Rafael Dieste, \"O neno sucida\" [2000]

July 31, 2017 | Autor: J. Montero Santalha | Categoria: Literatura galega
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O n e n o s u i c i d a* Rafael Dieste

Quando o taverneiro rematou de ler aquela nova inquietante –um neno suicidara-se pegando-se um tiro na sém direita–, falou o v aga bundo desconhecido que acabava de jantar mui pobremente num curruncho da tasca marinheira, e dixo: – “Eu sei a história desse neno”. Pronunciou a pala vra neno dum jeito mui particular. Assim foi que os qua tro bebedores de aguardente, os cinco de alvarinho e o tav erneiro calárom e escuitárom com gesto inquiridor e a tento. – “Eu sei a história desse neno” –repetiu o v agabundo. E, trás uma solerte e bem medida pausa, começou: – “A lá po lo mil oitoc entos e tr inta, uma b eata q ue d epois m orreu d e medo, viu sa ir d o cam po-sa nto florido e rec enden te da sua ald eia um velho mui velho em coiro. Aq uele velho er a um recém-nascido. Antes d e sa ir do ve ntre da te rra-ma e esc olhera e le m esm o es se jeito de nasciment o. “Quanto melhor ir de velho para m oço que de moço para velho!”, pens ou s endo es pír ito pur o. A Nos so Senh o r cho cou -lhe a id eia. P orq ue nom faz er a pr ova? Ass im foi que , c om o seu cons entim ento, fo rmou-se no seio da t erra um esqueleto . E depois , com ca rn e d e verme, f ixo-se a car ne do ho mem . E na carne d o hom em aformigou o ca lorzin ho do sangu e. E co mo tod o es tava lis to, a t erra-mae pa riu. Par iu um v elho em coir o. De como depois o velho topou roupa e mantimento é cousa de muito riso. Che gou às portas da cidade, e, como ainda nom sabia falar, os ministros, depois de lhe botarem uma capa em riba, levárom-no diante do juiz, dizendo, como se tivessem sido testemunhas: “Aqui lhe trazemos este pobre velho que perdeu a fala com a tunda que lhe dérom uns ladrões mal entr anhados: nem roupa lhe deixárom”. O juiz deu ordens e o velho foi levado a um hospital. Quando saiu, já bem vestido e mantido, diziam-lhe as monjinhas: “Vai feito um bom moço. Até parece que perdeu anos”. Daquela já aprendera a falar algo e fixo-se esmoleiro. Assim andou muitas terras. Alá em Lourdes estivo duas vezes; da se gunda tam remoçado (*) Adaptaçom de José-Martinho Montero Santalha. O texto vai normativizado tanto na ortografia como na morfologia –mas sempre com escrupuloso respeito ao léxico do autor.

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O NENO SUICIDA

que os que o conheceram da primeir a cuidárom que fora milagre da Virgem. Quando adquiriu experiência avondo, pensou que o melhor era manter secreta aquela estranha condiçom que o fazia mais moço quantos mais anos corressem. Assim, nom o sabendo ninguém –nom sendo um ou dous ami gos fieis–, poderia viver melhor a sua verdadeira vida. Trabalhou de velho e fixo-se rico para folgar de moço. Dos cinqüenta aos quinze anos a sua vida foi a mais feliz que se pode imaginar. Cada dia gostava mais às moças e andou liado com muitas e com as mais bonitas . E até diz-que uma princesa... P ero disso nom estou certo. Quando chegou a neno, começou a vida a se lhe ensarilhar. Dava-lhe medo a surpresa com que o viam entr ar tam ceive nas tendas a mercar lam betadas e jo guetes. Algum rateiro de viseira calada tem-no seguido ao longo de muitas ruas tortas . E alguma vez tem comido as suas lambetadas a tre mer de angústia, com as bágoas nos olhos e o almíbar nos beiços . A derra deira vez que o topei –tinha ele oito anos– andava mui triste. P esavam, ademais, tanto no seu espír ito de neno os recordos da sua velhice! Log o com eçou a lh e esca rabelh ar d ia e no ite u ma obse ssom t remenda. Qua nd o pas sassem alguns a nos reco lheriam -no em qua lq uer cal eja extr aviada. Quiçá alg uma s enhora ric a e sem filhos. Depois... Que m sab e o q ue passa ria dep ois! A la ct â ncia, os pa sse io s num ca rr inho, co m uma son alha d e axôu xeres na m ãoz inha te n ra. E ao rem ate... Oh!, o r emate p unha es panto. Cumpr ir o s eu sino de hom em qu e v ive ao rev és e r efugia r-se no s eio d a sen hora rica –pod a qu e qua ndo ela dor miss e– para ir a li dev ece n do at é se tro car p rim e iro numa samess uga e d epois em arúm ia e lo go em peq uen íssim a sem ente ...” O v aga bundo ergueu-se mui pensa tivo, com as mãos nos petos, e deu alguns passeinhos todo amargurado. Ao cabo dixo: – “Explico-me , si, explico-me que se chimpasse um tiro na sém o pobre rapaz”. Os qua tro bebedores de aguardente cr iam. Os cinco de alvarinho sorriam e duvidav am. O tav erneiro neg ava. Quando todos discutiam mais afer voradamente, o taverneiro ergueu-se de súbito nas pontas dos pés e pujo-se a mirar todo ao redor com os olhos mui a bertos. O va gabundo desaparecera sem pagar.

(in Dos arquivos do trasno, 1926)

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