Realismo e hiper-realismo: lições a partir de “Patrimônio”, de Lucas Mayor, e “Killer Joe”, de Tracy Letts, ambas dirigidas por Mário Bortolotto

September 5, 2017 | Autor: Rodrigo Contrera | Categoria: Painting, Realism, Teatro, Realismo, Hiperreality, Hiperrealismo, Mario Bortolotto, Hiperrealismo, Mario Bortolotto
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Teatro
Realismo e hiper-realismo: lições a partir de "Patrimônio", de Lucas Mayor, e "Killer Joe", de Tracy Letts, ambas dirigidas por Mário Bortolotto
O realismo em teatro, hoje, parece beneficiar-se das lições aprendidas, recentemente ou nem tanto, de muitas outras artes plásticas com o chamado hiper-realismo. Muitos são os expoentes desta corrente que lotam museus ao redor do mundo e que ainda causam estupor, apesar do aparente esgotamento do figurativismo no século XX. Schiele, Bacon e Freud são bons exemplos deste último. Sobre estes falamos brevemente em outro artigo (Imagens humanas: o que olham, elas? (Obvious)).
O hiper-realismo do escultor Ron Mueck e de diversos pintores norte-americanos e até latino-americanos chama a atenção tendo como base, em primeiro lugar, as técnicas utilizadas e, em segundo, as inferências derivadas a partir das figuras "representadas" (não havendo em geral ser representante). Mueck, por exemplo, trabalha com exageros técnicos da fibra de vidro e o manuseio de resinas e complementos. Já os outros, os pintores, parecem levar a um paroxismo, com materiais geralmente tradicionais, a ênfase fotográfica no detalhe – algo sobremaneira exagerado que deixa a técnica dos pintores mais tradicionais quase no amadorismo.
Mueck trabalha com figuras em escalas tão díspares que provoca até mesmo ao ser chamado (ainda) de realismo. Mas o que são as dimensões variadas senão lupas que melhor atendem ao desejo de concentração do olhar na superfície e, a partir daí, no "sentimento" desses colossos que parecem até mesmo respirar? São comuns as colocações relativas ao incômodo de parecer acompanhar a vida de figuras inanimadas, ao mesmo tempo em que se é a partir de então motivado a destrinchar mundos que sabemos vazios. Sim, Mueck convida a viagens que levariam a suas próprias motivações (como, por exemplo, a história real de que sua primeira figura reproduzia seu pai morto, de quem ele sentia muita saudade) – com a diferença de que a constatação do incômodo da figura incita, ao contrário, a pensar na vida da criatura, ou seja, do criado. Há algo ali, porém? Claro que não. Mueck engana ao deslocar a atenção do vivido ao morto. É como se o espectador fosse como que obrigado a refletir sobre essa figura, falsamente humana, a concentrar a atenção na obra de arte, a ser decifrada ou sentida, sem intermediações tão incômodas.
Os diversos hiper-realistas mais recentes da pintura seguem percurso semelhante. Há aqueles que focam sua expertise à criação de personas inexistentes também apoiadas em coisas - muitas vezes carros – que marcaram época e que desaparecem da vida ao mesmo tempo em que impõem o tempo de situações que já se foram. Há outros, porém, que preferem focar o incômodo na vivacidade de detalhes, muitas vezes não restritos aos corpos (bolhas e sabão, por exemplo) que, tal qual um Mueck, assumem dimensões que engrandecem os temas ao mesmo que os diminuem de relevância. É para mim sumamente estranho constatar que por detrás desses operários da verossimilhança parece existir o desenlace da técnica na demonstração do nada – ou da performance em nada sustentada. Ou, em outras palavras: por que tanto detalhismo em tornar reais detalhes que nada dizem sobre a realidade ou mesmo sobre os critérios de escolha de temas e de composição?
Chamo a atenção com isto, então, ao fato de que a maior atração de prodígios desse tipo não se atém a uma mensagem além da pintura e da técnica, mas à própria técnica e à vacuidade de além naquilo que aparece. Pois num Velázquez havia algo que escapava àquilo que simplesmente se via, assim como num Rembrandt e num Vermeer. Já num Mueck, havendo um além, ele não diz mais respeito a mensagem qualquer mas ao efeito da técnica em nossa sensibilidade mais rasteira ("parece vivo", por exemplo). É como se o olhar ficasse cansado de repente e dissesse não valer mais a pena tentar ir além do nada que se vê. Como se precisássemos "refletir" sobre a realidade da obra ao invés de no artificialismo dos recursos que possibilitam essa mesma obra.
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Numa peça como "Patrimônio", de Lucas Mayor, o realismo de personagens normalmente medíocres faz uso da suposta empatia de seus destinos de perdedores com a existencialista viagem de navegadores de celular, absoluta e absurdamente contemporâneos (embora os personagens e as tramas pareçam sempre se localizar numa antiguidade recente, décadas que chegam até no máximo os 80). A mediocrização dos destinos, por sua vez, a tal ponto esvazia a trama de conteúdo relevante que nos chama a nos aproximarmos da verossimilhança dos perfis e dos personagens, tidos em si mesmos. Ocorre que para isso o diretor (e o autor) optam pela atenção ao contraste mais claro, ao invés de à surpresa do que pode trazer incômodo de outra forma (características que podem resultar no enigma).
Por exemplo, o pai da primeira cena a tal ponto não destaca o conflito no ou o caráter da personalidade que quase desmerece a possibilidade de uma real verossimilhança (o que por outro lado poderia acarretar a tentação de torna-lo tão irrelevante que praticamente transparente). O mesmo ocorre no caso do pai da terceira cena, cuja fraqueza de reação às investidas da esposa gostosa e extremamente agressiva parece ser perfeita no par da relação com a esposa dominante. Ocorre que o tempo da cena corrida acaba a tal ponto ressaltando pontos em comum nos diversos momentos que isso dispersa totalmente a atenção (em suma, os caracteres ficam a dever em caracterização). Não sabemos onde cavoucar uma mensagem a mais, algo que permita que nos destaquemos do real e do realismo mais chapado. Sobra a dimensão da cena em seus diversos momentos cronometrados. Um exercício diário de exagero no controle da mão da direção ao qual não parece corresponder algo mais que permaneça – nessa arte admitidamente anacrônica, apanágio dos incontáveis artistas românticos do nada.
Claro, o texto segura. Lucas Mayor, o dramaturgo, tem amplo domínio da língua e de artifícios que lhe permitem, sem excessivo custo, atrair a atenção do seu espectador. Dentre esses artifícios, por exemplo, encontra-se a capacidade de tornar diálogos sobre objetos ou objetivos medíocres (tal qual um Tchecov de antiga cepa) em revelações à la Cassavettes dos meandros mais escondidos da alegria, bobeira ou mesmo depressão dos personagens enquanto seres vivos. Nesse sentido, ao contrário de em outros espetáculos de outras companhias, Mayor beneficiar-se-ia da capacidade de centrar a atenção, com diálogos jovens e ágeis, dos relativamente poucos interessados em assistir o desfraldar de negatividade pura e, por outro lado, tentar solucionar situações aparentemente inusitadas com marcações à la Mário Bortolotto, sempre estas incomparavelmente situadas na valorização de atores e atrizes determinados/as que por vezes sem conta conseguem promover sentidos mais relevantes do que o próprio texto e mesmo paralelos à história e suas motivações e contradições mais profundas.
Um detalhe relevante aqui é que as tramas de "Patrimônio" continuam, como em "Dias e Noites", a peça imediatamente anterior do mesmo dramaturgo, a focar especialmente o sentido noir da vida, em formas que vão do patético ao amargo, sem contudo cederem facilmente à tentação de puxarem risadas quando necessário – especialmente em cenas intermediárias, para desanuviar o ambiente (como em "Dias e Noites"). Uma novidade é que as cenas desta nova peça não se centram necessariamente tanto na palavra, dado pelo menos duas terem um desenlace aproximado a cenas de ação de filmes de gângsteres ou mesmo a momentos relevantes de peças de Letts, a ter algo da obra a ser comentado, reproduzidas até mesmo na tela grande – ao de "Álbum de Família", filme bastante premiado e que no meu caso prenunciou a sub-reptícia atividade dos artistas/dramaturgos de ênfase pessimista, que incluem a obra do grupo Cemitério de Automóveis.
"Killer Joe", de Letts, segue outra direção. Primeira peça do premiado autor norte-americano, "Killer" utiliza de uma dedicação cirúrgica para, em cenas em número limitado, quase todas com todos os personagens em cena, contar uma história familiar de assassinato e apropriação da grana do seguro libertada de quaisquer escrúpulos – cujas nuances permanecem mais nas filigranas psicológicas quase histriônicas da gente comum presente para com isso realçar a perda de rumo da história e consequentemente de todos os critérios morais aceitáveis ou mesmo básicos para famílias normatizadas.
Detalhe especial neste texto é o fato de eu mesmo, o autor do texto, ter assistido quase todos os ensaios da peça até o momento em que passou a ser necessário definir os efeitos especiais sonoros – digamos, até 2/3 dos ensaios, tidos como totalidade. O detalhe é importante na medida em que o recurso de encavalar falas, consistindo na interrupção frequente de uma fala pela de outro personagem, não foi nada fortuito em todo o processo de montagem – e por isso não criou surpresa nem em mim nem em meus critérios estéticos. Pois, segundo o diretor Mário Bortolotto, a intenção de tudo era mesmo habituar os atores e as atrizes a enfrentarem desafios com o mesmo foco da realidade, em que praticamente ninguém realmente consegue terminar uma frase para outra começar e em que os subtextos mais agressivos, necessariamente falando, parecem tão fora de moda mas ao mesmo tempo tão atuais que conseguem ditar, por si sós, o contexto do que é dito e o rumo da energia subentendida – ou seja, notamos que quando parece, por exemplo, que o bicho vai pegar ele realmente pega.
O que dizer, contudo, quando passados 7/8 da peça e sabendo perfeitamente o que irá acontecer, pego-me quase chorando ao ver o desenlace, quando muito durando 1 minuto ou 1 minuto e meio, repleto de coisas, efeitos e fenômenos que não vale a pena repetir para impedir o fim da surpresa? Podem, claro, haver razões bem específicas para tal fenômeno, inédito em mim, restritas à psicologia da coisa ou mesmo a uma reflexão relativa aos meses em que de tudo participei e que tive de abandonar. Interessa-me contudo aqui e agora fazer-se notar que, ao que parece, é um jogo similar ao existente nas pinturas realistas e hiper-realistas enfocadas no começo deste texto o que, pelo visto, acabou fazendo com que eu capotasse na identificação do que via com o medo horrendo que eu sempre mantive a sete chaves. A beleza da coisa, contudo, descansa em outra história: qual seja, a de que não é a previsão pormenorizada de gestos e ações o que necessariamente faz determinadas sequências perderem protagonismo em cena – especialmente em filmes realistas – mas a convicção encalacrada no amante latino de que não existe fórmula de aprendizagem-comprometimento-morte que deixe de passar pela assunção de assuntos fundamentais

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