\"Realismo ontológico e antirrealismo epistemológico na problemática sobre o mundo externo em Hume\". In: Ensaios sobre a filosofia de Hume. Florianópolis: UFSC, 2016.

May 26, 2017 | Autor: Leandro Hollanda | Categoria: Hume, Critical Realism, Realism (Philosophy), Realism (Political Science), Magical Realism, Legal Realism, Speculative Realism, American Realism, Scientific Realism, American Realism and Naturalism, David Hume, Moral anti-realism, Neoclassical realism, Metaphysical Realism, Realism vs Anti-Realism, Socialist Realism, Moral Realism, Filosofía Latinoamericana, Filosofía de la Ciencia, Filosofía, Realism, Magic Realism, Neo-realismo, Political Realism, Philosophy of Religion, Moral Philosophy, David Hume, Historia de la Filosofía Moderna, Realidade Aumentada, Social realism, Realismo Científico, Realismo, Realismo Crítico, Realismo magico Magic realism, G E Moore, Verdade, Realidade, Realismo Magico, Realismo y Naturalismo, Realismo Brasileiro, Construção social da realidade, Storia della filosofia moderna, David Hume Slavery, Filosofia Moderna, Filosofía moderna, Realismo Sintético, Realismo y Pragmatismo. Biografía intelectual de Hilary Putnam, David Hume, Theory of Action, Metaphysics, Realisme, El Realismo Magico, David Hume and narrative, Realismo Político, Filosofia Antiga, Medieval E Moderna, Hobbes and David Hume, Kesan Interaktif Warna Realisme Dalam Proses Mengingat Semula, Felsefe, David Hume, Realismo Social Ecuatoriano, Realismo Speculativo, Neo Realismos, Filosofia, Construção De Realidades, História Da Filosofia Moderna, Realismo Antirealismo, Filósofo David Hume, Realismo Especulativo, A Construção Social Da Realidade, FILOSOFANDO INTRODUÇÃO À FILOSOFIA EDITORA MODERNA, Filosofia Política Moderna e Contemporânea, Mundo exterior, Ahlak Davıd Hume, antirrealismo, Legal Realism, Speculative Realism, American Realism, Scientific Realism, American Realism and Naturalism, David Hume, Moral anti-realism, Neoclassical realism, Metaphysical Realism, Realism vs Anti-Realism, Socialist Realism, Moral Realism, Filosofía Latinoamericana, Filosofía de la Ciencia, Filosofía, Realism, Magic Realism, Neo-realismo, Political Realism, Philosophy of Religion, Moral Philosophy, David Hume, Historia de la Filosofía Moderna, Realidade Aumentada, Social realism, Realismo Científico, Realismo, Realismo Crítico, Realismo magico Magic realism, G E Moore, Verdade, Realidade, Realismo Magico, Realismo y Naturalismo, Realismo Brasileiro, Construção social da realidade, Storia della filosofia moderna, David Hume Slavery, Filosofia Moderna, Filosofía moderna, Realismo Sintético, Realismo y Pragmatismo. Biografía intelectual de Hilary Putnam, David Hume, Theory of Action, Metaphysics, Realisme, El Realismo Magico, David Hume and narrative, Realismo Político, Filosofia Antiga, Medieval E Moderna, Hobbes and David Hume, Kesan Interaktif Warna Realisme Dalam Proses Mengingat Semula, Felsefe, David Hume, Realismo Social Ecuatoriano, Realismo Speculativo, Neo Realismos, Filosofia, Construção De Realidades, História Da Filosofia Moderna, Realismo Antirealismo, Filósofo David Hume, Realismo Especulativo, A Construção Social Da Realidade, FILOSOFANDO INTRODUÇÃO À FILOSOFIA EDITORA MODERNA, Filosofia Política Moderna e Contemporânea, Mundo exterior, Ahlak Davıd Hume, antirrealismo
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Descrição do Produto

COLEÇÃO RUMOS DA EPISTEMOLOGIA, VOL. 16

Ensaios sobre a filosofia de Hume Organizadores

Jaimir Conte Marília Côrtes de Ferraz Flávio Zimmermann

NEL – Núcleo de Epistemologia e Lógica Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis, 2016

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 Realismo ontológico e antirrealismo epistemológico na problemática sobre o mundo externo em Hume Leandro Hollanda

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em dúvida, o hábito é um conceito fundamental na filosofia humeana. É, segundo Hume, o grande vetor do comportamento humano, i.e., o condutor dos homens e aquilo que faz toda experiência se tornar útil. Possibilitando, desta forma, o assim chamado saber prático. Sem a influência do costume, todo o conhecimento acerca das questões de fato – o qual está fora do alcance dos dados imediatos da memória e dos sentidos – seria ignorado. E isso equivale mesmo a di­ zer que, sem ele, todo o conhecimento formado a partir das experiências mais imediatas seria impossível. O que repre­ sentaria, portanto, o fim de qualquer condição de possibilidade do mencionado saber prático, uma vez que nunca se poderia, sem ele, ajustar os meios em função dos fins (EHU 5.6). Afinal não seria possível estabelecer conexões necessárias a partir de objetos apenas contiguamente conju­

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Leandro Hollanda gados. Seria, concomitantemente, o fim de toda e qualquer ação e de qualquer especulação. Assim sendo, a prospecção de Hume almeja, pois, desenvolver o que ele chama, logo na primeira seção da Investigação sobre o entendimento humano, de mental geography. Ou seja, seu fito consiste em atinar, pe­ lo menos em partes, as fontes e os “princípios secretos” que impulsionam a mente humana em suas ações. E a descoberta da função indispensável do costume pode ser considerada um grande avanço nessa direção. É graças ao hábito, ao cos­ tume da conjunção constante de certos objetos, que se desperta, irrefreavelmente, aquele sentimento o qual leva qualquer ser dotado de razão a acreditar que entre tais obje­ tos há, de fato, alguma conexão necessária. O assim chamado conhecimento acerca das questões de fato nada mais é, pois, que a crença despertada pela habitual conjunção em que certos eventos se dão. É graças ao costume que o homem consegue ultrapassar o dado e, por isso, crer. Se conhecimento para Hume (T 1.3.9.2) é o que “chamamos da certeza resultante entre as relações de ideias”, essa certeza, no que tange as questões de fato, nada mais é que uma forte convicção. Uma confiança tesa análoga à certeza de que a so­ ma dos ângulos internos de um triangulo equilátero é de 180 graus. Mas aquela convicção só aufere esse enganoso status de certeza, por meio do qual os homens se fiam sem vacilar, graças ao costume. Enquanto “conhecimento” e “certeza” di­ zem respeito, propriamente falando, apenas ao âmbito das “relações de ideias”, os homens, em geral, têm certeza de seu conhecimento da vida prática. Para que seja possível explicar a presença desses conceitos na esfera sobre a qual os ho­ mens baseiam suas ações, i.e., no escopo das questões de fato, é necessário a admissão de um conceito como o hábito. Sobre as questões de fato, entretanto, não se tem, rigorosa­ mente falando, “conhecimento”, pelo menos não no sentido

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Ensaios sobre a filosofia de Hume do “conhecimento” das relações de ideias. Ou melhor, as questões de fato são o reino das probabilidades, por onde se faz inferências causais, as quais não são deduções da razão, mas se baseiam no costume. E, através desse último, é que elas galgam seu estatuto de certeza. Aliás, segundo o filósofo, a noção de hábito não deriva de nada sobrenatural, a priori. Ela é, na verdade, o que ele chama de um “princípio da natu­ reza” (T 1.3.16.9). É por causa desse mesmo princípio natural que se pode relacionar os diversos materiais presen­ tes à memória e constituir qualquer conhecimento. Em razão do hábito é que a imaginação constitui uma conexão necessá­ ria entre fatos por já terem, outrora, se apresentado em conjunção. E, dessa maneira, é despertada a crença naquilo relacionado pelas conexões de ideias. Portanto, é mediante o hábito que a imaginação pode fazer1 com que ideias distintas se conectem, constantemente, seja por semelhança, contigui­ dade ou causalidade. Como o próprio Hume argumenta, “é necessário que um fato esteja sempre presente aos sentidos e à memória” (EHU 5.6) para que, daí, se possa tirar conclusões. Em ou­ tras palavras, o conhecimento depende, indiscutivelmente, de dados dos sentidos memorizados. E, se alguém não partir desses dados, seus raciocínios não podem ser considerados, segundo Hume, mais que hipotéticos. Todavia, as conclusões derivadas das experiências não se limitam unicamente a es­ ses dados dos sentidos memorizados. Ou melhor, o conhecimento humano2 não se restringe ao simplesmente da­ do. Pois, na verdade, a imaginação ultrapassa os próprios dados e leva a concluir muito além do que fora apresentado aos sentidos e à memória (EHU 5.6). Toda as crenças em questões de fato ou acerca de exis­ tências reais são derivadas dos objetos e das suas corriqueiras conjunções presentes à memória. Sendo que es­

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Leandro Hollanda sas habituais conjunções memorizadas são ultrapassadas pela imaginação, a qual é impelida pelos princípios de associação a assacar certa necessidade àquilo que é meramente contin­ gente. E ao exceder do dado para o não dado, i.e., ao devir a contingência em necessidade, é que a imaginação deixa um campo absolutamente irresistível para a crença nessa reali­ dade fantasiosa. Realidade a qual os homens sentem tão fortemente que não lhes resta outra alternativa senão acredi­ tar nisso, que chamam de conhecimento. Seja qual for a maneira pela qual os elos entre diferentes ideias estejam es­ tabelecidos, “toda a cadeia de inferências não teria nada para assegurá­la, nem poderíamos através dela chegar ao conhecimento de qualquer existência real” (EHU 5.7). Se as relações estabelecidas no entendimento são consequências da imaginação e se, mesmo por meio dessas inferências estabelecidas através do entendimento, não é possível ser categórico quanto a existência real, qual a garan­ tia do mundo externo? Ou melhor, como é possível ser peremptório quanto a realidade exterior, i.e., independente das percepções individuais? De que forma se pode explicar o saber do sujeito, mesmo na ausência de suas impressões, acerca da existência autônoma dos corpos? Hume concorda­ ria, portanto, com a máxima berkeleriana esse est percipi? Para responder à última questão é preciso ter cautela, mas, como se verá ao longo do texto, parece não ser possível afir­ mar que haja tal concordância. Já no que diz respeito às primeiras questões é possível encontrar várias respostas ao longo da história da filosofia, desde a antiguidade clássica até a idade contemporânea. Algumas das soluções mais inte­ ressantes foram dadas por filósofos contemporâneos como Austin3 e Wittgenstein. Aliás, a solução de Wittgenstein a essa problemática assemelha­se, em alguma medida, guar­ dadas as devidas diferenças, à resposta dada por Hume.

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Ensaios sobre a filosofia de Hume Wittgenstein abordou esse assunto em Da Certeza (Über Gewißheit) um conjunto de manuscritos organizados e publicados postumamente, onde dialoga com os trabalhos de George Moore. Segundo Wittgenstein, há uma diferença fundamental entre saber e acreditar a respeito da qual Moore ignora ao tratar da questão acerca do mundo externo. Moore (1953) afirma que o próprio senso comum é suficiente para garantir­lhe diversos saberes “óbvios” tais como: “existem corpos humanos”, “eu sou um ser humano” e “a terra existe antes do meu nascimento”. A respeito disso, Wittgenstein (Wittgenstein, 1990, 159) argumenta que “a garantia de Mo­ ore de saber não nos interessa”, pois mesmo se a pessoa mais credível “garantisse saber que as coisas são desse ou daquele modo, só isso não me convenceria que ela sabe. Apenas que acredita saber”. Afinal, para ele, a expressão “eu sei” nada mais é que “intuição lógica”, a qual “não permite provar o realismo” (Wittgenstein, 1990, 129). Isso se justifi­ ca porque desde criança “se aprende a acreditar num monte de coisas”, i.e., se aprende “a agir de acordo com essas cren­ ças” supracitadas. É, assim, que “formam­se um sistema de coisas nas quais se acredita, e, nele, algumas são incrivel­ mente firmes”; mas o que é firme “não o é porque seria óbvio e evidente”, como afirma Moore, e sim “porque é fixa­ do pelo que está ao seu redor” (Wittgenstein, 1990, 163). Como Miranda (2012) esclarece, as questões de Wittgenstein sobre essa temática dizem respeito à “certeza das proposições mooreanas” e envolve “a discussão sobre seu papel no interior dos jogos de linguagem”. Moore é categórico quando diz que as proposições do senso comum são indiscutivelmente verdadeiras, o que lhe coloca numa posição contrária a Hume. Em Proof of an Exter­ nal World, a seguinte prova a favor do senso comum consiste em apresentar determinado item cuja existência não depen­

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Leandro Hollanda da apenas de uma constatação subjetiva. Moore, portanto, faz uso de algo que possa coletivamente ser notado para, com isso, derivar a real existência de um mundo exterior. Pode­ se esquematizar o argumento de Moore da seguinte forma: P1) Eis aqui uma mão; P2) Eis aqui outra mão; C) Logo, o mundo existe.

Assim, é como resposta ao ceticismo, notadamente o humeano, que Moore em Some Main Problems of Philosophy lança mão de seu argumento da certeza diferencial. A prova contra aquele que Moore acredita ser o ceticismo de Hume pode ser exposta do seguinte modo: P1) Se os princípios de Hume estão de fato corretos, então não posso saber que existe um lápis; P2) Eu sei que existe um lápis; C) Logo, os princípios de Hume não estão corretos.

Afinal de contas o que faz Moore alegar que as elucu­ brações da filosofia humeana levam a concluir que é impossível saber se objetos realmente existem? Caso a filo­ sofia humeana esteja “correta”, então não se pode saber que mesmo um simples lápis existe? Para a primeira questão, é necessário deixar claro que segundo Moore (1959, 123) são dois os princípios basilares do pensamento de Hume con­ cernentes ao problema aqui levantado: 1) Ninguém pode saber da existência de qualquer coisa se não a tiver apreen­ dido diretamente, salvo quando souber que algo apreendido diretamente é um sinal da existência dessa coisa; 2) Nin­ guém pode saber que a existência de qualquer coisa A é um sinal da existência de outra coisa B, a menos que se tenha experienciado uma conjunção geral entre coisas como A e coi­

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Ensaios sobre a filosofia de Hume sas como B (grifado como no original things likes). O princí­ pio de número 2, atribuído a Hume por Moore, está diretamente ligado ao primeiro, e decorre daquele. E a par­ tir da análise do segundo é que Moore imputa à filosofia humeana a tese da impossibilidade do saber acerca da exis­ tência dos objetos. O que eu acredito quando acredito que existe o lápis é que exis­ te algo o qual é realmente de forma cilíndrica, mas que não consiste simplesmente em qualquer número de pigmentos de cor ou em maciez ou dureza, ou qualquer outro tipo de dados dos sentidos que eu já tenha diretamente apreendido. Mesmo que todos esses tipos de dados dos sentidos estejam agora no mesmo lugar onde o lápis está ­ e eu acho que há boas razões para duvidar se estão ­ eu certamente acredito que há nesse lu­ gar alguma coisa além. Essa outra coisa, mesmo se não for todo o objeto material, é certamente uma parte dele. E parece­me que, se a segunda regra de Hume fosse verdade, eu não poderia saber da existência dessa coisa além. Pois eu nunca teria dire­ tamente apreendido, no passado, qualquer coisa como ela: eu só teria apreendido diretamente dados dos sentidos que ti­ nham uma forma semelhante à que ela tem. [...] Se os princípios de Hume são verdadeiros, ninguém pode saber da existência de qualquer objeto material, ninguém pode nem mesmo saber que um tal objeto é possível. Entenda­se por ob­ jeto material um objeto que tem forma e está situado no espaço, mas que não é semelhante, exceto em certos aspectos, a qual­ quer um dos dados dos sentidos já diretamente apreendidos (Moore, 1959, passim).

Para Hume as relações são exteriores aos seus ter­ mos, nisso dificilmente se pode discordar de Moore. Todavia, parece­me que ele dá um passo maior do que o possível quando conclui que, pressupondo­se as teses de Hume, é impossível saber da existência do mundo externo. O primeiro erro de sua afirmação está na confusão que faz dos

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Leandro Hollanda seus próprios termos com a terminologia utilizada por Hu­ me. E, tratando­se de filosofia, um problema conceitual não é uma questão irrelevante. Os dois “princípios basilares” da filosofia humeana apresentados por Moore seriam, por si só, discutíveis. Mas, quando se percebe que Moore emprega um significado bastante diferente do empregado por Hume ao termo “saber”, é impossível sustentar a sua interpretação acerca da filosofia humeana. Analisada com algum rigor, é um verdadeiro fracasso a tentativa de Moore de desqualifi­ car, através da redução ao absurdo, o pensamento de Hume sobre esse tema. E isso me leva a responder à segunda ques­ tão. Mas, se defendo que Hume é um antirrealista­episte­ mológico, como meu título sugere, como é possível que eu discorde de Moore? A resposta é sugerida igualmente pelo título: porque sustento que há, na filosofia humeana, um realismo­ontológico acerca do mundo externo. E, diferente­ mente do que diz Moore, o homem conhece tal realidade. Assim, o problema, que também motiva esse texto, é res­ ponder como é possível defender essas duas teses no interior da filosofia humeana. Além disso, qual sentido pode conter o termo know na filosofia de Hume? Cabe mostrar, ainda, o que pretendo dizer com antirrealismo­epistemológico e como é possível sustentar, a partir de sua defesa, um realis­ mo­ontológico na problemática sobre a exterioridade do mundo aqui tratada. É em “Do ceticismo quanto aos sentidos”, a mais longa seção do Livro 1 do Tratado, que Hume discute o pro­ blema da realidade externa. Isto é, conforme suas próprias palavras, o problema da “existência dos corpos”, de um mundo para além das percepções, independente delas. É após a referida seção que tal problemática ganha centralida­ de nas discussões do Livro 1. O que pretendo, nesse texto,

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Ensaios sobre a filosofia de Hume portanto, é deixar suficientemente claro dois pontos que ca­ racterizam a argumentação sobre a existência externa dos corpos em Hume, a saber: I) A existência do mundo externo; II) A possibilidade de conhecê­lo.

Ao primeiro, como irei evidenciar, a resposta hume­ ana é positiva e, ao segundo ponto, negativa. Entretanto, meu intento não é de chamar Hume de realista quanto ao mundo externo (o que de modo algum é um erro, desde que se entenda em qual sentido). Meu intuito é, na verdade, buscar esclarecer em que consiste o referido consentimento da filosofia humeana quanto a possível existência de uma realidade corpórea para além das percepções. Tenho como propósito, além disso, deixar clara a impossibilidade, tácita na obra de Hume, de se acessar por meio da razão tal reali­ dade, o que inviabilizaria o realismo científico. É justamente essa inexequibilidade do entendimento em captar o mundo pela razão, sem o anterior crivo da sensação pela imaginação, o que desejo expressar quando me refiro ao antirrealismo­ epistemológico. Em outras palavras, para Hume apenas é pos­ sível crer no mundo externo, haja vista a impossibilidade da razão em concebê­lo (ou conhecê­lo) como real. Isso se ex­ plica porque não há condição de possibilidade do conhecimento sem que os dados que levam a conhecer o real sejam ultrapassados pela imaginação e por suas associações as quais, por princípio, ela está condicionada a fazer. Justa­ mente em função disso, quando um homem reflete acerca do seu conhecimento sobre mundo, sobre o que ele acredita co­ nhecer a seu respeito, descobre que esse saber nada mais é que crença. Assim, enquanto a reflexão demonstra a impos­ sibilidade da existência contínua e independente dos

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Leandro Hollanda objetos, a natureza, por sua vez, força a acreditar em sua existência. Enquanto a inépcia da razão interdita conceber o mundo externo, a sensação não deixa dúvidas sobre a efeti­ vidade de conhecê­lo. Apesar da existência de vários trabalhos fundamen­ tais sobre a filosofia de Hume, a questão acerca do mundo externo nunca esteve entre as favoritas dos seus comentado­ res. Isso se explica, talvez, pelo fato do próprio Hume não ter encontrado uma resposta satisfatória para a questão que ele abordou nas últimas seções do primeiro livro do Tratado. É notória a perplexidade com a qual termina sua última seção. A própria argumentação de Hume o levou a uma dicotomia que o impediu de encontrar soluções que satisfizessem seus problemas finais. As conclusões que o conduziram ao fim paradoxal do Livro 1 justificam tal irresolução. Justificam, acima de tudo, a confusão de Moore e outros filósofos ao tentarem abordar esse problema no interior da filosofia humeana. Afinal, a reflexão de Hume acaba, irremediavel­ mente, desembocando em conclusões aparentemente inconciliáveis. De um lado a impossibilidade de descrer no mundo. De outro, a clara impossibilidade de concebê­lo co­ mo possível através da reflexão mais apurada, do raciocínio filosófico. Mas para Hume esse problema é ainda mais difícil de tratar. Isso porque ele se vê como cético. E perceber­se agindo como qualquer dogmático é um golpe muito forte, que perturba suas convicções pessoais. Ele não esconde que isso o incomoda profundamente. E, muito honestamente, aponta suas próprias afirmações as quais lhe parecem con­ tradizer o posicionamento cético que adotara. Assim, por um lado, Hume entende que é impossível, através do pensa­ mento filosófico, conduzido pelo ceticismo, concluir que há um mundo externo. Por outro, ainda que conclua pela sua impossibilidade, vê­se obrigado a consentir que sua conclu­

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Ensaios sobre a filosofia de Hume são em nada interfere naquilo que de alguma maneira ele sa­ be, mas não entende, que sua razão não concebe, não conhece. É desta forma que Hume termina o Livro 1 do Trata­ do, profundamente insatisfeito: “é mais fácil impedir todo exame e investigação do que refrear uma inclinação tão na­ tural e nos guardar daquela certeza despertada sempre que examinamos um objeto de maneira exata e completa”. Mes­ mo nas ocasiões em que a razão, o raciocínio filosófico, deixa clara a impossibilidade de afirmar um dado mundo independente e correspondente às percepções, ainda assim, não se perde aquela certeza a respeito de sua existência inde­ pendente. Afinal, “tendemos a esquecer não apenas o ceticismo, mas nossa modéstia também, e empregamos ex­ pressões como é evidente, é certo, é inegável” (T 1.4.7.15). É justamente nesse ponto que, apesar de se considerar cético, Hume confessa: “também eu posso ter cometido essa falta”. Ele justifica essa aparente contradição – entre o fato de se afirmar cético e, mesmo assim, manter crenças – dizendo que, na verdade, “foi a visão presente do objeto” quem o for­ çou a usar aquelas expressões. E, por fim, adverte que elas não refletem um possível espírito dogmático dele, nem uma imagem presunçosa de seu próprio juízo, os quais não são, pois, sentimentos adequados a ninguém, “muito menos a um cético” (T 1.4.7.15). Destaco, então, alguns questionamentos a respeito dos diversos problemas levantados até aqui: 1) Qual a relação entre realismo­ontológico e antirrealismo­epistemológico na problemática sobre mundo externo no interior da filoso­ fia humeana? 2) Como se constitui a crença na existência de corpos, numa realidade exterior? 3) Como é possível saber de maneira tão segura que o mundo existe, mesmo consta­ tando sua impossibilidade pela razão cético­filosófica? 4) Diferentemente do que pensava Hume, é possível que um

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Leandro Hollanda cético mantenha crenças sem que isso leve a contradizer seu ceticismo? Hume apresenta suas respectivas soluções para as três primeiras questões as quais me proponho responder. E a respeito delas é que escrevo a primeira parte desse tra­ balho. O último problema será tratado na parte final desse texto. A resposta para a questão de número 4 não pode ser encontrada na filosofia de Hume. Afinal a sua insatisfação com sua conclusão consiste, justamente, no fato dele não achar uma solução que julgasse satisfatória para o paradoxo ao qual seu ceticismo o levou. A fim de responder aos três primeiros questionamentos, recorrei ao Tratado e à Investi­ gação sobre o entendimento Humano, além de a alguns textos de comentadores. Já para a última pergunta, recorrerei às Hipotiposes Pirrônicas, de Sexto Empírico. O objetivo final desse trabalho consiste, pois, em mostrar que é possível ela­ borar uma resposta a qual satisfaça o problema que afligiu Hume: ser cético e, ao mesmo tempo, manter crenças.

O mundo e a sua contradição O passo inicial a ser dado na elucidação da problemática, de fato paradoxal, entre o realismo­ontológico e antirrealismo­ epistemológico, presente no interior da filosofia de Hume é, certamente, deixar claro o paradoxo já fixado dentro do pró­ prio conceito de “mundo”. Ou melhor, deve tornar­se evidente, quando se mencionar o “problema da realidade externa”, que essa expressão não se refere a um só problema. O “problema da realidade externa” em Hume diz respeito, na verdade, a outros dois pontos que, por si mesmos, já são bastante complexos: I) A ficção da existência contínua produzida pela imaginação; II) A crença na existência dos corpos imposta pela natureza.

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Ensaios sobre a filosofia de Hume A fantasia da existência contínua – que comporta, co­ mo decorrência, a ideia de distinção – é produzida na imaginação. Ou, nas palavras do próprio Hume “a opinião da existência contínua ocorre primeiro e, sem muito estudo ou reflexão, traz consigo a outra (opinião de uma existência distinta), sempre que a mente segue sua tendência natural”. A imaginação possui uma “propensão natural” em atribuir existência contínua a “objetos ou percepções sensíveis que vemos assemelhar­se uns aos outros em sua aparição des­ contínua” (T 1.4.2.44). Dito de outra maneira, a imaginação “produz a ficção de uma existência contínua”, que nada mais é do que resultado da tendência natural a qual mencionei acima. E tal inclinação associativa é que leva a atribuir uma fictícia identidade às percepções semelhantes, e “essa ficção, assim como a identidade, é falsa” (T 1.4.2.43.). É falsa por­ que os sentidos “não oferecem suas impressões como imagens de alguma coisa distinta, ou seja, independente e externa. [...] Tudo o que eles oferecem é uma percepção sin­ gular e jamais nos dão a menor indicação de algo para além dela. Uma percepção singular nunca poderia produzir a ideia de dupla existência” (T 1.4.2.4). Essa impossibilidade se dá, mesmo, pelo fato de que só é possível conhecer os supostos objetos externos, segundo Hume, pelas percepções que eles ocasionam, pois não somos capazes de conceber um tipo de existência diferente das percepções. Em outras palavras, “não se pode conhecer nenhum objeto externo de maneira imediata, sem a interposição de uma imagem ou percepção” (T 1.4.5.15). E se, mesmo assim, ainda há tentativas de conhe­ cer objetos de maneira imediata é porque a própria natureza e essência da relação é conectar nossas ideias entre si de tal modo que se acredita em tal possibilidade. Isso se dá em razão da imaginação, a qual, irresistivelmente, leva à crença na verda­ de do que apenas é resultado das conexões.

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Leandro Hollanda Não apenas fantasiamos a existência contínua, nós também cremos nela. Mas de onde vem tal crença? Essa questão nos le­ va a quarta parte do meu sistema. Já mostrei que, de modo geral, a crença consiste em nada mais que na vivacidade de uma ideia e que uma ideia pode adquirir essa vivacidade por sua re­ lação com alguma impressão presente. Impressões são naturalmente as mais vívidas percepções da mente e algo dessa vivacidade é transmitido, por relação, a todas as ideias conecta­ das. A relação induz a mente ir de uma ideia a outra, fazendo com que essa transição aconteça de modo suave. A mente vai tão facilmente de uma percepção à outra que dificilmente se nota a mudança, mantendo na segunda percepção (a ideia) uma considerável parte da vivacidade da primeira (a impressão). A mente é incitada pela impressão vívida, e tal vivacidade é transmitida, sem muita perca, à outra ideia relacionada, isso por causa da fácil transição e da própria inclinação (dispositi­ on) da imaginação. [...] Temos, portanto, uma tendência a fantasiar a existência contínua de todos os objetos perceptíveis. E, visto que se pode notar essa disposição a partir de alguma impressão vívida, é ela que dá vivacidade àquela ficção, o que significa dizer que ela nos faz acreditar na existência contínua dos corpos (T 1.4.2.41­42).

Assim sendo, essa ficção vívida é responsável por despertar a crença de que a interrupção do objeto na aparição aos sentidos não implica numa interrupção de sua existên­ cia. As percepções sensíveis passam a ser entendidas como possuidoras de uma existência contínua e ininterrupta. Po­ rém, apesar dessa irresistível convicção, “quando comparamos experimentos e raciocinamos um pouco” logo percebemos que essa “doutrina da existência externa de nossas percepções sensíveis é contrária a mais clara experi­ ência. E isso nos faz retornar sobre nossos passos” (T 1.4.2.44). Todavia, os filósofos estão longe de rejeitar a po­ sição a favor de “uma existência contínua por terem rejeitado a independência e continuidade de nossas percep­

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Ensaios sobre a filosofia de Hume ções sensíveis”. Instaura­se, então, um paradoxo, que se ex­ plica por “uma grande diferença entre as ideias que formamos após uma reflexão e as que abraçamos por uma espécie de instinto ou impulso natural” (T 1.4.2.51). Segun­ do Hume, ainda que alguns céticos extravagantes possam rejeitar a existência externa, eles só o podem fazer verbal­ mente, mas jamais poderiam acreditar em tal negação por eles proferida. Essa afirmação de Hume é costumeiramente mal compreendida, inclusive por Price, autor de um dos mais completos trabalhos sobre o tema. Em Hume’s Theory of the External World Price atribui problemas à filosofia humeana que não se sustentam numa análise mais rigorosa. Isso pode ser notado, sobretudo, em sua introdução. Já em outras partes do livro, Price parece re­ jeitar algumas hipóteses de Hume antes mesmo de tentar compreendê­las em sua heterogeneidade. Isso é evidente na sua contestação do antirrealismo­epistemológico humeano, o qual ele entende como impossibilidade psicológica. Contudo, é importante notar: são fundamentais as observações de Price que o levam a uma conclusão idêntica à minha, i.e. de que os textos de Hume sustentam a incognoscibilidade huma­ na quanto ao mundo externo. Minha discordância quanto a conclusão de Prince diz respeito ao uso que ele faz dessa constatação. Mostrarei, a seguir, os argumentos que condu­ zem Price às objeções a respeito da interpretação daquele antirrealismo­epistemológico na filosofia humeana. Hume inicia a seção “Do ceticismo quanto aos senti­ dos” indagando: quais as causas da nossa crença na existência de corpos? Ao que ele diz ser “em vão” ir além desse questio­ namento e perguntar: há corpos ou não? A questão que se põe, então, é: porque é inútil a tentativa de avaliar a crença, i.e., estabelece­la como verdadeira ou falsa? Price (1967, 11­ 13) fala sobre a possibilidade de uma teoria que atribua essa

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Leandro Hollanda inviabilidade avaliativa denunciada por Hume a uma impos­ sibilidade psicológica de “nos questionar se uma crença é verdadeira”. A partir disso, Price afirma caber três críticas para os que defendem essa explicação: I) Hume argumenta, algumas vezes, que em seus momentos filosóficos ele duvida da existência de um mundo material, em­ bora o contínuo “descuido e desatenção” logo coloquem fim a sua dúvida. Se ele pode duvidar, argumenta Price, então não é completamente impossível perguntar se corpos existem. II) Se alguém acredita em p, então para essa pessoa a questão “p é verdadeira ou é falsa?” deve fazer sentido, caso contrário p seria completamente incredível. Afinal, não se pode acreditar em algo que seja logicamente impossível questionar. Quem acredita em algo pode colocar em dúvida sua crença a respeito disso. III) Quando um homem diz que é impossível que um ser hu­ mano considere certa questão, ele mesmo formula o suposto impossível questionamento. Portanto, “somos capazes de con­ siderar a questão, mas talvez sejamos incapazes de considerar a resposta ‘não’. E talvez seja esse o sentido de que é ‘em vão’ per­ guntar se existem ou não corpos”. Mas, mesmo nesse caso, ainda seria possível negar a sua existência.

E, a partir dessas três críticas, Price (1967, 12­13) conclui que é necessário encontrar outra interpretação para as sentenças humeanas, diferente do antirrealismo­epistemo­ lógico, que ele entende como uma impossibilidade psicológica. Aliás, essa é, justamente, a tese que defendo nesse artigo. Daí, a solução de Price para “salvar” a teoria de Hume das suas críticas é afirmar que ele “falhou ao não distinguir cla­ ramente o psicologicamente impossível do sem sentido ou obscuro”. Assim, seria impossível verificar a realidade de uma crença não por causa da incognoscibilidade humana sobre re­

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Ensaios sobre a filosofia de Hume alidades externas. Isso se daria, na verdade, pelo fato de que a pergunta sobre a veracidade da crença é obscura demais a ponto de não fazer sentido tal questionamento. Ora, a ques­ tão que se coloca é se Hume não percebeu esse problema conceitual, ou se, na verdade, Price não interpretou adequa­ damente a posição humeana. Tendo a encontrar mais razões para considerar que, na verdade, é a interpretação de Price que incidiu em falhas. Afinal, o que Hume quer dizer quando escreve que é possível negar verbalmente a existência externa, mas que é impossível acreditar nessa negação? Parece evidente que Price interpreta essa afirmação de Hume como equivalente à máxima “é impossível negar a crença na existência exter­ na!”. A prova disso está nas supostas refutações que Price fez às sentenças humeanas. Sua interpretação o obrigou con­ cluir que Hume teria falhado ao não distinguir claramente conceitos fundamentais da sua própria filosofia. Numa aná­ lise cuidadosa, percebe­se que Price diz algo bem diferente daquilo que Hume afirma. Isso porque Hume não diz que “é impossível negar sua crença”, mas sim que “é impossível acreditar na negação de sua crença”. Por serem parônimas, talvez essas espécies de formulação induzam muitos leitores de Hume ao erro. E justamente aqui que se encontra o calca­ nhar de Aquiles da interpretação de Price. Quando Hume diz que é impossível acreditar nas negações das próprias crenças, ele está dizendo, de outra forma, algo como que “é possível negar suas crenças, só não é possível acreditar em tais nega­ ções”. Se estou certo, e se Hume não foi ingênuo em sua distinção conceitual (como afirmou Price), mas quis, na verdade, denotar a já mencionada limitação psicológica hu­ mana, então se pode responder às três críticas de Price da seguinte forma:

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Leandro Hollanda À crítica I: Hume não está negando que seja impossível per­ guntar se existem corpos, mas apenas afirmando que, apesar de suas reflexões denotarem a impossibilidade de um dado mun­ do, o hábito e as estruturas mentais levam o entendimento a ignorar, seja por descuido ou desatenção, essas conclusões ra­ cionais. À crítica II: A questão “p é verdadeira ou é falsa?” faz todo sen­ tido para Hume. Questionar­se dessa forma é o que ele faz em “Do ceticismo quanto aos sentidos”. De fato, quem acredita em algo pode colocar em dúvida aquilo em que acredita. Hume está querendo dizer, na verdade, que apesar de pôr em dúvida sua crença, ele está psicologicamente condicionado a ignorar tal dúvida em suas ações. À crítica III: Hume não nega que seja possível colocar as cren­ ças em dúvida, afinal é isso que ele faz durante toda aquela seção mencionada. Para Hume é sempre possível negar a ver­ dade de uma crença, e ele nos dá vários exemplos disso. O que Hume afirma, na verdade, é que, apesar de alguém negar a ve­ racidade de sua crença, é psicologicamente impossível acreditar em tal negação, i.e., agir em detrimento das crenças.

Ora, parece­me que a posição contrária de Price à impossibilidade psicológica foi motivada por certa confusão com a terminologia humeana. Ele confundiu termos apa­ rentemente simples de se distinguir, mas que são centrais para a compreensão do pensamento de Hume sobre o tema. São eles: negar, conclusão racional da impossibilidade e des­ crer. Price confundiu uma formulação do tipo “é impossível acreditar na negação de sua crença” (defendida por Hume) com algo como “é impossível negar sua crença” (interpreta­ ção de Pric). Crença é um termo tão comum na terminologia humeana que, em geral, tem sido muito mal compreendido. Desta forma, é necessário esclarecer alguns pontos acerca desses três conceitos a fim de evitar novas confusões.

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A impotência da razão frente às paixões A compreensão das diferenças que existem entre aqueles três termos pode evitar confusões, como a de Price. Para co­ meçar, o termo negar deve ser entendido em sentido menos amplo do que uma conclusão racional da impossibilidade, sendo compreendido, primeiramente, como resultado das próprias crenças que uma pessoa sustenta. Por exemplo, é possível que alguém me conte algo acerca do qual eu não consiga acreditar, como por exemplo “César nunca atraves­ sou o Rubicão”. Ora, é natural que se negue tal afirmação, afinal os fatos históricos me levam a crer que César atraves­ sou, sim, o Rubicão. Mas é possível que eu repense essa crença se um renomado grupo de historiadores concluíssem que César nunca atravessou o Rubicão. Assim sendo, é sem­ pre possível reavaliar as próprias crenças. E, mediante isso, desde que haja algum fato que me leve a modificar aquilo no qual creio, minha negação poderia passar a ser de que “César atravessou o Rubicão”. Pode­se, portanto, como na segunda crítica de Price, sempre avaliar uma crença e, portanto, ne­ gá­la. É possível, num outro sentido desse termo, apenas proferir negativas, sem que elas estejam diretamente ligadas a uma certeza interna. Por exemplo, “eu não estou lendo esse texto, nesse exato momento”. Esse seria o sentido mais ne­ gativo de negar, como no caso da terceira crítica de Price, a qual diz que, apesar de se acreditar na existência dos corpos, seria possível, ainda assim, negá­los. Nesse sentido, dife­ rentemente do primeiro, tudo poderia ser negado, já que não há um critério para a negação, a não ser oposição a uma afir­ mativa. Já no caso da conclusão racional da impossibilidade há uma ampliação do sentido da negação, que não se limita nem às crenças e nem é algo feito sem critério. É uma ampliação semântica do termo negar. Aqui, a negação se destina até mesmo àquilo que mais fortemente se acredita. É justamen­

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Leandro Hollanda te o sentido de negação empregado por Hume em sua crítica destinada à crença. É o momento da reflexão e possibilidade de se pensar para além das próprias inclinações, de refletir além daquilo que se tende a crer sem restrições. É, exata­ mente, o momento crítico, do pleno uso da razão. É a negação como tratada na primeira crítica de Price. É o termo que ex­ pressa o momento do pleno uso da razão, quando ela se impõe, o instante em que se interroga à tendência natural, à crença. Seria a única condição da razão de superar as incli­ nações, uma vez constatando sua iniquidade. Mas apenas seria, pois mesmo observando a irrazoabilidade do que se crer, não se consegue, ainda assim, descrer. Isso porque aquele quem crer, i.e., o sujeito, não é senão mera fantasia sustentada por uma forte crença fundada sob a égide da fic­ ção de uma identidade pessoal. O sujeito não é senão criação da imaginação, sujeitado a ela e aos princípios dela. A im­ possibilidade de descrer é o ponto primordial da filosofia de Hume, do qual Price não dá conta em suas críticas. A partir da sua compreensão é que parece se justificar plenamente a máxima humeana de que a razão é e deve ser escrava das pai­ xões. Esse é o ponto que afasta Hume de qualquer racionalismo. A crítica da razão é válida, mas limitada, não passa de mera constatação. Reflete o momento em que a ra­ zão se percebe em sua máxima impotência. É o momento em que ela constata suas arbitrariedades sem poder deixar de reproduzi­las. É com o desenvolvimento de sua análise do processo cognitivo que Hume deseja explicar esse paradoxo, entre o que a razão mostra como impossível, mas no que, mesmo assim, não se consegue deixar de acreditar. Para Hume, a imaginação age mediante associações de contiguidade, seme­ lhança e causalidade criando, assim, conclusões que ultrapassam os limites dos dados da própria experiência. É

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Ensaios sobre a filosofia de Hume dessa maneira que a imaginação fantasia a independência e continuidade das percepções. Mas como interpreta Deleuze (2001, 69), somente com advento da crença na existência dos corpos é que a ficção devém um princípio da natureza hu­ mana. Isto é, a crença transforma em um sistema a coleção de ideias que constitui a mente. Tal sistema não é senão o “sis­ tema do saber e dos objetos do saber” (Deleuze, 2001, 69). A imaginação é criativa, ela faz com que as questões de fato se relacionem e cria as condições de possibilidades para o des­ pertar da crença, a qual é fundamental para que se constitua o conhecimento. Assim, graças à crença é que as ficções ou fan­ tasias transformam­se em princípios da natureza. E os princípios de associação é que possibilitam a mera coleção de ideias devir um sistema de saber. E esse último só se constitui plenamente como a crença no que foi associado pela imagina­ ção. Portanto, tal sistema é produto dos princípios associativos, das faculdades mentais e do sentimento. Enquan­ to o mundo, por outro lado, como continuidade e distinção, i.e., racionalmente, é ficção da imaginação. Desta forma, o que Hume trata como fictício é o exato conhecimento da exis­ tência de corpos. Enquanto o sentimento de crença é elemento fundamental no sistema de constituição do saber. Nesse sentido, concordo com a posição de Deleuze, segundo quem há uma contradição na filosofia humeana “entre a extensão e a reflexão, a imaginação e a razão”, i.e., entre “os sentidos e o entendimento”. Além disso, a meu ver, essa contradição faz com que a solução do problema pareça impossível para Hume. Isso porque, mesmo opostos, razão e sensação não podem destruir um ao outro. É como Deleuze (2001, 73) sublinha: para o paradoxo de Hume “não há esco­ lha a ser feita entre um ou outro dos princípios, mas entre o tudo ou nada, entre a contradição ou o nada”. Mesmo com a reflexão mais apurada, a qual constata a impossibilidade de

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Leandro Hollanda uma existência contínua, não há escolha a ser feita em detri­ mento das “sugestões da imaginação”. Portanto, em vez de “referir a natureza ao espírito, é preciso referir o espírito à natureza” (Deleuze, 2001, 74). Isto é, em vez de a reflexão ir de encontro às imposições da natureza, é preciso que a ten­ dência natural ignore a crítica da razão, o raciocínio filosófico, para que seja possível a constituição do conheci­ mento prático. É no encerramento do Livro 1 do Tratado onde se pode ver que Hume vai até o fundo dessa contradi­ ção. E, aí, ele encontra o impulso do senso comum. É o senso comum que é capaz de estabelecer a ciência. O senso é comum deve, aqui, ser compreendido como um sinônimo de realismo científico, i.e., que o homem é capaz de conhecer co­ mo a natureza de fato é. E para Hume, mais uma vez como explica Deleuze (2001, 97), só há ciência e vida no nível das re­ gras gerais e das crenças. A respeito disso, Monteiro (2009, 191) esclarece que “apenas a natureza em nós, e não a razão filosófica, é que pode restituir a confiança no conhecimen­ to”. Portanto, as crenças do senso comum em vez de se­ rem instâncias da apreensão de uma realidade em si mesma são, na verdade, “conjecturas acerca dessa realidade que fa­ zemos naturalmente, espontaneamente, levados por dispositivos biológicos ou neurobiológicos” e esses são, por conseguinte, objetos das “conjecturas propostas pela ciência e epistemologia” (Monteiro, 2009, 191.) Ainda segundo Monteiro, para Hume “foi a sabedoria da natureza que nos deu um instinto ou tendência capaz de realizar um acordo e uma harmonia entre o curso das ideias e o curso da nature­ za”. E a melhor explicação para esse acordo seria a ação do instinto cognitivo constituído nos homens pelos mecanis­ mos seletivos da natureza. Nem mesmo um cético, que afirme a impossibilidade de conhecer as realidades externas

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Ensaios sobre a filosofia de Hume para além das percepções, consegue agir em detrimento da sua crença na existência de um mundo externo. Parece evidente que os homens são levados a depositar fé em seus sentidos por um instinto ou predisposição natural, e que, sem nenhum raciocínio, e quase mesmo antes de fazermos uso da razão, sempre supomos um universo externo que não de­ pende de nossa percepção, mas existiria ainda que nós e todas as outras criaturas sensíveis estivéssemos ausentes ou fôsse­ mos aniquilados. Mesmo a criação animal se rege por uma opinião semelhante e mantém essa crença em objetos externos em todos os seus pensamentos, desígnios e ações. (EHU, 12.7).

Não se pode ter certeza racionalmente, não é possí­ vel acessar pela razão, os dados reflexivos não levam a creditar na existência independente e contínua dos corpos. Apenas se tem a respeito do mundo externo impressões, pois ele mesmo não está disponível para o conhecimento, é um ponto que devemos dar por suposto (T 1.4.2.1). É, mesmo, inútil se perguntar se existem ou não corpos, pois a natureza não deixou essa resposta a nossa escolha. O mundo externo, necessariamente, é consentido, a natureza o impõe. Um ho­ mem somente é capaz de negá­lo, mas nunca de descrer da sua existência. Ele sente a existência do mundo e, tão logo, sabe que existe, apesar de ter que admitir desconhecê­lo, a menos que chame de conhecimento a crença despertada pelas conexões de ideias. É esse mesmo mundo, do qual temos apenas impressões, o qual não podemos conhecer, no qual, irrestritamente, qualquer homem crer. Ainda que toda refle­ xão demonstre a sua impossibilidade de existência independente e contínua, ainda assim, todos os homens agirão como se ele existisse. A impossibilidade de conhecê­ lo, de tomá­lo como possível através da reflexão, em nada diminui a crença na veracidade de sua existência. De fato,

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Leandro Hollanda eis aí um paradoxo, uma contradição que Hume admite não poder resolver. Mas não há uma solução, não há escolha a ser feita, afinal ou é o consentimento dessa contradição ou o na­ da. Nas palavras de Hume, ou se admite essa razão errônea ou nenhuma razão.

O cético que crê Por fim, ainda cabe perguntar: haveria uma saída para a ra­ zão errônea do cético? Há uma saída para a contradição explicada por Hume e que é intrínseca à relação entre ceti­ cismo e crença? Há alguma resposta, nas bases do ceticismo, para o questionamento de número 4, feito no início desse texto? Como foi possível perceber, Hume conclui o Livro 1 do Tratado num dilema insolúvel, que lhe parece profunda­ mente angustiante: “é mais fácil impedir todo exame e investigação que refrear uma inclinação tão natural e nos guardar daquela certeza que surge sempre que examinamos um objeto de maneira exata e completa”. Mesmo constatan­ do, a partir da crítica da razão, a impossibilidade de se afirmar um dado mundo independente e corresponde às percepções, ainda assim, nunca se perde a certeza acerca de­ le. Afinal, embora se note, mediante uma crítica da razão, “a dependência e descontinuidade de nossas percepções, não va­ mos adiante, e jamais rejeitamos, por esse motivo, a noção de uma existência independente e contínua. Essa opinião cria raízes tão profundas na imaginação que é impossível erradi­ ca­la” (T 1.4.2.51). E o motivo disso para Hume é patente: “a influência da natureza é tal, que é capaz de deter nosso avan­ ço, mesmo no decorrer das reflexões mais profundas, impedindo­nos de tirar todas as consequência de um siste­ ma filosófico” (T 1.4.2.51).

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Ensaios sobre a filosofia de Hume Para Hume a influência da natureza é tão forte que “tendemos a esquecer não apenas o ceticismo, mas nossa modéstia também, e empregamos expressões como é eviden­ te, é certo, é inegável” (T 1.4.7.15). E, apesar de se considerar cético, ele confessa: “também eu posso ter cometido essa falta”, mas justifica essa aparente contradição – entre ele afirmar­se cético e, mesmo assim, manter crenças – dizendo que, na verdade, “foi a visão presente do objeto” que o for­ çou a usar aquelas expressões. E, por isso, ele adverte que elas não refletem um possível espírito dogmático, o que não seria adequado ao seu posicionamento cético. Justamente por causa disso é que ele afirmava ser impossível que alguém viva totalmente como um cético, pois isso levaria tal pessoa a total imobilidade. A impossibilidade, segundo Hume, de que exista um homem totalmente cético se justifica pela limita­ ção em que ele se percebe frente à influência da natureza. É por enxergar essa limitação que Hume se vê obrigado a re­ duzir o amplo pensamento cético de sua filosofia a “uma modesta dose de ceticismo” (T, Apêndice, 36). Entretanto, estar condicionado a sustentar crenças mitigaria, de fato, a pretensão de uma filosofia cética? É possível, pois, que al­ guém se apresente como um cético total e, mesmo assim, sustente crenças, sem que isso contradiga seu ceticismo? A resposta para esse aparente paradoxo do pensa­ mento humeano – ser cético, observar as inconsistências das firmadas verdades acerca da vida prática e, mesmo as­ sim, ser impelido a crer – parece se encontrar no ceticismo pirrônico. Conforme Sexto Empírico (2001), é possível que um cético mantenha crenças, desde que se compreenda bem o que esse termo expressa. Portanto, encontra­se em Sexto a possibilidade de que o pleno ceticismo não leve a total imo­ bilidade. Caso tivesse lido o ceticismo pirrônico, talvez essa preocupação de Hume tivesse sido afastada. Não se sabe

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Leandro Hollanda muito bem qual era o grau de conhecimento que Hume tinha do ceticismo antigo. O mais provável é que seu conhecimen­ to deriva da obra De Acadêmica, de Cícero, que influenciou, com sua publicação em latim no século XVI, o surgimento do ceticismo moderno. Aliás, na Investigação sobre o entendi­ mento humano, o próprio Hume intitula seu ceticismo de acadêmico, o que mostra a força que Cícero teve sobre sua fi­ losofia. Contudo, a questão, aqui, é mostrar uma via que possibilite entender como não radicalmente incompatível a relação entre ceticismo e as crenças humanas, a respeito das quais Hume demonstra a impossibilidade de refreá­las. A resposta para essas questões pode ser encontrada na noção de fenômeno como definida por Sexto Empírico. No capítulo das Hipotiposes Pirrônicas intitulado “Céticos mantêm crenças?”, Sexto afirma que há uma grande dife­ rença entre manter crenças e tomar tais crenças acerca dos fenômenos como verdades. Isto é, apesar da possibilidade de dizer o que lhe aparece, o cético não infere que há uma cor­ respondência entre suas crenças e o mundo como supostamente seria em si mesmo. Para Sexto, há dois senti­ dos bem diferentes do termo crença: um para as pessoas no geral, e outro para os céticos. Ele argumenta que as pessoas, em geral, entendem como reais as coisas sobre as quais elas acreditam. Já para os céticos, afirma Sexto (2001), crença é a “concordância com o sentimento que lhes é imposto pela aparência”. Para ele, o principal é: ao pronunciar suas cren­ ças os céticos apenas “descrevem seus próprios sentimentos e dizem o que lhes aparece sem defender uma opinião, nada afirmando sobre a verdade dos objetos externos” (2001, 7). Assim, manter crenças não mitiga o ceticismo. Em última instância, nem mesmo há ceticismo sem crenças, pois é ne­ cessário que o cético se comunique para que possa colocar em dúvida o que é tomado em geral pelos homens como re­

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Ensaios sobre a filosofia de Hume al/verdadeiro. Portanto, o problema do cético não estaria em manter crenças, mas em fazer uso delas de modo dogmático, i.e., sem problematizar sua realidade. Desta forma, o cético, ao dizer o que lhe aparece, não se assemelharia ao dogmáti­ co, que ele tanto critica. Ele estaria, nesse caso, tão somente constatando o que lhe é perceptível, relatando um senti­ mento que se impõe a ele. Mas isso não é importante, pois um cético se faz pela dúvida constante, não pelo que ele é le­ vado a acreditar. Muito antes de Hume, o ceticismo pirrônico já afir­ mava que somos levados a crer no que nos aparece, não por decisão, mas porque somos impelidos. A isso incluem­se todos os homens. A diferença é que um homem cético, ao pronunciar o verbo ser, ao dizer que algo é, sempre tem em mente que tal afirmativa é sinônimo de “isso me aparece”. Portanto, um cético pode, deve e irremediavelmente man­ tém crenças, consegue falar sobre o que é o que lhe aparece. Porém, nesse caso, o verbo ser não é mais empregado para falar sobre a verdade de algo, mas apenas para informar so­ bre o que lhe é aparente. Hume, então, ao que parece, poderia ficar tranquilo, a contradição nunca colocou seu ce­ ticismo em risco. Na verdade, ela o dotou de um dos mais formidáveis exemplos de filosofia plenamente cética, tão cética que duvidou, até o fim, de seu pleno ceticismo.

REFERÊNCIAS HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Tradução de Déborah Danowski. 2.ed. São Paulo: Ed. Unesp/Imprensa Oficial do Estado, 2009. |T|

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Notas 1 Caberia aqui, se fosse o caso, uma discussão sobre a passividade ou ati­ vidade da imaginação. Esse problema é tratado por Gilles Deleuze em Empirismo e Subjetividade, para quem a imaginação é, na filosofia hu­ meana, uma atividade puramente passiva: “A imaginação não é um fator, um agente, uma determinação determinante; é um lugar, que é preciso localizar, isto é, fixar, é um determinável. Nada se faz pela imaginação, tudo se faz na imaginação. Ela nem mesmo é uma facul­ dade de formar ideias: a produção da ideia pela imaginação é tão­só uma reprodução da impressão na imaginação” (Deleuze, 2001, 11). To­ davia, é difícil defender a tese da passividade total quando se nos defrontamos com a seguinte afirmação de Hume: “A ação da imagina­ ção pela qual consideramos um objeto ininterrupto e invariável e a ação pela qual refletimos sobre a sucessão de objetos relacionados são sentidas de maneira quase igual” (T 1.4.6.6, itálico meu). É bem ver­ dade que Deleuze (2001, 11) admite que a imaginação “tem certamente sua atividade”, porém ele acredita que “essa própria atividade carece de constância e uniformidade, é fantasista e delirante, é o movimento de ideias, o conjunto de suas ações e reações”. Concordo em parte que há certos momentos em que Hume parece atribuir à imaginação certa passividade, como quando afirma que o hábito e a experiência “atuam conjuntamente sobre a imaginação” (T 1.4.7.3). Porém, a meu ver, De­ leuze incorre em erro ao supor que a imaginação só produz ficções, como também erra quem acredita que a imaginação seja, na filosofia humeana, uma faculdade totalmente ativa. Parece­me que a interpre­ tação mais adequada é aquela que entende a imaginação como uma faculdade criativa e reprodutora. Especificamente falando, é ativa ao ser produtora não só de ficções, mas também de relações que levam ao despertar de crenças. E também é passiva, na medida mesmo em que essas relações produzidas por ela apenas são possíveis mediante os princípios de associação que a levam a estabelecer conexões. Aqui, uma divergência frontal a Deleuze. Quando ele diz que nada se faz pela ima­ ginação, tudo se faz na imaginação, ele quer dizer, como posteriormente esclarece, que o responsável pelas conexões de ideias seria os princípios de associação, que apenas usariam da imaginação para estabelecer as próprias conexões. Penso que essa interpretação é um tanto infeliz, já que os princípios associativos, nesse caso, se afi­

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Leandro Hollanda guram quase como entidades metafísicas, que agiriam sobre a imagi­ nação. A melhor interpretação para os princípios de associação, parece­me, é entendê­los como tendências, mecanismos próprios do modo de ação da imaginação. Isto é, a vivacidade da ideia é sempre proporcional “à tendência à transição” da ideia pelos princípios de as­ sociação da imaginação (T 1.3.12.13). 2 Apesar de me referir ao conhecimento humano, a mesma afirmação vale para os demais animais. Hume deixa suficientemente claro no Tratado que os demais animais também são dotados de razão, muito embora essa afirmação apareça radicalmente diferente na Investigação sobre o entendimento. Segundo Hume “quase tão ridículo quanto negar uma verdade evidente é realizar um grande esforço para defendê­la. E nenhuma verdade me parece mais evidente que os animais são dota­ dos de pensamento e razão assim como os homens” (T 1.3.16.1). Já na Investigação, dizer que os animais possuem razão “assim como os ho­ mens” já não é mais o caso. Isso porque o próprio Hume percebe que, diferentemente do que fizera no Tratado, é necessário deixar claro o motivo da “diferença entre homens e animais”, uma vez que, apesar de ambos possuírem razão, fazem uso bem diferente dela (EHU, 9). 3 Em seu fundamental Sense and Sensibilia, Austin trata do problema acerca do real por um viés linguístico. Lá, ele afirma que o modo como as coisas são percebidas constitui apenas um fato em aberto a respeito do mundo, tão aberto à dúvida e confirmação pública quanto o próprio “ser das coisas”. Ou seja, não é possível estabelecer critérios definiti­ vos/gerais para distinguir o real e do não­real. Isso porque, para Austin, o mundo e as palavras estão relacionados por convenções, se­ jam elas descritivas, correlacionando palavras com tipos de situações encontrados no mundo; sejam elas convenções demonstrativas, correlacionando palavras com situações reais ocasionalmente encontradas no mundo.

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