Raul Rego: O Centenário do Resistente, Jornalista e Historiador

June 3, 2017 | Autor: I. Carneiro de Sousa | Categoria: Journalist, Portuguese revolution 1974, Historians, Anti-Fascist Movement, Raul Rego
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Cumpre-se este ano por Portugal com meia dúzia de conferências, mas muito mais esquecimento, apesar do inevitável selo dos CTT, o centenário do nascimento de uma das grandes legendas da resistência, do pensamento democrático e da luta constante, corajosa e tenaz pela completa liberdade de imprensa e de opinião em Portugal: Raul Rego. As comemorações são curtas e a sua projecção social escassa, enquanto a obra vastíssima de Raul Rego continua por reunir, publicar e estudar. Ao mesmo tempo, foi-se também perdendo o seu exemplo maior de jornalista, redactor, director de jornais de referência, Ministro da Comunicação Social no I Governo Provisório saído da revolução do 25 de Abril de 1974 e, dois anos mais tarde, secretário para a mesma área do primeiro Governo Constitucional de Portugal, lançando em 1976 as bases democráticas da institucionalização da liberdade de imprensa. Actividades cheias e importantes que não têm, lamentavelmente, inspirado as muitas teses académicas que agora se multiplicam pelos muitos cursos e departamentos em que se ensina uma comunicação social consagrada em domínio académico. Tantas vezes seguindo essa demorada tradição estrangeirada de copiar apressadamente

Raul Rego

lusofonias nº 14 | 07 de Outubro de 2013 Este suplemento é parte integrante do Jornal Tribuna de Macau e não pode ser vendido separadamente

COORDENAÇÃO: Ivo Carneiro de Sousa

TEXTOS: • Transmontano, Resistente e Democrata • Democrata e Socialista • O Jornalista que foi algumas vezes Político • Um Jornalista Historiador

Dia 21 de Outubro: China, Macau e Timor-Leste: História e Desenvolvimento

APOIO:

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Centenário do Resistente, Jornalista e Historiador

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o Centenário do Resistente, Jornalista R e Historiador Ivo Carneiro de Sousa

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umpre-se este ano por Portugal com meia dúzia de conferências, mas muito mais esquecimento, apesar do inevitável selo dos CTT, o centenário do nascimento de uma das grandes legendas da resistência, do pensamento democrático e da luta constante, corajosa e tenaz pela completa liberdade de imprensa e de opinião em Portugal: Raul Rego. As comemorações são curtas e a sua projecção social escassa, enquanto a obra vastíssima de Raul Rego continua por reunir, publicar e estudar. Ao mesmo tempo, foi-se também perdendo o seu exemplo maior de jornalista, redactor, director de jornais de referência, Ministro da Comunicação Social no I Governo Provisório saído da revolução do 25 de Abril de 1974 e, dois anos mais tarde, secretário para a mesma área do primeiro Governo Constitucional de Portugal, lançando em 1976 as bases democráticas da institucionalização da liberdade de imprensa. Actividades cheias e importantes que não têm, lamentavelmente, inspirado as muitas teses académicas que agora se multiplicam pelos muitos cursos e departamentos em que se ensina uma comunicação social consagrada em domínio académico. Tantas vezes seguindo essa demorada tradição estrangeirada de copiar apressadamente teses e teorias longínquas, pasmadas pelos sonantes títulos e passageiras modas académicas forasteiras, esquecendo (mal) e estudando pouco (o que é pior) as realidades sociais portuguesas e a sua história. E Raul Rego tem um lugar mais do que destacado na história contemporânea da imprensa portuguesa, pelo que uma dessas muitas escolas ou departamentos de comunicação já deveria ter compilado a sua obra não apenas para que conste, mas para que o exemplo seja reflectido, rigorosamente estudado, assim se aprendendo com quem verdadeiramente sabe. O esquecimento de muitas das grandes figuras da resistência e da oposição democrática portuguesa é, no mínimo, assustador. Na verdade, tirados esses habituais heróis e mitos de descobridores e afins com que se continuam a baptizar avenidas, pontes e edifícios governamentais, a memória colectiva parece persistir em ser curta e em exornar uma ideia de nação que resiste em se democratizar. Não se exagere, porém, já que, por benemérita iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa, uma pequena rua na então freguesia da Charneca (desde 2012 integrada na nova freguesia de Santa Clara) recebeu o nome de Raul Rego a 3 de Maio de 2005, no preciso Dia Mundial da Liberdade de Imprensa. Rua estranha, excessivamente irregular e curvilínea (não como a sua vida de uma rectidão exemplar), naturalmente menor como as suas outras curtas vias vizinhas em que se recordam figuras como Tito de Morais, Bernardo Marques, Carlos Aboim Inglez ou Luís Sá (não vale a pena fazer qualquer sensacional inquérito de opinião para se verificar que estes nomes se encontram actualmente quase esquecidos...). Hoje, contam-se já meia dúzia de ruas espalhadas pelo país com o nome de Raul Rego, incluindo uma avenida na Amadora. Lugares da memória ainda assim muito insuficientes para preservar o legado político e intelectual ímpar que nos foi deixado por um transmontano que, nascido pobre em aldeia esquecida, se tornaria numa das mais épicas figuras do combate pela democracia em Portugal.

Transmontano, Resistente e Democrata

aul d’Assunção Pimenta Rego nasceu na aldeia de Santo André de Morais, no concelho de Macedo de Cavaleiros, a 15 de Abril de 1913. A sua família era, como a maioria, de humildes transmontanos em terra dura e quase esquecida: o seu pai foi sapateiro e a sua mãe costureira. Nasceu três anos depois da implantação da República, quando muitos transmontanos recuperavam ainda das incursões monárquicas de Paiva Couceiro (1861-1944) entre 1911 e 1912 com as suas conquistas e derrotas em Chaves, prelúdio dessa breve Monarquia do Norte, proclamada no Porto em 1919 para durar vinte e cinco dias. Apesar do investimento político e administrativo da República nos distritos, a província agora com a designação de Trás-os-Montes e Alto Douro foi-se mantendo, consagrou-se até na reforma administrativa de 1936, em conformidade com a célebre Constituição de 1933 do Estado Novo, mas seria extinta na revisão constitucional de 1959. Não renasceu como se propunha no falhado referendo da regionalização de 1998. A província ficou na linguagem comum e ainda mais entre a forte tradição de identidade territorial e cultural dos transmontanos que, pese embora a muita generosidade da primeira República, pobres e isolados continuaram a ser. Em bom rigor, Raul Rego nasceu pobre num Portugal mais do que pobre. Graças ao muito pormenorizado recenseamento geral da população, realizado em Dezembro de 1911, mas publicado no preciso ano em que o nosso novo transmontano nascia, em 1913, a população total do país chegava aos 5,9 milhões de habitantes, mais 300.000 mulheres do que homens, registando-se também exactas 59.661 saídas de emigrantes que, sobretudo do Norte, se dirigiam maioritariamente para o Brasil e os Estados Unidos. O recenseamento encontra 4.478.078 analfabetos (1.936.131 homens e 2.541.947 mulheres), 75,7% da população – uma das piores taxas europeias à época –, cerca de 500 médicos, uma mortalidade infantil à roda de 15% (hoje é de 3%), mais de 60% de camponeses, à volta de 3.500 telefones em Lisboa, 1.500 no Porto, mais uns 1.000 espalhados pelo resto do país. Descendo na escala territorial, os dois distritos de Bragança e Vila Real que formavam a província de Trás-os-Montes e Alto Douro reuniam 437.571 habitantes, exibindo uma densidade populacional de 49,6/Km2, apenas acima da Beira Baixa (Castelo Branco e Guarda) e do Alentejo (Beja, Évora e Portalegre). Na escala ainda mais pequena de Macedo de Cavaleiros,

o concelho natal de Raul Rego, viviam 20.917 pessoas em que 7.946 homens e 9.174 mulheres eram analfabetos, acima da percentagem nacional ao atingir 81,8%. Estreitando ainda mais a escala para chegarmos à micro-história (especialidade rara nas universidades portuguesas), a freguesia de Santo André de Morais que viu nascer o nosso futuro jornalista tinha 215 fogos, 896 habitantes, mas, contrariando a tendência geral, ligeiramente mais homens, 455, do que mulheres, 441. O recenseamento pormenoriza que moravam na aldeia 108 pessoas vindas de fora, mas apenas 4 não tinham nascido no distrito de Bragança, enquanto os 6 habitantes classificados como estrangeiros eram todos espanhóis. A população distribuia-se por 289 homens e 263 mulheres solteiros, arrolando-se 141 homens e 143 mulheres casados, enquanto os viúvos eram 25 e as viúvas 35. A taxa de analfabetismo era não apenas significativamente superior à nacional, mas também à do concelho de Macedo de Cavaleiros: 83,2% somando 367 homens a 379 mulheres. Números mais do que esclarecedores, descobrindo-se nesta derradeira escala a verdadeira paisagem social dessas pobres comunidades rurais, isoladas, analfabetas, quase imóveis em que Raul Rego veio a esse mundo miserável e esquecido que era Trás-os-Montes em 1913. As crianças e os jovens nascidos nestas aldeias rurais transmontanas nas primeiras décadas do século XX tinham muito poucas possibilidades de mobilidade e promoção sociais. A maioria reproduzia os trabalhos agrícolas e, menos, artesanais herdados dos seus pais, outros mais decididos tentavam a fugir à miséria através da emigração que, de acordo com o recenseamento de 1911, tinha já atraído 65 habitantes de Morais, todos colocados na tabela estatística do masculino sexo. Havia, porém, uma ínfima percentagem de rapazes adolescentes que encontrava oportunidades de instrução, mais o indispensável pão, cama e refúgio nos muitos seminários espalhados pelo país. A República tinha herdado um clero abundante de 5.953 sacerdotes, mais de 2.000 alunos em seminários, muito mais ainda problemas quando decidiu (e bem) a separação da Igreja e do Estado. A frequência dos seminários como, em geral, a frequência da missa e das demais obrigações católicas era muito mais intensa a norte do que no sul onde crescia a indiferença religiosa, sendo também muito mais rural do que urbana. A concorrência de outras figuras mais laicas e abertas a outros ideários, como os médicos e profes-

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II

Segunda-feira, 07 de Outubro de 2013 • LUSOFONIAS

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À sores, era rara nos meios rurais a que mal chegavam os cuidados médicos e a instrução primária, pese embora os impressivos investimentos da I República em educação pública. Aos 11 anos, em 1924, Raul Rego seguiu com delonga para o Seminário das Missões do Espírito Santo, em Viana do Castelo. Estudou durante 12 anos, concluiu Teologia em 1936, mas decidiu desistir da ordenação sacerdotal. A sua vida de seminarista não aparece recordada na sua obra com a excepção de uma discussão mais acesa com um tal padre Clemente que, já no final da sua formação, o acusou, se calhar com razão, de “não ter espírito eclesiástico”. A ausência de recordações de Raul Rego sobre a sua demorada passagem pelo seminário não nos faz rigorosamente falta. Temos memórias esclarecedoras sobre este tema que bastem nessa obra-prima da literatura portuguesa do século XX que é a inesquecível Manhã Submersa, de Virgílio Ferreira, livro publicado em 1954 para nos recordar a adolescência difícil do autor no Seminário do Fundão representada nessa figura do seminarista António dos Santos Lopes, mais conhecido por Borralho, oriundo de pobre família beirã e obrigado contra vontade a estudar para o padre que nunca quis ser, e não foi como Raul Rego. Nas andanças do seminário, felizmente, o jovem Rego conheceu uma das figuras que mais o haveriam de influenciar e constantemente apoiar mesmo nos mais penosos períodos de repressão e perseguição salazaristas: o padre Alves Correia (1886-1951). Progressista, resistente, uma das primeiras vozes a colocar a questão da emancipação das colónias portuguesas, democrata do MUD, o padre Joaquim Alves Correia foi obrigado a um exílio nos Estado Unidos, onde viria a falecer, por ter escrito no jornal A República, a 23 de Outubro de 1945, um contudente artigo anti-salazarista intitulado como de-

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varanda do

República,

distinguem-se, entre outros,

veria ser O Mal e a Caramunha. Foi um dos muitíssimo raros sacerdotes católicos que, como o bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes ou o padre Abel Varzim, tiveram a coragem moral de desafiar o totalitarismo do Estado Novo no seu período de mais agressivo esplendor. Com o padre Alves Correia partilhava Raul Rego a crítica a uma Igreja Católica portuguesa de hierarquia cúmplice da ditadura, mas que não o levou a romper intelectualmente com o cristianismo e os seus valores éticos, encontrando mesmo na leitura franciscana do Cristo pobre e solidário com os oprimidos uma referência que foi sempre convocando para o seu pensamento político de resistente, democrata e socialista. Voltemos a seguir mais de perto a biografia de Raul Rego. Concluído o seminário, excluída definitivamente a vida sacerdotal, emigra por 1937 para Lisboa sem ainda saber que muitos transmontanos, passada a II Guerra Mundial, passariam a procurar na capital as oportunidades de trabalho que a sua terra

Raul Rêgo

e

Gustavo Soromenho

Raúl Rego

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Vasco

da

Gama Fernandes - 26

de

Abril

de

1974

pobre e isolada lhes negava para, depois, nos anos de 1960 saírem aos milhares para a emigração europeia tanto como alguns milhares de jovens se veriam recrutados, infelizmente com sortes diferentes, para as forças armadas cada vez mais mobilizadas para as guerras coloniais. Por Lisboa, Raul Rego foi ganhando a vida como explicador de Latim e Francês, línguas que dominava com especial competência. Logo a seguir, com a solícita intermediação do padre Alves Correia, entra como professor para o Colégio Moderno, fundado e dirigido pelo Dr. João Lopes Soares (1878-1970), antigo deputado, governador civil e Ministro das Colónias durante a I República, mas bem mais conhecido por ter sido progenitor do nosso ex-presidente Dr. Mário Soares que, dispensando apresentações, foi aluno de Raul Rego. Activo, irrequieto, ensinando o seu Latim e a Administração Pública dos outros, organizou com os alunos um jornal escolar que se chamava singela e quase puerilmente Gente Moça.

Nas suas páginas publicou um artigo que, em 1939, as vigilantes autoridades do regime consideraram uma ofensa à religião. Foi afastado do Colégio por intervenção directa do Ministro da Educação, António Faria de Carneiro Pacheco (1887-1957), professor de Direito, presidente da Comissão Executiva da União Nacional, autor da reforma que impôs a ideologia do Estado Novo a todo o ensino, fundador da Mocidade Portuguesa, mas afastado da posição ministerial a 28 de Agosto de 1940 quando a sua aberta simpatia pelo nazismo embaraçava a neutralidade (que alguns adjectivam de colaborante...) de Portugal durante o aflitivo conflito mundial. Para voltar a sobreviver, Raul Rego retorna às explicações de Latim e inicia uma carreira de jornalista profissional que já se tinha começado a debuxar com a sua colaboração, desde 1937, na Seara Nova dirigida por esse outro jornalista, também professor e democrata que foi Luís da Câmara Reys (1885-1961). Incomodado, contudo, com a censura sistemática dos seus artigos passa a trabalhar para a Reuters a convite de Dinis de Melo Manuel Bordalo Pinheiro (1892-1971), igualmente jornalista, administrador, procurador à Câmara Corporativa e director do Jornal do Comércio, filho desse maior caricaturista português que foi o sempre actual Rafael Bordalo Pinheiro. Na Reuters, Raul Rego traduzia o noticiário chegado em inglês para um português que escrevia com especial elegância. Depois, em 1942, novamente com a intercessão do padre Alves Correia, passa para os quadros do Jornal do Comércio. Colabora muito activamente na organização do Movimento de Unidade Democrática (MUD), formado a 8 de Outubro de 1945, mas é preso pela polícia política no final desse ano, a primeira das muitas prisões, duros interrogatórios

A Luta

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num cartoon retirado do jornal

LUSOFONIAS • Segunda-feira, 07 de Outubro de 2013

III

As prisões foram-se sucedendo. A 13 de Fevereiro de 1965, atraídos para uma enganosa cie miseráveis sevícias que haveria de sofrer. Em lada, Humberto Delgado e a sua brasileira se1948, dirigiu os serviços de imprensa da cam- cretária, Arajaryr Campos, são traiçoeiramente panha do general Norton de Matos (1867-1955) assassinados por um grupo de agentes da PIDE/ que, preparando-se para concorrer às eleições DGS perto da fronteira espanhola de Villanueva presidenciais de 1949, acabaria por desistir face de Fresno, sendo os seus corpos desfigurados, à falta de liberdade e à previsão de maciças regados com ácidos e ocultados. A 9 de Setemfraudes. Em 1958, Raul Rego coloca-se ao lado bro de 1965, quando se dirigia a Badajoz para da candidatura de Humberto Delgado (1906- participar nas tardias homenagens fúnebres a 1965), coordenando também os trabalhos com a Humberto Delgado, Raul Rego volta a ser preso imprensa e acompanhando a campanha com que juntamente com Mário Soares, Abranches Fero General sem Medo galvanizou os portugueses. rão, Pires de Lima e Catanho de Meneses. A sina Mais tarde, em 1959, entrou para a redacção do mais do que repressiva continuou: para os cárDiário de Lisboa a convite do seu director, Nor- ceres da PIDE seguiu quando, em 1969, em ediberto Lopes, conciliando durante algum tempo ção do autor, publicou um livro corajoso, Para trabalho matinal para o Comércio e vespertino um Diálogo com o Sr. Cardeal Patriarca, denunno DL. ciando as muitas conivências entre a ditadura Volta a ser preso em 1961 quando subscreve e, à frente da Igreja Católica portuguesa, o purcom outros resistentes o Programa para a Demo- purado e mais do que conservador príncipe que cratização da República. Encarcerado ao lado da foi D. Manuel Gonçalves Cerejeira (1888-1977), cela em que se encontrava também preso desde muito demorado cardeal patriarca de Lisboa en1960 Agostinho Neto, Raul Rego guardou deste tre 1929 e 1972. Em Outubro de 1969, durante a repressivo evento uma memória magoada que campanha das eleições legislativas, a polícia poo foi sempre acompanhando ao longo da vida: lítica atira-se a outro livro de Raul Rego, apreenviu-se interrogado e agredido cobardemente por dendo a edição da sua Justiça e Política. Poucos um esbirro da PIDE chamado Augusto Pires, um meses depois, a 17 Fevereiro de 1970, é colocatipo de Bragança, um conterrâneo. Era demais: do em residência fixa por tempo indeterminado um transmontano a esbofetear um outro trans- ao ser acusado de publicar um artigo contra a montano que nem guerra colonial na revissequer se podia ta espanhola “Cuadernos defender. Muitas para el Diálogo”. vezes Raul Rego O ano seguinte de 1971 Rego (...) decidiu imprimir confidenciou que é ainda mais marcante não conseguia a sua A República com um enorme na vida política e intesentir ódio ou railectual de Raul Rego. va por essa gen- rodapé na página de rosto em que Entra na Maçonaria onde te pequena da haveria de se alcandorar, polícia política entre 1988 e 1990, à mais se lia quase triunfalmente: da ditadura, mas elevada posição de GrãoEste jornal não foi visado apenas cristã co-Mestre do Grande Orienmiseração. Com te Lusitano. Muito signipor qualquer comissão de censura ficativamente, o nome esta precisa excepção para esse simbólico que escolheu homem violento, durante a sua iniciação repressivo, codesvenda o fascínio que barde, vindo de Trás-os-Montes para perseguir sempre cultivou pela civilização do Renascioutros transmontanos íntegros e, simplesmen- mento: Erasmo, o príncipe dos humanistas eute, livres, pelo que chegou mesmo a concluir ropeus. Coleccionador dos seus livros, incluindo sobre este dorido episódio de perseguição que raridades quinhentistas, nascido Herasmus Gerse Jesus Cristo fosse transmontano também não ritszoon, mas assinando no seu ciceroniano laperdoaria. Por estes anos iniciais da década de tim Desiderius Erasmus Roterodamus, Raul Rego 1960, Raul Rego não era apenas um republica- admirava em Erasmo de Roterdão (1466-1536) o no e um democrata, mas encontrava-se já com- cultivado humanismo cristão, o profundo irenisprometido e identificado com a reconstrução de mo e a ironia crítica do Laus Stultitiae, o céleuma oposição socialista na tradição democrática bre Elogio da Loucura, editado originalmente em europeia. No entanto, apesar destas assumidas 1509. Apaixonou-se intelectualmente, por isso, identidades políticas, difíceis de defender nes- ainda mais pela figura do humanista português ses tempos amordaçados, continuava a sentir- que, na cidade de Basileia, em 1534, conviveu, -se sempre e, antes do mais, um transmontano, estudou e se tornou amigo íntimo de Erasmo proidentidade maior que não escondia sequer no curando difundir em textos, crónicas, cartas e seu pouco disfarçado sotaque. Homem extrema- tratados as suas exemplares ideias renascimenmente culto e ainda mais lido, Raul Rego era por tais: Damião de Góis (1502-1574). Incrivelmente este período um dos mais importantes bibliófilos para os nossos valores actuais (em rigor, para portugueses, reunindo uma das mais impressi- quaisquer valores minimamente sérios...), Raul vas bibliotecas privadas cheia de livros raros, Rego seria novamente preso e violentamente inincluindo as preciosidades de arcanos incunábu- terrogado pela PIDE quando, em 1971, prefaciou los e tesouros impressos no século XVI, regatea- e publicou em esmerada leitura paleográfica O dos em contínuas visitas pelos alfarrabistas do Processo de Damião de Góis na Inquisição. Para Bairro Alto. Mas a sua biblioteca estava mais do as vigiadas concepções de memória colectiva da que carregada de primorosas edições dos gran- ditadura então em marcelista continuidade, esdes livros desses escritores referenciais nascidos tudar as horrorosas perseguições da Inquisição transmontanos entre granitos e folares, carva- era uma interdita subversão que incomodava lhos e alheiras, giestas agrestes e mãos cale- um regime habituado a uma história única. Em jadas: de Guerra Junqueiro a Trindade Coelho, contraponto mais feliz, é também neste agitado passando pelo seu contemporâneo Miguel Torga ano de 1971 que Raul Rego abraça o jornal que o para se multiplicar fascinado na prosa única de iria consagrar como grande arauto da resistência Camilo. As agressões desse pequeníssimo agen- democrática e da liberdade de imprensa: é conte da então DGS (como o marcelismo passou a vidado para a redacção de A República pelo seu designar a mesma e exacta PIDE) eram, afinal, seu director Carvalhão Duarte, assim deixando a excepção que confirmava a regra do ser trans- pouco depois de trabalhar no Diário de Lisboa. montano vazado em solidariedade telúrica e hu- Logo no ano seguinte, um aumento de capital da milde coragem. sociedade proprietária do jornal trás para a sua < CONTINUADO DA PÁGINA ANTERIOR

IV

Segunda-feira, 07 de Outubro de 2013 • LUSOFONIAS

administração Mário Soares, Gustavo Soromenho e o próprio Raul Rego. Chega também uma nova redacção e vários jornalistas como Vítor Direito, João Gomes, Afonso Praça, Assis Pacheco, logo depois, Mário Mesquita, Arons de Carvalho, Jaime Gama, António Reis e Álvaro Guerra. A República torna-se jornal de referência, as suas edições chegam aos 15.000 exemplares diários e a coluna, logo a seguir editorial, de Raul Rego, intitulada Momento, transforma-se em muita lida tribuna tanto da oposição como do prenúncio do fim do regime. Nesta altura, assistindo diariamente à censura dos seus textos, proíbidos, cortados e retalhados pelo lápis azul do visto do Exame Prévio (como se passou cosmética e mais adocicadamente a designar desde 1972 o anterior mais bruto do visado pela censura), correndo a par com a sucessiva apreensão dos seus livros, Raul Rego passou a cultivar o muito polido gesto de colocar pessoalmente na caixa do correio da residência do Presidente do Conselho, Marcelo Caetano, os seus artigos jornalísticos censurados (perdão, visados) e os seus livros proíbidos com educada dedicatória, mas não existe a completa certeza se o destinatário alguma vez leu estes oferecidos textos... Se o tivesse feito, encontraria com data de 1973 esse proíbido livro que Raul Rego intitulou simplesmente Continuidade para fazer o rigoroso diagnóstico da chamada evolução na continuidade com que o marcelismo continuou a empurrar o país para um complicado beco sem saída misturando guerras coloniais e repressão interna, subdesenvolvimento e conservadorismo social, ausência de liberdades e direitos cívicos, muito isolamento, afinal, apesar dessa ideologia propagando a vocação universalista de um Portugal multi-racial. O regime do Estado Novo, mesmo na versão marcelista das conversas em família, foi-se desmoronando graças também a homens como Raul Rego. Não admira, por isso, que nas vêsperas da Revolução, a 15 de Abril de 1974, em conspirativa reunião do Movimento das Forças Armadas em casa de Simões Teles, reunindo Vasco Gonçalves, Vítor Alves, Almada Contreiras, Franco Charais, Pedro Lauret e Vítor Crespo, procurando concertar uma lista de nomes para um futuro Governo com António de Spínola, os escolhidos governamentáveis seriam precisamente Raul Rego, mais Miller Guerra e Pereira de Moura. Dias a seguir, Rego aparece mesmo como um dos raros civis a ser informado do 25 de Abril ainda em vésperas da eclosão do movimento. Não hesitou e, na manhã do dia da Revolução, ainda envolta em incertezas, decidiu imprimir a sua A República com um enorme rodapé na página de rosto em que se lia quase triunfalmente: Este jornal não foi visado por qualquer comissão de censura. Três dias depois, quando se concretiza o regresso de Mário Soares do exílio, após concorrido comício na estação lisboeta de Santa Apolónia, o líder do ainda recente Partido Socialista encontra-se com o general Spínola. Depois de conversa famosa e difícil em que Soares exigiu a entrada do Partido Comunista Português no governo sob pena de recusar qualquer posição ministerial, Spínola informa-o de ter convidado Raul Rego para vir a ser primeiro-ministro. Surpresa de Mário Soares, imediatamente adiantando que, sendo Rego militante do PS, o partido ainda haveria de decidir a sua colaboração. Como bem se sabe, o director de A República nunca chegeria a ser primeiro-ministro, assumindo a 15 de Maio o ministério da Comunicação Social em governo dirigido por Adelino da Palma Carlos que duraria menos de dois meses, caindo a 11 de Julho de 1974. Episódios rápidos, vividos em sedenta, mas agitada, liberdade em que logo se destacou o jornalista que nunca quis ser um dirigente político, preferindo somente ser um devoto e muito fiel militante mais do que fundamental do novo Partido Socialista.

lusofo

Democrata e Socialista N

a verdade, convém recordar: existiu um muito velhinho Partido Socialista Operário Português (PSOP) fundado em 1875 por Azedo Gneco, José Fontana, Nobre da França e pelo muito referencial Antero de Quental. No entanto, o partido teve sempre pouca influência política e social cada vez mais mobilizada nos meios urbanos pelo Partido Republicano Português. Por isso, este primeiro Partido Socialista passou sem grande autonomia pelas vicissitudes da I República e, depois da implantação da Ditadura Militar, em 1926, foi-se dissolvendo após a realização do seu quarto congresso, em Coimbra, em 1933. Com efeito, no contexto da reorganização da oposição à ditadura durante a Segunda Guerra Mundial, descobrem-se jovens socialistas saídos das lutas académicas de 1927-31 que organizam, em 1942, o Núcleo de Doutrinação e Acção Socialista e a União Democrato-Socialista, de cuja fusão resulta em 1944 a União Socialista em que se destacam José Magalhães Godinho, António Macedo e os irmãos Cal Brandão. O que não impediu neste período a proliferação de variados grupúsculos socialistas: documenta-se a organização de um Partido Socialista Independente, fundado em Coimbra, em 1943; existiu um breve Partido Trabalhista criado por 1945; apareceu também em 1946 uma Juventude Socialista Portuguesa; criou-se em 1947 um Partido Social Operário, dirigido por José de Sousa, um antigo dirigente do Partido Comunista Português; noticiando-se ainda tentativas de reconstrução do velho Partido Socialista em torno das ideias cooperativistas de António Sérgio. Muitos destes socialistas tanto organizados como independentes colaboram muito activamente na fundação em 1945 do Movimento da Unidade Democrática (MUD) que contou com a decidida mobilização de Raul Rego. A 1 de Maio de 1947, procurando unir os resistentes que se inspiravam nos ideários do socialismo democrático, António Sérgio profere uma célebre “Alocução aos Socialistas”, apelando à acção unitária e à organização política contra a ditadura e pela democracia. O que resultaria, em 1949, com a colaboração novamente de Raul Rego, na formação do Directório Democrato-Social anima-

onias

do precisamente por António Sérgio, mais Jaime Cortesão (regressado do exílio a Portugal) e Mário Azevedo Gomes que, velhos republicanos, eram à época conhecidos pelos Barbas. Em 1953, ainda sem a participação de Raul Rego, organiza-se a Resistência Republicana e Socialista por Mário Soares, Piteira Santos, Gustavo Soromenho, Ramos da Costa, quase todos expulsos ou saídos em ruptura com o Partido Comunista, e Manuel Mendes, este último vindo da União Socialista. Esta Resistência recebe prontamente a adesão dos outros unionistas socialistas como José Ribeiro dos Santos, Teófilo Carvalho Santos, José Magalhães Godinho, Eurico Ferreira e Fernando Homem de Figueiredo. Três anos mais tarde, em 1956, dá-se o cruzamente dos dois movimentos quando, a convite de Adão e Silva, o Directório acolhe formalmente no seu seio Mário Soares como representante da Resistência Republicana e Socialista, rapidamente se concretizando a demorada colaboração de Raul Rego ao longo processo que, passando por diferentes formas organizativas, viria a conduzir à fundação em 1973 do Partido Socialista. Muito antes, a 6 de Outubro de 1957, realizava-se o I Congresso Republicano em Aveiro, presidido por António Luís Gomes, o último sobrevivente dos militantes republicanos que integraram o Governo Provisório da República Portuguesa. O alargamento então do Directório Social-Democrata a personalidades como Acácio Gouveia, Artur Cunha Leal, Carlos Sá Cardoso, Carlos Pereira, comandante Moreira de Campos ou Nuno Rodrigues dos Santos faz-se naquele mobilizador contexto da preparação da campanha presidencial de Humberto Delgado de 1958, o qual, porém, desvalorizava as muitas cartas e petições que o movimento dirigia a Salazar, ao Presidente da República e ao governo do regime, processo que o general considerava apenas a pequena guerra dos papéis. Posteriormente, com a derrota eleitoral de Delgado e o aumento da repressão política, o Directório passa em 1963 a Acção Democrato-Social, promovendo algumas acções de formação cívica e ainda mais exposições e protestos inconsequentes dirigidos ao Pre-

3.ª

edição do jornal

sidente da República e ao Presidente do Conselho. Em busca de uma actividade política mais consequente e de maior ressonância internacional, em 1964, na cidade de Genebra, Mário Soares, Tito de Morais e Francisco Ramos da Costa fundam a Acção Socialista Portuguesa (ASP) que desenvolve de imediato acções de sensibilização cívica e de propaganda internas, procurando também denunciar entre partidos socialistas e social-democratas europeus a difícil situação portuguesa. Em Maio de 1967, a ASP passa a editar o jornal Portugal Socialista, impresso em Roma e distribuído clandestinamente em Portugal. Contudo, no ano seguinte, em 1968, Mário Soares é deportado para S. Tomé por decisão de Salazar, o que muito limitou a circulação interna organizada da oposição socialista. Seria libertado ainda em Novembro desse ano, mas já por decisão de Marcelo Caetano que, após a célebre hematomática queda de Salazar da cadeira, a 3 de Agosto, seguida de doença grave, tinha assumido a presidência do Conselho, marcando eleições legislativas para 26 de Outubro de 1969, as primeiras (imagine-se..) em que as mulheres portuguesas (na verdade, apenas algumas...) foram autorizadas a votar. Uma oportunidade que a Acção Socialista decide não desperdiçar. Assim, o grupo realiza uma convenção no Porto, a 31 de Maio, cuja declaração final, datada de 1 de Junho, é assinada por António Macedo, Salgado Zenha, Mário Soares, Raul Rego, Teófilo Carvalho dos Santos e Vasco da Gama Fernandes. Participam também em 1969 no II Congresso Republicano, novamente promovido em Aveiro devido ao prestígio local e nacional de Mário de Sacramento, reunião muito concorrida em que Raul Rego defende publicamente uma tese importante sobre o fim da censura e a liberdade de imprensa. Apesar desta imagem de união de todas as forças e personalidades da oposição, a Acção Socialista entende concorrer com listas próprias às eleições. Promove, por isso, a Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (CEUD) em concorrência com a Comissão Eleitoral

República

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de

25

de

Abril

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1974 - Capa,

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Democrática (CED) mais controlada pelo Partido Comunista, mas apresentando somente listas formais nos cículos de Lisboa, Porto e Braga, já que saíria gorada a organização de uma lista pelo círculo de Moçambique, cujos principais candidatos, António Almeida Santos, Carlos Adrião Rodrigues, Eugénio Lisboa e Rui Knopfli, foram rejeitados pelas autoridades com o argumento de não fazerem prova de serem portugueses. Apesar da CEUD ter conseguido incluir ainda candidatos oriundos do catolicismo progressista, como  Francisco Sousa Tavares  e  Sophia de Mello Breyner Andresen, e da oposição democrática monárquica, como Gonçalo Ribeiro Telles, os resultados eleitorais, muito vigiados e manipulados, seriam fracos, apenas superiores no círculo do Porto aos oficialmente atribuídos à CED, mas tudo muito atrás da esperada vitória total da Acção Nacional Popular (ANP), o novo

nome com que o marcelismo procurava apresentar o partido único do regime, a tristemente célebre União Nacional. Em 1970, a repressão política recrudesce e Mário Soares é forçado a exilar-se no estrangeiro, assim possibilitando o reforço das relações internacionais da ASP que é formalmente admitida na Internacional Socialista no seu Congresso de Viena, em 1972. Na frente interna, os socialistas promovem, em 1972, a já assinalada reorganização e modernização do jornal A República e conseguem a definitiva legalização da Cooperativa de Estudos e Documentação (CED) que, criada em 1969, espécie de grupo de pensamento da ASP, vê os seus estatutos aprovados pelo então Ministro da Educação, José Veiga Simão, através da intermediação de um dos membros da CED, José Ribeiro dos Santos, na altura Director dos Serviços de Ciência da Fundação Calouste Gulbenkian. Outras cooperativas culturais com forte influência da ASP surgem, em 1970, no Porto e, em 1973, em Coim-

O Jornalista

bra. A partir daqui, a história é mais conhecida: a 19 de Abril de 1973, a ASP transforma-se em Partido Socialista no Congresso de Bad Münstereifel, na Alemanha, contando-se entre os seus fundadores com o nosso Raul Rego que, retido em Portugal, logo participa no III Congresso Republicano e da Oposição Democrática, de novo em Aveiro, depois integrando as listas do MDP/ CDE em que se encontravam também comunistas e muitos democratas independentes, assim se gerando uma frente unitária a que não será provavelmente alheio o exemplo francês quando, em 1973, surge o programa comum entre o Partido Comunista e o Partido Socialista franceses, levando no ano seguinte o líder socialista François Miterrand a obter 49.2% dos votos na segunda volta das eleições presidenciais que elegeram à justa Valéry Giscard d’Estaing. Outras histórias, mas que não deixaram de ter grande influência na acção do Partido Socialista na redefinição da vocação democrática europeia de Portugal após o 25 de Abril.

que foi algumas vezes

Político

A

pesar do empenho de Raul Rego na formação do Partido Socialista e da sua presença como breve Ministro da Comunicação Social no I Governo Provisório, a sua vocação foi sempre a de um jornalista que, ocasionalmente, por serviço desinteressado ao país, aceitou ser deputado, secretário de Estado entre 1976 e 1978 ou presidente da Assembleia Municipal de Lisboa de 1977 a 1979. O jornalismo referencial da sua A República era o que queria continuar a fazer até se encontrar mais do que ensarilhado num desses muitos casos em que se continuava a combater ainda por um futuro democrático em Portugal, apenas um ano depois da Revolução dos Cravos. Com efeito, encruzilhado rapidamente em contradições políticas e sociais mais do que conhecidas, o processo aberto com a Revolução do 25 de Abril vai voltar a desafiar a demorada luta de Raul Rego pela liberdade de imprensa e de opinião: o Caso República. Despoletado a 19 de Maio de 1975, vêsperas de um então famoso Verão Quente (não pelo inacreditável volume de incêndios a que agora se assiste em Portugal...), quando a Comissão Coordenadora de Trabalhadores, sobretudo formada por gráficos e pessoal administrativo, sob influência do Partido Comunista, ocupou as instalações do jornal, suspendeu a Administração e a Chefia de Redacção, este caso foi um dos mais sérios reptos políticos enfrentado por Raul Rego em que se decidia parte importante dos destinos democráticos portugueses. Os jornalistas uniram-se imediatamente em torno do seu director, reagiram contra os abusos da Comissão e, apesar das grandes manifestações de apoio, o jornal viria a reaparecer a público apenas a 10 de Julho controlado pelo COPCON e tendo como director o coronel Jorge Pereira de Carvalho. O que levou os ministros afectos ao PS a abandonarem o IV Governo Provisório, logo dissolvido a 17 de Julho quando os ministros do então PPD também se demitiram. A 25 de Agosto, Raul Rego lança o diário A Luta (1975-1979) com grande parte dos jornalistas de A República. Apesar de devolvido pelo Conselho da Revolução, a 26 de Janeiro de 1976, aos seus legítimos proprietários, anterior Direcção e Redacção, mesmo assim não voltaria jamais a sair dos prelos o velhinho jornal republicano fundado a 15 de Janeiro de 1911 por António José de Almeida. O Caso República não apenas provocou uma crise política em Portugal, adensou ainda mais as divisões inconciliáveis entre o Partido Socialista e o Partido Comunista, como também se espalhou e comentou em muitos jornais estrangeiros, sobretudo a grande imprensa escrita europeia. Como sempre, Raul Rego multiplicou-se em artigos, textos de opinião e publicou livro importante sobre o problema, sendo mesmo galardoado com a Pena de Ouro da Liberdade no Congresso de Bolonha, em 1975, da Federação Internacional dos Editores de Jornais (FIEJ). É provavelmente este caso, mais do que qualquer ambição política que rigorosamente nunca alimentou, o principal motivo para a sua entrada para o primeiro governo constitucional como secretário de estado da comunicação social. Esquece-se talvez no meio da mediática, curta e simplística memória dominante nos nossos dias o papel que, entre 1976 e 1978, foi desenvolvido por este governo na normalização das instituições democráticas. Assim foi também no domínio da comunicação social mesmo herdando um pesado legado em que praticamente todos os jornais se encontravam nacionalizados, profundamente deficitários e muitos rendidos ao partidarismo da época. Neste domínio, o governo definiu corajosa e institucionalmente os seguintes objectivos: a) a defesa intransigente da liberdade de imprensa, e das consequentes liberdades de expressão e criação, como condição básica da viabilidade de uma sociedade democrática e de um Estado de Direito; b) o

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No suplemento dos 45 anos, o DL publicava foto, de 1923, com a redacção fundadora do jornal - Raul Rego entte o Dr. Fernando Soromenho e Joaquim Letria reconhecimento da liberdade de empresa editorial, pressuposto indisfarçável da liberdade de imprensa; c) o reconhecimento de que é também condição da liberdade de imprensa a independência dos meios e órgãos de comunicação social, face aos poderes político e económico; d) o reconhecimento de que a estatização de alguns meios e órgãos de comunicação social — exceptuadas a Radiodifusão Portuguesa e Radiotelevisão Portuguesa — resultante da nacionalização de empresas titulares da maioria do respectivo capital, ou de medidas de intervenção com o propósito de evitar a sua falência, corresponde a uma situação transitória e de modo nenhum a um fim em si; e) o reconhecimento de que a possibilidade de expressão e confronto das diversas correntes de opinião nos meios e órgãos de comunicação social, ao serviço do pluralismo ideológico, é não só criadora de soluções justas mas condição de liberdade e democracia. Ideias democráticas e decididas que a secretaria dirigida por Raul Rego procurou concretizar. Nos seus dois anos no governo, o nosso avisado jornalista lança-se na reestruturação dos meios de comunicação social, procurando apoiar a recriação de um tecido empresarial, dinamiza com apoios estatais a então muito moribunda imprensa regional, trata de preparar a criação de uma escola de comunicação social, dinamiza a definição de normas deontológicas para o jornalismo, reforma a ANOP (Agência Noticiosa Portuguesa, antepassado da actual LUSA) e para ela transfere as actividades de comunicação com Macau, promove a cobertura radiofónica dos Açores e da Madeira, prometendo ainda a chegada da televisão a cores que só viria a 7 de Março de 1980, pelo que a nossa memória de factos e pessoas anteriores ficou ainda mais esquecida num longínquo preto-e-branco. Primeiro como resistente a todas as formas de censura, depois como defensor intransigente da liberdade e do pluralismo de opinião, a seguir como governante atento à definitiva institucionalização das liberdades e dos direitos da comunicação social, descobre-se um legado mais do que genoroso que obrigaria a revisitar e estudar com mais atenção a vida e obra de Raul Rego. Mas há ainda mais: o nosso jornalista era não apenas um dos grandes bibliófilos do seu tempo, personagem informada e muito culta, como também escritor de mérito e historiador original.

lusofonias

Um

Jornalista Historiador

A

s muitas publicações, artigos, livros e edições de Raul Rego aguardam inventário pormenorizado por fazer e estudos a realizar. Com os seus livros políticos fomos tropeçando no devir de uma vida de resistente e democrata: encontramos em 1968 esse Para um diálogo com o Sr. Cardeal Patrairca; em 1969 identificam-se várias obras, Diário Político, Horizontes fechados: páginas de política, Justiça e Política e o muito importante (ainda hoje...) Os políticos e o poder económico (textos fundidos em 1974 pela editora Arcádia com o título Diário Político: os políticos e o poder económico). Acompanhando as eleições do marcelismo, Raul Rego publica em 1973 Continuidade: glosas ao discurso eleitoral do prof. Marcelo Caetano e escreve o prefácio para Relações Igreja-Estado: entrevista com o bispo do Porto D. António Ferreira Gomes. Depois da Revolução do 25 de Abril, decide voltar a publicar livro original que, aparecido simplesmente como Violência inútil, criticava todo o tipo de violência política, à esquerda e à direita, exornando a prioridade do diálogo e concertação democráticos. No ano seguinte, em 1975, não resiste a publicar com a chancela da Dom Quixote um «Depoimento ou Libelo»: reflexões sobre o livro de memórias de Marcelo Caetano. Pausa dedicada a outros temas e gostos, voltando seriamente aos grandes ideários políticos reflectidos em Militares, clérigos e paisanos ou o militarismo e outras forças de violência na sociedade portuguesa, livro entre história e ensaio político publicado em 1981. Muito antes dos primeiros livros de política, Raul Rego tinha-se já consagrado como homem de cultura e história. Em 1955, edita Duas cartas inéditas de Alexandre Herculano para, em 1959, recolher e publicar as Anotações de Camilo à História de Portugal nos séculos XVII e XVIII de Rebelo da Silva: inéditos de Camilo. Pausa demasiado longa, agora muito mais política, e Raul Rego volta em 1979 às edições de textos quase esquecidos de grandes autores portugueses com a publicação de um ensaio de Eça de Queirós sobre A emigração como força civilizadora. Em 1993, decide reeditar com uma belíssima introdução Os burros ou o Reinado da Sandice, um poema de José Agostinho de Macedo, datável de 1827, seguindo-se, em 1995, a edição com prefácio de um manuscrito de Francisco Manuel de Melo intitulado Tácito português: vida, morte, dittos e feitos de El Rey Dom João IV de Portugal. Mas é a colecção de livros que Raul Rego consagra ao estudo e documentação da Inquisição portuguesa, dramaticamente activa entre 1536 e a sua extinção formal tarde em 1821, que o consagram como um importante historiador. Assim, em 1956, apresenta e publica um texto inédito do médico e grande intelectual que foi António Ribeiro Sanches (1699-1783) sobre Origem da denominação de christão-velho e christão novo em Portugal, obra mais tarde revista e aumentada em edição da portuense Paisagem, em 1973. A sua obra fundamental editando e estudando O processo de Damião de Góis na Inquisição já a conhecemos na imediata prisão do autor e na apreensão do livro em 1971. Insiste neste mesmo ano, ao prefaciar e publicar O último regimento da Inquisição portuguesa. Segue-se, em 1982, a edição cuidada de Os índices expurgatórios e a cultura portuguesa. No ano seguinte, em 1983, publica com cuidado e introduz com rigor O último regimento e o Regimento da Economia da Inquisição de Goa. É também neste compromisso com a denúncia de todas as inquisições e perseguições religiosas que se deve incluir a única tradução de Raul Rego ao promover em 1968 a edição em português da obra de André Biss, o último líder da comunidade judaica de Budapeste perseguida e martirizada pelo nazismo, saíndo com o título Como foi salvo um milhão de judeus. À história da Maçonaria e da carbonária Raul Rego apenas dedicou um prefácio e um posfácio em alheios títulos: o primeiro seguiu em 1991 para o livro de José Brandão sobre Carbonária, o exército secreto da República; o segundo tinha sido escrito em impecável francês, anos antes, em 1980, para a Histoire générale de la franc-maçonnerie dirigida por Paul Naudon, sumariando a história da maçonaria portuguesa. Outros títulos são mais dispersos. Raul Rego não resistiu, em 1980, a prefaciar a edição em português da obra de Giocchino Santé, Uma Revolução Falhada: os métodos de Boris Ponomariov na Europa, elogiando o eurocomunismo de Palmiro Togliatti tão atacado por aquele responsável que, entre 1955 e 1986, controlava as relações externas do Partido Comunista da União Soviética sem se ter encantado pelo original Partido Comunista Italiano. A sua única obra de divulgação é também marcada por um intelectual gosto pessoal quando oferece a um público jovem, em 1976, através da Secretaria de Estado da Juventude e Desportos, um bem conseguido livro sobre Aquilino Ribeiro. Nenhum dos muitos títulos anteriores, porém, se pode longinquamente comparar ao trabalho monumental que, entre 1986 e 1987, em demorados cinco volumes, permitiu para nossa felicidade que Raul Rego publicasse uma mais do que referencial História da República. O que bastaria para agregar ao transmontano de origens e culturas, ao resistente contra a ditadura, ao democrata de sempre e ao socialista íntegro e exigente essa qualidade outra de historiador tão sério como corajoso: a ler para estudar; a recordar para aprender; a comemorar como uma das mais corajosas vozes e originais plumas que ajudaram a construir o Portugal democrático que se encontra mais do que obrigado a honrar as suas raízes, a sua integridade e o exemplo maior que continua a ser Raul Rego.

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VII

Crónica Portuguesa

Publica

textos de estudo e opinião sobre a diversidade cultural das Lusofonias

Ideias

Lídia Jorge*

S

e visitarem Lisboa e passarem pela Avenida de Roma, e depararem com um sexto andar cor de rosa sob uma pequena mansarda de onde pendem uns cravos túnicos, olhem bem para essa janela e pensem na sagacidade jurídica do Dr. Gabriel Calado. As coisas passaram-se assim. A proprietária do andar era um atriz conhecida, e o andar, um cubículo apertado, pendurado no alto do prédio. Mas por cima erguia-se um volumoso telhado em forma de campânula que também lhe pertencia. Para quê uma superfície de telha tão ampla, quando ali se poderia rasgar uma janela de onde a atriz pudesse enxergar a cidade, as árvores da cidade, sentir o vento que vinha do mar, imaginar a grande pança azul do Oceano Atlântico, e lá ao largo as longínquas costas das três Américas? Seria o sonho de um sonho, abrir uma janela. O problema é que havia milhares de janelas abertas nos telhados, e contudo a lei não o permitia. Então a atrizita foi falar com o Dr. Gabriel que lhe disse que se formulasse o pedido de licença conforme a lei, a sua pretensão jamais seria atendida. A menos que utilizasse a lei, aplicando-a a uma situação irreal. O argumentário do advogado era este – Se lavrassem um pedido para que fosse aberta uma janela no telhado, apesar dos vinte mil exemplares que havia em Lisboa, a resposta seria negativa, mas se pedissem para fechá-la, como os serviços davam primazia à imobilidade, o resultado iria ser negativo, a janela não poderia ser fechada, e nessa altura poderiam abri-la. A proprietária do minúsculo apartamento estava perplexa. Como? Queria abrir uma janela e pedia

para fechá-la? Como, se não havia nenhuma janela? Tal e qual, disse-lhe o Dr. Gabriel Calado. Vamos experimentar? Pelo sim pelo não, se concorressem pelas vias normais, o primeiro processo demoraria três anos, o recurso, outros três, e até que houvesse um suborno eficaz, demorar-se-ia pelo menos quatro, isto é, nunca decorreriam menos de dez anos até se abrir a hipotética janela. Então decidiram fazer um requerimento solicitando o encerramento da janela que não existia. Ao fim de três anos, veio a resposta. A resposta era esta – De modo algum. Pelas trinta leis que regiam o fecho das janelas, era impossível fechar aquela. O Dr. Gabriel esfregou as mãos de triunfo. Pois não existindo, juridicamente, a janela tinha tinha passado a existir. A janela foi aberta num domingo de manhã. À medida que se retiravam as telhas ia-se cumprindo a lei, ia-se tornando impossível fechar a janela que antes não existia. Ao meio dia, a atriz debruçou-se da janela, olhou para fora e viu a cidade, o estuário do Tejo, o início do mar, o caminho aberto para as três Américas, e pensou – “Aqui, sobre este parapeito, vão pender cravos túnicos. Mesmo que um dia eu corra mundo e possa mudar de casa, esta janela será a prova do triunfo da irrealidade sobre o real, mãe de todos os mitos. Obrigado, Gabriel Calado.” * Escritora portuguesa, Prémio Jean Monnet de Literatura Europeia – Escritor Europeu do Ano (2000), Grande Prémio da Sociedade Portuguesa de Autores (2007), Prémio União Latina (2011) (in: Portal da Literatura)

Muitas igrejas, muitos problemas A

s religiões, que deveriam ser parceiros de cada um de nós na construção de uma sociedade pacífica e feliz, e também de cidadãos conscientes, solidários e respeitadores da vida e dos direitos de cada um, estão cada vez mais vestidas com a capa da insolência e do perigo para as famílias e para a sociedade. É assim nesta Angola de início do séc. XXI. A coisa vem, no entanto, do século passado. É estranho que em nome do mesmo Cristo proliferem igrejas aos milhares, algumas confinadas a uma garagem ou armazém, mas todas elas dizendo-se baseadas na mesma Bíblia. Cada uma delas com uma particularidade que a diferencia das outras. Se umas proíbem os fiéis de comer carne de porco, outras proíbem-nos de aceitar sangue doado. Há as que rezam cultos apenas depois da meia-noite, há as que impõem a cor das roupas, etc. todas elas se sustentam com os dinheiros dos fiéis, ou melhor, os seus pastores e bispos. Há famílias que perderam os bens, não em nome da fé ou da religião, mas roubadas por supostos guias espirituais. As universais e mundiais e pentecostais novas brasileiras, por exemplo, embora mais discretas, depois da hecatombe do DIA do FIM em 2012, continuam a ir ao bolso do crente. Substituíram a prática do ruído pela do sussurro, mas não se tornaram santas. Basta ver a multiplicidade e a facilidade com que produzem milagres em massa todos os dias. Mas estes pastores não tiveram já

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tempo para operarem um milagre na sociedade a acabarem com a fome, com a miséria e com a violência contra inocentes? Este é o propósito de Deus, para todos. O Islão, por seu lado, também se alimenta fartamente em Angola, ainda que sem reconhecimento oficial do Estado. Os seus fiéis estão presentes nos milhares de cantinas e armazéns por todo o país. A posse das cantinas é ilegal, os seus vendedores são ilegais na sua maioria, as suas mesquitas são ilegais. Nada se sabe sobre como se organizam, como exportam capitais, como educam os filhos, da validade dos seus casamentos com angolanas e angolanos. Ainda não se lhes ouviu chamarem-nos em voz alta de infiéis, mas consideram assim a grande maioria dos angolanos. Ainda não tomaram posições públicas de força, mas continuam a sua evangelização, convertendo angolanos. E já são um milhão. Se as evangélicas brasileiras e congolesas estão na lógica da oportunidade do negócio, o islão, secular, tem outros fins, acredita que o profeta mandou cobrir o mundo com o seu manto, tal como o catolicismo crê ser esta a sua missão. O problema está nas intolerâncias e na capacidade do Estado(todos nós) defender os seus princípios de laicidade, a lei, os direitos individuais e de pôr fim ao uso da religião com fins económicos de políticos.

Luís Fernando*

“Ainda não se lhes ouviu chamarem-nos em voz alta de infiéis, mas consideram assim a grande maioria dos angolanos.”

* Director do semanário “O País” de Angola

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