Raparigas sem brinco de pérola - figuras femininas em Dulce Maria Cardoso

September 16, 2017 | Autor: Teresa Coelho | Categoria: Portuguese and Brazilian Literature, Gender Studies, Literature
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I CONGRESSO INTERNACIONAL DE CULTURAL LUSÓFONA - A MULHER NA LITERATURA E OUTRAS ARTES

Raparigas sem brinco de pérola figuras femininas em Dulce Maria Cardoso Teresa Coelho Junho de 2012

Personagens femininas na literatura portuguesa contemporânea: de que palavras são feitas aquelas que perderam os brincos de pérola? Retratos de mulheres nas obras de Dulce Maria Cardoso, Campo de Sangue e Os meus sentimentos. traçados por vozes vulgares, públicas e íntimas. Procura-se, na leitura dos textos, compreender como a obra estética revela a vida. E como a personagem feminina tem traços comuns a todas as mulheres, sendo única e irrepetível.

I Congresso Internacional de Cultura Lusófona – A mulher na literatura e outras artes

Quando pensei no tema deste congresso de cultura contemporânea, “a mulher na literatura e outras artes”, imediatamente me surgiram, em oposição, duas figuras: “the girl with a pearl earring”, de Vermeer – (1666-67) e “the girl with the dragon tatoo”, Lisbeth Salander. Uma, personagem de mulher comum e anónima que terá dado origem à Mona Lisa do Norte; outra, figura sem nada de convencional na sua feminilidade,1 plenamente nomeada, direta e indirectamente caraterizada na sua bizarria. A rapariga de Vermeer, ligeiramente virada para mim, espreita do fundo do tempo, num álbum dos mestres da pintura holandesa e continua aqui, com as mulheres que passaram incógnitas, no mundo e na literatura; Lisbeth Salander está algures na rede virtual, quando abro o mail que ela olha desinteressada. É a heroína extraordinária e silenciosa que redime outras personagens femininas secundarizadas na submissão a mundos violentamente masculinos. Estas duas imagens de mulher, plástica e literária, são como extremos de um grande espectro de personagens femininas universais, e, por influência direta do ficcional no real, imagens de mulheres que querem parecer-se com elas. Porque na sociedade mediatizada em que vivemos, a mulher, como a criança, o jovem e as relações que estabelecem, o que consomem e como se transportam, tudo é imposto por imagens, discursos sobre essas imagens e discursos sobre os próprios discursos, em que se perdeu o fio a quem imita quem, quem surge primeiro, quem dá origem a quê. Não nos juntámos nós aqui também falando e discorrendo sobre o discurso de outras ou outros, e tendo escrito sobre outros escritos? Vou então “ler” convosco, mais no sentido hermenêutico (de interpretação) do que no filológico (de quem “analisa e situa no contexto histórico”), textos de uma autora portuguesa contemporânea, Dulce Maria Cardoso. Preferia fazê-lo no sentido de quem incorpora a voz do texto e a reproduz, interpretando-o, como o actor – porque alguns destes textos parecem escritos para serem ditos, porque os seus parágrafos têm a dimensão dramática da oralização, da fala que se interrompe e retoma, e comenta o próprio discurso, motor do pensamento e da história. Mas para isso seria necessário outro espaço. Como a maioria saberá, Dulce Maria Cardoso adquiriu maior notoriedade pública quando recebeu, em 2011, os Prémios Ler/Booktailors, pelo seu último romance publicado, O retorno. Já fora premiada com o Prémio Ciranda e o Prémio do PEN

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Personagem da trilogia Millenium, bestseller póstumo de Stieg Larsson.

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Clube Português de Novelística, em 2010, pelo seu terceiro romance O chão dos pardais, e recebera o European Union Prize for Literature, em 2009, pelo romance Os Meus Sentimentos, assim como o Grande Prémio Acontece, em 2002, pela primeira obra, Campo de sangue. Limitada por questões de tempo e espaço, colhi uma “amostra” da “população feminina” apenas de dois universos ficcionais da escritora: Campo de Sangue e Os Meus Sentimentos. Vou falar-vos de Eva, da mãe, da rapariga bonita, de Violeta, Celeste, Dora, figuras da contemporaneidade, marcadas pelas características de uma sociedade que Bauman classificou como líquida, por nela se ter perdido a consistência das relações interpessoais e o sentido da busca intrapessoal. Sendo a obra de arte “apenas um substituto enquanto a beleza da vida for deficiente”, no dizer de Mondrian, cabe-lhe revelar esteticamente, no espelho em que nos reflete, a matéria da nossa humanidade. É isso que a escritora faz com um estilo muito femininamente atual, atrever-me-ia eu a dizer. No percurso literário de Dulce Maria Cardoso, com a singularidade que caracteriza a sua obra no panorama literário português, gostaria no entanto de traçar um ramo genealógico com Virgina Woolf. Mulheres-escritoras de universos espácio-temporais muito diferentes, cada uma a seu modo escreveu/escreve romances, narrou histórias que fogem à linearidade cronológica e se desenvolvem dentro e fora do presente e do passado, entrando e saindo da mente das personagens, entrando e saindo dos seus discursos, pensamentos e silêncios. Por outro lado, em Dulce Maria Cardoso parece-me também patente a constatação do absurdo da existência, da fragilidade da linha que separa normalidade e loucura, ser e parecer. As suas personagens, simultaneamente atuais e intemporais na dificuldade de se definirem e de encontrarem um sentido para a vida, inscrevem-se em várias classes sociais, e “vivem”, cada uma a seu modo, a luta entre quem são ou querem ser e aquilo que parecem ou se esforçam por parecer. Vão da senhora que recebe semanalmente as amigas para o chá-canasta formalmente perfeito2, à sua filha, “monstrengo” desolado e mal-amado, envergonhado de si, vítima de desamor e indiferença. Da funcionária de

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“a minha mãe sentada na sala da casa que hoje vendi com o vestido amarelo-clarinho de pregas que lhe assenta tão bem ou aqui no Salão Princesa, ao fundo nos secadores, com a perna traçada, a folhear uma revista de moda, o dernier cri, in, Os meus sentimentos, p.61.

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notário, de dias amarfanhados, consolada na desgraça alheia3, à Denise do shopping, personagem-tipo de uma sociedade de escravos. Profundas ou planas, a nenhuma sobrou o brinco de pérola, símbolo da perfeição evolutiva da natureza e ponto de focagem do olhar, no quadro. Campo de Sangue começa: “Estão quatro mulheres na sala. Destas mulheres é preciso saber antes de tudo que estão aqui por causa de um homem que cometeu um crime e que se por acaso se encontrassem na rua não se cumprimentariam.” (p. 9) Chamadas a identificar o homem, filho, ex-marido, amante, hóspede, são definidas pela relação com ele. São testemunhas da vida que ele não teve. São actrizes contrariadas perante os funcionários e o médico que as questiona. As epígrafes iniciais, versículos da Bíblia, falam do pecado de Judas, que identifica Jesus e, assim, o entrega. As mulheres também foram chamadas para identificarem o homem, o explicarem e, talvez, o entregarem. Ele cometeu um crime que lembra L’étranger, de Camus: “com o calor há sempre quem mate por razões alheias à vontade, o calor ferve o sangue que uma vez derramado é rapidamente pó, um pó que se entranha facilmente na calçada,” (p.27) – indício que surge logo no início da narrativa. Houve um crime, levado a cabo pelo absurdo da existência, pela ilusão que conduziu o homem a confundir a rapariga bonita que encontrara na praia com a outra, semi-marginal, que levou para casa e amou como nunca antes. Cada uma das mulheres “Conta a verdade apesar de saber que a verdade se apresenta de várias formas. Escolhe a verdade dela, a que lhe convém.” (p.164) Porque verdade e realidade dependem de quem pensa, de quem vê, na literatura e na vida. E são as analepses de um narrador que acompanha os pontos de vista das diferentes personagens que nos dão uma visão global da(s) história(s). Cerca de um ano de narrativa, onde todo o passado se encaixa em episódios evocados diversamente por cada personagem. As mulheres são herdeiras de um pecado original. A ex-mulher chama-se Eva. ES no remetente dos postais enviados de férias para o homem (cf. p.25). É a única personagem com um nome no romance. Mesmo o homem, à volta de quem elas se reúnem, não adquire nunca a identidade de um nome. Embora pense: (…) o nome que é o que se diz sempre apesar de dizer tão pouco de cada um, o nome é muito importante, já lho perguntaram tantas vezes, o seu nome por favor e ele diz o nome que lhe 3

idem, pp.139-151.

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I Congresso Internacional de Cultura Lusófona – A mulher na literatura e outras artes puseram aquando da fotografia em que se conhece mais pequeno, a fotografia que só foi feita porque se baptizou outra criança no mesmo dia, os pais da outra criança contrataram o fotógrafo para eternizar a entrada do filho no reino dos céus, os seus ainda não se tinham desgraçado, mas nunca se lembrariam de contratar o fotógrafo, diz ao menos o nome, se disseres o nome pensam que te conhecem.” 4(p.47)

Sem o nome como vai o leitor conhecer as personagens? O campo de sangue foi provocado pelo homem. Mas teria sido motivado pela senhoria da pensão decrépita onde vivia? Pela mãe pisada pela vida? Pela mulher-primeira, a Eva protetora (ou que o perdeu?) e nada exigia em troca do tudo que dava? Pela rapariga que o levou à loucura? Ou seria o amor que o levou à loucura? Ou o sol, como a Mersault? Os pensamentos de cada uma delas sobre as outras são julgamentos aos quais mulheres sujeitam outras mulheres, num mundo de dominados. Mas também o homem é reduzido à condição de objeto imprestável, depois do crime. O romance, enquanto género literário, continua a explorar este fenómeno da reificação. Todas estas personagens foram reduzidas à condição de coisas, à semelhança dos seres humanos cujas relações se degradaram em valores de compra e troca, nas sociedades contemporâneas imitadas/traduzidas na ficção. Quando a senhoria sai da sala, as três mulheres sentem-se melhor, mais unidas porque ele foi de cada uma delas durante algum tempo, unem-se na posse, cada uma delas o usou em determinado tempo para algum fim, ele foi de cada uma daquelas três mulheres e isso deixa sempre alguma saudade mesmo que nenhuma delas o queira neste momento, ele já não lhes serve, aconteceu o mesmo com uma camisola de que a rapariga gostava muito, deixou de lhe servir e a rapariga deitou-a fora, a ex-mulher desfaz-se de muitas coisas no lixo ou nas obras de caridade conforme lhe apetece, a mãe deixou que a máquina de costura se avariasse porque já não lhe serve para nada. Mas cada uma das três mulheres culpa as outras e é isso que as desune, atiram para as outras o dever de o salvar, é acima de tudo a culpa que as desune. A mãe culpa a ex-mulher por o ter desencaminhado antes, na noite do corte de electricidade, e depois. A mãe tem a certeza de que a ex-mulher o fez pecador e um pecador acaba sempre mal, a menos que se arrependa. Para a mãe a ex-mulher ainda vive em pecado e dificilmente se arrependerá, é disso que os olhos opacos da mãe a acusam, e é também disso que fogem porque o pecado é guloso, anda sempre à procura de novos corpos. A ex-mulher culpa a mãe por não amar o filho, por não o amar como uma mãe deve amar um filho. Se o amasse como deveria nunca teria deixado de acreditar que o filho podia ser alguém na vida, nunca o teria deixado dormir em restos de lençóis por bordar, os que sobravam e que lhe davam azar aos sonhos. Se a mãe o amasse como devia teria acreditado que eles podiam ser felizes e a mãe nunca acreditou. A mãe não sabe o esforço que a ex-mulher fez para o salvar, a ex-mulher não sabe o esforço que a mãe fez para que ele fosse alguém, uma da outra sabem apenas a culpa de que se acusam apesar de nunca terem falado nisso, sabem o que pensam uma da outra e até o que pensam da rapariga que não conhecem. Nenhuma delas gosta da rapariga. Algumas razões coincidem, outras não. (pp.202-203) 4

Sublinhado meu.

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São razões mesquinhas de ódios entre mulheres que se enfrentam pela posse do homem, das que conhecemos da literatura, do cinema e da vida. Mulheres que suportam papéis familiares predestinados mas nem sempre assumidos, papéis turvos onde se perdem de quem são, na preocupação de cumprirem a regra social. A rapariga não gosta delas mas não as culpa. Carrega na barriga a culpa mais pesada que pode sentir, aquele filho é um estúpido acidente na vida que escolheu, daqui a quatro meses livra-se finalmente daquele contratempo e descansa. Mas apesar de tudo sentem-se cúmplices porque todas o tiveram e usaram da forma que lhes deu jeito. E como cúmplices têm um entendimento secreto sobre o crime que cometeram.” (p.204)

O crime dele foi um crime delas. São parceiras de jogo. O narrador oscila entre os seus pontos de vista. Os campos de sangue associam-se. Real e virtuais. O crime que lança o romance fez-se mais verdadeiro porque passou na TV, foi noticiado em todo o fulgor da sua ficção nos jornais. O que a senhoria contou e os meios de comunicação revelaram é um conjunto de mentiras fabricadas pelo homem no tempo todo que lhe sobrava da vida que não tinha que “ganhar”. Na sala de espera onde Eva fica sozinha enquanto as outras almoçam, ela pensa o seu ódio pela rapariga e há outro homicídio que não chega a acontecer, o do filho do homem, tem a rapariga deitada no centro da sala e a criança já foi expelida em bocados ensanguentados que estão pelo chão. Mais tarde tem de se reconstruir tudo para se ter a certeza de que a criança está completa, as mãos da rapariga querem agarrar os bocados espalhados, grita, são meus, os bocados do meu filho são meus, falta pouco para que a rapariga se esvaia em sangue, jorra muito sangue da boca do corpo, o sangue é quase bonito, uma cereja esmagada que escorre, a rapariga tem o útero rasgado para sempre, nunca mais poderá passar a mão pela barriga, o desprendimento tem sempre um preço, a ex-mulher guarda os bocados da criança, bastará um saco de plástico, um caixão branco de anjinho, um saco de plástico, (p.134)

Outro crime por cometer, o do homem, no dia de festejar o aniversário da mãe, dividido entre deixá-la ou não morrer com o gás do forno avariado. “Não sei o que faça mãe, a mãe sempre soube o que se devia fazer, o que ficava bem que se fizesse, (…) não sei o que faça, mãe (…) acordo-a ou deixo-a morrer, mãe,” (p.113) 5 . O monólogo não verbalizado é um homicídio por omissão, num mundo onde o pecado reina (vd. p. 238). Entre o homem e cada mulher da sua vida há um comportamento específico. Repetido como para fundar a relação, mas sublinhando a discrepância entre o que é um comportamento e o que são os pensamentos e sentimentos que atravessam as 5

Novamente na p. 120.

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personagens, na lucidez com que o narrador as conta, adotando os vários pontos de vista. O homem e a ex-mulher “portavam-se como amantes”, leitmotiv repetido ao longo da narrativa. “Ambos gostavam de se comportar como amantes, não tendo a obrigação de fingir que se amavam, de se mostrarem felizes. Não se conseguiam afastar porque a única obrigação que tinham era de se portarem como amantes.” (p.25) 6 A sua relação não é aquilo que parece, não corresponde aos comportamentos observáveis. Daí a ferida de Eva, preterida, enganada, esquecida, limitada à vida interior, às suas invenções, aos três níveis de água e de azul de que diz necessitar para viver. O homem e a rapariga “portavam-se como apaixonados.” Andavam abraçados na rua. Beijavam-se. Riam de tudo. Não achavam nada de que não gostassem. Falavam ao mesmo tempo e forçavam coincidências. Quando se deitavam provocavam o desejo com medo de adormecerem sem se terem amado. Quando isso acontecesse a ilusão desfazia-se e a verdade apareceria intolerável. Seriam apenas dois corpos que não sabiam o que faziam ao lado um do outro.” (p. 179)

O homem e a mãe: “Portavam-se como desconhecidos. (…) portavam-se como estranhos mas nunca sentiram necessidade de se portarem de forma diferente.” (p.97) Quem o visse pensaria que era um filho dedicado que ia visitar a sua mãe e com este engano aos olhos dos outros veio o prazer de se parecer com quem nunca foi, de se aproximar duma pessoa que poderia ter sido. (…) e soube que nunca poderia parecer um filho dedicado porque era necessário que a mãe também se parecesse com uma mãe com saudades do filho, uma mãe contente por ver o filho, e isso não acontecia. (pp.101-102)

É sempre um jogo de papéis de cada mulher na vida do homem; dele na vida delas. A permanente ideia de que nada vai para além de uma aparência de normalidade que, nem mesmo ela se consegue, por vezes, inventar. A mãe gastou-se a bordar os enxovais de noiva de que sobreviviam, deixou de existir como mulher, como ser humano. “Há muito tempo que a única coisa que a mãe quer é repetir todos os dias os mesmos gestos até ao dia em que já não precise de os fazer.” (p.191) Mecanismos de autómato, não de gente. Elas reificaram-no, como ele as usou. Todos parecem alguém que não são de facto, e sofrem o absurdo desse desvio. A construção das personagens pelo discurso do narrador confunde o leitor naïf que tenderá a justapor narrador e personagem narrada, pela frequente sobreposição do ponto de vista de quem conta com o da personagem sobre quem se conta. DMC é exemplar na

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Vd. por exemplo, pp. 167, 206

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subtil passagem entre a voz de um narrador heterodiegético e omnisciente, para a de um narrador homodiegético, personagem e voz narrativa que evidencia o ponto de vista de um participante na história. Assim, é curioso notar que a proposição: “um amor tão exagerado, quase uma doença,” seja assumida por várias vozes, e que a ideia expressa se modifique na alteridade: “um amor tão exagerado, quase uma doença,” pensava o homem do sentimento da ex-mulher por si (p.175); pensou depois do seu amor pela rapariga bonita. (cf. pp. 176, 195, 199, 200, 220); pensa Eva, já no final da relação, do amor que dedica ao homem (cf. p. 213). O amor pode ser excessivo? Pode ser doentio? Pode camuflar o absurdo da sua ausência? Eva sabe que “A verdade é sempre muito difícil de compreender. A mentira é sempre mais compreensível, mais lógica, mais correcta como tudo o que é construído.” (p. 146) Como a ficção é mais compreensível que a realidade. A literatura é uma construção estética que imita o mundo, revelando-o. Mas o discurso do narrador e os pontos de vista que adota neste romance mimetizam, de certo modo, a confusão de cada ser enredado em relações familiares e sociais múltiplas e a ausência de nomes joga a favor da própria confusão do leitor. A rapariga assustada com o “novo” homem que a dada altura se revela, sabe que os tarados nunca parecem o que são, é por isso que enganam as vítimas tão bem, (…) um pobre coitado ou um tarado perigoso, podia ser as duas coisas, olhou bem para ele, não teve dúvidas, era apenas um pobre coitado, (…) a rapariga bonita pensava em deixá-lo quando lhe deu a mão e aceitou casar-se com ele,” (pp. 222-223)

O pobre coitado revelou-se afinal um criminoso. A rapariga mentiu. Todas elas mentem. Para se defenderem. Para sobreviverem. Para acreditarem que são alguém que não são. uma mulher que aceita em casa um homem sem se casar só pode ser uma, nessa noite Eva disse-lhe que passava em frente do muro por causa dele, os olhos meigos de Eva pediam-lhe que ele também mentisse para que se amassem desde sempre, mas ele ficou calado e Eva desistiu do que queria inventar (p.132)

São as palavras que não se dizem que prevalecem. Sempre. Quando Eva se cruza com a ex-sogra num corredor do hospício, a caminho do depoimento: A ex-mulher escolhe as palavras. As palavras que surgem são as que sempre quis dizer, que são as únicas que não serão ditas. Procura outras. Tem pouco tempo e está nervosa. (…) as duas mulheres têm pouco tempo para corrigir o silêncio de que se fez o passado.” (p.146)

Quando fala com o médico que avaliará se o homem deve ser julgado pelas leis dos homens ou pelas leis de Deus:

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I Congresso Internacional de Cultura Lusófona – A mulher na literatura e outras artes o médico nunca poderá compreender o pacto deles. Ninguém pode compreender. Escolhe as palavras que não pode dizer. Precisamos um do outro para nos enganarmos. Sobrevivemos ao bairro e os sobreviventes nunca são boas pessoas porque apesar de tudo sobreviveram. Uma boa pessoa sucumbe se vê coisas terríveis. Ele nunca me amou, eu nunca o amei. Ele amou-me e eu amei-o. Somos dois casos perdidos. Precisávamos um do outro para fingir coisas diferentes. (p.165)

A vida destas mulheres faz-se de silêncios, de ilusões que fabricam e consomem. Está cheia do lixo de que cada uma se desfaz a seu modo. Os meus sentimentos é um longo stream of consciousness, refletindo as incoerências do fio da consciência humana, colada à voz da narração, aparentemente liberta de controlo exterior. Um texto construído na mente da protagonista autodiegética, que o leitor encontra, logo no início do romance, no momento do acidente e da morte anunciada no título, e realiza uma longa analepse, em que a própria voz mimetiza outras e se vai respondendo, no eterno diálogo que tece uma mulher, consigo própria e com o mundo. inesperadamente não devia ter saído de casa, não devia ter saído de casa, não devia ter saído de casa, durante algum tempo, segundos, horas, não sou capaz de mais nada, inesperadamente paro a posição em que me encontro, de cabeça para baixo, suspensa pelo cinto de segurança, não me incomoda, o meu corpo, estranhamente, não me pesa, o embate deve ter sido violento, não me lembro, abri os olhos e estava assim, de cabeça para baixo, os braços a bater no tejadilho, as pernas soltas, o desacerto de um boneco de trapos, os olhos a fixarem-se, indolentes, numa gota de água parada num pedaço de vidro vertical, não consigo identificar os barulhos que ouço, recomeço, não devia ter saído de casa, não devia ter saído de casa, são tão maçadoras as legalengas (p.9)

Nas frases entrecortadas, o discurso suspende-se, por brancos na folha. E reproduz, num monólogo/diálogo interior de cerca de 300 páginas, a história de vida da personagem da mulher morta no carro, e as histórias, por ela imaginadas, daqueles com quem se cruzou. Imaginadas, porque a focalização interna da protagonista implica a focalização externa das outras personagens. Mas neste romance essa restrição parece, por vezes, ultrapassada. Daí o leitor ser arrastado num turbilhão de palavras em que não pode deixar-se confundir. Os discursos direto e indireto livre de outras personagens, inscritos entre as palavras de Violeta, figuram memórias dos outros nela e a confusão dos pensamentos numa consciência aceleradamente a atingir o fim. Como nos relatos de sobreviventes a naufrágios, afogada no temporal, nos segundos que precedem a morte, a narradora improvável, revê a vida numa longa analepse, onde outras se encaixam. E o romance conta a memória das emoções e conceções da mulher gorda a quem a vida aconteceu ao lado, a quem a vida impôs um destino que lhe roubou 8

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a vida. Porque “quando nos põem numa vida não sabemos ter outra” (p.28, 122, 156, 181) “quando nos põem numa vida temos de a levar para todo o lado” (p.139) “quando tentamos fugir da vida em que nos puseram acabamos por nos perder” (p.140) ”quanto mais queremos fugir da vida que temos mais ela se agarra a nós” (p.150). Um discurso interrompido aleatoriamente por ideias mais íntimas, ou por frases feitas, ou pela vox populi… “as regras de educação e de cortesia devem manter-se sempre que possível” (p.138); “uma senhora deve em qualquer circunstância ser chic, très chic” (p.189) “não houve rapaz deste bairro com quem não tenha ido até que se meteu com um retornado preto e já mais nenhum a quis” (p.90) É a ficcionalização de alguém que, podendo ter tido tudo, pouco ou nada teve, pouco ou nada foi: “a menina é má, a menina é uma menina mesmo muito má” (p.23, p.147) dizia a criada, vítima de todos, da criança com o estigma da rejeição dos pais: “esta miúda faz tudo para nos aborrecer”; “esta miúda faz sempre o que não deve”; “com esta miúda ninguém consegue fazer nada, nem sequer morrer” (p.159). “a vergonha que o teu pai tem de ti, Violeta” (p.31) “o meu pai tinha vergonha da mostrenga em vez de ter vergonha do bastardo” (p.188). Depois, a sua própria filha que não lhe chega a dizer “os teus pais não gostavam de ti porque não merecias, eu não gosto porque não mereces” (p77). E os últimos a vê-la: os rapazes calam-se por segundos quando me vêem, e depois, um deles, tanto faz, são todos parecidos, diz large, extra extra large, todos se riem, ainda a gargalhada não se desfez e já estão enredados em suposições, come para aí o triplo de uma pessoa normal, pode ser uma doença, a cama, já imaginaste a cama era uma mulher tão gorda, tão gorda, que quando caía da cama caía para os dois lados (pp. 20-21)

Vamos encontrá-la só, no momento final da vida, em trânsito entre a casa que deixou de ter e a que não poderá, portanto, voltar e a casa de uma cliente. Entre o passado e o infinito… inesperadamente não sinto dores, não tenho medo, os meus olhos afogados na gota de luz, os meus ouvidos um albergue de grilos, neste momento posso já não existir aqui este momento pode já não existir para mim (p.10)

Se a narração depende da voz e da organização que o narrador impõe à história, há, neste romance, marcada pelos deíticos e pela focalização interna, uma exacerbação da subjectividade do que é narrado, na medida em que se anula a distância entre quem conta e o que é contado e se encurta também esse espaço com quem lê, empaticamente ou com a objectividade do leitor literário experiente. Por outro lado, a predominância da 9

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utilização do presente do indicativo para todos os tempos da história, compacta o tempo no momento da morte, o momento da narração, um tempo que escapa à cronologia: sei de tudo num tempo que não é este que está a passar, nem o que já passou, nem o que vai passar, um tempo planificado, acessível por inteiro como as estradas dos meus mapas, o tempo finalmente cartografado como as terras dos mapas, sítios que só existem para me esperarem, tempos que só existem para que eu os percorra, de cabeça para baixo, suspensa pelo cinto de segurança, num momento em que posso já não existir, num momento que pode já não existir para mim (pp. 215-216)

Nos tempos de fim de um império cresceu Violeta, a filha de Celeste, a mulher que usa o Francês para parecer distinguée. Presa na teia das aparências, afivelada ao mundo colonial moribundo, Celeste pertence ao tempo da História onde se inscreve a ficção, na medida em que representa um sector da sociedade portuguesa que passou a viver em função do passado, descolado do real. A gorda vitimizada é a mãe de Dora, o anjo que salvou os avós. É ainda a vendedora de ceras depilatórias, a melhor, num combate desigual contra os lasers espanhóis. De entre as personagens secundárias, lembro as personagens-tipo Denise e Betty, clientes das ceras – nomes marcados de um mundo dos salões de estética, como as raparigas do Salão Princesa, de outros tempos, Denise com o seu escravo ucraniano, Betty na vivenda clandestina, com a profissão clandestina, a vida clandestina. E Maria da Guia, a criada da mãe que a criou a ela, que se matou a ser criada e não chegou a ser mulher, que contava a Violeta a história da sua infância e dos muitos irmãos, dos mortos em pequenos e da mãe que foi vendendo os outros por falta de pão e amor para dar. Violeta atravessa a vida e a história quase sem saber o que é o amor. conheço o amor de ouvir falar 7 um corpo a repousar sobre outro corpo, a respiração acertada peito contra peito, uma mão caída e logo outra que a segura, o silêncio que cobre os corpos transpirados, pode o amor ser isto, pode o amor os rapazes gostavam de mim nas matinées ser esta paz da carne saciada (p.41)

Só a maternidade a faz descobri-lo: “nasceste para que eu soubesse como é o amor que só conhecia de ouvir falar” (p.280). Muitas mulheres e algumas figuras masculinas: Baltazar, o pai, homem do regime salazarista que matava os gatos do quintal com leite envenenado, que esmagava os

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p. 41, p. 50, p. 52, p. 251

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pássaros das gaiolas e queimava os bichos de olhos de vidro esbugalhados, espantados com a morte. (vd. p.39) Tal como o homem de Campo de sangue, também esta personagem masculina é desresponsabilizada pela loucura. o teu pai não está maluco, nunca mais te quero ouvir a dizer semelhante disparate o meu pai não enlouqueceu, foi apenas um hábito que tomou conta dele, a loucura é um abismo, não um caminho que se faz com mais ou menos vagar, o teu pai está bem, só precisa de estar sozinho, nada mais do que isso, não te quero ouvir a repetir os disparates que ouves na rua, e eu não repetia, e com o tempo ganhei o hábito de considerar tudo normal, (…) o meu pai nunca ficou xexé como o Ângelo diz, é tão maldoso o Ângelo, (p.103)

Ângelo é o meio-irmão, o bastardo que vingativamente acusou o pai na época da revolução, o fantoche lamentável que matou o pai de ambos com a negação da paternidade ensinada pela mãe (outra mulher na sombra esconsa de uma espelunca de amante). “para se vingar o seu filho deitou-se com a mostrenga da irmã” (p.173) “engravidar a irmã mostrenga” (p.265). Vozes do mundo e personagens sem força própria, movidas pelas mulheres que os rodeiam e lhes inculcam os sentimentos a ter. E ainda os figurantes, sombras dos rapazes e dos homens dos momentos do sexo. A crueldade dos olhos e das palavras: “olha para aquela gorda perdida de bêbeda” (p.12, p.53). “este aspecto e ainda por cima bêbeda” (p.25) a todos os homens com quem fui e que calharam perguntar-me o nome respondi sempre com uma charada e um nome de flor que também é uma cor bêtises ma chérie, bêtises nunca nenhum acertou, talvez fosse estranho, talvez tivesse achado realmente estranho se tivesse pensado nisso, não pensei, até ele todos os homens que tentaram adivinhar, responderam Rosa, a maior parte não arriscou, sorriu e pôs-se a andar, queriam lá saber o meu nome, era só uma pergunta, a mais comum, para afastar o silêncio, o embaraço, a vergonha de terem estado dentro de uma mulher como eu, nunca conheci nada mais desapiedado do que a carne saciada, o que é certo é que até esta noite, até ele, todos os homens tinham respondido Rosa, um erro de que gostava, outro nome e não era eu que ali estava mas a tal Rosa, uma criatura que chegava a lamentar quando me dava para isso. (…) e se nunca mais tiver lugar em mim, se nunca mais me pertencer, por que me deixo morrer, por que me mata a avida acelero em direcção ao infinito que se tornou o meu destino, (p.13-15)

Só o último homem, que Violeta não sabia ser o último, acertou. E talvez o facto de ser finalmente nomeada por um homem de passagem, a tenha feito aproximar daquela que o nome designava, de quem ela era, reduzindo-a ao monte de carne do desenlace.

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I Congresso Internacional de Cultura Lusófona – A mulher na literatura e outras artes

“O inferno são os outros.”, disse uma personagem de Sartre. Este romance é uma demonstração do aforismo. “o inferno é o esquecimento” (p.166) diz a narradora. E o romance é um combate da memória. As raparigas e mulheres que figuram na obra de Dulce Maria Cardoso não têm a sedução do brinco de pérola a focar o olhar do leitor ou, dito de outro modo, não têm o encanto da simplicidade de vidas feita de acasos naturais, sem contornos trágicos. Mas também, como vulgarmente se diz e dos contros tradicionais se conclui, os amores/vidas felizes não têm história. Eva, Violeta, Dora, as outras (e nós) situam-se na zona do arcoíris entre uma rapariga de Vermeer e a redentora e tristemente solitária heroína tecnológica. As suas histórias, contadas maioritariamente por vozes femininas, estão ancoradas por informantes (quase transformados em indícios) nos nossos dias, em vagos espaços nacionais: a grande cidade, o bairro periférico, a zona litoral, a aldeia do interior… Cada leitor visualizará a sua Lisboa, Marvila, Caparica, Estoril, Forcalhos... “quando nos contam uma história ouvimos sempre outra” (p.29, p.289) diz a voz da narração em Os meus sentimentos. É o contributo da nossa subjetividade. Estas personagens são contemporaneamente trágicas porque efémeras, sem heroísmo, numa sociedade que, sendo de massas, é esquizofrenicamente individualista. As narrativas reproduzem a ideia de identidades problemáticas, errantes na confusão das cidades onde os caminhos se multiplicam e o indivíduo se perde. São personagens que figuram a precaridade das relações e a liquidez da sociedade onde o absurdo da velocidade quotidiana asfixia a vida: mulheres à deriva, sem as âncoras de laços duradouros, à procura de si na desordem do mundo. Steiner diz que “Um intérprete é um decifrador e comunicador de significações. É um tradutor entre linguagens, entre culturas, e entre convenções de representação.” (Steiner, 1993:19) Na realidade, os textos de Dulce Maria Cardoso não necessitam intérpretes, apenas leitores. Esta comunicação pretende apenas contribuir para contagiar o prazer de os ler. Bibliografia CARDOSO, Dulce Maria, (2002) Campo de sangue, Alfragide, Edições ASA. (2005) Os meus sentimentos, Alfragide, Edições ASA.

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STEINER, Georges (1993), Presenças Reais, Lisboa, Editorial Presença.

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