Reavaliando o papel da sala de aula no ensino do Direito – Pirlimpsiquice e as muitas faces da Literatura

July 8, 2017 | Autor: Nicole Fobe | Categoria: Legal Education, Literary Theory, João Guimarães Rosa
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REAVALIANDO O PAPEL DA SALA DE AULA NO ENSINO DO DIREITO – PIRLIMPSIQUICE E AS MUITAS FACES DA LITERATURA. Nicole Fobe.1

RESUMO. Já diria João Guimarães Rosa, considerado por muitos um dos maiores escritores da literatura brasileira, que as palavras, além de significado, “têm canto e plumagem”. Como, portanto, utilizar as palavras corretas para reavaliar e, em um momento posterior, redefinir, os elementos básicos associados ao ensino do Direito no Brasil? A proposta deste trabalho é instigar a reflexão acerca dos principais aspectos do ensino jurídico – como o papel do professor, a posição do aluno e o conteúdo transmitido – a partir do conto “Pirlimpsiquice”, que integra a obra “Primeiras Estórias” de Rosa. A título de conclusão, propõe-se ainda como a literatura pode ser trazida para a sala de aula para inovar o ensino, desafiar o aluno e, por que não, repensar o Direito.

ABSTRACT. João Guimarães Rosa, one of the most genius writers in Brazilian literature, was known for saying that words, besides meaning, also “have song and plumage”. How then should we use the right words to reevaluate and, moreover, redefine the basic elements related to legal education in Brazil? This paper’s primary objective is to instigate reflection over the main aspects of legal education – such as the role of the professor, the place of the student and the content being taught – based on the short story “Pirlimpsiquice”, which composes, among others, the book “Primeiras Estórias” written by Rosa. As a conclusion, this paper will also offer a suggestion of how literature can be brought to the classroom in order to innovate teaching, defy the student and, why not, rethink law itself.

PALAVRAS-CHAVE. Ensino jurídico – Professor – Literatura – Guimarães Rosa

KEYWORDS. Legal education – Professor – Literature – Guimarães Rosa

1

Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo, mestranda em Direito e Desenvolvimento pela Fundação Getúlio Vargas. Agradeço ao colega Nichollas Alem pela revisão e comentários.

INTRODUÇÃO. Nenhum autor brasileiro trabalhou tanto a importância da linguagem como João Guimarães Rosa. Fluente em treze línguas, criador de neologismos ímpares e de “língua” própria – que conta inclusive com dicionário específico2 – Rosa sempre acreditou no poder da linguagem para relatar, definir e, principalmente, incitar a reflexão. Apesar do estranhamento inicial em relação ao estilo de escrita tão próprio ao escritor, a verdade é que Guimarães Rosa esmerou-se por refletir a forma de comunicação do homem agreste, do matuto, com o qual conviveu ao longo de suas peregrinações Sertão brasileiro afora e adentro. Assim, na realidade, a sua escrita neologística tem inspiração na simplicidade do iletrado, do homem simples e comum.3 Aqui, chamarei de linguagem o repertório utilizado por determinado grupo, que constrói um diálogo a partir de elementos comuns. No mundo jurídico, utiliza-se linguagem específica e excludente – em relação aos não-juristas – que é apreendida já desde o primeiro dia da faculdade de Direito. A linguagem jurídica está intimamente associada ao ensino jurídico, e é justamente por isso – pela sua importância ao ensino e no ensino – que se escolheu a obra de Guimarães Rosa para apresentar a reflexão. Já nenhum conto de Rosa é tão fiel à realidade do Direito quanto “Pirlimpsiquice” 4. Inserida em uma obra que trabalha o fantástico como parte integrante da vida real, a pequena estória retrata os preparativos para uma peça de teatro e o dia da apresentação em si, lotada de referências ao Direito e, principalmente, ao ensino jurídico – que é aqui a prioridade.

A REFLEXÃO SOBRE ENSINO JURÍDICO EM PIRLIMPSIQUICE. A estória acontece em um internato, e tem início com a proposta de apresentação de uma peça teatral por parte do Dr. Perdigão, lente de corografia e história-pátria, chamada “Os Filhos do Doutor Famoso”.5 Daí em diante, proceder-se-á aos ensaios, que correm em segredo, e demandam dos doze rapazes escolhidos para os papeis esforço e dedicação quase que integrais. O início dos ensaios é recheado de cerimonialismo6, realçando-se a importância dos trajes a serem envergados pelos atores – costurados especialmente para a ocasião – e, principalmente, a importância da fala, das palavras, do vocabulário complexo, da linguagem. Os alunos são exortados a extrair de si a mais bonita voz, renunciando à sua voz adolescente. Há apenas um deles que não o faz, Zé Boné, 2

MARTINS, Nice Sant’anna. O Léxico de Guimarães Rosa. São Paulo: Edusp, 2001. “(...) vemos menos um desconhecimento e mais uma possibilidade de expressão, e por isso também ‘terá de ser agreste ou inculto o neologista, e ainda melhor se analfabeto for.’” (ROSA, 2005, p. 8). 4 ROSA, 2005, pp. 83-31. 5 Nada mais jurídico do que se auto-atribuir títulos diversos que condizem – ou não – à realidade. 6 “(...) rezou-se o padre-nosso e três ave-marias, às luzes do Espírito. Aí, o Dr. Perdigão, que empunhava o livro, discursou um resumo.” Idem, p. 83. Grifou-se. 3

personagem “diferenciado”. Trata-se de um sonhador, a fantasiar nos recreios, amante de fitas de cinema e de histórias de ficção. Dele, bem, se ria. O caráter imprevisível faz com que lhe seja atribuído papel dos mais simples, com escasso falar. Ou seja, àqueles fora dos conformes, que pensam fora da caixa, cujas ações e pensar não são facilmente apreendidos pelos demais, resta o exílio em relação ao poder conferido pela linguagem. E aos que não dominam a linguagem restam os papeis marginais, sem falas, excluídos do Direito e dos direitos. Durante os ensaios, sobressai-se, na figura do Dr. Perdigão, o caráter clássico assumido pelo professor nos cursos jurídicos. Utilizando jargão próprio, expressões em latim, e colocando-se como verdadeiro mestre na condução dos inferiores alunos, deparamo-nos com o típico professor de Direito, altivo, culto (em teoria), intimidador e superior. Lembrem-se: circunspecção e majestade..., Sus! Brio! Obstinemo-nos. Decoro e firmeza. Ad Astra per aspera! Sempre dúcteis ao meu ensinamento. Nesta última fala temos ainda o domínio do docente, do conteúdo, contra o qual não cabe questionamento ou reflexão – recebe-se a dádiva do conhecimento assim como transmitido de mestre para aprendiz. Senhores discípulos meus, para persistir no prepará-los, a perseverança não me desfalece! O professor, em missão quase que divina – reconhecida no caráter discipular com que se refere aos alunos – coloca-se a serviço do ensinar, do conteúdo em si – ao qual é essencial, naturalmente, a sua pessoa. O único que continua a desafiar os ensinamentos, inconfuso e contente, é ninguém mais, ninguém menos, que Zé Boné. Tratado por todos como um bobalhão, torna-se prioridade para o Dr. Perdigão: sua missão é enquadrá-lo como os demais. Falhando em sua tarefa, intima o rapaz a representar de mudo. Pronto, ao desafiar o conteúdo, ao desafiar o mestre, deixa de merecer voz. O réprobo, o ímprobo, que me malsina os dias... Como aproximar a população do Direito ou, antes, o Direito da população, quando o vocabulário jurídico é, em si, restritivo? A fala do Dr. Perdigão mostra bem como o repertório só pode ser efetivamente comungado com aqueles que o compreendem. E no mundo jurídico percebe-se como a linguagem, ou antes, um vocabulário, exclui os não-juristas do seu âmbito, da sua compreensão, da sua utilização. É assim que os juristas reforçam o seu poder e o seu lugar no mundo – pode-se dizer que a medicina salva vidas, a engenharia constrói obras e o Direito desvenda frases incompreensíveis aos demais. Justamente por utilizar um repertório de uso tão restrito, o Direito acabou encerrando-se em si mesmo, fator que tem se acentuado nos últimos anos. Os jornais estão repletos de opiniões de cientistas políticos, cientistas sociais, economistas e historiadores, e cada vez menos juristas são requisitados. No Jornal Folha de São Paulo, por exemplo, em rápido levantamento7, nota-se que, dos 126 colunistas, apenas 7

Feito com base nas informações disponíveis na página http://www1.folha.uol.com.br/colunistas/. Último acesso em 13 de agosto de 2014. No Estadão, há vinte e dois colunistas de Economia, treze em “Cultura”, sete colunistas na seção “Internacional”, e seis colunistas para “Educação”. Não há uma seção específica para assuntos jurídicos. http://www.estadao.com.br/colunas/.

5 são juristas, menos de 4% do total. Tão ensimesmados, os juristas, a utilizar vocabulário que tanto lhes é aprazível, empoderando-se das palavras, que deixaram de ser ouvidos pelos demais. Conversam apenas entre si.8 Sus e eia! Abroquelemo-nos... Ensaios a todo vapor, os alunos sabem tudo de cor e salteado. Fizeram o seu trabalho, absorveram os ensinamentos passo a passo, sequer precisam do “ponto”, cujo papel é desempenhado pelo narrador do conto. Ponto, no teatro, é a pessoa que sussurra o texto durante a peça àqueles que esqueceram suas falas. Em momento posterior, será o próprio Dr. Perdigão quem assumirá este papel – o que não pode ser mais significativo. Muito embora tudo tenha sido perfeitamente absorvido, o mestre ainda estará lá, na forma dos manuais, dos pareceres, da doutrina dominante, para relembrar aos incautos o ensinamento correto e verdadeiro. O último ensaio transcorre como sonhou e preconizou o professor – sem erros. O padre Diretor, no entanto, após assistir ao último ato, reclama que os alunos estavam certos, mas acertados demais, sem ataque de vida válida, sem a própria naturalidade pronta. Nada mais previsível. O único estoque de naturalidade da peça, Zé Boné, devia estar mudo em algum canto. Chega o grande dia. Sala lotada, alunos ansiosos. Uma alteração de última hora faz com que o narrador assuma o papel principal e o Dr. Perdigão retraia-se à caixa de papelão destinada ao ponto. Luzes. Branco. Não há falas, esquece-se delas. A linguagem natural, as palavras que conhece, não podem lhe ajudar, agora que o seu treino foi direcionado para esquecer sua voz e rechear-se com a voz dos ensinamentos do Dr. Perdigão. Vaias. O pano emperrou, não desce. Novas vaias. De repente, surge Zé Boné no palco, a improvisar. Como consumidos por um transe, todos os demais atores unem-se à representação do colega e desempenham papel novo, não ensaiado, não direcionado. Atenção! Submetam-se! – desespera-se o Dr. Perdigão de dentro da sua caixa. Perdeu o controle, seus alunos não estão a repetir o conteúdo exaustivamente por ele ensinado! Dr. Perdigão se soprava alto, em bafo, suas réplicas e deixas, destemperadas. Delas, só a pouca parte se aproveitava. Quantas vezes escuta-se, em discussões sobre o ensino jurídico, que o law in action aprendese no estágio, cabendo à universidade o law in the books? Difícil encontrar exemplo mais representativo da diferença entre aprendizado e prática que aquele retratado por Rosa. O conteúdo pouco serviu. A figura do professor limitou-se, na hora da necessidade, a uma figura exigindo seu controle de volta – o controle exercido na sala de aula. E os alunos viram-se despreparados, em pânico, diante da realidade. Despidos da sua voz crítica, da sua personalidade e da sua criatividade ao longo dos “ensaios”, ao longo do ensino, o despreparo diante da vida real foi completo. Salvos pelo único colega que ainda mantivera parte de sua inventividade intacta, puderam reativar aquilo 8

Cumpre salientar que muitos acadêmicos têm procurado reativar o diálogo entre o Direito e as demais áreas do conhecimento, sendo este um movimento bastante recente e que, como pode ser visto no levantamento, ainda não surte efeitos significativos.

que a sufocante rotina de “ensaios” havia suprimido – eles próprios. Eu via – que a gente era outros – cada um de nós, transformado. O Dr. Perdigão devia de estar soterrado, desmaiado em sua correta caixa-do-ponto.

OS ELEMENTOS DO ENSINO JURÍDICO RETRATADOS EM PIRLIMPSIQUICE. Inúmeras são as reflexões possíveis a partir da leitura do conto. Optou-se aqui por destacar, em primeiro lugar, o papel assumido pela sala de aula no ensino do Direito e, indiretamente, o papel do professor. Isso porque é impensável, no Direito, conceber uma sala de aula sem professor. A aula é de sua competência, é sua exclusividade, cabendo a ele o domínio e controle do ambiente, do conteúdo e dos próprios alunos. Quantas vezes já testemunhei, na apresentação de seminários, o “corte” feito pelo docente quando os alunos tentavam dar início a discussão sobre o texto? A discussão é de titularidade do professor. O controle, o controle! Outra situação bastante comum ocorre quando, em qualquer tipo de apresentação, o aluno procura trazer exemplos externos ao Direito, ou mesmo explicar algum conceito estranho ao mundo jurídico e o professor rebela-se contra a ousadia, contra a possibilidade de contaminação da pureza jurídica com temas outros. Fato é que a classe, assim como a peça, não pertence aos estudantes. Ela é de propriedade exclusiva do docente. O espaço ali é voltado inteiramente para um tipo de aprendizado de um tipo de conteúdo, nada mais. Mesmo as universidades mais progressistas têm dificuldade em desviar o foco do docente para o aluno. Não digo que esta seja a variação correta, mas que, ao fim e ao cabo, na vida real, os estudantes serão conduzidos ao papel de efetivos protagonistas – e esse papel jamais terá sido assumido por eles durante sua formação. Não seria mais correto, ou pelo menos mais justo, que eles experimentassem a responsabilidade da posição em algum momento dos seus estudos? Não é o objetivo final de uma universidade preparar seus alunos para o pleno exercício de sua função? Outro aspecto essencial à sala de aula é o conteúdo ensinado. Estipulou-se, no ensino jurídico brasileiro, que a formação do jurista deve ser constituída quase que integralmente por dogmática. A dogmática que dita o que deve-ser, e não o que efetivamente é. A questão é, e quando o pano não desce? E quando a vaia toma conta da plateia? Nada disso está no plano do dever-ser. Confrontado com um caso real relatado, no mais das vezes, por um estranho ao mundo jurídico, caberá ao jurista depreender da fala os aspectos jurídicos relevantes, improvisando um caso sobre os fatos que julgar pertinentes. Embora uma certa dose de dogmática seja necessária, essa confrontação com a vida real não esteve presente em momento algum dos “ensaios”. E lidar com ela exige, notadamente, a transposição do dever-ser para o ser a partir de associações, reflexos, originalidade. É como elucida Drummond no poema “Nosso Tempo”:

(...)

“Em vão percorremos volumes, viajamos e nos colorimos. A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua. Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos. As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra.”9 (Grifou-se).

O tumulto é a realidade, a lei não basta. A pergunta então assume o seguinte tom: como tumultuar o ensino jurídico? Como trazer situações que exijam do aluno uma postura ativa na resolução de um problema, ao invés de relegar o estudante à condição de um par de orelhas, a absorver textos legais e ensinamentos absolutos do seu mestre? É o comportamento adotado em sala de aula que determinará o tipo de profissional que se forma, o tipo de pessoa que se quer atuando no mercado, o tipo de jurista que construirá e pensará o Direito daquele momento em diante.

O LUGAR DA LITERATURA NO ENSINO DO DIREITO. A utilização da literatura pode ser uma forma bastante inteligente de tumultuar as instituições clássicas do aprendizado jurídico. A técnica é outra, o repertório é outro, e exige-se muito mais do docente – que tem de se desdobrar para estabelecer relações não necessariamente evidentes, além de ser obrigado a dedicar mais tempo ao preparo da aula, bem como desenvolver um tipo de habilidade diverso daquele associado à leitura de textos puramente jurídicos. O aluno, por outro lado, desenvolverá, à primeira vista, três habilidades principais: a) como ler um texto literário; b) como pensar o direito a partir de realidades que não são evidentemente jurídicas – ou seja, como estabelecer relações entre direito e vida real; e c) como escrever. A escrita costuma ser um problema aos estudantes de Direito, e provavelmente aos estudantes em geral. O problema aqui, no entanto, é que, ao se deparar com a profissão jurídica, em que a maior parte da comunicação se dá por escrito (peças, despachos, petições, sentenças, dentre outros), o aluno não consegue se expressar como quer ou deve. Normalmente se percebe que a exigência de redação nos vestibulares não implica automaticamente a boa escrita.10 E os anos de faculdade não costumam contribuir para uma escrita limpa e compreensível, muito pelo contrário – o estilo manualesco e intrincado faz parte do dia-a-dia dos operadores do direito. Em se tratando de linguagem, de repertório, o esperado seria 9

DRUMMOND, 2006, p. 38. Talvez isso se deva ao fato de o brasileiro estar lendo cada vez menos. Em levantamento realizado em 2012, a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil apurou que apenas 14% dos 5.012 entrevistados entre 18 e 24 anos eram leitores. A íntegra do relatório pode ser acessada em: http://www.bibliotecavirtualecofuturo.org.br/upload/i79/i79_LEITURAEMNUMEROS_e7bc1001bb8e0cabd8cdcb607 81f461c.pdf. 10

pelo menos fazer-se entender pelos demais usuários do mesmo código. Esta deveria ser uma das funções, ainda que indiretas, das faculdades de Direito, função essa que termina sendo ou preterida ou solenemente ignorada, função essa que poderia ser razoavelmente desempenhada a partir da leitura de textos não-jurídicos. Percebe-se, assim, que a primeira e a terceira habilidade estão intrinsecamente ligadas uma à outra e, por mais que se considere o bem escrever uma questão de prática, não se pode negar que a leitura agrega ao repertório do leitor vocabulário e estruturas sintáticas, além de expandir o complexo da criatividade – tão essencial à argumentação jurídica. O segundo ponto a ser realçado por meio da leitura é a habilidade de “encontrar” o Direito na realidade fática. O que geralmente não se menciona naquela famosa aula sobre subsunção – conteúdo obrigatório do currículo jurídico – é que, geralmente, o problema não é encontrar a norma que se aplica ao caso, mas depreender que fato ou quais fatos são relevantes para ensejar a incidência de normas jurídicas. O mundo da literatura é riquíssimo em exemplos de crimes, mentiras, aparências, problemas sociais, problemas políticos, dentre muitos outros, que podem facilmente ser deslocados para a sala de aula de uma faculdade de Direito. A título de exemplo, na obra “S. Bernardo”, de Graciliano Ramos, podem ser encontrados – e aprofundados em classe – os institutos do mútuo (pp. 17, 22, 25)11, da relação de trabalho (p. 16), da hipoteca (pp. 17, 73), da transmissão de propriedade imóvel (p. 30), da dívida de jogo (p. 21) e do contrato sinalagmático (pp. 22, 25). Do mesmo autor, “Vidas Secas” traz à tona a questão social no Brasil. A obra pode servir de embasamento a discussões acerca dos excluídos, sobre iniciativas como a de “Pasárgada”12, das moedas sociais13, microcrédito, políticas públicas, Bolsa Família – ou a própria concepção de assistencialismo –, dentre outros. Finalmente, exemplo clássico de argumentação jurídica – ou como se constrói um caso do ponto de vista do advogado – é “Dom Casmurro”, de Machado de Assis. Mas como pode o professor aplicar, concretamente, obras literárias no ensino do direito? Em primeiro lugar, é preciso estar preparado para enfrentar um modelo de aula com a qual não se está acostumado – o protagonista será o aluno e o objetivo, as suas interpretações. Caberá ao docente balizar o exercício interpretativo dos alunos (ou seja, não permitir que a discussão fique apenas no plano literário ou que vire um debate de opiniões) e trazer o conhecimento jurídico que os alunos ainda não possuem. Recomendo que se escolha uma obra com a qual o professor se sinta confortável. Isso não significa que ele terá todas as interpretações possíveis consigo, e sim que ele compreende o texto 11

As referências correspondem à 87ª edição, publicada pela Editora Record em 2008. Estudo bastante conhecido à Sociologia Jurídica, de autoria de Boaventura de Sousa Santos. 13 Sobre as moedas sociais, iniciativa que partiu de comunidades carentes Brasil afora como forma de promover o desenvolvimento local, ver: http://direitosp.fgv.br/casoteca/moedas-sociais-mecanismo-de-desenvolvimento-desafiomultidisciplinar. 12

em um recorte mais profundo e consegue realizar paralelos com o mundo jurídico sem grandes malabarismos interpretativos. Basicamente, os alunos também deveriam ser capazes de reconhecer ali um instituto do direito. Em segundo lugar, é importante que o professor chegue à sala com a obra lida e relida (não importa quantas vezes se leu um texto – ainda mais textos literários. Cada releitura possibilita uma nova descoberta – quer de interpretação, quer de contexto), realçando os trechos que importam à aula e traçando os paralelos atinentes ao direito. Também é interessante, mas não imprescindível, que se contextualize a obra: quem escreveu e quando, em qual momento histórico foi escrita e qual o momento histórico retratado, quais os impactos nacionais ou internacionais que possibilitaram sua escrita, de qual movimento literário faz parte e assim sucessivamente. Essa contextualização é bastante valiosa em se tratando de ensino jurídico uma vez que, como já foi dito aqui, o relato dos fatos e a sua conexão com o direito constitui a verdadeira dificuldade encontrada pelo profissional do direito. Esse exercício possibilita, portanto, que o aluno desde logo consiga enxergar a realidade literária/jurídica dentro de uma realidade maior, a fática. Essa constitui portanto a preparação da aula. Já o seu desenrolar depende, em grande medida, da classe com que se está lidando – se grande ou pequena, se tímida ou participativa, se constituída por bons ou maus leitores. De qualquer maneira, uma forma de iniciar o debate sem provocar constrangimentos é, por exemplo, partir de uma apresentação do contexto histórico em que se insere o texto para, em seguida, propor perguntas mais genéricas, sem respostas sim/não ou respostas que demandem um posicionamento na chave correto/incorreto. Algo como “o que acharam do texto” ou “qual o trecho que chamou a sua atenção” permite que se inicie o debate e se tenha uma ideia do nível de leitura dos alunos. A partir dessa avaliação inicial pode o docente inserir, pouco a pouco, os elementos jurídicos e suas definições – sempre trazendo elementos do texto para que os alunos não sintam que o direito está destacado dos fatos. O encerramento pode propor a releitura de alguns trechos: munidos de novos conceitos, é natural que os alunos tenham uma nova visão do que foi lido anteriormente.

CONCLUSÃO. Percebe-se, portanto, que o uso da literatura só tem a enriquecer a reflexão e o ensino jurídico. A abordagem permite uma reconfiguração da sala de aula, reconfiguração essa que possibilita ao aluno assumir o papel de protagonista, exigindo-se dele habilidades novas e desafiadoras. Visa-se, sob esse ponto de vista, a trabalhar não apenas conteúdos estritamente jurídicos como também a escrita, a criatividade e a sensibilidade em relação ao reconhecimento do Direito na vida real. Trata-se ainda de espaço de discussão desvantajoso para o “autômato”, mero decorador e repetidor de normas e símbolos da linguagem jurídica, oferecendo a possibilidade de

respeito e desenvolvimento dos muitos “Zé Bonés” a sofrer nos bancos das faculdades de Direito – aqueles alunos que se recusam a enquadrar e ser enquadrados.

BIBLIOGRAFIA.

DRUMMOND, Carlos. A Rosa do Povo. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006.

RAMOS, Graciliano. S. Bernardo. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008.

ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2005.

REFERÊNCIAS.

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Klick Editora, Coleção Ler é Aprender, Jornal Estado de São Paulo.

ECO, Umberto. The Role of the Reader: Explorations in the Semiotics of Texts. Bloomington: Indiana University Press, 1979.

FREUD, Sigmund. Escritos sobre Literatura. São Paulo: Hedra, 2014. MARTINS, Nice Sant’anna. O Léxico de Guimarães Rosa. São Paulo: Edusp, 2001.

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006. SANTOS, Boaventura de Sousa. “Notas sobre a história jurídico social de Pasárgada”. In: SOUTO, Cláudio e FALCÃO, Joaquim (Orgs.); Sociologia e Direito: textos básicos para a disciplina da sociologia jurídica. São Paulo: Pioneira, 1999.

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