algumas bebidas fermentadas, sobre os quais podem recair interdições. A cor vermelha, ao se conectar especialmente com a humanidade e a sociabilidade, transmite aos elementos comestíveis essas características e assim só se neutralizam quando os comensais estão de posse de todas as prerrogativas sociais. Isso significa que as pessoas estariam igualmente “vermelhas”, simbólica ou efetivamente, pela pintura corporal de urucu. As mulheres são as mais suscetíveis, devido às associações dos alimentos de coloração avermelhada com o sangue menstrual, e sobre elas recaem as principais interdições. Os alimentos negros e os arroxeados, identificados com determinados animais, tais como as antas, as enguias e os macacos, com tubérculos cultivados e também com os remédios industriais escuros, são marcados pelo excesso. Substâncias desta cor são cautelosamente ingeridas porque são objeto de restrições severas e contínuas. Entretanto, no que se refere aos animais, outros fatores, como o aspecto físico e a consistência da carne, também são importantes na determinação do quadro restritivo. Muitos alimentos com essas características são o privilégio de pessoas idosas, sobre as quais recaem poucas interdições. Aos velhos são ainda atribuídas as espécies animais consideradas extremamente “decoradas”, como é o caso do peixe pirarara.20 O sistema que rege as restrições alimentares de uma pessoa é extremamente complexo, pois é diretamente influenciado pela faixa etária, pelos estados físico e social, e também pelas relações de parentesco e de coabitação em uma mesma aldeia. As principais evitações alimentares recaem sobre os animais ingeridos, mas incidem igualmente sobre determinados vegetais, sobretudo os de cor escura. A alimentação está diretamente ligada à noção de pessoa, pois apenas os humanos têm a capacidade de estabelecer critérios sobre o que pode comido, em que momentos e de que forma. Os humanos se contrapõem assim aos animais e sobrenaturais, pois estes se lançam sobre seus alimentos de modo indiscriminado e voraz. Este comportamento seria igualmente perpetrado pelos inimigos, entre os quais se inserem os não índios que, de acordo com as observações dos Wajana, não comem de forma seletiva nem apropriada. 19

O termo ëpi (piaba) designa os remédios ocidentais de cor branca, os únicos apreciados pelos Wajana.

20 Phractocephalus hemioliopterus.

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Entre os cultivares , a mais detalhada classificação é a que recai sobre as raízes da mandioca brava (ulu), das quais se considera, sobretudo, o revestimento interno, pois este possui coloração diferenciada, ao contrário da película externa que é sempre marrom. A casca interna da mandioca é a sua “pele” (pitpë) e ostenta a sua “pintura corporal”, que pode ser branca, vermelha ou negra. Segundo esses critérios, uma espécie de tubérculo, de casca interna rosa forte, está pintada de urucu, mas outra, de cor violeta escuro, estaria pintada com jenipapo, termo que justamente a identifica (kulupë ulu). Devido a esta “pintura ritual”, esse tipo de mandioca é empregado na confecção de bebidas fermentadas, ingeridas em situações ritualizadas ou cerimoniais. Mandiocas e batatas-doces de coloração avermelhada também cambiam a sua “pintura”, pois se tornam brancas ao serem esfoladas, mas enegrecem ao apodrecerem. Algumas das bebidas fermentadas produzidas pelas mulheres wajana com beijus e batatas doces também estão subordinadas à trilogia cromática, o que contribui grandemente para sua apreciação gustativa e social. Uma delas é apreciada como sendo a mais social das bebidas (hakula), por ser esbranquiçada, entretanto a produção de outra bebida (umani) requer que os beijus se recubram de mofo, o qual pode se apresentar enegrecido, quando a bebida é alcunhada de “macaco coamba”, ou então formar um bolor avermelhado que resulta em uma bebida muito apreciada, apelidada de “macaco guariba”. os homens-urucu, passado e presente As primeiras referências sobre os Wajana surgiram no século XVIII. Nesta época, e até o final do XIX, estes índios são designados na Guiana Francesa como Roucouyennes ou Rocoyen, e como Uruguiana, no Brasil. Esses apelativos, seguramente, tiveram origem na característica pintura corporal vermelha à base de urucu, que tanto impressionou missionários, militares, mercadores e cientistas que os contatavam. Entretanto, muitos outros grupos indígenas da área guianense também empregavam uma pintura vermelha similar, mas esta não os identificou como uma marca distintiva. O militar holandês Stedmann [1796] (1972: 209) testemunha a esse respeito, pois menciona que no século XVIII a pintura de urucu era comum a todos os povos indígenas das Guianas, inclusive entre os de língua aruak. As fontes bibliográficas informam que a visão de homens integralmente pintados de vermelho acarretou comentários controversos. Para o citado Stedman, os índios pintados que encontrava tinham “a aparência de lagostas fervidas” (Idem, ibidem). O geógrafo francês Crevaux, entretanto, descreve que a pintura dos Roucouyennes, com os quais se deparou no rio Jari e posteriormente no rio Paru de Leste, em viagens empreendidas entre 1876 e 1879, teria um objetivo embelezador: 157

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A tonalidade da pele [dos Wajana] é marrom-amarelada, como a cor de folhas mortas, o que não é agradável de ver. Tiveram a feliz ideia de se pintarem de um bonito vermelho chamado roucou (urucu) (Idem, 1987: 145).

Em meados do século XX, houve numerosas menções sobre as pinturas corporais vermelhas de urucu, utilizadas pelos índios de fala carib, os Wajana, Aparai, Tiriyó, habitantes da região das Guianas. Entre outros, o chefe da Comissão Demarcadora de Limites, que percorreu o rio Jari entre 1930 e 1940, contatando os Aparai e os Wajana, faz referência em seu relatório ao uso de pinturas de urucu e jenipapo (Aguiar, 1943). Uma descrição mais detalhada, e também romântica, dessa prática pode ser encontrada no Handbook of South American Indians:

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uma cor vermelho-escuro, a mesma coloração do urucu envelhecido (tamalë). Essa tonalidade de vermelho, levemente acastanhada, é a mesma que pode ser observada nos trançados de arumã com casca e descreve a cor da pele da mulher primordial que, como mencionado, foi produzida com essa matéria-prima. Esta coincidência permite que essa tonalidade seja a mais social de todas as cores. Outra constatação ocorreu no âmbito das oficinas de valorização e gestão23 dos conhecimentos dos Wajana e dos Aparai. Os registros gráficos sobre papel, de livre escolha, retratam em geral as pessoas na cor vermelha, indicando a antiga e costumeira pintura à base de urucu.

... os homens carib a cada manhã se lavam e se sentam em suas casas, as mulheres untam com óleo suas cabeleiras, as penteiam e pintam seus corpos de vermelho. (Rause, 1948: 552)

Entre os Wajana e os Aparai21 no Brasil, a pintura de urucu representava uma atividade cotidiana, corriqueira e generalizada, que foi constatada até o final da década de 1970. Em princípios da década seguinte essa prática persistiu, mas foi grandemente nuançada, pois muitas pessoas apresentavam apenas a pintura das pernas, o que indicava também que principiavam o levantamento das restrições relativas ao luto ou à reclusão pubertária. A década posterior foi de grande transformação cultural para os habitantes do rio Paru de Leste com a chegada de famílias indígenas evangelizadas, provindas do Suriname. Suas lideranças exerceram forte pressão para que os Wajana e os Aparai do rio Paru de Leste mudassem as suas formas de vida em comunidade e seus hábitos individuais. Muito embora não se pintem mais com urucu, o que é explicado por alguns indivíduos como sendo decorrente tanto das sucessivas mortes nas famílias como do encadeamento de nascimentos dos filhos e da introdução de vestuário, a cor vermelha, simbolizada pela pintura de urucu, não perdeu completamente as suas funções originais. Observou-se, recentemente, que esta cor permanece como a expressão de uma identificação que particulariza os Wajana, pois nas aldeias as meninas continuam a brincar com o fruto da mungubeira22 (kunan), que quando maduro adquire 21 Os Aparai mantêm estreitas relações de convivência há mais de um século com os Wajana, o que resultou em múltiplos casamentos e em uma coexistência pacífica. Esse longo e estreito convívio propiciou a troca de muitos elementos culturais entre esses povos indígenas, gerando certa homogeneidade cultural, mas sem eliminar totalmente a especificidade de cada etnia. Este é o motivo pelo qual não é licito afirmar que os Aparai possuem a mesma percepção dos Wajana sobre a corporalidade e as pinturas corporais. Esse é o motivo de não serem mencionados neste artigo. 22 Pseudobombax munguba.

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Figuras 8 e 9: Desenhos produzidos durante as oficinas (Sapotoli/Anakare).

A permanência da pintura corporal enquanto uma forma de expressão artística e étnica entre os povos indígenas no Brasil está sob constante ameaça. O incremento das visitas aos centros urbanos, a introdução do vestiário, a educação escolar e a ação missionária, que busca desestruturar a estética corporal dos ameríndios, constituem alguns dos fatores que acarretam a perda das condições indispensáveis para a sua significação e transmissão. Entretanto, deve ser considerado que a atual posição dos índios no Brasil é delineada a partir de várias opções estratégicas (Carneiro da Cunha, 2012). Neste quadro, a estruturação da estética corporal, enquanto significativo elemento de distinção pode vir a ser alterada, reforçada, construída, em função de situações em que vai adquirir duplo sentido, interno e 23 De 2005 a 2008, esteve em curso nas aldeias do rio Paru de Leste o Programa de Valorização Cultural do Tumucumaque Leste em associação com o Iepé – Instituto de Pesquisa e Formação Indígena. A partir de 2009, as oficinas de registro, documentação e gestão dos patrimônios culturais, destinadas aos pesquisadores indígenas, passaram a ser desenvolvidas no quadro do Programa de Documentação de Línguas e Culturas Indígenas, coordenado pelo Museu do Índio – FUNAI.

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externo (Idem, ibidem: 121). Em outra perspectiva é reconhecido que a manutenção da pintura corporal, em padrões tradicionais, depende muito da estabilidade social, territorial e ambiental de cada etnia. Esta é a condição que garante a preservação do sentido interno e das dinâmicas de comunicação e experimentação desta prática que é milenar na Amazônia, como atestam os achados arqueológicos na ilha do Marajó e no Estado do Amapá. referências bibliográficas AGUIAR, Brás Dias. Nas fronteiras da Venezuela e Guianas Britânica e Neerlandesa. Rio de Janeiro: Serviço gráfico do IBGE, 1943. BARCELOS NETO, Aristóteles. Apapaatai. Rituais de máscaras no Alto Xingu. São Paulo:

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Arte gráfica Asuriní do Xingu: Corpo, mito e pensamento Regina Polo Müller

A ornamentação corporal dos Asuriní do Xingu é abordada neste trabalho com o objetivo de se discutirem questões propostas para a realização do Simpósio “Xamanismo, grafismo e figuração”, particularmente as relações entre o grafismo e a escrita e entre abstração e figuração nas artes visuais de sociedades indígenas na Amazônia. O estudo do sistema de arte gráfica Asuriní do Xingu, cujos desenhos geométricos são aplicados no corpo humano e nos objetos (Müller, 1993), é retomado em sua relação com a mitologia e com certas categorias do pensamento, através do cotejamento entre este sistema expressivo e a performance ritual. Examinam-se o corpo decorado com desenhos geométricos, de uso cotidiano e ritual, e o corpo todo pintado de preto, negação de seu caráter humano, por ocasião do ritual de separação entre vivos e mortos, o Turé (ibidem). Com base no estudo sobre a mitologia, a performance ritual e o sistema de arte gráfica Asuriní, lança-se a hipótese de que certa relação pode ser estabelecida entre a abstração do grafismo no corpo decorado com desenhos geométricos e a figuração no desempenho performático do corpo decorado com a pintura ajemo’ona (corpo todo preto). Categorias de pensamento e princípios cosmológicos estarão relacionados a escolhas estéticas destes sistemas expressivos considerados em contexto, como o cotidiano e o ritual. Demonstra-se, por um lado, como a aplicação do desenho abstrato e geométrico enfatiza/realiza a condição humana e, por outro, de que forma a figuração do corpo, todo de preto e decorado com penugem de gavião, promove a incorporação de seres míticos e sobrenaturais. Receber esta ornamentação corporal, em rituais cosmogônicos e xamanísticos, “... exige muita concentração. Pode-se ter tontura e até ficar doente, sinal deste contato perigoso” (Müller, 1993: 111). 163

arte gráfica asuriní do xingu

regina polo müller

No caso da pintura corporal Asuriní, temos então como eficácia simbólica similar o corpo todo pintado de preto (ajemo’ona), cuja aplicação da tinta de jenipapo não respeita os limites formais que distinguem os gêneros e marcam a anatomia humana. Trata-se aqui da “roupagem liminar” do estado de incorporação do personagem Kavara, cujo mito traz a noção da divisão do eu, causada pela morte. A pintura do corpo todo preto, por sua vez, contrasta com a pintura de desenhos geométricos, da qual a aquisição pela humanidade se dá através de outro ser mitológico, Anhyngakwasiat, que traz a noção de multiplicidade.

Figura 1: Pintura com desenhos geométricos, motivo tembekwareropitá, “detalhe do enfeite labial”, 1982 (foto Renato Delarole).

Antes de mais nada, recorro às reflexões de Lagrou a respeito das “... manifestações expressivas nativas (que) demonstram que a ‘eficácia da arte’ inclui mais que forma, mobilizando uma capacidade semiótica ou comunicativa específica, assim como uma capacidade de agência, pois tanto quanto expressam, tintas, pinturas e objetos agem sobre a realidade de maneiras muito específicas que precisam ser analisadas em contexto” (2005: 73). Para esta autora, “o que caracteriza a pintura corporal e facial ritualmente mais eficaz e, portanto, mais apreciada no ritual de passagem de meninos e meninas Kaxinawa é sua qualidade de ser mal em vez de bem-feita: as linhas grossas aplicadas com os dedos ou sabugos de milho, com rapidez e pouca precisão, permitem uma permeabilidade maior da pele à ação ritual” (idem: ibidem), constituindo, desse modo, a “roupagem” liminar dos neófitos por causa de sua suscetibilidade a processos de transformação. 164

Figura 2: A dupla de kavaryva/boakara no ritual das flautas Turé, 1978 (foto Renato Delarole).

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arte gráfica asuriní do xingu

A pintura (e a tatuagem) atual dos humanos com desenhos geométricos distingue gênero e idade. Reafirma, desse modo, a natureza humana do suporte e realiza o que Lévi-Strauss (1975) chamou de “existência definitiva adquirida pela integração entre elemento plástico e elemento gráfico”, do mesmo modo como a decoração da cerâmica a realiza, unindo ornato e função utilitária. A aplicação dos desenhos geométricos no vaso cerâmico obedece aos limites que identificam sua forma (base, corpo, gargalo), que, por sua vez, se relaciona à sua função (cozinhar, transportar e armazenar alimentos).

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No corpo masculino, a aplicação da pintura obedece a uma divisão horizontal, através de um desenho que une os ombros, nos quais é aplicado outro desenho, ovalado, distintivo do gênero masculino e relacionado à atividade de guerreiro. No corpo feminino, a aplicação obedece a uma divisão vertical, através de um desenho que vai da altura dos seios ao púbis.

Figura 3: Vasilha cerâmica utilizada para transporte e depósito de água, motivo tayngava (foto Wagner Souza e Silva).

Figura 4: Vasilha cerâmica utilizada para servir alimento, motivo tayngava, no corpo da peça, e bauré/“pelote do mingau de milho” na borda (foto Wagner Souza e Silva).

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Figura 5: Pintura masculina com desenhos geométricos, motivo ehiraimbava/favo de mel no corpo e tayngava no desenho ovalar dos ombros, 1979 (foto Renato Delarole).

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arte gráfica asuriní do xingu

Figura 6: Pintura feminina com desenhos geométricos, motivo tayngava, 1979 (foto Renato Delarole).

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regina polo müller

Figura 7: Meninas com motivo de pintura juaketé, 1978 (foto Renato Delarole).

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Os desenhos da tatuagem1 distinguem idade, pois há uma sequência obedecida segundo este critério. Na tatuagem das mulheres, verifica-se a seguinte ordem, nas subsequentes ocasiões rituais em que são tatuadas: mãos, ventre, braços, rosto. Na decoração do corpo humano, pode ser usado qualquer motivo de desenho aplicado na cerâmica, o campo mais variado de formas e padrões decorativos utilizado. O padrão juaketé, entretanto, é o único usado com exclusividade na pintura corporal feminina. Neste padrão, cujo nome se traduz por “pintura de verdade”, a forma é parte de sua identificação e domina, portanto, o conteúdo. O desenho subordina-se à forma do corpo. Segundo Lévi-Strauss, temos, neste caso, que “a estrutura modifica a decoração, mas esta é a causa final daquela”, “a decoração e a forma não podem ser, nem física nem socialmente, dissociadas” e, ainda, que “a decoração é concebida para o rosto (leia-se corpo), mas o próprio rosto (idem) não existe se não por ele: a dualidade é em definitivo a do ator e de seu papel...”, (apud Müller, 1993: 229). Os demais desenhos se amoldam à forma do suporte, sem que sejam alteradas suas características formais, identificadas em qualquer suporte. O motivo juaketé, por sua vez, só se realiza na forma do corpo humano. O círculo de onde partem as linhas e os losangos que cobrem o tronco e as coxas é aplicado sobre a articulação das pernas ao tronco. O fundo da panela desloca-se no corpo para o círculo da articulação dos membros ao corpo, distinguindo a forma do objeto (vasilha de cerâmica) da forma humana. Juaketé segue o padrão tamakyjuak (losango), cuja tradução é “pintura de perna” (tamaky = perna, canela; juak = pintura). Este padrão é usado preferencialmente na perna de baixo do joelho até o tornozelo. Nesta parte do corpo as meninas treinam frequentemente as técnicas da pintura. O padrão “pintura de perna” é próprio dessa parte do corpo, e pela analogia entre a forma deste e da panela de cerâmica, arredondada, é transposta para o objeto, obedecendo à mesma regra de divisão do espaço em superfície curva. No corpo como um todo, a duplicação de padrão juaketé a partir dos dois círculos na articulação coxa-tronco segue a anatomia do corpo, dividindo-o em dois, em dois sentidos: duas pernas e duas partes do corpo, membros inferiores / tronco.

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Realizada no ritual das flautas Turé, de separação entre vivos e mortos, e de celebração da guerra, quando os matadores são tatuados. As mulheres também são tatuadas nesta ocasião, acompanhando o rito de escarificação do guerreiro.

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Figura 8: Motivo de pintura juaketé, 1979 (foto Renato Delarole).

A ornamentação do corpo com desenho geométrico, além de poder expressar um conteúdo relacionado à categorização social e outro relacionado à noção de máscara, isto é, a de indivíduo biológico e personagem social, como sugerido por Lévi-Strauss (apud Müller, 1993: 230), possui também outros sentidos, tendo em vista que o elemento gráfico é realizado em outras formas além de no corpo e que não há dois estilos para diferentes suportes. Não se pinta apenas o corpo, mas os objetos diversos da cultura material. E em todos eles o desenho único é abstrato, decorativo, mas igualmente simbólico, ou seja, traduz noções básicas do pensamento, cujo conteúdo se encontra na própria forma do desenho e na tendência do estilo. Neste sentido, tratei a arte gráfica Asuriní como “modelo reduzido”, uma forma sintética da visão de mundo, de conhecimento, onde a metáfora está na própria estrutura formal, no estilo da arte visual (ibidem). Para definir características formais do desenho Asuriní, destaquei, antes de tudo, princípios de ordenamento do espaço para entendê-las através da relação entre percepção visual e processo cognitivo. Desse modo, demonstrei que a geometrização infinita do espaço corresponde a um modo de percepção visual totalizante: a técnica do negativo/positivo encontrada na maioria dos padrões, combinada às outras técnicas, revela a maneira pela qual se percebe uma realidade visual. O claro-escuro e o fundo e superfície conformam imagens.2 Por exemplo, 2

Neste sentido, encontramos uma grande proximidade entre os Kaxinawa e os Asuriní no que diz respeito à relação entre processos cognitivos e características estilísticas presentes no grafismo (ver Müller, 1990 ( 1993); Lagrou, 1991, 1998, 2007 (ver Lagrou neste volume).

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os Asuriní identificam um conjunto de constelações pela imagem de uma onça atacando um veado. Entretanto, não são os pontos luminosos que delineiam as figuras, mas sim os espaços negros entre eles, como os Asuriní nos ensinam a ver. A geometrização do infinito através de formas abstratas (cujos nomes se referem aos três domínios cosmológicos) e a totalização do espaço como modo de percepção visual particular são tendências que definem o desenho. Estas, por sua vez, têm correspondência com um princípio estruturante da cosmologia Asuriní. Relacionando percepção visual e princípios do entendimento na arte gráfica Asuriní, pode-se dizer que a geometrização infinita do espaço mistura domínios cósmicos através das abstrações visuais com conteúdo simbólico e referentes do(s) mundo(s) que os cerca(m), como se, por exemplo, a mata e seus seres fossem vistos através de formas ligadas ao sobrenatural (as variações “cangote de onça” e “patas de jabuti” seguem o padrão tayngava, nome da figura antropomórfica usada nos rituais xamanísticos). A “mistura” ou “sobreposição” de diversos domínios participam do cotidiano, e os xamãs os visitam e se transformam nessas criaturas. Sendo assim, diferentes domínios cósmicos se sobrepõem através da percepção visual de um mundo geometrizado em abstrações formais que os misturam para separá-los novamente, numa classificação conforme a nomenclatura dada (nomes ligados à natureza, à cultura e ao sobrenatural e relacionados às categorias formais da arte gráfica, como padrão, variação do padrão e desenho). A inter-relação dos domínios cosmológicos no desenho geométrico corresponde à estrutura formal desse sistema visual: o padrão, entendido no sentido de regra formal, corresponde ao sobrenatural, e a variação, realizada segundo este padrão, se refere à natureza e aos homens (à cultura), domínios submetidos a uma relação com o mundo sobrenatural. Isto é, a regra formal das variações cujos nomes se referem a animais, plantas, artefatos e grafismos é ditada pelo padrão tayngava – ângulo de 90º –, cujo referente é um elemento simbólico ligado ao sobrenatural. Os padrões são noções abstratas, e sua realização concreta se dá através dos desenhos nos objetos e no corpo. O conteúdo semântico das variações de um padrão, o seu nome a partir de um referente do mundo real, está relacionado aos domínios da natureza e da produção cultural. Do padrão tayngava temos, por exemplo, o motivo “pata de jabuti”, ou o motivo do enfeite labial: trata-se de variações da “grega”, forma básica da maioria dos desenhos Asuriní. Os demais padrões possuem poucas variações, como o tamakyjuak (losangular) (tamakyjuagí, mytupepá). Às vezes, as variações de um padrão apresentam mínimas diferenças morfológicas, como o kwasiarapara (diagonal). Assim, a forma tayngava tem preponderância sobre as outras no sentido estatístico e semântico; cobre categorias como 172

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padrão, variação e desenho e natureza/sobrenatural/cultura. Isto lhe dá destaque na estrutura formal dos desenhos: o “padrão”, correspondente ao sobrenatural, é eixo determinante da realização dos desenhos com vários significados relacionados à natureza e à cultura; a “variação”, correspondente ao nível do conteúdo, faz referência aos três domínios cosmológicos; e “desenho” corresponde ao produto final realizado concretamente através dos suportes.

Figura 9: Vasilha de cerâmica utilizada para depósito de mingau e mel, motivo tayngava no corpo e base da peça (foto Renato Delarole).

A preponderância formal do tayngava está relacionada à importância da noção que o elemento básico deste padrão representa e que dá nome a ele: a figura antropomórfica, objeto ritual xamanístico cujo nome é traduzido como “imagem humana” (t = possuidor humano + ayng = imagem + av (a) = sufixo formador de nome de circunstância). O traço mínimo do padrão tayngava pode ser considerado o braço-perna desta figura. Através dela se consubstancia o princípio vital, ynga, que os xamãs transmitem dos espíritos aos pacientes. Assim, para além de uma representação, a própria imagem se constitui no princípio que define humanos e outros seres viventes, isto é, os que possuem a substância ynga. Vemos deste modo que, para os Asuriní, a imagem é constitutiva da existência dos seres. Outro aspecto formal da estrutura do desenho Asuriní e deste padrão tayngava, em particular, deve ser notado como princípio ordenador, ao lado da geometrização infinita e da totalização do espaço. Este, como vimos, está relacionado à 173

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mistura e à separação de esferas cósmicas no pensamento Asuriní. O aspecto formal abordado a seguir se relaciona com a noção mais ampla de diferente e igual, variação e repetição. Trata-se das duas orientações formais básicas nos desenhos que desenvolvem o padrão tayngava: 1 – Assimetria de desenhos que podem ser executados livre e infinitamente, variando a unidade elementar do padrão (pela técnica que chamamos de extensão), a maioria dos casos com as criações individuais. (Figura 3) 2 – Simetria de desenhos que repetem módulos (termo que designa a forma mais codificada e mais tradicional da arte gráfica Asuriní), elementos isoláveis do sistema (Figuras 4, 6 e 9). Sua execução parece exigir maior perícia da autora, pela geometrização simétrica exata da área a ser decorada, isto é, a repetição da mesma forma até preencher totalmente a área.

A primeira orientação é de variação, diferenciação, com a unidade elementar se apresentando de diferentes maneiras. A segunda é repetição, igualdade, a unidade elementar se apresentando a mesma. Polissemia, no primeiro caso, e paráfrase, no segundo. Além disso, na variação, a unidade é sempre a mesma, e na repetição, o segundo é o outro: mais de uma unidade são necessárias para se comporem igualdades. Temos assim, no desenho Asuriní, simetria e assimetria, o jogo de relação entre o igual e o diferente, presente em outros sistemas cognitivos da cultura, como a cosmologia, o ritual e a mitologia. Procurei demonstrar, portanto, neste estudo, que entre os Asuriní encontra-se no próprio estilo de técnica do desenho geométrico o “conceito visual” (Arnheim, 1980) da noção de representação, que é identificada através da compreensão da cosmologia e dos rituais xamanísticos. Tanto a arte gráfica como a ação ritual foram analisadas enquanto discursos não verbais de modo a acessar o que chamei de materialidade ou marcas formais de uma discursividade que é processual e possível de ser contextualizada, para além de relações estruturais que uma análise semiótica poderia estabelecer. Enquanto discursos, pude dar conta de processo e contextualização para detectar princípios organizacionais do que chamo aqui de estilo e técnica. Lançando mão também, a seguir, da análise da narrativa mítica, verificaremos propriedades como a posposição e a junção das informações no texto mítico, ou seja, concomitância de sentidos e não causalidade e hierarquização. Este princípio corresponde à noção de par e de concomitância de estados de alteridade, detectadas em outras manifestações do pensamento Asuriní. Na mitologia Asuriní, os humanos recebem o desenho de Anhyngakwasiat, um ser antropomórfico cuja pintura do corpo com desenhos geométricos não obedece às regras de preenchimento das partes do corpo que distinguem gênero 174

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e anatomia humana. Como uma colcha de retalho, todo o corpo é pintado sem se respeitarem os limites que dividem tronco, mãos, pernas e pés, como é a regra, cobrindo todas as partes com vários padrões. Assim é descrito o ser que Anhynhavuí, um jovem, encontra na mata ao perambular em sua atividade de caça. mito do desenho Anhyngavuí foi caçar, ficou na espera, de manhãzinha. Quando voltou, viu Anhyngakwasiat. Quando chegou em casa, perguntou a sua mãe: “O que eu vi? É bonito.” A mãe respondeu: “É seu tio (tutyra/irmão da mãe).” Anhyngavuí foi caçar veado, ficou procurando, matou e chamou Anhyngakwasiat. Perguntou à mãe como devia fazer para chamar o tio. Ela disse que deveria falar do desenho que possui na nádega. Imitando o veado, Anhyngavuí falou do desenho, chamando-o. Anhyngakwasiat é bravo, quis brigar. Anhyngavuí pôs o veado morto no caminho. Anhyngakwasiat chegou e, enquanto brigava com o veado morto, ficou parado (assim Anhyngavuí teve tempo para observar os desenhos de seu corpo). Anhyngakwasiat bateu no veado morto com um grande pau. Anhyngavuí ficou atrás de uma árvore olhando os desenhos distribuídos pelas diferentes partes do corpo de Anhyngakwasiat: kwasiarapara, tayngajovaava, ypiasinga, tembekwareropitá, uikwasiaroho, gapusiare, já’éakynga, jaetitarendí, tayngaveté, tayngavapyka, ajavuiaky, kaisingirakwara, akaravokirerajoaava, ipiaondí, ipiaonô. A mãe de Anhyngavuí lhe disse para preparar as flechas para fazer o trançado com amambai e akaravô (material vegetal utilizado no trançado). Anhyngavuí matou veado, pôs no caminho, levou a flecha. Anhyngakwasiat veio novamente, bateu com um pau no veado morto. Enquanto isso, Anhyngavuí fez o trançado na flecha olhando os desenhos no corpo de Anhyngakwasiat. Este foi embora, e Anhyngavuí voltou para casa e disse que já havia aprendido ikwasiat (desenho). Fez um desenho de cada nas flechas que levara. Fez tayngava também. Depois, foi novamente matar um veado e chamou Anhyngakwasiat. Fez então o trançado do arco. Anhyngavuí ensinou o trançado com desenho aos que já morreram (bava), e estes ensinaram de pai para filho. Até hoje, um homem faz filho e quando está maior ensina também. Anhynga é dono do desenho. Ensinou também fazer biakwasiat (esteira com desenho). Agora sabemos fazer tayngava na biaava (esteira), no jandiru (porta-óleo de coco), sabemos fazer desenho com tinta de jenipapo. Bava (mortos) faziam antigamente e ensinaram, por isso até hoje não perdeu.

Neste mito, os desenhos cobrem o corpo de um ancestral mitológico e foram reproduzidos pelo outro no trançado, sendo os dois ancestrais identificados com um sobrenatural do cosmos Asuriní atual, habitante do céu que fica acima da aldeia do mundo dos humanos, o anhynga. Este termo se refere a outro personagem mitológico, noção relacionada à divisão do eu (a pessoa em pedaços), causada pela morte (mito do kavara, apresentado a seguir). O mito do desenho e o mito do kavara, quando considerados em conjunto, tratam da relação entre representação (o desenho geométrico no corpo do anhynga) e a constituição do ser (unidade/ 175

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divisão, kavara/anhynga), como já demonstrei anteriormente e reproduzo abaixo (Müller: 1993). Neste trabalho, acrescentei, como anunciado na introdução, outro par: pintura do corpo todo preto/pintura corporal com desenho geométrico. No mito do desenho, a escolha sobre a classe de espírito que possui o desenho e o transmite aos humanos esclarece a relação humanos-espíritos e a noção de representação no pensamento Asuriní. Trata-se de uma classe de espírito – os anhynga – identificada com as noções de divisão do eu e de multiplicidade, de um lado e de outro, com a animalidade (os anhynga se metamorfoseiam em animais para atacar os humanos) e a morte. Esta classe de espíritos está associada à morte na atualidade (os anhynga relacionados aos mortos podem vir buscar os vivos e levá-los consigo) e no tempo mítico (Anhyngavuí ensinou o desenho aos Asuriní que hoje estão mortos, os bava). Bava são humanos (avá) que morreram, isto é, trata-se de um conceito que define o estatuto do humano que morreu, ênfase sendo dada à condição de exvivo, enquanto existência passada de humano. Não se trata de um morto atual, parte da pessoa que sobrevive à morte e coexiste com outras partes do eu ou com os vivos. Bava é uma identidade autônoma correspondente à noção de antepassado. Pertencem ao domínio da morte (contexto dos anhynga), mas não são mortos atuais, relacionam-se à morte passada. Associam-se, nesta escolha do mito sobre quem possui o desenho e a quem o transmite, espírito e morto, duas instâncias do ser que se opõem à de humano (avá), apresentando em comum certas características: existem em esferas cósmicas distintas daquela habitada pelos humanos e não possuem existência real. São duas categorias relacionadas à ausência. O antepassado de quem os humanos recebem o desenho não é um avá que se torna espírito (como os espíritos-xamãs primordiais, presentes nos rituais) nem um avá que era animal e hoje é espírito-animal (também nos rituais xamanísticos). Não é um ancestral nem um herói cultural que continua humano, mas não convive com os avá atuais, isto é, um maíra. Este último pertence ao passado mítico e ao futuro dos xamãs.3 Os anhynga enquanto categoria são tudo isso ao mesmo tempo: o ancestral, herói cultural que ensinou o desenho, animais-espíritos, forma em que se metamorfoseiam para atacar os humanos, espíritos que vivem na mesma esfera cósmica dos espíritos-xamãs primordiais (no céu acima de nós, com os espíritos apykwara e karovara). Anhynga é uma noção dupla: a de multiplicidade e ausência, conco3

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mitantemente à de divisão e presença (das partes do corpo-coração, sangue, braço, fígado, do mito do kavara (resumido em seguida) e dos desenhos cobrindo as partes do corpo, no mito do desenho). Na multiplicidade, são vários os inteiros, e na divisão são várias as partes de um inteiro. Quanto à ausência, a noção de anhynga está associada à morte e à espiritualidade, e quanto à presença, à constituição da unidade no corpo do ser mitológico ancestral. Entre os dois pares de termos, ausência e presença, divisão e multiplicidade, não há oposição. O conceito de anhynga recobre todas estas noções, e, como vimos, sua construção se realiza na intersecção dos dois textos míticos. Não há oposição, mas uma tensão que constrói a unidade. A tensão une as partes: no corpo do anhynga (Anhyngakwasiat) não há unidade, há junção de partes, mas por outro lado há um corpo. Tensão entre unidade e divisão. E a tensão aparece na construção da unidade através da representação: com o desenho, o anhynga existe como unidade. Como já afirmei acima, a forma tayngava do desenho geométrico Asuriní traduz a noção de constituição do ser pela imagem e em relação aos humanos, a noção de que a imagem é parte constitutiva do ser uno/vivente, lugar do princípio vital. Sobre a relação entre a imagem elementar (a figura antropomórfica) e a “grega” (ângulo de 90º, o braço/perna do padrão tayngava), pode-se dizer que esta forma geométrica que traduz uma proposta abstrata torna a própria forma visual parte genuína de um “conceito visual” (Arnheim, 1980: 134-146). Além disso, se na pintura corporal com desenhos geométricos o que temos são abstrações, no caso do corpo todo pintado de preto – investidura do personagem mitológico, ou seja, um corpo em ação performática –, o que temos é uma (re)presentação figurativa. mito do kavara Kavaryma é avá (humano). Ele e seu companheiro vão à mata e são atacados por um inimigo (tapy’ya). O companheiro morreu, e Kavaryma, sobrevivente, voltou à aldeia. Neste retorno, foi perseguido pelo anhynga do companheiro: pedaços do corpo, como fígado, coração, braço, perna, sangue. Kavaryma e os pedaços do morto chegam à aldeia, e se realiza, então, uma festa na qual cantam sobre o braço do morto. O sapo (kururu) é o kavaryva (função ritual) que canta, como Kavaryma. Cantam a noite toda, e de manhã os anhynga vão embora. A esposa do morto fala seu nome. Por isso o anhynga dele volta e a leva com ele. Kavaryma fica. Hoje é Kavara.

Após a morte, os xamãs passam a viver no lugar onde a água grande se encontra com o céu e onde vivem os maíra, tornando-se um deles.

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No ritual cosmogônico das flautas turé, os personagens dos scripts dos mitos de origem, incorporados na ação performática, desenvolvida pelas danças e cerimônias, são o morto e o matador. A dança no pátio externo em frente à casa comunal onde estão enterrados os mortos, aos quais este ritual é dedicado, consiste na coreografia de um grupo de tocadores de flauta, em linha e acompanhados por mulheres, que compreende evoluções num cortejo circular, no qual de quando em vez se destaca um casal solista. Os homens se reúnem, primeiramente, dentro da casa, onde tocam os instrumentos a fim de, em seguida, saírem da casa para o pátio e dançarem com as mulheres acompanhantes e demais participantes da comunidade, outras mulheres e crianças que se juntam às principais parceiras dos tocadores. Todos os tocadores desempenham a função de executar a música (tocando e dançando) que, juntamente com o choro ritual, afasta os mortos para sempre da vida dos vivos, garantindo a ordem cósmica de separação e convivência entre seres diferentes. Após um período que pode levar meses, em que esta dança é realizada, o rito dos kavaryva finaliza um ciclo que compreende ainda a tatuagem dos guerreiros, a iniciação dos jovens e a celebração do milho. Desenvolvido no pátio, entre a casa dos visitantes e a casa comunal, um cortejo é liderado por dois indivíduos chamados boakara (guerreiros) e tocadores da flauta turé, os quais são investidos da função de kavaryva, isto é, incorporam Kavara, o sobrevivente, o companheiro do morto no mito. A ornamentação da pintura ajemo’ona (corpo todo pintado de preto) com penugem de gavião na cabeça, ombros e perna, e o arco e flecha que levam nas mãos sintetizam esta dupla incorporação de guerreiro/matador e vítima/morto (Figura 2). Atrás dos kavaryva/boakara seguem as kavaryvandara, mulheres no papel de companheira do kavaryva, as quais também recebem a mesma ornamentação. O cortejo atravessa o pátio e entra na casa comunal. Os kavaryva lideram então o canto/a dança sobre as sepulturas, que consiste em rodear as mesmas em posição de cócoras, assim como fizeram os sapos e jabutis no ritual primordial do Turé. Na interpretação do mito e da ação ritual, pode-se dizer que Kavaryma, o sobrevivente, se identifica com o morto. Ele e o companheiro são dois aspectos do eu duplo atualizado nos dois kavaryva da ação ritual (Figura 2). O sobrevivente é a unidade, o outro, o eu-dividido, a dissolução pela morte, o anhynga. Kavaryma e o companheiro são também, respectivamente, o matador (o guerreiro boakara) e o morto. Figura 10: Kavaryvandara, companheira do kavaryva, no ritual Turé, 1978 (foto Renato Delarole).

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Além disso, pode-se dizer que o canto do sobrevivente, sobre a parte do morto, garante a própria unidade do eu, separando os dois domínios: vida e morte, vivos e mortos. O canto para afastar os anhynga deve ser feito para que estes não levem os vivos consigo, como o anhynga, companheiro de Kavaryma, fez com a esposa. Kavaryma, no tempo mítico,4 Kavara no ritual que atualiza o mito, pertence à aldeia dos vivos e sua função é cantar os mortos, através dos kavaryva, “os que animam kavara”, representante do morto. O cortejo liderado pelo personagem/papel ritual do kavaryva – em dupla e levando a flauta e o arco e flecha –, que se inicia na casa dos visitantes, dirige-se à casa comunal e retorna à casa dos visitantes, pode ser interpretado, portanto, como a transmutação simbólica do guerreiro (o matador) em representante do morto (o sobrevivente Kavara), sintetizando, na ação performática, um princípio da cosmologia e da ontologia Asuriní vivenciado no ritual do Turé. O guerreiro é o outro lado da moeda do duplo matador/morto: o guerreiro é tatuado, e o morto é chorado. A tatuagem separa substancialmente o matador da vítima, através da extração do sangue de seu corpo, e o choro ritual, sobre a sepultura, separa cosmicamente o morto do vivo. Retomando a hipótese inicial, tentei demonstrar que no caso da abstração do grafismo no corpo decorado, reafirmando a natureza humana do suporte, temos que a aplicação do desenho sobre diferentes superfícies e formas é o exercício expressivo da noção de imagem como constitutiva do ser, como demonstra o estudo do padrão “tayngava”. No caso do desempenho performático do corpo decorado com a pintura ajemo’ona (corpo todo preto) e em movimento pelos espaços cósmicos do ritual, temos que o exercício expressivo é a figuração de Kavara, experiência performática de negação da condição do ser humano, vivente e uno, e, ao mesmo tempo, de investidura da condição mítica e sobrenatural. referências bibliográficas ARNHEIM, Rudolf. “Arte e percepção visual, uma psicologia da visão criadora”. São Paulo:

Edusp, 1980. LAGROU, Els. “L’art des indiens du Brésil. Alterité, “authenticité” et “agentivité”. In: Brésil Indien, les arts des amérindiens du Brésil. Paris: Réunion des Musées Nationaux, 2005. ______. A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). Rio de Janeiro: Topbooks, 2007. MÜLLER, Regina Polo. Os Asuriní do Xingu: história e arte. Campinas: Editora da Unicamp, 2ª edição, 1993 [1990]. 4

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O trançado, a música e as serpentes da transformação no Alto Xingu Aristóteles Barcelos Neto

Um considerável corpus de mitos amazônicos relata como uma série de objetos e conhecimentos usados pelos humanos tem sua origem em relações predatórias, ou não, com serpentes. Cestos e canções estão entre os mais notórios desses objetos. Inspirado pela relação entre trançado e música nas Guianas (Guss, 1989) e por uma teoria etnográfica do ritual xinguano (Menezes Bastos, 1978, 1990), este texto se dedica a explorar as formas de objetificação de alguns personagens míticos wauja – as serpentes Arakuni (cesto), Pulupulu (tambor) e Kamaluhai (panelas) – e as consequências das suas exegeses para o entendimento das relações entre grafismo e som. Se os temas mitológicos sobre as serpentes já estão amplamente estudados, o mesmo não pode ser dito sobre os estilos visuais relacionados às mesmas. Assim como os temas, os estilos também colocam problemas complexos, alguns deles apenas recentemente identificados (Lagrou, 2007; Severi, 2011). Seria difícil fazer, desde uma perspectiva antropológica, uma análise do estilo (ou, nos termos de Alfred Gell, da cultura) sem o entendimento amplo do tema (ou, nos termos de Viveiros de Castro, dos modos de imaginação conceitual) e vice-versa. Há um número crescente de estudos da mitologia amazônica que toma as qualidades dos estilos visuais e materiais como particularidades da variação mítica (Gow, 2001; Barcelos Neto, 2002; Velthem, 2003). Se aceitamos o mito como substrato da imaginação conceitual ameríndia, as expressões visuais devem estar aí imediatamente incluídas. Essa ideia, apontada por Lévi-Strauss em 1947 no artigo “A serpente de corpo repleto de peixes”, tem sido sistematicamente explorada nos materiais amazônicos. A consequência óbvia e mais direta dessa abordagem é que mito não é legenda de desenho nem este ilustração de mito. 181

o trançado, a música e as serpentes da transformação no alto xingu

A riqueza de alternativas analíticas proporcionadas pelo avanço recente da antropologia da arte e da etnologia amazônica permite ampliar o entendimento dos modos de imaginação conceitual trazendo as formas visuais para seu centro. Segundo Gell (1998), todas as formas visuais possuem dinâmicas agentivas internas e/ou externas. O que torna o caso da Amazônia indígena particular é que as dinâmicas internas não apenas relacionam elementos visuais entre si, como também os relacionam com elementos sonoros. A questão tem desdobramentos ainda mais complexos, pois as formas verbais, sonoras e visuais agem em cadeias de transformações semióticas (Menezes Bastos, 1990), cujo próprio pivô da transformação é a música, sendo o ritual seu campo de realização. Embora originalmente identificada e descrita para o Alto Xingu, trata-se de uma teoria de abrangência Amazônica (Menezes Bastos, 1996), de dimensões teóricas possivelmente semelhantes à do perspectivismo. Assim como o perspectivismo, a cadeia intersemiótica do ritual também apresenta variações e ênfases. No Alto rio Negro, a ênfase é sobre o mito, no Alto Xingu, sobre a música, e nos Andes, sobre a dança. Tanto o perspectivismo como a cadeia intersemiótica do ritual são vigorosas teorias da transformação, a primeira incidindo sobre as relações de identidade/alteridade, e a segunda, sobre a ação ritual. Como essa teoria etnográfica, que tem a música como pivô, se relaciona com as artes visuais? A teoria, tal como me foi explicada pelos Wauja, diz que o mito vira música e em seguida dança, e sobre esta estão as “coisas”, sendo que não há dança sem tais “coisas”. “Coisas” são o que tornam o corpo dançável, são adornos e pintura corporal, elementos que definem a identidade de quem dança.1 E essa identidade é imaginada como presença e alteração, cujo plano de orientação é o mito. A dança é uma espacialização dessa presença no tempo ritual. Menezes Bastos observa na teoria kamayurá que o corpo é onde termina a cadeia da transformação: a dança, resultado da transformação do mito, é o verbo tornado corpo. E é sobre o que é um corpo que essas coisas visuais e materiais voltam seu interesse (Taylor & Viveiros de Castro, 2006). A imaginação criativa sobre esse corpo que dança privilegia, antes de tudo, a sua superfície (a pele), e menos as suas anatomia, morfologia e fisiologia; note-se que na Amazônia as transformações corporais estão antes centradas no controle/na troca de substâncias e imagens. O corpo que dança é aquele em que a sua superfície foi alterada, em geral pela aplicação de desenhos. Essa alteração da superfície (ou pele) é igualmente importante em outros corpos que não humanos, artefatos em especial. 1

Ouvi, algumas vezes, jovens wauja dizerem que tinham muita vergonha de ir dançar em outras aldeias quando eles não podiam se apresentar com os adornos corretos e/ou completos. Sem estes, eles se sentiam “feios”, um outro modo de dizer indefinidos ou incompletos.

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Poucas categorias de objetos da cultura material amazônica exibem um trabalho de superfície tão complexo e extenso quanto o trançado, oferecendo metáforas extremamente úteis para pensar a transformacão corporal. A pele (superfície) do trançado e seu corpo (forma) são resultado de um mesmo trabalho, o que permite explicar, em parte, porque o jovem Arakuni decidiu trançar uma “roupa” para ele se transformar em cobra (Figura 1). No mito wauja da transformação dos homens em “bicho”, deve-se também à confecção de “roupas”, basicamente máscaras de palha trançadas, ou não, a possibilidade dessa transformação (Barcelos Neto, 2008). Mas nenhum mito explora de modo tão extensivo e minucioso o trabalho de superfície e suas relações com outros trabalhos de expressão criativa, como o de Arakuni. Voltaremos a ele nas seções a seguir.

Figura 1: Arakuni transformado em serpente. Desenho de Aulahu, 2000.

Guss (1991), Velthem (1998, 2003) e Reichel-Dolmatoff (1985) dedicaram etnografias cuidadosas para mostrar o imenso esforço que os cesteiros amazônicos imprimem no trabalho de superfície, ou seja, nos desenhos geométricos e/ ou figurativos que recobrem o trançado. A forma dos cestos, embora importante para nosso argumento, possui, em geral, um rendimento cosmológico menor do que a sua superfície. É dela que os amazônicos partem para (ou regressam de) dimensões sonoras e narrativas da cestaria (Guss, 1989). A Amazônia, civilização da palha (Ribeiro, 1980), é, também por essa razão, a civilização do canto. De um ponto de vista puramente visual, os cestos parecem coisas mudas. Porém, uma rígida divisão entre visual e sonoro se mostra inconsistente para vários povos amazônicos.2 A tênue passagem entre o visual e o sonoro, ou vice2

Vide por exemplo os trabalhos de Gebhart-Sayer (1985, 1986) e Reichel-Dolmatoff (1978), Lagrou (2007). Ver, a respeito Belaunde e Lagrou neste volume.

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versa, ocorre num terreno em que o próprio jogo de alteridades é definidor das economias simbólicas dos sentidos (Lagrou, 1996, 2002, 2007). Se a transformabilidade dos corpos tem implicações diretas sobre a perspectiva, ela tem em igual medida sobre os sentidos. Se pus é mingau de mosca, como dizem os Wauja, desenho não está distante de ser música de peixe. Assim, em um campo de múltiplas perspectivas, o que um ser apreende como visual, pode ser apreendido como sonoro por outro ser. Não se trata, portanto, de uma ideia de representação do sonoro pelo visual, mas de que o visual se torna, de fato, sonoro de acordo com o ponto de vista em questão. Viveiros de Castro (1998) propõe que pontos de vista existem no corpo de alguém ou algo, i.e., embodied. Este alguém, contudo, pode tanto ser um peixe, uma serpente ou um xamã, e este algo pode tanto ser um cesto, um chocalho ou uma panela. Na Amazônia ocidental, desenhos são ditos serem as melodias dos espíritos (Gebhart-Sayer, 1986; Lagrou, 1996, 2007). E como lembra Luna (1992: 233-237), o poder dos icaros, canções mágicas da Amazônia peruana, está diretamente relacionado às visões da ayahuasca e de outras plantas de enseñanza; não há icaros sem uma visão ampla, o xamã tem que ver (do outro lado) para poder cantar. Trata-se de um verdadeiro trabalho de tradução da percepção, inclusive no sentido de tradução atribuído por Carneiro da Cunha (1998) ao xamanismo amazônico. Como as economias simbólicas dos sentidos e da alteridade associam cestos ao universo da cultura material da música? Como os cestos, enquanto objetos não classificáveis organologicamente como musicais, podem ser assim tratados? Obviamente cestos não são instrumentos musicais, nem são eles pensados pelos amazônicos como coisas que produzem música, mas sim como coisas que a contêm em seu próprio corpo. Avancemos a questão intersemiótica sobre os objetos, tomando-os, num primeiro plano, como entidades cujos corpos nos dizem algo sobre seus pontos de vista. Para os Wauja, as qualidades sonoras, formais e materiais/substanciais dos objetos os fazem ontologicamente mais ou menos próximos dos apapaatai, os seres prototípicos da alteridade.3 Essa proximidade é bastante real porque as qualidades mencionadas acima têm invariavelmente sua origem no corpo dos apapaatai ou em suas ações passadas e/ou presentes. Tal origem não humana dos objetos se desdobra em duas consequências importantes. A primeira diz respeito à noção de dono.4 Tudo que compõe um objeto wauja possui donos espirituais, que são precisamente os apapaatai. Do mais diminuto 3

Alteridade se traduz aqui por excepcionais capacidades xamânicas, criativas, tecnológicas e de predação, as quais se materializam em uma extensa série de artefatos musicais e/ou patogênicos.

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Vide em Viveiros de Castro (2002) e Fausto (2008) estudos aprofundados sobre essa noção.

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motivo gráfico à mais abundante das matérias-primas, nada escapa à esfera agentiva desses seres xamânicos. Cada elemento pode ter um ou mais donos organizados em posições hierárquicas ou não. E é a potência xamânica de um dono em particular o que faz um determinado objeto mais ou menos perigoso para os humanos. Os donos cuidam dos recursos materiais e dos conhecimentos e punem os que deles fazem mau uso ou que desrespeitam propositadamente regras de manufatura, apresentação e execução. Mas não só isso, muitas matérias-primas, em especial fibras, madeiras e resinas com “cheiros fortes”, são perigosas em si mesmas e podem levar pessoas em estado débil a estados de adoecimento grave. No caso dos Wayana, essa noção de perigo se explica por um fundo mítico, cujo tema central é o corpo: Diariamente artefatos são concebidos como sendo “corpos transformados”. Vários mitos os descrevem como tendo passado por um processo que conduz ao seu desmembramento, resultando na supressão de suas características originais de caos e descontrole. Se atividades cotidianas precisam ser levadas a cabo, os seres primevos devem então ser desmembrados e transformados em objetos que os humanos possam controlar. Assim, mulheres indígenas podem usar um objeto trançado (titipi) para processar a mandioca sem o medo de serem devoradas pela serpente que lhe deu origem (Velthem, 2001: 206).

A segunda consequência está no plano formal e na identidade dos objetos. Os corpos de vários objetos wauja têm uma relação metafórica ou metonímica com corpos de animais ou partes de seus corpos.5 Assim, aos zunidores, objetos que imitam a forma anatômica de peixes, são atribuídas identidades específicas conforme os motivos gráficos e as cores que lhes são aplicados. Ou seja, a especiação ictiológica dos zunidores tem uma relação metonímica com os motivos gráficos e as cores encontrados nos próprios peixes que eles incorporam. Cestos cargueiros, por exemplo, podem levar motivos gráficos alusivos aos insetos e vermes que vivem nas roças de mandioca, os mesmos que comem as plantas e os tubérculos. A maior parte dos objetos de trançados wauja se divide entre o trabalho de transporte e processamento da mandioca, o armazenamento de seus subprodutos e a pesca; os tipos destinados a essa atividade são basicamente armadilhas. Estes são os trançados que produzem alimentos. Em uma ponta extrema, relativamente distante dessa esfera de produção alimentar, estão as máscaras, “cestos” vorazes por comidas wauja. De um ponto de vista técnico, quase todas as máscaras wauja são objetos de trançado, em especial as máscaras atujuwá e kuwahãhalu, que não são nada mais que esteiras, de forma circular e oval, respectivamente, com acessó5

Um aspecto recorrente na imaginação conceitual da cultura material na Amazônia (Hugh-Jones, 2009; Velthem, 2003).

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rios de palha que lhes dão o caráter de roupas, que de um ponto de vista xamânico funcionam como corpos contingenciais. É sobre a tematização mitológica desses corpos que passo a direcionar meu argumento. arakuni: da pintura corporal ao cesto-cobra Conta um mito wauja que inicialmente existia apenas um único motivo gráfico, o kulupiene, o qual foi primeiramente usado na pintura corporal masculina. Este motivo é dito ser a matriz que originou todos os motivos gráficos usados na decoração da cultura material wauja, incluindo o trançado e a cerâmica. Arakuni, um rapaz wauja recém-saído da reclusão pubertária, inventou para si o motivo kulupiene a fim de embelezar seu corpo de lutador. Arakuni tinha uma irmã mais jovem, Kamayulalu, que ainda estava em reclusão pubertária. Os irmãos se apaixonaram um pelo outro e tiveram relações sexuais. Na escuridão de seu gabinete de reclusão, seu ato incestuoso parecia estar seguramente encoberto, mas Kamayulalu não percebeu que naquela tarde Arakuni deixara marcado em seu ventre e peito o desenho de kulupiene que ele tinha pintado recentemente com jenipapo. A tinta de jenipapo logo depois de aplicada à pele fica praticamente invisível. A pintura só adquire completa visibilidade e fixidez horas depois, tornando-se então indelével por vários dias. No fim daquela mesma tarde, a mãe de Kamayulau retornou da roça com um pesado cesto carregado de mandioca. Ao chegar à porta da casa, chamou a filha para lhe ajudar, e de imediato percebeu seu corpo manchado com um desenho de jenipapo. Certa de que sua filha estivera com um homem em casa durante sua ausência, procurou sinais que provassem sua identidade. A mãe então viu, no meio da praça da aldeia, os jovens a lutar. Entre eles estava seu filho Arakuni, o único dentre eles que levava uma pintura de motivos no corpo. Espantada, percebeu que o motivo era idêntico ao que estava marcado no ventre de Kamayulalu. O incesto tinha sido descoberto. Finda a luta, Arakuni retornou à casa e foi ultrajado por seus pais, que queimaram tudo o que ele possuía e o expulsaram de casa. Desolado e envergonhado, Arakuni tomou rumo à lagoa próxima à aldeia, para onde levou uma imensa quantidade de fibra de taquarinha a fim de fazer uma roupa para virar “bicho” e fugir. Arakuni começa a trançar uma imensa cobra com as finas fibras de taquarinha (Figura 1). E à medida que a trançava, Arakuni cantava seu lamento e sua dor, porém paradoxalmente reafirmando seu desejo e seu amor por Kamayulalu. Os desenhos surgem simultaneamente com essas canções, que, aliás, têm uma conotação sagrada por, desde tempos imemoriais, fazerem parte do principal ritual 186

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intercomunitário xinguano, o funeral Kaumai (conhecido por Kwarup, corruptela de Kwarìp, seu nome em kamayurá). Os “vovôs dos Wauja”, ou seja, os contemporâneos de Arakuni, escutaram desde a aldeia toda a sequência de seus cantos, que foi também escutada pelos xinguanos de aldeias mais distantes, porém sem a mesma clareza e completude; por isso os Wauja dizem ser hoje os melhores cantores do Kaumai. Ao terminar a cobra e os cantos, Arakuni tinha criado uma série de motivos gráficos. Ao corpo da cobra foram adicionados dois objetos de suma importância: um cocar de penas de tucano, arara e harpia, e por fim um chocalho na extremidade do rabo. O primeiro, símbolo de seu status aristocrata (amunaw), e o segundo, de suas capacidades xamânico-musicais. Logo que tudo ficou pronto, Arakuni entrou no cesto-cobra, deslocou-se até um local profundo do rio, fez um estrondoso ruído e submergiu, desaparecendo para sempre. Por isso os Wauja dizem que Arakuni é como um submarino. Quando os brancos chegaram e mostraram fotos de submarinos, os Wauja finalmente descobriram que Arakuni tinha ido viver no mar. Uma das peculiaridades mais significativas desse cesto-cobra, do ponto de vista wauja, é que ela contém “todo” o repertório de motivos gráficos wauja. Porém, se nos limitarmos à denominação dos motivos, a cobra Arakuni tem apenas 13 (ou 14, a depender da versão), o que à primeira vista pode parecer uma contradição, pois esse número está longe da “totalidade”. Porém, totalidade nesse caso se define por um princípio de transformações quase sem fim, e não por um repertório fixo de motivos. O kulupiene foi o primeiro motivo feito por Arakuni – inicialmente pintado em seu próprio corpo e depois impresso na pele da sua irmã como consequência de sua união incestuosa –; os demais motivos foram feitos enquanto ele cantava (ou encantava) e trançava a sua “roupa” no sentido da cabeça para a cauda. Mas não há aqui uma precedência do visual sobre o musical ou vice-versa. A produção de ambos é simultânea, uma verdadeira fusão sinestésica em que o que se vê é o que se ouve e o que se ouve é o que se vê. Há uma clara associação entre as técnicas do trançado e da tecelagem com as peles das cobras em várias partes da Amazônia (Velthem, 1998). Em ambas as técnicas, os desenhos surgem simultaneamente com o trançar/tecer, não havendo uma dicotomia entre suporte e desenho, como na cerâmica, no corpo ou em artefatos de madeira. Ademais, o trançado e a tecelagem são técnicas de natureza mimética: os seus produtos são como “peles de serpentes”. Nesse sentido, o trançado e a tecelagem são o inverso lógico da cerâmica, uma contraposição entre maleabilidade e fixidez, e entre superfícies retilíneas que apontam para um conti187

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nuum infinito e superfícies circulares espacialmente encerradas sobre si mesmas. Outra imensa relevância simbólica atribuída ao trançado e à tecelagem assenta-se sobre a ideia de que, nos seus processos de produção, ambos tornam-se “naturalmente” desenhos, ou seja, em função das suas próprias especificidades técnicas, os desenhos surgem concomitantemente aos atos de trançar/tecer. As serpentes são seres prototípicos da invenção do grafismo entre grupos Carib (Velthem, 1996, 2001), Pano (Gebhart-Sayer, 1985, 1986; Lagrou, 1996) e Tukano (Reichel-Dolmatoff, 1978, 1985). O mito wayana da cobra sobrenatural Tuluperê (Velthem, 2001) conta como os humanos matam e retiram sua pele, e, a partir dela, criam os objetos de trançado. Arakuni apresenta uma inversão desse tema. É do motivo kulupiene, pintado na pele do jovem Arakuni, matriz de todos os motivos, que surge o gigantesco cesto-cobra. A inversão desse tema, mais do que expor uma posição perspectivista no esquema presa-predador, nos fala de um complexo modo de imaginação criativa cuja expressão sonora tem consequências imagéticas. O chocalho no rabo de Arakuni apenas reforça seu caráter duplamente musical e espiritual, cujo horizonte mais amplo é o xamanismo, menos como prática terapêutica do que como uma epistemologia multinaturalista. arakuni: a serpente de corpo repleto de canções Em “A serpente de corpo repleto de peixes”, Lévi-Strauss explora, através da iconografia nazca, o clássico tema ameríndio presa-predador e nos remete às mitologias das terras baixas da América do Sul, mostrando uma homologia entre modos discursivos visuais e verbais. Lik, a cobra de corpo repleto de peixes (ou de motivos visuais de peixes), tem em sua mão uma lança que usa para perfurar sua presa, a qual carrega inerte, porém ainda viva, entre seus dentes. Essa imagem é também familiar na iconografia mítica wauja. Mas não é a partir da predação que eu gostaria de continuar essa discussão. Há algo nos corpos de Lik e Arakuni que merece um exame mais cuidadoso. Trata-se da elaboração visual no trabalho de superfície, aquilo que impregna visualmente ambas personagens. No caso de Lik, são imagens figurativas estilizadas de peixinhos, e no de Arakuni são motivos geométricos destes e de outros bichos. O motivo gráfico kulupiene, presente em toda classe de objetos da cultura material wauja, é em geral identificado como “peixe”, uma identificação que se mantém praticamente inalterada desde 1884, quando Karl von den Steinen visitou pela primeira vez os povos do Alto Xingu. O motivo kulupiene pode ser disposto em dois padrões diferentes. A escolha de um ou outro tem a ver, em geral, com a forma do suporte. O motivo pode ser desenhado em um padrão de linhas radiais ou paralelas emolduradas por círcu188

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los ou quadrados. O primeiro é muito recorrente nas panelas e nos torradores de beiju, e o segundo, em cestos, bancos e postes. É comum que um padrão combine dois ou mais motivos, mas ele sempre levará o nome do motivo principal, aquele que imprime um ritmo particular ao padrão. É interessante lembrar aqui uma reflexão de Gell a respeito da ilusão de movimento nos padrões gráficos. The root of the pattern is the motif, which enters into relationships with neighbouring motifs, relations which animate the index as a whole. (…) Patterns can be distinguished from all other indexes by virtue of the fact that they have salient visual properties of repetitiveness and symmetry. It would be wrong to imagine that because symmetry and repetition are mathematical properties of forms, that it is not these properties which most readily provoke the illusion – if it is only that – of immanent causality of the index (Gell, 1998: 77).

É o ritmo, criado pelas combinações de repetição e simetria, que produz a ilusão de animação, que, de um ponto de vista material, permite a ideia de causalidade do index, cujo fundo ontológico, ao menos na Amazônia indígena, pode ser a potência xamânica dos animais, uma potência diretamente ligada ao canto. Em Arakuni, a combinação simultânea do visual (percebido como um motivo de peixinhos) e do sonoro (percebido como cantos de lamento) na produção de um corpo contingente (o cesto) e de uma subjetividade animal (a cobra) expressa o interesse por um modo de animação sinestésico. Assim, o mesmo corpo repleto de peixes é um corpo repleto de canções. Na mitologia wauja, peixes são até mais musicais do que pássaros. Em um dos mitos sobre o roubo das poderosas flautas kawoká, o virtuoso flautista é Tupato, um peixe de boca torta. O nome de outro peixe comestível, talapi, é também o de um pequeno clarinete de uns 22 centímetros de comprimento e 16 centímetros de circunferência. O clarinete talapi, fálico e claramente ictiomorfo, é um elemento palpável de um idioma de simbolismo sexual e musical que inclui ainda flautas e zunidores. O zunidor é outro instrumento musical xinguano que aponta para uma relação sonoro-musical explícita com alteridades animais, neste caso, também peixes. Entre os Wauja, os zunidores dão corpo à praticamente toda a fauna ictiológica xinguana. Já para os Kamayurá, os zunidores são antes cobras (Menezes Bastos, 1978). Noto ainda que a associação entre cobras e peixes pode se dar tanto por canais musicais, como no caso xinguano, como pela relação de dono/ mestre, tal o caso Aalto rio Nnegrino (Wright, 1993-1994). Embora o cesto-cobra Arakuni nao seja um instrumento musical, ele não é conceitualmente menos musical do que flautas e clarinetes. Parece-me, seguindo Menezes Bastos (1990), que o que apresenta sua relevância para pensar tanto a 189

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forma sonora como a visual é a cadeia completa que parte do mito para o corpo. Se a própria pintura do corpo dançante permite imaginar uma atualização do mito pela ação da música, o que permite imaginar um corpo contingente repleto de desenhos-canções que, além disso, dança? Em uma versão antropomoforma de Arakuni (Figura 2), Kamo Wauja o apresenta como uma xamã-cantor dançando com um chocalho na mão, com seu cocar de amunaw e suas braçadeiras de plumas de tucano. Esse desenho é uma exegese visual da teoria da cadeia intersemiótica do ritual, uma imagem síntese de diferentes modos de transformação: do humano em animal e monstro, do sonoro no visual e vice-versa, da fibra vegetal em pele e do jovem lutador no xamã-cantor. Passo agora a discutir alguns aspectos dos modos da produção musical wauja e os demais personagens que, juntamente com Arakuni, apontam para um grande tema da arte ameríndia.

Figura 2: Arakuni transformado em serpente. Desenho de Kamo, 1998.

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uma visão musical da cultura material Em A Musical View of the Universe, Ellen Basso (1985) desenvolve uma teoria etnográfica do ritual xinguano, cuja linha central é definida por variados modos de trocas sonoro-musicais, sejam estas entre homens e mulheres, humanos e não humanos, aristocratas e não aristocratas, ou entre membros de diferentes aldeias que se visitam para a realização de rituais.6 Nesse mosaico multilinguístico e multiétnico, o ritual e a música dentro dele são a língua franca do Alto Xingu (Menezes Bastos, 1978). Esse sistema de trocas musicais, cujos intensidade e efeitos são muito variados, funde-se a outros sistemas de trocas, sobretudo de objetos e valores político-morais. As qualidades e os valores das músicas rituais são correspondentes a suas capacidades de produção de pessoas humanas, que são basicamente de dois tipos, porém sem qualquer sentido dualista. Há músicas rituais executadas para a produção dos notáveis/aristocratas (amunaw); as canções que Arakuni cantou para sua irmã Kamayulalu fazem parte desse repertório. E há músicas executadas não necessariamente para produzir um tipo específico de pessoa social, mas para manter humanos como humanos. Ou seja, são músicas do complexo xamânico usadas para curar, i.e., para recuperar o ponto de vista humano daqueles que tiveram sua alma raptada por espíritos animais. Toda doença que não advém de feitiçaria humana é uma transformação do humano em animal (Barcelos Neto, 2007). Esse repertório, ao qual chamo de músicas de apapaatai, atua sobre um aspecto da instabilidade ontológica do humano. As músicas de apapaatai são executadas em coros femininos, masculinos ou mistos, em solo, dueto ou trio. Um outro repertório, tão extenso quanto o vocal, é executado em uma série de “instrumentos musicais”, sobretudo aerofones, que são, eles mesmos, apapaatai. A materialidade e a sonoridade dos “instrumentos” têm um papel importantíssimo para a sua definição como personagens rituais e para a sua percepção como coisas verdadeiramente indígenas.7 Em um trabalho anterior (Barcelos Neto, 2009), introduzi os materiais etnográficos que explicam as relações entre durabilidade, capacidades musical e 6

Além do livro de Basso, os trabalhos de Menezes Bastos (1990), Mello (2005) e Piedade (2004) são as principais referências para o sistema de trocas sonoro-musicais no Alto Xingu.

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Lembro-me das muitas vezes em que Atamai, o principal chefe wauja, comentou sua irritação com o interesse de alguns jovens em aprender a tocar violão e a cantar música sertaneja. Em 2002, os Yawalapíti convidaram um grupo de índios Guarani de São Paulo para assitir a um Kwarup em sua aldeia. Os Guarani fizeram uma breve apresentação músico-coreográfica acompanhada de violino e violão, que provocou certa indignação em Atamai: “Isso não é música de índio.” Para ele, o uso de instrumentos “do branco” anulavam o caráter indígena da canção, mesma esta sendo executada em língua guarani.

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xamânica, e produção e consumo alimentar, e analisei os efeitos da imbricação dessas relações materiais nas relações sociais wauja. O objeto sonoramente mais poderoso e durável do sistema, o trocano (Pulupulu em wauja), não é fabricado pelos Wauja desde a década de 1950, quando estes foram afetados por uma violenta epidemia de sarampo. Mesmo ausente fisicamente da cena ritual atual, o trocano continua a integrar esse sistema, assim como outros objetos que ainda estão “dormindo” e que algum dia poderão ser despertados (Barcelos Neto, 2011). A noção de cura, como transformação corporal, é o eixo conceitual básico do sistema de objetos rituais. Mas alguns deles fazem muito mais do que curar, pois permitem mediar uma série de trocas intra e intercomunitárias. Cada um desses objetos tem uma identidade espiritual animal específica que definirá a iconografia (no caso das máscaras e dos zunidores) e a música (no caso de aerofones) a serem executadas. Máscaras e aerofones podem dar corpo a todos os seres não humanos, inclusive a fenômenos e elementos naturais, como o arco-íris e o fogo, enquanto os zunidores, apenas a peixes. O trocano é o único objeto ritual desse sistema cuja identidade animal se relaciona a uma “espécie” apenas, a anaconda. Aruta, o principal xamã-cantor wauja, fez um desenho do trocano que os Wauja queimaram na década de 1950 (Figura 3). Ele é muito semelhante ao único trocano hoje em uso em todo o Alto Xingu (Figura 4), que fica na aldeia kamayurá de Ipavu, a 16 quilômetros da aldeia Wauja. Ambos trocanos têm a pintura de uma anaconda ocupando toda a extensão da sua lateral externa. O desenho de Aruta revela, ademais, alguns objetos-animais que são guardados dentro do corpo do trocano: quatro peixes, um peixe-elétrico e uma arraia, respectivamente materializados como máscaras, flauta kuluta e flauta mutukutaĩ, objetos que fazem parte do complexo ritual do trocano. Enquanto Arakuni, o cesto-cobra, tem música em sua pele, Pulupulu, o tambor-anaconda, a tem dentro de si. A terceira e última cobra desse universo mito-musical é Kamalu Hai, a gigantesca cobra-canoa que carrega em seu dorso uma longa série de panelas cantoras (Figura 5). O tamanho das panelas decresce da cabeça para a cauda. As maiores cantam em um tom muito alto e grave, e as menores, em um tom muito baixo e agudo. A polifonia das panelas cantoras é materialmente análoga à diversidade de tamanhos, formas e funções da cerâmica wauja (Barcelos Neto, 2005-6). A narrativa do mito termina com uma explicação sobre por que apenas os Wauja sabem fazer todos os tipos de artefatos cerâmicos. Kamalu Hai fez uma única aparição, e foi na lagoa dos Wauja que ela chegou “fazendo barulho”. Os Wauja aprenderam a fazer cerâmica porque eles viram e, sobretudo, ouviram as panelas cantarem.

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Figura 3: O trocano-anaoncda kamayurá. Foto do autor, 2000.

Figura 4: A casa das flautas como um microcosmo de objetos-animais. No centro o trocano-anaoncda. Desenho de Aruta, 1998.

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personagem recebeu. Nem mesmo a onça, tema que absorveu décadas de pesquisas, demonstra o extraordinário rendimento artístico das serpentes e a trama complexa que elas tecem entre sensibilidades estéticas e noções cosmológicas. As onças que me desculpem, mas a ferocidade das serpentes é que é bela. referências bibliográficas BARCELOS NETO, Aristóteles. A arte dos sonhos: uma iconografia ameríndia. Lisboa: Assí-

Figura 5: A cobra-canoa kamalu Hai. desenho de Kaomo, 1998.

A imaginação conceitual da cultura material xinguana está profundamente ancorada na experiência sonora: se cestos são feitos de canções, panelas, por sua vez, cantam. Parece-me que esta ênfase wauja, e xinguana por extensão, sobre a materialidade é um outro modo amazônico de marcar o caráter fundamentalmente musical da alteridade. Ainda que os objetos, musicais ou não, sejam feitos pelos Wauja, eles jamais deixam de ser uma população de outras “gentes”. Para os Araweté, essa mesma alteridade radical, representada pelos Mai (deuses canibais), manifesta-se como canção, mas, diferentemente dos Wauja, prefere um minimalismo material, o chocalho, este adensador de espíritos (Viveiros de Castro, 1992). Outro extraordinário exemplo de manipulação das relações de alteridade via objetos musicais é analisado por Menezes Bastos (2005) entre os Kamayurá: a simples presença ou proximidade desses objetos pode ser definidora de importantes traços do ethos sociopolítico. Seria o som a substância-alma dos objetos? Através das etnografias do Alto Xingu e do Noroeste Amazônico (e.g. Karadimas, 2008; Hugh-Jones, 2009), sabemos que quanto mais sonoros/musicais são os objetos, mais complexos são seus modos de subjetivação. Estudos comparativos sistemáticos poderiam apontar elementos que tornariam as relações entre som, desenho e artefatos, ainda mais complexas. Arakuni, Kamalu Hai e Pulupulu são representantes de um grande tema das artes ameríndias, assim como as posições de meditação do Buda e os momentos da vida de Cristo o são, respectivamente, para as artes da ásia antiga e da Europa até o fim do século XVII. A ênfase analítica em um grande tema, como as serpentes da transformação, permitiria um novo impulso comparativo das artes indígenas da Mesoamérica ao Chaco. Certamente os materiais amazônicos teriam aí um papel definidor. A riqueza das metáforas transformacionais das serpentes nos mitos ameríndios recebe impressionantes traduções visuais como nenhum outro 194

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Movimento e profundidade no kene shipibo-konibo da Amazônia Peruana Luisa Elvira Belaunde

O kene shipibo-konibo é uma arte amazônica da envoltura. Caracterizado por seu horror vacui e seu uso de linhas de múltiplas espessuras preenchidas por filigranas, os desenhos shipibo-konibo tecem redes de arabescos desdobrados, invertidos e paralelos que envolvem a superfície dos corpos. Trata-se de uma arte aparentemente bidimensional, mas finamente ajustada às formas tridimensionais que ela recobre. Nisto consiste a maestria das mulheres desenhistas que pintam, bordam e tecem kene sobre todos os tipos de superfícies, inclusive sobre o corpo humano, para embelezar o seu dia a dia. Roupas, cerâmicas, braceletes, coroas, remos, casas, rostos, pernas e mãos, todos os volumes corporais que fazem parte da existência cotidiana shipibo-konibo são suscetíveis a serem delicadamente envoltos por kene. Atualmente, a produção e a venda de objetos adornados com kene no crescente mercado turístico constituem uma das principais fontes de renda para muitas mulheres que conseguem segurar assim uma importante margem de autonomia econômica (Temple, 1992; Illius, 1994 e 2002; GerbhartSayer, 1985; Heath, 2002; Brabec de Mori e Mori de Brabec, 2008; Colpron, 2005; Leclerc, 2004; Belaunde, 2009). Tanto na sua estrutura como no seu conceito e no seu uso ritual, o kene shipibo-konibo tem fortes semelhanças com a arte dos desenhos de outros grupos amazônicos da família linguística pano, especialmente com os desenhos kaxinawa que também são chamados kene. Na sua análise do kene kaxinawa, assim como na proposta comparativa que tem elaborado recentemente, Lagrou (1991, 1995, 1996, 2007, 2009, 2011, 2012 e neste volume) demonstra como as diferentes características formais da composição dos desenhos feitos com tinta de jenipapo constituem técnicas de focalização do olhar cujo efeito cinestésico consiste em sugar o expectador para dentro do espaço gráfico, fazendo desaparecer a opacidade da superfície e produzindo movimento e profundidade no espaço perceptivo. A autora mostra que as diferentes composições estilísticas podem desempenhar múltiplos 199

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papéis dérmicos, desde a função de fechar o corpo à de tornar a pele mais permeável ao intercâmbio com o exterior. No último caso, quando é utilizada uma rede larga de desenho, a pele se torna como uma malha. O acoplamento do kene ao suporte material que o envolve não é uma projeção em diapositivo (slides) de um desenho estendido (Lagrou, 2011: 80). Não é questão de reproduzir uma figura preexistente, abstrata ou representativa sobre um suporte material qualquer. A especificidade dos desenhos se constrói em relação à superfície tridimensional singular que recobrem, constituindo-se em uma nova pele. Na execução do desenho importa transpor para um suporte complexo a mesma relação entre as linhas utilizada em superfície plana. A aplicação de desenhos na superfície transforma o corpo apontando para a possibilidade de percepção de figuras não reveladas, mas apenas sugeridas, que se insinuam na relação entre a superfície desenhada e o volume, entre o englobante e o englobado. Quer dizer, o kene apela a um ato da imaginação para ser completado além do que é explicitamente dado a ver. Desse acoplamento entre os desenhos da superfície e as singularidades do volume do corpo que eles recobrem surge a geometria do kene. As composições de desenhos também se caracterizam pela coexistência de rasgos simétricos e assimétricos, já que há sempre um detalhe destoante, um punctum, que gera um desequilíbrio no dualismo das linhas e cria o jogo perceptual incessante entre fundo e figura (Lagrou, 1991, 1995, 2007). O que importa reter aqui da análise do kene kaxinawa e da hipótese comparativa do grafismo ameríndio proposta por Lagrou (2011 e 2012) é o fato de o grafismo poder ser lido como uma técnica perceptiva que aponta para a transformabilidade da realidade percebida. O grafismo e a arte em geral são vistos aqui como instrumentos não tanto de tornar visíveis seres invisíveis, mas de percepção que possibilitam a passagem entre mundos perceptivos. A linha produz a transparência da pele, produz caminhos e abre para a percepção de figuras dentro do desenho. Do mesmo modo que os desenhos kaxinawa, as composições de kene shipibokonibo não são feitas para serem vistas estendidas a plano, e elas se constroem numa relação singular com seu suporte material. Num estudo das ornamentações femininas (Belaunde, 2011a e 2012), mostro como os desenhos feitos e usados pelas mulheres na pele e na roupa se acoplam às singularidades do corpo feminino em movimento. Por exemplo, ao pintar um rosto com tinta de jenipapo, os traços mantêm a proporção acoplando-se ao contorno do nariz, às bochechas e ao queixo, como se uma gaze de desenhos fosse finamente aplicada sobre a pele, mas dando a impressão de que os desenhos vêm de dentro do corpo e surgem da estrutura tridimensional irregular do rosto. Por isso, a pintura facial não é uma máscara 200

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nem uma maquiagem que se superpõe ou esconde os rasgos e a expressividade do rosto. Ao contrário, o kene facial enquadra o rosto, focalizando a atenção sobre a área dos olhos, do nariz e da boca, e acompanhando todos seus movimentos. Igualmente, os panos pintados e bordados com fios coloridos, chamados chitonte (Belaunde, 2011a), são usados para cobrir os quadris e as coxas, ajustando-se à curvatura do estômago e às nádegas em movimento para que se possa caminhar e sentar-se com comodidade. A plasticidade e a beleza dos desenhos nos panos se destacam plenamente no seu acoplamento ergonômico com o corpo da mulher em movimento, especialmente quando ela caminha e realiza diversas atividades quotidianas em pé e de cócoras. O kene shipibo-konibo é, então, uma espécie de hiperpele que transforma e completa as formas tridimensionais, fazendo visível uma áurea de beleza colorida que surge da união entre a pele e o volume, e que se mostra plenamente quando o corpo está se movimentando. Mas, nos corpos e nos objetos em repouso, os desenhos também produzem uma impressão de animação, como se o movimento estivesse sempre latente à flor da pele. Estar coberto de kene é manifestar-se num mundo de seres animados. Neste artigo examino de perto as técnicas formais de produção do kene shipibo-konibo que visam criar uma impressão de profundidade e movimento nos desenhos. O uso de traços com espessuras e cores diversos, e o de múltiplos quadros de desenhos encaixotados ou superpostos resultam em composições de desenhos com um dinamismo ainda maior do que no caso do kene kaxinawa. Ao constante desequilíbrio entre linhas, curvas e retas é acrescentada a confrontação dos traços, das cores e dos diversos fundos e figuras contidos nos múltiplos quadros de desenhos. O efeito de conjunto evidencia com claridade o fato de que a superfície desenhada não é meramente bidimensional, mas tem profundidade. Trata-se de uma superfície que adere ao volume, mas, longe de fechá-lo hermeticamente como uma parede que separa sem nuances o interior do exterior, ela revela o quanto essa fronteira mesma é um espaço profundo onde o olhar pode penetrar e viajar à distância. Minha intenção é me aproximar ao espaço liminar da pele desenhada shipibo-konibo usando exemplos contemporâneos de cerâmicas pintadas. Examino a construção formal do kene nas cerâmicas destacando a ordem de produção dos desenhos durante o processo da pintura e mostrando os efeitos de profundidade e movimento gerados pela visão dos desenhos prontos sobre o corpo das cerâmicas. Ao focalizar os aspetos formais do kene e as sequências de sua construção também intento responder às interrogações sobre o significado dos desenhos que tem gerado muitos debates teóricos, não somente na Amazônia (Illius, 1994 e 2002; Gerbhart-Sayer, 1985 Brabec de Mori e Mori de Brabec, 2008; Brabec de 201

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Mori, 2009). A minha proposta é deslocar a pergunta do campo semântico para o campo visual: antes de pretender decifrar o suposto significado dos desenhos é necessário aprender a vê-los. estruturas de caminhos A estrutura aparentemente bidimensional do kene modela uma lógica arquitetônica complexa. O conceito que define a organização dos desenhos é a cánoa, “estrutura”, uma palavra shipibo-konibo que designa a estrutura de madeira do teto das casas da Amazônia. Por sua vez, a palavra cánoa deriva de cano, que significa “caminho”. Cánoa é, portanto, um circuito de comunicação e também um suporte arquitetônico.1 Esta estrutura de caminhos é transposta sobre a superfície dos corpos e dos objetos, estabelecendo circuitos de linhas de diversas espessuras e cores que ressaltam sobre o fundo, o qual gera jogos reversíveis de fundo e figura. O observador nunca sabe se está olhando um circuito de traços ou uma figura que emerge dos traços, quase em alto-relevo, devido ao contraste das linhas de diferentes espessura e cor. O olhar passa de um registro ao outro, dando uma impressão dinâmica, quase que de vida própria, oscilando sem decidir-se por uma ou outra opção. Esse movimento do jogo de fundo e figura interno ao labirinto das linhas completa uma impressão hipnótica que as mulheres shipibo-konibo se orgulham de ressaltar. Hipnotizar e se apaixonar são duas noções muito próximas no pensamento e na estética feminina (Valenzuela e Valera, 2005: 62). O conceito shipibo-konibo de estrutura de caminhos é também uma noção fractal que se aplica a todos os níveis, desde o macro ao micro. Pode ser utilizado para referir-se ao manto estrelado que recobre a cúpula celestial, ao desenho dos rios afluentes de uma bacia e ao curso diminuto dos nervos das folhas (Heath, 2002). Estes elementos são exemplos de kene presentes na paisagem que inspiram a criação artística das mulheres. Mas, segundo as mulheres, sua destreza artística não provém de copiar os desenhos existentes no entorno, mas dos “seus pensamentos”, shinan. As “mulheres de pensamentos fortes”, koshi shinan ainbo, são aquelas que podem ver desenhos na sua mente e moldá-los com facilidade sobre um suporte material. Esta habilidade de ver e fazer kene se adquire por meio do uso de plantas ritualmente associadas à anaconda (Valenzuela e Valera, 2005: 64). O pensamento shipibo-konibo, que associa a origem do kene à anaconda, também revela proximidade com a etnografia kaxinawa e a de outros povos amazônicos onde a anaconda ocupa uma posição central, como os Wayana da família 1

Entre os Kaxinawa nota-se relação similar entre os conceitos de kene e a estrutura de reclusão (ver Lagrou 1998 e neste volume).

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linguística carib (Van Velthem, 2003; e barcelos neste volume). De todos os seres do cosmos shipibo-konibo, a anaconda é a que melhor encarna a capacidade generativa e regenerativa do kene. Trata-se da anaconda primordial, chamada ronin (em shipibo-konibo) ou yacumama (em quéchua amazônico regional), o poderoso espírito “mãe” da água e princípio emblemático da cosmologia e do xamanismo shipibo-konibo. Este ser resume o caráter dual da Amazônia: bosque inundável, território da água, porque sem a crescente temporal dos rios não há selva, não há plantas. Os rios entre as árvores da selva são, também, os melhores caminhos, e seu trajeto serve de referência aos viajantes tanto pelo curso da água como pelo pedaço de céu aberto que se desenha como caminho. Segundo a cosmogonia shipibo-konibo, o corpo da anaconda primordial forja a cama dos rios da selva, da boca até a nascente, mas antes sua pele dá origem a tudo o que existe. Segundo alguns cantos xamânicos, o universo se originou quando a anaconda primordial cantou os desenhos que carregava na estrutura das escamas das suas costas. Os desenhos saíram da sua boca por meio do canto, se juntaram e ganharam forma tridimensional, criando o mundo, as pessoas e as plantas. Por isso, em última instância, todos os desenhos shipibo-konibo são ronin kene, “desenhos da anaconda”, isto é, desenhos da mãe da água (Illius, 1994). As mulheres aprendem a ver estas complexas composições de estruturas de caminhos em seus “pensamentos” desde pequenas, graças a umas plantas cyperaceas, localmente chamadas waste (em shipibo-konibo) ou piri-piri (em quéchua regional), que, segundo a mitologia shipibo-konibo, surgiram das cinzas da serpente primordial. Suas avós colocam-lhes umas gotas de piri-piri nos olhos e no umbigo para convertê-las em exímias desenhistas à imagem da anaconda (Tournon, 2006). Os homens também podem ver os desenhos graças ao uso xamânico de plantas psicotrópicas, como a ayahuasca (Banisteriopsis caapi), que é também estreitamente associada à anaconda primordial, mas os homens não costumam desenhar suas visões. Fazer kene é uma arte feminina.2 Tratando-se do grande predador que caça suas presas, as hipnotiza e, depois de encurralada, as engole envolvendo-as, podemos compreender melhor por que a complexa estrutura do kene se exprime numa estética feminina do hipnotismo e da envoltura. A associação entre hipnotismo, desenho e sedução é partilhada pelos ShipiboKonibo com os Kaxinawa, os Yine e os Ashaninka, que habitam a mesma região. A ideia também apresenta semelhanças com as correspondências estabelecidas entre 2

Alguns homens caracterizados localmente como homossexuais também fazem desenhos kene (Roe, 1982). Atualmente, devido ao crescimento do turismo xamânico, mulheres e homens shipibo-konibo estão desenvolvendo uma nova modalidade de pintura xamânica visionaria que combina rasgos figurativos da pintura ocidental e desenhos geométricos (Belaunde, 2009, 2011b e 2012).

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beleza e ferocidade no caso da pintura corporal Wayana do Pará (Lagrou, 2007; Gow, 1999; Beysen, 2008; Van Velthem, 2003). Trata-se de uma predação realizada através de dispositivos que visam a exposição do corpo ao olhar do outro e, ao mesmo tempo, protege-lo contra o olhar do outro. O desenho corporal gera uma relação dinâmica e mutuamente agentiva entre perceber e ser percebido, desejar e se fazer desejar, devorar e ser devorado pelo outro.3 O poder peculiar dos desenhos reside, em grande parte, no seu poder generativo e regenerativo, sendo associado à vitalidade, crescimento e saúde tanto para quem é vestido de desenhos quanto para quem os olha, apesar dos perigos e das armadilhas que carregam. janelas na pele: sequência de produção dos desenhos Como mostrou Lagrou (2007 e 2011) no caso kaxinawa, para compreender os desenhos kene é necessário deixar de lado a ideia de recolher todos os seus nomes e tentar buscar um código secreto para decifrá-los de uma maneira meramente figurativa ou representativa. A autora sugere que o kene opera com uma lógica semelhante à da trama de uma tecelagem, e é necessário compreender os processos de produção dos desenhos como parte da trama, explorando a lógica cinética da relação entre as linhas, mais do que como figuras separadas. No caso shipibo-konibo, o processo de produção dos desenhos geralmente começa pela delimitação de um quadro ou moldura que os contém. Este quadro não só faz parte da composição total, mas atua literalmente como moldura do tear dentro do qual se tecem os desenhos. No caso dos desenhos bordados ou pintados, o quadro é o primeiro a ser desenhado sobre o suporte material – a pele, o pano, a madeira ou a cerâmica. Outra maneira de conceber este quadro utilizando uma imagem da arquitetura ocidental é pensar que ela é como uma janela: ela se abre e permite que desenhos, pinturas ou bordados sobre uma superfície sejam vistos através dela. Isto é, ao fazer a moldura, se abre um horizonte de visibilidade para dentro da superfície do suporte material. À medida que se confeccionam os desenhos, vai-se mostrando a paisagem que a janela permite que seja vista. A moldura se assemelha a um mirante ou um ponto de vista para o interior da pele. Como a moldura só cobre uma parcela limitada da superfície de um corpo, uma tela ou uma cerâmica, e só permite que seja vista uma parte dos desenhos que se encontram por trás, esta visibilidade dá a entender que se a janela fosse maior ou tivesse outra forma ela permitiria uma vista sobre os desenhos ampliada ou diferente, enquadrada pela moldura como se fosse uma paisagem. Isto é, os 3

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Ver também Lagrou e Beysen neste volume.

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desenhos não são unidades discretas de figuras, eles correspondem a tramas que se estendem potencialmente de uma maneira infinita. Mas como a moldura é delimitada, só é possível ver os desenhos que aparecem com essa janela aberta. Segundo Heath (2002), trata-se de um tipo amazónico de “janela ao infinito”, não somente por suas associações cosmológicas, mas por sua composição em estrutura sobre a superfície dos corpos (Ver também Dawson (1975) e Müller (1990: 232) apud Lagrou 1991 e neste volume). A trama dos traços estabelece relações estruturais que potencialmente se estendem até completar a totalidade da pele aural ao redor de um corpo. Portanto, todo desenho realizado dentro de uma moldura delimitada implica sua totalidade de maneira virtual, mesmo que só um pedaço seja visível. Ou, dito de outra maneira, todo pedaço de desenho feito sobre uma parte de um corpo é uma materialização de um desenho invisível maior que envolve o volume inteiro do dito corpo. O kene é, então, uma arte que permite que sejam vistos, dentro da superfície delimitada por uma moldura, os desenhos normalmente invisíveis que envolvem os corpos e os objetos do mundo shipibokonibo. O kene materializa os circuitos de relações estruturais da hiperpele, visibilizando a relação entre superfície e volume. Se olharmos com atenção a sequência em que são construídos os desenhos dentro de uma moldura, veremos que há alguns princípios recorrentes. Estes princípios são demonstrados na maneira como as mulheres shipibo-konibo concebem e realizam os desenhos sobre um suporte material. Tomemos o caso de uma pintura sobre a superfície de uma cerâmica fresca. Normalmente, o primeiro passo realizado pela mulher é cobrir de branco ou marrom-avermelhado as diferentes áreas da superfície de uma cerâmica, usando cores de terra. Logo, usando um pedaço de madeira para colocar a tinta preta, ela desenha as diversas molduras nas quais pintará os desenhos que ela tem em seus “pensamentos”. Em seguida, passa a pintar dentro de cada moldura, comumente começando (de uma esquina ou do médio) pelos traços mais espessos, até completar toda a superfície delimitada no quadro. Depois, fazendo traços mais finos, pinta duas linhas que correm paralelas a cada lado do dito traço espesso, como se se tratasse das margens de um rio que vão replicando a trajetória do curso da água à esquerda e à direita. Em seguida, fazendo traços ainda mais finos, passa a preencher com desenhos menores as áreas delimitadas por estas margens. No final, completa a composição dos desenhos na moldura preenchendo com cores algumas áreas pequenas (em formato de triângulos, quadrados e retângulos) na interseção das linhas mais grossas. O uso de cores é opcional e pode ser realizado num momento anterior, mas a ordem de execução, “moldura – traço espesso – margens do traço espesso – preenchimento dos espaços com desenhos menores”, é estrutural à composi205

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ção dos desenhos. Estes passos podem também duplicar-se criando labirintos de traços ainda mais complexos. Por exemplo, em alguns casos, o traço mais grosso pode estar interiormente composto por duas margens que correm paralelas delimitando um espaço colorido interior. Em linhas gerais, as mulheres seguem estes passos, mas cada uma faz coisas diferentes segundo suas idiossincrasias e tradição familiar (Belaunde, 2011a). Sequência de passos durante a pintura de desenhos kene na superfície dos corpos (cerâmica, corpo humano, tecido, objetos de madeira, etc.): Primeiro passo: Fazer a moldura (abrir a janela). Segundo passo: Desenhar a linha mais grossa dentro da moldura. Terceiro passo: Desenhar duas linhas mais finas e paralelas a cada lado da linha grossa. Quarto passo: preencher os espaços delimitados pelas margens com traços ainda mais finos e desenhos menores. Quinto passo: preencher algumas áreas pequenas com cores (este passo é opcional e pode realizar-se em outro momento).

Figura 1: Chomo com duas molduras prenchidas de desenhos. Altura: 95cm, largura: 64cm. Origem contemporânea, comunidade Caco Macaya, Baixo Ucayali. Coleção Martin Ccorisapra.

Para ilustrar a ideia apresento aqui, com a ajuda de esquemas gráficos, a reconstituição dos passos envolvidos na produção dos desenhos no caso de um vaso chomo4 de cerâmica. Neste caso, o vaso tem duas molduras com desenhos pretos sobre fundo branco, uma em cima da outra, e cada uma cobre uma faixa horizontal completa ao redor do corpo do vaso. A parte inferior do vaso está pintada com terra avermelhada. Reconstituo graficamente a sequência dos passos de produção dos desenhos dentro das duas molduras, mostrando a superfície do vaso como se ela estivesse estendida horizontalmente (figuras 3-6).

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Os vasos chomo são utilizados para fermentar a massa de mandioca doce a fim de se preparar o cauim bebido durante as grandes festas. Atualmente, só em algumas comunidades as mulheres continuam fazendo vasos chomo para uso ritual. Os vasos só podem ser utilizados para uma festa quando estão novos. Depois da festa, são abandonados. Na comunidade de Caco Macaya, os vasos chomo utilizados são vendidos a turistas e colecionadores. No passado, é provável que vasos semelhantes tenham sido utilizados para se enterrarem os mortos.

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Figura 2: Gráfico da fotografia do chomo (figura 1) mostrando as duas molduras com as composições de desenhos completas em cada ma delas.

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Figura 3: Passo 1 – Gráfico das duas molduras abertas (como janelas) na superfície do vaso.

Figura 5: Passo 3 – Gráfico das duas molduras mostrando, em cada uma delas, a linha mais grossa, as áreas coloridas e as linhas mais finas que correm paralelas ao traço grosso.

Figura 4: Passo 2 – Gráfico das duas molduras mostrando, em cada uma delas, o traçado da linha mais grossa com tinta preta e as áreas coloridas na intersecção dos traços.

Figura 6: Passo 4 – Gráfico das duas molduras mostrando as composições de desenhos completas, com a linha mais grossa, as áreas coloridas, as duas linhas paralelas à linha grossa e os espaços preenchidos com desenhos menores.

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Normalmente, na maioria dos vasos, uma das molduras cobre a parte mais volumosa na parte média do vaso; a outra moldura cobre a parte superior, o pescoço e a boca. Mas em alguns casos, especialmente para os chomo antropomorfos, pode haver mais molduras e cada moldura é preenchida com uma composição de desenhos diferente. Estas molduras não cobrem necessariamente toda uma faixa do corpo, mas somente uma parcela maior como, por exemplo, a parte dianteira ou traseira da vasilha, e podem ter diversas formas. Entre cada uma das molduras, costumeiramente, as mulheres pintam umas bordas que geralmente estão adornadas com desenhos retilíneos. O rosto, delimitado pelos ângulos do queixo e da franja do cabelo, e o peito também são outras molduras onde se colocam complexas estruturas de desenhos diferentes do resto do corpo.

foto: Jorge Luis Bacal

Figura 8: Pintura de um chomo antropomorfo: a moldura da parte inferior (o estômago) do vaso já foi completado, enquanto a do peito está em branco. O quadro do rosto do vaso está sendo desenhado com a linha mais grossa, que se acopla ao volume dos rasgos faciais.

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foto: Jorge Luis Bacal

foto: Jorge Luis Bacal

Figura 7: Detalhe da pintura dos desenhos: os traços mais finos são pintados no final para encher as áreas delimitadas pelas margens, que correm paralelas á linha mais grossa.

O número de molduras na superfície de um vaso depende da composição completa de desenhos idealizada pela mulher. Em alguns casos, os desenhos são realizados conjuntamente por mulheres que dividem o trabalho de concepção dos desenhos. Vemos o exemplo de duas mulheres pintando um chomo antropomorfo juntas, cada uma completando um quadro diferente, no peito e nas costas do vaso:

Figura 9: Mãe e filha pintam desenhos num chomo antropomórfico. Cada uma trabalha numa moldura diferente, uma no peito e outra nas costas, fazendo a linha de traço mais grossa da composição. Cada moldura tem desenhos e dimensões diferentes.

Ao longo do processo de composição dos desenhos, as mulheres não fazem esboços nem utilizam qualquer instrumento físico para medir as distâncias e corrigir os erros de simetria dos seus traços. Sua visão e seus pensamentos guiam a sua mão. As mulheres explicam que para ser boa desenhista é preciso pensar bem em como vão fazer o desenho. Contam que à noite passam horas imaginando e planejando os caminhos que vão traçar no dia seguinte, como uni-los nos ângulos, como fazer as curvas, como distribuir as distâncias etc. Sonham com os desenhos e, assim, na hora de fazê-los, os têm claros em sua mente. olhando pela janela: paisagens de desenhos A sequência de produção dos desenhos produz complexos jogos visuais. Isto é, para o espectador, a composição mental de desenhos que as mulheres materializam sobre uma superfície produz um efeito visual de conjunto final que não 211

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é estática nem plana; ao contrário, a visão final dos desenhos sobre um corpo inclui profundidade espacial e movimento devido à impressão de superposição de múltiplas tramas de desenhos. Para o espectador, o efeito de profundidade e movimento se faz evidente para cada quadro de desenho devido às diferentes espessuras das linhas que parecem continuar umas por baixo das outras, como se elas se encontrassem em diferentes planos. Isso dá a impressão de que alguns traços estão mais perto do espectador, ou que estão se movimentando em direção ao espectador, enquanto outros estão mais longe. Como esse efeito de profundidade e movimento se produz dentro de cada moldura desenhada, a visão de conjunto de todas as molduras desenhadas na superfície de um corpo, no nosso caso um vaso chomo, apresenta um efeito de movimento múltiplo. Não só as diferentes linhas dentro de cada moldura, mas as próprias molduras parecem também estar a diferentes distâncias e movimentam-se em direção do espectador. Dentro de cada moldura, a linha mais grossa é aquela que parece estar mais perto do espectador. Ela sobressai à visão e se vê completo. As linhas mais finas, que se distribuem paralelamente à linha grossa, se juntam quando se encontram numa esquina e nunca interceptam um traço grosso, dando a impressão de que elas se encontram seja na mesma distância ou além da linha mais grossa. Já as linhas ainda mais finas que preenchem as áreas delimitadas pelas margens estão parcialmente cobertas pelos outros traços e se encontram notadamente mais afastadas. A impressão de superposição é criada pelo fato de que esses traços mais finos parecem continuar por baixo dos traços mais grossos. Na literatura antropológica, ainda que o kene shipibo-konibo tenha suscitado grande interesse e muitas controvérsias, os estudos sobre a composição formal dos desenhos (Illius, 1994, 2002; Gebhart-Sayer, 1985; Heath, 2002) nunca tinham destacado a sequência de produção das linhas de diferentes espessuras, nem o efeito de profundidade e movimento criado pela visão de conjunto dos desenhos para o espectador, dentro e entre as diferentes molduras de desenhos. Apesar de alguns estudiosos da arte shipibo terem atentado para o efeito cinestésico da relação entre figura e fundo (Roe, 1982, apud Lagrou, 1996), o efeito de produção de profundidade não tinha sido até então explorado através do acompanhamento do processo de construção do desenho. A minha proposta é prestar atenção, por um lado, à ordem de produção das redes de kene (desenvolvida na sessão anterior) e, por outro lado, ao efeito visual geral que elas produzem quando estão prontas na superfície de um corpo singular. Quando adotamos o ponto de vista do espectador, de quem vê os desenhos prontos sobre um corpo, a sequência de produção dos desenhos descrita acima 212

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tem consequências chaves para a impressão visual geral produzida pelo conjunto dos desenhos. Quer dizer, os traços feitos primeiro são os mais visíveis, enquanto os últimos a serem feitos são menos visíveis e parecem estar no fundo. Para o espectador, mais do que desenhos para preencher espaços vazios, esses traços mais finos, realizados por último, constituem uma trama mais distante de desenhos. Isto é, a composição total que se vê dentro da moldura é uma paisagem de desenhos com profundidade onde diferentes planos de desenhos se superpõem ordenadamente, do traçado fino, no plano mais distante, ao mais grosso, no plano mais próximo. Como todas as linhas em todas as distâncias se caracterizam por serem ondulantes, formando ângulos retos ou em zigue-zague, a impressão de movimento é reforçada tanto ao longo de cada linha como entre as linhas que parecem estar se movimentando no espaço na direção do espectador. Em alguns casos, os desenhos mais finos do fundo reproduzem alguns aspetos dos desenhos mais grossos dentro do mesmo quadro ou de outro quadro na superfície do mesmo corpo. Gera-se então um efeito fractal, no qual o desenho completo, a paisagem na janela, está composto por figuras semelhantes em diferentes escalas. Este efeito também acentua a sensação de movimento e superposição de desenhos dentro de cada moldura, e entre molduras, no corpo de cerâmica. O seguinte exercício gráfico de decomposição da visão de conjunto pelo espectador das diferentes camadas de desenhos sobre um vaso chomo antropomórfico, permite mostrar os efeitos visuais de profundidade e movimento gerados e seu acoplamento às características singulares do volume do vaso. O chomo (figura 10), que comprei em 2011 na comunidade de Caco Macayo, no Baixo Ucayali, tem três molduras de desenhos que cobrem, respectivamente, o rosto, o peito e o estômago. Enquanto nos esquemas anteriores tentei mostrar a ordem de realização dos desenhos do mais grosso ao mais fino nas molduras estendidas a plano, nos seguintes esquemas intento recompor as composições de desenhos que se apresentam ao espectador numa visão de conjunto de uma imagem tridimensional: do mais longe para o mais perto. Começo pelas molduras do rosto e do peito e depois passo à moldura do estômago para poder mostrar progressivamente a criação do efeito de movimento geral.

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Figura 11: Visão das molduras do rosto e do peito em branco. O cabelo preto é um elemento característico do enquadramento facial feminino. A separação entre as duas molduras está marcada por uma linha adornada em zigue-zague simulando o efeito de um colar.

Figura 10: Chomo antropomórfico com três molduras de desenhos. Altura: 96 cm, largura: 85 cm. 2011, comunidade Caco Macaya, Baixo Ucayali. Coleção Luisa Elvira Belaunde. Figura 12: Visão das molduras do rosto e do peito cobertas com os traços ondulantes mais finos que constituem os planos a maior distancia do espectador. Note-se que as linhas finas do rosto são semelhantes às linhas finas do pescoço, mas elas são menores, dando uma impressão de reprodução fractal entre o rosto e o peito. O tamanho menor dos desenhos do rosto também produz um efeito de movimento entre os quadros, colocando o quadro do rosto a uma distância maior.

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Figura 13: Visão das molduras do rosto e do peito cobertas com os traços paralelos, que se superpõem às linhas mais finas do fundo. Note-se que não há mais uma reprodução fractal entre os desenhos do rosto e do peito, mas a impressão de que a moldura do peito se encontra mais perto do espectador se mantém.

Figura 14: Visão das molduras do rosto e do peito cobertas com as linhas mais grossas que se superpõem a todos os traços anteriores, dando a impressão de se encontrarem mais perto de espectador.

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Figura 15: Visão geral do chomo com as molduras do rosto e do peito quase prontas e a moldura do estômago em branco.

Figura 16: Visão geral do chomo com as molduras do rosto e do peito quase prontas. A moldura do estômago está coberta dos desenhos mais finos do fundo, que formam cruzes. O tamanho bem maior desses desenhos parece indicar que a moldura do estômago se encontra mais perto do espectador.

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Figura 17: Visão geral do chomo com as molduras do rosto e do peito quase prontos. Na moldura do estômago o desenho de linhas paralelas se superpõe aos traços mais distantes das cruzes.

Figura 18: Visão geral do chomo com as três molduras quase prontas. Na moldura do estômago, os traços mais grossos se superpõem ao resto das linhas, dando a impressão de encontrar-se mais perto do espectador.

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Figura 19: Visão do chomo final. As três molduras estão completas com os detalhes em vermelho. Segundo as mulheres, a cor vermelho é usada para “dar alegria” às composições de desenhos.

Os efeitos de profundidade e movimento do conjunto da visão da superfície do chomo surgem das relações dinâmicas entre as linhas dentro de cada uma das molduras e entre as molduras. A distribuição das molduras é típica dos chomos antropomórficos shipibo-konibo. Caracteristicamente, a moldura que delimita uma faixa horizontal no estômago, na parte mais redonda da cerâmica, contém desenhos com traços em escala maior, mais espessos e proeminentes, como se todos os planos da paisagem de desenhos vistos da janela estivessem mais próximos do espectador. A moldura da faixa superior, no pescoço da cerâmica, costuma conter desenhos em escala menor, como se todos os planos da paisagem estivessem mais afastados de quem o vê. Normalmente, esta moldura mostra desenhos curvos ou mais numerosos e complexos do que na faixa inferior. Comumente, nos vasos antropomórficos, os desenhos da moldura do peito e do rosto têm escala ainda menor, sendo que os desenhos deste último são mais ondulados e preenchidos, especialmente devido ao fino encaixe dos traços gráficos com as características do rosto e do contorno do nariz e das bochechas. Em cada moldura, o espectador tem a impressão de encontrar-se diante de uma série de desenhos que se aproximam com diferentes velocidades, ziguezagueando e ondulando à medida que chegam mais perto. Minha sugestão é que a técnica de fazer várias molduras no corpo de uma cerâmica tem por finalidade produzir um efeito visual de conjunto acentuado de 219

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profundidade e movimento complexo, ao ponto de injetar na cerâmica uma força de vida própria, como se ela estivesse respirando, comendo, gestando e pensando como uma pessoa humana. Minha aproximação ao kene, é que o chomo antropomórfico coberto de múltiplas camadas de desenhos manifesta na pele que ele está animado, de modo semelhante a uma mulher. Trata-se, por tanto, de técnicas visuais de animação. Por isso, os desenhos do estômago são maiores e parecem acercar-se do espectador. Eles sugerem que o chomo está grávido, com a barriga inchada com a pele esticada como um globo. O peito também se incha um pouco com o ar da respiração, por isso os desenhos da moldura do peito são menores do que os desenhos da barriga. E finalmente, os desenhos mais pequenos, na moldura do rosto, parecem indicar que a mulher-chomo está pensando. como ler – ver – os desenhos kene? A fascinação que essa arte exerce sobre os pesquisadores não é só de ordem estética. Há quem sustente que este sofisticado grafismo pertence plenamente ao âmbito semiótico e poderia tratar-se de uma escrita. Outros procuram decifrar esse código secreto na complexa lógica formal de sua estrutura. Como eu quis mostrar na seção anterior, qualquer consideração sobre o significado dos desenhos deve levar em consideração a visão que neles se encontra arraigada, incluindo o sentido de profundidade e movimento que caracteriza a superposição das camadas de desenhos. A meu ver, o debate sobre as relações entre desenhos e escrita deveria ser estabelecido levando-se em consideração todos os pontos de vista. Seria interessante inverter os papéis e, no lugar de se tentar decifrar o kene com critérios ocidentais, olhar a escrita ocidental com olhos amazônicos. Joxo joni kene, “desenho dos brancos”, assim se chama a escrita ocidental no idioma shipibo-konibo (Brabec de Mori e Mori Silvano de Brabec, 2008; Brabec de Mori, 2009; Colpron, 2005). Então, se do ponto de vista shipibo-konibo a escrita que reveste os livros e cadernos é uma forma de kene, não é tão descabido pensar que os desenhos que cobrem a pele, as telas e cerâmicas shipibo-konibo possam ser uma forma de escrita. A diferença fundamental, entretanto, reside no propósito da escrita em questão e na questão de a quem, ou a quais pessoas se dirigem as mensagens escritas. A diferença está no fato de que a escrita ocidental é um método de comunicação entre humanos. O kene, ao contrário, não é um instrumento de registro de palavras ou conceitos provenientes dos seres humanos. Aqueles que se expressam por meio dos desenhos shipibo-konibo são a anaconda mãe da água e as mães das plantas nascidas da água e, portanto, também nascidas da anaconda, o poderoso 220

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ser gerador e predador cósmico que outorga às mulheres a habilidade de realizar seus desenhos para que eles possam ser vistos pelos demais. Por isso, os desenhos não são um mero registro: têm shama, eles têm “potência acumulada” e “brotam”; transformam e curam o mundo, embelezando-o, como os brotos das plantas. Mas também no seu brotar armam armadilhas que confundem e sugam o olhar do expectador para dentro do espaço gráfico e seus labirintos de caminhos (ver também Lagrou, 2007: 54-155 e neste volume). O brotar, generativo e ao, mesmo tempo, predador dos conhecimentos visualizados nos desenhos condensa, assim, a vivência shipibo-konibo da continuidade entre os vivos e os antepassados. As mulheres shipibo-konibo são as escritoras das mensagens ditadas por estes espíritos mães que fazem e desfazem corpos. A potência dos desenhos kene reside na força de animação que eles criam à flor de pele, uma pele que não é uma mera superfície, mas um espaço profundo e em movimento. referências bibliográficas BRABEC DE MORI, Bernd. “Words Can Doom, Songs May Heal. Ethnomusicological and

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Kempiro. A arte gráfica dos traços fortes entre os Ashaninka do Oeste Amazônico Peter Beysen

A história da cobra vai muito longe, muito longe... jomanoria, março de 2006

kempiro, o modelo Este texto pretende apresentar a estética minimalista dos Ashaninka. Os Ashaninka, como a maior parte dos artistas, não gostam de falar sobre sua arte (Geertz, 2002). E, tendo em vista que sua arte é sua vida, os Ashaninka não gostam de falar sobre sua vida. Minha entrada neste universo foi marcada pelo silêncio, pelo que foi apenas sugerido. Meu primeiro contato com essa estética aconteceu, portanto, através da observação. As pinturas corporais são pessoais, e somente quem as fez sabe o que significam. O mesmo vale para os motivos escolhidos para serem pintados nos kitarentses, a roupa que marca seu estilo de vida. Foi através de perguntas em torno dos objetos fabricados pelos Ashaninka que me aproximei deles e de sua visão de mundo. Somente a partir do momento em que seus mitos de origem me foram contados, os objetos começaram a me revelar seu sentido. Aos poucos fui percebendo a relação entre objetos, desenhos, corpos e temas míticos que foram se organizando ao redor de dois grandes eixos em torno dos quais, por sua vez, gira a cosmovisão ashaninka: a procura pela imortalidade e a fragilidade do amor. Pode-se dizer que toda a arte ashaninka trabalha estas duas grandes questões: como chamar para perto de si a pessoa amada e como vencer a morte e adquirir longevidade, mantendo as doenças (e os inimigos) à distância. Uma das espécies que mais agrega em torno de si estas duas capacidades agentivas – a de atrair e a de rejuvenescer – é a cobra, ou melhor, os diferentes tipos de cobra. Em suas artes e nos mitos de origem respectivos, os Ashaninka valorizam e representam tanto a cobra constritora como as espécies venenosas: a 223

kempiro. a arte gráfica dos traços fortes entre os ashaninka

maior parte dos motivos gráficos remete a cobras, assim como os diferentes enfeites que acompanham a roupa, o kitarentse, e que constituem a pessoa ashaninka. Onde a arte faz parte de um sistema de cura xamanístico, diversos etnólogos a caracterizaram enquanto uma espécie de “terapia estética”.1 Entre os Ashaninka–em lugar disso–, podemos dizer que a arte também se constitui em uma forma de “sedução estética”.2 Ela visa alcançar leveza e invisibilidade frente aos inimigos e sedução frente àqueles que se quer atrair. O design da roupa, a pintura e especialmente a fragrância de todos os itens utilizados no make-up pessoal deles visam capturar, agir sobre as pessoas no entorno. Por esta razão, cada detalhe de um txoxiki, o colar grande, ou de um cacho de sementes pendurado na cushma (kitarentse), cada desenho na roupa ou no rosto conta, faz diferença. Igualmente, a execução das imagens importa muito, tendo em vista que tal age em conjunto com a substância que a veicula e que a “cópia” mantém ligação direta com seu modelo. Desta forma, se um desenho de cobra for mal executado, a cobra morderá o responsável pela cópia infiel. Veremos, assim, como a arte corporal reflete uma estética de poder, uma admiração que é provocada, às vezes, pela beleza mais letal possível. No motivo de kempiro (cobra bico de jaca, Lachesis muta), iremos encontrar a essência da arte ashaninka que cria o “belo” a partir de uma superação do medo da morte. No caso deste povo, o belo consiste no equilíbrio entre pensar e fazer. A força latente que se acarinha representa a estética ideal dos Ashaninka. A valentia está aí, guardada nos txoxiki, pronta para ser usada, assim como a cobra também sempre ataca a partir de uma postura relaxada, obtendo com isso mais velocidade e impacto. Para Gell, somente existe arte quando ela está associada à agência: o artefato enquanto index tem que ser visto como resultado e/ou instrumento de uma “agência social”, envolvendo uma rede de interações humanas (e não humanas). O kitarentse seria o “índice” de agência por excelência para os Ashaninka, pois ao mesmo tempo em que é coisa física, visível e material, ele “causa”, produz agência e efeitos – engendrando o que poderíamos designar “socialidade” ashaninka e seu estilo de vida –, os princípios organizadores das relações com múltiplos domínios sociocósmicos. Stefano Varese (1968) descreve Nõnki como uma cobra monstruosa para os Ashaninka. Teríamos assim entre os Ashaninka uma bela representação do feio. 1

Como é o caso dos Shipibo (Gebhart-Sayer, 1986), dos Kaxinawa (Lagrou, 2007) e dos Wauja (Barcelos Neto, 2005).

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Apesar de particularmente explícito para os Ashaninka, a relação entre sedução e grafismo não lhes é exclusiva e se constitui em característica importante do grafismo nesta região. Ver Lagrou, 1998, 2007, para os Kaxinawa; Belaunde para os Shipibo, neste volume; e Gow, 1988, 1999, para os Piro.

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Outros grupos ameríndios como os Ye’kuana (Guss, 1989) e os Wayana (Velthem, 2003) exemplificam o mesmo gosto pela beleza da monstruosidade. A pergunta que se coloca é: os Ashaninka ficam fascinados, maravilhados, diante da monstruosidade das cobras e das onças ou as cobras simplesmente seriam bonitas para os Ashaninka, de uma forma mais direta? Aportamos aqui na sintética e potente conceituação formulada por Velthem, que resume no próprio título do seu livro sobre a arte Wayana de forma exemplar o significado complexo da arte ameríndia: “O belo é a fera” (2003). Esta expressão evoca o valor que a alteridade ganha neste sistema de signifcação: quanto mais “feroz” é um animal, mais “belo” ele se torna. Para a autora, a valorização visual e semântica se apoia justamente sobre uma correlação existente entre o sobrenatural e os seres que estão imbuídos de suas características predatórias e transformativas. Correlações tais, conforme são articuladas pelos Ashaninka, podem advir das mais inusitadas fontes. Entre os Kaxinawa, estes poderosos e perigosos predadores vêm a ser simultaneamente os mais belos personagens existentes na cosmologia, os Inka, deuses canibais, afins potenciais da vida post mortem, como o são os deuses dos Araweté (Lagrou, 2007; Viveiros de Castro, 1986). Jomanoria, Ashaninka do rio Envira, desenhou para mim a cobra kempiro, a mais venenosa que existe, como uma sucessão de vários “x”. Sua representação da cobra parecia, a princípio, a mais minimalista possível e a mais fácil de ser realizada. Mesmo assim, passou praticamente o dia inteiro a desenhar aquele “x”, representando kempiro. Sua demora em produzir o desenho não adveio do fato de ele não estar acostumado a desenhar em papel, mas do risco envolvido, porque se cometesse um erro ao desenhá-la ele poderia morrer. A cobra kempiro viria mordê-lo. O mesmo desenho, por exemplo, gravado num recipiente de xiko (cal para mascar coca) teria levado o mesmo tempo. Este exemplo nos faz perceber como a arte minimalista dos Ashaninka pode ter um significado muito denso. Desta forma, seres como larvas de borboleta e mariposa, peixes e aves podem manifestar suas intenções predatórias em um quadro sobrenatural relacionado à onça. Vários mitos contam como uma larva virou onça ou como um peixe recebeu o desenho da pele de uma onça. A larva xopa é uma das mais recorrentes nas representações ashaninka, e seu desenho é frequentemente encontrado nos kitarentse. A cauda do quatipuru, pelo seu excesso de pelo, lembra a da onça e é atada aos panos para carregar bebês. O bico do tucano é dotado de uma agência de pusanga (magia sexual, perfume), isto é, é ao mesmo tempo ligado ao poder da perfuração (flechas), à tampa do recipiente de xiko e ao cabo do cachimbo, que representam bicos de aves. A capacidade agentiva da arte corporal ashaninka 225

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ganha sua significação maior quando é usada para “atrair” o sexo oposto. A arte ashaninka contém aspectos multissensoriais complexos, instaurando um jogo visual, auditivo e olfativo. As wanenka, peças feitas com sementes dispostas como cachos, que se aplicam ao kitarentse na altura dos ombros, são usadas pelas adolescentes com a intenção de produzir um efeito auditivo que chame a atenção das pessoas. Andando aos pulos, as adolescentes revelam uma intenção deliberada de produzir o “tilintar” do aximarentsi, evocando mais uma vez uma possível associação com a capacidade de sedução das cobras, animal que tem pusanga, a agência da sedução. Ainda evocando o paralelo com as cobras e seu poder de sedução, as adolescentes estão frequentemente pintadas com motivos pictóricos faciais associados aos padrões classificados como “cobra” que, ao se ligarem ao cheiro sutil da pusanga, segundo os Ashaninka, produzem desenhos faciais hipnotizantes. Um outro conceito crucial na compreensão do padrão sensório-estético ashaninka é o conceito de “limpo” associado a sua concepção de beleza. As praias são consideradas limpas, divinas (como o lugar onde moram os deuses). A pele humana deve ser lisa, limpa, sem manchas nem feridas. A pele dos jovens adolescentes é considerada lisa, sem rugas. Esta condição é considerada como própria das serpentes, que têm a capacidade de ser eternamente “sem velhice”. Expressa um ideal estético/ontológico almejado para a vida toda, porém vivenciado pelos humanos somente no curto tempo da juventude. O que faz das serpentes seres sempre jovens, que não envelhecem e, por conseguinte, não morrem jamais é a capacidade de trocar de pele, o que significa a própria metamorfose. Além disso, na visão ashaninka, as serpentes representam o ideal estético não apenas pelas lisas membranas, mas pelos desenhos que as recobrem.3 Peles lisas e pintadas representam o paradigma da beleza e da juventude, e os jovens fazem uso constante de uma ornamentação corporal específica, como um meio de potencializar esse estado. São mais profusamente adornados do que quaisquer outros indivíduos e carregados de uma atração erótica.4 3

Observam-se fenômenos e respectivas classificações bastante semelhantes entre os Wayana, descritos por Velthem (2003), e entre os Kaxinawa, descritos por Lagrou (2007).

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Sem defender a existência de uma noção transcultural de estética ou do significado da serpente, não poderia me furtar de, neste contexto, fazer algumas associações entre o significado das cobras para os Ashaninka e algumas representações de cobra na pintura ocidental. Noto que, neste contexto, as cobras são usualmente apresentadas como joias ou objetos de adorno do corpo feminino. A pintura renascencista de Piero diCosimo (Chantilly, MuséeCondé) oferece um destes exemplos. Piero diCosimo, em 1480, pintou SimonettaVespucci com os seios desnudos, ostentando um colar de serpente viva. O simbolista Franz Stuck (1863-1928) pintou umas dezoito versões de uma femmefatale nua (1891; com uma cobra grande em volta do corpo, como fez também o pré-raphaelita John Collier com sua obra Lilith (1892).Isso para não mencionar a clássica imagem dos modelos–o fotógrafo Richard Ava-

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Tanto os aximarentse (tipoia [kewotawontse] feita de cana braba [keepia]) de uso feminino como os colares txoxiki, de uso masculino, são complementos indispensáveis do kitarentse e estão associados à cobra no aspecto sensorial de suas formas visual e auditiva. Escrevo a seguir um resumo do mito de origem da tipoia, contado por Hananeri: “Uma mulher que foi tirar ‘gira’ (cana braba) viu kamatonge (surucucu de barranco, Bothropsatrox) usando aximaierentse. A cobra disse: ‘Agora faça também aximaierentse.’ Depois (de fazer o que a cobra mandou), a mulher Ashaninka virou kamatonge. Aximaierentse é feito de cana braba (‘gira’), parece ‘paxua’. Aquela ‘gira’ é a flecha das cobras. ‘Não parece uma flecha aquela ‘gira’?” Se o ideal da estética masculina gira em torno de kempiro que ensinou a fabricação e o uso do chapéu e do txoxiki), encontra-se na aximaierentse (tipoia feita de cana braba) seu complemento feminino. Trata-se em ambos os casos de cobras muito venenosas e “valentes”. O perigo inerente ao uso dos adornos e o papel do embodiment na arte corporal se completam no mito quando a mulher ashaninka “vira cobra” depois ter aprendido o uso da tipoia feita de cana braba. Joanna Overing (1991), na sua definição de estética, amplia o uso deste conceito, sugerindo sua extrapolação para outras esferas da vida ameríndia. Utilizo esta forma singular de pensar e conceituar a estética como um guia importante para a compreensão do estilo de vida ashaninka. Segundo Overing (cf. idem), para os ameríndios a estética não é um fenômeno dotado de natureza autônoma. É, antes, um conceito moral e político que nos permite compreender a socialidade ameríndia, uma vez que integra o conhecimento à atividade produtiva. Estética, neste sentido, é beleza percebida como expressão de valor moral e político, um conceito crítico importante para uma compreensão da vida social cotidiana. Neste novo contexto de conceituação estética, podemos notar que o conceito ashaninka para se referir à “arte”se expressa pela mesma palavra empregada para definir o “conhecimento”, lyorenka. Desta forma, longe de abordar a produção artística ashaninka stricto sensu, procuro, segundo a sugestão de Overing, captar o seu “senso de comunidade”. E isto nada mais é do que compreender seu estilo de vida em seus múltiplos aspectos sensoriais, como o silêncio, o partilhar, o tecer, o “se pintar”, o “preparar” das pusangas. Tudo isso enfatiza o aspecto olfativo e produz uma determinada concepção estética do mundo reproduzida em pequenos, mínimos, mas não por isso menos significativos, gestos e intenções. don, por exemplo, retratou a atriz Nastassja Kinski em 1981”, com seus corpos nus, envoltos apenas por uma cobra. A mãe de Alexandre, “o Grande” é retratada no filme de Oliver Stone (2004) usando cobras vivas como joias em torno de seu corpo, enquanto diz para o jovem Alexander: “Nunca se pode mostrar incerteza diante das cobras, senão elas te mordem.” Estas ideias não parecem tão distantes da concepção Ashaninka, pelo menos quanto à posição formal da cobra em sua cultura, apesar de as técnicas de representação da cobra serem muito diferentes.

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As pinturas faciais representam, muitas vezes, a folha cheirosa de uma planta que possui pusanga. O desenho é feito com urucum (potote) misturado às próprias folhas cheirosas. Sugiro que a própria lógica da pusanga expressa um senso ashaninka de comunidade: ninguém pode resistir à pusanga. Em um mundo ashaninka obcecado por “controle”, algo irresistível e incontrolável como a pusanga ajuda a entender o complexo mundo dos acontecimentos e dos ventos, sobretudo nas trocas incessantes de namorados (as) e amantes. A pusanga controla a raiva, o ciúme. Deste modo, pode-se ouvir com frequência frases como esta: “Meu marido estava totalmente perdido, não é culpa dele, a outra usou pusanga”. Esta lógica facilita as separações que, na grande maioria das vezes, terminam silenciosas. O silêncio é um valor comunitário importante para os Ashaninka, constituindo seu “modo de ser”, sua “pessoa”. A pusanga é um conceito que promove um entendimento das coisas e ajuda a controlar as emoções potencialmente mais explosivas e fortes contribuindo, assim, para a harmonia ou par ao que se pode designar como o “senso da comunidade”. Não são apenas os desenhos faciais que nos oferecem informações para entender o estilo de vida ashaninka; a parte do rosto na qual aplicam o desenho é também de suma importância: é na testa ou na fronte que o “pensar” está localizado; os olhos são o espelho do “pensar”, e a boca é o eco do pensamento. Foi neste sentido que Wenki Pianko me disse a seguinte frase: “A cabeça inteira é parecida e está relacionada com o mundo inteiro, e por isso somos capazes de sentir algo que acontece numa outra parte do mundo.” O rosto, sendo o único lugar onde os Ashaninka se pintam – o resto do corpo é coberto pelo kitarentse –, é preferencialmente coberto por um pano quando quem o possui adormece. Hananeri explicou-me que depois das “correrias”, quando se foi guerrear, quando muitos eram mortos nestes confrontos, era necessária uma purificação no rosto. Para isso, utilizavam plantas que eram esfregadas contra a pele, até produzir sangramento. Desta forma, o sangue como memória do inimigo (Belaunde, 2005) sairia do rosto do matador, que era aconselhado a dormir de barriga para baixo e com o rosto voltado para o chão, de modo que não pudesse ser reconhecido pelo espírito do inimigo desejoso de vingança. Em algumas ocasiões, os Ashaninka cobrem o rosto por completo com a tinta do urucum. Na percepção ashaninka, esta pintura facial completa é usada como uma camuflagem, algo para que não sejam notados. Esse estilo de “viver sem ser percebido” é uma das funções ou “expressões” do kitarentse, o cushma (a túnica longa) dos Ashaninka. Do mesmo modo, o silêncio ou o controle das emoções marca profundamente o estilo ashaninka de ser, em que a atenção é sempre con228

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centrada em atividades que associam à sua prática da vida diária, traduzida em múltiplas formas de controle e organização. A “festa” onde se bebe cerveja de mandioca não é um estado de comunitas ou um modo de sair do ordinário e do cotidiano. É na festa que se produzem e aprofundam as relações sociais, discute-se política. No dia a dia, por outro lado, até mesmo no ato de dormir, há uma ênfase na vigilância –por temor do ataque dos índios “isolados” e dos peiari (alma morta, fantasma)–, na meditação, no planejamento para o dia seguinte. Os Ashaninka não ostentam grandes rituais, mas essa meditação é tão intensa que as atividades do dia seguinte são pensadas e organizadas durante a mastigação da folha de coca – o silêncio que ensina. Assim, as tarefas diárias podem ser vistas como tarefas que demandam sempre conhecimento e que reproduzem esteticamente o cotidiano enquanto “senso de comunidade”. Os txoxiki, grandes colares feitos com sementes, talvez sejam o mais importante complemento do kitarentse (em si já representando a pele descamável), porque reforça a “incorporação” da pele da cobra e, com isso, como veremos depois, o desejo da imortalidade. Todos os tipos de txoxiki são ligados à cobra, em especial os txoxiki sarioki (feitos de sementes pretas). Assim como a pele deste réptil, as sementes do txoxiki sarioki ficam em constante estado de descascamento. Quando as cascas saem, as sementes ficam foscas, ganhando brilho novamente pelo uso diário. Julieta me explicou que isso acontece “por causa do contato com o corpo, por causa do calor do seu corpo”, demonstrando, assim, a importância do contato entre o artefato e o corpo para entender suas qualidades sensíveis. Os Ashaninka chamam a atenção para a necessidade de o “descascamento” das sementes ser um processo “natural”. Quando descasquei algumas sementes do meu próprio txoxiki sarioki durante um piarentse, Julietta advertiu-me para que não me preocupasse com o momento em que as sementes se tornariam foscas, uma vez que isso é comum de acontecer. Pensei, erradamente, que o objetivo do “descascamento” fosse a semente obter o mais rápido possível seu brilho definitivo. Mas é justamente o processo em si mesmo, lento, que é importante: sementes com cascas brilhantes, que aos poucos vão perdendo a casca, assim renascendo, se renovando. Tal como os kitarentse (cushma), os txoxiki estão num constante processo de transformação. Na sucessão das cores do kitarentsi, o processo de transformação cromática é, também, importante: quando novo cushma é branco (a cor do algodão), depois de algum tempo é tingido de vermelho (com tinta de casca de iguano) e finalmente ele passa para a cor preta (quando é tingido com lama preta)–este é o último estágio de transformação cromática de um cushma, que agora será usado 229

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até ficar velho demais.5 Uma chave para entender a importância do processo cromático é o uso dos motivos no kitarentse que se tornam progressivamente invisíveis, porque, depois de cada banho com casca de iguano, as cores dos motivos vão desaparecendo gradualmente. O mesmo processo me foi explicado com relação à pele da onça preta, onde os motivos são igualmente quase invisíveis. Para Bebito Piãnko, da comunidade Apiwtxa do rio Amônia, os txoxiki (colares) representam, em sentido lato, a “jiboia”. Ele me explicou que quando se começa a usar um txoxiki, deve-se continuar com ele para sempre. Cada txoxiki transmite um determinado poder, que é descrito como produzindo uma “sensação diferente”. Os Ashaninka dizem que é bom usar diferentes tipos de txoxiki. A pessoa se sente melhor com um tipo de txoxiki do que com outro, dependendo do seu ser. É como se cada txoxiki produzisse uma personalidade ou uma adoção de atitude. A mesma coisa, segundo Bebito, pode ser dita do chapéu, que transmite, também, certo poder. Observa-se sobre estes objetos um tabu: as mulheres não podem tocar nos txoxikis, nem nos chapéus. Podem, sim, ajudar no processo de criação dos txoxiki (um trabalho que exige colaboração, pois trata-se de enfiar inúmeras sementes num fio), mas depois não podem mais tocá-los. A complexa interação do txoxiki (e do chapéu) com o corpo e vice-versa constitui o que designamos “processo de embodiement”. Isto é, quando se começa a usá-lo, é preciso continuar, uma vez que ele está virando uma parte do corpo daquele que o usa. A imagem que Raimundinho, da comunidade de Simpatia, do rio Envira, descreveu de um Ashaninka pegando jiboia (depois de ter tido relação sexual com ela) e a enrolando em volta do braço e do pescoço “como um txoxiki” é uma imagem prototípica que retorna frequentemente nas sessões de ayahuasca como um “sonho bom” ou um pesadelo. É através desta ideia de agência que podemos compreender o ideal da estética ashaninka, explorada a partir de três versões sobre a origem do txoxiki. Em todas as três versões, kempiro desempenha um papel preponderante. Neste artigo, apresentaremos somente uma das versões do mito (Beysen, 2008). A cobra kempiro, a mais valente de todas, ensinou aos Ashaninka o uso do arco, do chapéu e dos colares (ver mito adiante). O chapéu e os txoxiki refletem 5

O dono da lama com a qual os Ashaninka pintam seus kitarentse é a cobra arco-íris. Há, neste ponto, um contraste interessante entre a batina preta da cobra e o arco-íris, que é o fenômeno natural multicolor. A lama preta com a qual se tinge o kitarentse tem a função de proteger justamente o seu possuidor contra as mordidas de outras cobras. A cor preta para os Ashaninka está associada ao poder: os maribondos, prezados pela sua coragem e por serem valentes, são descritos como pretos, assim como a onça parda e os policiais federais. Os policiais, com seus uniformes pretos, são integrados neste nível de classificação: valentes, destemidos e usuários de “batina preta”. Por este mesmo motivo, as crianças gostam de brincar de “federal”, e os adultos colocam um apito nos seus txoxiki (colares), sendo, portanto, mais uma referência (o apito) a objetos associados aos policiais.

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uma estética de poder, uma admiração por uma “beleza letal”. Porém, o motivo de kempiro é mais do que isso: é também uma prova da superação do medo da morte. Quando ele é feito de forma errada, a cobra vem morder aquele que se equivocou. Assim, no motivo de kempiro encontramos a essência da arte ashaninka.

Figura 1: Menina com desenho de kempiro feito com urucum.

Há uma passagem no mito em que Jomanoria fala que “vamos virar kempiro também” e logo em seguida acrescenta “mas Ashaninka não é cobra, não”. Os Ashaninka querem adquirir tanto a beleza como a valentia de kempiro. Apesar da tentativa de imitar ou trazer para si as capacidades agentivas da cobra, a declaração de que “Ashaninka não é cobra, não” aponta para uma diferença crucial entre ambos, os humanos e a cobra, que consiste no fato de que, afinal, os Ashaninka não possuem a imortalidade. A própria execução da arte corporal é prova direta da constatação de que os Ashaninka procuram adquirir a mesma valentia de kempiro: a execução errada do motivo de kempiro leva seu executante à morte. Assim, aquele que produz um artefato adorna-se simbólica e visualmente com a ideia de superação do medo da morte. “Vamos virar kempiro” não expressa o desejo de atacar indiscriminadamente qualquer pessoa, mas o de poder controlar a predação. Neste sentido, os Ashaninka sabem esperar o momento certo de atacar, controlando a predação e seu potencial de agressividade. Esta questão ficou clara 231

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para mim quando Wenki Pianko falou sobre a ênfase dada à testa na pintura facial, mostrando que ali reside o “pensar” caracterizado por dois polos: o “escondido” (paciência, autocontrole, meditação, camuflagem) e a “ação” (“Só pensar às vezes é fatal, é preciso também agir para poder sobreviver”, disse Wenki). Igualmente no caso dos txoxiki, considera-se que a “valentia” da cobra se encontra estocada na conta, pronta para ser usada. No caso da pusanga, procura-se obter o olhar hipnotizante e o poder de sedução da cobra, espremendo-se o líquido do olho da cobra nos olhos.6 Observamos, assim, que se procura incorporar também fisicamente a força que reside em criaturas perigosas. Encontramos outra manifestação do gosto estético pelo perigo no desenho facial de Katsimiri, professor da comunidade de Sete Voltas que pintou a representação de um peiari, a alma de uma pessoa morta, no rosto. Katsimiri contou que havia visto uma pessoa morta (a esposa de Karmelim havia morrido recentemente) que tinha exatamente esse desenho na pele. “Um peiari”, ele disse, “é como um vento que te pega e morde”. Temos aqui mais um exemplo da lógica ameríndia que visa incorporar a alteridade para aumentar o poder do sujeito. Voltando aos txoxiki, notamos ainda outros processos de mudança nestes colares, além do processo de descascar: estão sempre cheios de nós, e é sempre necessário consertá-los. Durante uma piarentse, quando dois homens estão amigavelmente discutindo, um pode quebrar a corrente do txoxiki do outro. Digamos que se trata de uma quebra ritualizada, durante uma discussão tranquila: admitese o próprio erro e se dá a permissão ao outro de quebrar uma corrente do “agressor”. Na maioria das vezes, aquele que teve uma de suas correntes quebrada vai argumentar com aquele que quebrou até poder quebrar também a corrente dele. Depois de se conseguir, dá-se um nó na corda quebrada. Os nós nas correntes nem sempre apontam para a ocorrência de um ato ritualizado: correntes quebram também quando as crianças brincam com os txoxiki dos pais, quando estes dançam e em outras ocasiões. Assim, os txoxiki não apenas vivem, mas também ostentam marcas da história de vida de seu possuidor. Outra peça importante da indumentária ashaninka é a peça que alguns Ashaninka do rio Envira chamavam de “chapéu”, utilizado por homens tanto em festas como no cotidiano. Seria, na verdade, mais apropriado chamá-lo de “coroa”, por causa de suas associações com a ideia de poder e por se tratar de um chapéu 6

Entre os Kaxinawa, vizinhos dos Ashaninka, encontramos prática similar que consiste na ingestão do olho cru da cobra para igualmente obter seu poder hipnótico tanto na caça como na sedução amorosa. Os Kaxinawa também afirmam que a linha desenhada que vai dos cantos dos olhos até a raiz da orelha reproduz o desenho na face da cobra. Entre os Kaxinawa e os Shipibo, as mulheres espremem o suco de folhas nos olhos para sonharem com o desenho da cobra, ou seja, para ficarem como a cobra (Lagrou, 1998, 2007; e Belaunde neste volume).

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aberto em cima. Foi assim que Benki Pianko, do rio Amônia, o chamou com um leve sorriso: “Olha meu pai lá sentado com a coroa dele.” Em outra ocasião, seu irmão, Bebito, me contou que assim como os txoxiki, o chapéu/ a coroa tem relação com o poder. No rio Amônia, vi txoxiki e chapéus com o motivo de kempiro (kempirokonta). A ausência destes símbolos de poder no rio Envira aponta mais para um ideal oculto (mas fortemente presente) de estética e de estilo de vida do que para um “abandono” de certas práticas artísticas. Aliás, todos conhecem bem e mencionam o txoxiki de kempiro e o chapéu de kempirokonta. Tecer o motivo com um fio de algodão preto entre as palhas da coroa, ou enfiar as sementes do txoxiki na forma de kempiro, no entanto, é considerado mais difícil, uma vez que é perigoso. O que encontramos com frequência no rio Envira são as incisões de kempiro em vários recipientes, como os feitos de bambu, para a pasta de urucum, ou o mel de tabaco e as cuias para guardar o cal que será mastigado com as folhas de coca. Estas incisões são consideradas mais fáceis de serem aplicadas. Quando Maria, uma adolescente ashaninka, ganhou um isqueiro, ela gravou logo um “X” nele, “para demorar mais”, do mesmo modo que a tatuagem de um simples X aponta para o desejo de longevidade. Tendo em vista a importância de kempiro para a arte ashaninka – kempiro os ensinou a fazer txoxiki, chapéu, desenhos e o kitarentse–, apresentaremos agora seu mito de origem na íntegra contado por Jomanoria: Aquele kempiro é a mais valente de todas as cobras. Uma vez, um menino se perdeu, ele tinha o tamanho desse aqui (Jomanoria aponta para um menino de 8 anos), já estava maior. Andava na mata, caçando, e aí chegou numa casa, numa casa que não tinha gente: “Não tem gente, não tem ninguém.” Só tinha uma velhinha, que era a avó da cobra. Tem muita casa, muita casinha, muita casa, muita casinha que é das cobras, né, muita casinha de todo tipo de cobra. Cada (tipo de) cobra tem uma casinha. Tem uma casa da avó dele, assim, grande. Ela produz muito feijão,7arroz e todos as comidas deles. Vai dar de comer a ele macaxeira, batata, jerimum, milho, ingá, goiaba, muita goiaba, tem muita fruta. E ela (a avó de kempiro) dava para ele tudinho para comer, e dava também para aquelas cobras todinhas (para todas as cobras que moram lá). Aí, de tarde, ela saiu bem cedinho e só chegava de tarde, cinco horas. Ela anda por todo canto. Por isso cobra anda por todo canto na mata, tardinha ela vai para a casa dela. E com flecha, flecha dela. Nós também aprendemos a flechar comas cobras. Flecha, por isso que temos flecha agora também, porque cobra só usa flecha, arco. Quando morde a gente, ele está dizendo8 que está flechando, está flechando. Por 7

O cultivo de feijão é algo particular entre os Ashaninka do rio Envira. Cultivam feijão não para consumo próprio, mas para a venda na cidade Feijó.

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Entendemos esta capacidade de ação das cobras de flecharem como uma percepção perspectivista da cosmologia Ashaninka (Viveiros de Castro,1996; Lima, 1999).

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isso que nós flechamos também qualquer macaco, né, aí porque nós, antigamente –a história da cobra vai muito longe, muito longe. Depois saiu um menino, como eu estou dizendo, lá. Aí, quando ele olhou a casa, disse: “Rapaz, tem uma casa aqui!” Ele foi lá; não tinha ninguém. Aí, quando a velhinha saiu lá: “Rapaz, o que você está fazendo aqui? Vem cá, venha logo!” Aí, ele correu para a velhinha: “Rapaz, aonde tu vai?”, disse a velhinha. “Por aqui, pensava que era minha casa, eu ando perdido”,disse o rapaz. “Rapaz, e agora você não vai escapar mais não, as cobras vão te pegar todinho, vão te matar. Agora tem outras coisas (que a gente poderia fazer para dar um jeito), eu vou fazer muita comida para ele, para ele não te comer, não te matar”, falou a velhinha. “Então, tá”. Aí, ela fez comida, do tamanho desse tambor, muito grande, cheio de comida: arroz, muita fruta e muito feijão. Aí tinha muito feijão, que eles apanhavam na casa. Aí ela disse: “Agora você, se esconde aqui, você se esconde aqui. Aí, pegou uma gamela (canoa) para fazer piarentse, deste tamanho assim, ela botou e ele entrou por dentro, né, aí tampou com feijão dela, todinho com feijão para não ver. Quando a cobra chegar, ela não vê, não, mas ela sente o cheiro da gente. Diz (a cobra) que a gente fede, igual carne cozida, cheirosa, estava com vontade de comer, é cheiroso. Aí, quando era assim três horas, já começou a chegar aquela cobra pequenininha, miudinha, né, tem cobra deste tamanhinho, é ela que chega primeiro. Aí seis horas chega aquele kempiro, né, grande, com kitarentse novo também, de kempiro, né, por isso que aprende: Ashaninka aprendeu chapéu com ele, aprendeu a fazer também, disse “vamos virar kempiro também”. Mas não é cobra, não, Ashaninka não é cobra, não. Ele viu, o cara que foi lá, né (o rapaz que andou na mata e perdeu o caminho),ele viu e disse: “Ah, é assim que a gente faz.” E ele fez também, por isso que agora fez chapéu com pena de arara. Também kempiro txoxoki, lavrada (em losango) que a gente faz, daí foi, aprendeu lá no kempiro, aprendeu lá, nós também aprendemos. Por isso que nós usamos, pois acha bonito, né, aquele... Agora, se fizesse errado, meu avô disse, quando tu faz kempiro colar, quando tu não faz direitinho, aí kempiro vai te morder. Ele te morde. É. Ele vai te pegar porque tu não acertou a lista dele (os desenhos da pele da cobra). É perigoso. Por isso a gente aqui não faz chapéu, porque pode errar: depois vai para a mata, vem kempiro e morde a gente. Tem medo de fazer (Jomanoria ri com um pouco de vergonha, confessar medo é incomum entre os Ashaninka). (O narrador conta a chegada de todo tipo de cobra, primeiro as pequenas, depois as grandes, até chegar na mais perigosa de todas, kempiro). Quando deu três horas começava a chegar cobra pequena; chegou, chegou, chegou. Aí, vieram outras cobras maiores, chegando. E quando chegou ele sentiu cheiro, né.“Mãe, o que tá cheirando aqui, que tá cheirando, o que tu tem aí? Me dá para matar, para matar e comer.”A avó: “Não, pode comer aqui a comida. Esta é a comida que está cheirando, vamos comer”.Aí dava comida para ele. Comeu, cheirando, cheirando, até que encheu barriga.“Essa comida está cheirando, está muita boa.” Comeu fruta, encheu a barriga, vai à casa dele, vai deitar. Aí, ela disse para ele: “Eu vou dizer alguma coisa: tem uma gente aqui que chegou, saiu por aqui, mas tu não vai dizer para teu irmão, não. Porque essa gente aqui, vamos criar ele.” Ele falou para ela: “Então tá. Mas mostra!” Aí ela mostrou. (Ele:) “Ah, és tu?! Não fica com medo, eu não vou te comer, não.” Entrou de novo. 234

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… Aí vem aquele, todo tipo de cobra, cobra da mata, vem cobra do não sei donde é aquela cobra, tem cobra, daquele inchado, inchado, fica inchado, parece, a gente bate ele e sss!!! Fica inchado, valente, em nossa língua chama sambetakari, a gente bate ele e ele fica com raiva, estica, inchadinho ele (quando esta cobra fica com raiva, a cabeça engrossa). Ela apresentou ele para todas as cobras. Aquela surucu de barranco, né, aquela que morde mesmo, aquela valente, ela chegou também. “Me mostra, mamãe, minha avó, o quê que é, eu quero matar, eu quero matar, eu quero comer!!” “Não sei o que...” (avó), “não”, dando comida para ele (kempiro, a cobra masculina com chapéu e txoxiki). “Come, come, come, come logo.” Ele comeu. Depois: “Tem um cara aqui.”(ela) “Como é que tu diz que não tinha?” (Surucu diz) “Não, tu ia matar ele, agora com bucho cheio tu não pode matar.” “Então fica aí mesmo, mas cuidado, vem outro, mais valente que eu.” (Surucu) Kempiro, né. Aí chegou. Quando os escutou, kempiro, ele trouxe apito, para assoprar. Ele assopra, assopra, ele faz o apito de taboca, ele assoprou, parece passarinho (onomatopeia: ssii,sssiii), assoprando flauta dele, né, assoprando flauta dele: “Fwiii, fwiii, fffwiii. Fwiii, fwiii, fffwiii.” Chegou bem pertinho e começou a sentir o cheiro (daquele Ashaninka): “Ah, minha avó, o que está cheirando aqui, me apresente!”, com flecha dele assim, apontando para flechar, “rapaz, nada” (disse ela). Aí começou a chegar pertinho dele, levando comida para ele, levando comida (para Kempiro). “Não, eu quero ver quem está aí, não sei o quê!”(Kempiro) Ele ficou doido. Passou meia hora, rodando, rodando. Aí disse: “Quero ver se tem alguém, se não tem ninguém aqui, eu quero ver.” Aí tinha aquela formiga, a gente chama em português, chama taioca, né, tem formiga que ferra a gente, que morde, dói mesmo, nós chama na língua héia, fica assim um monte, aí ele bateu nele assim (no ninho daquelas formigas). Aí saíram, se espalharam por todos os cantos, para procurar (as formigas iam buscar o rapaz escondido pela avó), rodaram por todos os cantos. Aí ele ficou, não mexeu, não (com as formigas em cima dele). Não mexeu mais. Ele ficou lá dentro, tinha pessoal lá. Eles passaram por cima dele, todos na cara dele. Ele não mexeu, não. Até que ele... sai de novo, aí ficou um monte (de formigas) de novo. (Kempiro:) “Ah, tem ninguém, não!!!” Ela: “Não te disse, é a comida que está cheirando.” Dava comida para ele. Ele comia, comia, comia, encheu a barriga. Caiçuma para ele, goiaba para ele. Agora: “Já vou.” E quando ele chegou(...) ela conversou com ele (sobre o Ashaninka ali escondido).Ela perguntou: “Rapaz, tu não vai matar (ele) não?” “Não, porque, me diga?” (ele) “Tem gente.” (ela) “Tem?” “Tem.” “Como é que tu dizia antes que não tinha gente?” (Kokonha que assiste a narração do mito começa a rir neste momento). “Ah, porque tu poderia matar ele.” Porque ele, kempiro, flecha a gente, é bastante venenoso, mata, ele faz isso, come, come até cobra. Aí depois ele saiu: “Cadê? Mostra!” Ele se levantou, ficou lá. Aí ele viu (o Ashaninka olhou para kempiro), em pé, né, kitarente dele branco, txoxiki dele, todo lavrado. Com flecha dele, chapéu na cabeça. (Jomanoria descreve a aparência de kempiro com muito detalhe. O fato que ele tem um kitarentse “branco” é muito enfatizado.) Disse (o rapaz): “Ah, é alto! Cobra grande.” Disse: “Ah, agora sim, tu apresentou ele, tu não me falou antes dele, né, tu não me disse antes, agora tá bom, tá certo, deixa aí.” Ele (kempiro) o olhou de pertinho, passou, foi embora. Ele não olhou bem, não, ficou com raiva aí. Aí, depois, ele foi lá conversar mais com ele. Aí mandou tirar 235

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roupa, né, todo, diz que o corpo da gente é todo fedendo. E tem igapozinho de água assim. Ele joga ele dentro da água e tira aquela pele todinha, sai. Aí, dá outro kitarentse para ele. Aí fica cheirando como ele. É. Diz que cobra sente a gente de longe. Aí depois nosso parente ashaninka que foi lá escapou, não morreu, não. Ele comeu lá, ficou lá. E depois disse: “Agora já vou se embora.” Foi embora e saiu da aldeia. “Cadê minha aldeia, sabe onde fica?” “Aí, tá bem aí.” Pensou que era longe, ele foi, rodou, saiu no outro canto. Depois a cobra apontou o caminho: “Por aqui, eu vou te deixar.” Quando ele desceu, já estava no caminho por onde passou (Kokonha ri, porque ele estava todo esse tempo perto da aldeia dele), foi se embora para a casa dele. Quando chegou na casa dele, ele começou a trabalhar no txoxiki, chapéu e kitarentse também. Aprendeu a fazer txoxiki e flecha, flecha também, mais tarde, por isso que a gente tem flecha, tem arco. Aprendemos com ele, porque antes, nós, quando deus estava aqui, não matava xintori (porco da mata), não matava nada. Porque comia quando deus fazia, né, deus dava comida para nós; esse marikix (folha de coca), isso aí era nossa comida. Não podia comer carne, não comia nada, só comia aquele marikix, sangue de Maria. Por isso, agora história de kempiro é assim.

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“para cheirar direitinho”. O cheiro é algo crucial na concepção de socialidade e no estabelecimento de relação social entre os Ashaninka. Neste contexto, ganhar o kitarentse9 significava a possibilidade de ter o mesmo cheiro das cobras. Quando perguntei a Jomanoria sobre o mito da aranha, que ensinou aos Ashaninka como fiar e fazer kitarentses, ele enfatizou que a aranha deixou o kitarentse dela quando foi embora. “Deixou a casca para trás”, uma imagem coma qual se é confrontado diariamente quando se habita uma casa ashaninka: há sempre uma casca de aranha presa ao teto de palha. Quando Pawa (o deus sol) ainda vivia entre os Ashaninka, bastava comer coca, o sangue (menstrual) de Maria; agora, porém, com a perda do estado imortal, é preciso comer carne, e é kempiro que mune os Ashaninka de arco e flecha. A imagem de imortalidade para os seres humanos é igual à do processo de trocar de pele das cobras: “Agora, se Pawa não tivesse ido para cima, não teria acontecido nada. Até ficar velho, quando fica bem velhinho, aí já tirava, cairia a pele, né, tirava a pele e ficava novinho de novo.” Jomanoria continua sua narrativa: O primeiro, ele aprendeu a desenhar nas folhas da mata. Não tem sororoca? Porque é lá onde começou a aprender pintura nossa. Depois formou folha. Tem muita folha que se formou, pintura nossa. Começaram a desenhar primeiro para poder desenhar kitarentse, né. Igual quando a gente desenha no papel. Aí ficou, formou folha e ficou lá, pintura. Também aquele pauzinho. Colocou desenho no pau, aquele potote (pintura facial), né, desenho no pau assim, carimbozinho. Kempiro ensinou desenhando folha e ensinou também a fazer chapéu, como tirar arikuli, aqueles cocos para fazer chapéu.

Figura 2: Criança com motivo de kempiro aplicado por carimbo.

No mito de kempiro, vemos novamente a referência à troca de pele e à imortalidade perdida. A cobra mandou “trocar de pele” e deu a própria pele aos Ashaninka. Neste mito, o kitarentse é literalmente uma pele da cobra. Interessante observar que a cobra kempiro fez isso para que o rapaz ashaninka não “fedesse”, 236

Na versão de Raimundinho, da comunidade de Simpatia, a figura do pica-pau é introduzida no mito de origem do txoxiki: ele aparece como o primeiro a fazer o txoxiki, depois é que veio kempiro. As sementes do txoxiki são difíceis de perfurar,10 e o pica-pau é visto pelos Ashaninka como um animal que tem uma “cabeça forte”, motivo pelo qual é admirado. Também por esta razão, sua figura é incorporada através das “bandanas” que são usadas pelos Ashaninka para que tenham uma cabeça forte. O beija-flor é outro pássaro que é bastante admirado por esta mesma qualidade do pica-pau e, aliás, no mito foi o único que conseguiu levantar a escada de Pawaquando, que queria ir para o céu. Xomontse (beija-flor) é o nome da pessoa na foto que está vestida com um txoxikikempirokonta e uma coroa kempirokonta.

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Lembramos aqui que, pintado com lama, o kitarentse protege contra os ataques de cobras.

10 Apesar de o uso ser exclusivamente masculino, mulheres podem também ajudar a confeccionar o txoxiki. Observei Julietta e Gregório trabalharem juntos na confecção de um txoxiki: Gregório estava perfurando, e Julieta, enfiando as sementes.

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Ao comentar as cascas deixadas pelos besouros, Hananeri afirma: “Aqueles besouros não morrem, só rejuvenescem, como nós fazemos quando estamos com a lua. A gente é cozido até a pele sair, deixamos o nosso couro, a nossa batina (kitarentse),11 e nascemos, novamente nus, num outro lugar.” Neste ponto, é importante notar que Hananeri usa indistintamente as palavras “couro” e “batina”, para falar tanto de pele como de kitarense, fato que aponta para o significado de pele do cushma. Interessante é que Hananeri, depois de uma pausa, expressou sua dúvida com relação à história que acabara de narrar: até agora, diz ele, não viu ninguém retornando do caldeirão da Lua, não sabia como isso acontecia precisamente e nem onde os mortos iam renascer. Num outro momento, esclareceu que, depois da tirada do couro dos mortos na panela da Lua, “estaremos supervivos, vivos de novo e desta vez para sempre”. a teia de aranha como armadilha Atxomongiro, a pequena aranha branca, é presença constante e apreciada nas casas ashaninka. O motivo da teia de aranha não aparece nos kitarentse, pois estes constituem, por sua própria técnica de tecelagem, verdadeiras teias de aranha. O motivo, no entanto, é recorrente na pintura facial. Wenki Pianko, do rio Amônia, desenhou o motivo no caderno de campo e explicou seu significado durante uma festa de piarentsi. A teia de aranha seria o “símbolo da recepção de energias positivas”; a pessoa que a tem desenhada no rosto captura para si tudo que há de bom. O motivo pontilhado supõe uma leitura atenta e informada do observador que deve, na sua “percepção imaginativa” (Lagrou, 2007), constituir um desenho que é apenas sugerido. O que se vê são pontos desenhados no queixo, nos maxilares, partindo dos cantos da boca e do nariz nas bochechas e nos maxilares, além de acima dos olhos e das sobrancelhas. A partir dos pontos, deve-se traçar caminhos na imaginação que ligam estes pontos primeiro em linha horizontal, depois seguindo as linhas circulares que ligam as linhas horizontais, constituindo, deste modo, uma teia de aranha. Esta teia é uma armadilha implantada para capturar energias. Funciona como um foco que leva a informação para o rosto. Ela é, portanto, um instrumento de captura do que há de bom em volta da face. Funciona ao modo de um dreamcatcher, que não é, neste caso, pendurado acima da cabeça do sonhador, mas desenhado no rosto atento da pessoa acordada. A teia de aranha dos Ashaninka funciona de modo oposto ao dos motivos labirínticos apotropaicos dos hindus analisados por Figura 3: Xomontse com o motivo de kempiro no txoxiki e no chapéu.

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“Couro” e “batina” estão sendo usados aqui de forma indistinta. Assim como as pinturas faciais providenciam uma segunda pele, o kitarentse (cushma, batina) pode ser também considerado uma segunda pele.

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Gell (1998), onde a captura do espírito pelo desenho protege e impede a entrada. A teia, pelo contrário, permite a entrada de “energias”, ao modo, aliás, dos Kaxinawa, em que o desenho funciona como filtro que deixa entrar cantos e banhos medicinais no corpo do iniciando. No caso da teia de aranha dos Ashaninka, vemos também a lógica de um filtro que capta o que está em volta, tal como o fazem os sentidos, os olhos, o nariz e a boca, capturando sinais em torno de si. Nos motivos da teia de aranha reproduzidos abaixo se realiza um recorte surpreendente. O que se vê é uma faixa com linhas entrecruzadas, onde a teia apenas é sugerida, não completada. A faixa faz um recorte num desenho invisível que continua além do suporte, ao modo dos motivos Kaxinawa (Lagrou, 2007), que surgem nos carimbos esculpidos na madeira. No primeiro desenho (Figura 4), Wenki Pianko fez questão de enfatizar o ponto central da teia. Quando este desenho é transposto para a pintura facial, o ponto central é igualmente desenhado.

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Figura 6: Desenho de um carimbo para pintura facial representando uma teia de aranha feito por Wenki Pianko.

Figura 4: Desenho da teia de aranha no caderno de campo por Wenki Pianko.

Figura 5: Desenho da aranha nanimonkiroi, feito no caderno de campo por Jomanoria.

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Figura 7: Desenho de teia de aranha através de cama de gato.

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Quando o motivo da teia de aranha contém linhas, estas não completam o desenho. O olhar perceptivo precisa completá-lo. O desenho mostra somente o que é preciso para se continuar traçando mentalmente as linhas quase invisíveis de uma teia de aranha.

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No primeiro desenho reproduzido acima (8), o tripé dá a dica de leitura, mostra o ponto de costura da teia. No segundo (9), temos a impressão de ver sugeridos a costura e o encontro das linhas. Cada motivo de teia de aranha se refere a outra aranha.

Figura 10: Desenho por Wenki Pianko.

Figura 8: Desenho teia de aranha Wenki Pianko.

Figura 9: Desenho pontilhado de Wenki Pianko.

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O motivo reproduzido acima (10) é usado tanto por mulheres como por homens, enquanto os outros motivos de teia de aranha são usados principalmente por esses últimos. A aranha que deu origem a este último desenho de teia vive na taboca e possui ligação especial com os Ashaninka. Por esta razão, as “energias” que ela capta são especialmente benéficas. Num mito resumido por Wenki Pianko, que conta a origem dos animais peçonhentos, esta aranha age como aliada dos Ashaninka.

Figura 11: uma das pinturas faciais representando uma teia de aranha.

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conclusão Partindo do grafismo minimalista da cobra kempiro – cuja essência agentiva, poderosíssima e onipresente na vida dos Ashaninka é capturada num simples X e concluída com o desenho da teia de aranha, que nos leva novamente à importância da economia expressiva ashaninka– tentamos demonstrar neste artigo o quanto um modo de se vestir e se decorar aponta para uma filosofia e um estilo de vida. Os grandes temas presentes nos mitos ashaninka – a procura da imortalidade e da felicidade, a violência contida, o silêncio e o poder da sedução – estão igualmente presentes, encapsulados, na sua arte: nos grafismos que decoram os corpos, os rostos e os artefatos, assim como na indumentária: o cushma, os colares, o chapéu e a tipoia. A cobra kempiro é o fio da meada do texto, assim como da vida e da arte ashaninka; ele não somente lhes ensinou, segundo o mito, a fabricação e o uso do arco e flecha, do chapéu, do kitarentsi e do txoxiki, mas também é responsável pelos desenhos encontrados na natureza (nas folhas das árvores e em outros animais), nos quais os Ashaninka se inspiram. Na figura de kempiro, a cobra bico de jaca, a cobra mais venenosa da floresta, os Ashaninka expressam seu ideal e sua admiração pela “beleza letal”. Usar a vestimenta e os adornos que a ele pertencem é também uma prova da superação do medo da morte, pois, como vimos, quando se erra o motivo de kempiro, a cobra vai se vingar.

peter beysen LAGROU, Els. “Caminhos, duplos e corpos: Uma abordagem perspectivista da identidade

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Figurar e desfigurar o corpo: peles, tintas e grafismos entre os Mebêngôkre (Kayapó) André Demarchi1 Para o pequeno Tàkàknhô Kayapó (in memoriam)

Figura 1: O “dripping selvagem”. Foto: André Demarchi. 1

Durante a pesquisa e a produção deste texto, recebi bolsas de estudo do CNPq e da FAPERJ. O Projeto de Documentação de Línguas e Culturas, realizado pelo Museu do Índio, em convênio com a UNESCO e o PPGSA (NAIPE, NEXTimagem), financiou as viagens de campo. Agradeço os comentários de Suiá Omim, Els Lagrou e Tiago Oliveira. As leituras atentas e instigantes de Ana Gabriela Morim de Lima e Diego Madi Dias foram de grande importância para o acabamento final deste artigo. A eles agradeço com o afeto de compadre.

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A imagem que inicia este capítulo, à guisa de epígrafe, foi captada durante minha pesquisa de campo na aldeia Môxkarakô, uma das moradas dos Mebêngôkre (Kayapó).2 Nela, um jovem espreme tinta de jenipapo no corpo de outro, formando uma profusão de linhas aleatórias que escorrem pelas costas do rapaz. Aquele que espreme já está coberto dessa pintura, uma espécie de “dripping selvagem”3 que contraria todas as outras formas da pintura corporal mebêngôkre e todos os outros grafismos pacientemente elaborados pelas mãos femininas da aldeia. Momentos antes de captar esta imagem, eu estava atravessando a aldeia Môxkàràkô, vindo de uma farmácia, local em que estava hospedado, em direção à casa do cacique Akyabôro, onde as mulheres de sua família preparavam o urucu (Py), matéria-prima importante no sistema complexo de desenho mebêngôkre. Neste trajeto, obrigatoriamente eu teria que passar pela casa dos homens, e, quando o fazia, Kroiti, um homem adulto com mais de cinco filhos (Mekrãre), considerado por todos um guerreiro “brabo”, gritou em minha direção: “Ei, kuben (branco), vem fazer pintura com os guerreiros.” Sem poder dizer não diante de praticamente todos os homens da “comunidade”, deixei o urucu para depois e me juntei a eles. Estavam fazendo a pintura àkre ‘ôk, que me traduziram como “pintura do pássaro”. Kokuí me disse para tirar a roupa, ficar só de cueca como eles, e começou a espalhar a tintura de jenipapo no meu corpo, recortando o tronco em forma de uma ampulheta e cobrindo os espaços vazios com um carimbo feito da própria casca do jenipapo. Os homens se pintavam em grupo, sorrindo, contando piadas e fazendo brincadeiras uns com os outros. Não deixei de registrar em meu caderno de campo que “perto da pintura feita pelas mulheres, aquela feita pelos homens era tosca e desordenada, feita com a mão, sem o detalhismo geométrico e feminino dos grafismos produzidos pacientemente sobre a superfície da pele com o kwýký, o pincel de tala da folha de babaçu”. Quando Kokuí acabou de me pintar, eu estava prestes a escapar para registrar o processo de feitura da pasta de urucu, quando chegaram no ngòb (casa dos 2

Falantes de uma língua do tronco linguístico Jê, os Mebêngôkre-Kayapó habitam os estados do Pará e do Mato Grosso. Somam quase oito mil indivíduos, divididos em diversos subgrupos residentes às margens do rio Xingu e seus afluentes. A aldeia Môxkarakô, onde realizei dez meses de pesquisa de campo entre 2009 e 2012, está localizada ao sul do estado do Pará, próximo à cidade de São Félix do Xingu, às margens do Riozinho, um afluente do rio Fresco, por sua vez, um afluente do Xingu. Sua população é de aproximadamente 400 pessoas, de acordo com dados da FUNASA. Mais de um terço da população é composto de crianças.

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“O pintor americano Jackson Pollock (1912-1945) desenvolveu uma técnica de pintura criada por Marx Ernst o ‘dripping’ (gotejamento), na qual respingava a tinta sobre suas imensas telas; os pingos escorriam formando traços que pareciam entrelaçar-se na superfície da tela.” Wikipédia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Jackson_Pollock.

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homens) os jovens casados com até três filhos, a geração precedente à dos “guerreiros” que me pintaram. De manhã eles haviam capinado a pista de pouso da aldeia e agora, depois do almoço, esperavam o sol baixar para jogar futebol, ali no pátio em frente à casa dos homens. Enquanto o clima não ficava mais ameno, e vendo os mais velhos todos pintados, eles se reuniram e decidiram que iriam se pintar com um motivo apropriado para ocasiões em que “há pouca tinta e muita gente”. Trata-se, como se vê na imagem acima, de um motivo composto por uma pala logo abaixo do pescoço, feito com traços aleatórios produzidos através do ato de espremer a tinta para que ela goteje nas costas e na frente do corpo. Se eu havia achado tosca a pintura dos homens mais velhos, aquela, para os meus padrões estéticos de etnógrafo iniciante, era uma “antipintura”, a negação da geometria, um padrão cuja forma era composta por linhas desordenadas, um padrão fora dos padrões tanto dos Mebêngôkre como de outros grupos ameríndios.4 Isso foi realçado pela forma rápida e caótica com que os mais jovens se pintavam, falando alto, gesticulando, rindo e brincando entre si. Em trinta minutos, todos estavam pintados e secavam ao sol a tinta de jenipapo.5 Curioso, indaguei a um deles como era o nome do motivo. Manduca me respondeu em tom de piada, como que sabendo justamente o que o antropólogo queria ouvir: “É a pintura da chuva (ná ‘ôk). Aqui”, disse passando a mão no pescoço, “é a nuvem, e estes são os pingos da chuva”. Todos riram depois da explicação, inclusive os mais velhos que observavam a cena do outro lado do ngòb. No dia seguinte, Bepunu me explicou que na verdade o nome do “antimotivo” era kran a menh ‘ôk (krãn = curto/rápido; a menh = jogar; ‘ôk = pintura ‘ôk). E comentou: “Faz gota na mão, e pinga nele [no corpo do outro].” Trata-se de uma expressão que se refere ao modo de fazer, a performance necessária para realizar a pintura corporal, e não à existência de algum referente que a pintura simbolizaria – a chuva, por exemplo, como haviam me dito de brincadeira no dia anterior.

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Uma característica notória dos grafismos ameríndios é o seu detalhismo geométrico, seja na execução de padrões abstratos, figurativos e decorativos pintados nos corpos, seja na execução de motivos em cestaria, cerâmica e com miçanga. Das pinturas faciais que conformam o estilo da sociedade Kadiwéu (Lévi-Strauss, 1996) à estética da predação dos Wayana (Velthen, 2003), passando pela fluidez da forma Kaxinawa (Lagrou, 2008), pelas pinturas corporais Mebêngôkre-Kayapó (Vidal, 1992) e pelos motivos gráficos da cestaria Kayabi (Ribeiro, 1980) é possível constatar o privilégio da forma geométrica nos sistemas complexos de desenho dos ameríndios.

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Algo que dificilmente ocorre entre as mulheres. Suas sessões de pintura coletiva duram boa parte das tardes dedicadas a elas, e as pinturas feitas nas crianças no cotidiano podem demorar mais de um dia para ficarem prontas.

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Figura 2: Rapazes se pintam na casa dos homens. Foto: André Demarchi.

Esta diferenciação na classificação dos nomes dos grafismos entre a forma de fazê-lo e o que ele simbolizaria já foi amplamente tematizada nos estudos sobre arte ameríndia (Boas, 1947; Lévi-Strauss, 1996; Ribeiro, 1980; Vidal, 1992). Recentemente, Lagrou (2011) os definiu como duas formas distintas de os ameríndios conceituarem os grafismos. De um lado, teríamos povos que fariam a diferenciação precisa entre grafismos e figuras; de outro, povos que só conhecem um conceito para designar desenho. Essa oposição demonstra uma diferenciação entre “decoração abstrata, onde o nome do motivo não é mais que um nome, ou seja, um termo técnico para se referir a um padrão; e decoração figurativa, cujo referente tem uma importância semântica” (Lagrou, 2011: 96). Mas como alerta a autora, “nestes casos não é possível generalizar”, pois muitas vezes a possibilidade de perceber uma figura se esconde num desenho aparentemente abstrato, além do fato de vários grupos possuírem ambas as possibilidades de grafismo. Esta afirmação parece ser bem propícia para o caso mebêngôkre, pois, se por um lado conceituam de modo diverso os grafismos (‘ôk) das figuras (karõ), por outro, parece haver também uma continuidade conceitual entre decoração abstrata e decoração figurativa. Existem nomes de motivos gráficos que se referem diretamente a animais, como por exemplo: kapran ‘ôk (pintura do jabuti), kangan ‘ôk (pintura da cobra), apiêti ‘ôk (pintura do tatu canastra); mas existem também motivos gráficos, cujos nomes 250

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se referem às técnicas e performances empregadas em sua realização, como, por exemplo, aquele descrito acima e utilizado pelos jovens na casa dos homens. Existem também grafismos que possuem dois nomes, cada um apontando para uma dessas formas de classificação. Esse é o caso do motivo de fim de resguardo, denominado me týk, cujo nome se refere tanto à forma como a pele é coberta por ele (me týk = todo preto) como ao nome de um referente muito específico (me týk = pintura do morto). Gostaria de privilegiar neste trabalho a primeira forma, digamos, performática da pintura, seus contextos de aplicação e, consequentemente, a produção e a alteração das superfícies nas quais são desenhadas. Em oposição à desorganização gráfica do padrão kran a menh ‘ôk, o padrão me týk apresenta uma homogeneidade característica: exceto pelas mãos e pelos pés, toda a pele do indivíduo é coberta com tintura negra do jenipapo, incluindo aí a do rosto e a da parte raspada do couro cabeludo que forma o corte de cabelo característico dos Mebêngôkre. As duas pinturas são feitas em momentos diferentes da vida. A primeira só pode ser utilizada por homens jovens que estão chegando no último degrau de endurecimento dos corpos – não era à toa portanto que eles se pintavam com esse motivo diante dos homens mais velhos, como que afirmando a eles que seus corpos já estariam tão duros quanto os deles, sendo capazes de suportar tamanha desorganização gráfica diante de um sistema complexo de desenhos altamente estruturado e geométrico (Vidal, 1992; Lea, 2002).6 A segunda pintura demonstra o fim de um processo de refiguração vivido por homens e mulheres nos momentos de resguardo, causado por nascimento de primeiro filho, luto ou assassinato. Em ambos os casos, trata-se de formas diferentes de constituir e reconstituir as superfícies que envolvem os corpos (Lagrou, 2011: 76). Este aspecto ganha relevo diante da ideia já difundida no americanismo tropical de que para os ameríndios o corpo “é um objeto de pensamento” e que é através de sua manipulação que pessoas são geradas e construídas (Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro, 1979). Trata-se de pensar a produção da pele e, consequentemente, do corpo ao longo do ciclo de vida, em sua relação com diversos tipos de grafismos e tinturas específicas que são aplicados a ela em contextos diversos. Gostaria, assim, de destacar a agência dos grafismos na produção da pele e as transformações operadas por sua aplicação nas superfícies dos corpos ao longo da vida do indivíduo. Concentro-me, neste sentido, nos momentos em que pinturas e tinturas são acionadas para proteger, reforçar, figurar e refigurar essa fronteira do corpo que é a pele em 6

Entre os Mebêngôkre, “as estampas de jenipapo são numerosas, mas não infinitas. Obedecem a regras estéticas de forma e estilo, em termos do que é considerado ideal: simetria, linhas paralelas, finas e regulares, textura fechada, proporções corretas” (Vidal, 1992: 174).

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momentos como a infância e os períodos de resguardo, em que os corpos estão com suas superfícies enfraquecidas e por isso estão mais suscetíveis e vulneráveis às agências não humanas. Momentos em que eles estão desfigurados, ou ainda não totalmente figurados, não podendo ostentar os grafismos considerados “bonitos” (mejx) pelos Mebêngôkre. Utilizo o termo desfiguração a partir de um dos significados específicos concedido a ele por Taussig em seu livro Defacement (1999): “Um dos sentidos de defacement é estragar a superfície ou a aparência de algo previamente existente” (Taussig, 1999 apud Caiuby, 2006: 290). Taussig “associa a desfiguração àquilo que ocorre quando algo muito precioso nos é retirado. A desfiguração, ao trazer as profundezas para a superfície, revela mistérios”. Procuro entender o processo vivido pelos Mebêngôkre durante os resguardos como períodos de desfiguração momentânea, quando a superfície do corpo está, temporariamente, “estragada” e, por isso, vulnerável, podendo tanto ser invadida do exterior para o interior por agências não humanas como levar à tona aspectos de suas profundezas, como o sangue e a alma. Nestes contextos específicos, é a pintura que refaz paulatinamente a pele até que a pessoa possa voltar a circular pela aldeia pintada por um grafismo previamente escolhido na sessão de pintura coletiva com os membros do mesmo sexo e da mesma faixa de idade, tal como faziam os homens, velhos e novos, nas cenas descritas acima. No início da vida, como nos momentos de proximidade da morte, a pintura age sobre o corpo, protegendo-o, endurecendo-o, vedando a pele, tendo, enfim, ação profilática e terapêutica sobre ele, no sentido de figurá-lo e refigurá-lo nos momentos em que a desfiguração está próxima. pele, sangue e alma Certa vez, estava acompanhando os homens em uma caçada coletiva para a realização da festa de ano-novo – cerimônia que os Mebêngôkre passaram a realizar depois do acirramento do contato com os não índios. Estávamos preparados para ficar dez dias na mata, cada vez avançando mais floresta adentro, quando no quinto dia soubemos que o cacique Akyabôro estava voltando à aldeia para acompanhar o parto de sua filha. Segundo notícias trazidas de lá, o parto havia se complicado, e a esposa mandou chamar o cacique para o caso de acontecer alguma tragédia.7 Sem o chefe por perto, todos os guerreiros resolveram voltar no dia seguinte. Durante a última noite no acampamento, um velho guerreiro me contou como era o processo de produção do feto. Primeiro, 7

Chegando à aldeia, soube que nada grave ocorrera durante o parto.

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o homem tem que trabalhar muito com a mulher, tem que deitar todo dia pra poder fazer perna e braço, pra poder fazer a cabeça e a pele. É o meýry (sêmen) do homem que faz. Faz até a barriga ficar grande, assim, do tamanho de um mamão. Depois que dá pra ver barriga, aí para, não pode mais deitar com a mulher. Já tá na barriga e o karõ (alma, espírito) também. Aí o resto é a mulher que faz, é o sangue da mulher que termina de fazer, porque se o homem continua fazendo, pode nascer punu (ruim, feio, com alguma deformidade).8

O processo de formação do feto pode ser entendido como um processo de figuração, no sentido de dar-lhe forma humana, pois é também o momento de constituição de seus órgãos internos (Gordon, 2006) e de sua pele. Se ele possui uma consistência líquida, sem forma definida, sua solidez e sua forma vão sendo constituídas a cada injeção de sêmen no corpo da mulher. Assim, tanto a superfície que dá forma ao corpo do feto, a pele (kà), como também os ossos (‘i), sua estrutura e a carne (nhin), seu preenchimento, são constituídos inicialmente por sêmen. Quanto à alma (karõ), seu elemento imaterial, é o único elemento que os Mebêngôkre, seguindo uma tônica amazônica, dizem não saber de onde vem. Cada um destes aspectos constitutivos do corpo Mebêngôkre possui uma conotação específica, muito próxima daquela registrada por outros autores entre os povos Jê do Brasil Central, mais especificamente entre os Timbira (DaMatta, 1976; Melatti, 1976; Carneiro da Cunha, 1978). Tanto para os Timbira como para os Mebêngôkre, o sangue é “entendido como algo que serve para sustentar o corpo” (Carneiro da Cunha, 1978: 101). Se, para os Krahô, “um corpo sem sangue fica todo encolhido”, para os Mebêngôkre as pessoas com pouco sangue são consideradas fracas. Isso porque o sangue é “um elemento considerado ‘duro’ e deve ser mantido numa quantidade certa: se o indivíduo possui pouco sangue ele fica mole (rérékre) e amarelo, se possui sangue demais ele fica preguiçoso” (Giannini, 1991: 148). A quantidade de sangue no corpo é um importante operador na diferenciação de corpos segundo o gênero e a idade. Assim, velhos e crianças possuem pouco sangue e são considerados fracos e moles (Gordon, 2006; Giannini, 1991; DaMatta, 1976). As mulheres são, por sua vez, consideradas mais lentas que os homens porque têm sangue em excesso. Os homens são considerados preguiçosos (mykangare) quando acumulam sangue em demasia no corpo e sofrem constantemente escarificações para retornar à situação ideal de “balanço sanguíneo” (Gordon, 2006: 318). 8

Esta narrativa é similar àquelas obtidas por Lux Vidal (1977), Vanessa Lea (1986, 1994), Isabel Giannini (1991), Clarice Cohn (2000) e César Gordon (2006); seguindo um certo padrão Jê, ao menos em sua porção setentrional, já evidenciada também por DaMatta (1976), Melatti (1976) e Carneiro da Cunha (1978).

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Outra característica do sangue compartilhada pelos Mebêngôkre com os Timbira diz respeito ao fato de o sangue ser “o veículo e o suporte material do karõ” (Gordon, 2006: 319). Como salienta Gordon, o balanço sanguíneo do corpo visa controlar não apenas a quantidade do sangue, o que diferencia os humanos entre si, mas também sua qualidade, o que diferencia os humanos dos outros seres que habitam o mundo (animais, plantas, espíritos, inimigos). Portanto, sendo o sangue aquilo que transporta a alma, “o contato imediato com sangue exógeno implica a absorção de um karõ exógeno resultando em doença e eventualmente em morte” (Gordon, 2006: 319). O sangue é assim um elemento extremamente perigoso, e tanto no Brasil Central como “em muitas partes da Amazônia, considera-se que o sangue derramado, e especialmente seu cheiro, tem um poder transformador sobre a experiência vivida” (Belaunde, 2006: 229). Se o controle da quantidade de sangue no corpo visa a diferenciação de humanos entre si (homens, mulheres, velhos, crianças), o controle de sua qualidade visa justamente não possibilitar a relação com agentes não humanos, o que se acontecesse ocasionaria a tão temida transformação. É por isso, e não por outro motivo, que todas as precauções relativas ao sangue evidenciam um interessante a princípio enunciado por Carneiro da Cunha (1978) para os Krahô – e depois generalizado por Belaunde em sua proposta de uma hematologia amazônica –, a saber: sangues diferentes (de humanos e não humanos, por exemplo) não podem ser misturados (Carneiro da Cunha, 1978: 103).9 É neste sentido que, para os Krahô, tal como para os Mebêngôkre e os Apinajé (DaMatta, 1976), as situações de resguardo visam justamente a tentativa de “restabelecimento do discreto”, isto é, de separar sangues diferentes que transportam karõs também diferentes (Carneiro da Cunha, 1978: 106-7). Isso fica mais evidente no resguardo do assassino, onde, segundo DaMatta, “o sangue indica precisamente a substância vital que foi tirada do morto e que contaminou o assassino” (1976: 86). Como veremos a seguir, todo o trabalho de resguardo entre os Mebêngôkre visa a retirar o sangue do morto do corpo do assassino, restabelecendo a qualidade correta do sangue. O sangue do pós-parto e da menstruação também são considerados exógenos, não necessariamente pertencendo à pessoa que os expurgou. Manuela Carneiro da Cunha retira daí uma importante conclusão comum à diversas situações de reclusão: “Estar diretamente envolvido no derrame de sangue é expor-se a ser penetrado por ele” (1978: 106). 9

Ou podem sê-lo somente em contextos excepcionais e em rituais que visam exatamente um processo controlado de “alteração”, como no caso dos Kaxinawa e de outros grupos Pano que consomem o coração e/ou os olhos da jiboia para incorporar suas capacidades agentivas, tornando-se parcialmente jiboia (Lagrou, 2008).

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Outra importante característica das situações de resguardo é aquela que põe em evidência a relação entre sangue e pele. A pele é justamente o que precisa ser violado para que o sangue exógeno penetre no corpo, provocando alteração e desequilíbrio. Entre os Mebêngôkre, seus etnógrafos são unânimes ao registrar o fato de que tanto doentes como recém-nascidos, e também pessoas em situação de resguardo, têm a pele enfraquecida e mole (Vidal, 1992, 1977; Giannini, 1991; Gordon, 2006). Assim, um dos procedimentos necessários às situações de resguardo ou de doença pouco comentado na literatura é justamente o restabelecimento dessa fronteira existente entre o sangue e o mundo externo. A palavra para pele (ká) tem o sentido geral de “envoltório”, sendo utilizada para “casca de árvore”, “pele/couro de animal”, “roupa” e, em palavras compostas, “vestido” (kuben kà), “sapato” (pat kà ou pari kà) e “avião” (màt-kà, “envoltório de arara”), por exemplo (Giannini, 1991: 152; Lea, 1986: 117; Coelho de Souza, 2002: 574). Entre os Krahô, Carneiro da Cunha registra significados parecidos para o termo khö e conclui realçando que todos “eles poderiam ser condensados na noção de ‘limite’ ou ‘fronteira’. (…) A pele é pois concebida como a ‘fronteira’ do organismo” (1978: 107). Conclusão semelhante é defendida por Terence Turner quando define, para os Mebêngôkre, “a superfície do corpo como uma fronteira comum entre a sociedade, o self-social e o indivíduo psicobiológico” (1980: 112). Turner afirma que a pintura corporal conforma uma segunda pele, social, que visa a socialização dos poderes naturais presentes no interior do corpo. Destas características da pele entre os Mebêngôkre, gostaria de sublinhar sua capacidade de envolver o sangue do indivíduo, retendo tanto o sangue como a alma ao corpo. A relação entre pele e sangue nas situações de resguardo foi explorada por Belaunde, em sua proposta de uma hematologia amazônica. A autora afirma que, “embora o sangramento seja em princípio definido como um atributo feminino, verter sangue, para ambos os gêneros, leva a uma mudança de pele/corpo” (2006: 217). Neste sentido, a autora aproxima as situações de resguardo aos momentos em que é necessário “trocar de pele” ou, em outras palavras, reconstituir o invólucro pelo qual o sangue escapou ou penetrou. Quero sustentar neste trabalho que a pintura corporal atua justamente na reconstituição dessa fronteira que é a pele, possibilitando um processo que Caiuby (2006), apoiada nos escritos de Taussig (1999), denominou “figuração do corpo”. Tanto na infância como nos períodos de resguardo é o trabalho de manipulação da pele através de tinturas específicas e de grafismos também específicos que se processa a figuração do corpo no sentido de dar forma a ele. Vejamos, primeiramente, como isso ocorre na infância, momento em que a pele da criança deve ser tacitamente preparada desde o nascimento para que seu corpo 255

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suporte a beleza (e o perigo) dos nomes e dos nêkrêjx (bens cerimoniais), quando reconectados a seus antigos donos durante as grandes cerimônias de nominação. nascimento, infância e nominação Quando chegamos à aldeia – depois da caçada coletiva interrompida pelo parto da filha do cacique –, manifestei minha vontade de acompanhar o nascimento de seu neto. Akyabôro desconversou e depois da minha insistência disse que ele também não veria e que, aliás, homem nenhum poderia assistir ou mesmo estar próximo do lugar onde seria realizado o parto. Durante todo o trabalho de parto que durou cerca de três horas, ele permaneceu sentado, imóvel, dentro de sua casa. Diante da impossibilidade de acompanhar o evento, pedi à enfermeira da aldeia que me fizesse um relato sobre o que ela tinha assistido. Ela disse que o parto é realizado em um lugar afastado da casa e que o chão é coberto com folhas de palmeira. A mulher fica de cócoras e, por baixo dela, entre suas pernas, senta-se sua mãe ou uma parente próxima, para literalmente segurar o recém-nascido (rwýk nýre).10 Outras mulheres próximas, geralmente irmãs e cunhadas, seguram os braços da parturiente. Logo depois de nascer, o recém-nascido é embrulhado em um pano, depois corta-se o cordão umbilical (na ocasião, segundo a enfermeira, esse procedimento foi feito com uma lâmina de gilete). Em seguida, retira-se a placenta, que é posteriormente enterrada. Enquanto isso, a criança recebe uma série de massagens nas pernas, no tronco e na cabeça, feita pela avó no sentido de dar a primeira forma humana a seu corpo. Essa massagem é feita com tintura de urucu, que vai sendo espalhada pelo corpo do bebê enquanto as mãos da avó materna vão modelando a cabeça e os membros.11 Depois, a mãe também espalha urucu no corpo e no rosto e toma um chá feito à base dessa substância para que estanque a hemorragia do pós-parto.12 10 Onde rwyk tem o sentido de “descer”, e nyre, de “recém”. Rwyk nyre, portanto, quer dizer literalmente “recém descido”. 11 “Quando de um nascimento que pude observar, da oitava filha de um casal, não havia urucu guardado na casa, e a avó paterna, que cuidava da criança logo após o parto (embora seja normalmente a avó materna que ajuda no parto e cuida do recém-nascido nas primeiras horas, sua nora não tinha mais mãe), mostrou-se aborrecidíssima não só de ter que recorrer a outras casas para tingi-la com o urucu, mas especialmente pela demora em fazê-lo. Reclamou que a criança já tinha nascido havia tempo (e isso se dava em sua primeira hora de vida), mas que permanecia kà iaka, com a pele nua, sem ter passado o urucu” (Cohn, 2000: 145). 12 Vidal descreveu processo similar entre os Xikrin do Cateté, um subgrupo mebêngôkre: “[Depois do parto] a mãe instalou-se sobre uma esteira e espalmou o rosto e o corpo com urucu. A avó também passou urucu no recém-nascido e, com a palma da mão esquentada sobre o fogo, massageou constantemente a testa e o occipício da criança. A cabeça foi submetida a uma verdadeira modelagem e as parentes se revezaram na operação” (1977: 88).

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O urucu é aqui um importante agente na formação do corpo e sobretudo da pele da criança. É a substância utilizada na primeira camada de tinta, espalhada uniformemente por toda a superfície do corpo. Como me informou depois Mokuká, o urucu é importante neste momento para, em suas palavras, “não deixar karõ (alma, espírito) sair”. É sabido, pelas etnografias de Vidal (1977) e Giannini (1991) que “desde a concepção o feto possui karõ. (…) Durante a gestação, o karõ da criança pode deixar seu corpo e brincar, perambulando pela aldeia e pelas adjacências. Isto é considerado normal, pois o corpo ainda está fraco: tem pouco sangue, pouca carne, está mole”. (Giannini, 1991: 143; Crocker, 1986).13 Mokuká me explicou que o urucu agia no sentido de ser uma primeira forma de endurecer a pele da criança, pois uma vez que ela havia nascido, o karõ deveria permanecer dentro do corpo: “Se karõ sair, fica fraco, pega doença e não vive, não.”14 Deve-se sublinhar, portanto, o caráter agentivo do urucu, no sentido de não permitir que o karõ saia do corpo. Ele age bloqueando a pele no sentido do interior para o exterior. A pele pintada de urucu atua como uma barreira para o karõ do recém-nascido, e isso é fundamental no início do processo de maturação corporal, cujo primeiro objetivo é dar forma humana ao corpo (Vidal, 1977), figurá-lo aos moldes mebêngôkre. A pintura de urucu, seguida das massagens, pode ser entendida como um primeiro esforço no sentido de humanizar a criança e endurecer sua pele vedando a possibilidade de o karõ sair do corpo. Essa característica específica do urucu pode ser realçada pelo fato de que assim como os Krahô, os Mebêngôkre definem o urucu antes como tintura do que como pintura (Carneiro da Cunha, 1978). O termo ‘ôk, que designa grafismo para os Mebêngôkre, não é utilizado para se referir ao urucu, sendo empregado apenas para os padrões realizados na pele com a tinta preta feita a base de jenipapo (m‘roti) e carvão (bàri pràn). O modo de aplicação do urucu é designado pela expressão genérica kumên 13 Entre os Bororo, “os bebês nascem com pouco sangue. Por esse motivo, seus espíritos estão conectados de forma fraca a seus corpos, têm pouco conhecimento e podem facilmente ficar doentes e morrer” (Crocker, 1986 apud Belaunde, 2006: 214). 14 Com a minha ingenuidade de etnógrafo iniciante, solicitei à enfermeira que, se tivesse oportunidade, tirasse uma foto do momento recente do pós-parto. Quando a indaguei sobre a fotografia, ela me disse que foi proibida não só de fotografar, mas de segurar a máquina fotográfica enquanto assistia ao parto. As mulheres envolvidas na ação disseram terminantemente que a máquina podia capturar o karõ da criança naquele momento de extrema vulnerabilidade. Em outra ocasião, eu quis registrar a foto de uma mulher muito idosa. Quando empunhei a câmera, um de seus filhos veio em minha direção e entrou na minha frente, como que bloqueando o corpo da velha, cuja imagem seria capturada pela minha fotografia. E era justamente isso que ele queria impedir, pois me disse que não podia fotografar velhos porque, igualmente a como acontece com o recém-nascido, seu karõ poderia ser capturado. Não é à toa, portanto, que os Mebêngôkre chamam a fotografia também de karõ. Considera-se que a fotografia possa causar danos a pessoas que estão em situação muito vulnerável, recém-chegados à vida, como as crianças que acabam de nascer e, mais próximos da morte, os velhos e as pessoas doentes ou de resguardo.

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e pela expressão específica kunõ. Se a primeira expressa uma forma de aplicação genérica como na expressão me kumên, “pintar as pessoas com urucu”, a segunda se aplica quando se quer pintar de urucu alguma parte específica do corpo, como por exemplo nas expressões me kuka kunõ (“pintar o rosto inteiro [homogeneamente] de vermelho”) e me pari kunõ (“pintar o pé de vermelho”). Essas duas tintas mais utilizadas pelos Mebêngôkre são diferentes não apenas no seu modo de aplicação sobre a pele, mas também no seu modo de produção. Enquanto o jenipapo é uma tintura crua, uma vez que a polpa de seu fruto é misturada diretamente ao carvão moído, o urucu pode ser considerado uma tinta cozida. O longo processo de produção do urucu se inicia com a sua coleta e depois com a separação das sementes, de onde será extraída a tinta vermelha. Em seguida, colocam-se as sementes na água. Elas devem permanecer de molho por um dia inteiro. De vez em quando, as mulheres espremem as sementes para soltar a tinta. Depois, retiram o líquido vermelho, coando as sementes, que são prontamente dispensadas. O próximo passo é colocar o caldo em uma panela e levar ao fogo por cerca de quatro horas, até que se forme um líquido espesso. Esse processo de cozimento faz com que reste apenas um terço da quantidade inicial do líquido. Feito isso, passa-se o líquido para um pedaço de pano, que tem a função de coador, e pendura-se esse pano numa árvore para que o restante do líquido escorra. Por fim, espreme-se o pano até que se obtenha uma massa dura e compacta. Além de seu caráter eminentemente estético, quando cobre certas partes do corpo durante as cerimônias, eu gostaria de destacar o caráter terapêutico que o urucu possui em diversas ocasiões. Não sendo apenas expressivo, como queria Vidal (1992), nem somente relacionado a certas partes do corpo (como a cabeça, o rosto, os antebraços, as canelas e os pés) que estão mais próximas do contato com a “natureza”, como aponta Turner (1980), sugiro que esta tintura tem conotações de um poderoso “remédio”, utilizada não apenas para comunicar à sociedade certas condições específicas do corpo, mas também para tratá-lo em determinados contextos. É por isso que o urucu é constantemente utilizado nos momentos de doença, espalhado no rosto e por todo o corpo, tal como é feito com o recém-nascido, e também em forma de chá servido à parturiente no período do pós-parto. Além disso, à tintura de urucu são adicionadas outras plantas, consideradas pidjô (remédios), quando ela é aplicada em doentes, resguardados e recém-nascidos. Aqui, tal como para os Apinajé, “a noção de processo é fundamental”, pois tanto “a criança é feita aos poucos” (DaMatta, 1976: 88) como também é aos poucos que o corpo dos doentes ou dos resguardados se recupera. Lux Vidal (1992) em seu trabalho precioso sobre a pintura corporal xikrin demonstrou a existência de uma estrutura pictórica recorrente nas peles de recém-nascidos, doentes e resguarda258

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dos. Em todos eles, o primeiro procedimento concedido ao corpo é marcado pela aplicação de urucu na pele. Diante desse fato recorrente, pode-se estender o que disse Mokuká sobre o efeito do urucu sobre a pele do recém-nascido para essas outras ocasiões em que os corpos voltam a estar moles e fracos como o dos bebês. Trata-se, assim, de compreender o urucu como uma primeira ação no sentido de figurar (no caso do recém-nascido) ou de refigurar (no caso dos doentes e resguardados) o corpo, através da reconstituição imediata desse invólucro que configura a pele. Não permitir que o próprio karõ saia do corpo parece ser um procedimento coerente quando se está em contato com sangues (e, portanto, karõ) exógenos. Outros efeitos parecem ter a pintura de jenipapo sobre a superfície do corpo. O bebê, por exemplo, só recebe uma primeira pintura com essa substância quando cai o cordão umbilical, ocasião em que já foi pintado de urucu, estando a pele já preparada para tal. Como veremos a seguir, o mesmo ocorre com outros corpos em estados similares ao do recém-nascido. Certa vez, conversando sobre esse assunto com Bepunu, ele me disse que a primeira pintura recebida na vida de um Mebêngôkre era “toda preta, sem desenho. Porque pintura com desenho é muito forte (àkre)”.15 Segundo ele, o corpo do recém-nascido não suportaria o grafismo: “Se fazer assim, com o kwýký (pincel), vai ficar na pele a vida toda.” Repetidas vezes, quando conversávamos sobre este tema, Bepunu me disse que o grafismo de jenipapo era muito forte e que quando aplicada em pessoas doentes demoraria muitos anos para sair, pois ultrapassaria a superfície mole do corpo, chegando ao seu interior. O mesmo parece ocorrer com o recém-nascido, por isso ele deve receber primeiramente um motivo neutro, sem grafismo, feito com a mão. Sua condição liminar – ainda não sendo totalmente humano, tendo a pele mole, em fase de endurecimento – não permite que ele receba as pinturas consideradas bonitas (méjx), feitas com pincel muitas e muitas vezes durante a infância. Um processo análogo a esse foi notado por Cohn (2000: 145) entre os Xikrin: Quando cai o cordão umbilical, ela [a criança] é pela primeira vez pintada com jenipapo, com o motivo ibê, com os dedos. (…). Uma criança deve ser pintada com essa técnica até que tenha a pele “dura”; de fato, os Xikrin sempre apontam para o absurdo que seria a utilização do pincel na pele frágil (kà rérékre) de um recém-nascido. 15 Vidal já havia notado que, para os Xikrin, o recém-nascido era pintado com o motivo Tep ibe, “desenho constituído de linhas paralelas, verticais ( ) aplicado a dedo [que] representa indiscriminadamente a mancha do couro da anta nova, do veado novo ou do pequeno peixe” (1992: 161). Por outro lado, Cohn (2000: 145) afirma que “quando cai o cordão umbilical, ela é pela primeira vez pintada com jenipapo, com o motivo ibê ( ). No Bacajá, as pessoas dizem apenas ibê e explicam que esse nome se refere ao modo como a pintura é aplicada, com os dedos”.

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Essa passagem é bem representativa da forma como é entendida pela autora a pintura corporal durante a infância. Segundo ela, a pintura é um importante marcador temporal das fases vividas pela criança, através de sua presença constante na “transição vivida na infância”, quando a criança adquire uma autonomia relativa através da aquisição da habilidade de se movimentar sozinha (2000: 160). Embora afirme que a criança “deva ser pintada com essa técnica [ibê, com os dedos] até que tenha a pele dura”, em momento algum ela se refere ao fato de ser justamente o ato de pintar a pele com essa técnica, ou mais especificamente com essa tinta, que a faz endurecer. Seguindo os estudos de Turner (1980) e Vidal (1992), a autora interpreta a pintura corporal na infância segundo uma visão sociológica, de acordo com a qual as mudanças na sua “ornamentação” através da pintura e de outras técnicas corporais são vistas como etapas importantes na demarcação da identidade social da criança. Embora sejam empreendimentos diferentes, levando a resultados também diferentes,16 os referidos trabalhos de Turner, Vidal e, consequentemente, o de Cohn partilham um mesmo “vocabulário” sociológico, onde a ênfase recai sobre o aspecto comunicacional e intrassocial da pintura corporal, não apenas como importante classificador de indivíduos e grupos, mas também como uma forma de socializar o corpo. Trata-se nestes estudos de decifrar uma linguagem: a pintura e os demais adornos configuram um código social que deve ser interpretado pelo antropólogo. No caso de Turner, a decifração dessa linguagem simbólica da pintura se manifesta na ideia da “imposição de uma segunda pele, uma pele social, sobre a pele biológica, nua do indivíduo. Esta segunda pele expressa simbolicamente a socialização do corpo humano – a subordinação dos aspectos físicos da existência individual aos valores e comportamentos sociais comuns” (1980: 34). Vidal, por sua vez, afirma que “deve-se enfatizar a importância de se considerar a pintura corporal como uma atividade em si, um meio de integração, controle e socialização, e uma maneira de, a cada momento, construir e reproduzir os princípios básicos da sociedade Kayapó” (1992: 146) “Imposição”, “integração”, “controle”, “comunicação”, “socialização”, “significado”: é este o vocabulário comum aos trabalhos de Turner, Vidal e Cohn. Sem querer questionar a importância das contribuições anteriores, gostaria de enfatizar outros sentidos da pintura corporal – mais voltados para agência e eficácia – que parecem ter sido ofuscados pelo vocabulário sociológico que marca a abordagem dos autores citados. 16 Grosso modo, Turner (1980, 1995) se atém a todo o processo de produção do corpo, incluindo os adornos corporais, enquanto Vidal (1992) faz um trabalho mais minucioso no que diz respeito à própria pintura corporal em si. Cohn (2000), por sua vez, está interessada na infância como período importante na constituição da identidade social da criança, demonstrando como na própria infância existe uma sequência de pinturas que seguem o processo de crescimento da criança.

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A sequência de pinturas de jenipapo com grafismos que o bebê começa a receber depois da pintura neutra, “toda preta”, age como um importante preparador da pele da criança para o momento da transformação ritual em que terá contato direto com agências não humanas. Trata-se do início de um processo paulatino de endurecimento da pele que visa, na verdade, o embelezamento, a preparação para o ritual de nominação, em que os corpos das crianças nominadas devem suportar a máxima “beleza” (méjx) Mebêngôkre, quando são adornados com penas, cocares, colares de dentes, braceletes, braçadeiras, pulseiras, colares de miçangas, máscaras de casca de ovo de azulão, penugens de periquito, dentre outros adornos, geralmente adquiridos, roubados e produzidos através de relações de alteridade (com inimigos, seres animais, vegetais, sobrenaturais, espíritos; enfim, não humanos).

Figura 3: Meninas enfeitadas para a festa Menire Bjôk. Foto: André Demarchi.

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Outra característica que os Mebêngôkre compartilham com os demais Jê, sobretudo com os Timbira, é o fato de os nomes serem apreendidos pelos xamãs de animais ou seres sobrenaturais (Vidal, 1977; Turner, 1995; Lea, 1986; Coelho de Souza, 2002; Gordon, 2006). Daí advêm a força, a potência e a beleza tanto de nomes como de nêkrêjx. (Gordon, 2006: 318). Os rituais de nominação Mebêngôkre são momentos em que ocorre “a ressubjetivação dos nomes bonitos [e também] de toda a parafernália cerimonial, tudo aquilo que é pensado como apropriação de outrem e que faz sua aparição no ritual. Neste contexto, eles estão novamente reconectados a seus donos originais, voltam a ser animalizados e, por isso, tornam-se verdadeiramente bonitos (idem)”17. Os nomes e nêkrêjx são, portanto, altamente perigosos, e para recebê-los o corpo deve estar devidamente preparado, com a pele endurecida pelas inúmeras camadas de grafismos recebidas pelas crianças durante a infância. A pintura corporal de jenipapo age assim como um importante protetor da pele, acostumando a criança para que no contexto ritual seu corpo possa suportar o “peso” agentivo dos nomes e não seja violado pelas substâncias perigosas presentes nos nêkrêjx. É importante notar que no contexto do ritual as crianças, tal como os adultos, têm a pele cuidadosamente pintada com grafismos e que é justamente sobre ela que serão postos os nêkrêjx. Além disso, Coelho de Souza tem apontado para a face mais especificamente “pele” do nome, no sentido de que este “veste” a pessoa. Esse aspecto do nome, sugiro, corresponde à objetificação das relações que constituem a pessoa como parente e, assim, às transações entre cruzados e paralelos, nominadores e genitores, mentores e propagadores, bem como maternos e paternos (…) Mas o nome é também sob outros aspectos ‘alma’, ele sobrevive à morte e está ligado ao ritual e a seus personagens (2002: 573).

Minha hipótese sugere que no cotidiano, quando as mulheres da aldeia pintam os seus filhos, maridos, sobrinhos e netos, elas compartilham com eles uma substância a mais do que os fluidos corporais necessários para a reprodução dos grupos domésticos (Melatti, 1976; DaMatta, 1976); compartilham a tintura de jenipapo que reage na pele em forma de grafismo, produzindo parentesco. Neste sentido, os grafismos possuem uma face comum à dos nomes. As sessões de pintura corporal seriam, numa chave sociológica, a própria concretização cotidiana, pro17 “Certamente, essa ‘animalização ritual’ visa no fim das contas à distinção entre humanos (Mebêngôkre) e animais, e entre Mebêngôkre e kuben [branco, inimigo, indivíduo de outro grupo indígena ou de outra natureza que não a humana] – afinal o ritual está ali para contar como, justamente, os animais (e kuben) foram os ‘donos’ desses itens no tempo pretérito, tendo-os perdido para os Mebêngôkre, seus ‘donos’ no tempo presente” (Gordon, 2006: 323).

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cessual, da produção do parentesco no âmbito doméstico. Entretanto, enquanto no ritual o nome mostra sua face “alma”, visando a transformação devido a sua reconexão com seus antigos donos, a pintura, neste contexto, reage a isso. Embora outros autores (como Vidal, 1992; e Giannini, 1991) tenham apontado para o que poderíamos denominar a face “alma” da pintura, quando é usada no ritual como parte das técnicas de transformação do corpo, quero realçar outra particularidade de seu uso nestes contextos. Sugiro que é ela a responsável por não permitir que as agências dos nêkrêjx colados ao corpo penetrem em seu interior, o que poderia provocar a desfiguração máxima, que é a morte. Ela é assim parte importante dos procedimentos que permitem que a criança suporte, no momento ritual, o lado “alma” do nome, sua reconexão (e à dos nêkrêjx) a seus antigos donos, uma vez que reforça ou mesmo constitui essa fronteira que é a pele. Em contraste com o urucu, que quando adicionado à pele prende o karõ no corpo, o jenipapo age no sentido contrário, bloqueando a possibilidade de outros karõ (ou do karõ de outros) penetrarem em seu interior. Isso ocorre no contexto do ritual,18 onde os corpos, além de adornados, têm sua pele longamente preparada através de elaborados grafismos, mas também no cotidiano, quando as mulheres passam boa parte do seu tempo livre pintando as peles de suas crianças. O uso de grafismos de jenipapo parece ter realmente um valor, não apenas estético, mas também profilático, como destacou pioneiramente Lea: “Os espíritos dos mortos [mekarõ] temem a tinta preta de jenipapo” (1994: 97).19 O grafismo possui esse mesmo valor profilático quando cobre os corpos dos participantes dos rituais, e a isso se deve a importante noção de contágio existente entre os Mebêngôkre. Como vimos acima, o contato corporal com certos elementos animais pode causar sérios danos à saúde, que são acentuados quando o contato ocorre através do sangue, pois na hematologia mebêngôkre o contato com sangues de outros implica necessariamente a possibilidade de absorção de um outro karõ (Gordon, 2006: 319). Contudo, não é apenas o sangue o único veículo do karõ. Certas partes de animais, como as peles, as penas, os dentes, ou representações zoomórficas deles, como as máscaras, também podem transmitir karõ e provocar doenças através de outras formas de contágio que não ocorrem pelo sangue. Em relação às máscaras, a própria visão delas pode acarretar sérios danos à saúde de crianças e 18 Contexto em que “até os espíritos descarnados mekarõ, os mortos mebêngôkre, voltam à aldeia” (Gordon, 2006: 324). 19 E não apenas ela, outra substância utilizada para combater a possibilidade de penetração dos mekarõ no corpo da criança durante os rituais é a resina ráp, que possui um cheiro forte e é aplicada em forma de grafismos diagonais nas duas extremidades da parte raspada do couro cabeludo que compõe o corte de cabelo mebêngôkre.

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mulheres.20 E é para proteger o corpo da agência dessa outra pele, do envoltório de um outro, que os homens só vestem a máscara com a pele devidamente pintada. As penas, por sua vez, também possuem agência significativa entre os Mebêngôkre. Giannini registra que, durante o resguardo por homicídio, os homens dançavam com ornamentos feitos de cipó batido, para somente depois, ao fim do resguardo, quando o corpo já estivesse novamente reconstituído, se ornamentarem com artefatos plumários (1991: 172). Neste sentido, ela destaca que a plumária é utilizada gradativamente durante a infância, devido ao seu alto teor de agência, resultante do fato de as aves serem “criação dos heróis mitológicos”, sendo os artefatos plumários, portanto, “os últimos elementos a serem simbolicamente incorporados”. Em relação ao uso de penas durante a infância, ela registra que crianças que ainda não andam (...) não podem tocar ou manipular penas, pois isto causar-lhes-ia a morte. Somente depois de andar, quando já tem o corpo “duro”, a criança poderá suportar os artefatos plumários e bem mais tarde (aos 8 ou 10 anos) é que poderá ser ornamentada com ovo de azulona na face. (Giannini, 1992: 173).

Essa dimensão processual, como vimos acima, foi destacada por Cohn (2000; 2009) em sua pesquisa sobre a infância entre os Mebêngôkre. Neste mesmo trabalho, a autora interpreta o fato de que as mães submetem as crianças, esporadicamente, a uma pesada ornamentação – prerrogativa a que somente elas têm direito – como uma “forma de afirmar e reafirmar continuamente” sua identidade social, de modo a fazer conhecer aos demais membros da comunidade seus bens cerimoniais (2009: 25). Contudo, pode-se interpretar este fato de modo diverso quando se nota que as mães só começam a fazer essa ornamentação quando a criança já é relativamente autônoma (já fica em pé e anda sozinha), ou seja, quando sua pele já foi paulatinamente endurecida pelos grafismos que recebera de quinze em quinze dias até aquele momento de seu desenvolvimento corporal. É somente depois disso que as crianças são adornadas com nêkrêjx. Estes, por sua vez, como bem notou Giannini, estão referidos à categoria das aves. Segundo a autora, o “termo não pode ser empregado para máscaras, braçadeiras, franjas e hastes. Quanto a enfeites, colares, braçadeiras, cocares, cintos, chocalhos, eles serão considerados riquezas Xikrin (nekrei) se possuírem penas de aves” (1991: 96). Sugiro que além de demarcar a identidade social da criança, concedendo visualidade às suas prerrogativas rituais, a ornamentação esporádica torna visível o processo de produção da pele da criança tanto no sentido de prepará-la para 20 Durante a festa de nominação Kokô, quando os Mebêngôkre confeccionam as perigosas máscaras Pát (tamanduá bandeira), as cômicas máscaras kubut (macaco prego) e kukôire (macaco guariba), e as misteriosas máscaras Kokô, os homens se retiram da aldeia para a mata para produzi-las, porque mulheres e crianças não podem vê-las, muito menos tocá-las ou vesti-las.

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o contato com as penas e outros agentes relacionados aos animais como no sentido de bloquear seu corpo, não permitindo sua contaminação quando esse contato efetivamente ocorre no cotidiano e, sobretudo, no ritual. O que estaria em jogo, então, não seria somente a afirmação da identidade social da criança, mas a afirmação e a reafirmação contínuas do próprio fato de que o corpo da criança suporta os nêkrêjx e os suportará por ocasião do ritual de nominação, sem perigo de contágio e, consequentemente, de doença e morte. A partir dessa hipótese, torna-se possível repensar outro fato constante na etnografia de Vidal (1992) e, posteriormente, incorporado por Cohn (2000; 2009) em seu estudo sobre a infância Mebêngôkre. Trata-se da conclusão das autoras de que “a criança é um agente passivo, pintada por sua mãe de acordo com sua [da mãe] escolha de momento e motivos” (Cohn, 2000: 136). Na leitura de Vidal (1992: 174), “as crianças são agentes passivos que, deitados na esteira e meio adormecidos, ficam submetidos à carícia constante e regular do pincel materno”. Gostaria de chamar atenção aqui para o lento processo de preparação da superfície do corpo da criança, que exige dela também uma ação, ou melhor, uma reação corporal. Torna-se possível diferenciar então duas formas de agência: uma passiva que se observa no comportamento da criança durante as sessões de pintura, algo que é também um aprendizado; e outra, ativa, que corresponde a uma agência corporal, pois a pele da criança precisa reagir às camadas de tinta que conformam os grafismos durante o lento trabalho da pintora. Neste segundo caso, e nos termos propostos por Gell (1998), pode-se pensar a pele da criança como um “paciente”, pois reage à agência da pintura. Neste sentido, a criança pode ser vista tanto como um “agente passivo” (tal como salientado pelas autoras) quanto como um “paciente ativo”, isto é, “another ‘potencial’ agent, capable of acting as an agent or being a locus of agency” (Gell, 1998: 22). A importância mencionada acima de produzir a pele da criança para que reagindo à pintura ela possa receber penas (ou enfeites que contenham penas) encontra ressonância mitológica na história de Àkti, o Grande Gavião. Antigamente, os índios eram mansos, fracos e não tinham armas. Eles viviam à mercê de Àkti, o gavião gigante, que os caçava, carregava-os pelo céu até seu ninho e os devorava. Um dia, uma mulher velha foi ao mato com seus dois sobrinhos (netos) pequenos para tirar palmito. Ali ela foi atacada por Àkti diante dos meninos, que fugiram aterrorizados para a aldeia. O pai (ou tio) dos meninos (irmão da mulher devorada pelo grande gavião), movido pelo sentimento de vingança, descobre um meio de liquidar o monstro, transformando seus sobrinhos em super-homens. Ele coloca os meninos dentro de um grotão, alimentando-os com beiju, banana e tubérculos para que cresçam bastante e fiquem fortes. Passam-se os dias, e é como se os meninos fermentassem dentro d’água. Depois de um tempo, eles haviam crescido e 265

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se tornado enormes, mais fortes e capazes que qualquer índio. Caçavam antas e outros animais grandes como se elas fossem pequenos roedores. Um dia, então, Kukry-uire e Kukry-Kakrô saem para caçar Àkti munidos de borduna, lança e um apito de taquara, armas feitas pelo tio. Ergueram um abrigo de palha no chão, de onde se via o ninho do gavião. Ao pé da árvore havia uma pilha de restos humanos, como ossos e cabelos. Os irmãos atraíram Àkti soprando o apito. A imensa ave descia pronta para o ataque, mas eles escondiam-se no abrigo, deixando-a desnorteada. Fizeram assim muitas vezes, deixando o pássaro cada vez mais furioso e desorientado, até que mostrou sinais de cansaço. Os irmãos, então, mataram-no com lança e borduna. Como troféu tiraram as penas de Àkti e puseram na cabeça. Cantaram. Celebraram. Depois depenaram a ave e retalharam-na em pedaços pequenos. Sopraram as penas, e elas foram transformando-se em pássaro. As penas maiores deram origem às aves maiores (gavião, urubu, arara); as plumas menores, aos pequenos pássaros, como o beija-flor (Gordon, 2006: 213-214).

Além de evidenciar, nas palavras de Gordon (2006), uma “inflexão perspectivista” mebêngôkre, este mito reencena o processo que venho descrevendo aqui, feito e refeito pelas mães e avós em seus filhos e netos durante a infância, visando a um momento ápice em que o corpo, depois de longamente produzido, deve ser testado. Todos estes procedimentos corporais visam, por um lado, à figuração do corpo humano e, por outro, à preparação dele para o momento em que será refigurado pela transformação ritual. Visam, no mesmo sentido, a produzir o “ator social ordinário”, o “parente”, mas também o “agente”, aquele que pode se transformar no ritual (Turner, 1995; Coelho de Souza, 2002; Gordon, 2006). Parece-me que é justamente este último processo que está evidenciado no mito de Àkti. Para se tornarem agentes, os heróis (que no mito são meninos) recebem uma dieta especial à base de bananas, beiju e tubérculos. Em outra versão desta narrativa, coletada por Vidal (1977: 225), pode-se ler que, além de à dieta, os corpos dos garotos foram submetidos a um tratamento na pele, à base de urucu e coco, depois de serem limpos “da sujeira e do melado do peixe” com talhas de palmeiras, as mesmas utilizadas pelas mulheres na pintura corporal. Essa preparação do corpo visa ao seu aumento e ao seu fortalecimento para um momento especial de enfrentamento do inimigo. O interessante é que não só a preparação, mas o próprio rito está contido no mito. Depois de matarem o grande gavião, os heróis roubam-lhe as penas, colocam na cabeça, dançam e celebram. Apoderam-se da beleza do inimigo, suas penas, e rapidamente as colocam para circular no sistema cerimonial mebêngôkre como sua principal riqueza. O mito de Àkti, além de demonstrar a passagem dos Mebêngôkre de presas a predadores, de fracos (rérékre) a fortes (týxt), de mansos (uabô) a bravos (àkre) (Gordon, 2006), assinala justamente o processo necessário para atingir tal objetivo. Para que se tornem heróis mitológicos e possam não apenas enfrentar o 266

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grande predador e matá-lo, mas também inventar a plumária, a riqueza máxima mebêngôkre (e todos os perigos que ela implica), os meninos são submetidos a um período de reclusão, durante o qual são alimentados por uma dieta específica e têm sua pele tratada com substâncias também específicas: um procedimento comum entre os Mebêngôkre nos momentos em que os corpos estão mais vulneráveis às agências não humanas. Seja em situações cujo objetivo é o enfrentamento direto com o inimigo, como no caso dos meninos heróis mitológicos, das expedições guerreiras, das caçadas coletivas e da iniciação masculina; seja em contextos em que é necessário se resguardar ao máximo de qualquer possibilidade de contato com não humanos, como no caso dos momentos de resguardo por nascimento do primogênito, por luto, por homicídio ou, ainda, por doença. Gostaria de me ater agora a estes contextos, para perceber a agência da pintura nestes momentos de vulnerabilidade e sua relação com as substâncias e os limites do corpo Mebêngôkre. resguardo e luto A morte é dura. Ainda mais dura é a tristeza. (Provérbio dos índios Fox)

Durante minha pesquisa de campo, presenciei o funeral de uma criança de pouco mais de seis meses de idade e o posterior luto obedecido pela família. Recordo que fiquei extremamente impressionado, como outros pesquisadores dos Jê, com a violência manifestada pelos parentes quando expressam sua dor depois da perda de um ente querido. Já havia me impressionado quando presenciei o choro ritual realizado no encontro de dois parentes que não se veem há muito tempo, mas nada comparado às ações de autoagressão multiplicadas durante o funeral. Transcrevo aqui um trecho do diário de campo escrito alguns dias depois destes acontecimentos marcantes: Quando estávamos prestes a almoçar, eu e a enfermeira, ouvimos o barulho do avião que traria o corpo da criança. Era por volta de duas da tarde, e eu não imaginava tudo que iria enfrentar durante o resto do dia. Quando o avião pousou, uma multidão de crianças invadiu a pista. Rapidamente, o pai, acompanhado da mãe, saiu do avião com o corpo da criança nos braços, enrolado em um manto azul-escuro, e seguiu em cortejo fúnebre pela pista de pouso. A tristeza era geral e absoluta. Estando um pouco atrás do pai da criança momentos antes de ele entrar em sua casa, pude ouvir – no momento em que ele adentrou pela porta – o estalar dos corpos dos parentes se debatendo no chão. Todos se machucando muito, se jogando no chão, esmurrando o próprio rosto, cortando a própria cabeça com facão. A dor em toda casa era lanci267

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nante. E era tudo muito tumultuado com pessoas se autoagredindo e outras tentando evitar que as outras se machucassem. O corpo da criança foi sendo passado de mãos em mãos entre os parentes próximos, todos eles se agredindo muito enquanto seguravam o bebê no colo. Por fim, o corpo chegou aos braços da avó materna, sem dúvida a mulher mais alterada do funeral. Depois de chorar muito e de discursar em nome do neto, ela se acalmou por um tempo, despindo-o e colocando-o de bruços em seu colo para que uma outra mulher, da mesma classe de idade dela, pintasse o corpo do bebê. Aquela cena que vi muitas vezes no cotidiano da aldeia era agora encenada pela última vez naquele corpo, envolta em uma névoa de tristeza e desconsolo. Enquanto a criança ia sendo lenta e cuidadosamente pintada com o grafismo do jabuti (kapran ôk), um silêncio cortante caía sobre a aldeia. As mulheres conversavam sussurrando, e de vez em quando o silêncio era quebrado por um pranto forte de algum parente se debatendo no chão. Assim foi durante toda a pintura, que durou cerca de duas horas. Quando terminou, a avó, ajudada pela irmã da mãe, foi enfeitando lentamente o bebê. Primeiro, com um grosso colar de miçanga azul e amarelo (obikaniere). Depois, os brincos e as braçadeiras, seguidos das pulseiras, tornozeleiras, dos cintos e brincos, todos feitos com miçangas. Dois shorts completavam a vestimenta da criança. Por fim, a avó cortou com gilete o cabelo do neto, à moda mebêngôkre, e depois raspoulhe as sobrancelhas, arrancou-lhe os cílios e passou-lhe óleo de babaçu nos cabelos, enrolando-o num manto azul. Enquanto a criança era enfeitada, a mãe separou seus pertences, como roupas, fraldas, colchão, coisas de higiene pessoal, sua rede, roupas de cama, travesseiro, enfeites, tudo que seria sepultado em conjunto com o corpo. Terminada a arrumação da criança, houve um novo surto de crises de autoagressão, com praticamente todos os parentes próximos da criança se debatendo no chão. E tudo foi muito rápido. Quando vi, um dos tios maternos saía da casa com a criança no colo. Fui atrás, junto com a enfermeira. Quando chegamos ao cemitério, o corpo estava sendo colocado em um caixão doado pela FUNASA,21 que logo foi depositado na cova retangular, junto com os pertences. Depois cobriram o buraco com um colchão, posteriormente encoberto com lona e terra. Outra lona foi finalmente colocada por cima do monte de terra. Depois do sepultamento, voltamos à casa dos pais, que estava praticamente destruída. Já era noite, e os parentes próximos ao morto estavam deitados em esteiras e colchões depositados no chão do que restara da casa. Estavam com os corpos muito machucados e com os rostos inchados de murros e lágrimas. Eu estava muito cansado, completamente sujo e com a roupa rasgada. Sentei num toco do lado de fora da casa, acendi um cigarro e, ouvindo os murmúrios de dor dos parentes, não pude conter as lágrimas. (Diário de campo, cinco de fevereiro de 2010)

Um ano e meio após esses acontecimentos, com o distanciamento necessário para voltar novamente aos fatos, gostaria de destacar o processo de desfiguração que a morte de uma pessoa desencadeia, neste caso não no próprio moribundo (Caiuby, 2006), mas nos corpos dos seus parentes próximos. Sem tempo nem espaço para analisar todo o funeral neste artigo, quero enfatizar esse processo 21

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de desfiguração realizado através dos atos de violência empreendidos no próprio corpo, além do processo de refiguração realizado durante o luto. Em sua etnografia imagética a respeito do funeral Bororo, Caiuby afirma que “é preciso figurar bem aquilo que será desfigurado”; por isso, ocorre todo o trabalho de embelezamento do morto, para que com o enterro se inicie o processo de desfiguração (2006: 290). Mas e os parentes próximos? A eles me parece ocorrer o contrário. No caso dos Mebêngôkre, é preciso desfigurar bem aquilo que será refigurado. É este processo que o luto desencadeia: a refiguração de corpos dilacerados pela dor. Tudo se passa como se para figurar pela última vez o morto, todos os seus parentes próximos devessem se desfigurar, arranhar a superfície do corpo, agredi-la através de socos e golpes de facão, destruí-la parcialmente se debatendo no chão. É como se, para pintar pela última vez a pele do morto, sacrificassem a própria pele, que não voltará a ser pintada por um longo período. Demonstrei acima como após o nascimento a criança tem primeiro seu corpo tratado com urucu, cuja ação na pele do recém-nascido visa justamente prender o karõ ao corpo no momento em que o bebê ainda não está preparado para suportá-lo. Já o jenipapo, como vimos também, age na preparação da pele durante toda a infância, no sentido de endurecê-la, bloqueando o corpo da possibilidade de penetração de karõ exógeno. Gostaria de estender essa hipótese para os casos de luto e resguardo por homicídio entendidos aqui, seguindo a sugestão de Belaunde, como momentos de “troca de pele” (2006: 228), momentos que exigem um trabalho específico sobre a superfície do corpo, seja no sentido de refigurá-lo, seja no sentido de, posteriormente, protegê-lo. No período de luto, que durou pouco mais de um mês, os pais da criança, e também seus avós e tios maternos e paternos, permaneceram em casa, comendo uma dieta específica à base de batata doce, inhame e banana, não saindo nem para tomar banho no rio, o que era feito na torneira localizada do lado de fora da casa. Alguns dias após o funeral, Mokuká me contou que na cultura deles “era assim mesmo. Ninguém pode sair. O corpo tá fraco, fica mole de novo. Fica kanet (doente)”. O perigo de ter o corpo mole é agravado pelo fato de sua superfície estar dilacerada, coberta de feridas e hematomas causados durante o funeral. O luto para os Mebêngôkre, diferentemente do que é para os Krahô, é também um momento de derramamento de sangue. Carneiro da Cunha registra que para os primeiros o luto difere das outras ocasiões de resguardo porque “não supõe nenhuma restrição alimentar, pois não é um resguardo de sangue” (1978: 54, grifo da autora). O mesmo não ocorre entre os Mebêngôkre: tal como nos outros contextos de resguardo, os pais da criança morta observaram séria restrição alimentar e permaneceram sem sair de casa por um longo período. Se, como afirma 269

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Mokuká, os parentes não podem sair de casa, isto ocorre porque, tanto como os humanos, os mortos sentem saudade (aumá) e retornam constantemente para tentar levar consigo, para a aldeia dos mortos, os parentes próximos. A saudade destes, por outro lado, faz com que suas almas fiquem vulneráveis ao movimento de exteriorização e desprendimento do corpo, e queiram se juntar novamente ao parente morto, correndo o risco de que venham a se instalar com ele na aldeia dos mortos. Esse poder de atração pela saudade que o mekarõ do morto exerce sobre seus parentes é extremamente perigoso. É por isso que os enlutados devem ser isolados do convívio social. Devem permanecer em casa, espaço que, tal como o corpo, precisa ser paulatinamente reconstituído como que numa metáfora da própria reconstituição do envoltório dos corpos que ali habitam. Durante o luto, a aplicação do urucu só começou a ser realizada uma semana após o sepultamento, tempo necessário para as feridas curarem minimamente através dos banhos de ervas tomados pelo casal. Marido e esposa permanecem durante um período de aproximadamente duas semanas se pintando esporadicamente com urucu, como que reconstituindo a pele, fazendo permanecer seu próprio karõ no corpo, e preparando-a para a pintura de jenipapo que viria em seguida. Na última semana do luto, quando começaram a esboçar os primeiros movimentos para fora da casa, tanto o pai como a mãe cortaram o cabelo à moda Kayapó e pintaram corpo e rosto com a tintura negra de jenipapo que conforma o motivo me týk.

Figura 4: Rapaz com pintura me tyk. Foto: André Demarchi.

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Processo semelhante pode ser observado durante o resguardo dos guerreiros que cometeram homicídios. Dizem os Mebêngôkre que, quando um homem comete assassinato, o contato com o sangue do morto faz com que o karõ deste penetre no corpo do assassino. Todo o trabalho de resguardo dos guerreiros visa a retirar o karõ do morto de seu corpo, através da expurgação e da secagem do sangue por meio de escarificações e banhos de sol, e também com aplicações de urucu e jenipapo, banhos de ervas e dieta específica. No relato coletado por Giannini após um ataque coletivo que ocasionou a morte de um homem Araweté, um matador descreve todo o processo: Quando matamos Kubenkamrit não podíamos comer nada. Fomos para acampamento no mato (…) e fomos banhar no rio e esfregar forte no corpo folhas do mato que só velho sabe. Depois pintou de urucu e carvão. Não pode comer nada, só depois de pintado é que pode comer carne de jabuti branco: tá duro. O veado e outra caça, não pode: tá mole. (...) Não pode falar com elas [mulheres e crianças], não pode olhar senão ficam amarelas e morrem. Ao chegar na aldeia tem que buscar pedras, tem que cobrir o chão do ngob [casa dos homens] e ficar sentado em cima. (…) Tem que ficar no sol, em cima das pedras, primeiro de frente, depois de costas. (…). Os velhos fazem escarificação com dentes de aruanã. Os velhos e homens casados com filhos são escarificados na frente, os rapazes atrás. Agora fica sentado secando o sangue no sol. Não pode dormir, se dormir não acorda mais. De noite vai banhar no rio. Faz isto durante vários dias. Depois vai banhar de tarde, volta e dança, usa só enfeite de cipó. Depois que secou bem o sangue, os homens se pintam no ngob com jenipapo, todo de preto. Vai dançar e depois pode ir para casa (1991: 149-150; grifo meu).

A aplicação do urucu visa permitir que o guerreiro ingira carne de um animal específico que só pode ser consumido depois que a pele estiver devidamente pintada. Ao utilizar a expressão “tá duro”, acredito que o “guerreiro” se refira ao fato de seu próprio corpo já estar duro o suficiente, depois dos banhos de ervas e da pintura com urucu, para comer a carne de jabuti, estando ainda mole para comer a carne de veado e outras caças. Não se trata, assim, de a carne do jabuti ser considerada dura (Giannini, 1991: 151), mas do próprio fato de que, para comer essa carne, o corpo deve estar minimamente preparado. Sem esse primeiro endurecimento, sem essa proteção mínima, possivelmente, o corpo já debilitado seria totalmente ocupado pelo karõ do morto, provocando a temida desorganização interna. O jenipapo, por sua vez, é utilizado somente depois de o sangue ter secado, no momento em que o resguardo está chegando ao fim, quando estão retornando às atividades cotidianas. O motivo é o mesmo aplicado no fim do luto, no corpo do recém-nascido e no de sua mãe e de seu pai: me tyk, “todo preto”. Essa passagem do urucu ao jenipapo nos períodos de resguardo já havia chamado a atenção de Vidal (1992), que, como notei acima, foi a primeira a revelar a 271

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existência de uma estrutura pictórica recorrente nestes contextos, atualizada pela pintura de urucu no início do período e pela pintura de jenipapo com o padrão me tyk (todo preto), realizada em seu fim. Vidal interpreta o uso das duas tinturas nestes momentos afirmando que “a pintura de jenipapo é essencialmente informativa, comparando-a com a tintura de urucu, que teria conotações mais expressivas, e está fortemente relacionada ao processo de socialização e controle social” (1992: 174). Essa afirmação me parece importante ao diferenciar as duas tinturas mais utilizadas pelos Kayapó nos termos de seus significados. Mas, pensando em termos de agência, pode-se resgatar o aspecto profilático, terapêutico e regenerativo da pintura, a partir do qual o urucu e o jenipapo, embora diferentes em cor e função, seriam acionados em dois momentos de um só processo de refiguração que parece dizer respeito aos cuidados com o corpo, no sentido de restabelecer suas fronteiras nos momentos de resguardo, doença, luto, restrições pós-guerra, preparação pré e pós-ritual, quando os corpos estão mais vulneráveis à agência não humana. Estes seriam momentos em que, como afirma Cohn, “a pintura atua como marcador temporal das etapas internas aos momentos de transição” (2009: 26). Seguindo a hipótese trilhada até aqui, sugiro que essas tinturas vegetais agem na refiguração paulatina do corpo e na sua proteção nesse momento de vulnerabilidade. Neste sentido, é preciso ressaltar, como o faz Giannini (1991: 172), a importância do elemento vegetal no processo de reconstituição do ser que possui sua configuração interna desordenada. Dos banhos de ervas, passando pelas aplicações de urucu até a primeira pintura de jenipapo, o corpo vai sendo refigurado e a pele vai sendo novamente endurecida, protegendo o indivíduo dos perigos que envolvem tanto as situações de resguardo como a quebra das restrições impostas por ele. Analisando os momentos de troca de pele em várias sociedades amazônicas, Belaunde afirma a existência de uma ideia recorrente: “Enquanto estão ‘trocando de pele/corpo’, homens e mulheres ficam suscetíveis a passar por uma transformação descontrolada que os transformaria em outros e os alienaria de seus parentes. Na pior das possibilidades, essa alienação os mataria” (2006: 229). Entre os Mebêngôkre, a “troca de pele”, ou sua completa refiguração, só se concretiza quando, de volta às atividades cotidianas, as pessoas que estavam de resguardo têm seu corpo pintado por um padrão que denominam ‘ok mejx (pintura bonita), escolhido e aplicado coletivamente por pessoas do mesmo gênero e da mesma faixa etária. Contudo, antes da refiguração completa, como que para ir testando o corpo, os resguardados (assim como o recém-nascido) são pintados com o motivo me tyk. Como vimos, ele sinaliza o fim do resguardo, quando o indivíduo volta a desempenhar as tarefas cotidianas. Não foi em vão que ele foi interpretado por vários autores (Vidal, 1977, 1992; Verswijver, 1992; Cohn, 272

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2000) como uma forma de comunicar à sociedade o retorno dos pais, sobretudo a volta do pai à esfera pública e cerimonial traduzida aqui pela “casa dos homens”. Contudo, sua utilização parece comunicar algo mais ou, em outras palavras, sua utilização visa a comunicação com alguém a mais que os humanos. Ela parece apontar para um momento em que o corpo já não está tão frágil quanto esteve logo nos primeiros dias do resguardo, quando a pessoa deve permanecer em casa, mas também ainda não se encontra totalmente protegida para que volte a circular pelas esferas não domésticas sem a devida proteção. Aqui talvez seja mais produtivo seguir a sugestão de Ewart (2000) para os Panará de não falar em “periferia” nem em “centro”, de opor o doméstico, não ao “cerimonial” ou ao “público”, mas à esfera do não doméstico. Em outras palavras, ao âmbito do não humano, dos mekarõ (espíritos) que perambulam pelas roças, pelas matas, pelo rio e, em ocasiões rituais, pela casa dos homens e pelas casas da aldeia, e cujo perigo a tintura negra de jenipapo busca combater. É importante registrar, neste sentido, uma afirmação de Lévi-Strauss sobre os Bororo, resgatada por Carneiro da Cunha em seu trabalho sobre a morte entre os Krahô. Segundo o antropólogo francês, registra a autora, os Bororo acreditam que a cor preta torna invisível aos mortos. Um Krahô por sua vez afirmou-nos que os mekarõ têm medo do preto; por isso, o assassino passa carvão no corpo inteiro enquanto dure o seu resguardo, para que o karõ de sua vítima, assustado, se afaste. Assim, também, por ocasião de diversos rituais, aqueles que estão mais vulneráveis aos ataques dos mekarõ traçam por precaução riscos pretos no canto da boca e no peito (1978: 117, grifo meu).

Essa passagem exemplifica com clareza a hipótese defendida até aqui. Tratase mesmo de um uso da pintura naquelas pessoas que estão “mais vulneráveis aos ataques dos mekarõ”. Neste sentido, os Mebêngôkre parecem estar mais próximos dos Krahô do que dos Bororo, mas, diferentemente dos dois, elaboraram outra forma, embora com a mesma cor preta, para afastar os espíritos. Pintam-se todos de negro quando consideram seu corpo ainda fraco, com a pele, a fronteira do corpo, ainda não totalmente dura para voltar aos espaços não domésticos sem a possibilidade de ser violada. Essas ideias permitem chegar a duas possíveis conclusões a respeito do uso dessa pintura específica neste momento preciso. Primeiro, ela prepara o corpo do indivíduo para receber a “pintura bonita”. No caso do luto, ela é o último estágio da refiguração do corpo que esse momento de troca de pele exige. Depois dele, os corpos podem voltar a suportar o modo belo (méjx) e correto (kumrem) de se apresentar (Vidal, 1992). Segundo, o motivo me týk bloqueia a pele e protege o corpo exatamente no período em que o indivíduo retoma suas tarefas cotidianas 273

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e passa a estar novamente exposto aos riscos de, quando estiver caçando na floresta ou plantando na roça, encontrar pela frente um mekarõ ou ser contaminado pelo sangue de algum animal. Para que isso não aconteça, é preciso fixar uma forma homogênea, toda preta, na superfície do corpo, para que suas fronteiras sejam vedadas. O corpo, como vimos anteriormente, é fluido, e vários elementos escapam dele, como a alma e o sangue, e outros podem nele penetrar, como a alma e o sangue de outros seres. O trabalho das mulheres Mebêngôkre é dar forma a uma superfície corporal, fixar nela um conjunto de linhas, com o objetivo de formar a figura do corpo. Poucos são os corpos que suportam, para usar uma expressão de Lagrou (2007), a fluidez da forma, a desorganização gráfica. Para encerrar este capítulo, gostaria de retornar a eles. Trata-se dos corpos dos homens, dos “guerreiros”, como gostam de dizer os habitantes de Môxkarakô; daqueles que tiveram que testar constantemente as superfícies de seus corpos, destruindo casas de maribondo, fazendo escarificações, queimando a testa ou os braços com brasa, passando a noite dentro da água. Somente eles podem suportar a desfiguração gráfica da pele, através da aplicação de traços aleatórios sobre o corpo, sem a figuração que a ação geométrica do pincel e do dedo proporcionam. O grafismo kran a mehn ‘ôk, o “dripping selvagem”, como o denominei, constitui-se de “marcas livres involuntárias (...), traços assignificantes desprovidos de função ilustrativa ou narrativa” (Deleuze, 2007: 14). Como vimos, o único significado dado a este motivo – que ele seria a “pintura da chuva” – foi feito em tom de piada, uma livre interpretação realizada para acalentar o ouvido atento do antropólogo. Sugeri anteriormente que ele deve ser considerado antes como uma performance. Aquele acontecimento na casa dos homens foi um ritual de afirmação, ou mesmo uma visualização ritualística da capacidade de aqueles corpos suportarem tal desorganização gráfica. E não apenas no sentido sociológico estrito, como uma afirmação da força ou do status dos mais jovens diante dos mais velhos, mas também, à la Lévi-Strauss, no sentido de uma “sociologia das fisiologias”, em que a assimetria ostensiva do padrão conforma e confirma a qualidade dura do corpo, um dos atributos centrais do guerreiro mebêngôkre. Não é por acaso, portanto, que mulheres e crianças nunca se pintam desta maneira. Talvez porque seu corpo não suporte tamanha falta de simetria. A exclusividade masculina deste antimotivo é a própria confirmação de que o longo processo de figuração e endurecimento do corpo e de suas fronteiras foi bem-sucedido, atingindo seu auge na própria desfiguração gráfica. 274

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figurar e desfigurar o corpo

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Tambor e espaço virtual no xamanismo cacasse1 Charles Stépanoff

Antes do período soviético, a maioria dos xamãs das populações autóctones da Ásia setentrional utilizava tambores para acompanhar musicalmente seus cânticos rituais. Esses tambores têm um lado aberto e um lado fechado por uma membrana, ornamentada em certas populações com desenhos compostos por várias dezenas de figuras coloridas. Os estudos etnológicos dessas imagens enigmáticas foram geralmente inspirados por um método que podemos qualificar de semiótico e cosmográfico. S. Ivanov (1954, 1955), V. Diószegi ([1978] 1998), Lot-Falck & Diószegi (1973) e E. LotFalck (1961) procuraram identificar a significação original de cada figura e integrá -la à “visão de mundo” compartilhada pela população da qual o instrumento era originário. Diószegi tenta assim trazer à luz o “pano de fundo ideológico” que as figuras “refletem” ([1978] 1998: 251). Da mesma forma, Basilov considera que os desenhos “refletem as representações sobre o mundo circundante e os espíritos” (1984: 87). L. Potapov estima que, “mediante a linguagem dos desenhos, espécie de escrita pictográfica, os postulados teológicos do xamanismo altai eram refletidos na superfície da membrana do tambor” (1991: 193). Essa abordagem choca-se com diversas dificuldades a partir do momento que observamos que os tambores jamais fornecem uma representação completa do panteão da população. Não raro variando frequentemente de um xamã para outro, eles ignoram as principais divindades e às vezes representam figuras que os próprios xamãs têm dificuldade em identificar. A leitura cosmográfica tende a reduzir os desenhos a uma representação icônica de uma representação mental 1

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Esta pesquisa nasceu de conversas estimulantes com Carlo Severi, a quem tenho a satisfação de exprimir aqui minha profunda gratidão por seus conselhos e apoio constantes. O texto foi traduzido para o português por André Telles, com revisão técnica por Els Lagrou. Os dados apresentados aqui puderam ser complementados graças a uma temporada na região de Minussinsk em março de 2011, financiada pelo projeto de pesquisa ANR “Anthropologie de l’art: création, rituel, mémoire”, dirigido por Carlo Severi.

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do mundo, as relações entre os níveis pictórico e mental sendo presumidos transparentes. Ao fazê-lo, ela destaca desenhos tanto dos instrumentos sobre os quais eles foram pintados como de seu contexto prático de uso para associá-los a uma hipotética ideologia coletiva. É incontestável que os desenhos apresentam relações com certas representações mentais referentes ao mundo; no entanto, a metáfora do “reflexo” utilizada pela maioria dos autores está longe de oferecer uma explicação satisfatória para a natureza dessas relações. As indicações dos próprios xamãs com respeito ao papel dos desenhos sobre seus tambores não foram levadas a sério nos estudos especializados, provavelmente porque não se coadunam com a função expressiva que lhes é conferida. Os xamãs não parecem considerar que os desenhos transmitem uma mensagem, afirmando antes que as imagens os ajudam a “se orientar em sua viagem”, a “avançar” – no caso dos Cacasses (Potapov, 1981: 134-135), a “se orientar nos países obscuros” (nos Evenks, Ivanov, 1954: 177). Ora, o que é “orientar-se” senão estabelecer uma coordenação cognitiva e sensorial particular entre seu próprio corpo e o espaço circundante? As indicações dos usuários dos tambores sugerem assim que os desenhos poderiam ser esclarecidos à luz das relações entre corpo e espaço, no contexto particular da ação ritual. O que está em jogo aqui, para retomar os termos de Carlo Severi, é passar “de uma tipologia das representações à identificação de uma lógica das relações representada pela imagem no seio de uma tradição”. (Severi, 2011: 11). A análise realizada por Severi (Severi, 2007) dos desenhos utilizados nas tradições xamânicas ameríndias mostra que, embora se trate claramente de pictografias, seu papel nem por isso é o de “representar” de maneira semiótica uma doutrina teológica. Esses desenhos constituem antes uma “arte da memória” dedicada ao desempenho ritual. Com efeito, sua organização espacial está em relação estreita com a estrutura sequencial dos cantos rituais que eles ajudam a memorizar. O essencial, portanto, é “a relação que se estabelece entre uma iconografia relativamente estável e um uso rigorosamente estruturado da fala ritual, entre iconografia organizada em forma paralelista e memorização” (Severi, 2007: 198). Está claro que a compreensão dos desenhos siberianos não progredirá a não ser que busquemos examinar seu papel no contexto ritual. Entretanto, essas imagens não se deixam ler como uma pictografia ameríndia: elas não têm ordem de leitura e, acompanhadas por numerosos e variados cantos, são de pouca ajuda na memorização do conteúdo de um canto. A ordem da fala não parece então ser o ponto de ancoragem principal das imagens no ritual, ou pelo menos não o único. No ritual siberiano, os gestos do xamã contribuem tanto, se não mais, que seus cânticos para evocar, no âmago da cena ritual, o espaço não ordinário que 278

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serve de moldura mental para a ação. É o que nos levará a propor uma abordagem “sensório-motora” das imagens. É na motricidade que corpo e espaço se coordenam, e ela é sempre acompanhada de um envolvimento dos sentidos (Berthoz, 1997; Warnier, 1999). Nossa hipótese é que imagens desenhadas como as dos tambores podem acoplar-se a esquemas sensório-motores convencionais. Nossa base serão os tambores cacasses, que estão entre os mais ricamente decorados e mais bem documentados. Os Cacasses, antigamente denominados Tártaros de Minussinsk, são um povo turcófono que reúne vários grupos, os Kačin, os Beltir, os Kyzyl, os Sagaj e os Kojbal. Vivem no vale do alto Iénisséï nos entrefortes setentrionais das montanhas Saïan. Os Cacasses foram formalmente cristianizados a partir do século XIX, sem que a Igreja conseguisse fazer recuar sensivelmente as práticas xamânicas. A fabricação dos tambores cessou na época das sangrentas repressões soviéticas dos anos 1930. Os xamãs que reapareceram após a queda da União Soviética não conhecem o uso antigo dos tambores, que eles não puderam observar, de maneira que essa tradição deve ser considerada extinta nos dias de hoje. os tambores cacasses Ivanov recenseou 50 tambores cacasses portando desenhos legíveis nas coleções dos museus russos (1955: 178), o que constitui um bom corpus de imagens. No total, cerca de 1.500 figuras se deixam reconhecer nesses tambores. Comentários detalhados de xamãs explicando os desenhos foram notados entre o fim do século XIX e meados do XX pelos etnólogos cacasses N. Katanov (1897, 1907b, 2000) e V. Butanaev (2006), e pelos russos D. Klemenc (1890), L. Potapov (1981) e Ivanov (1955). O tambor (tüür) era o principal instrumento dos xamãs cacasses. Uma pessoa reconhecida como detendo qualidades de xamã assumia sua função por ocasião do ritual de animação de seu tambor, especialmente fabricado para ela por seus próximos. O tambor supostamente servia de montaria para o xamã durante suas viagens através do universo e acontecia de ser cavalgado por ele (ver Figura 10). De forma redonda, os tambores cacasses têm um diâmetro de 70cm ou mais. A moldura cilíndrica do tambor, em madeira de salgueiro, é atravessada por uma alça vertical de bétula, perfurada de ponta a ponta por orifícios triangulares. É por esses orifícios que, ao chamado do xamã, os espíritos são tidos por entrarem no tambor, saindo do outro lado após a sessão xamânica (Klemenc, 1890: 25). Uma haste metálica na qual estão pendurados sinos, penduricalhos metálicos e fitas atravessa horizontalmente a alça. 279

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A membrana é feita de uma pele de animal: muar, cervídeo ou camurça. O percussor (orba) é em madeira de veado-vermelho, coberto de pele e adornado com fitas. A face externa da membrana é coberta por desenhos, sobressaindo-se três cores: preto, vermelho e branco. Na composição mais frequente, o círculo do tambor é dividido por uma faixa horizontal percorrida por zigue-zagues triangulares e colocada um pouco mais alto que o diâmetro (Figura 2). Se compararmos faces interna e externa, perceberemos que a faixa se situa aproximadamente no nível da trave metálica no interior do tambor (Figura 1). A faixa pode ser comentada pelos xamãs como representando as camadas superpostas da terra, os zigue-zagues às vezes correspondendo às montanhas (Katanov, 2000: 371). O grande setor ao pé da faixa está associado aos meios terrestre, aquático e subterrâneo, ao passo que o pequeno setor superior corresponde ao meio celeste. O setor superior é fechado por um arco que acompanha a borda do tambor e é igualmente percorrido por zigue-zagues que os xamãs identificam como um arco-íris. Os desenhos que preenchem esses setores bebem num repertório comum de figuras recorrentes, algumas das quais em posições bastante estáveis na composição, enquanto outras são mais móveis. Figura 2: Tambor cacasse, face externa. Museu Etnográfico Russo, no 8.761-8.301.

Figura 1: Tambor cacasse, face interna (Beltir, Atlas Sibiri (1961), prancha 20).

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Figura 3: Composição dominante dos desenhos cacasses. (Ivanov, 1955: 185).

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O setor superior inclui vários cavaleiros: frequentemente um cavaleiro branco sobre um cavalo branco, dirigindo-se a Kudaj, um cavaleiro vermelho sobre um cavalo vermelho, armado com um arco. Este último representa o espírito “SenhorCanhoto” (Han Solagaj) ou um serviçal “dirigindo-se” à casa desse senhor. Segundo os cânticos que os xamãs lhe endereçam, sabemos que ele é o filho do imperador da China e que habita em país sojan, isto é, tuva. Nas proximidades dos cavaleiros, acha-se desenhado um cervídeo, um íbex ou um cavalo: essa figura representa o animal cuja pele foi utilizada na confecção da membrana do tambor. Indica que a alma (čula) do animal está presente no tambor e que, portanto, este está vivo (Ivanov, 1955: 202; Butanaev, 2006: 97). setor inferior

Figura 4: Tambor cacasse (sagai). Arquivo, Museu de Minussinsk, Ivanov, 1955: 197).

setor superior O topo do setor superior é ocupado por astros: o sol, a lua, as “Três Corças”, isto é, a constelação Órion, a Estrela Vespertina (Ir Solbany) e a Estrela Matutina (Tan Solbany), a Grande Ursa (Čedigen). Esses astros situam-se supostamente “sob” a morada de Kudaj, o deus celestial criador, que não é representado. Sob os astros figuram pássaros, duas águias pretas, um cuco, às vezes pássaros brancos, geralmente situados do lado direito do tambor, junto ao topo de uma ou duas árvores. Nos teleutas vizinhos, os pássaros são até mesmo colocados precisamente sobre essas árvores situadas à direita. A função dos pássaros é ajudar os xamãs a viajarem para o céu e a cuidarem das doenças dos olhos. 282

No setor inferior do tambor encontram-se diferentes cavaleiros, cavalos e pedestres negros, globalmente considerados serviçais e emissários de Erlik Khan, o senhor do mundo inferior onde permanecem os defuntos (Katanov, 2000: 371). Entre eles figura um cavaleiro, Tuma-o-Negro (kara-tuma), protetor dos cavalos pretos. Nas invocações que lhe são dirigidas, ele é descrito como um “mongol negro” (kara mool), procedente da Mongólia, atravessando o país shor com uma serpente negra como rebenque (Butanaev, 2006: 60; Ivanov, 1955: 204). Não surpreende que esse “mongol” seja encarregado de proteger o gado contra as doenças (Tužnov, 1902). Bem embaixo, mais à direita e ao centro, nas proximidades das raízes das árvores, distinguimos ursos, rãs, serpentes, lagartos, peixes, todos pretos. Rã, serpente e lagarto são súditos do “senhor amarelo dos carneiros” (kojdyn saryg yzygy) (Katanov, 1907, vol. II: 552). Podem, além disso, levar o xamã à casa de Erlik. Eles são solicitados especialmente para curar doenças das pernas ou doenças femininas. Os lúcios curam as doenças abdominais e a hidropisia. Outros elementos importantes parecem poder situar-se indiferentemente no setor superior ou inferior. Por exemplo, podemos encontrar duas bétulas no alto ou embaixo, mas quase sempre dispostas na parte direita do tambor. Segundo os xamãs, elas servem para “subir ao céu”. Encontramos frequentemente nos tambores cacasses uma série de personagens se dando as mãos. São as “7 meninas da montanha” ou “7 meninas amarelas”, às vezes acompanhadas por “9 meninos pretos”. Esses filhos de espíritos senhores de montanhas exercem um papel de intermediários nas negociações do xamã com o senhor de montanha. Por fim, como em outras regiões no l’Altaï-Saïan, o xamã por sua vez é frequentemente representado entre os desenhos. Pode estar armado com um arco ou ser reconhecido pelo tambor que tem nas mãos. 283

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oposições genéricas

Figura 5: tambor dos turcos barabin (Sibéria ocidental), manuscrito de D.G. Messerschmidt, século XVIII (Ivanov, 1979: 140).

Figura 6: tambor cacasse. Museu de Antropologia e Etnografia, São Petersburgo, no 2.390-1 (Oppitz, 2007).

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Essa disposição geral é encontrada sob uma forma mais simples num modelo de tambor barabin do século XVIII (Figura 5). Em razão de sua simplicidade e sua antiguidade, podemos considerar o tambor barabin como uma Urform da qual derivaram não apenas as composições cacasses modernas, como também as de povos turcos tártaros aparentados como os teleutas e os shors (cf. Diószegi & Lot-Falck, 1973). O tambor barabin e os tambores cacasses são atravessados por linhas de tensão de grande estabilidade. Entre a parte superior e a inferior opõem-se o celestial e o terreno, o seco e o úmido, o claro e o escuro. A indicação, por parte dos xamãs cacasses, das doenças nas quais algumas figuras representadas são especialistas sugere uma correspondência entre o corpo humano e a composição do desenho. Os pássaros, na parte superior, são associados à cabeça, enquanto os animais do setor inferior são especializados no ventre e nas pernas. Segundo o xamã kačin Roman, durante o ritual de animação do tambor, o novo xamã ouve o espírito da montanha Kara-tag dizer-lhe: “Cuidarás das pessoas; cuide das doenças puras com o yzyk [protetor] dos cavalos e das doenças impuras com o yzyk dos carneiros, lagartos e outros auxiliares” (Potapov, 1981: 133). As doenças “puras”, relativas à parte superior do corpo, ficam então sob a responsabilidade dos espíritos-senhores dos cavalos, cavaleiros representados nas partes mediana e superior do tambor, ao passo que as doenças impuras, situadas na parte de baixo do corpo, mais particularmente as doenças ginecológicas, são da esfera do senhor dos carneiros, associado aos batráquios e répteis da parte inferior do tambor. Logo, há uma correspondência entre a verticalidade do tambor e a do corpo humano, estabelecida por intermédio da ordem espacial da paisagem e de seus habitantes representados na membrana. Embora a organização vertical dos tambores seja bem conhecida, a possibilidade de uma ordem perpendicular das figuras, segundo o eixo horizontal, não foi cogitada. Ivanov observou que as árvores situam-se geralmente na parte direita do tambor, sem todavia conseguir explicar tal regularidade (ibid.: 215). No lado oposto das árvores situam-se os cavaleiros, ocupando a borda esquerda e estendendo-se para o centro. A oposição diametral entre o cavaleiro à esquerda e a árvore à direita é de uma força e estabilidade impressionantes. Podemos distingui-la nitidamente no tambor barabin do século XVIII, bem como nos tambores modernos dos teleutas e dos altais do sul. Decerto não é um acaso o fato de os contrastes entre o animal e o vegetal, movimento e imobilidade, acharem-se rigidamente associados à oposição esquerda-direita, embora nenhum comentário de xamã forneça explicação para isso. As coisas, no entanto, se esclarecem se relacionarmos essas figuras com 285

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os gestos dos xamãs ao longo do ritual. Em sua mão esquerda, o xamã segura a alça do tambor, que é feita de madeira de bétula, precisamente a árvore representada na borda direita. Com a mão direita, agita seu percussor, designado como “rebenque” (hymčy). Nas técnicas de montaria turco-mongólica, é efetivamente com a mão direita que o chicote é empunhado. Ao lado direito do xamã estão assim associados o movimento e a montaria, e ao lado esquerdo, a estabilidade e a madeira de bétula. Essa distribuição das tarefas das mãos é universal no xamanismo turco-mongol da Sibéria: constata-se que ela é suficiente para estabilizar o posicionamento dos cavaleiros e das árvores nos tambores. No início de seus rituais, os xamãs do Altai-Saian permanecem por um momento diante do fogo, a cabeça dentro do aro do tambor, batendo ligeiramente na membrana (Figuras 7 e 8). À medida que os espíritos invocados se apresentam, o xamã bate e canta mais forte, até que se levanta, marcando assim o início de sua “viagem” com seus auxiliares. Quando está com a cabeça dentro do tambor, ele vê aparecerem os desenhos à contraluz, iluminados pelo fogo. Com efeito, as membranas dos tambores são esticadas numa pele bem limpa, absolutamente transparente (Figura 9). Do ponto de vista do oficiante, como do ponto de vista dos presentes, a parte direita do tambor associa-se claramente ao seu braço esquerdo, e a parte esquerda, ao seu braço direito. É certamente esse paralelismo entre lateralidade do tambor e lateralidade do corpo do xamã que explica o posicionamento estável das árvores e dos cavaleiros respectivamente à direita e à esquerda no tambor visto do exterior. É possível observar outra regularidade impressionante no eixo esquerdadireita: em quase todos os tambores, as figuras desenhadas estão voltadas para a direita da moldura vista do exterior. Só podemos explicar esse fato se levarmos em consideração a função de montaria atribuída ao tambor e, consequentemente, ao animal que forneceu a pele para a confecção da membrana. Quando o xamã está projetado em sua “viagem”, acontece-lhe de instalar o tambor entre as pernas e cavalgá-lo (Figura 10). Como o tambor é sempre segurado com a mão esquerda, a membrana se vê então escorada em sua perna direita. A parte direita do desenho posiciona-se na frente, com relação ao xamã, e a parte esquerda, atrás. Tudo leva a crer que, se os personagens estão voltados para a direita, e em primeiro lugar a figura representando o animal cuja pele é utilizada, é a fim de avançar na mesma direção que o xamã. Essa hipótese é confirmada por outro detalhe bastante revelador: a pele é esticada sobre a moldura de maneira que o sentido do pelo fique em coerência com a direção seguida pelas figuras que serão desenhadas em seguida (Ivanov, 1955: 180). Isso significa que a frente do animal deve ficar do lado direito do tambor, e a traseira, do lado esquerdo, de maneira que o animal olhe na mesma direção que o xamã quando este o cavalga. 286

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Figura 7: Um xamã altai invoca seus espíritos com a cabeça dentro do tambor (Radloff, 1884).

Figura 8: Um xamã cacasse diante do fogo. Fotografia Olsen, 1914. Biblioteca Nacional da Noruega.

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Figura 9: Tambor cacasse visto do interior. Museu de Minussinsk. À contraluz, as figuras aparecem em transparência: do ponto de vista do xamã, a árvore está à sua esquerda (embaixo), e o cavaleiro, à sua direita (no alto).

Figura 10: Xamã cacasse cavalgando seu tambor. Fotografia S.D. Majnagašev, início do século XX. Kunstkamera, no 2410-78.

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A disposição das figuras no eixo esquerda-direita é então estruturada por dois conjuntos de evocações. De um lado a ordem das figuras está em relação de projeção com a lateralização funcional do corpo do xamã. Nos vizinhos altais dos cacasses, a associação do tambor com o corpo xamânico é particularmente explícita, uma vez que um grande xamã ancestral organiza o conjunto da composição (Figura 11). A superposição do corpo xamânico e do tambor também aparece perfeitamente no petróglifo de Oglahty, na região cacasse (Figura 12). Essa projeção aparece quando o tambor fica paralelo à linha dos ombros do xamã, isto é, quando ele bate suavemente no tambor. Mas a orientação individual das figuras para a direita remete a outra posição clássica, quando o tambor exerce a função de montaria pelo xamã e se acha perpendicular ao eixo dos ombros. Portanto, ele não é mais um duplo, mas um cavalo companheiro. Identificação paralela e complementaridade perpendicular não estão em contradição: elas correspondem às duas posições extremas do tambor entre as quais o xamã vai e vem ao longo de um ritual numa alternância de pausas e excitação.

Figura 11: tambor altai (Anohin, 1924, 58). A árvore está do lado do braço esquerdo do personagem.

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Figura 12: petróglifo de Oglahty, Kyzlasov & Leont’ev (1980). É possível identificar a coifa típica dos xamãs cacasses. A trave metálica com seus penduricalhos funde-se com o braço do personagem. Como é tradicional, a árvore figura do lado do braço esquerdo do xamã.

os espíritos na yurt Algumas observações dos xamãs cacasses parecem indicar que existem correspondências entre a ordem espacial do tambor e a da yurt onde são realizados os rituais. O xamã beltir Petrov explica que, bem embaixo do seu tambor, figura um personagem, o “senhor da água”, que os chefes de família cacasses homenageiam deixando um prato de carne de cordeiro quente próximo à porta, “para que fumegue na direção do senhor da água”. Na yurt turco-mongol em geral, e cacasse em particular, de fato é do lado direito da porta ao entrar, na parte nordeste, que a água é conservada. Petrov observava também que as sete estrelas figurando no céu do tambor são nomeadas pelos xamãs no canto que estes dirigem a kök yzyk, um talismã instalado à distância da porta, na parte sul ou sudoeste (Katanov, 1907, vol. I: 565; vol. II: 549). Dois xamãs kačin, Apčaj e Roman, interrogados com 50 anos de intervalo, designam o urso que figura na parte inferior de seus tambores como o “guardião da entrada da yurt” (Katanov, no 66; Potapov, 1981: 135). Identificar as correspondências entre a ordem espacial do tambor e a da yurt permitirá compreender melhor o papel dos desenhos no ritual. 290

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A yurt e o tambor são dois círculos orientados; num plano horizontal, no primeiro caso, e num plano vertical, no segundo. Nos povos nômades da Ásia setentrional, a mudança constante de sítio concreto de hábitat é compensada por princípios abstratos extremamente estáveis de orientação e organização do espaço doméstico. Quando, ao longo do século XIX, os cacasses abandonaram as yurts de feltro por yurts de madeira octogonais, conservaram, não obstante, sua distribuição espacial. A terminologia distingue na yurt quatro grandes zonas: a porta (izik), o canto de honra (tör), o canto norte (altynzaryh) e o canto sul (üstünsary). A porta é orientada de maneira turca para o levante, que é chamado “diante” (isker) em cacasse moderno, como acontecia no turco antigo. No centro da yurt está instalada a fogueira, e sobre ela um buraco de fumaça no teto. Do outro lado do fogo, no lado oposto ao da porta, estende-se o canto de honra, tör, onde fica instalado o leito dos senhores. Diante do leito, instalam-se os anciãos e os hóspedes de honra, com a face voltada para leste. É o ponto de vista dessas pessoas que determina as concepções do espaço interior. À sua direita, estende-se a parte pura e masculina, denominada em cacasse “parte sul”, üstünsaryh, termo derivado de üstüü, “alto”. A parte oposta, feminina e impura, é denominada “parte norte”, altynzaryh, termo derivado de alty, “baixo”. Nas paredes meridionais estão acomodados os instrumentos masculinos: o fuzil no sudoeste e os arreios dos cavalos no sudeste próximo à porta. Ao longo das paredes setentrionais estendem-se os instrumentos das mulheres, armários de louça e utensílios de cozinha (Katanov, 1897: 23, nota 1) (Figura 13). O conjunto espacial da yurt se acha estruturado por dois eixos perpendiculares, o eixo leste-oeste, que opõe os caçulas aos mais velhos, e o eixo norte-sul, que opõe as mulheres aos homens. Se o sul é “alto”, e o norte, “baixo”, é decerto em virtude das associações ligadas no mundo turco a esses orientes, mas também em razão da geografia do país cacasse, montanhoso e estépico ao sul, e plano e arborizado ao norte. Na realidade, uma oposição vertical também se apresenta de maneira latente entre a porta e o canto de honra (tör). O tör é chamado “cabeça do fogo” (ot pazy), ao passo que o canto da porta é a “traseira do fogo” (ot soo).2 Entre os Altais, o tör é a “cabeça do fogo” (ottyn bažy), e o canto da porta corresponde às “pernas do fogo” (ottyn budy). Convida-se a sentar no tör um hóspede ilustre que está próximo à porta, dizendo-lhe: “Sente-se mais alto!” (Öru oturar) (Tadina, 2006). Essa terminologia é coerente com a disposição do corpo quando alguém se deita numa yurt turco-mongol: esforça-se sempre para ter a cabeça dirigida para o canto de honra, e os pés, para a porta. 2

V. Butanaev, comunicação pessoal, 30.9.2011.

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Por conseguinte, a oposição de valor mais forte situa-se entre o quarto nordeste, setor duas vezes inferior, pois feminino e caçula, e o quarto sudoeste, duas vezes superior, pois masculino e sênior. É precisamente no setor sudoeste que se acha instalado o altar doméstico, chamado Kudaj pulii, “o lugar de Deus-Céu”. É nele que são pendurados os ícones ortodoxos e o tambor xamânico, quando um xamã está em visita. No lado oposto, no canto nordeste, são dispostos baldes contendo as reservas de água e os produtos laticínios. Também na yurt encontramos a oposição entre o alto celeste e o baixo aquático que observamos no tambor. A yurt, contudo, apresenta uma particularidade: ela consuma uma projeção da ordem vertical do mundo sobre uma superfície circular horizontal.

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tos ligados às mulheres. Assim, a “mulher-espírito teleuta” (tileg-tös) é responsável pelas doenças dos úberes das vacas e pelas dores de barriga: os homens não se aproximam dela e a qualificam de “mau espírito”, assim como o urso situado no nordeste (Jakovlev, 1900; Katanov 1907a, vol. II: 411). Vários desses amuletos, como a raposa e os mustelídeos, não têm contraparte no tambor. É também o caso de uma grande figura da vida religiosa dos povos turcos desde a alta Idade Média, a Mãe Ymaj, protetora das mulheres e das crianças. Situada no noroeste no canto de honra, tem apenas uma relação indireta com um elemento constante dos tambores cacasses, as bétulas plantadas na parte direita. A seu propósito, o xamã Tabar explica: “Quando nascemos de nosso Pai Ülgen [deus criador, equivalente de Kudaj], eles foram enviados com a Mãe Ymaj.” (Katanov, 1907, vol. II: 552).

Figura 13: O lado feminino de uma yurt cacasse, início do século XX.

A ordem espacial da yurt é enriquecida com evocações complexas pela presença, em suas paredes, de amuletos representando espíritos protetores dos humanos e do gado. Cada amuleto é especializado num cuidado ou numa proteção particular e recebe uma alimentação específica. Além disso, a cada um é reservado um lugar mais ou menos preciso na yurt (Adrianov, 1909; Butanaev, 2003; Katanov, 1907b). As paredes meridionais são adornadas com espíritos cavaleiros, como Tumao-Negro e Senhor-Canhoto. Nas paredes setentrionais ocupam seu lugar os espíri292

Figura 14: Figuração cacasse de espírito cuco. Museu do Quai Branly, nº 71.1943.27.429.

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tambor e yurt Existe uma correspondência entre a posição de determinados amuletos na yurt e a origem geográfica do espírito que elas representam. Assim, os cavaleiros Tumao-Negro e Senhor-Canhoto encontram-se na metade meridional da yurt, precisamente no lado para onde se presume que eles se dirigem, as estepes mongóis e tuvas. Diante deles, no lado norte, estão a “mulher-espírito teleuta”, chamada também “espírito do norte” (Altynzary töss), e o “espírito tungusa” (toŋaza tös). Ora, os Teleutas estão estabelecidos ao noroeste do país cacasse, e os Tungusas povoam toda a taiga setentrional. O “espírito tungusa” é bastante logicamente responsável pelos ventos frios do norte. É também no lado norte que estão instalados outros representantes do mundo da taiga: o urso, a raposa e o furão. Em suma, toda a geografia que circunda o país dos Cacasses se acha exposta em suas casas. A yurt não é um espaço hermeticamente fechado e isolado: com seus amuletos comandando estradas, ela contém numerosos pontos de partida para o exterior. Além disso, os espíritos do nordeste são responsáveis pelas doenças ligadas às partes baixas do corpo, ao passo que os do sudoeste são competentes pela parte de cima. A partir da orientação da yurt para o levante, a rede de amuletos cria um conjunto de correspondências implícitas entre o plano do hábitat, o corpo humano, a paisagem circundante e uma geografia distante. No círculo dos espíritos, o eixo contrastante mais forte é o que estrutura a yurt, o eixo sudoeste-nordeste. Segundo todas as fontes, lá se opõem dois elementos de posição constante: o altar do celestial Kudaj no sudoeste e o urso no nordeste. Aba-tös, o urso, acha-se efetivamente instalado no lado feminino (norte) da porta. Hibernando numa toca, o urso é frequentemente associado no xamanismo siberiano ao mundo inferior, à escuridão e à feminilidade. Seu talismã cacasse é feito de um bastão revestido de pele de urso e enfeitado com um aro de bronze evocando provavelmente a entrada de sua toca e os espaços de comunicação entre os mundos que ele vigia, a porta e os orifícios inferiores dos corpos. Alimentado por uma velha, ele é invocado para lutar contra a diarreia e as doenças venéreas. No tambor, a região associada explicitamente a Kudaj é a mais alta, com seus astros situados “sob a casa de Kudaj”, ao passo que o urso encontra-se na zona mais baixa. Essa correspondência tambor-yurt verifica-se quando procuramos, na yurt, as figuras situadas no céu e, no tambor, as próximas ao urso. Vizinhos do urso na parte inferior do tambor, a serpente e o cavaleiro Tumao-Negro encontram-se todos dentro da yurt de ambos os lados da porta. Čylan tös, a serpente, é um amuleto em forma de serpente, responsável pelas entorses e pelos 294

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inchaços nas pernas. Tuma-o-Negro figura na yurt sob a forma de um amuleto de sete plumas negras de tetrazes fixado próximo às portas do lado sul, logo, precisamente ao sudeste (Katanov, 1907: 596). A mulher-espírito teleuta, instalada no norte, não figura no tambor, mas pode ter representantes nele. Segundo a xamã Apčaj, “três homens negros”, situados no setor inferior de seu tambor na proximidade do urso, são intermediários rumo ao “espírito do norte”, isto é, à mulher teleuta (Katanot, nº66). Deste modo, as figuras situadas no setor inferior do tambor encontram-se no leste, no nordeste e no norte da yurt. Os pássaros (hus tös) desenhados sob os astros no tambor aparecem na região sul da yurt com a função de cuidar da cabeça, dos olhos, dos ouvidos e dos dentes (Figura 15). Os cavaleiros não negros que figuram no setor superior do tambor também estão presentes no sul e no oeste. Por exemplo, Kyzyl tös, “espírito vermelho”, ou Han Solagaj, o Senhor-Canhoto, é um amuleto feito de fitas vermelhas e pedaços de pele de zibelina, fixado na parede sul (Katanov, 1907: 596). A cavaleira branca Salyg, visível no tambor da Figura 6 bem no topo do aro, tem seu lugar no setor oeste da yurt, entre leito e altar (Adrianov, 1909: 524; Ivanov, 1955: 204). O setor superior do instrumento corresponde assim às regiões oeste, sudoeste e sul da yurt. De uma maneira geral, o eixo alto-baixo do tambor tem como equivalente na yurt o eixo sudoeste/nordeste com as oposições corriqueiras: celestial/subterrâneo, seco/úmido, claro/escuro. Isso não surpreende quando lembramos que o tambor é fixado na parte sudoeste do hábitat. Seus desenhos representam de certa maneira a disposição dos espíritos na yurt a partir de seu ponto de vista sudoeste. O que acontece com o eixo esquerda-direita do tambor organizado em torno da oposição cavaleiro-bétula? O mundo dos cavaleiros das estepes concentrado na esquerda do tambor acha-se clara e exclusivamente situado na parte meridional da yurt. Será que reencontramos na yurt as árvores e o mundo da taiga que ficam à direita do tambor? Lembramos a associação entre as bétulas do tambor e a deusa Ymaj representada na parte noroeste da yurt. Além disso, do lado norte estão concentradas referências animais e humanas ao mundo da taiga: a raposa, o furão e o furão siberiano, tal como o espírito tungusa. Na yurt, o contraste cavaleiro-bétula do tambor se vê convertido num contraste sul-norte entre animais domésticos e animais selvagens, estepe e taiga. A esquerda do tambor projeta-se então abundantemente no sul da yurt e a direita no norte.

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OESTE Salyg (branca) Leito Senhor-Canhoto (vermelho)

Altar

Ymaj

TÖR Feminino NORTE Teleuta

Masculino

Fogo Aves

Água Tuma-o-Negro

336-337). Num ritual publicado por Butanaev, uma xamã dispõe nove meninos no lado sul da yurt e sete meninas no lado norte, e lhes pede que a ajudem repetindo seus cânticos. As palavras que ela lhes dirige em seu cântico mostra que esses meninos e meninas têm como papel representar os filhos de senhor de montanha. O tambor citado constitui assim uma verdadeira modelização realista dessa cena. A fim de enxergar mais claro tudo isso, convém agora examinarmos mais detidamente o desenrolar de um ritual. Tomaremos como exemplo um ritual tal como era oficiado pelo xamã Pituk no início do século XX (Butanaev, 2006: 196-207). A disposição dos participantes do ritual cacasse na yurt obedece a uma ordem precisa. As mulheres, como sempre, posicionam-se no norte. O lugar do xamã é marcado por um colchão de feltro branco no sudoeste sob o altar. Alguém mantém-se perto do balde d’água no nordeste para executar libações a pedido do xamã. Outro auxiliar mantém-se ao lado do xamã para lhe dar tabaco (Katanov, 1897: 24-25).

Serpentes Urso

LESTE

Eixo nordeste e sudoeste = eixo alto-baixo do tambor

Figura 15: Posicionamento dos espíritos na yurt. O eixo alto-baixo do tambor permite descobrir o posicionamento da maioria desses espíritos no tambor. Em itálico, espíritos presentes na yurt, mas ausentes do tambor.

o ritual Se yurt e tambor apresentam tantas correspondências é porque essas superfícies obedecem a esquemas espaciais comuns que os coordenam a uma paisagem visível e invisível. É por essa razão que o tambor pode aparecer como uma espécie de plano vertical da yurt. No tambor da Figura 6, vemos um xamã acompanhado, à sua esquerda, por sete personagens vermelhos, qualificados de “meninas amarelas”, e à sua direita por nove personagens negros chamados “meninos negros”. Era frequente durante os rituais que os xamãs cacasses pedissem a meninos e meninas que os rodeassem. No século XVIII, Gmelin descreve uma xamã cacasse (kačin) executando danças com sete homens e sete mulheres (Gmelin, 1751-1752, vol. III: 296

Figura 16: Fotografia de ritual numa yurt cacasse. O xamã mantém-se de frente para a porta, na área leste da yurt. Fotografia Olsen, início do século XX. Biblioteca Nacional da Noruega.

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No início do ritual, mantendo-se junto à porta, o xamã Pituk chama seus espíritos: Espíritos adary de meu Pai-khan Enviados de minha Mãe-khan, Minhas pessoas que sacudiram meus ombros e meu pescoço, Vocês me fazem pular até rasgar minhas solas, Vocês me fazem berrar até rasgar minha voz. Meus espíritos odžan segurando o percussor, Enrolem-se na minha mão direita. Meus espíritos tüben segurando o tambor, Cerquem minha mão esquerda.

Nessa passagem introdutória clássica dos cantos cacasses, o xamã nomeia de maneira genérica seus espíritos, lembrando que os herdou de seus ancestrais e rememorando os sofrimentos que eles lhe impuseram por ocasião da crise que precedeu seu acesso à função xamânica. Veem-se primeiro nomeados espíritos vindos do Pai e da Mãe, depois os ligados à mão direita e à mão esquerda. O paralelismo que associa a paternidade à direita e a maternidade à esquerda é clássico nos cânticos cacasses. Que o xamã se situe no canto de honra ou de frente para a porta, ele terá efetivamente o lado feminino da yurt à sua esquerda e o lado masculino à sua direita. O cântico prossegue com uma passagem reflexiva na qual o xamã descreve sua própria roupa: As fitinhas syzym de minha roupa Torceram-se como bambus, Cinquenta sininhos de minha roupa blindada, Vocês cantam como pássaros.

Em seguida, começa a evocação precisa de espíritos individuais: Minhas serpentes como flechas sibilantes Como flechas são atiradas. Minhas rãs rugosas, Voando na claridade amarela, Minhas rãs de dedos afastados, Meus ursos de patas torcidas.

Essa passagem reúne espíritos situados na parte mais baixa da ordem espacial: as serpentes, as rãs e os ursos. Apenas as serpentes estão presentes na parte de baixo do traje cacasse sob a forma de faixas de tecido. Em contrapartida, as três espécies têm seus representantes na parte inferior do tambor. O cântico desliza 298

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assim de uma referência explícita ao vestuário para o que parece ser uma referência implícita aos desenhos do tambor. Mas serpentes e ursos também estão presentes na yurt, junto à porta, justamente onde se posiciona o xamã. Três espaços de referências são então mobilizados de maneira latente nesta passagem: Meu espírito teleuta, alma do rebanho, Urso marrom, que olha através de um aro, Meus espíritos pássaros [hus-tös], alma do homem; Na cabeça do móvel de cabeça [pas-paraan] Alma da cabeça do neto, Vovó Ymaj, Das conchinhas brancas, do botão de bronze, Você puxa fio de seda vermelha.

Dessa vez, a yurt é explicitamente mobilizada como espaço de referência suplementar. O espírito teleuta não figura nem no traje nem no tambor; em contrapartida, está presente sob a forma de um talismã na parte norte da yurt. O urso citado em seguida é dessa vez claramente o da yurt, e “o aro” através do qual ele olha faz parte dos elementos de seu talismã. O urso aparece então em duas oportunidades, uma primeira vez na companhia de serpentes e rãs, o que o situa antes no espaço de referência do tambor, e uma segunda sob seu aspecto de talismã, o que remete ao espaço de referência da yurt. Recorrendo ao paralelismo, o cântico associa espaços diferentes ao personagem do urso, consumando-se assim uma superposição espacial. Com Ymaj em seguida localizada explicitamente pelo canto “na cabeça do móvel de cabeça”, isto é, nas imediações do canto de honra, essa parte tem claramente a yurt como espaço de referência dominante. O cântico prossegue assim: Criada pelo Khan chinês Vindo da célebre Tuva, Chegando do monte Sabyna, Você, cujas flechas nunca caem por terra, Você atira sem errar, Senhor-Canhoto. Saído da negra Mongólia, Amarrado ao pé de aço no centro da terra, Tuma-o-Negro de rosto mais negro que a terra. Legumes da terra negra, Estrelas do grande céu, Subindo, abram o caminho.

Nessa passagem, o xamã nomeia os cavaleiros situados na parte esquerda do tambor e ao sul da yurt, os dois espaços de referência permanecendo possíveis. Os três últimos versos sugerem um movimento de “subida” que vai da terra para o céu. 299

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Nesse momento, a fonte indica que “tendo puxado todos os tös da porta para o lugar de honra, inclinando-se para o fogo, ele canta ot-ene”. O xamã realizou então fisicamente na yurt um movimento de leste para oeste, isto é, da parte associada ao mundo inferior àquela ligada ao céu.

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geral de baixo para cima corresponde ao deslocamento real, da porta ao tör, realizado pelo xamã na yurt. Em seguida, o xamã dá três voltas em torno do fogo, o que indica uma mudança de cena. Executam-se libações enquanto o cântico evoca os espíritos das montanhas circundantes. O xamã obtém deles a alma do doente e faz o gesto de instalá-la dentro de seu tambor. Conduz então o doente para a proximidade das portas: Transformado numa rã, pule! Transformado numa serpente, rasteje! Não seja mais um demônio que não separa e não parte, Não seja mais um diabo sempre lancinante. Que a cabeça do demônio fique embaixo, Que a cabeça do humano lunar fique no alto, Que os invisíveis fiquem embaixo, Que os humanos solares3 fiquem no alto.

Figura 17: O xamã mantém-se na parte de honra, diante do altar e face ao fogo, no canto sudoeste da yurt. Fotografia Olsen. Biblioteca Nacional da Noruega.

Mantendo-se agora no tör face ao fogo, ele entoa então um cântico de louvor ao espírito do fogo, seguido pela invocação: “Que as Três Corças [Órion] tragam felicidade!” A assembleia dos profanos lhe responde: “Assim seja. Que os Céus [Kudajlar] a tragam para nós. Que não quebrem a alma. Somos mais simplórios que novilhas, mais tolos que bezerros.” O espaço de referência desse diálogo de preces é o Céu, representado na yurt pelo altar do Céu, ao pé do qual se mantém o xamã, e no tambor, pela parte mais alta, onde as três corças de Órion são quase frequentemente figuradas. Se resumirmos a progressão pelo cântico, vemos que passamos das criaturas mais baixas da parte norte (“baixa”), como o urso, à criatura mais elevada da parte norte, Ymaj, antes de evocar os cavaleiros pertencentes à parte sul (“alta”), para alcançar as entidades celestiais, as mais elevadas da parte “alta”. Essa progressão 300

O espaço de referência é decerto a porta da yurt, mas também a parte inferior do tambor, pois, ao contrário da serpente, a rã figura apenas no instrumento. O oficiante faz com que se dissociem no doente os demônios e o humano, exigindo que o demônio retorne ao mundo inferior, de onde não deveria ter saído. Ao mesmo tempo, deve fazer o doente subir de volta para o mundo do centro. O cântico prossegue com uma invocação das estrelas, isto é, de entidades celestiais diametralmente opostas ao urso e à serpente anteriormente citados. Esse salto do mais baixo para o mais alto é seguido por uma nova descida através dos talismãs da yurt. O xamã nomeia Ymaj “na cabeça do móvel de cabeça”, passando então do sudoeste para o oeste-noroeste; depois nomeia os espíritos medianos, “a mulher-espírito teleuta no norte [Altynzaryh Tileg tös]” e face a ela o “espírito-pássaro no sul [Üstünzaryh xus tös]”, e a descida se consuma junto à porta com o urso dentro do “velho aro”. Após essa ida e volta em palavras do mais baixo para o mais alto da yurt, o xamã realiza a ação capital da devolução da alma do doente. Ele o faz concretamente, dando de beber ao doente um leite no qual ele “despejou” a alma. Invocando os Céus Criadores, o xamã faz então o doente realizar o mesmo percurso que ele executou no início do ritual, da porta até o altar, passando das regiões inferiores do urso ao espaço superior do altar. Os poucos passos do doente, que o levam da porta às imediações do altar, denotam uma travessia cósmica, uma subida do mundo inferior para o mundo do centro. Ao mesmo tempo, as presenças negativas que haviam se instalado em seu corpo são abandonadas na parte baixa, junto ao urso, que está incumbido de mantê-las em seu lugar. 3

Os humanos são qualificados de “lunares” e “solares” nos cânticos xamânicos, por oposição aos habitantes do mundo inferior, onde não há nem lua nem sol.

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espaço virtual e espaço real No início do ritual, o cântico do xamã enumera referências a espíritos associados a uma paisagem remota, que podemos denominar espaço virtual. Essas entidades se fazem presentes no espaço real mediante projeções indiciais sobre diversas superfícies: o traje xamânico, o tambor, as paredes da yurt. Ao longo dos paralelismos, o cântico desliza do urso do tambor para o urso da yurt e do urso da yurt para outras figuras da yurt. Os pontos de conexão, que são os talismãs pendurados nas paredes, são ativados pelas evocações do cântico, transformando a yurt num espaço carregado de ressonâncias. Vários espaços de referência, reais e virtuais, acavalam-se em relações ambíguas de identificação e projeção. O tambor, círculo vertical orientado, fornece o modelo topológico que permite pensar a projeção da ordem cósmica vertical na lateralidade e verticalmente ao corpo do xamã, mas também no círculo horizontal da yurt. Uma vez instalada essa regra de projeção pelas coordenações que o cântico ativa, os movimentos e gestos dos participantes do ritual ganham uma ressonância espacial de grande riqueza. Cada deslocamento no plano horizontal da yurt desenha ao mesmo tempo um trajeto na verticalidade virtual que lhe é coordenada. Quando o xamã avança da porta para o altar, compreendemos que se eleva para um nível superior do mundo, carregando, junto com ele, o doente. Quando volta para as imediações da porta, desce novamente para os rios e a terra. Apreendemos melhor agora em que medida os desenhos podem ajudar os xamãs a “orientar-se”. Se o espaço virtual, a yurt e o corpo do xamã obedecem a um esquema espacial, o xamã pode facilmente situar-se e viajar no universo por simples deslocamentos na yurt. A partir de sua propriocepção, da sensação de sua mão direita e de sua mão esquerda, ele pode fazer derivar assimetrias entre esquerda e direita, estabilidade e movimento, árvore e cavaleiro, taiga e estepe e as diferentes rotas que delas derivam. O xamã deve memorizar seus desenhos não apenas visualmente, mas de maneira sinestésica, coordenando-os à percepção de suas funções motoras e de seu senso de equilíbrio. Os desenhos xamânicos são menos suportes expressivos do que uma tecnologia que contribui para transmitir e estabilizar modelos de coordenação do corpo e do espaço no âmago da cena ritual. referências bibliográficas ADRIANOV, A. V. “Ajran v žizni minusinskogo inorodca”. In: Sbornik v čest’ semidesjatiletija G. N. Potanina. São Petersburgo, p. 489-524, 1909. ANOHIN, Andrej Viktorovič. “Materialy po šamanstvu Altajcev”. In: Sbornik Muzeja antro-

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A máscara do animista: quimeras e bonecas russas na América indígena1 Carlos Fausto

Ne Dio, suo grazia, mi si mostra altrove, Piu che ‘n alcun leggiadro e mortal velo E quel sol amo, perche ‘n quel si specchia. (michelangelo buonarroti, Sonetto LVI)

No final do século XIX, quatro expedições alemães atingiram as nascentes do rio Xingu. As duas primeiras foram lideradas, nos anos 1880, pelo célebre etnólogo Karl von den Steinen; as duas outras, uma década mais tarde, por Hermann Meyer, que não alcançou a mesma fama nem legou relatos tão notáveis quanto os de seu predecessor. Mesmo assim, ele nos deixou alguns escritos importantes sobre a região. No Congresso Internacional dos Americanistas de 1904, por exemplo, Meyer apresentou um trabalho sobre a arte dos índios do Xingu no qual analisa algumas máscaras. Ele escreveu notadamente sobre uma delas: […] por meio de determinadas linhas, o artista procura representar adequadamente algumas das partes do corpo que lhe parecem mais importantes. Mas nessa operação confunde duas ideias: a de reproduzir partes do corpo humano e a de representar símbolos animais que evidenciam a finalidade especial da máscara. […] É difícil decidir até que ponto as partes componentes da máscara procuram representar o corpo humano ou um determinado animal. (Meyer, 1906, citado em Krause, 1960: 116).

Meyer toca aqui em um problema central para a análise das iconografias e dos objetos rituais ameríndios: a aparente confusão produzida pela multiplicação 1

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Este texto foi originalmente publicado em francês na revista Gradhiva, nº 13, 2011, e traduzido para o português por Roberta Ceva, cabendo a revisão ao autor. Versões preliminares foram apresentadas no colóquio Art-Image-Mémoire (Acordo Capes-Cofecub), realizado no Musée du Quai Branly em 2007 e na reunião da SALSA, em Oxford, em 2008. Gostaria de agradecer a Carlo Severi por nossa colaboração e a Capes-Cofecub pelo financiamento do projeto. Agradeço também a Mutuá Mehinaku por seus comentários inspiradores sobre a máscara Atuguá, assim como a Sepê Kuikuro por ter gentilmente cedido suas fotos para uso neste artigo.

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de referentes e a mistura entre formas animais e humanas. Naquela época, ele não poderia abordar seu objeto senão como um esboço rudimentar de representação figurativa. Daí sua indecisão: afinal, os índios queriam representar um homem ou um animal? Neste artigo, procurarei responder a esta questão, concentrando-me na eficácia das máscaras ameríndias enquanto objetos rituais. Se aceitarmos que a agência de uma máscara resulta da atribuição de uma subjetividade qualquer ao artefato, então duas questões etnográficas se colocam: em primeiro lugar, de que tipo de subjetividade se trata? Em seguida, quais são as propriedades formais que fazem com que uma máscara se preste à atribuição de subjetividade? Poderíamos responder a estas questões de maneira dedutiva e particularista: a agência das máscaras ameríndias seria a consequência lógica de uma ontologia que não está fundada na separação sujeito-objeto. Seria igualmente possível, ao contrário, adotar uma perspectiva universalista segundo a qual o estatuto de pessoa que emprestamos às máscaras decorre de uma resposta genérica, propriamente humana, às imagens rituais em geral. Navegando entre estes dois polos, tentarei aqui defender duas noções formais: a de “encaixe recursivo” e a de “referência múltipla”, a fim de dar conta da eficácia ritual das máscaras na América indígena.

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mundo implícita. Parece-me mais interessante pensar a crença à maneira de Pouillon (1993), como implicando necessariamente a dúvida, e o ato de crer como um estado mental caracterizado por uma incerteza constitutiva (Severi, 2007: 241).3 Se adotamos esta via, vemo-nos obrigados a explicitar as condições nas quais emergem situações de instabilidade cognitiva, nas quais um evento de máscaras pode ser interpretado como sendo “um caso de presença de espírito”. Acabo de empregar aqui a noção de “presença”, que também exige certa prudência. Ela ressurge na antropologia contemporânea no lugar do conceito de representação, julgado inadequado para dar conta de rituais não ocidentais por ser demasiadamente “ocidental”. Contudo, longe de constituir uma novidade, a oposição entre presença e representação é bem tradicional e foi insistentemente utilizada para diferenciar a modernidade europeia dos povos primitivos. Ela é tão persistente que Belting, citando Erhart Kästner, a ela se refere como “a antiga antítese entre representar e estar presente, entre ocupar o lugar de alguém e ser este alguém” (1994: 9). Essa oposição está no cerne da interpretação de Fritz Krause sobre as máscaras ameríndias. Assim, ele escreve em um texto que data do início dos anos 1930: Os dançarinos mascarados são verdadeiramente o ser em questão. Eles não representam simplesmente estes seres, nem os apresentam à maneira de uma pantomima, como se fosse um espetáculo. […] As ações que as máscaras realizam não são simplesmente simbólicas, mas compreendidas como totalmente realistas (1931: [m.s.: 13]).

crença e presença A máscara é um artefato paradoxal: para ganhar vida, é preciso que alguém a vista, mas todos sabem que quem a anima não é um espírito, e sim um parente. Como então uma máscara pode ser efetiva? Por que o disfarce não é tomado ao pé da letra, mas, ao contrário, dá lugar a uma atribuição deslocada de subjetividade? De que modo o ausente se faz presente (e o presente, ausente)? Como o visível recua para dar lugar a um invisível tornado visível por meio da máscara? Para responder a estas indagações, deixo de lado o “problema da crença”, que nos levaria a duas questões que prefiro aqui evitar: os ameríndios acreditam em suas máscaras? E, em caso afirmativo, como podem acreditar? Evito-as para não cair em uma “etnologia tradicional das crenças dos outros” (Lenclud, 1990), tributária de uma visão teológica da cultura, que emprega uma noção de crença própria às grandes religiões monoteístas.2 Aqui é mister contornar tanto uma definição doutrinal de crença (enquanto adesão a um conjunto de doutrinas explícitas) como uma antropologia que postula a adesão crente a uma visão de 2

Contudo, como bem observa Pouillon: “A cada dia, em cada igreja, podemos ouvir: ‘Eu creio em Deus.’ Crer é ter certeza, mas se é preciso dizer e repetir, não seria para persuadir a si próprio?” (1993: 22).

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Na época de Krause, a confusão entre ser e símbolo, presença e representação, protótipo e imagem, era um índice de uma mentalidade que ainda não tinha acedido ao templo da razão. Hoje, utiliza-se um vocabulário similar para falar sobre diferenças ontológicas – desta vez, incomensuráveis e não hierarquizáveis – segundo as quais, lá onde “nós” (os ocidentais) veríamos uma representação, os “outros” (os não ocidentais ou os pré-modernos) postulariam uma presença real. Esta substituição do signo pela coisa segue na contracorrente do espírito da Reforma que, ao negar a presença do corpo e do sangue de Cristo na Eucaristia, abriu caminho para uma leitura da pintura religiosa como “arte” nos séculos seguintes. Não é por acaso que o retorno atual da “presença” se faça na esteira das discussões sobre o “fim da Arte”: a ênfase na eficácia, no poder e na agência das 3

Na antropologia, a referência clássica ao questionamento da noção de crença é Needham (1972), que, em sua virada cética, retomou de modo sistemático uma questão que sempre assombrou a disciplina. Para uma discussão mais recente, ver o número de Terrain organizado sobre o tema (Lenclud, 1990). Para um argumento contrário, ver Noret (2007), que rejeita a subordinação da crença à dúvida. Vejase também minha análise sobre o caso Parakanã (Fausto, 2002), inspirada em Boyer (1994).

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imagens é uma resposta ao declínio da tradição estética clássica.4 Ainda que este artigo seja parte desse mesmo movimento, procuro manter uma distância prudente. Mesmo porque, do ponto de vista etnográfico, trata-se, antes de mais nada, de saber se a “antiga antítese” entre signo e coisa pode ser aplicada a outras tradições iconográficas e, em seguida, de identificar a quais estados mentais corresponderia o que chamamos de “presença” (a fim de evitar que se recaia novamente no “problema da crença”). Feitas estas considerações iniciais, devo precisar que minha abordagem distingue três níveis analíticos. O primeiro é ontológico e interessa-se pelos seres que se procura figurar por meio de imagens em uma dada tradição; o segundo é formal e interessa-se pelas convenções estéticas que permitem a figuração adequada destes seres nesta mesma tradição; por fim, o terceiro nível, pragmático, interessase pelos dispositivos actanciais pelos quais estas imagens, convencionalmente produzidas, se tornam eficazes em determinados contextos de ação. Neste texto, concentrar-me-ei nos dois primeiros níveis, deixando o terceiro para um trabalho posterior, pois ele demandaria um desenvolvimento próprio. Não quero aqui diminuir a importância da ação das máscaras em situação ritual. Ao contrário, é necessário ter em mente que as máscaras jamais são imagens estáticas: elas são tridimensionais, têm odores e texturas particulares, são vestidas e animadas, e sempre empregadas em contextos precisos – contextos nos quais se produz uma instabilidade cognitiva, tornando difícil dizer se estamos diante de uma subjetividade-outra ou simplesmente diante de um objeto manufaturado utilizado por um membro da coletividade. Esta instabilidade cognitiva é produzida ao longo da interação com as entidades-máscaras durante o ritual: seja pela impossibilidade de ler na máscara uma expressão facial que corresponda às suas ações; seja pela dúvida que pesa sobre quem é responsável pela ação, na medida em que o modus operandi da máscara é estereotipado; seja, enfim, pelo fato de que a interação, normalmente sem palavras, coloca entre parênteses o regime normal da comunicação. Mas para que tais mecanismos interacionais se mostrem eficazes, é preciso que as máscaras mobilizem com êxito certos princípios formais. A instabilidade cognitiva também é produzida pela forma, que funciona, como sugere Gell, tal qual uma “armadilha”.5 4

5

Sobre o fim da Arte (ou da história da Arte), ver Lang (1984) e Belting (1987). Sobre esta ideia que“estava no ar em meados dos anos 80”, ver Danto (1997). Para as novas abordagens que se seguiram à decadência da estética e da história da arte, ver os textos filosóficos de Danto (1983, 1988, 1992), que exploram as fronteiras entre a arte e a não arte; e os textos provocadores de Mitchell (2005) sobre “a virada pictórica” e a nova economia da imagem no capitalismo tardio, bem como o interesse renovado pelo “poder das imagens” (Freedberg, 1989; Belting, 1994) e pelos iconoclasmos, que culminou na célebre exposição Iconoclash (Latour& Weilbel, 2002). No artigo “Vogel’s net”, Gell critica a distinção feita por Arthur Danto entre um artefato e um verdadeiro objeto de arte. O objeto em questão é uma armadilha de caça zande apresentada na exposição

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o humano no interior Uma máscara ameríndia poderia ser caracterizada – para esboçar uma primeira definição – como a face de um não-humano que é, simultaneamente, uma pessoa humana. Esta definição está de acordo com a pressuposição mínima do animismo, segundo a qual no interior de um não-humano sempre se encontra uma pessoa que partilha a condição humana (Descola, 1992, 2005). Esta dualidade entre exterioridade não-humana e interioridade humana estaria no próprio fundamento, segundo Tim Ingold (2000), de qualquer “figuração” (depiction) no mundo animista. Podemos complexificar um pouco a definição inicial tomando as máscaras como objetos rituais ativos: elas revelam a virtualidade humana dos não-humanos porque são animadas de seu interior por uma pessoa humana. A presença dessa pessoa atualiza o que era simplesmente pressuposto (a saber, que os não-humanos são pessoas). Para que essa operação seja possível, é preciso explorar um traço formal constitutivo das máscaras: a relação invólucro/conteúdo. Tomemos como exemplo as máscaras do extremo norte do continente americano, que ilustram, como observa Descola, “uma das maneiras mais econômicas de revelar uma interioridade animal” (2010: 23). As máscaras de madeira dos Yup’ik do Alasca trazem frequentemente um pequeno rosto humano esculpido em baixo relevo sobre uma face animal. Este é o caso de um exemplar coletado pelo reverendo Sheldon Jackson, em 1893. Este último indica tratar-se de uma máscara de dança “mostrando o espírito de uma raposa. No alto da cabeça, o espírito mostra sua face, que tem, como todos os espíritos, uma similitude humana ou pode-se mostrar a si mesmo como um humano” (Fienup-Riordan, 1996: 86). O antropólogo Jarich Oosten faz referência a uma outra máscara, desta vez inuit, que se abre revelando o rosto humano do dançarino no interior da face animal: “No contexto do ritual, o portador da máscara representava o animal, e, quando ele abria a máscara, seu rosto representava o inua do animal” (1992: 116).6 Art/Artifactem Nova York, em 1988. A partir desta discussão e de uma análise sofisticada de uma série de armadilhas de caça, Gell propõe uma nova definição para a obra de arte: “Eu definiria como um candidato ao estatuto de obra de arte qualquer objeto ou performance que potencialmente premie esse escrutínio por corporificar intencionalidades que são complexas, que demandam atenção e que talvez sejam difíceis de reconstruirem-se completamente” (1999:211). A ideia segundo a qual a forma de um artefato pode significar um obstáculo cognitivo à reconstrução da intencionalidade responsável por sua produção já estava presente em seu artigo sobre as tecnologias do encantamento. É neste sentido que emprego aqui a noção de armadilha cognitiva, procurando mostrar quais são os mecanismos formais responsáveis por esta imbricação relacional. 6

Fienup-Riordan observa que esta interpretação deve ser vista com prudência, já que o único modo seguro de interpretar as características formais de uma máscara particular seria conhecendo a narrativa a ela associada. No que toca ao nosso exemplo, ela afirma: “Alguns pesquisadores descrevem a máscara yua típica como um rosto ou um corpo animal nos quais um rosto humano (aquele da

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Inua (ou yua) traduz-se literalmente como “sua pessoa”, ainda que alguns autores a tenham traduzido como “alma” ou “espírito”. Tudo sugere que estejamos diante de uma ideia tão simples quanto recorrente: a exterioridade animal contém e esconde uma interioridade humana que, apesar de representar a condição ontológica de base, somente se deixa entrever durante o transe xamânico, as experiências oníricas e as performances rituais. A relação invólucro/conteúdo – expressa em imagem e movimento por uma máscara – seria a tradução visual de uma noção ontológica basilar. Podemos, contudo, complexificar mais esta ideia, reconhecendo a existência de vários níveis sucessivos de encaixe. Vejamos. Acabo de afirmar que uma máscara é a face de um não-humano que é também uma pessoa com características humanas. Em seguida, acrescentei que a máscara sempre deve ser animada de dentro por outra pessoa, desta vez, visivelmente humana. Onde se encontra a recursividade deste encaixe? A pessoa dentro da máscara tem também um rosto visível (tornado invisível) e um interior no qual se espera que contenha uma “alma”, que é ela própria uma imagem. A máscara à qual Oosten faz referência joga exatamente com esse tema: o rosto que se encontra no interior não é simplesmente um rosto humano, mas um rosto humano que contém, ele próprio, uma outra imagem-alma (“sua pessoa”). No caso da máscara yup’ik da raposa, se o baixo relevo nos sugere a ideia de interioridade, esta é, ela própria, um outro rosto, ou seja, uma outra exterioridade.7 Desta perspectiva, a relação invólucro/conteúdo torna-se mais complexa. Porém, podemos ir além desse segundo nível de encaixe se ampliarmos nossa mostra. A Figura 1, igualmente retirada do livro de Fienup-Riordan, reproduz uma máscara-foca que apresenta um nível suplementar de elaboração formal: o rosto principal é metade humano, metade foca (a boca em arco é um índice de que se trata de um animal marinho). Ele se eleva de uma placa de madeira figurando um corpo animal do qual saem quatro patas. Na parte de baixo, encontramse outras faces com características humanas, espécies de máscaras em alto relevo que emergem do corpo do animal, invertendo a relação entre figura e fundo que observamos na máscara da raposa. Este tipo de máscara com função propiciatória para a caça era usado por uma mulher que deveria gritar como uma foca (Fienup -Riordan, 1996: 88). Temos, portanto, uma máscara na qual interioridade humana pessoa do animal) é encaixado (nos seus olhos ou em suas costas). Este rosto humano, no entanto, também pode representar o angalkuq [o xamã], e o animal, seu espírito auxiliar” (1996: 60). 7

Este tipo de máscara com a pequena face em baixo-relevo parece ter sido bastante comum no Alasca, podendo apresentar variações que alteravam a relação entre a parte e o todo. Assim, encontramos máscaras nas quais o rosto humano era colocado sobre um dos olhos da face animal (Fienup-Riordan, 1996: 104) ou no interior de sua boca aberta (1996: 70).

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e exterioridade animal não são facilmente distinguíveis, já que se estabelece uma dinâmica transformacional entre as duas condições, que não se reduz à distinção invólucro/conteúdo.

Figura 1: Máscara de foca yup’ik, Kuskowin Area © Courtesy of the Burke Museum of Natural History and Culture, Catalog Number 1.2E644 (dom de Robert Gierk).

Tomemos ainda um outro exemplo do Alasca que pode ser classificado, de maneira consensual, como uma “máscara de xamã”, já que dispomos de uma ilustração inequívoca de seu contexto de utilização. Na Figura 2 – uma fotografia tirada por John Edward Thwaites em 1912 entre os Aglegmiut da baía de Nushagak–, ela é usada por um xamã que acabara de curar um garoto.8 Esta imagem nos dá uma ideia do impacto visual da máscara e de todas as vestimentas que a acompa8

Uma coleção de 396 imagens selecionadas a partir de 1.300 negativos de Thwaites está disponível on-line na coleção digital da Universidade de Washington. Ver também Fienup-Riordan (1996: 189).

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nhavam, aí incluídas as gigantescas mãos curativas. O jogo formal desta máscara consiste em multiplicar as referências icônicas e o número de faces identificáveis: distingue-se um corpo de pássaro de onde sai uma cabeça de pássaro e duas asas. A cabeça do pássaro também forma o nariz de uma das faces representadas na máscara, e suas asas, que são formalmente idênticas à boca dentada, são também orelhas. Em seguida, onde ficariam os olhos da máscara, encontra-se uma outra face, muito redonda, cuja boca é igualmente dentada. Na foto de 1912, percebemse ainda olhos suplementares – aqueles do maior rosto – figurados por pequenas plumas listradas. É difícil decidir, diante de uma máscara como esta, quantas faces são simultaneamente representadas, quais são manifestamente humanas e quais são os referentes animais precisos aos quais ela nos remete. De fato, essa máscara joga com uma representação paradoxal do animal e do humano, manifesta sob a forma da hibridação ou de uma justaposição de zoomorfismo e de antropomorfismo, assim como por uma oscilação entre figura e fundo. Lembremos que se trata exatamente das características que Hermann Meyer havia detectado na máscara xinguana e que lhe parecia ser produto de uma confusão. O artista desejava representar um animal ou um humano? Pois bem, nem um, nem outro, ou mais exatamente, os dois, já que não há jamais uma relação termo a termo entre uma máscara e um referente. Este tipo de complexidade representacional podia ser levado ainda mais longe por uma multiplicação icônica dos animais. Entre as máscaras gigantescas coletadas por Ellis Allen, em 1912, em Goodnews Bay, encontramos uma proliferação de rostos e de membros que já foram observados anteriormente com referência à máscara da foca. Na Figura 3, por exemplo, vemos um corpo de peixe que traz sobre as suas costas duas outras faces: “Um animal terrestre sorridente na parte de cima e um mamífero aquático descontente na parte de baixo” (Fienup-Riorden, 1996: 163). Esta segunda face, aliás, encontra-se no interior da boca dentada da primeira, de um modo formalmente similar ao de outra máscara coletada por Allen, descrita por Fienup-Riordan como “uma pequena máscara de foca finamente esculpida, seu yua saindo de sua boca” (1996: 70). Vê-se, assim, como o motivo de base com o qual comecei esta análise – o pequeno rosto humano que deixava entrever a pessoa do animal – pode ser empregado em configurações bem mais elaboradas.

Figura 2: “Eskimo medicine man exorcising evil spirits from a sick boy”. Alaska, 1924. Foto de John Edward Thwaites (1863-1940) © Alaska State Library, Juneau, Thwaites Collection Neg PCA-18-497.

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máscaras de transformação Os melhores exemplos da combinação intensiva entre os dois princípios formais aqui destacados – encaixe recursivo e referência múltipla – são possivelmente as célebres “máscaras de transformação” da Colúmbia Britânica. Há aqui certa variedade de motivos, mas focalizarei os exemplos que manifestam uma metamorfose animal. Sabe-se que o interesse de Boas pela arte da Costa Noroeste nasceu do trabalho de catalogação da coleção do capitão norueguês J. Adrian Jacobsen, que o futuro antropólogo conduziu em 1885 para Alfred Bastian, então diretor do Museu Real de Etnografia de Berlim. Esta coleção compreendia ao menos uma máscara de transformação obtida entre os Kwakiutl de Tsaxis (Forte Rupert). A experiência levaria Boas a empreender sua primeira expedição à região, no outono de 1886 (Cole, 1999: 96-97).9 Em 1909, ao publicar The Kwakiutl of Vancouver Island, Boas incluiria uma série de desenhos, da lavra de Rudolf Cronau, de máscaras coletadas durante a expedição Jesup North Pacific (1897-1902). Na prancha 51, são reproduzidas duas máscaras utilizadas durante o Potlatch (Figura 4). A primeira mostranos a cabeça de um lobo que, uma vez aberta, deixa entrever um corvo; a segunda parece apresentar um motivo similar ao das máscaras do Alasca que representam o inua (“sua pessoa”) como um rosto: o exterior é um corvo que, ao abrir-se, mostra uma outra face que não é, no entanto, inteiramente humana, já que compreende o nariz-bico de um pássaro predador, provavelmente uma águia.10 As duas transformações representadas aqui separadamente (animal-animal / animal-humano) podem ser encontradas em uma mesma máscara, conduzindo o jogo de encaixes sucessivos a um nível superior de sofisticação. É o que se vê na prancha 41 (Boas, 1909), que contém três desenhos de um mesmo artefato (Figura 5). No desenho 3, temos a máscara fechada, representando um peixe (bull-head fish); no desenho 4, ela se abre deixando entrever a cabeça de um corvo e, no desenho 5, abre-se novamente apresentando, dessa feita, a face de um homem.11 A 9

Figura 3: Máscara yup’ik com corpo de peixe, coletada por Ellis Allen em 1912, Goodnews Bay © Courtesy of the Burke Museum of Natural History and Culture, Catalog Number 4528.

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Ele escreveria, anos mais tarde: “Meu espírito foi inicialmente tocado pelos voos de imaginação exibidos nas obras de arte dos habitantes da Colúmbia Britânica, quando comparados à severa sobriedade dos Esquimós orientais” (Boas, 1909: 307).

10 Como mostra Boas (1927: 190), uma convenção distingue a representação da águia daquela do falcão. Todas as duas possuem um longo bico curvo, mas no segundo ele volta-se para trás e toca a face, ao passo que, no primeiro, apenas se curva para baixo. Encontramos a mesma configuração em uma máscara de conchas, proveniente dos Heiltsuk, coletada pelo tenente George T. Emmons, no início do século XX, e que atualmente se encontra no National Museum of the American Indian (9/2227) – http://americanindian.si.edu/. 11 Trata-se da máscara que Descola apresentou ao público por ocasião da exposição La Fabrique des images e que se encontra no American Museum of Natural History. No catálogo, a forma exterior é identificada como aquela de um chabot (Descola, 2010: 28-29).

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máscara representaria, portanto, uma tripla metamorfose, sendo a solução figurativa de uma ontologia que postula, como indica Descola, a separação entre uma identidade interior e uma forma aparente, entre uma “alma” e uma “vestimenta corporal” (2010: 25-26).

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ções do Canadá (Figura 6).12 Fechada, ela mostra a cabeça de uma orca sobre a qual se encontra uma gaivota; aberta, ela revela um rosto de homem. Contudo, se prestarmos atenção à parte interna da face externa, veremos a representação de uma outra face animal, desta vez, da serpente mítica Sisuitl, comumente designada “serpente marinha bicéfala”. Este motivo é muito recorrente na região e pode ser encontrado em uma foto de Edward Curtis tirada entre os Kwakiutl em 1914 (Figura7).13 O estilo da máscara haida é mais “naturalista” que aquele da máscara kwakiutl (Jonaitis, 2006: 127-169): o rosto humano é claramente antropomorfo, enquanto na máscara da foto de Curtis, assim como em outra reproduzida por Boas (1909, prancha 49), “o homem no meio” possui os mesmos chifres com que Sisiutl é representada desde o final do século XIX.14

Figura 5: Três figurações da mesma máscara (Franz Boas 1909, planche 41).

Figura 4: Máscaras Kwakiutl desenhadas por Rudolf Cronau, Jesup North Pacific Expedition (Franz Boas 1909, planche 51).

Como já sugeri em um texto anterior (Fausto, 2007), creio que, embora esta leitura apoie-se em dados etnográficos robustos, ela pode nos conduzir a uma distinção pouco dinâmica entre fisicalidade aparente e interioridade essencial, a qual dificilmente dá conta das formas ambíguas e paradoxais de representação de uma pluralidade não dual. Tomemos como exemplo uma outra variante das máscaras de transformação ilustrada por um exemplar haida, coletado pelo tenente Israel W. Powell, em 1879, e que atualmente se encontra no museu das Civiliza316

12 Esta máscara está catalogada no CMC sob o número VII-B-23. Há um exemplo contemporâneo bastante similar, esculpido em 1993, pelo artista kwakwaka’wakw Richard Hunt, filho de Henry Hunt e neto de Mungo Martin, um dos principais artífices do renascimento da arte escultórica kwakiutl nos anos 1950 (Jonaitis, 2006: 241-43). Trata-se de uma máscara de corvo que, ao se abrir, apresenta o rosto de um homem, ao mesmo tempo em que o bico do corvo se transforma na face desdobrada da serpente Sisuitl. A máscara pertence ao acervo do Minneapolis Institute of Art (G259) e pode ser vista no seguinte site: . 13 Edward S. Curtis (1914: 214, fotogravura “Sisiutl – Qagyuhl”). A coleção completa encontra-se digitalizada e disponível no endereço: http://curtis.library.northwestern.edu. Para um desenho detalhado de uma máscara similar, ver Boas (1909: prancha 49, desenho 4), para o qual ele fornece a seguinte descrição: “O rosto do meio representa ‘o homem no meio da serpente’, com suas duas plumas; em cada extremidade encontram-se cabeças de serpentes emplumadas cujas línguas móveis podem, por meio de um jogo de cordas, ser puxadas para dentro e para fora. Os dois lados da máscara podem ser dobradas para a frente e para trás. Utilizada durante as danças de inverno, por ocasião das representações pantomímicas da lenda de Mink” (1909: 521). 14 Ver, por exemplo, as máscaras esculpidas por Oscar J. Matilpi (1933-1999), cunhado de Henry Hunt (por sua vez, neto de George Hunt e filho de Mungo Martin). Um exemplar está catalogado no Royal British Columbia Museum, sob o número 13853.

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Figura 7: Máscara com motivo da serpente sisiutl, Kwakiult , 1914. Foto de Edward Curtis. Courtesy Charles Deering McCormick Library of Special Collections, Northwestern University Library.

Figura 6: Máscara de transformação Haida © Musée Canadien des Civilisations, VII-B-23, S92-4174.

A meu ver, o que se tenta figurar aqui não é exatamente que uma exterioridade animal contenha uma interioridade humana, mas que um ser poderoso é irredutivelmente múltiplo e capaz de transformação. A eficácia da forma não está predicada na abdução de uma agência humana escondida por trás de um invólucro animal, como sugere o modelo animista boreal na versão de Ingold (2000). Não seria tampouco um desvelamento da “verdadeira natureza” de um animal, como o afirma, por sua vez, Descola em relação ao tema yupiit dos animais que se desnudam (2010: 25). O que coloco em questão neste texto é a ideia de um núcleo duro, de uma identidade final humana que se esconde por detrás das vestimentascorpos animais – uma ideia que me parece implicada na noção de desvelamento e no emprego serial de oposições binárias: interior-exterior, alma-corpo, humano-animal etc.15 15 Procurei propor, alhures, uma leitura alternativa dos dados etnográficos sobre a pessoa humana e não-humana na Amazônia, erguida não sobre o dualismo, mas sobre a multiplicidade, a fim de evitar a redução das relações internas à pessoa a somente dois termos (Fausto, 2007). Eu visava menos as

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A arte da costa Noroeste distinguir-se-ia, antes, pelo que Severi chama de um “antropomorfismo latente” que não é representado figurativamente como a simples presença de um humano no interior de um animal, mas antes como uma “conjunção específica entre o animal e o humano” (Severi, 2009: 484). As máscaras de transformação não apenas mostram humanos com características morfológicas animais, como também apresentam faces antropomorfas recobertas por pintura corporal, cujos motivos, como sabemos graças a Bill Holm (1965), formam um alfabeto combinatório de formas representando animais, por meio de sua redução a componentes elementares. O que se marca por meio da pintura no rosto humano no interior da máscara é, decerto, a condição social, o pertencimento a um clã particular, mas também uma combinação específica do humano e do animal.

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nos (Fausto, 2012). Para os xamãs, no entanto, elas não são a face dos itseke, mas antes a sua “festa”, uma vez que seu “corpo” é humano.17

um redemoinho de imagens Passemos agora à Amazônia, onde não se encontram máscaras como as da Colúmbia-Britânica ou do Alasca. As convenções estéticas são aqui bastante diferentes, embora os princípios formais sejam semelhantes. Começo pelo Alto Xingu, em particular pelos Kuikuro que conheço diretamente, onde encontramos uma grande diversidade de máscaras rituais, que vai desde mascaramentos improvisados, muito vezes cômicos, até tipos repertoriáveis, distintos uns dos outros e muito estáveis no tempo.16 O termo que designa a parte principal da máscara é “face” (imütü): a máscara é um rosto ao qual se agrega uma vestimenta feita de palha que esconde o corpo daquele que a utiliza. As máscaras sempre saem em casais e combinam antropomorfismo e zoomorfismo, um fato que, como vimos, intrigou Hermann Meyer. Para a maioria dos Kuikuro, as máscaras são a forma visível de certos itseke, os seres extraordinários que povoam o cosmos e podem capturar a alma dos humaoposições afim-consanguíneo ou presa-predador do que a distinção alma-corpo e sua projeção sobre o par humano-animal. Minha inspiração inicial fora uma passagem de Marilyn Strathern sobre a pessoa múltipla e o “dividual” (1988: 275), mas também se tratava de um pequeno gesto deleuziano, na medida em que dava prioridade à multiplicidade em relação aos binarismos estruturais. Dito isto, é preciso observar que, se a formulação do animismo por Descola e a do perspectivismo por Viveiros de Castro são tributárias destes binarismos, o regime da metamorfose funciona aí como um dispositivo de desestabilização das oposições duais. 16 Entre os Kuikuro, há cinco tipos principais: as máscaras ahasa feitas de grandes cabaças, as pequenas máscaras aga feitas em madeira, as máscaras kuambü confeccionadas sobre uma tela de malha fina, as enormes máscaras atuguá e, finalmente, as máscaras em madeira jakuikatu. Estas últimas, por sua vez, são acompanhadas de outras máscaras que formam a sua “corte”. Com exceção das máscaras aga, ainda não descritas na literatura, todas as outras aparecem em descrições etnográficas desde o final do século XIX. Para uma descrição detalhada das máscaras arawak xinguanas, ver Barcelos Neto (2004).

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Figura 8: Desenho de O. Dinger, baseado em foto de Herrmann Meyer, datado de 1896 (Krause 1960).

A mais impressionante das máscaras xinguanas é, sem dúvida nenhuma, a do redemoinho, cujo primeiro registro fotográfico nos é devido a Herrmann Meyer, datado de 1896. Reproduzida em desenho por O. Dinger, a imagem foi publicada no artigo que Fritz Krause dedicou às máscaras do Alto Xingu nos anos 1940 (Figura 8).18 Entre os Kuikuro, a máscara-redemoinho, genericamente chamada de atuguá, pode assumir quatro formas. Duas delas (agahütanga e agijamani) não fazem referência a animais, ao passo que as duas outras são designadas por um nome de animal seguido de um sufixo que indica uma condição ontológica espe17 Certa vez, perguntei ao principal xamã kuikuro se a máscara era a aparência do itseke. Ele me respondeu: inhalü, isunduhugu higei, ihü bahüle kugei (“não, isto é a sua festa; o corpo, ao contrário, é humano”). O termo kuge designa a corporeidade humana, em particular xinguana (Fausto, 2012). Esta questão aparentemente simples surpreendeu meus interlocutores não xamãs. Não somente pela resposta, que não lhes parecia tão evidente assim, mas também pelo fato de eu ter posto a questão: “Nós não teríamos coragem de perguntar essas coisas a um pajé”, me disseram. A imagem mental do não especialista sobre os itseke não é, pois, a de um humano tout court, um fato que vai ao encontro das imagens que os Wauja produziram a pedido de Barcelos Neto (2008), mesmo que muitas delas tenham sido feitas por xamãs. 18 Steinen dedicou cerca de 30 páginas de seu livro Entre os Aborígenes do Brasil Central, relato da expedição de 1887, às máscaras jakuikatu e kuambü. Ele chega a descrever uma máscara atugua na aldeia Kamayurá, sem relacioná-la, contudo, a um desenho no solo, na saída de uma aldeia mehinaku, que ele mesmo descreve como representando a face de aturuá (1940:306).

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cial: eginkgokuegü (hiperpacu) e asutikuegü (hipersapo).19 A forma destas máscaras, uma estrutura concêntrica com as linhas de fuga desenhadas pela palha, reenviam de maneira icônica a um redemoinho. Durante a performance, elas realizam movimentos circulares rápidos, de modo que seu “chicote” (uma longa trança de palha fixa na parte posterior da máscara) atinja os espectadores à maneira dos turbilhões de poeira, muito frequentes na região durante a estação seca (Figura 9).

Figura 9: Casal de máscaras do Redemoinho, coleção Sepê Kuikuro.

Se a máscara inteira é um redemoinho, ela é também uma pessoa com traços antropomorfos: possui olhos, um colar de conchas no lugar da boca e um diadema de plumas, o que caracteriza a ornamentação ritual típica no Alto Xingu. Ela porta ainda o motivo gráfico do tronco humano (os dois arcos em elipse), mas este tronco contém também um ícone animal (peixe ou sapo). Temos, assim, um redemoinho, que é um animal, que é um humano e que é animado de dentro por uma pessoa que tem outro rosto e outro corpo. E é justamente em razão do fato de o corpo humano conter uma imagem (uma “alma”) que devemos personificar e alimentar os turbilhões, já que eles podem roubar as imagens dos humanos que, em seguida, se tornam eles próprios turbilhões. 19 Para a tradução de kuegü como “hiper”, ver Franchetto (2003).

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Mas isto não acontece com frequência. Havia muitos anos que atuguá não se fazia ver na aldeia kuikuro de Ipatse. Em 2009, porém, após quase um ano doente, Ipi foi diagnosticada como tendo sido vítima do Redemoinho. Pediram-lhe, então, que se tornasse dona da máscara e, em consequência, responsável pelo ritual no qual estes artefatos fazem a sua aparição. Como de costume, houve primeiro o que se chama de itseke inhenkgutoho, “o aportar do espírito”, que consiste em apresentar, sem grande sofisticação formal, os espíritos patogênicos ao paciente ainda convalescente. Uma vez curada, a família saiu para pescar e duas grandes máscaras Agijamani foram confeccionadas no interior da casa dos homens. Isto impede que todos conheçam a identidade de seu portador. Considera-se de mau gosto tentar adivinhar quem esta lá dentro, uma vez que tal atitude faz com que a pessoa mascarada perca seu “valor”. Este jogo de dissimulação passa também pela voz: Redemoinho só fala por meio de uma pequena flauta e, sendo extremamente voraz, unicamente para solicitar mais comida. Há ainda outro requisito que, como veremos na próxima seção, é de extrema importância: quem veste a máscara deve pintar de negro sua face e seu torso, e de vermelho seus cabelos. Isto é necessário para a metamorfose do mascarado em “espírito” – transformação que os Kuikuro designam itseketilü, uma verbalização de itseke e que poderíamos traduzir como “espiritizar-se”.20 Entre os Kuikuro, o mascarado não é somente “um acessório mecânico” da máscara, como sugere Taylor (2010: 43) para o caso amazônico, pois mesmo que não seja possuído pelo espírito, ele se torna ele próprio um espírito.21 Temos aqui um nível suplementar de complexidade, já que a máscara que contém um humano contém agora um humano transformado em não-humano. A pintura corporal, que também aparecia de modo elaborado nos rostos humanos das máscaras de transformação, acrescenta um novo invólucro situado entre a máscara e a pele não decorada. Ora, esta pele nua não é exatamente o invólucro de uma interioridade anímica única.22 Não há, entre os Kuikuro, uma imagem unitária da pessoa: após o 20 A tradução de itseke como “espírito” é inexata, mas eu a utilizo aqui por economia de espaço (ver Fausto, 2012). Eu tomei de empréstimo “espiritizar-se” de Cesarino (2011). 21 Ao ver uma foto de um dos mascarados segurando um cigarro, quando só os pajés Kuikuro fumam, perguntei a Mutuá a razão disto. Ele me respondeu: itseke hõhõ egei itsagü, “ele tinha estado espírito”. 22 Como sói acontecer entre outros povos amazônicos, alma e imagem são designadas pelo mesmo termo: akunga. Contudo, em kuikuro, há um termo adicional, hutoho, que designa todo desenho ou toda escultura figurativa, bem como a fotografia. Assim, o poste do kwarup é o hutoho do chefe homenageado, e o boneco do javari é kuge hutoho, “a efígie de pessoa humana” (ver Fausto e Penoni, no prelo). Há também representações figurativas de animais no ritual, que são igualmente ditas x-hutoho ([nome do animal]+escultura). Máscaras, no entanto, jamais são designadas como itseke hutoho. Há uma única representação figurativa que, por sua vez, pode ser chamada akunga: trata-se da boneca antropomórfica usada pelos xamãs para recuperar as almas dos doentes capturadas por espíritos.

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nascimento, o bebê permanece ligado à placenta, chamada de “avó”, que cuida da criança, mas também pode capturar sua alma-imagem; ao longo da vida, cada doença causada pelo roubo da alma-imagem conduz a uma consubstancialização com a entidade que a rouba; os adolescentes do sexo masculino que sonham com o “dono da raiz” sempre são acompanhados por sua imagem que os transforma em grandes campeões de luta, e os xamãs, naturalmente, têm sempre seus auxiliares presentes a seu lado. Por ocasião da morte, nossa imagem divide-se em múltiplas singularidades: uma imagem parte para o céu dos mortos, outras se juntam aos seres que causaram doenças em vida e, no caso dos campeões, vão viver com os “donos da raiz”.23 Os princípios formais que procuro colocar em evidência aqui, por meio da análise das máscaras, têm uma clara afinidade com o modelo compósito e múltiplo da identidade pessoal que foi proposto por vários colegas amazonistas. Não é por acaso que esta matriz é empregada na figuração de seres extraordinários: se atribuímos uma subjetividade a objetos rituais, em particular uma subjetividade poderosa, devemos construí-los, na América indígena, como seres múltiplos e capazes de transformação. a pele e suas almas Gostaria, agora, de me debruçar sobre um último ponto que diz respeito à noção de pele ou de invólucro na Amazônia. Vimos que, para os Kuikuro, a ação ritual de Redemoinho requer que o mascarado receba antes uma pintura corporal – neste caso, não um motivo gráfico sofisticado, mas um enegrecimento do corpo similar àquele aplicado pelos lutadores xinguanos antes do combate. Este invólucro de pintura é necessário para a sua transformação em itseke. Esta mesma ideia pode ser encontrada na Amazônia entre os Tikuna, para os quais a eficácia das máscaras depende da pintura corporal da pessoa que a veste. Goulard relata um mito no qual um jovem caçador encontra um grupo de imortais mascarados. Levantando um pouco sua vestimenta, o caçador percebe que estão todos decorados com pintura de jenipapo. O narrador tikuna conclui, então, que sem esta pintura as máscaras não serviriam para nada (Goulard, 2001: 77). Sua eficácia é assim associada ao fato de conterem várias camadas de invólucros: no interior da máscara, encontra-se a pele decorada, mas a pintura é ela também uma outra pele (e uma outra máscara) que envolve uma imagem-alma. 23 O “dono da raiz” é um espírito inteiramente antropomorfo, com todas as características do homem ideal altoxinguano. Ele possui o domínio sobre os vegetais utilizados pelos jovens em reclusão, que servem para fabricar seus corpos.

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Vemos, assim, que o princípio do encaixe recursivo supõe uma sofisticação específica da própria superfície. Há 80 anos, Fritz Krause já chamara a atenção para este fato, ao referir-se ao “motivo do invólucro” e ao “princípio da forma” em um artigo recentemente recuperado por Viveiros de Castro (2002: 348) no contexto da sua teoria perspectivista (1996) – teoria que atribui à corporalidade a produção de uma descontinuidade em um mundo de continuidade subjetiva: De acordo com a concepção da unidade interna do homem com o resto do mundo vivo – apesar da essência distinta que repousa na diversidade de corporalidade – resulta a opinião de que homens e animais se relacionam como semelhantes, podendo transformar-se reciprocamente através da mudança de forma física. O corpo e a sua forma são os portadores da essência (1931: ms. 2).

Dizer que a forma é portadora da essência significava, para Krause, a prevalência do “motivo do invólucro”, cuja ilustração mais clara se encontrava nas máscaras e nos mitos de metamorfose. E não é por acaso que seus melhores exemplos sejam justamente aqueles que estiveram no cerne de nossa discussão: as máscaras  de transformação da Colúmbia britânica (que ele chamava de “máscaras duplas”) e as máscaras da América do Sul, em particular os exemplares descritos por Koch-Grünberg. Em sua análise, Krause recorre aos mitos para afirmar que “a máscara representa o equivalente perfeito da pele animal”, vestida e despida, conforme deseje transformar-se em humano ou em não-humano.24 Krause não podia imaginar, no entanto, que o motivo do invólucro se mostraria ainda mais  imbricado do que ele supunha. Os dados de Koch-Grünberg sobre as máscaras de entrecasca coletadas ao longo de sua expedição ao rio Negro, entre 1903 e 1905, não permitiram à Krause ir mais longe. Um século mais tarde, no entanto, Irving Goldman provou que essas máscaras contêm uma multiplicidade desconcertante. Em seu livro póstumo, ele analisa algumas máscaras dos índios Cubeo do Noroeste da Amazônia, que fazem a sua aparição em um ritual de lamentação funerária. Os dançarinos mascarados personificam as “gentes-vestimenta-de-entrecasca”, uma classe de animais primordiais associada ao personagem mítico Kuwái, que está na origem das flautas do Yurupari.25 Eis o que Goldman diz sobre estas máscaras: 24 Um bom exemplo disto é sua referência aos mitos kwakiutl coletados por G. Hunt, nos quais se atribui a origem dos clãs à vinda de um ser animal que retira sua máscara, se transformando, assim, em um homem ancestral do clã e fazendo da máscara um dos emblemas clânicos. É preciso notar, no entanto, que Boas se refere também a outros temas míticos que narram, de modo diverso, como cada clã obteve seus emblemas (crests) ([1897] 1970: 335-338). 25 Segundo os povos arawak da região, estes aerofones têm sua origem na morte de Kuwái, que foi incinerado por seu pai Iñapirrikuli (literalmente, “feito de osso”). De suas cinzas nasceu uma palmeira que está na origem de todos os aerofones utilizados ritualmente pelos humanos. Kuwái era um verdadeiro

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Enquanto máscara de dança, takü (tawü, no plural) é uma cobertura externa e é como uma pele. Como a pele orgânica, ela não é uma simples vestimenta. Com seus ornamentos, seus motivos gráficos e suas cores – cada qual representando uma substância vital diferente –, possui uma “pele” própria a ela. Os pigmentos são certamente sua pele e constituem um dos elementos que lhe dão vida (Goldman, 2004: 277).

A máscara é a pele de um animal, que é uma “pessoa-vestimenta-de-entrecasca”, e cada parte da máscara representa uma substância vital que possui sua própria pele. Cada par de máscaras tem propriedades anímicas particulares, já que a manufatura humana lhes confere “sua ‘pele’, que é equivalente à forma-alma; seu pigmento, que contém seu úme ou sua vida-alma; seus motivos gráficos, que revelam seus nomes; os cantos, que são a sua voz; os dançarinos, que são a sua vida ativa; seus ornamentos, que os articulam às outras espécies do universo” (Goldman 2004: 278). Vemos o quanto a noção de exterioridade designa aqui uma superfície composta por múltiplas partes animadas, de tal modo imbricadas umas nas outras que não é possível encontrar uma identidade essencial, final, elementar escondida sob o invólucro. Esta conclusão vai ao encontro do que afirmei alhures sobre a corporalidade nas ontologias ameríndias, ao escrever que o corpo dos animais não é uma “unidade monolítica, o substrato mecânico habitado por uma essência humanoide”, mas, ao contrário, que cada uma de suas partes é “um edifício de almas múltiplas” (Fausto, 2007: 512). Minha intenção era então a de sofisticar a distinção entre roupa-animal e alma-humana, sugerindo que na Amazônia existia uma tensão entre dois modos de pluralidade: o dual e o múltiplo. O primeiro modo corresponderia à distinção que critico aqui – não por ser incorreta, mas por contar apenas parte da história, uma parte que me parece menos produtiva, sobretudo quando se trata de pensar as formas de representação de seres extraordinários em contexto ritual. Ao longo deste texto, procurei mostrar que, ao contrário, as máscaras, assim como outros objetos rituais ameríndios, operam antes no registro da multiplicidade e do encaixe recursivo do que na distinção dual entre uma interioridade humana e uma exterioridade animal.26 Para concluir, gostaria de fazer uma breve digressão comparativa que talvez permita que essa ideia seja melhor entendida. Arcimboldo sonoro, uma vez que continha em seu corpo todos os sons dos animais: “Kuwái ‘fala’ com todas as partes de seu corpo – pés, mãos, costas, pescoço, braço, pernas e pênis –, não somente com seus órgãos fonatórios. E cada parte do corpo é dita ser uma espécie de peixe, de pássaro ou de animal da floresta [ ] Kuwái é, assim, um ser antropomorfo cujo corpo é, ao mesmo tempo, uma síntese zoomorfa de todas as espécies animais” (Hill 2011). 26 Além disso, é preciso notar que nos habituamos muito rapidamente a pensar somente no motivo da roupa zoomorfa dissimulando uma alma antropomorfa. Há, no entanto, exemplos etnográficos nos quais a própria forma humana é uma roupa. Entre os Kuikuro, por exemplo, quando um itseke aparece sob a forma humana em sonho, diz-se que ele vestiu uma roupa humana (itseke etinhundelü kuge ingü atati).

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conclusão Comecei este texto por uma breve discussão acerca das noções de crença e de presença. Ela seria supérflua não fosse o registro no qual minha análise se move: eu não viso somente à análise da forma, mas também à resposta a esta forma. Uma teoria da resposta às imagens tornou-se um elemento analítico central na antropologia, ao menos desde o livro de Freedberg (1989) e sua reescritura, em chave não-ocidental, por Gell (1998). No caso que nos ocupa, as convenções estéticas e os princípios formais que governam a manufatura das máscaras buscam, mais do que comunicar uma crença, extrair uma resposta. E esta resposta depende da produção de uma zona de incerteza, de uma instabilidade cognitiva na qual se pode abduzir uma agência (Gell, 1998) que não se sabe se é humana ou não-humana. Em certa medida, esta ideia pode ser aplicada a todos os objetos rituais, de qualquer tradição – o que nos conduziria a um destes universais tão triviais quanto infalsificáveis que constituem os limites epistemológicos de nossa disciplina. A variação intervém, no entanto, ao nível do regime iconográfico, ou seja, das convenções estéticas que presidem à produção de imagens em uma dada tradição. Permitam-me uma breve comparação, tão preliminar quanto geral, que pode nos ajudar a melhor compreender o que o regime ameríndio de imagens tem de singular. Segundo Hans Belting, que constituirá nosso ponto inicial de comparação, o princípio formal que desencadeia a atribuição de subjetividade a uma imagem na tradição cristã é a semelhança e, em particular, a verossimilhança. A percepção da presença do divino a partir de uma imagem seria função da correspondência exata entre a imagem e o protótipo (o que seria universalmente válido segundo Freedberg). Esta questão remete a uma longa e complexa história que não tenho nem espaço nem a competência para investigar aqui.27 Gostaria simplesmente de assinalar um ponto que diz respeito à representação da dupla natureza, divina e humana, de Cristo. A este problema, o cristianismo respondeu com uma antropomorfização e uma simplificação radicais da imagem. Cristo reúne, em uma única pessoa, um corpo humano passível de representação e uma essência divina, intangível e irrepresentável. O paradoxo teológico colocado pelo fato de Cristo ser, ao mesmo tempo, homem e Deus (e Deus simultaneamente pai, filho e espírito) 27 Levo em conta somente a tradição hegemônica no Ocidente, tendo em mente que há contraexemplos nas tradições populares no Velho e no Novo Mundo. É preciso lembrar que sempre houve mecanismos poderosos de normalização, como nota Schmitt a propósito da condenação pelo papa Urbano VII da “figuração da Trindade sob a forma ‘monstruosa’ de um homem com três rostos” (2002: 139). Para uma “compatibilidade equívoca” (Pina-Cabral, 1999) desta representação “monstruosa” da Trindade e a concepção asteca da pessoa no contexto da colonização do México, ver Furst (1998).

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foi evacuado em favor de uma representação figurativa, naturalista e unitária da divindade enquanto homem. O caráter transformacional dos seres, a ambiguidade das formas e o zoomorfismo foram, todos, associados ao demoníaco. O diabo e os demônios capturaram esta possibilidade de  “saliência” formal, mas como negativo da representação legítima. Não é sem razão, como nota Schmitt (2001: 211), que a cultura hegemônica da Igreja tenha, desde a origem, violentamente condenado as festas de máscaras. Não por se tratar de uma falsa aparência, mas por produzir uma similitude ilegítima que “fere, de fato, a única similitude legítima: aquela do homem criado à ‘imagem de Deus’ (Gênesis I, 26)” (ibid.: 217). E essa ruptura não é sem consequências, pois o mascarar-se não resulta em simples disfarce, mas sim em transfiguração que é própria ao Diabo, o qual por vezes é representado justamente como uma multitude de máscaras: Desse modo, a iconografia da baixa Idade Média o representa frequentemente exibindo no baixo ventre e no posterior as réplicas fiéis de seu rosto. Mas estes rostos multiplicados não são máscaras que o diabo usaria: eles são a sua barriga, seu traseiro, suas articulações, como a lembrança delirante do que ele é, a Máscara, por excelência (Schmitt, 2001: 219).

A associação entre o rosto, a transfiguração e o demônio fez-se sentir diversas vezes durante a colonização das Américas, em particular na condenação violenta do uso das máscaras e da pintura corporal (em particular no rosto) feita pelos missionários. Não era de se esperar outra coisa, uma vez que a tradição iconográfica ameríndia floresceu em um solo muito diferente daquele cristão: seu problema jamais foi a semelhança e a forma humana, mas o modo de representar a transformação, de transpor em imagens o fluxo transformacional que caracteriza os seres poderosos. A resposta a este problema não podia ser encontrada na reprodução a mais exata possível das formas naturais; mas, ao contrário, era preciso buscá-la na geração de imagens as mais complexas e paradoxais possíveis, nas quais as identidades estão encaixadas e os referentes são múltiplos. referências bibliográficas BARCELOS NETO, Aristóteles. “As máscaras rituais do Alto Xingu um século depois de Karl

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Os autores

ANDRÉ DEMARCHI

Professor de Antropologia na Universidade Federal do Tocantins, doutorando em Antropologia no PPGSA/IFCS/UFRJ. ARISTÓTELES BARCELOS NETO

Professor no Sainsbury Research Unit for the Arts of Africa, Oceania and the Americas (University of East Anglia). CARLOS FAUSTO

Professor em antropologia no PPGAS-Museu Nacional-UFRJ. CARLOS SEVERI

Professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales e pesquisador do Laboratoire d’anthropologie sociale, Collège de France, Paris. CHARLES STÉPANOFF

Professor de antropologia da École Pratique de Hautes Études, Paris. ELS LAGROU

Professora do Progrma de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA, UFRJ). ESTHER JEAN LANGDON

Professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS, UFSC). 333

LUCIA HUSSAK VAN VELTHEM

Pesquisadora do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG/SCUP – MCTI). LUISA ELVIRA BELAUNDE

Professora Visitante Senior pela CAPES, PPGSA/IFCS, Universidade Federal de Rio de Janeiro, Pontificia Universidad Católica del Perú. PETER BEYSEN

Doutor pelo PPGSA/IFCS/UFRJ, Pesquisador associado ao Museu do Índio Projeto Prodocult/UNESCO. REGINA POLO MÜLLER

Professora do Instituto de Artes, Unicamp.

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impresso eletronicamente na gráfica singular digital para viveiros de castro editora em dezembro de 2013.

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