\"Radiografar\" o terreno para melhor o gerir: o exemplo das prospeções geofísicas realizadas em sítios de Alcoutim (resultados preliminares)

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20 S EGUNDA S ÉRIE | JANEIRO 2016

S ÍTIOS A RQUEOLÓGICOS P ORTUGUESES R EVISITADOS

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EDITORIAL ortugal ocupa um território continental que, há vários milénios, oferece condições para a fixação de comunidades humanas que o vão transformando e adaptando às suas necessidades. Enquanto realidade nacional com perto de 900 anos de História, abrange também territórios insulares onde a expansão marítima conduziu os que navegavam sob a sua bandeira no início do século XV. Fruto dessa longa, intensa e profícua interacção entre o Homem e o Meio, são muitas as marcas que as sucessivas transformações sociais e civilizacionais deixaram no terreno e hoje perduram, enriquecendo e diversificando o Património cultural do país e, nomeadamente, o de natureza arqueológica. Contudo, nem sempre esse Património arqueológico é apreendido e fruído como instrumento de partilha e sociabilização do conhecimento, por ignorância da sua existência e/ou valor, por menosprezo da sua preservação e valorização ou, simplesmente, por falta de condições de acesso e visita. Naturalmente, a fruição deste recurso cultural finito e não renovável pelas gerações do presente implica que estas adoptem um comportamento responsável, individual e colectivo, no sentido de garantir que a sua acção (ou inacção), por incúria, insensibilidade ou, até, intenção delituosa, não implica risco para a natureza, fragilidade e/ou estado de conservação de bens que devem ser transmitidos às gerações futuras. É um equilíbrio difícil, cuja discussão técnica e política tem alimentado fóruns e debates científicos e culturais dentro e fora das nossas fronteiras (mais fora do que dentro, diga-se), principalmente quando aumenta a importância do turismo cultural e ambiental no contexto de modelos de desenvolvimento sustentado de nível local, regional ou mesmo nacional. Enquanto associação que há mais de quatro décadas procura promover o Património arqueológico, o Centro de Arqueologia de Almada encara a questão numa perspectiva optimista e confiante na maturidade dos cidadãos e cidadãs e, por outro lado, responsabilizante dos poderes públicos e privados. Por isso, esta Al-Madan impressa reedita uma iniciativa pela primeira vez concretizada em 2001, com uma nova abordagem à temática dos sítios arqueológicos portugueses visitáveis. Com base num inquérito promovido a nível nacional, são 500 propostas de visita, listadas e sumariamente descritas nestas páginas, mas também traduzidas numa aplicação online que será posteriormente complementada e actualizada com novas fontes e em resultado da interacção com os futuros visitantes. Tendo por ponto de partida esta edição, é um serviço público doravante disponibilizado através do sítio web da Al-Madan (www.almadan.publ.pt). Encontrará ainda outros assuntos de interesse nesta Al-Madan impressa, sem esquecer que, à semelhança dos últimos anos, ela é acompanhada de mais um tomo da Al-Madan Online, revista digital com conteúdos distintos em distribuição gratuita e generalizada através da Internet (ver www.almadan.publ.pt ou https://issuu.com/almadan). Como sempre, votos de boa leitura...

P

Capa | Luís Barros e Jorge Raposo Pormenor da muralha do Castro de Sabrosa, povoado fortificado com ocupação da Idade do Ferro à Alta Idade Média. Também conhecido por “Castelo dos Mouros”, está classificado como Imóvel de Interesse Público. Fotografia © Município de Sabrosa.

II Série, n.º 20, Janeiro 2016 Propriedade | Centro de Arqueologia de Almada, Apartado 603 EC Pragal, 2801-601 Almada Portugal Tel. / Fax | 212 766 975 E-mail | [email protected] Internet | www.almadan.publ.pt Registo de imprensa | 108998 ISSN | 0871-066X Depósito Legal | 92457/95 Impressão | A Triunfadora, Artes Gráficas Ld.ª Publicidade | Elisabete Gonçalves

Jorge Raposo

Distribuição | Centro de Arqueologia de Almada Tiragem | 500 exemplares Patrocínio | Câmara M. de Almada

Redacção | Vanessa Dias, Ana L. Duarte, Elisabete Gonçalves e Francisco Silva

Parceria | ArqueoHoje - Conservação e Restauro do Património Monumental, Ld.ª

Resumos | Jorge Raposo (português), Luisa Pinho (inglês) e Maria Isabel dos Santos (francês)

Apoio | Neoépica, Ld.ª

Modelo gráfico, tratamento de imagem e paginação electrónica | Jorge Raposo

Director | Jorge Raposo ([email protected])

Revisão | Vanessa Dias, Graziela Duarte, Fernanda Lourenço e Sónia Tchissole

Periodicidade | Anual

Conselho Científico | Amílcar Guerra, António Nabais, Luís Raposo, Carlos Marques da Silva e Carlos Tavares da Silva

Colunistas | Amílcar Guerra, Víctor Mestre, Luís Raposo e António Manuel Silva

Colaboram neste número | Maria J. Almeida, ArqueoHoje, Luísa Batalha, Carlos Boavida, Jacinta Bugalhão, Ana Caessa, Guilherme Cardoso, João L. Cardoso, Tânia M. Casimiro, Helena Catarino, Sandra Cavaco, Catarina Coelho, Jaquelina Covaneiro, Ana L. Duarte, Isabel C. Fernandes, Lídia Fernandes, José S. Ferreira, Vanessa Filipe, Ana S. Gomes, Mário V. Gomes, Susana Gómez, Maria J. Gonçalves, Alexandra Gradim, Amílcar Guerra, Florian Hermann, Isabel Inácio, Marco Liberato, Jorge Lopes, Víctor Mestre, Joana S.

Monteiro, Nuno Mota, Nuno Neto, Cristina Nozes, João Pimenta, Eduardo Porfírio, Jorge Raposo, Luís Raposo, Paulo Rebelo, Ricardo Ribeiro, Miguel Rocha, Constança Santos, Raquel Santos, Miguel Serra, António M. Silva, Armando C. F. Silva, Francisco Silva, Rodrigo B. Silva, Sofia Silva, Maria J. Sousa e Félix Teichner Os conteúdos editoriais da Al-Madan não seguem o Acordo Ortográfico de 1990. No entanto, a revista respeita a vontade dos autores, incluindo nas suas páginas tanto artigos que partilham a opção do editor como aqueles que aplicam o dito Acordo.

3

ÍNDICE EDITORIAL CURTAS

ESTUDOS

...3

...6

CRÓNICAS

DE …

PRÉ-HISTÓRIA ANTIGA | Luís Raposo ...8

ARQUEOLOGIA CLÁSSICA | Amílcar Guerra ...12 ARQUEOLOGIA PORTUGUESA | António Manuel S. P. Silva ...15 PATRIMÓNIO | Victor Mestre ...20

ARQUEOLOGIA O Castelo dos Mouros nos Primeiros Séculos do I Milénio a.C. | Rodrigo Banha da Silva e Maria João de Sousa ...22 O Balneário Castrejo do Castro de Eiras / Aboim das Choças (Arcos de Valdevez): notícia do achado e ensaio interpretativo | Armando Coelho Ferreira da Silva e José da Silva Ferreira ...27

ARQUEOCIÊNCIAS “Radiografar” o Terreno Para Melhor o Gerir: o exemplo das prospeções geofísicas realizadas em sítios arqueológicos de Alcoutim (resultados preliminares) | Alexandra Gradim, Félix Teichner e Florian Hermann ...35

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II SÉRIE (20)

JANEIRO 2016

Em Torno das Cerâmicas de Armazenamento: as talhas (al-hawâbî) no Gharb al-Andalus | Marco Liberato, Jacinta Bugalhão, Helena Catarino, Sandra Cavaco, Jaquelina Covaneiro, Isabel Cristina Fernandes, Susana Gómez, Maria José Gonçalves, Isabel Inácio, Constança dos Santos, Catarina Coelho e Ana Sofia Gomes ...41 OPINIÃO Sincronismos, Contemporaneidades, Verosimilhanças... e Paradigmas Dominantes | Luís Raposo ...53

Os Sítios, os Pontos e o Mapa Deles | Maria José de Almeida ...62

HISTÓRIA DA A RQUEOLOGIA PORTUGUESA Henri Breuil e a Arqueologia Portuguesa: primórdios de uma longa actuação | João Luís Cardoso ...197 PATRIMÓNIO Arte-Xávega na Costa da Caparica. Património Cultural Imaterial: uma proposta de inventariação | Francisco Silva ...204

dossiê

SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS PORTUGUESES REVISITADOS 500 arqueossítios ou conjuntos em condições de fruição pública responsável Jorge Raposo ...70

NOTICIÁRIO ARQUEOLÓGICO

EVENTOS

ArqueoHoje, Conservação e Restauro do Património Monumental | ArqueoHoje ...211

Congresso de Humanidades Digitais em Portugal: construir pontes e quebrar barreiras na era digital | Maria José de Almeida ...225

Neoépica, Ld.ª 2005-2015: balanço de dez anos de intervenção arqueológica | Nuno Neto, Paulo Rebelo e Raquel Santos ...214

Colóquio “Terramoto de Lisboa: Arqueologia e História” - breve crónica | Mário Varela Gomes, Tânia Manuel Casimiro e Carlos Boavida ...227

Projeto Arqueológico do Outeiro do Circo (Beja): campanha de 2015 | Miguel Serra, Eduardo Porfírio e Sofia Silva ...216 Novas Descobertas no Criptopórtico Romano de Lisboa: Rua da Conceição, 75-77 (primeira fase) | Ana Caessa, Cristina Nozes e Nuno Mota ...220 Silos Medievais de Vila Verde dos Francos | Guilherme Cardoso e Luísa Batalha ...221 Vantajosas Cautelas (2): a defesa de elefante recolhida no mar ao largo do Cabo Sardão e a sua cronologia | João Luís Cardoso ...222 Um Complexo Termal Romano na Rua da Adiça (Lisboa) | Vanessa Filipe e Raquel Santos ...224

NOTÍCIAS Museu de Lisboa -Teatro Romano: um renovado equipamento dedicado à História da cidade de Lisboa | Lídia Fernandes e Joana Sousa Monteiro ...229 Centro de Estudos Arqueológicos de Vila Franca de Xira (CEAX): apresentação de um novo equipamento cultural | João Pimenta ...231 LIVROS

...233

RECORTES

...234

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ARQUEOCIÊNCIAS

RESUMO

“Radiografar” o Terreno Para Melhor o Gerir

Resultados preliminares de prospecção geofísica realizada em dois sítios arqueológicos do município de Alcoutim, testando, pela primeira vez, a aplicação destas técnicas para ampliar a informação associada à Carta Arqueológica local. Foram localizadas zonas que indiciam forte potencial arqueológico, com eventuais vestígios de muros e de estruturas de combustão ocultas no subsolo. Os resultados permitem gerir os limites das áreas de protecção dos sítios e orientar a futura investigação arqueológica. PALAVRAS CHAVE: Prospecção arqueológica; Geofísica;

Carta arqueológica; Gestão do Património.

o exemplo das prospeções geofísicas realizadas em sítios arqueológicos de Alcoutim (resultados preliminares)

ABSTRACT Preliminary results of the geophysical survey of two archaeological sites in the municipality of Alcoutim, which tested, for the first time, the use of this technique to collect further information regarding the local Archaeological Map. The survey identified areas of strong archaeological potential, with probable remains of underground walls and hidden combustion structures. These results make it possible to manage the limits of the site protection areas and to guide future archaeological research. KEY WORDS: Archaeological survey; Geophysics;

Archaeological map; Heritage Management.

Alexandra Gradim I, Félix Teichner II e Florian Hermann III

RÉSUMÉ Résultats préliminaires d’une recherche géophysique réalisée sur deux sites archéologiques de la municipalité de Alcoutim, testant, pour la première fois, l’application de ces techniques pour accroître l’information associée au Plan Archéologique local. Ont été localisées des zones qui présentent les indices d’un fort potentiel archéologique, avec d’éventuels vestiges de murs et de structures de combustion cachées dans le sous-sol. Les résultats permettent de gérer les limites des aires de protection des sites et d’orienter la recherche archéologique future.

0. INTRODUÇÃO elaboração de uma carta arqueológica é, antes de mais, um instrumento de gestão patrimonial e territorial de um processo em aberto, porque está em contínua atualização. Prospetar, cartografar e inventariar o património arqueológico, constituem ações indissociáveis para a identificação de sítios e monumentos que refletem a apropriação diacrónica, humana, de um determinado território. Os resultados destas ações serão, no entanto, sempre parciais porque incompletos, pois inscrevem-se numa fase de reconhecimento do espaço sujeito às lacunas inerentes de uma análise superficial do terreno. São múltiplos os exemplos em arqueologia, onde os indícios recolhidos e/ou registados num determinado local não espelham nem a dimensão, nem a sequência cronológica do sítio, que uma escavação posterior revela. A delimitação das áreas dos sítios identificados em prospeção constitui assim um desafio premente ao arqueólogo, ciente de que as suas opções poderão comprometer as fases posteriores da investigação e a própria proteção da memória histórica do local. Se é certo que o conhecimento detalhado só se irá delinear ao longo da investigação que as campanhas arqueológicas encerram, não deixa de ser pertinente a utilização, sempre que possível, de instrumentos que auxiliem neste trabalho prévio.

A

MOTS CLÉS: Prospection archéologique; Géophysique;

Plan archéologique; Gestion du patrimoine.

I

Arqueóloga da Câmara Municipal de Alcoutim, [email protected].

II

Professor da Philipps Universität Marburg, Alemanha, [email protected].

III

Estudante de mestrado em Arqueologia da Philipps Universität Marburg, Alemanha. Por opção dos autores, o texto segue as regras do Acordo Ortográfico de 1990.

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ARQUEOCIÊNCIAS FIGS. 1 E 2 − Nesta página e na seguinte, localização dos sítios arqueológicos do Abrigo (Fig. 1) e do Morgado Romano (Fig. 2) na Carta Militar de Portugal à escala 1/25 000 (folhas 575 e 582, Lisboa, 2004, Serviços Cartográficos do Exército). Obs.: cada lado da quadrícula corresponde a 1 km.

O recurso à geofísica no levantamento do subsolo de sítios arqueológicos identificados em prospeção, ou em que a investigação foi incipiente, é um meio tecnológico que permite adquirir um leque de dados úteis a uma melhor plaFIG. 1 nificação de uma futura escavação e proteção do sítio. Foi neste contexto de aprofundar o conhecimento dos locais e obter pormenores passíveis de elucidar sobre possíveis estruturas, sua tipologia e dimensão, que se realizou no passado mês de Agosto de 2015 uma campanha de prospeções geofísicas num conjunto de sítios, tendo-se selecionado para o presente trabalho a apresentação dos resultados preliminares obtidos no Sítio do Abrigo e no Montado Romano.

1. OS

SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS

Os dois sítios arqueológicos pertencem administrativamente ao concelho de Alcoutim, distrito de Faro, localizando-se um na margem direita do Guadiana, na União das freguesias de Alcoutim e Pereiro, e outro no interior do concelho, junto da margem esquerda da ribeira da Foupana, na freguesia de Giões. Do ponto de vista da formação geomorfológica local, ela é constituída por alternâncias de xistos e grauvaques (“fácies flysh”) do Carbonífero marinho. Geologicamente, o território de Alcoutim insere-se num alinhamento de pequenas estruturas mineralizadas de cobre (Cu) de tipo filoniano, com direção Noroeste-Sudeste, que abrangem sobretudo a zona Sul das freguesias de Martim Longo e Vaqueiros, ocorrendo igualmente a Norte na área de Alcoutim, onde se encontram associadas a minérios como o manganês, o antimónio e o bário (GRADIM, 2006: 20). A estação arqueológica do Sítio do Abrigo (também denominado por Grelheira), situa-se a cerca de 2,5 km para Sul da vila de Alcoutim e encontra-se implantada ao largo de uma várzea, ladeada por duas linhas de água, uma a Norte e outra a Sul, e delimitada pela estrada EM-507, a Oeste, e a margem direita do rio Guadiana, a Este (Fig. 1). As suas coordenadas geográficas (Sistema WGS84), obtidas por GPS de dupla frequência (ProMark 3 – Ashtech / Magellan), são as seguintes: latitude Norte 37° 26’ 44.00”; longitude Oeste de Greenwich 7° 27’ 34.80”; altitude média de 17 m.

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II SÉRIE (20)

JANEIRO 2016

A estação arqueológica foi identificada pelo gabinete de arqueologia municipal, em 1999, quando o proprietário de um dos terrenos referiu a existência de um fuste de coluna de mármore que utilizava como marco de divisão de propriedade (GRADIM, 1999). Durante a visita ao local para recuperar o objeto (que integrou o acervo do núcleo museológico de arqueologia), verificou-se que existia uma grande dispersão de materiais à superfície, a qual se estendia para Sul do achado. Conforme consta do registo da ficha de inventário (A-0115), esta mancha de vestígios superficiais é composta por fragmentos de materiais de construção (além do já referido), de tegulae, imbrices e lateres, e de fragmentos de sigillata e cerâmica comum, que indiciam uma possível villa romana, não sendo de excluir a sua continuidade em período visigótico. No tocante ao sítio do Montado Romano, localizado a cerca de 1,5 km a Noroeste do monte da Alcaria Queimada, encontra-se implantado, também ele, numa várzea mas na margem esquerda da ribeira da Foupana (Fig. 2). As suas coordenadas geográficas (Sistema WGS84), obtidas por um GPS de dupla frequência (ProMark 3 – Ashtech / Magellan), são as seguintes: latitude Norte 37° 24’ 20.85”; longitude Oeste de Greenwich 7° 39’ 57.09”; altitude média de 119 m. O sítio integrava uma vasta área dispersa pelas duas margens da ribeira da Foupana identificada sob o topónimo de S. Bento Velho (ficha de inventário A-0191), descrita como possuindo à superfície, vestígios de uma ocupação romana com materiais que incluíam cerâmica grosseira da antiguidade tardia e/ou do período islâmico (CATARINO, 1997-1998: 204; 2008: 167). Na visita que realizámos ao local, verificámos que os vestígios da margem direita, que correspondem às propriedades inscritas sob o topónimo de S. Bento Velho, na freguesia de Vaqueiros, parecem pertencer a um momento mais tardio da ocupação, já na antiguidade tardia ou período islâmico, enquanto na margem esquerda, na freguesia de Giões, abundam os vestígios mais anti-

gos do período romano (tegulae, fragmentos de bordos, de asa e de fundos de cerâmica comum romana, sigillata), os quais se estendem numa ampla várzea sob o topónimo sugestivo de Montado Romano. Foi com esta designação que o inscrevemos na ficha de inventário (A0421), individualizando deste modo o sítio arqueológico. No cume da margem oposta identificaram-se, em Julho de 2015, os vestígios de uma possível fortificação de tipo castellum, agora designada como Castella de S. Bento Velho (A-0420). O sítio encontra-se igualmente associado a uma mina a Sul (Mina do Zambujal – A-0084), “com vestígios de exploração antiga”, e a uma necrópole, já destruída, de incineração romana a Este, no sítio da Rocha do Touro (ficha A-0191) (CATARINO, 1997-1998: 204).

2. A

PROSPEÇÃO GEOFÍSICA

medido em nano Teslas (nT) (o valor de referência normal é de cerca de 50.000 nT), que afeta todos os materiais subterrados. Os magnetómetros detetam as alterações que advêm da magnetização induzida ou remanescente existente nesses materiais. No primeiro caso, na magnetização induzida a variação depende da natureza do material e reflete-se em valores de poucos nano Teslas. No caso das alterações da magnetização remanescente, elas são geralmente o resultado de situações continuadas, ou não, de um forte aqueFIG. 2 cimento e arrefecimento dos materiais, sendo como tal muito útil para detetar áreas queimadas, lareiras, fornos, os próprios fragmentos cerâmicos ou tijolos. Neste caso, os valores de nano Teslas são elevados. O levantamento realizou-se sobre áreas previamente preparadas com retângulos georreferenciados maioritariamente de 10 m x 20 m, utilizando um Gradiómetro Fluxgate FM36 de sensor duplo, com uma sensibilidade de 0,3 nT e uma resolução de 0,1 x 0,5 m, instrumento este da Empresa Geoscan Resarch (Fig. 3). Nestes trabalhos participaram como assistentes de campo duas alunas espanholas da Universidade Pablo de Olavide (Sevilla): Clara Tello Martin e Julia Ventura Alfaro, além de Florian Hermann, da Universidade de Marburgo, que interveio como técnico de geofísica. O magnetómetro permite uma média de 1 128 medições e foi usado com um trigger 1 Particularidade técnica do equipamento que aciona as externo tipo ST1 sem mediação dos resulleituras do magnetómetro, tados. Este trigger tem a capacidade de fatornando-o mais rápido e eficiente na recolha dos dados. zer medições do fluxo magnético indepen-

O trabalho de prospeção geofísica foi possível através da colaboração que uniu a autarquia de Alcoutim à Universidade de Marburgo, que disponibilizou o material técnico operado sob a responsabilidade de um elemento da equipa (F. T.) e com o apoio financeiro da Associação Arqueológica do Algarve (AAA). A base da prospeção geomagnética prende-se com o fenómeno físico da presença do campo magnético normal da terra

FIG. 3 − Pormenor da preparação para a execução do trabalho técnico com o magnetómetro.

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ARQUEOCIÊNCIAS

dentes, sempre em intervalos temporais semelhantes, obrigando a uma velocidade constante. Com este tipo de prospeção procede-se à medição do gradiente superficial da componente vertical do campo magnético da terra (Az). Qualquer leitura que indique uma modificação neste campo magnético resulta da existência de anomalias magnéticas, que se encontram por baixo da superfície do solo e que são indicadores de um elemento geológico ou arqueológico. A totalidade da área prospetada foi de 3.980 m2, correspondendo a seis retângulos (10 m x 20 m), mais um de 4 x 20 m e um quadrado de 10 m x 10 m no Sítio do Abrigo, e a 13 retângulos (10 m x 20 m) no sítio do Montado Romano. A execução do ensaio de magnetometria operou-se no interior destes 21 sectores (oito no Sítio do Abrigo e 13 no Montado Romano) de configuração retangular, tendo o levantamento sido orientado por uma malha marcada com estacas e fitas métricas na superfície, o que possibilitou que a obtenção dos dados fosse realizada num sistema de linhas paralelas equidistantes (0,50 m). A medição iniciou-se por convenção operativa sempre em um canto esquerdo de cada sector (que serviu de ponto base), progredindo para a direita ao longo das linhas orientadas em modo de ziguezague, permitindo assim o registo de perfis paralelos. Os dados adquiridos no levantamento foram processados nos programas informáticos Snuffler 1.13, Surfer 11 e Quantum GIS Wien 2.8.1, que geraram imagens com valores do gradiente magnético, neste caso, em tons de cinza. A escala que serviu de base para a posterior interpretação arqueológica oscila entre os tons brancos, indicadores dos valores máximos, e os tons negros, no extremo oposto, indicadores dos valores mínimos. Os tons negros representam as anomalias magnéticas negativas e os brancos as positivas. Estes valores mais elevados poderão estar associados a estruturas arqueológicas enterradas.

3. ANÁLISE

DOS RESULTADOS

Os resultados obtidos pelo presente estudo nas duas áreas prospetadas possibilitaram a recolha de imagens do subsolo, através de uma técnica não invasiva e clarificadora dos dados arqueológicos conhecidos apenas por prospeções dos vestígios à superfície.

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FIG. 4 − Imagem geral dos resultados da prospeção geofísica no Sítio do Abrigo. Sobreposição do magnetograma ao ortofotomapa georreferenciado.

3.1. LEITURA DOS RESULTADOS DO S ÍTIO DO A BRIGO Os resultados da magnetometria obtidos no Sítio do Abrigo, bem como a interpretação dos mesmos, encontram-se representados na imagem reproduzida na Fig. 4. Nos sectores localizados a Noroeste (assinalados na imagem com um círculo a vermelho), verificou-se a existência de fortes anomalias magnéticas, ilustradas pela mancha bem contrastada indicativa da coexistência de elementos possuidores de valores elevados associados a elementos de valor negativo. Esta anomalia pode ser lida como antrópica (arqueológica) e estar associada a uma zona de derrubes de edifícios onde a presença de objetos queimados e tijolos, entre outros, seria a responsável por estas anomalias magnéticas. Este quadro é consistente com a concentração de vestígios à superfície observada no terreno, onde abundavam os materiais de construção e outros elementos cerâmicos de época romana. A previsível ocupação humana nesta zona é ainda reforçada pela evidência de dois alinhamentos convergentes que formam um ângulo reto (a verde na imagem), compatíveis com muros de um possível edifício, e um terceiro alinhamento (a azul na imagem), com orientação diversa, que deverá corresponder a um muro de outro edifício, mas de uma outra fase de ocupação. No canto Sudeste do sector central e nos sectores localizados mais a Este, destacam-se mais três zonas com anomalias, às quais se fizeram corresponder uma identificação numérica na imagem (Fig. 4, 1 a 3). Nestas áreas são bem visíveis três estruturas de configuração tenden-

forno ?

forno ?

edifício ?

FIG. 5 − Imagem geral dos resultados da prospeção geofísica no Montado Romano. Sobreposição do magnetograma ao ortofotomapa georreferenciado.

cialmente circular (1, 2 e 3), cuja dimensão máxima dos diâmetros varia entre os três e os seis metros (Fig. 4, 1. Diâmetro 4,6 m; 2. Diâmetro 6,2 m; 3. Diâmetro 3 m). Nestas três zonas verifica-se a existência de uma grande proximidade entre geomagnetismos de valores extremos revelados pelos núcleos centrais das figuras circulares em tons claros, em oposição com os rebordos escuros. Estas combinações de tons claros e escuros são designadas tecnicamente pelos geofísicos como imagens de tipo “dipol”, às quais está ligada a presença de material ferromagnético no subsolo. Neste caso, pela sua forma, será muito provavelmente indicativo de uma zona que sofreu a ação de altas temperaturas próprias da combustão, podendo, portanto, corresponder a eventuais fornos. Estes indicadores, associados aos materiais de superfície, onde abundam os fragmentos de cerâmica comum, de terra sigillata do tipo hispânico e Africana C e D, parecem apontar para um local de habitat de cronologia alto e tardo-imperial, com uma zona para habitação no lado Oeste e uma outra de produção mais para Este, em direção ao rio. 3.2. LEITURA DOS RESULTADOS NO M ONTADO ROMANO Quanto aos resultados no Montado Romano e sua interpretação, reproduzidos na imagem da Fig. 5, estão patentes áreas com anomalias magnéticas reveladoras da possível existência de estruturas com potencial arqueológico. Na zona dos setores a Oeste, junto do limite Este e a Sul dum espaço retangular não prospetado (devido à irregulari-

dade do terreno e montículo de pedras), pode observar-se a ocorrência de um conjunto de anomalias indicadoras de estruturas antrópicas (pelo menos duas e talvez uma terceira), de configuração tendencialmente circular, com diâmetros a variar entre os 2,90 m e os 4,50 m. A coexistência de valores extremos, opostos, do geomagnetismo registado nestas zonas estará, mais uma vez, também ela relacionada com locais que estiveram sob a ação do fogo e, como tal, indiciam a presença de aparentes fornos ou lareiras de um espaço doméstico. Nesta zona regista-se ainda a existência de estruturas claramente lineares, que corresponderão a muros ou fossas escavadas no subsolo. Também nos sectores a Sul e a Sudeste se verificou a presença de estruturas lineares, com a particularidade de, neste último, os dois alinhamentos formarem um ângulo reto (círculo verde na Fig. 5). No interior deste espaço, observa-se a ocorrência de várias estruturas negativas circulares que podem eventualmente corresponder a silos ou lareiras. Esta área encontra-se afastada da mancha de vestígios à superfície que se dispersa pelos setores a Oeste, sendo raros os fragmentos cerâmicos nesta zona. Estes elementos, no entanto, apontam plausivelmente para a possibilidade de uma estrutura com potencial arqueológico neste local, quiçá um edifício antigo. O conjunto cerâmico observado à superfície contém elementos de cerâmica comum romana, alto imperial, e alguns fragmentos de terra sigillata de tipo africana clara C e D, indícios que apontam para um núcleo habitacional rural romano, possivelmente relacionado com a extração mineira e que poderá ter-se prolongado até um período tardio. Estas e outras questões só serão passíveis de se esclarecer em escavação.

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ARQUEOCIÊNCIAS 4. CONCLUSÕES O recurso a métodos científicos não intrusivos em arqueologia tem-se afirmado como uma útil e versátil ferramenta, a que cada vez mais recorrem os profissionais. As razões amplamente difundidas, um pouco por todo o mundo, sobre as vantagens das prospeções geofísicas, têm-se multiplicado, sobretudo na última década (MALOOF, 2008: 12 e 17). Independentemente da diferença na seleção do método ou métodos aplicados ao caso em estudo, a eficácia na localização das estruturas subterradas, a não afetação de contextos em oposição à destruição inevitável de uma escavação ou sondagem, a rapidez de execução aliada à amplitude da abrangência e a inevitável economia de recursos, são argumentos que se impõem nesta opção tecnológica como modus operandi de conhecimento / reconhecimento do território e da sua apropriação humana ao longo dos tempos. A opção pelo método da magnetometria, o mais antigo da geofísica (MILSOM, 1989: 51) e há muito testado em sítios romanos da Inglaterra (AITKEN, 1961), adveio da experiência obtida nos bons resultados alcançados nos últimos anos na Lusitânia Romana, em cidades como Ammaia (CORSI et al., 2013; VERMEULEN, 2010), Regina / Extremadura (TEICHNER et al., 2015a) e Miróbriga (TEICHNER et al., 2015b), em fortificações republicanas como o Monte da Nora (TEICHNER, 2008: 61-71, fig.10), ou ainda, em estações marítimas como Cerro da Vila (TEICHNER, 2008: 376-386, fig. 215) e Boca do Rio (TEICHNER et al., 2014:146, figs. 5-6). Sendo certo que os resultados preliminares aqui apresentados terão de ser encarados como hipóteses formuladas a partir das interpretações

das anomalias detetadas, eles constituem sem dúvida um incremento na leitura do terreno, ao perscrutar, através deste método não intrusivo, o subsolo das duas estações arqueológicas. Com efeito, a localização do que aponta serem estruturas enterradas permite circunscrever com maior exatidão os limites da área dos vestígios arqueológicos. Por outro lado, a identificação de alinhamentos que deverão corresponder a vestígios de muros de edifícios e possíveis estruturas circulares de combustão (lareiras e fornos), contribui para o esclarecimento sobre a possível função dos recintos construídos e sua organização arquitetónica, facilitando deste modo a compreensão do modelo de habitat ali existente. Foi-nos assim permitido caracterizar com maior detalhe estas duas estações arqueológicas, que apontam para interessantes núcleos de povoamento rural com ocupação romana e provável continuidade em período visigótico. Um deles na margem direita do Guadiana – Sítio do Abrigo –, desenvolvendo, presumivelmente, uma economia mais ligada ao comércio fluvial e produção eventual de cerâmica, e o outro interior, com uma economia possivelmente relacionada com a extração mineira. Será de ter em consideração que este método prospetivo não permite obter todas as respostas necessárias ao conhecimento, ainda muito incipiente, destes núcleos rurais. Esta “visão do subsolo” não deixa, no entanto, de constituir uma extraordinária e económica ferramenta de gestão, quer na área de proteção dos sítios quer na futura orientação da investigação arqueológica que se pretende levar a cabo.

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II SÉRIE (20)

JANEIRO 2016

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