Rastreando a Rede de Atores que Faz a Transformação do Futebol Brasileiro: Uma Perspectiva Histórica

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Rastreando a Rede de Atores que Faz a Transformação do Futebol Brasileiro: Uma Perspectiva Histórica

Autoria: Getúlio Sangalli Reale, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Resumo: Este estudo busca contribuir para a compreensão do processo de disseminação de conceitos, técnicas e dispositivos do mundo empresarial (lógica de mercado, formação de mercados) na sociedade. O objetivo é compreender, em um caso empírico específico, estudado em profundidade e ao longo do tempo, a rede de atores que torna possíveis tais mudanças. Para tanto, no contexto do futebol (fato social total), foi pesquisado o caso de um dos grandes clubes brasileiros, em um período histórico geralmente não explorado (entre o início do século XX e a década de 1970). Utilizando a perspectiva da sociologia das associações (ou Actor-Network-Theory), foi possível rastrear uma série de entidades com agência sobre as transformações que vêm ocorrendo no futebol brasileiro no sentido da mercantilização ou empresarização. Entre elas estão a rivalidade histórica entre os clubes, o processo de profissionalização do esporte, a presença de uma estética dirigente, a circulação precoce de elementos de um campo da administração em formação e a popularização das torcidas na forma de comunidades imaginadas de sentimento, cujo traço distintivo é a paixão fiel. No conjunto, os achados mostram que o processo de transformação do futebol começou há muito mais tempo do que se acredita e envolve grande número de forças. Eles permitem criticar a noção, mais ou menos explícita nas pesquisas acadêmicas, que atribuem toda (ou quase toda) a agência das transformações à globalização dos mercados, ao interesse das grandes empresas ou ao marketing esportivo, recomendando-se que estes elementos passem de fonte primordial das explicações para objeto de pesquisa.

Palavras-chave: Futebol Brasileiro; Mercantilização; Rede de Atores; Rivalidade; Paixão

1. INTRODUÇÃO

A disseminação de conceitos, técnicas e dispositivos do mundo empresarial (lógica de mercado) pelas diversas esferas da vida é tema central das ciências sociais. De Marx a Weber, chegando até os pesquisadores dos dias de hoje, a preocupação em entender como as formas 1

de interação e relação estabelecidas nas fábricas (produção) e no comércio (consumo) enredam-se em espaços de outras sociabilidades e os transformam alimenta questionamentos, imaginários e corações no universo acadêmico (Bourdieu, 2006; Callon, 1998; Campbell, 2005; Marx, 1990; Miller 2007; Polany, 2000; Shalins, 2003; Slater, 1997; Zelizer, 1978; Weber, 1992). Os trabalhos que exploram esse processo no Brasil utilizam, entre outros, o contexto do futebol de espetáculo1 (Damo, 2005). O interesse pelo universo do futebol acontece porque pode ser pensado como um „fato social total‟, conforme elaborado pelo antropólogo Marcel Mauss (1974), pois, em sua constituição, “exprimem-se, ao mesmo tempo e de uma só vez, toda espécie de instituições” (p.41). Tendo milhões de torcedores de todos os gêneros, etnias, rendas, faixas etárias e níveis de instrução identificados com grandes clubes em todo o Brasil (Damo, 1998), sendo também objeto de grande interesse da mídia de massa, de empresas e do Estado, o futebol torna-se „bom para pensar‟ as mudanças que vêm ocorrendo na sociedade e até mesmo para refletir sobre as entidades às quais o discurso acadêmico concede o direito de existir (Latour, 2005; Law, 2004). Diversos estudos sobre a disseminação da lógica e de práticas ditas „de mercado‟ no universo do futebol brasileiro já foram realizados (Alvito, 2006; Carmo e Augusto, 2012; Carvalho, Marques e Carvalho, 2009; Damo, 2005; Gonçalves e Carvalho, 2006; Helal, 1997; Proni, 1998a, 1998b e 2008; Rodrigues e Silva 2007 e 2009; Santos, 2013; Szuster e Sauerbronn, 2010). Por exemplo, Alvito (2006) lida com a questão da globalização dos mercados e seu impacto; Proni (1998a e 1998b) estuda a constituição do futebol empresa no Brasil e a inserção do marketing no universo esportivo, como parte de um processo global de atuação de grandes empresas; Rodrigues e Silva (2007 e 2009) analisam como o processo de empresarização transformou as estruturas organizacionais de dois clubes de futebol; Gonçalves e Carvalho (2006) elaboram as transformações do futebol brasileiro como um processo de desinstitucionalização, no qual formas tradicionais de sociabilidade foram substituídas pela lógica de mercado; Santos (2013) estuda as representações do torcedor feitas pela mídia, na primeira metade do século XX, e sua influência no „consumo‟ das partidas de futebol; Szuster e Sauerbronn (2010) mostram como a compra da camiseta de clubes brasileiros é influenciada por elementos da globalização. Em geral, estes estudos focalizam o período recente de desenvolvimento do futebol brasileiro (de 1980 em diante). Talvez por esse motivo, mas não só, tendem a atribuir as mudanças de forma quase unilateral a entidades tradicionalmente relacionadas ao mercado, como globalização; lógica de mercado;, atuação de grandes empresas entre outras. 2

O presente trabalho tem como objetivo contribuir para compreensão do processo de disseminação de lógicas e práticas de mercado (empresariais, em geral, e de marketing, em específico) pelo rastreamento da rede complexa de forças que o tornaram possível e o faz pelo estudo de dimensões espaço-temporais pouco exploradas nas pesquisas anteriormente citadas. Com espírito exploratório e orientado para a descoberta (Latour, 2005; Law, 2004; MacInnins, 2011), estudou-se, através da análise histórica de um dos grandes clubes do futebol brasileiro, o processo de transformação do futebol em atividade permeada por práticas e lógicas de mercado. Em aproximação à sociologia das associações, (ou Actor-NetworkTheory), foi rastreado o coletivo formado em um espaço de vida concreto e específico, usando a teoria como uma infralinguagem (sem conteúdo substantivo sobre a natureza dos fenômenos e a existência de entidades), a qual dá mais espaço para a metalinguagem dos atores humanos e não humanos (a voz, a agência, o conteúdo substantivo que se quer descobrir) que deslocam a ação dos atores no contexto empírico. (Callon,1998; Latour, 2005; Law, 2004). A análise do período compreendido entre o início do século XX e o final dos anos de 1970 revela a agência de elementos como a natureza agonística do jogo, a rivalidade entre os clubes, a paixão dos torcedores, a presença de uma estética dirigente e a mediação do campo da administração os quais são alguns dos integrantes de uma rede complexa de atores que fazem a transformação do universo do futebol. Pela formação dessa rede, se pode entender melhor a complexidade das forças que tornaram possível a disseminação do marketing e a formação de mercados (Araujo, 2007; Callon, 1998; Geiger, Kjelberg e Spencer, 2012) no mundo futebolístico. Torna-se possível também a reflexão crítica sobre o uso predominante da teoria como metalinguagem que captura toda ou quase toda a agência do real. A forma usual de termos como globalização, mercantilização, capitalismo, lógica de mercado, nos estudos sobre a transformação do futebol brasileiro, não facilita a compreensão de mediações adicionais que podem ter força no processo.

2. MÉTODO

Este artigo é fruto de análises e reflexões realizadas no âmbito de um programa de pesquisa mais amplo que procura compreender a rede de atores que faz o marketing no futebol e sua agência na constituição da realidade. Partindo do caso concreto de um clube de futebol, o Grêmio de Foot-Ball Porto Alegrense (RS)

– doravante denominado apenas

Grêmio –, mas sem ficar restrita a ele, a pesquisa aqui apresentada envereda por tempos e 3

espaços próximos e distantes, a fim de reproduzir, no texto, forças relevantes que se fazem sentir na história do clube, entre o início do século XX e o final de década de 1970. Para tanto, foram estudados trabalhos que abordam o surgimento e a disseminação do futebol no Brasil (Damo, 1998 e 2005; Mascarenhas 2000; Proni 1998a), bem como a história do Grêmio (Coimbra e Noronha, 1994; Damo 1998). Foram igualmente estudadas fontes documentais (textos e fotos) sobre a história do clube e realizado um levantamento de história oral com dirigentes do passado. A interpretação dos dados é orientada por uma abordagem de aproximação etnográfica (Bromberger, 2008; Emmerson, Fretz e Shaw, 1995; Geertz, 2012; Moisander e Valtonen 2006), desenvolvida no percurso de pesquisa antes referido, assim como por trabalhos da micro história (Ginsburg, 2006). O pesquisador vale-se de sua condição de „nativo‟ torcedor do Grêmio e do universo de marketing para desenvolver uma compreensão profunda das forças operantes no contexto estudado. A condição de „local‟ viabiliza „conversar com os nativos em sua própria língua‟, como propõe Geertz (2012), sendo possível também capturar relevantes dimensões do real, que operam no nível da poética e da estética (Sherry e Schouten, 2002). Ter incorporado a condição de torcedor do clube e de profissional de administração (marketing) é um elemento da interpretação trazido para o cerne da análise dos dados e de sua problematização. A construção do „distanciamento‟ para a elaboração de uma interpretação não naturalizada ocorreu de duas formas. Em relação ao pertencimento clubístico, foi realizada, durante um ano, pesquisa de aproximação etnográfica no arquirrival do Grêmio, o Sport Club Internacional, a fim de compreender semelhanças, diferenças e imbricações dos dois clubes e das respectivas torcidas. O distanciamento da condição de „local‟ da administração adveio pela aproximação ao universo da antropologia e da sociologia da associações de Latour (2005) e Law (2004). Foi também importante o longo tempo dedicado à coleta e à análise de dados feita, algumas vezes, de forma desestruturada e, outras, com o auxílio mais estruturante do software NVivo. A análise foi inspirada pela lógica do círculo hermenêutico (Thompson, 1997), através da qual se buscou intuir e reproduzir, no texto, a presença e a força de atores humanos ou não humanos do contexto concreto. O espaço restrito do artigo exige que se construa a apresentação dos dados pela descrição de elementos ou por casos representativos que sintetizam as agências mais importantes emergidas durante o processo de pesquisa

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3. RASTREANDO A REDE DE ATORES: O CASO DO GRÊMIO DE FOOT-BALL PORTO ALEGRENSE

3.1 Disseminação do futebol no Brasil e fundação do Grêmio F.B. P.A. (início do século XX)

O jogo de futebol como se conhece hoje (association football) surgiu na Inglaterra, no século XIX, como um dos esportes modernos (Elias e Dunning, 1985; Proni, 1998a). Ritual agonístico, (Huizinga, 1993) em que os vencidos sempre são separados dos vencedores de forma inequívoca, o futebol se disseminou na época do movimento romântico. Desenvolveuse em meio à onda associativista, quando diversos clubes foram criados na Europa. Contou, em sua constituição, com o idealismo do amadorismo, em uma época na qual a expressão pública de emoções passou a ser valorizada. Seu aparecimento foi contemporâneo da invenção do amor romântico (eterno) e de outros elementos típicos de diletantes e boêmios (Campbell, 2005; Illouz, 2011). Tendo surgido como prática de jovens da elite inglesa, não demorou a se disseminar em outros países da Europa e entre as classes trabalhadoras, em parte devido à estabilização de suas regras, ocorrida por volta de 1863, em Londres, o que viabilizou a desconexão das idiossincrasias locais (Damo, 2005). No Brasil, o futebol chegou na bagagem cultural dos imigrantes europeus, no final do século XIX e início do século XX. Além das regras já padronizadas e estabilizadas do jogo, os imigrantes trouxeram tanto o habitus associativista, como a ética e a estética românticas do amadorismo. O Grêmio foi fundado, no ano de 1903, na cidade de Porto Alegre (RS), por um grupo de jovens trabalhadores do comércio e por filhos de comerciantes e de industriais, na maioria descendente de alemães. Essencial para a fundação do Grêmio foi um jogo de exibição, realizado em Porto Alegre, em 1903, pelo Sport Club Rio Grande da cidade homônima, quase fronteira com o Uruguai. Mascarenhas (2000) chama o caminho de introdução do futebol no Brasil de „via Platina‟, tendo sido viabilizado pela forte presença inglesa, devido ao comércio internacional realizado através dos portos do Rio do Prata (Buenos Aires e Montevideo), assim como pelas conexões com a Europa, estabelecidas pelo ciclo do charque. A apresentação do time em Porto Alegre serviu de estímulo para Dias e seus companheiros decidirem fundar seu próprio clube (Histórias Ilustradas do Grêmio, 1983).

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O meeting de apresentação do Sport Club Rio Grande em Porto Alegre ocorreu no dia 7 de setembro, feriado de proclamação da independência brasileira. O evento mobilizou autoridades e personalidades da cidade, como o major Alberto Bins, futuro prefeito de Porto Alegre e fundador e representante do Ruder-Club (e depois também do Blitz e do Fuss-Ball, outras agremiações importantes da capital). O prestígio e a condição elitizada dos clubes esportivos da época ficam ainda mais evidentes pela leitura da nota publicada no jornal Correio do Povo à época do evento:

No domingo, 6 de setembro de 1903, a população amanheceu num ambiente de grande alegria e curiosidade. É que deveria chegar a Porto Alegre a caravana do Sport Club Rio Grande, portadora de conhecimentos esportivos que vinham servindo de tema a todas as palestras. (...) Na lancha „Nenê‟ embarcou a Comissão dirigente e um grupo de senhoritas da nossa melhor sociedade, encarregadas de presentear as senhoritas e senhoras que acompanhavam a missão riograndina com lindos bouquets e corbeilles de flores naturais. (...) Pouco depois, defronte ao Cristal, o „Aimoré‟ parou para receber a visita da polícia marítima e das autoridades alfandegárias, ocasião em que pessoas que iam na lancha „Nenê‟, passaram-se também para seu bordo, onde foram recebidos com champanhe e discursos. (...) Puxado por uma banda de música da Brigada Militar, o cortejo partiu, contornando a Praça XV e subindo a Rua Marechal Floriano, onde, ao passar defronte à sede da Associação dos Empregados do Comércio, senhoritas das janelas cobriam os visitantes com pétalas de rosas. Depois, a marcha seguiu pela Rua dos Andradas, até a Rua 7 de Setembro, onde deveria ser dissolvida defronte a sede do Clube do Comércio, depois do pronunciamento do orador oficial das sociedades esportivas de Porto Alegre, Caldas Jr. [também diretor do jornal Correio do Povo] (Amaro Jr., in: Almanaque Esportivo do RS, 1944, apud Damo, 1998, p. 87).

O Grêmio, assim como a maioria dos grandes clubes brasileiros, surgiu em meio a uma estética e a uma ética elitistas. Sempre houve grande preocupação em que ele fosse um „club respeitável‟, composto por pessoas das „melhores rodas‟. Embora nem todos os primeiros sócios pertencessem à alta sociedade porto-alegrense, os ares aristocráticos sopravam fortes no clube. A seleção rígida e criteriosa dos associados e a divulgação de „máximas para os jogadores‟, na forma de um „manual de civilité’, revelam a preocupação com a formação do caráter digno de um sportsman, conforme evidenciado por Damo (1998) 6

através do estudo de vários materiais da época da fundação, entre eles a “Revista do Grêmio de Foot-ball Porto Alegrense” de 1916. Relacionados a esses elementos estão o papel secundário e decorativo das mulheres; a rejeição da participação de negros, conforme regra estatutária formal; os rígidos critério de escolha e de aprovação dos associados; acima de tudo o gosto pelas coisas da Europa e dos europeus. O uniforme, por exemplo, foi tema de largo debate entre os associados que terminaram por escolher o modelo do clube inglês Exeter City, mas com cores diferentes (Histórias Ilustradas do Grêmio, 1903/1909, n°1). Além de evidenciar a presença de uma estética elitista (orientadora de ações) na origem do clube, o estudo sobre esta época da história também mostra como muitas práticas tidas como contemporâneas já eram então realizadas. Por exemplo, no primeiro match intermunicipal‟ contra o Sport Club Rio Grande, que depois de seis anos (em 1909) retornaria a Porto Alegre, há a divulgação do jogo por meio de cartazes afixados nos bondes da cidade:

120 mil porto-alegrenses que vibravam assistindo nos dois velódromos os ciclistas Alves, Antonelo, Bina, Guapari, Vitale e tantos outros „reis do pedal‟ da época, e que torciam desesperadamente para o Tamandaré, Barroso, Germânia, Porto Alegre, Náutico, Canottieri, nas regatas, foram abalados com a propaganda moderna e eficiente feita [pelo Grêmio]. Conseguiram como sr. Valle, diretor do Tráfego da Força e Luz, que na parte dianteira dos elétricos fossem colocados cartazes de propaganda e o „Correio do Povo‟, diariamente, concitava o público a comparecer para animar os jogadores, lembrando que os quadro visitante, formado de ingleses, deveria trazer mestres da pelota. (Histórias Ilustradas do Grêmio, 1983, n°1, p.23).

A fonte “Histórias Ilustradas do Grêmio” foi publicada, em 1983, com base na obra do jornalista Túlio de Rose de 1953, portanto o termo „propaganda‟ deve ser tomado com cuidado, porém ficam evidentes, pelos cartazes afixados nos bondes, o desejo de promover o jogo e as técnicas de divulgação do começo do século XX. A fonte registra também o apoio de Caldas Junior, fundador e presidente do jornal Correio do Povo, (mais importante da cidade na época), à promoção dos jogos de futebol. Nota-se, por esses registros, o interesse das empresas de comunicação pelo futebol e importância a ele atribuída, desde a época de seu surgimento no Brasil. A análise dos dados históricos mostra que, desde os primeiros meses de fundação do Grêmio, houve preocupação e ação para o crescimento de seu patrimônio. Os fundadores 7

compraram da família Hemetério Mostardeiro o terreno da „Baixada‟, o primeiro ground do Grêmio, para pagamento „quando puder‟. A intendência (prefeitura de Porto Alegre na época) cedeu mudas de plátanos para serem plantadas no entorno do campo. A terraplanagem do ground foi facilitada pelo prefeito, Dr. Montaury, que era amigo dos associados fundadores Koch e Punder (este último engenheiro encarregado de desenhar as ruas da cidade). A preocupação com a arrecadação de fundos junto aos sócios sempre foi tema central das reuniões de diretoria . Na terceira reunião da história do Grêmio, em 30 de setembro de 1903, o primeiro sócio foi excluído por falta de pagamento e aceitos, em seus quadros, oito novos associados (Histórias Ilustradas do Grêmio, 1903/1909, n°1, p. 11). Tais dados e análises tornam evidentes os primeiros elementos da rede de atores com força na transformação do futebol: o progresso do clube; a preocupação com a geração de receitas; o gosto pelas coisas estrangeiras. Estas são forças presentes, no futebol brasileiro, desde o início do século XX, condensadas na presença de uma estética dirigente. Frente a esses elementos, fica mais difícil defender a ideia de que as forças da „globalização‟, as „grandes empresas‟ ou o „marketing esportivo‟ são agentes determinantes (unilateralmente) do processo de mercantilização do futebol brasileiro.

3.2 Rivalidade, profissionalismo, crescimento formação do público (1909-1950)

Outro elemento que está na rede de atores que fazem acontecer as transformações no futebol é a rivalidade entre clubes. Essa é mais uma entidade à qual não é permitida a existência nem a agência nos textos revisados sobre o assunto „transformação do futebol‟. Por exemplo, a rivalidade do Fla-Flu, do Corinthians versus Palmeiras, do Atlético-MG versus Cruzeiro tem força central na vida dos clubes. Negar ou não dar voz/agência à rivalidade é negar a potência de um elemento central para a vida de quem „está lá‟, no dia a dia, sejam dirigentes, torcedores, jogadores, ou integrantes da mídia. A história do Grêmio e de sua constituição em rivalidade com o Sport Club Internacional (doravante Internacional), ajuda a perceber a relevância desse elemento, especialmente quando vai se enredando com a constituição de um público cativo e apaixonado de assistentes, os torcedores. Futebol é um jogo, ritual disjuntivo em que vencedor e vencidos são separados ao 2

final . Essa é uma questão estrutural desse universo (Damo, 2005). Jogadores (dirigentes e torcedores) imbuídos de um espírito forjado pelo amadorismo romântico e seus elementos ‫ج‬ também pelo machismo e pelo espírito de superioridade de classe e raça, com intensas 8

relações identitárias e sociais materializadas no pertencimento ao clube – não gostam de ser derrotados defendendo suas cores. No caso específico da rivalidade Grenal, esses elementos ficam bastante evidentes. O Internacional nasceu depois que seus fundadores, os irmãos Bopp, paulistas que foram trabalhar no comércio de Porto Alegre, tiveram o pedido de associação ao Grêmio rejeitado, devido aos rígidos critérios de associação estabelecidos. Partiram, então, para fundar seu próprio clube na condição de rejeitados pelo Grêmio. A frase proferida por Carlos Kluwe, atleta e fundador do Internacional, após a terceira derrota consecutiva por goelada, nos três primeiros Grenais, deixa claro o clima dos jogos: “Só deixo essa coisa de futebol depois de uma vitória sobre esse tal Grêmio” (Coimbra e Noronha, 1994, p.17). Há registros de brigas entre atletas já nos primeiros Grenais, disputas „no tapetão‟ (decisões administrativas ou de tribunal) e resultados de partidas anuladas por conta dessa forte rivalidade já nos primeiros anos da história (Histórias Ilustradas do Grêmio, 1983, n°2). Desde o começo, a rivalidade se instaurou e foi importante para que os clubes desejassem sempre melhorar para o próximo embate. Vencer o adversário tornou-se questão de honra. Isso fez com buscassem cada vez melhores times. Como Damo (1998) demonstra com detalhes de dados, a rivalidade fez Grêmio e Internacional desenvolverem-se no campo esportivo e patrimonial. O Grêmio orgulhava-se do „Fortim da Baixada‟ e das „batalhas épicas‟ ocorridas lá, nas primeiras décadas do século XX. O Internacional inaugurou o Estádio dos Eucaliptos, em 1931, com capacidade para 10.000 assistentes, o dobro do que comportava o estádio do Grêmio. Logo depois, o Grêmio rebatia com a instalação de refletores na Baixada. Anos depois, em 1954, o Grêmio inaugurou o Estádio Olímpico, “o maior estádio privado do Brasil” (Histórias lustradas do Grêmio, 1983). Na década de 1960, o Internacional construiu o Estádio Beira Rio, consideravelmente maior que o Olímpico. Nos anos 1980, o Grêmio terminou o „Olímpico Total‟. No campo esportivo, o Internacional chegou, pela primeira vez, à supremacia regional, na década de 1940, conquistando uma longa sequência de vitórias no campeonato gaúcho. Com critérios de associação e de participação no time mais abertos que o Grêmio, o Internacional buscava os melhores jogadores das ligas subalternas de Porto Alegre, como a „Liga dos Canelas Pretas‟, cujos atletas jogavam em troca de salários ou „presentes‟. Isso serviu de motivação para que, em 1952, por iniciativa do presidente Saturnino Vanzelotti – mas sob protestos públicos e veementes de muitos associados (que inclusive se desligaram do clube) – o Grêmio, contratasse o negro e ex-jogador do Internacional Tesourinha (Coimbra e 9

Noronha, 1995; Damo, 1998). Com isso o Grêmio rompia com uma das últimas barreiras para sua entrada plena na era da profissionalização. Concomitantemente à participação de jogadores das classes populares, ocorria também a popularização e o crescimento do público identificado com os clubes (Damo, 1998). A paixão dos torcedores por seus clubes passou a ser um elemento importantíssimo para a compreensão das transformações do futebol brasileiro, a partir do final da primeira metade do século XX. O vínculo altamente emocional e intenso que os torcedores desenvolveram com seus clubes é do tipo participativo, engajado, político, vinculado à ética e à estética do Romantismo. Damo (2005) elabora, a partir do termo êmico „nação‟ (nação Rubro-Negra, Nação Tricolor, Nação Corinthiana, etc.), as torcidas como comunidades imaginadas de sentimento. Gremistas, colorados, flamenguistas, são paulinos e outros se imaginam como tal, compartilham linguagem, valores e imaginário sem precisarem se conhecer face a face, de forma semelhante ao que ocorreu na formação dos nacionalismos (Anderson, 2008). Os clubes são nações representadas pelos times dentro de campo e, mais importante, o traço distintivo de suas torcidas, como comunidades de sentimento, é a fidelidade clubística (ver Damo, 2005). Tal fidelidade garante a existência de um sistema estável de pertenças, o qual permite um fluxo afetivo e de jocosidades, conforme as vitórias ou derrotas do time dentro de campo (rivalidade), mediadas pelas distinções simbólicas dos clubes predominantes entre os torcedores (Grêmio, Fluminense, São Paulo, Cruzeiro de elite, dos brancos – Internacional, Flamengo, Corinthians, Atlético-MG, do povo, dos negros e pobres). Para poder fruir o espetáculo na plenitude dos fluxos emocionais e da sociabilidade do universo do futebol de espetáculo, é preciso pertencer e não se pode trocar de clube ao sabor de vitórias e derrotas. No conjunto, essas forças fazem com que os torcedores estejam dispostos a lutar (simbólica e, às vezes, fisicamente) por seus clubes, a se engajarem para promovê-lo e também para criticar e esbravejar contra aquilo com o que não concordam. A renda e o patrimônio dos clubes, no início do século XX, eram basicamente constituídos por mensalidades e doações de poucos sócios. A partir da convergência entre o profissionalismo e a popularização das torcidas, a renda dos jogos tornou-se a receita clubística mais importante. Os torcedores passaram a ser objeto de interesse dos dirigentes, visando ao progresso do clube, à desejada supremacia sobre o rival e à conquista de títulos. Se, portanto, os clubes adotam novos dispositivos de gestão e de geração de receitas (marketing), é, pelo menos em parte, porque torcedores e dirigentes querem ver seus times obtendo bons resultados dentro de campo, conquistando títulos, sendo motivados pelo 10

pertencimento clubístico (paixão) e pela rivalidade e não necessariamente apenas por uma imposição externa (da globalização, do marketing, etc.).

3.3 Desenvolvimento administrativo e expansão da torcida e das receitas (1960-1970)

A maioria dos trabalhos acadêmicos, que estudam a transformação do futebol brasileiro pela entrada de elementos empresariais em seu dia a dia, atribuem toda ou quase toda agência das mudanças à participação comercial da televisão e das empresas multinacionais no processo, na década de 1980. No entanto, diferente do que eles levam a pensar, desde a década de 1950 e especialmente nas décadas de 60 e 70, observa-se intensa atividade administrativa e comercial no Grêmio. Esta foi uma época marcada pela estruturação administrativa e pelo começo de um trabalho mais sistemático no sentido de aproximar, afetiva e financeiramente, os torcedores do clube.

3.3.1 Profissionalização administrativa

Um elemento marcante desse período é a crescente criação de cargos, funções e especializações esportivas e gerenciais no clube. A análise das fotos da equipe de futebol feitas logo antes das partidas, reproduzidas em “Histórias Ilustradas do Grêmio” (1983), mostra que, no começo, apenas os jogadores (que eram também sócios e dirigentes) apareciam. Nas décadas de 1930 a 1950, percebe-se a presença de jogadores, treinador e presidente. Na década de 1960, começam a aparecer nas fotos representantes de uma série de novas especialidades: assessor de futebol, roupeiro, preparador físico, vice-presidente do departamento de futebol profissional vice-presidente do departamento médico, massagista. Claramente iam surgindo maiores divisão e especialização do trabalho, conforme a competitividade (e a rivalidade) aumentava e o clube entrava na era da profissionalização. Em 1955, ocorreu um aumento impressionante no número de vice-presidências do clube, de duas passou para nove. Foi criado o cargo de superintendente administrativo, a quem cabia “supervisionar a execução dos planos administrativos traçados pelos diversos titulares dos cargos de confiança” (Histórias Ilustradas do Grêmio, nº5, p.29). Na década seguinte (1960), o número de vice-presidências chegou a 23, conforme a fonte oficial do clube pela “necessidade de ajustar a administração ao seu célere progresso” (Idem). Nessa mesma linha de „aumento de eficiência administrativa‟, em 1966, o cargo de superintendente 11

foi atualizado para o de gerente geral, para lidar com o “crescente número de funcionários” e “indispensável para o perfeito funcionamento de todos setores da agremiação” (Idem). No final da década de 1960, foi construído o Centro Administrativo no Estádio Olímpico e ocorreram diversas reformas administrativas, com a adoção de novas técnicas organizacionais. Até mesmo uma empresa de consultoria administrativa foi contratada, na gestão do presidente Flávio Obino de 1969/71, conforme narrado em “Histórias Ilustradas do Grêmio” (1983, n°5, p.27):

[c]ontratada uma empresa especializada em técnica de administração, todos os formulários foram padronizados segundo as tendências mais modernas, tendo inclusive os móveis encomendados de acordo com as prescrições do planejamento oficializado e sua distribuição ao diagrama aprovado. Uma nova nomenclatura ou classificação funcional foi implantada, estabelecendo atribuições escalonadas dentro de um organograma geral onde se fixavam todas as previsões de responsabilidade, criando uma perfeita engrenagem administrativa com as peças interdependentes ajustadas e dispondo de tal versatilidade que o rendimento passou a oferecer o máximo para quaisquer velocidades na tramitação exigida pelo expediente. Considerada a reforma administrativa como determinante de uma nova era organizacional para o clube, o Grêmio integrou-se completamente no futuro contratando os serviços de um computador para atendimento rápido, eficiente e correto de todas as necessidades de dados técnicos.

Tudo indica que, nessa época, um campo da administração (gestão) começava a surgir no Brasil e a migrar para o universo do futebol, como indica a existência de empresas especializadas em técnicas de administração, a atenção à padronização e à formação de uma „perfeita engrenagem administrativa‟. Há clara mediação da administração científica (Cochoy, 1998; Taylor, 1982) na forma de condução dos interesses do clube. Esse tipo de mediação é importante para que haja as predisposições necessárias para a crescente

especialização

administrativa, a qual, mais tarde e com a ajuda de agências adicionais, possibilitou a entrada do marketing no universo do Grêmio.

3.3.2 Geração de receitas

Diversos dispositivos para a arrecadação de fundos foram criados nesse período. O trecho a seguir, sobre a “Campanha dos Legionários”, ilustra esse tipo de ação, mostra o uso slogans, remete ao uso dos símbolos do clube, como o Mosqueteiro, inventado na época, com o objetivo de criar formas de interação com a torcida:

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“Um por todos e todos por um” foi o slogan que consagrou uma campanha destinada a angariar fundos para concluir o prolongamento final das arquibancadas gerais do estádio, conhecido por „volta olímpica‟. Em 1956, nasceu sob a invocação da máxima dos mosqueteiros e entusiasmo da coletividade gremista solidária com a direção do clube e da Comissão pró-Construção do estádio Olímpico, que a idealizara para reforçar o movimento financeiro da Grande Tômbola Popular criada, em 1951.(...) Os “Legionários da Curva Olímpica”, aos quais era atribuído título de reconhecimento por sua participação financeira no fechamento da chamada „ferradura‟ da praça de esportes, somaram milhares de adeptos... (Histórias Ilustradas do Grêmio, n°5, p.27)

Seguindo uma linha de ação que já vinha sendo praticada desde a década de 1910, o clube também continuou recorrendo ao aumento do número de sócios como forma de gerar receitas. Em 1957, desenvolveu a campanha chamada de „Sócios Olímpicos‟, com a criação de 500 vagas de sócios com “direito ao uso de carteiras especiais e de artísticos distintivos de ouro numerados (...) também a inscrição do nome e número correspondente no pórtico social do Estádio Olímpico após o pagamento de 60 contribuições mensais” (Histórias Ilustradas do Grêmio, 1983, n°5, p. 27). Nesse período, além das tradicionais „doações‟ que acompanham o clube, desde sua fundação, foi criado o “Bolão do Grêmio”. O bolão consistia em um sorteio, nos moldes das loterias, em que os torcedores compravam bilhetes numerados e, caso fossem sorteados, recebiam prêmios (em geral automóveis). Segundo relato feito em entrevista com dirigentes da época3, o Bolão do Grêmio chegou a ser a segunda mais importante fonte de receita do clube, ficando atrás apenas das receitas de bilheteria dos jogos. No final dos anos 1970, foram comercializados, pela primeira vez, espaços publicitários dentro do Estádio Olímpico, em placas publicitárias ao redor do campo de jogo, conforme relatou um vice-presidente de finanças da época. A ideia foi trazida pelo sobrinho de um dirigente que trabalhava com a comercialização de espaços publicitários (o qual depois fundou uma das maiores empresas de publicidade estática de Porto Alegre). Ex-dirigentes relatam que, no final da década de 1970, havia a preocupação de vender a camisa do Grêmio e que esforços foram feitos para criação de uma „lojinha‟ na Churrascaria Mosqueteiro, de propriedade do clube (outra fonte alternativa de geração de caixa diário). É importante notar que, nessa época (e até o final de década de 1980), não se falava em marketing ou até mesmo em „comercial‟. Os dirigentes responsáveis por pensar formas de gerar receitas para o clube eram do Departamento Finanças, formados em administração, contabilidade. As pessoas que „lidavam com o dinheiro‟ eram responsáveis não apenas por controlá-lo, como é comum em entidades com as quatro áreas administrativas consolidadas (produção, finanças, marketing e recursos humanos), mas também por buscar recursos para o 13

clube. Ex-dirigentes relatam que, constantemente, se viam confrontados com o problema de descobrir formas de aumentar as receitas e que cada nova permuta ou receita gerada era motivo de orgulho pessoal e de reconhecimento dos colegas.

3.3.3 Arregimentação de sócios e torcedores

A preocupação em aumentar o número de torcedores e de sócios é antiga. A rede de atores que moldam as formas de agir no clube vem mudando ao longo dos anos, mas muitos elementos permanecem os mesmos. No Grêmio, uma dessas atividades é a criação e a expansão dos consulados. O primeiro consulado foi criado em 1944 (Damo,1998) e, em 1957, aconteceu o primeiro “Congresso Regional de Cônsules”, na cidade de Lajeado (Histórias Ilustradas do Grêmio, n°5). O trabalho era parte das atividades do Departamento do Interior, órgão criado com o objetivo de estender a rede de consulados pelo estado do Rio Grande do Sul. No ano de 1958, as atividades desse departamento foram intensificadas, seus objetivos econômicos e de arregimentação de sócios eram claros:

Recebendo toda a cooperação dos demais membros da diretoria, ele também se engajou na campanha dos novos sócios, levando-a ao interior para o aumento do número de associados correspondentes. Organizou também a difusão da Revista do Grêmio obtendo, em todas as tarefas a colaboração dos Cônsules. (Histórias Ilustradas do Grêmio, 1983, n°5, p.27; ênfase do autor)

Note-se que, em 1958, o clube criou categorias alternativas de sócios como meio para adaptar a forma de associação às diferentes condições de potenciais associados. Também em 1958, há o registro de um Departamento de Divulgação com intensas atividades, com o fim de arregimentar torcedores, sócios e recursos financeiros, tendo como principal elemento a produção da revista do Grêmio: “O Mosqueteiro”, em um de seus vários relançamentos desde 1916. Houve igualmente a criação da Secção de Bairros, “destinada a arregimentar a torcida gremista e estimular seu entusiasmo e solidariedade nas competições esportivas, favorecendo a emulação e o progresso do quadro social”, com “[g]rande número de núcleos espalhados pelos diferentes bairros da cidade” com atividades nos moldes das atribuídas aos cônsules do interior (idem, p.28) Em 1963, ocorreu a mudança do emblema do Grêmio. A palavra „Foot-ball‟ que estava no centro do emblema foi substituída pelo nome „Grêmio‟, que se tornara usual para a designação do clube e do time. A fonte Histórias Ilustradas do Grêmio (1983, n°5, p.29) 14

informa que “diversos estudos foram realizados” para conferir “mais atualidade à denominação”. Interpretando o que foi escrito sobre esse fato, não parece um total disparate pensar que isso tenha sido feito como mais uma ação para facilitar identificação, aproximação e até arrecadação financeira, constituindo-se como precursora da gestão de marca, a qual apareceu, nestes termos, somente mais tarde, com a disseminação da disciplina de marketing. A fim de ilustrar a forte preocupação dos dirigentes em arregimentar torcedores, assim como o uso de dispositivos ousados para uma época em que ainda não se falava em marketing, relata-se a realização da “Primeira Cruzada Tricolor” que teve como objetivo “atingir todos os escolares com a mensagem do Grêmio”. Segundo “Histórias Ilustradas do Grêmio” (1983, n° 6, p.26), no ano de 1975,

[d]urante a semana comemorativa dos 66 anos de existência, o Grêmio promoveu gigantesca campanha promocional visando às crianças das escolas primárias de Porto Alegre. (...) A cruzada marcou época. A divulgação do Grêmio, com o sentido eminentemente educativo, em atraente material distribuído entre todas as escolas, não poderia ser melhor recebida. (...) O que deu bem a dimensão da iniciativa foi o número de crianças contempladas: 50.000. Todas receberam, junto com um folheto ilustrando as cores, farto material escolar representado por cadernos, lápis, réguas e outros objetos de uso dos colegiais, além de merendas. Não se tinha ainda notícia de empreendimento promocional de tamanha envergadura e de finalidade similar. (...) Paralelamente, foi instituído entre os escolares um concurso de composições, para estimular a capacidade criativa de cada um. Os melhores colocados recebem prêmios, inclusive uma bolsa de estudos no Colégio Luiz Dourado, oferecida pelo Vice-Presidente Hélio Dourado.

O termo „cruzada‟, com sua potencial referência às cruzadas da contrarreforma da Igreja Católica, na época medieval, talvez ajude a criar uma boa alegoria (Law, 2004) para a compreensão dos espírito dessa ação. Antes da disseminação das noções de estratégias de marketing (como segmentação e posicionamento) dentro do clube, já existia forte ímpeto na busca de formas de arregimentar mais e mais torcedores, com o uso de técnicas de promoção e divulgação bastante ousadas e de alcance expressivo. Os dados aqui trazidos oferecem uma noção suficiente sobre a rede de forças atuante no universo do Grêmio, depois da virada definitiva para a profissionalização. Práticas de refinamento administrativo e a busca de eficiência pelo aumento da especialização e da departamentalização estavam intensamente presentes desde, pelo menos, o começo dos anos de 1950. A preocupação em arrecadar fundos para o desenvolvimento tanto patrimonial (na época da fundação) quanto esportivo (especialmente na época do profissionalismo) acompanhou, desde o início, as atividades do clube. Diversos dispositivos foram usados, ao longo de sua história, para angariar receitas, com

engenhosidade e complexidade não 15

desprezíveis, especialmente em se considerando dimensão temporal. O desejo de divulgar e promover o clube também o acompanha desde a fundação. A virada para o profissionalismo, na década de 1940/50, e o surgimento de uma torcida de massa, na forma de uma comunidade imaginada de sentimento, fizeram com que os dirigentes cada vez mais procurassem desenvolver maneiras de aproximar os torcedores e de arrecadar fundos junto a eles, as quais se espalhavam pelo estado e pelo país. Os dispositivos de criação de atratividade para as atividades do clube podem surpreender aqueles que acreditam que foi só com o advento do marketing e com a entrada comercial da televisão que começaram a se desenvolver, no universo do futebol brasileiro, técnicas elaboradas e criativas para geração de receitas junto aos torcedores.

4 DISCUSSÃO E CONCLUSÕES

Os dados apresentados e as análises elaboradas conduzem a algumas reflexões e a problematizações em relação ao que vem sendo teorizado, sobre o processo de transformação do futebol brasileiro, a partir da circulação elementos associados ao „mercado‟. Primeiro, este artigo corrige a noção equivocada de que, apenas a partir da década de 1980, começou a ocorrer considerável circulação de elementos empresariais nos clubes de futebol brasileiros (Alvito, 2006; Gonçalves e Carvalho, 2006; Proni, 1998a e 1998b; Rodrigues e Silva, 2007 e 2009). Em geral, os estudos sobre o tema tomam, como ponto de partida, o famoso caso da criação do “Clube dos 13”, no ano de 1987. Momento em que ocorreu, pela primeira vez, a compra dos direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro, pela Rede Globo de Televisão. Os estudos revisados tendem a tornar irrelevante (sem agência) tudo o que aconteceu até esse período Na maioria dos casos, os trabalhos tomam o livro de Helal (1997) como ponto de partida. Tal trabalho constitui uma das primeiras pesquisas acadêmicas sobre o assunto no Brasil e um dos mais citados, no entanto apresenta uma série de elementos criticáveis, como a naturalização da visão dos dirigentes e da imprensa4, tomando-os como pressuposto sem o necessário questionamento. Pelos dados históricos de um caso concreto aqui relatados, notase que a transformação do futebol brasileiro começou a acontecer muito antes da década de 1980. Fica evidente que a noção de que o futebol no passado era “cercado por uma forma cultural, lúdica e popular, (...) uma forma de distração social, de cultivo do ócio e do tempo livre” (Rodrigues e Silva, 2009, p.18) ou uma atividade caracterizada pelo “caráter lúdico e pela centralidade de valores como a construção de laços afetivos e de identidade entre os 16

indivíduos” (Gonçalves e Carvalho, 2006, p.2), em cujo contexto as atividades referentes à visão empresarial, à lógica de mercado‟ e à profissionalização‟ entraram somente a partir dos anos de 1980, precisa de revisão. Segundo, a análise histórica, a perspectiva teórica da sociologia das associações (ou Actor-Network-Theory), tal qual ensinam Callon (1998), Latour (1987; 2005), Law (2004), permite propor uma perspectiva sensível à complexidade das forças atuantes no processo de transformação do futebol brasileiro. De forma geral, os trabalhos que estudam tais transformações atribuem as mudanças a elementos como a globalização e a nova ordem do futebol mundial (Alvito, 2006); o surgimento do marketing esportivo concomitante com a atuação de grandes empresas transnacionais do e no esporte (Proni, 1998a e 1998b); a introdução de características típicas do mercado como competição, profissionalização, eficiência (Gonçalves e Carvalho, 2006); a introdução da lógica de mercado e da consequente „ênfase por resultados‟ que “transforma as atividades em mercadorias” (Rodrigues e Silva, 2007 e 2009). Os dados expostos na sessão anterior permitem pintar um quadro um pouco diferente, no qual se notam as condições para que estes elementos empresariais (de mercado) fossem adquirindo presença no universo do futebol para além de sua própria força. Em outras palavras, torna-se possível sensibilizar-se para a rede de atores que deslocam a ação (Latour, 2005) no processo transformação do futebol brasileiro e na formação de mercados (Araujo, 2007; Callon, 1998; Geiger, Kjelberg e Spencer, 2012). Globalização dos mercados, interesses de empresas, e marketing são forças relevantes no processo, sem sombra de dúvidas. No entanto, questiona-se aqui a atribuição da totalidade da agência para esses elementos. Em vez de colocá-los como pressuposto da pesquisa, o estudo empírico sensível à rede de mediações que deslocam a ação em situações concretas e específicas pode ser usado justamente para entender melhor o que são e como se desenvolvem o capitalismo, a globalização, os mercados e o marketing. Como mostrado no decorrer do texto, muitas outras forças operaram, no futebol brasileiro (numa rede extensa no tempo e no espaço), para que a atual situação tenha se concretizado. Até mesmo forças anteriores ao próprio capitalismo ou que surgiram junto com ele, o formando, como a ética romântica (Campbell, 2005; Slater, 1997), constituem mediação importante no surgimento e na transformação desse universo. Como atribuir todas as mudanças que estão ocorrendo somente ao capitalismo, às empresas e seus interesses ou à globalização dos mercados, sem considerar a força subterrânea, intensa e necessária do romantismo amador, da rivalidade, em grande parte determinada pelo jogo (ritual agonístico), 17

da paixão dos torcedores e sua fidelidade clubística ad infinitum (Damo, 2005)? Nenhum destes elementos pode ser considerado fruto puro ou direto do capitalismo, dos mercados, da economia ou do neoliberalismo. Muito mais razoável é pensar que cada uma dessas forças ajuda a construir uma rede de mediações que torna fortemente possível os diversos atores presentes na rede, cada um sendo, ao mesmo tempo, fonte e alvo do conjunto de agências. Com o advento do profissionalismo, na década de 1940/50, a necessidade de recursos tornouse cada vez mais central, mas não (somente) pela avareza da classe dirigente ou por ser o capitalismo um “motor de produção de fim, que somente pode manter seu equilíbrio pelo crescimento contínuo” (Graeber, 2011, p. 492), mas por que, no contexto do futebol, em grande parte, se querem vitórias dentro de campo, para se ter orgulho do time, viver a glória das conquistas e gozar do rival. Agradecimentos aos professores Marlon Dalmoro (UNIVATES) e Rodrigo Castilhos (UNISINOS) pelas críticas e sugestões realizadas. REFERÊNCIAS

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Como Damo (2005) ensina, existem muitos futebóis: o jogado nas praças, esquinas (bricolado), o jogado nos colégios (escolar), os jogados nas várzeas (comunitário) e aquele com a presença de público assistente (espetacularizado). É sobre este último, o futebol marcado pela presença de um público assistente, que falaremos. 2 Mesmo quando há empate, uma possibilidade no futebol, é comum entre os torcedores e a mídia especializada determinar quem jogou melhor, quem merecia a vitória. Além disso, no médio prazo, no prazo dos campeonatos, sempre há apenas um campeão e vários derrotados. 3 As identidades dos dirigentes entrevistados são preservadas conforme a promessa feita a eles, devido à grande sensibilidade dos temas. Há muita dificuldade em se fazer etnografia e pesquisas em geral com as elites (Abolafia, 1998), refletindo a preocupação que dirigente e ex-dirigentes têm com o uso que será feito das informações por eles fornecidas . 4 Ronaldo Helal (1997), autor do estudo, era filho do presidente do Flamengo, George Helal, que foi um dos responsáveis pela criação do Clube dos 13 e um dos principais defensores da modernização do futebol brasileiro (Areias, 2009). Ao que tudo indica, Ronaldo Helal não conseguiu resistir a seu pertencimento clubístico, de parentesco e de classe, acabando por escrever, de forma bem posicionada, contra o que chamava

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de tradição (atrasada/problemática) e a favor da modernização através da profissionalização (solução). Em relação à imprensa, Helal expõe vários trechos de textos de jornalistas que tratam como evidência naturalizada da crise do futebol brasileiro e outros elementos, o que também é problemático. Seu livro, por exemplo, é prefaciado pelo jornalista Juca Kfouri, o que já diz algo sobre suas filiações e os compromissos de sua pesquisa.

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