REACTING TO TIME QUANDO A PERFORMANCE REAGE À ACELERAÇÃO EM TEMPOS CRÍTICOS - notas de um observador-participante

August 6, 2017 | Autor: Rui Matoso | Categoria: Performance Studies, Contemporary Art, Critical Thinking
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REACTING TO TIME QUANDO A PERFORMANCE REAGE À ACELERAÇÃO EM TEMPOS CRÍTICOS - notas de um observador-participante

[Fragmento- Pauta de Identificación, de Manoel Barbosa (1975)1]

«Reagir» nem sempre é uma palavra boa, Nietzsche disse-o repetidas vezes desde Genealogia da Moral. Reação pode ser uma ação negativa se entendida como gesto revoltoso do escravo perante o senhor, expressão do ressentimento com origem no ódio cego às classes dominantes e aos seus métodos de coerção. Esta seria a origem do niilismo moderno, do ataque iconoclasta aos valores, do que faz radicar a ação criadora no «não» e na inversão do olhar definidor dos valores para fora de si. Como se a moral dos escravos necessitasse imperativamente de estímulos exteriores para reagir. Mas reagir não significa apenas ativar o sistema imunitário contra todas as inflamações do mundo actual, mundo aliás já saturado de processos inflamatórios e hipermediações dissolventes. Reagir, traduz-se também em elaborar estratégias para lidar com os dispositivos coercivos do capitalismo tardio. Dispositivos que se ocupam quer do corpo biológico quer do corpo imaterial (consciência),i.e., do ser-humano intermediado pela logotécnica. Em REACTING TO TIME, portugueses na performance, reagir ao tempo revela-se como estratégia que procura estabelecer um «arquivo vivo, tornado presente nos corpos» e assim 1 Fonte: http://aadkreactingtotime.blogspot.pt/ Rui Matoso 2015 | https://grupolusofona.academia.edu/ruimatoso | [email protected]

«atualizar a especificidade da memória corporal» das artes performativas dos anos 70 e 80 do século XX. Neste contexto, reagir ao tempo presente do esquecimento e da aceleração requer activar patrimónios culturais imateriais como factor de reactivação da memória, do desejo e da imaginação coletiva. Um arquivo vivo vai sendo assim construido pelo material que Vania Rovisco «transmite corpo a corpo, em prática performativa, a todos os participantes no workshop, é pois a memória corporal das primeiras experiências deste experimentalismo performativo português». Esta construção “documental” do corpo é realizada através de um trabalho transdutivo2, na interação meta-estável entre corpos, regras, ideias, espaços, lugares e estruturas culturais diversas. De que modo a ação performativa contribui para um novo momento de estabilidade dos corpos e das relações ? A partir de uma visão mais extensa, não circunscrita apenas ao campo artístico, será importante reflectir sobre a pertinência de REACTING TO TIME e dos seus múltiplos impactos na esfera sociocultural e nos contextos geográficos em que atua. É igualmente importante reconhecer de que modo se articulam e o que produzem estes elementos agregados em torno do projecto: Os espaços e as organizações culturais que acolhem localmente o projecto; As pessoas que participam individualmente e os coletivos temporários que emergem em torno do projecto; O workshop coordenado pela coreógrafa Vania Rovisco; A «memória corporal», o autor-performer e os conteúdos originais (afetivos, cognitivos, simbólicos,...) intrínsecos à performance a ser transmitida; Os conteúdos cognitivos produzidos e disponibilizados digitalmente (arquivo e documentação); etc.

2 Preferimos utilizar o conceito de transdução (Gilbert Simondon), dado que nos permite reflectir acerca da articulação entre os diversos elementos do projecto e apontar mais concretamente para processos de transindividuação (coletivos) mas também para a individuação psicológica (indivíduos). Rui Matoso 2015 | https://grupolusofona.academia.edu/ruimatoso | [email protected]

CONTEXTO_TEMPO E LUGAR_OPRESSÃO MULTI-ESCALA Um dos maiores problemas “filosóficos”, no atual contexto civilizacional, prende-se com a produção da subjetividade (individuação) nas sociedades de controle (Deleuze), ainda sobrepostas em palimpsesto com sociedades disciplinares (Foucault). Sabemos que estamos imersos numa rede de forças conjugadas entre capitalismo de catástrofe, tecnologias hi-tec e oligarcas financeiros, numa lógica cultural do capitalismo tardio (F. Jameson). Neste quadro, F. B. Bifo incide a sua análise nos excessos do trabalho semiótico nas redes telemáticas em torno da linguagem e da informação, na produção daquilo que designa como infomercadoria ou semiocapital. Apesar dos excessos de produção e do excesso de trabalho a maioria vive numa situação de precariedade estrutural, hoje já não são apenas os “intermitentes do espetáculo”, pois as indústrias souberam bem capturar a desregulamentação do mundo artístico e transformá-la em regra geral. Nesse sentido, hoje somos quase todos precários, sofremos de déficit de atenção e estamos viciados em mecanismos de recompensa neuronal automatizados pelos algoritmos da Internet. A financeirização da vida quotidiana é uma imposição hegemónica do cálculo, da rentabilidade e do risco a diversos aspetos da vida social, mas também é colonização do simbólico, das imagens e das palavras. E é neste horizonte regulado pela esquizo-economia (Bifo), sob múltiplas formas e medias de persuasão, que se forma a subjetividade individual e coletiva – aquilo que pensamos, sentimos e representamos -, designadamente através da incrustação da ideologia do empreendedorismo individualista no meio do caos de vidas precárias e a crédito, como sendo a oportunidade para a maximização da individualidade, da (im)possibilidade criativa e da liberdade neoliberal. Já não somos apenas os pecadores da religião católica, mas simultaneamente o homo economicus endividado da religião capitalista. A divida é um pecado infame pelo qual nos teremos de auto-flagelar eternamente, dizem-nos. É simples e curto: o tecnopoder atual, afirma Edward Snowden no documentário de Laura Poitras3, construiu a maior máquina de opressão alguma vez criada na história da humanidade. Esta uma das condições estruturais e sistémicas da sociedade contemporânea com que nos temos de confrontar. A Internet, e as suas ramificações, é hoje interiorizada como um meio constantemente vigiado, onde os utilizadores exercem auto-censura com medo de retaliações de toda a ordem. O que de facto é um enorme paradoxo, pois uma das maiores invenções da 3 O caso Snowden é o mais mediático – mas vale a pena ler esta entrevista com Laura Poitras – realizadora do documentário premiado com o Óscar de melhor documentário 2015: Citizen Four. https://citizenfourfilm.com/ Rui Matoso 2015 | https://grupolusofona.academia.edu/ruimatoso | [email protected]

humanidade, que possibilitaria a utopia da aldeia global, é hoje um espaço concentracionário, um panóptico universal e uma distopia real. Inibição dos direitos e das liberdades de ação política, da concretização e organização de políticas alternativas, da publicação de pensamento crítico face aos governos mundiais e sistemas políticos vigentes. Criando-se assim um “tampão” social que inibe a expansão de ideias contra-hegemónicas,

e permitindo por isso

a continuação de políticas

neoliberais e anti-democráticas com o mínimo de resistência possível. Ainda teríamos de acrescentar as situações limite que encontramos no âmbito das Alterações Climáticas ou contornos secretos e alarmantes do Tratado Transatlântico. Tudo isto faz parte das nossas vidas e do planeta Terra, e não deve ser negligenciado nem ocultado das preocupações comuns. Mas, seja como for, não nos esqueçamos da alegoria kafkiana da colónia penal, onde as sentenças são gravadas na carne viva dos prisioneiros: «Como viu, não é fácil decifrar o texto com os olhos; pois bem o nosso homem decifra-o através das próprias feridas». A inscrição da lei nos corpos (ou na carne ?) é o programa colonizador da modernidade, mas como lidar poeticamente com esta escrita e reescrever noutras linguagens outras paisagens? Como reabrir a caixa do alfabeto e fazer circular outros verbos para outras carnes ?

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PRESENTE CRÍTICO - FUTUROS POSSÍVEIS - PERGUNTAS – PROBLEMAS Nas circunstâncias glocais produzidas globalmente mas que afectam a intimidade de potencialmente todas as pessoas em todos os lugares, os projetos artísticos que mobilizem e reativem informação, imaginários e memórias culturais, e facilitem o acesso a práticas artísticas críticas – para além do plano meramente cosmético que atravessa muita da arte dita contemporânea – favorecem a emergência de espaços, coletivos e temporalidades disruptivos. Espaços e projetos heterodoxos que possibilitam reagir às acelerações maquínicas do capitalismo semiótico e aos seus efeitos destrutivos nos corpos e nas consciências. Podemos então questionar-nos de que modo REACTING TO TIME contribui para novas possibilidades de individuação psíquica e coletiva? Qual o seu contributo para as nossas vidas concretas, e nos tempos perigosos em que vivemos? Mas também nos devemos interrogar para que servem as instituições culturais em tempos de crise? O que pensam e qual o entendimento que têm do que se passa à frente dos seus olhos? De que modo facilitam as comunidades a lidar com os problemas concretos da actualidade? Servem para nos entreter no dia de sabbath da fruição estética? Que estética? Que arte? Que ideias e pensamentos? Que consistência, justificação e utilidade tem perante a vida dos cidadãos hoje as instituições culturais? Facilitam, promovem a eclosão de mecanismos de redemocratização das sociedades? Que imaginários e futuros prometem aos nossos filhos? Se as instituições (culturais, políticas, sociais, etc.) são construções coletivas engendradas para promover a vida boa (bios) , o bem-estar, a paz social ou o bem comum, porque razão «todos sofremos agora mais do que em qualquer outro momento

pela falta total de agentes, de

instituições coletivas capazes de atuar efetivamente»(Zigmunt Bauman). Porque andam as instituições culturais, em geral, tão distraídas com o desmoronamento do mundo?

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