“Raças com crânios, ossos com histórias” (2014)

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ESTATUTO EDITORIAT Imþróþria é uma publicação semestral independente que se insere num projecto mais amplo da associação Unipop, um colectivo que procura disseminar o pensamento crítico e a prática militante paralâ dos limites da academia e da política institucional, abrindo espaços onde o contemporâneo possa ser sujeito a análise e a novas formas de intervenção. Move-nos a convicção partilhada de que tanto a política como o pensamento são uma matéria comum, transversal, aberta a todos e a qualquer um, em suma, não têm lugares, tempos ou agentes próprios. Imþróþria é mais uma vertente deste projecto colectivo. Dispensamos uma doutrina unitaria. Não antecipamos as direcções e os cruzamentos, as divergências e as convergências, ou as trajectórias partilhadas que poderão ter lugar. Prescindimos de delimitar o terreno partilhado entre o corpo editorial, os colaboradores e os leitores da revista. Queremos, em contrapartida, potenciar formas de debate que atravessem diagonalmente as habituais divisões académicas, os limites do que é próprio a cada campo do saber, bem como as fronteiras entre posições políticas estanques. Queremos que seja um espaço onde um trabalho de diagnóstico da sociedade contemporânea seja conjugado com uma reflexão sobre as formas de emancipação,luta e solidariedade colectivas. Pensar o presente implica não aceitar acriticamente as distinções estabelecidas entre o local e

oglobal,aleieadesordem,opolíticoeoapolítico,oteóricoeoprático,oextraordinárioeo quotidiano,opessoaleocomum,ofactualeoespeculativo,oactualeoobsoleto,opróprioeo impróprio. Importa interrogar o conteúdo de cada uma destas palavras e das linhas e enredos que elas traçam, os discursos que as naturalizam, as instituições que as legitimam e a forma como desse modo se reproduzem as relações e práticas sociais.

Tudo isto se poderia resumir numa fórmula: desmanchar "a medida do possível". Não acreditamos na inevitabilidade do estado das coisas. É no presente que o futuro eslá em jogo e há margem de manobra no presente. Estamos cá. Somos muitos e vários. Que outros nos usem.

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imprópria I política e pensamento crítico I n a I 2Ol4 | semestral | € 8

director Miguel Cardoso I conselho editorial Ana Rita Amaral, Bruno Peixe Dias,

Cláudia

Figueiredo, Diogo Duarte, Elisa Silva, Fernando Ramalho, Frederico Ágoas, Golgona Anghel, Gonçalo Zagalo Pereira, Inês Espírito Santo, Inês Galvão, Joana Lucas, João Pedro Cachopo, José Ferreira, José Neves, José Nuno Matos, Luhuna de Carvalho, Manuel Bivar, Manuel Deniz Silva, Marcos Cardão, Maria Coutinho, Mariana Goes, Mariana Pinho, Nuno Rodrigues, Pedro Cerejo, Pedro Feijó, Raquel Carvalheira, Ricardo Noronha, Rita Luis, Rui Lopes, Salomé Coelho, Tiago Avó | secretariado Iìernando Ramalho I revisão Pedro Cerejo I grafismo e paginação Unipop I capa Vera Tavares I selecção de imagens e contracapa Jorge læal I propriedade, redacção e assinaturas Associação Unipop, Pcta. D. Miguel I, n." 6 - 3.n Esq., 2830-259 Barreiro I www.unipop.info I [email protected] I impressão Guide Artes Gráficas I distribuição Bertrand I ISSN 2182-3367 | depósito legal338026/11

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edltorlal llberallsmo O elusivo fim da Guerra Fria

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Rui. Laþes

Para uma história operária do pós-fordismo

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Ricardo Noronha eJosë Nuno Matos

do Homo economicusz o neoliberalismo e a produção de subjectividade

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T"nnfrm"logia

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e a identidade do neoliberalismo

A renovação do conceito de como uma realidade natural, passível de tornar-se objecto privilegiado de ciência. Essa ciência tomou o nome de anatomia comparativa para uns, de etnologia ou craniologia

étnica para alguns, ou, simplesmente, de antropologia para muitos. Durante a segunda metade do século XD(, a expressão antropologia - vertida do modelo francês da anthroþologie estabelecida em meados do século XD( - traduzia a ideia de uma ciência natural, enciclopédica nas suas ciências auxiliares. Baseada na anatomia comparada, essa ciência propunha aos seus arautos entregarem-se à sistemática destrinça, classificação e genealogia das diferenças e semelhanças raciais entre os povos do planeta. Esta "história natural do Homem> correspondia a uma "ciência da raça>>, a busca organizadade naturezas humanas traduzida na busca organizada de raças naturais. Essa busca tinha, literalmente, um corpo. O corpo humano físico - o corpo morto e o corpo vivo - constituiu a materialidade eleita para a identificação das naturezas racializadas do humano. De entre todas as partes do corpo foi o crânio humano que mais mobilizou o projecto oitocentista de recolha e isolamento de "raças humanas". Crânios e ossos humanos constituíam matérias necessárias (ou para que abstracções de "tipos" "raças" qualidade raciais) adquirissem a objectiva de entidades pertencentes ao real natural. Po-

rém, sem histórias que os documentassem,

atenção de especialistas e investigadores. Ou-

sem arquivos que lhes conferissem uma biografia, esses crânios e ossadas não serviam para dar às raças naturezas credíveis. E eis aqui o tema do texto que se segue: a identificação do valor das histórias e dos arquivos de ossadas humanas para os processos de racializaçáo científica da diferença humana.

tra das razões para esta actual invisibilidade

Milhares de ossos e outras partes do corpo humano encontram-se hoje guardados em museus científicos por todo o mundo. Esqueletos completos, cérebros conservados em formol, amostras de cabelo de diferentes povos e, sobretudo, grandes quantidades de crânios humanos. Crânios de várias idades e de ambos sexos, das mais estranhas e remotas proveniências geográficas; crânios "normais' s1¡ "patológicos"; de gente co-

mum, de génios, de criminosos, ou de "raças exóticas"; crânios pintados, tatuados, ou decorados com elementos orgânicos, conchas, pedras, ou barro; ou simplesmente ossadas naturais. Muitos destes crânios pertencem a populações europeias, mas muitos outros pertencem a povos de regiões bem mais distantes, de África, Ásia, América ou Oceânia. No passado, estes últimos eram especialmente valiosos, materializando o anseio de muitos estudiosos em discriminar afinidades e diferenças entre os povos humanos do planeta. Tornaram-se assim o principal objecto de estudo dessa "antropologia" que se autodescrevia como história natural e ciência da raça, e cujos espectros directos, hoje, habitam as variantes disciplinares da antropologia física e biológica. Para o habitual visitante de um museu, estes materiais raramente são visíveis. Não estão expostos ao público. Mantêm-se religiosamente resguardados nos depósitos e em zonas separadas, à espera de um dia receber a

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pública é o facto de estas colecções - em particulaç os restos humanos de populações não europeias - se terem tornado politicamente sensíveis e controversas. Tal facto deve-se sobretudo às fervorosas reivindicações feitas por várias comunidades indígenas com vista ao repatriamento dos restos humanos dos seus antepassados, com vista a serem de novo reintegrados nas comunidades de onde foram

originalmente recolhidos, muitas décadas atrásr. Para muitos, porém, esses milhares de

crânios de raças exóticas que hoje habitam os espaços da ciência constituem pouco mais do que "recordações incómodas" das violências do colonialismo das nações do Ocidente. Desta perspectiva, a propriedade de ossos indígenas pelos museus é vista como ilegítima, devido à sua história colonial. Estas colecções chegaram às mãos dos antropólogos nos museus entre a segunda metade do século XX e inícios do século )OÇ período áureo do imperialismo europeu e da sua frequentemente devastadora expansão territorial. Este foi também o período áureo de um certo paradigma antropológico. A acumulação de crânios em museus mantinha então estreit¿ associação com a ciência da antropologia na sua tradição física ou biológica. Até aos inícios do século )CK, o crânio humano manteve um estatuto privilegiado. Era importante para os antropólogos raciais porque era considerado a parte mais fiável do esqueleto para estudar e classificar as raças humanas. Mas, nessa altura, não era apenas o crânio, enquanto objecto material, que importavapara se produzir um conhecimento científico fiável e exacto. Eram importantes ainda as histórias que se contavam acerca da identidade e da origem colonial de cada crânio. Com efeito, os museus e os coleccionadores de crânios insistiam na necessidade de guardarjunto com as coisas um

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arquivo de cartas, rótulos, artigos, recibos e outros documentos com informação individualizada sobre cada um clos crânios oferecidos, vendidos ou trocados. Esta informação tomava a forma de uma "historiografia em miniatura", um tipo de conhecimento retrospectivo de carácter biográfico e de pequena escala associado a colecções antropológicas em museus, cujo significado tenho explorado em outros trabalhosz. O meu objectivo, aqui, consiste em identificar e caracterizar, de forma breve, o significado da mediação sociológica desempenhada pelo laço entre crânios e histórias nas "economias

da confiança" do conhecimento antropológico na segunda metade do século XX. Uso assim uma expressão vulgarizada pelos historiadores Shapin e Schaffer nos seus estudos sobre a cultura experimental da ciência moderna emergente no século XVII. Conforme demonstraram estes autores, a objectividade e factualidade do conhecimento científico encontram-se intimamente associadas a mecanismos sociológicos de fiabilidade do "testemunhoo, que visam garantir a .,confiança" nas observações comunicadas, quer por sujeitos humanos quer por objectos e tecnologias materiais, acerca dos acontecimentos do mundo empírico3. Steven Shapin, por exemplo, explorou em particular a função que a exibição do ethos e do estatuto social de gentleman na Inglaterra do século XVII desempenhava nos processos de creditação social do relato científico e legitimação do testemunho experimentala. Neste artigo, pretendo explorar estas questões colocando em evidência o papel activo que os cientistas raciais atribuíam à produção e preservação de arquivos e histórias credíveis acerca das origens e identidade dos crânios humanos nos museus. fugumento que uma das mediações principais destes arquivos e destas histórias (incluindo histó-

rias sobre as circunstâncias de recolha e as origens coloniais das colecções) consistia em atestar a autenticidade doscrânios. Contar histórias sobre os crânios permitia garanti¡ por exemplo, que certo crânio ou conjunto de crânios tinha sido de facto enviado de uma determinada proveniência geográfica e, assim, era passível de prestar testemunho válido acerca da "raça,, que identificava uma população dessa região particular. Com base na análise de catalogos de colecções de crânios humanos do século XX, procurarei ilustrar o significado que este tipo de conhecimento possuía no quadro da cultura científica dos antropólogos da época. As histórias eram determinantes na constituição de um capital de confiança, sobre o qual se erguia o conhecimento gerado a partir da análise anatómica e antropométrica de crânios humanos. Contudo, como veremos, a força das histórias na produção de autenticidade das ossadas dependia, ela própria, de processos, mais estritamente sociológicos, de autenticação. A terceira parte deste texto procura evidenciar sumariamente alguns destes processos. Aqui, mostrar-se-á o modo como a confiança no papel mediador das histórias estava dependente, por um lado, da exposição do estatuto social dos agentes envolvidos na sua oferta, venda e/ou recolha e, por outro, da conformidade ou não conformidade com as formas de conhecimento pericial que caracterizavam a competência profissional do antropólogo de museu.

o registo de histórias como condição de uma boa colecção cientlfica Na segunda metade do século XIX, os museus antropológicos não estavam apenas interessados na materialidade dos crânios. Esta forma

de objectividade científica dos objectos

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tipo de objectividade que, conforme I¡rraine Daston observou, implica "coisas desligadas de palavras"s - constituía uma limitação à mobilização de crânios para fins científicos, na antropológica física da época. Na verdade, o valor de uma ossada enquanto evidência empírica de raça(s) dependia da qualidade das suas ligações a palavras e a textos credíveis - e, nomeadamente, a palavras e textos de natureza historiográfica. Para utilizar um vocabulário corrente entre os curadores e os profissionais de museu: os melhores espécimes eram aqueles que se encontravam associados a "histórias" individuais. O termo "histórias" possuía um significado elástico na cultura científica destes especialistas. Configurava um complexo género de conhecimento individualizado, ele próprio com uma história particular no quadro das práticas museológicas e cujas origens remontam porventura aos fins do século XVIII, altura em que o estudo científico do esqueleto e do crânio humanos adquiriu maior importância na nascente anatomia médica de laivos modernos6. O termo "históriaso servia para designar o registo individual que devia ser mantido em associação com cada crânio ou conjunto de crânios. Estas "histórias" podiam incluir, ao mesmo tempo, dados biográficos que indexavam o crânio humano a uma pessoa falecida, ao seu nome, sexo, idade, estado de saúde mental ou fisica, forma de morte, grupo étnico ou "tribo", etc.; ao nome que identificava o doador, vendedor ou coleccionador do crânio; a uma data de aquisição; a uma geografia (por exemplo, o local onde o crânio havia sido recolhido); a informação de tipo etnográfico; a referências a outros artigos e textos; ou, ainda, a curtas narrativas históricas acerca das circunstâncias em que o espécime tinha sido obtido. Além disso, esse termo incluía também a documentação de tipo arquivístico associada ao objecto (correspondência, textos, rótulos,

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etc.). As "histórias" eram, assim, consideradas uma componente preciosa das colecções de restos humanos. A sua importåncia para a objectividade científica encontrava-se firmemente estabelecida no século XX, aumentando à medida que a ciência da antropologia se afirmava institucionalmente na segunda metade desse século, período que a literatura vem designando como apogeu da fase museo-

lógica da disciplinaT.

O valor científico dos crânios entrelaçava-se com o valor das histórias associadas, tanto quanto dependia da sua condição física, material. Em termos ideais, os dois elementos - a condição de credibilidade dos crânios e a condição de credibilidade das histórias - eram inseparáveis. Nestes termos, as colecções antropológicas de restos humanos eram, em teoria, concebidas como conjuntos perfeitos de histórias e coisas interligadas. A importância deste género de registo histórico para a objectividade científica dos objectos de museu pode ser apreciada através de uma análise dos catiílogos de colecções de crânios organizados por alguns dos principais directores de museu e coleccionadores privados de meados do século XX8. Considere-se, por exemplo, o caso do Royal College of Surgeons, de Ingla-

O nrnr de uma ossada enquanto evidência emplrica de raçalsf dependia da qualidade das suas ligações a palavras e a textos credlveis - e, nomeadamente, a palavras e textos de natureza

historiográfica.

T terra, instituição que por volta de 1880 possuía uma extensa e valiosa colecção de restos humanos para fins de estudo raciale. Em 1879, vendo que as colecções do College aumentavam a bom ritmo, o seu director, lVilliam H. Flower, decidiu produzir um novo catálogo, mais actualizado. No seu entender, este caüllogo deveria apresentar um carácter mais prepará"histórico, do que "anatómico". Ao -lo, Flower entendeu não se dedicar à construção de um "catálogo descritivo", pejado de minuciosas descrições anatómicas de cada

crânio, à semelhança do que haviam feito eminentes craniólogos no passador0. Em vez disso, Flower afirmava ter dedicado "grande atenção":

especialmente à preservação de cada registo relacionado com a história e autenticidade de cada espécime, enfatizando todos os particulares que não podem ser vistos no próprio espécime, emvez de realçar aqueles que a qualquer momento podem com facilidade ser nele observados. Fazë-lo implicou o dispêndio de uma enorme quantidade de tempo na pesquisa de antigos documentos, cartas e publicações, embora muitas vezes com pouco resultado visível, e, apesar de todo o trabalho, poder-se-á encontrar no Cat¡llogo alguns espécimes, recebidos nas colecções em tempos mais antigos, cuja história é duvidosa ou desconhecida.rr Nas colecções antropológicas, os crânios humanos de pouco valor eram enquanto "coisas-em-si-mesmas". Requeriam ligação a uma

rede de documentos e a narração de "todos os particulares" conhecidos sobre o seu passado. O excerto de William H. Flower revela assim que a acumulação de crânios humanos enquanto colecções científicas implicava um

verdadeiro trabalho de pesquisa documental e narração de histórias. Alguns espécimes, os pareciam não responder aos "mais antigoso, requisitos historiográficos que Flower julgava fundamentais para uma colecção antropológica; esses, para seu desagrado, tiveram de continuar associados a histórias incertas, ou permaneceram mesmo dissociados de qualquer história. Em face dessa ausência, cabia então ao próprio antropólogo de museu a árdua tarefa de reconciliar os objectos com a documentação, nesse processo elevando as qualidades científicas dos crânios. Histórias, pois, que diziam respeito a um determinado conteúdo informativo, bem como a um arquivo físico de documentação que devia ser mantido juntamente com as coisas. Uma boa colecção científica de crânios, portanto, não compreendia apenas objectos materiais; consistia em coisas e no seu arquivo. A preocupação manifestada com a associação de coisas a histórias e textos encontrava-se generalizada entre os especialistas no estudo antropológico de ossos humanos. Em 1865, por exemplo, o britânico Thomas Bendyshe apelava aos "actuais possuidores" das colecções formadas nos fins do século XVIII pelo célebre craniólogo alemão Johann Friedrich Blumenbach para que publicassem as (ainda inéditas) "descrições muito detalhadas e rigorosas, os certificados, e os documentos relacionados com cada uma das particularidadeso dos crânios existentes no seu espóliot2. Era desejável que cada crânio estivesse anexado a uma história, e esta recomendação normativa era então seguida com fervor por muitos especialistas. O médico e antropólogo britânico Joseph Barnard Davis - um dos mais célebres coleccionadores privados de crânios de raças que a sua "curiosida"exóticas" - confessava por humanos" fora despertada por de crânios uma aula de Anatomia, no decurso da qual o

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professor apresentara os crânios com generosos e desinteressados, ..amigos' respeitáveis ou pessoas honradas2O. Mas a prática de nomeação de doadores cumpria ainda outra função nessa peculiar neconomia da dádiva"zr que é possível identificar nos circuitos de circulação de restos humanos para museus. A nomeação de doadores servia de "contrapresenteo, actuando como gesto de reconhecimento e gratidão por uma oferta "desinteressada". Veja-se, por exemplo, o comentário deJ.L.Dusseau no prefácio ao catalogo do Museu Vrolik, de 1865. Reconhecendo a dupla importância de manter um registo dos nomes dos ofertantes junto com a marcaçáo das suas respectivas posições sociais, Dusseau escreveu: "Como justa retribuição e inspirado por um gesto de gratidão muito natural, o Sr. Vrolik não se esqueceu de ligar ostensivamente o nome do doador a cada objecto doado, facto que tem a vantagem de constituir um conjunto muito útil de documentos paraa história da colecção"22. Estes procedimentos sociológicos de autenti. cação podiam revelar-se insuficientes para assegurar a completa veracidade da informação que certificava os espécimes. Apesar da certificação sociológica, as histórias reportadas para cada crânio humano tinham também de passar o teste da crítica anatómica, pois considerava-se possível que um crânio pudesse ter sido enviado ao museu anexado a histórias falsas. Para ser aceite, a descrição histórica sobre o crânio tinha de enfrentar ainda o minucioso escrutínio do craniólogo. Este problema ganhava especial importância e complexidade no que tocava à história étnica ou racial dos crânios. Como precaução de método, o craniólogo reservava para si mesmo, para o seu

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juízo de especialista na anatomia comparativa do esqueleto, a palavra final acerca daraça a que pertenciam os espécimes - independente mente até daquela que as "histórias" lhes atribuíam. Aeste aspecto sensível da identificação de colecções fez referência, em 1849, o célebre etnólogo e coleccionador norteamericano, Samuel G. Morton, durante vários anos proprietiírio da maior colecção de crânios representativa das "diferentes raças do homem": ..Já me aconteceu recebeç por engano>, escreveu Morton, "crânios, quer de europeus quer de africanos, que me foram enviados como se pertencessem a índios; que, por qualquer acaso, estes pudessem aparecer misturados nos mesmos cemitérios perceber-se-á bem; contudo, um olhar bem treinado pode separá-los sem dificuldade>2iì. A credibilidade das histórias que autenticavam um objecto dependia da confiança depositada no autor das histórias e/ou no ofertante dos objectos ao museu. Esta confiança, por sua vez, dependia do modo como o estatuto social do autor era reconhecido e, sobretudo, do modo como era exibido nos catálogos, ou noutros suportes de registo e formas de publicitação da identidade das colecçÕes. Ainda assim, a simples presença de histórias não bastava. As histórias podiam suscitar dúvidas quando confrontadas com os dados da observação antropológica de ossadas, dado que tanto os ofertantes como os coleccionadores no terreno, tantas vezes sem qualquer treino especializado na observação anatómica, podiam, por exemplo, tomar crânios de ,.europeus e africanos" pelos de "índios". E, neste caso, cabia aos antropólogos de museu a difÍcil tarefa de supor para as ossadas uma "história, alternativa.

Conclusão Neste artigo, procurei explorar a ideia de que a produção científica de naturezas ra-

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ciais para o mundo humano esteve associada à produção de histórias para os rnateriais que ofereciam a principal evidência empírica dessas naturezas: crânios e ossos humanos, por exemplo. Na ciência racial do século XIK, a identificação de raças naturais implicava a reunião de crânios autênticos; e crânios autênticos exigiam histórias credíveis. Criar pequenas histórias era assim uma actividade crucial na economia da confiança da raciologia científica. Na segunda metade do século XX, a reunião de "crânios-em-si-mesmoso - de crânios considerados na sua crua materialidade - revelava-se insuficiente para garantir a credibilidade do "testemunho,, de crânios na ciência antropológica. Com efeito, na economia da confiança da antropologia, a autoridade reconhecida às coisas dependia intimamente da autoridade reconhecida às palavras inclusas nos seus documentos e histórias biográficas. A objectividade científica das colecções residia, portanto, em parte, na rede de textos, documentos e arquivos que envolvia (ou deveria envolver) cada objecto. Um crânio com historlas - em contraste com um crânio sem historias - podia ganhar valor acrescido na economia de conhecimento antropológico, pois tal ligação concorria para assegurar a sua autenticidade. Muitos dos crânios humanos enviados aos especialistas de museu chegavam sem informação ou encontravam-se defi cientemente informados, facto que alimentava as ansiedades dos craniólogos, uma vez que crânios sem

"histórias",

tal como crânios com histórias mal certificadas, ofereciam pilares frágeis para erguer

conhecimento antropológico-racial; eram um terreno inseguro e escorregadio para a construção de tipos e taxonomias de raças humanas.

Como vimos, não bastava contar histórias; era preciso contar histórias credíueis. A con-

fiança no testemunho dos crânios era função da confiança no testemunho das histórias. A este respeito, foi aqui sugerido que a credibilidade da informação associada aos objectos vivia de procedimentos sociológicos de certificação. A confiança das histórias dependia da confiança no contador de histórias e produtor da informaçáo, a qual, por sua vez, era construída a partir de dois procedimentos de certificação sociológica: por um lado, através de práticas de nomeaçã.0 do ofertante, colector ou vendedor do crânio; e, por outro, através de práticas de exibiçã,0 do estatuto social do(s) nome(s) daquele(s) que ficava(m) associado(s) ao registo de cada objecto da colecção. Além disso, como vimos, os antropólogos podiam sujeitar o conhecimento historiográflco associado aos objectos a um género de certificação epistémica. Isto é, a validade, por exemplo, da identidade étnica ou origem geográfica de um crânio estava dependente da sua conformidade ou não conformidade com o saber pericial produzido pelos antropólogos físicos a partir da observação anatómica directa das ossadas.

O impacto desta historiografia miniatura no percurso científico dos crânios podia então ser elevado. Da sua existência ou ausência, credibilidade ou desconfiança, poderia depender, inclusive, a possibilidade de um crânio ou um conjunto de crânios servir como representante de uma população ou de uma raça- a possibilidade de, enfim, servir a produção de naturezas. Este aspecto, como sugeri, parecia especialmente verdadeiro para os antropólogos físicos do século X[X. Ainda hoje, contudo, a associação entre crânios e histórias pode constituir foco de preocupação, quer na prática científica quer no debate pós-colonial. Com efeito, os curadores de museus e os antropólogos biológicos continuam

rias" dos restos humanos que possuem nas suas colecções. Isso mesmo me afirmou uma antropóloga física australiana: "o trabalho feito sobre colecções com uma proveniência mal esclarecida não é boa ciência. Tem-se o osso, não se tem o contexto. Para se compreender a variação é necessário possuir uma base de dados, saber-se a ascendência, a idade, o sexo, [etc.]"2¿. As pequenas histórias são importantes para a ciência. Mas poderão ser também importantes para interferir na actual lut¿ política sobre a propriedade de ossadas humanas e sobre o seu repatriamento para as comunidades dos descendentes dos povos nativos violentados pela colonização europeia.

Sem que a identidade histórica das ossadas esteja definida, é difícil também decidir o seu futuro. o

Agradecimentos Este ensaio insere-se no projecto As ciências da classificação antroþológica em Timor Português (1894-197Ð,

financiado pela lrundação para a Ciência e Tecnologia (HC/0089/2009) e sediado no Instituto de Ciências Sociais cla Universidade de Lisboa. Para afinalização deste

texto, o autor benefìciou também de uma Postcloctoral Fellowship do Australian Research Council (referência

FL 1101002431), desenvolvida na Universidade de Sidney. O autor agradece à FCT a bolsa de doutoramento que lançou as bases iniciais desta pesquisa. Uma versão

inicial do texto foi apresentada nos Iìncontros de Sociologia dos Açores em 2007.

Iìicardo Roque é investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de l.isboa e honorary associa/ø no departamento de Hist
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