RAP E ESPAÇO PÚBLICO NA LAPA (RJ): A CONTRIBUIÇÃO DA ARTE PÚBLICA MARGINAL PARA A (RE)SIGNIFICAÇÃO DOS ESPAÇOS PÚBLICOS E A CIDADANIA.

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RAP E ESPAÇO PÚBLICO NA LAPA (RJ): A CONTRIBUIÇÃO DA ARTE PÚBLICA
MARGINAL PARA A (RE)SIGNIFICAÇÃO DOS ESPAÇOS PÚBLICOS E A CIDADANIA.


Larissa Lima de Souza
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – PPGEO-Uerj
[email protected]


Taiany Braga Marfetan
Universidade Federal Fluminense – UFF
[email protected]






RESUMO

O presente trabalho busca estabelecer relações entre os conceitos
de espaço público e arte pública, assim como os de espaço público e
lugar, considerando os conflitos e as diversas significações atribuídas
ao espaço urbano por meio de práticas artísticas, levando à luta pelos
espaços na cidade e ao fortalecimento da cidadania. Assim, buscou-se
compreender de que maneira a chamada Arte Pública contribui para uma
requalificação dos espaços públicos no sentido de convidar ao debate
sobre o cotidiano e de influenciar nas significações que as pessoas
atribuem a estes espaços de copresença, a partir das manifestações
culturais. Assim, a Arte Pública pode funcionar como instrumento de
cidadania cultural e política por incentivar a crítica social e dotar
os espaços urbanos de novos sentidos. O espaço privilegiado por esta
pesquisa é a Lapa, conhecido como um bairro cultural da Cidade do Rio
de Janeiro, e que tem passado um processo de (re)novação urbana
favorecido por sua histórica carga simbólica, e que, contribui ainda
mais para uma maior efervescência cultural do mesmo. Porém, tal
renovação urbana e valorização da cultura têm sido voltadas à
mercantilização da mesma e para o turismo, e desta maneira, é
questionada por grupos que se apropriam das ruas do bairro,
publicizando-as e atribuindo novas significações às mesmas. Assim, foi
analisado o movimento cultural de RAP denominado "Batalha do Real",
evento que ocorre há dez anos abaixo dos Arcos, maior símbolo do
bairro, de maneira a compreender sua relação entre a produção da
cultura e uma resistência simbólica através da arte no local. Por isso,
a análise feita propõe que a Batalha do Real seja considerada como
"Arte Pública marginal" e, a partir de nossa discussão teórica, se
espera contribuir para uma reflexão acerca do papel do RAP no
questionamento das desigualdades urbanas e na transformação do espaço
urbano em espaço público em sua acepção de espaço de copresença,
debate, conflito e visibilidade, objetivando uma sociedade mais
democrática a todos, tendo a arte e a cultura enquanto ponte de diálogo
e transformação dos espaços, através da crítica social e simbólica
materializadas nestas manifestações. Mas, deve-se atentar para que as
políticas públicas direcionadas a uma valorização da Arte Pública no
Rio de Janeiro não contribuam para uma privatização dos espaços
públicos, mas sim uma democratização dos mesmos. Neste sentido, a
reflexão sobre para que e para quem serve o Espaço Público e a Arte
Pública torna-se primordial.



PALAVRAS-CHAVE : Espaço público, Cidadania, RAP, Arte pública.







INTRODUÇÃO

Atualmente, costuma-se dizer que o Espaço Público e a Arte estão
em crise, devendo ser repensados em um contexto de globalização,
reestruturação urbana e mercantilização da cultura. Considerando-se que
a apropriação do espaço urbano por práticas artísticas é essencial para
uma efetiva cidadania, neste artigo buscamos compreender de que maneira
a chamada Arte Pública contribui para uma requalificação dos espaços
públicos no sentido de convidar ao debate sobre o cotidiano e de
influenciar nas significações que as pessoas atribuem a esses espaços
de copresença. Dessa maneira, buscamos também analisar como o conceito
de espaço público se aproxima do conceito de lugar, este último sendo
entendido como um espaço em relação ao qual se tem um sentimento de
pertencimento construído a partir de ações que lhe atribuam sentidos.
Nesse sentido, a Arte pública pode funcionar como instrumento de
cidadania cultural e política por incentivar a crítica social e dotar
os espaços urbanos de novos sentidos. Sabendo-se que algumas áreas da
cidade possuem maior carga simbólica que outras, teremos espaços
públicos com níveis distintos de poder de visibilidade. No Rio de
Janeiro, uma dessas áreas é o bairro da Lapa, que vem enfrentando nos
últimos 30 anos um processo de (re)novação urbana, e desde a década de
1990, devido ao planejamento estratégico, recebe diversas políticas
públicas ligadas ao lazer e ao turismo. Como contraponto ao modelo de
cidade e de cultura mercantilizada mas, ao mesmo tempo favorecida pela
efervescência cultural do bairro que contribui para o seu maior poder
de visibilidade, temos a Batalha do Real, que há 10 anos movimenta a
cena RAP carioca e ocorre mensalmente abaixo dos Arcos da Lapa, maior
símbolo do bairro. Neste trabalho, propõe-se que a Batalha do Real seja
considerada como "Arte Pública marginal" e, a partir de nossa discussão
teórica, se espera contribuir para uma reflexão acerca do papel do RAP
no questionamento acerca das desigualdades urbanas e na transformação
do espaço urbano em espaço público em sua acepção de espaço de
copresença, debate, conflito e visibilidade.


ESPAÇO PÚBLICO PARA QUE(M)?


Quando se fala em espaço público, logo nos remetemos à questão das
fronteiras e do acesso, que permitiriam um contato e uma troca maiores
entre as pessoas, sendo a copresença (GOMES,2013) uma das principais
características desse espaço. Estar no espaço público é estar sujeito à
alteridade e à exposição; é expor-se ao Outro ao mesmo tempo em que se
enxerga esse Outro, tornando a visibilidade (GOMES,2013) como outra
característica fundamental na conformação dos espaços públicos. Segundo
o mesmo autor,


"[...] visibilidade e copresença compõem um par
essencial na existência dos espaços públicos. Sem
eles, não haveria nem mesmo a noção de público. O
espaço físico estabelece as condições para que esses
dois atributos entrem em cena. Esses espaços são o
espetáculo e todos os presentes são partícipes. Não
há distinção entre o palco e público. Não há direção,
roteiro ou moral nessa história que se tece
continuamente nas cidades."(p.311-312)

A configuração territorial, portanto, é importante no sentido de
permitir a presença de todos e qualquer um. Entretanto, em trabalho
anterior GOMES (2005) chama atenção para o fato de que "um olhar
geográfico sobre o espaço público deve considerar, por um lado, sua
configuração física e, por outro, o tipo de práticas e dinâmicas
sociais que aí se desenvolvem.". Ou seja, o espaço público vai além da
materialidade, do seu espaço físico, sendo caracterizado a partir das
relações e práticas que se dão no mesmo. Se pensarmos somente na
configuração territorial, "fisicamente, o espaço público é, antes de
mais nada, [...] qualquer tipo de espaço, onde não haja obstáculos à
possibilidade de acesso e participação de qualquer tipo de pessoa."
(GOMES, 2005:162).
Como colocado por BERDOULAY (1997),


"[...] o espaço que tem a qualidade de público, é
ele que permite tornar-se consciente da presença de
outrem. Por isso, esse espaço deve ser largamente
aberto, acessível a todos e cada um, estas que são as
características individuais ou coletivas das pessoas
que o frequentam (Sennett,1979). Minimamente, pois,é
um espaço da sensibilidade à alteridade, um espaço
onde se abre a encenação de si e dos outros
(Joseph,1984; Sennett, 1992; Plan urbain, 1991; Quéré
et Brezger, 1992-1993). As formas de sociabilidade,
os modos de copresença, as maneiras de abordar outrem
ou de observar-lhe, e isso, tudo procurando fazer a
apresentação de si sob o olhar dos outros, em suma
todas essas práticas, sendo elas ritualizadas ou não
dentro dos comportamentos que elas exigem, que
instituam o espaço público e militem ao mesmo tempo
– como foi destacado muitas vezes – contra toda
apropriação permanente por um grupo particular
(Sansot,1991)." (p.304)


Contudo, tanto GOMES (2005) quanto BERDOULAY (1997) reconhecem que
o conceito de espaço público ultrapassa a ideia de um espaço de livre
acesso. Retoma-se a noção do espaço público típico da Antiguidade grega
e nos é colocada a necessidade de se pensar o espaço público a partir
do conceito de cidadania. Segundo GOMES (2005: 130), "[...] no próprio
conceito de cidadão existe uma matriz territorial, isto é, a ideia de
cidadania possui em sua base um componente espacial.". A cidadania,
portanto, envolveria a consciência e o questionamento das condições e
problemas socioespaciais de determinado lugar assim como a resolução
dos mesmos coletivamente. Dessa maneira, podemos encarar o espaço
público como "condição do cumprimento do debate político, ele mesmo
condição sine qua non da vida democrática. Ele corresponde, então à
união dos indivíduos exercendo publicamente sua própria razão crítica e
reivindicando a discussão das questões de interesse geral."
(BERDOULAY,1997:304).
De fato, um espaço de livre acesso somente não garante que o mesmo
seja apropriado no sentido do debate político, do questionamento de uma
dada realidade. Obviamente, a facilidade de acesso permite uma mistura
social, uma copresença e, portanto, o surgimento de diferentes
expectativas e interesses em relação à realidade vivida. E essa
pluralidade de perspectivas, através de "uma prática recorrente da
civilidade e do diálogo" (GOMES, 2005), tornaria o espaço público um
espaço de reflexão coletiva. Por outro lado, BERDOULAY (1997) lembra
que o espaço público encarado a partir de sua perspectiva democrática,
da reflexão e do exercício da cidadania não deve ser confundido com
"aquele da decisão, mas ele constitui, no entanto, a condição prévia
democrática" e que "um tipo de espaço público acompanha o outro e vice-
versa". (QUERRIEN, 1992-1993 apud BERDOULAY,1997:304). Nesse ponto,
BERDOULAY (1997) não nos esclarece o que seria um espaço "da decisão",
não aprofunda sua ideia; acreditamos que o mesmo seja um espaço formal
de decisão política, que bebe da contribuição dos questionamentos
estabelecidos no espaço público.
Podemos pensar que, pela própria copresença e por seu caráter de
condição para a vida democrática, "[o espaço público] Ele também é um
lugar de conflitos, de problematização da vida social, mas, sobretudo,
é o terreno onde esses problemas são assinalados e significados."
(GOMES, 2005:164).
A título de reflexão, cabe aqui um questionamento acerca dessa
suposta copresença amistosa entre os sujeitos que se encontram no
espaço público. GOMES (2013) afirma que os espaços públicos "[...] não
são 'o melhor dos mundos', mas são os lugares do reconhecimento social,
de expressão de conflitos e de aplicação das regras que regem esses
temporários acordos da convivência." (p.311). Já na Antropologia, por
exemplo, há quem questione, inclusive, se podemos realmente falar em
"espaço público" (DELGADO, 2011) quando vivenciamo-lo empiricamente.
Em texto bastante instigante, DELGADO (2011) afirma que na
contemporaneidade, o espaço público se tornou um conceito político
apropriado pelo urbanismo e pela arquitetura, para se referir ao espaço
que permite o exercício dos "princípios igualitaristas relativos aos
sistemas nominalmente democráticos", assim como a "coexistência
pacífica e harmoniosa do heterogêneo da sociedade", a qual se
constituiria por sujeitos "iguais e livres que estabelecem entre si um
consenso racional" (DELGADO,2011). O mesmo autor afirma que tal
característica foi reforçada historicamente a partir de uma
generalização dessa noção "enquanto um elemento presente em toda
morfologia urbana, assim como um destino de todo tipo de intervenções
urbanizadoras" (DELGADO,2011), permitindo, inclusive, uma
(re)valorização de determinados espaços dentro da cidade, a ponto de se
afirmar até os dias atuais que " [...] o espaço público é em termos
gerais o espaço principal do urbanismo, da cultura urbana e da
cidadania." (MARQUES,2010 :126). Como afirma BARROS (2010),

"Observa-se hoje, em muitos casos, a tendência
não só para a renovação dos espaços públicos já
existentes como, também, para o estabelecimento de
novos espaços públicos. Tais estratégias inserem-se,
em muitos casos, nas políticas de revitalização das
cidades e, em particular, dos espaços
públicos."(BARROS,2010:150)

Dessa maneira, uma cidade que contenha diversos espaços que
funcionem como públicos, que permitam o encontro, a copresença e o
debate político, torna-se atrativa aos investimentos; assim, em áreas
consideradas pelo Urbanismo como "vazios urbanos", busca-se uma
renovação através da construção de possíveis espaços públicos, como
praças, para atrair mais investimentos.
É o que o arquiteto e historiador urbano argentino Adrián Gorelik
chama de "o romance do espaço público". Para GORELIK (2008), o espaço
público seria "[...] um lugar idealizado onde depositamos todas as
virtudes da cidade para não ter que afrontar o difícil compromisso de
colocá-las em prática na realidade de nossas cidades" (Parte VI). O
"espaço público", segundo o autor, teria sofrido um processo de
fetichização, tanto para arquietos, urbanistas como para a chamada
sociedade civil, após sua extinção e recente redescoberta dentro da
cidade. Em sua perspectiva, estabelece-se uma parceria entre urbanistas
e empresários, estes últimos enaltecendo os valores culturais da cidade
e o "pulsar de cada rua ou fragmento urbano", ambos se apropriando da
categoria do "espaço público" a fim de atrair investimentos que
garantam contínuas transformações nas cidades até que sejam
transformadas em "hipercidades" (GORELIK,2008) dentro do que se
denomina planejamento estratégico. Aqui, os espaços públicos
atribuiriam um valor diferencial que as cidades precisam para se
inserir de maneira competitiva no mercado territorial, ou seja, no
citymarketing. O autor afirma que


"Trata-se de algo óbvio e evidente, mas que
geralmente não é tratado, e que, aparentemente,
engloba todo ele; o espaço público se converte no
contrário do que deveria ser como categoria: no lugar
de fazer presente o conflito, se torna uma categoria
tranquilizadora, um fetiche." (GORELIK, 2008. Parte
I.Tradução livre.)


O romance do espaço público, na concepção de GORELIK (2008), seria
resultado de uma tripla crise que emergiu na década de 1980: a do
socialismo, a do Estado de bem estar social e a das ditaduras sul
americanas. Essa conjuntura favoreceu a um questionamento em relação ao
totalitarismo do Estado, este tendo sido colocado, por sua vez, em
segundo plano em relação à sociedade civil. O discurso da necessidade
da devolução à sociedade civil de esferas de atividade assim como
espaços privados comuns que eram administradas pelo Estado levou,
segundo o mesmo autor, a um processo intenso de privatizações dos
serviços públicos; processo este que, assim como na Argentina, também
ocorreu no Brasil a partir da mesma década. Segundo FERNANDES (2008),

Do ponto de vista da regulação das cidades pós-
fordistas este quadro ganhou mais nitidez no inicio
da década de 90, quando o poder local assumiu a
adoção do chamado planejamento estratégico, que busca
conduzir o desenvolvimento urbano através de projetos
e vetores estruturantes que ao sabor do mercado e da
colaboração do Estado devem articular os diversos
fragmentos metropolitanos de interesse dos agentes
globais. (Grifos nossos.)


GORELIK (2008) afirma que a partir da década de 1990 o discurso do
"espaço público" fetichizado foi essencial para a valorização e a busca
de "um tipo de cidade que tem muito pouco a ver com os valores que,
ainda de maneira utópica, a categoria de espaço público busca manter."
(GORELIK, 2008. Parte VI. Tradução livre.) Esses valores seriam os
abordados por BERDOULAY (1997) e GOMES (2005; 2013), entre outros
autores, aqueles relacionados à copresença, à contestação, à
democracia, à harmonia garantida através das regras. Entretanto,
segundo DELGADO (2011), esse "espaço público não existe"- pelo menos
dentro de uma sociedade capitalista -, na medida em que as "assimetrias
de classe, idade, gênero, etnia, 'raça'" não garantem a todos a plena
cidadania nos moldes desejáveis do que se entende como espaço público
(de caráter coletivo e de encontro, da suposta anulação das
desigualdades, da exposição e positivização da alteridade). Segundo
GOMES (2013: 242-243), "Desde o momento em que nos colocamos em
situação de copresença, imediatamente nosso comportamento adquire
significações e se transforma em objeto de interpretação para o
outro.". Entretanto, os estigmas permanecem e é nesse ponto que o
caráter da aceitação do Outro, da convivência pacífica em um espaço
comum, pode ser questionado.
Para o DELGADO (2011),


"O que se tinha por uma vida pública baseada na
adequação entre comportamentos operativos pertinentes
e na comunicação generalizada entre seres abstratos –
os 'cidadãos'-, vê-se uma e outra vez desmascarada
como uma arena para a rotulagem de certos indivíduos
ou coletivos, a quem sua identidade real ou atribuída
lhes coloca em um estado de exceção do qual o espaço
público não os libera, uma vez que esse lugar é para
eles de – e para todo tipo de – vulnerabilidades e
violações. É frente a esta verdade que o discurso do
espaço público convida a fechar os olhos, fazer como
se não existisse, visto que na rua e na praça somente
cabem as provas inequívocas do final de uma classe
média universal e feliz, sozinha consigo mesma em um
mundo em conflitos e sem miséria." (p.4 Tradução
Livre. Grifos nossos.)

Para CAEIRO (2010), o espaço público, tanto em sua materialidade
quanto como categoria filosófica, encontra-se em crise devido à
"privatização de suas valências" e à "caducidade de suas premissas
burguesas"(p.166), respectivamente. Nesse sentido, cabe-nos a reflexão
acerca das reais experiências nos espaços públicos que vivenciamos.
Eles estão funcionando como "o lugar em que os sistemas nominalmente
democráticos veem ou deveriam ver a sua verdade igualitária, o terreno
em que se são exercidos os direitos de expressão e de reunião como
formas de controle sobre os poderes e a partir do qual esses poderes
são questionados." (DELGADO, 2011:3)? O espaço público deve ser, antes
de tudo, um espaço de efervescência coletiva de ideias, de
questionamentos acerca da ordem, com a finalidade de emancipação social
e ideológica.


ESPAÇO PÚBLICO E LUGAR: POSSÍVEIS APROXIMAÇÕES.


Como espaço que permite a presença de distintos sujeitos, o espaço
público é dotado, também, de significações – positivas ou negativas -
por parte de quem o vivencia. Essa esfera do significado também é parte
do crescente debate em relação à crise do espaço público. Segundo
MARQUES (2010), o espaço público "voltou a recuperar a dimensão social
e o sentido do lugar." (p.124). Já VILLAC (2010), afirma que "[...] o
espaço público tem estado à espera de uma ação simbólica que lhe
devolva significado."(p. 155). Na bibliografia que trata do tema,
alguns autores consideram possível a correlação entre espaço público e
lugar a partir das relações simbólicas, como BERDOULAY (1997) e LEITE
(2004). Outros, refutam essa possibilidade, como GORELIK (2008).
A aproximação do espaço público ao conceito de lugar, em BERDOULAY
(1997), por exemplo, é defendida pelo fato de que "não há
necessariamente contradição entre espaço público e identidade coletiva"
(BERDOULAY,1997:302). Ou seja, essa significação dos problemas, a
discussão política, acompanha também uma significação do espaço – até
mesmo se pensarmos na relação entre o sujeito e o espaço público a
partir da visão do mesmo enquanto um espaço propício às reflexões
relevantes para determinada coletividade. Como o autor salienta, "as
ligações que unem o sujeito ao lugar se fundam necessariamente sobre os
valores e as regras de funcionamento." (BERDOLAY,1997:303), ou seja,
sobre o que GOMES (2005) trata como civilidade.
LEITE (2004) também estabelece uma relação entre lugar e espaço
público, diferenciando este último da ideia de espaço urbano puramente,
e encarando os lugares como responsáveis por atribuir um sentido
público ao espaço urbano (p.289). Para tal autor,


"[...] uma noção de espaço público que não inclua
as práticas interativas entre os agentes envolvidos
na construção social do seu espaço seria apenas uma
noção que se estaria referindo a um espaço urbano.
Inversamente, uma noção que prescinda de uma
referência espacial para essas ações interativas pode
ser entendida como uma esfera pública. Quando,
portanto, há uma convergência entre as categorias
espaço e ação, podemos entender que se tem um espaço
público, formado da intersecção entre espaço urbano e
a esfera pública, construtos dos quais retira,
respectivamente, as categorias que lhe são
constitutivas: espaço e ação. Essa intersecção não
resulta de um mero somatório de categorias distintas,
mas deve ser compreendida como resultante da
convergência prática entre o exercício de uma
sociabilidade pública e os espaços que por ela são
construídos, nunca dados a priori.
Essa distinção tem caráter heurístico para a noção de
lugar: de modo semelhante à construção do espaço
público, um lugar implica a existência de uma
intersecção entre uma configuração espacial
'qualificada' simbolicamente e de ações que lhe
atribuem sentidos."(LEITE, 2004:287. Grifos no
original.)


GORELIK (2008), por outro lado, em relação às categorias lugar e
espaço público, não considera que haja uma conexão entre as duas
categorias, afirmando que


" [...] ambas as categorias servem para pensar
questões completamente diferentes nas relações
cidade/sociedade. Forçadas a estar uma ao lado da
outra, o primeiro que haveria de se dizer é que a
própria emergência do espaço público moderno ( ao
menos na definição habermasiana [...]) supunha o
cancelamento histórico da ideia de lugar, já que o
espaço público necessita para seu desenvolvimento da
existência de uma sociedade de indivíduos
desenraizados, que quebrou com a relação entre o
lugar e a comunidade." (GORELIK, 2008. Parte II.
Tradução livre)


Aqui, apesar de não se partilhar da perspectiva de GORELIK (2008),
visto que a experiência de lugar também pode ser coletiva e o espaço
público, como um espaço de encontro pode funcionar como um "lugar
coletivo",considera-se válida a discussão do autor. Neste trabalho, a
relação entre espaço público e lugar é pensada como não somente
possível, mas real, a partir de BERDOULAY (1997), LEITE (2004), RELPH
(2012) e GOMES (2005;2013).
Segundo Edward Relph, duas das características principais do lugar
são o caráter de reunião e o sentido de lar. Ou seja, um lugar deve ser
um espaço em que as pessoas se reúnem, se encontram e onde "as raízes
são mais profundas e mais fortes, onde se conhece e se é conhecido
pelos outros, o onde se pertence." (RELPH,2012:24. Grifos nossos.).
Portanto, podemos pensar a relação entre espaço público e lugar como
possível, pois, como afirma LEITE (2004),


O sentido público dos espaços urbanos resulta
também da confluência de diferentes lugares e
sociabilidade que instalam possibilidades de
contestação e discordância cuja igualdade de fala é
constantemente desafiada. A sociabilidade pública,
nesse sentido, compreende tanto as práticas
interativas através das quais as pessoas compartilham
experiências comuns quanto a afirmação das suas
diferenças através da espacialização das suas
relações sociais, construídas a partir das distintas
demandas e sentidos de pertencimento e
reconhecimento. Assim, faria sentido pensar na
concepção de espaço público também a partir da
constituição dessas diferenças, que não apenas se
espacializam nos lugares como criam uma dinâmica
interativa através da qual dialogam entre si, no
exercício cotidiano e público da afirmação da
alteridade e das relações de poder que reafirmam e
contestam desigualdades." (p.317-318. Grifos nossos.)




GOMES (2013) considera os espaços públicos como espaços de
exposição, "lugares demonstrativos, onde se afirmam valores,
comportamentos, direitos e de conformam atitudes." (p.247), chamando a
atenção para o fato de que o poder de visibilidade que determinado
espaço público oferece depende estreitamente de três fatores: "da
morfologia do sítio onde ocorre, da existência de um público e da
produção de uma narrativa, dentro da qual aquela coisa, pessoa ou
fenômeno encontra sentido e merece destaque."(p.90). Portanto, podemos
afirmar que as significações atribuídas pelos sujeitos e/ou grupos
sociais aos espaços públicos serão diversificadas e influenciarão,
inclusive, no poder de visibilidade de cada um desses espaços.
Segundo este mesmo autor, existem diferenças entre os espaços
públicos urbanos no que diz respeito a sua natureza, sua hierarquia e
seu alcance. Por este motivo, vamos encontrar alguns que "exercem uma
forte centralidade no imaginário da cidade e, por isso, são
intensamente cobiçados por todos aqueles que disputam reconhecimento e
visibilidade." (GOMES, 2013:268); já outros, não possuirão uma
significação tão forte, o que se refletirá em seu menor poder de
atração e de difusão dos fatos que se dão nos mesmos.


OS ESPAÇOS PÚBLICOS E ARTE PÚBLICA NO BAIRRO DA LAPA (RJ).


A Lapa é um dos bairros da cidade do Rio que vivencia uma
contradição do espaço público: por um lado, a histórica marca de ser um
bairro em que se desenrola uma sociabilidade pública, e cuja
apropriação das ruas (Figura 1) é parte de sua vitalidade (OLIVEIRA,
2010) são um atrativo para investimentos públicos e privados ligados à
cultura e ao turismo, dentro do chamado empreendedorismo urbano; por
outro, o processo de renovação urbana pelo qual o bairro vem passando
nos últimos 30 anos está caminhando para um "uso privativo dos espaços
públicos" (ARAUJO,2009), que pode ser exemplificada pela apropriação
das calçadas pelos comerciantes locais através da utilização de mesas e
cadeiras, inclusive com a presença de grades para a separação entre os
clientes e os transeuntes (Figura 2) etc.





Figura 1 –Parte do público durante o Festival Santa Música.
Figura 2- Clientes do bar Leviano, na Avenida Mem
de Sá. 7 de
15 de Junho de 2012.
Abril de 2012.



A observação evidencia que o uso espontâneo da
rua é uma característica fundamental da identidade do
lugar. Este uso espontâneo da rua não somente é vital
para a vida noturna da cidade, como envolve uma
pluralidade de estilos que revelam suas
características em termos da sociabilidade pública.
A velha Lapa vem dando sinais de sua vitalidade
complexa, consolidando uma ocupação cultural por
baixo que, em grande medida, contrasta com os
pequenos resultados alcançados nas políticas de
"revitalização" dos espaços públicos. Poucos são os
espaços da cidade em que a rua ainda pode ser
considerado o centro da sociabilidade pública.[...]
Na Lapa, a rua é, espontaneamente, a base da vida
cultural [...] A rua é lugar da sociabilidade, de
encontro e de confronto. [...] (OLIVEIRA e DOS
SANTOS, 2010:10-11. Grifos meus.)


Como visto anteriormente, GOMES (2013) afirma que os espaços
públicos, mesmo sendo todos eles espaços de visibilidade, possuem
algumas diferenças entre si no que se refere à centralidade, ou seja,
ao poder de atração de público e, portanto, de visibilidade desse
público assim como do que ele assiste. Na cidade do Rio de Janeiro, o
bairro da Lapa abrigaria espaços públicos que funcionam como "veículos
privilegiados de comunicação social" por concentrar significações, ser
denso de sentido, atraindo um público variado - de moradores de
diversos outros bairros da cidade e de sua região metropolitana assim
como de áreas mais distantes, incluindo os turistas internacionais – e
simbolizando a cidade (GOMES, 2013:271-272).
Em trabalho anterior (LIMA, 2012) mostrou-se como as
representações do bairro ligadas à boemia e à malandragem, cujo auge se
deu no início do século passado, são (re)apropriadas dentro do
planejamento estratégico pela Prefeitura do Rio de Janeiro, juntamente
com empresários locais, e utilizadas na promoção tanto do bairro quanto
da cidade enquanto atraentes para um turismo cultural e investimentos.
Como afirma BARROS (2010:146), "No que respeita aos visitantes de um
dado destino e, em particular no caso dos turistas, as imagens
constituem um elemento essencial.", constituindo-se como um "factor
condicionante do prazer da visita".
As ruas da Lapa, principalmente nos finais de semana, ficam
repletas de pessoas atraídas pela grande diversidade de opções de lazer
no bairro. Quando o trânsito dos carros era proibido em parte das duas
principais ruas do bairro – a Avenida Mem de Sá e a Rua do Riachuelo-
durante as noites do final de semana, a efervescência das ruas era
ainda maior. As ruas eram palco aberto para muitas manifestações
artísticas que iam do teatro, da dança até performances musicais. Para
VILLAC (2010), "Possibilidades de apropriação informal dos espaços da
cidade contrapõem-se à exclusão da riqueza e da informação." (p.159).
Podemos afirmar, portanto, que as ruas do bairro podem ser convertidas
em espaço público no sentido de buscarem uma nova forma de vida, de
serem dotadas de novos significados a partir dessas manifestações
artísticas. Como afirma GORELIK (2008),
"Não há dúvida de que, não somente quando se
produzem manifestações políticas, mas também quando a
arte moderna busca sua ligação com a 'vida', ocupando
a rua, estamos na presença de um espaço público em
ebulição, que não se propõe a articular o social, mas
colocar em evidência as múltiplas fraturas entre a
sociedade, o espaço e o tempo." (Parte II. Tradução
livre.Grifos nossos.)

Cabe lembrar que algumas manifestações artísticas que se dão no
espaço público, se o encararmos apenas como um espaço "largamente
aberto, acessível a todos e cada um" (Sennett,1979 apud
Berdoulay,1997), podem não torná-lo um espaço de contestação por não
questionarem a ordem estabelecida. Como exemplo, temos os inúmeros
shows promovidos pela Prefeitura do Rio de Janeiro em parceria com a
iniciativa privada, na Praça dos Arcos, na Lapa. Se pensarmos em termos
de configuração territorial, esse espaço pode ser considerado público,
por ser uma área aberta de fácil acesso. Entretanto, não se encaixaria
como espaço público (espaço de "problematização da vida social" [GOMES,
2005]), se considerarmos que boa parte dos shows que ocorrem no local
conta com um aparato propagandístico da Prefeitura e de suas obras de
revitalização urbana na Lapa, ou seja, o espaço da Praça dos Arcos não
está funcionando como espaço "a partir do qual esses poderes são
questionados." (DELGADO, 2011:3), mas sim como espaço de legitimação da
ordem.
Neste momento, vale lembrar as inquietações de GOMES (2005) e
BERDOULAY (1997) a respeito do espaço público. O primeiro autor afirma
que "o desafio é, portanto, o de retomar o espaço público como lugar de
uma participação ativa, normatizada e refunda-lo como um espaço da
política." (GOMES,2005:161). Já o segundo, nos indaga: "[...]
Poderíamos – e se sim, como – obter um espaço público, quer dizer um
espaço onde se desabrocha o debate público?" (BERDOULAY,1997:303).
Certamente, a arte, quando questiona a ordem estabelecida, dialoga a
respeito do cotidiano e propõe uma nova maneira de se colocar no mundo,
seria um caminho.
GOMES (2013) nos coloca que "[...] o lugar da exposição é um
elemento essencial que intervém nessa comunicação", ou seja, as
características do local em que essa arte será exposta influenciarão na
visibilidade da mesma, trazendo maior "complexidade ao conteúdo da
arte." (p.290. Nota de rodapé.). Apropriando-se das ruas, transformando-
as em espaços públicos, essa arte pode ser considerada como Arte
Pública.
De acordo com ANDRADE et al. (2010), não há consenso em relação ao
significado de Arte Pública, mas


" a título provisório, a arte pública pode
entender-se enquanto gênero de arte intimamente
articulado às cidadanias política e cultural, isto é
associado às práticas e opiniões de um povo,
população, comunidade, classe ou grupo social, em
relação com o espaço público urbano (económico,
político e cultural) da polis." (p.14)


Segundo CAEIRO (2010:167), o espaço público seria a essência da
moral da arte pública na contemporaneidade. MARQUES (2010) afirma que
"Falar de arte pública implica naturalmente falar também de espaço
público" (p. 130). Entretanto, de acordo com Pedro de Andrade, o
sentido público da arte pública não se deve, necessariamente, a sua
realização no espaço público, mas muito mais ao seu caráter político;
nesse sentido, a arte pública "funcionaria ainda como um dos
instrumentos da cidadania política e cultural, ou mesmo da crítica
social e dos poderes." (ANDRADE, 2010:46).
ANDRADE (2010) pensa, ainda, a arte pública enquanto "fenómeno
multifacetado" (p.44) e enquanto alteridade em relação a uma arte
privada, que seria "o conjunto das formas de arte mais condicionadas
pelo mercado da arte", e que se subdivide em "arte privada
profissional" e "arte privada amadora". O autor também diferencia dois
tipos de arte pública: uma "legítima", "apoiada pela administração
central ou local, ou igualmente pelo sector privado" (p.51) e outra
"marginal", ligada a grupos marginalizados, ou seja, uma arte marcada
pela exclusão social. Ou seja, a arte também é influenciada pelas
contradições de um sistema desigual.
Partilhamos da ideia de CAEIRO (2010) quando este sinaliza uma
função emancipatória da arte na cidade, encarando a criatividade para
além de sua instrumentalidade e reforçando o caráter essencial de se
valorizar a arte "em prol de uma ideia de vivência urbana." (p.162.
Grifos no original.). Como colocam OLIVEIRA e DOS SANTOS (2010),


"A busca pelo uso da rua e pelas formas de
participação nos processos territoriais em curso na
Lapa reforça a luta pelo direito a uma vida urbana
renovada e permite uma aproximação da teoria crítica
do urbano com a prática musical coletiva para pensar
as formas com que o diálogo pode acontecer para
incluir o cidadão comum nas decisões que interferem
em sua vida cotidiana." (p.12-13. Grifos nossos.)


Considerando-se as ruas como base para a constituição do espaço
público (MARQUES, 2010), e que as mesmas possuem uma "'inércia'
distintiva" (Chaudoir,2000:66 apud BARROS, 2010:144) - já que as
pessoas que circulam nas ruas têm a livre escolha de seguir ou parar
para observar qualquer manifestação que se desenrole nas mesmas -,
podemos afirmar que a participação das pessoas na arte pública – a qual
se apropria preferencialmente das ruas -, na ruptura do cotidiano, no
diálogo com a diferença, é opcional e vai variar conforme o poder de
visibilidade de tal arte, pois "a rua é um convite ao movimento"
(GOMES,2013:281) e " O ato de observar é ele mesmo parte do
espetáculo." (GOMES, 2013:252) desenrolado nos espaços de exposição.
Importante salientar que


"Alguns desses espaços da 'cena pública' parecem
monopolizar a expressão da vida urbana, concentram
significações e exprimem identidades e esse processo
é construído a partir de imagens. São áreas urbanas
diversas que ganham centralidade no imaginário
social, ganham afluência e frequência, recebem
significações positivas." (GOMES, 2013:190. Grifos
nossos.)


GOMES (2013) cita as praias da Zona Sul carioca como um desses
espaços públicos dotados de grande visibilidade. Incluímos nessa
categoria as ruas da Lapa, um bairro que foi (re)valorizado a partir de
políticas públicas ligadas à cultura e ao turismo, e conhecido
internacionalmente como um dos símbolos do Rio de Janeiro, reconhecido
principalmente pela imagem dos Arcos da Lapa. Essa efervescência das
ruas caminha lado a lado do incentivo ao comércio local (bares e
restaurantes que agitam a cena cultural do bairro, principalmente à
noite), ora atuando em benefício mútuo, pois dentro da perspectiva do
planejamento estratégico "a arte pública assume um papel relevante,
como elemento qualificador do espaço público." (REMESAR e
SILVA,2010:95), ora funcionando como um contraponto ao atual modelo de
lazer da Lapa renovada.


"A TRADICIONAL BATALHA DO REAL": A INFLUÊNCIA DO LUGAR DE EXPOSIÇÃO NA
VISIBILIDADE DO RAP CARIOCA.

A Lapa, hoje, exerce forte centralidade no imaginário carioca e na
articulação do Movimento Hip Hop da cidade, constituindo um dos espaços
de maior visibilidade para os grupos que se apropriam artística-
politicamente de suas ruas. Há dez anos, durante o primeiro sábado do
mês, o bairro palco de uma Batalha de MCs chamada de Batalha do Real -
pelo fato de cada participante ter de pagar um real para se inscrever
no evento-, organizada pela Brutal Crew. O RAP ganhou força no bairro
nos anos 2000, quando um grupo de amigos produzia a Festa Zoeira, a
qual ocorria em um imóvel na Rua do Riachuelo. Por questões
financeiras, a festa parou de acontecer e houve certo esvaziamento da
cena RAP no bairro, retomada em 2003 com o surgimento da Batalha do
Real, que seria um desdobramento da Zoeira (OLIVEIRA,2004:26).
A Batalha do Real faz parte da Liga dos MCs, uma competição de RAP
em nível estadual, centralizada pela cidade do Rio de Janeiro.
Atualmente, a Liga dos MCs é uma das principais competições de RAP free
style (de improviso) do país. As batalhas entre rappers possuem o
objetivo de diminuir os conflitos entre gangues/grupos rivais,
canalizando a energia da agressividade para a criatividade,
configurando uma batalha cultural. Dessa maneira, a Brutal Crew pensou
a Batalha do Real no intuito de dar voz à criatividade dos rappers
cariocas, e solidificar o movimento na cidade através da aproximação e
articulação de rappers, público, produtores etc.
A cada edição, é convidado um Mestre de Cerimônia (MC) conhecido
na cena RAP para comandar o evento e animar o público, assim como
grupos de rap ou rappers que têm carreira solo para realizarem pocket
shows durante os intervalos, e um ou mais DJs bem conceituados para
tocar os beats (batidas) durante as batalhas e/ou os intervalos. Nesse
ponto, é interessante a articulação com demais estados do Brasil pois
alguns dos apresentadores, MCs e DJs de fora do Rio de Janeiro são
convidados especialmente para a Batalha do Real. A articulação é mais
forte no eixo Rio-São Paulo. Como exemplo, temos o DJ Dandan (Cassiano
Sena), representante da Rinha dos MCs, projeto de Hip Hop
importantíssimo em São Paulo e idealizado por ele juntamente com o MC
Criolo, um dos MCs mais conhecidos no país atualmente.
A Batalha do Real (Figura 3) ocorre em uma Praça situada na
extremidade dos Arcos da Lapa mais próxima à Catedral Metropolitana do
Rio de Janeiro, sendo chamada pelos atores e espectadores do evento de
Praça do RAP. A partir disso, podemos afirmar que há uma ligação
identitária entre o grupo e o espaço público em que se desenrola a
prática cultural.





Figura 3 - Batalha do Real, Junho de 2013. Foto: Henrique Madeira.


Como afirma GOMES (2013), "As praças são intervalos na continuidade
das vias. Abriga atividades que nos fazem permanecer" (p.282), ou seja,
funcionam como uma pausa se comparadas à fluidez imposta pelas ruas. A
praça do RAP, na maioria dos dias, funciona como abrigo para moradores
de rua, mesmo situada aos pés do maior símbolo do bairro. Entretanto,
no primeiro sábado do mês é (re)apropriada e convertida em espaço
público, se considerarmos as perspectivas de BERDOULAY (1997), LEITE
(2004), GOMES (2005,2013), MARQUES (2010) e VILLAC (2010) expostas
anteriormente.
Durante o ir e vir nas ruas, "Alguns elementos surgidos ao acaso
das trajetórias espaciais são evocadores, despertam nossa atenção, nos
fazem pensar." (GOMES, 2013: 236). Três desses elementos que nos
fizeram pensar e permanecer na Praça do RAP, desde o primeiro contato
com o evento no início de 2012, foram: a explosão de criatividade dos
rappers , a participação e o êxtase do público e o símbolo da equipe
organizadora da Batalha do Real (Figura 4) a qual propõe uma Subversão
Urbana.
De acordo com VILLAC (2010), "O território urbano – denso pelo uso,
aberto ao significado – é suporte de uma ação criadora insurgente,
simbólica, social e politicamente qualificadora do valor coletivo do
espaço público." (p.158). O RAP representa uma ação subversiva por si
só, pois surge como prática cultural de resistência em um contexto de
crise do sistema capitalista na Nova York do final da década de 1960 e
se difunde mundialmente, chegando ao Brasil também em uma conjuntura de
crise econômica nos anos 80 e 90 (OLIVEIRA,2004,2006;
PERLINGEIRO,2012); portanto, trata-se de uma arte que já nasce fazendo
um contraponto ao sistema tal qual ele é, através das batalhas de
poesia momentânea disputadas nas ruas pelos jovens da periferia, sendo
uma manifestação artística que escancara as contradições sociais
vivenciadas no espaço urbano.



Figura 4 – Símbolo da Brutal Crew no palco da edição de Junho de 2013
da Batalha do Real. Foto: Henrique Madeira.

O RAP é uma combinação de dois dos quatro elementos do Hip Hop
(MC, DJ, B-boy e Graffiti): o MC e o DJ. Propomos que esse gênero
musical seja considerado, também, enquanto Arte Pública – cuja técnica
mais comum é a escultura -, enquadrando-se na categoria que Pedro de
Andrade denominou "arte pública marginal", assim como o graffiti,
considerado como uma figura "paradigmática" das artes de rua (ANDRADE,
2010:p.53) e presente em muitos dos espaços públicos apropriados pelo
Hip Hop, como a Praça do Real (Figura 5), por exemplo.



Figura 5- Batalha do Real na Praça do RAP, Junho de 2012. Foto:
Larissa Lima.




Segundo CAEIRO, deve-se pensar a


"[...] arte pública como modalidade de uma
actividade intelectual que se constrói – individual e
colectivamente -, quando queremos pensar o mundo e
intervir no quotidiano. Referimo-nos à arte enquanto
prática crítica e transformacional da forma e da
condição urbanas." (CAEIRO, 2010: 162. Grifos no
original.)


A proposta dos organizadores da Batalha do Real de "subversão
urbana" se dá através de uma prática artística considerada por muitos,
também, como um movimento social – o Movimento Hip Hop. Dessa maneira,
é por meio da reflexão sobre a realidade urbana, de uma ação que
envolve uma "narrativa poética indignada" (OLIVEIRA, 2011:6), da
proposta de analisar a cidade que se tem e a cidade que se quer – mais
democrática política, econômica e culturalmente-, da liberdade de
expressão em cima do palco e liberdade de julgamento por parte do
público, que a "Tradicional Batalha do Real" se mostra enquanto Arte
Pública, humanizando e publicizando o espaço urbano a partir do
encontro e do conflito, além de atribuir novas significações ao mesmo.

De acordo com GOMES (2013), "A arte das ruas só encontra sua
vocação quando exposta sobre um espaço público, na rua." (p.290).
Entretanto, para e SILVA (2010), a chamada "arte política", assim como
"a arte pública marginal" (ANDRADE, 2010) baseia-se no conceito de
resistência, mas às vezes são "potenciadas a partir da Instituição", ou
seja, do sistema. (REMESAR e SILVA,2010: 99). De fato, a arte pública
pode ser apropriada no intuito de (re)qualificar os espaços públicos
urbanos dentro de políticas de revitalização das cidades, que se
baseiam principalmente na possibilidade de expansão dos lucros do
Estado e de empresários e não no bem-estar da maior parte da população.
Além disso, a Batalha do Real insere-se em um circuito musical
independente, mas também estabelece uma "articulação com a cultura
institucionalizada e o mercado" (HERSCHMANN, 2005:158), através de
redes de solidariedade envolvendo diversos parceiros do bairro, como a
Fundição Progresso, por exemplo; assim como através da divulgação do
evento e do trabalho dos MCs e grupos de rap que participam da Batalha
em redes sociais e em canais no youtube.
Segundo GOMES (2013), determinados espaços públicos de grande
centralidade no imaginário social garantem uma maior visibilidade às
atividades que ocorrem nos mesmos. É importante estar na rua, tornar-se
visível, mas no cenário alternativo, essa visibilidade também pode ser
alcançada através do virtual. HERSCHMANN (2005) afirma que o espetáculo
e alta visibilidade são importantes para que grupos culturais
excluídos, ao se apropriarem de instrumentos que lhes garantam uma
maior repercussão de suas ideias – meios de comunicação, em geral, mas
principalmente a internet -, possam se afirmar e se (re)produzir.
HERSCHMANN (2005) e OLIVEIRA (2004) acreditam que, apesar da
espetacularização, o RAP por ser um produto das próprias desigualdades
do capitalismo seja uma das manifestações que pode contribuir para uma
retomada da cidade enquanto lugar do encontro e dos questionamentos,
publicizando os espaços urbanos a partir de sua ocupação efetiva
através da arte. Afinal, muitos afirmam que "lugar de RAP é na rua",
colocando a ocupação dos espaços públicos como uma das prioridades
dentro do Movimento Hip Hop.
Cabe lembrar, aqui, que a apropriação cultural das ruas é
"[...] a grande responsável pela humanização do espaço público, que
possibilita o encontro fraterno na cidade: o desenvolvimento da
sociabilidade urbana é indissociável das práticas culturais no espaço
público." (MESENTIER,2012). Na realidade, "É por meio da reivindicação
do espaço em público, da criação dos espaços públicos, que os grupos
sociais se tornam eles mesmos públicos". (Mitchell, 2000 apud
Sarmento). Dessa maneira, deve-se possibilitar e incentivar que os
grupos periféricos consigam "[...] de forma criativa utilizar-e das
manifestações culturais, como um instrumento para a construção ou a
reivindicação da cidadania." (HERSCHMANN,2005:158).

RESULTADOS PRELIMINARES

O presente artigo é um esforço teórico que teve início no curso de
Bacharelado concluído na Universidade Federal Fluminense, com grande
contribuição do saudoso professor Nelson da Nóbrega Fernandes, e que
terá desdobramentos; ou seja, trata-se de uma pesquisa de caráter
contínuo e, portanto, nossas conclusões são preliminares, cabendo um
aprofundamento cada vez maior acerca do tema.
O conceito de espaço público vem sendo repensado por autores de
diversas áreas do conhecimento científico, assim como a cultura e a
arte, justamente pelas modificações devido ao processo de globalização
e a Geografia pode trazer um olhar diferenciado em relação a essas
transformações.
Após pesquisa bibliográfica, pode-se afirmar que os espaços
públicos, apesar de serem considerados espaços de copresença regidos
por regras coletivas - ou seja, como espaços em que se exerce a
civilidade-, devem ser entendidos também como espaços nos quais se
reproduzem as desigualdades do sistema capitalista e que são
apropriados conceitualmente por profissionais ligados ao Planejamento
urbano a fim de tornar algumas áreas do espaço urbano mais atrativas a
investimentos, fazendo com que autores questionem a própria validade do
espaço público enquanto conceito filosófico (GORELIK, 2008;
DELGADO,2011). GOMES (2013) lembra que "Esses espaços não são uma
imagem utópica do belo funcionamento social, virtuoso e equilibrado,
estável e justo – imagem fixa e perene, boa, verdadeira e bela. Os
espaços públicos são a imagem da atividade social, variada, errática,
problemática e complexa."(p.311).
Como atividade que ativa as ruas, tornando-as espaços públicos
temos a chamada Arte Pública, considerada uma arte mais engajada do que
a arte privada no sentido de ir contra a mercantilização da cultura;
além disso, a Arte Pública aproxima a sociedade da arte e lhe propõe a
reflexão acerca da realidade, causando uma ruptura no cotidiano
justamente por ser exposta nos espaços públicos assim como
possibilitando a atribuição de novas significações a estes espaços de
exposição, o que permite uma aproximação entre os conceitos de espaço
público e lugar, apesar de alguns autores considerarem impossível essa
conexão (GORELIK,2008).
A partir da leitura bibliográfica para a elaboração desta
pesquisa, podemos dizer que a principal técnica da Arte Pública
"legítima" (ANDRADE,2010) é a escultura, sendo o graffiti e o stencil
citados em diversos trabalhos que abordam uma arte pública de caráter
mais subversivo, chamada por ANDRADE (2010) de Arte Pública "marginal".
Acreditamos que o RAP, enquanto prática artística insurgente e
que surge como arte de rua das periferias urbanas, também deve ser
considerado como Arte Pública, enquadrando-se na chamada arte pública
marginal.
Trazendo essa questão para a realidade do Rio de Janeiro,
analisamos a Batalha do Real, batalha de RAP que ocorre mensalmente no
bairro da Lapa há dez anos, em uma praça batizada pelos organizadores
de "Praça do RAP", lugar de confronto de ideias, de encontro, de
visibilidade e de celebração do Movimento Hip Hop – contendo inclusive
diversos graffitis. A proposta dos organizadores de "subversão urbana"
e cultural através do RAP deve ser valorizada e ter sua continuidade
garantida na cidade, através da ocupação do espaço urbano a partir de
ações questionadoras, tornando-o efetivamente espaço público.
Mas deve-se atentar para que as políticas públicas direcionadas a
uma valorização da Arte Pública no Rio de Janeiro não contribuam para
uma privatização dos espaços públicos, mas sim uma democratização do
mesmo. Como afirmam REMESAR e SILVA (2010), "a aplicação mecânica de
políticas de arte pública podem levar ao sem sentido, à acumulação pela
acumulação que, finalmente, só serve às lógicas do 'marketing da
cidade' e não, necessariamente, às da regeneração urbana." (p.102).
Nesse sentido, a reflexão sobre para que e para quem servem o Espaço
Público e a Arte Pública torna-se primordial.
























































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SITES CONSULTADOS
Lei da arte nas ruas do Rio: artistas reagem e Prefeito faz
autocrítica do veto. In:
. Acesso dia 13/06/2012.
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