Receção e representação da Revolução Russa no colapso da I República Portuguesa

September 17, 2017 | Autor: Marcos Vilhena | Categoria: Portuguese History, Russian Revolution, I Portuguese Republic
Share Embed


Descrição do Produto

Receção e representação da Revolução Russa no colapso da I República Portuguesa Marcos Nunes de Vilhena Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa

A Francisca Bicho, em memória de Alexandre Vieira, Perfeito de Carvalho e Gambetta das Neves. Neste trabalho sintetiza­‑se parte da tese homónima produzida no âmbito dos estudos doutorais desenvolvidos no ISCTE, sob orientação do Professor António Costa Pinto, e apresenta­‑se a hipótese do impacto da Revolução Russa em Portugal ter, a tal ponto, sido enquadrado pela participação do país na guerra e pela necessi‑ dade de um reconhecimento internacional da República – elementos essenciais da instabilidade que conduziria à ditadura – que as representações imediatamente feitas na sequência dos acontecimentos de outubro e no armistício, até por oposição àquele momento revolucionário de fevereiro, passariam, deturpadas, a constituir o cerne de um conjunto muito limitado, mas também muito recorrente de argumentos da sua caracterização. Ainda que parcialmente, tentar­‑se­‑á cobrir aqui um período que vai desde as primeiras representações do golpe constitucionalista russo de fevereiro de 1917 até ao 28 de maio de 1926, procedendo­‑se, para tal, a uma caracterização desse impacto nalguma literatura especializada e, depois, nalgumas fontes de época. No que respeita à bibliografia historiográfica, importará notar que a maior parte análise do impacto que se tem feito é apenas tributária da história do movi‑ mento operário e nunca dos estudos sobre o colapso da I República ou advento do fascismo em Portugal – destarte, fixa­‑se nos efeitos da participação portuguesa na guerra (1917/18) ou no desenvolvimento das lutas de tendência (1921­‑1923), mas ape‑ nas ao nível do operariado, só raramente frisando a complexidade do processo de receção em face de outros a decorrer já no seio do movimento sindical e da sociedade portuguesa (Pereira, 1971; Palminha Silva, 1978). De resto, as análises conhecidas compreendem ainda o argumento da exemplaridade da Revolução para o operariado nacional (Pereira, 1971; Quintela, 1976; Ventura, 1977), que, a despeito da sua parca formação doutrinária – parcialmente justificada pela inexistência de um partido socialista com relações sindicais e pela fraca penetração do Marxismo – a recebe, filtrada pelos anarquistas, com simpatia e conferindo­‑lhe uma dimensão mítica

Actas_I_Republica.indd 205

10/11/11 11:59:48

206 | congresso internacional i república e republicanismo – Atas

(id.,ibid.). Compreendem, finalmente, a conceção da formação eminentemente anar‑ quista do operariado nacional, salientando o seu sentido de autonomia e especificida‑ des (id.,ibid.) e, em menor grau, de um cataclismo que se abate sobre o ocidente, da criação de um certo terror burguês (Ventura, 1976; Quintela, 1976) e até de uma santa aliança contrarrevolucionária (Ventura, 1976) assistida, dizem, pelo espírito radicalmente “anticomunista” de grande parte da população (Oliveira, 1976). A formação doutrinária do operariado é, de longe, o argumento que oferece maior discussão: resume­‑se a saber se a influência – ou não (Valente, 1977) – da Revolução na formação teórica é imediata ou tardia; se completamente superada pelo impacto (Oliveira, 1975) ou apenas parcelar (Oliveira, 1976); se fomenta discórdia no meio operário ou revivifica a discussão teórica (Quintela, 1976); se fragiliza a posição dos anarcossindicalistas e se estes logram condicionar o seu impacto (Ventura, 1976; Pereira, 1971; Margarido, 1975) e fazem ou não uma “exploração maquiavélica dos factos” (Ventura, 1976; Gonçalves, 1974 [1941]; Vieira, 1950), ou se não chega mesmo a ter um bom aproveitamento para a fé libertária (Silva, 1978); finalmente, se não é afetada pela ação concertada da burguesia ou condicionada pela falta do elemento socialista nos republicanos (Margarido, 1975). Tratando do papel da imprensa, insiste­‑se na ideia de uma deturpação e enco‑ brimento de factos perpetrados pelos órgãos de informação burgueses, aos quais, só pelo final de 1918 a imprensa operária se opõe em defesa da Revolução. Fala­‑se da criação de um clima antissoviético e de uma a tentativa de impedimento da classe operária portuguesa de tomar conhecimento da realidade russa, ainda agravado pela notícia da associação de destacados líderes bolcheviques aos interesses alemães; assinala­‑se, também, o apelo sistemático à salvação do país. Sem ir mais longe, vejamos como algumas fontes de época se prestam a reite‑ rar ou refutar alguns dos argumentos entrevistos, enquanto procuramos descrever, paralelamente, a evolução das representações. Tratando da Revolução de fevereiro, atente­‑se como a aceitação do novo regime se opera, progressivamente, numa relação direta com a reiteração, pelos constituintes russos, do esforço de guerra – escolhemos alguma correspondência diplomática portuguesa compilada por Palminha Silva em Jaime Batalha Reis na Rússia dos Sovietes (1984), por considerarmos que veicula a posi‑ ção oficial do governo (ou falta dela): a 16 de março (3 de março) Pinheiro Chagas telegrafa de Paris que “Revolução liberal triunfante na Rússia”; Vasconcellos, de Madrid, escreve mesmo que “A vitória da revolução é uma grande vitória para os aliados” (idem: 60); mas só Batalha Reis, porventura acusando o nervosismo que a sua situação presencial e isolamento motivam, dá, desde Petrogrado, a ideia de uma “completa anarquia” (idem:59). Aliás, quando, a 18 daquele mês, Bartolomeu Ferreira, em Berna, regista em ofício ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Soares, que “[…] presentemente que se reconhece a natureza francamente liberal da revolução existe um vivo movimento de simpatia pela Rússia por se ver que a aurora da liber‑ dade começa talvez a raiar para aquele país.” (idem:62,63), Reis continua a insistir na “Influência alemã por toda parte grande porção socialista exigem paz Alemanha ime‑ diata preparam manifestação hostil Legações países beligerante S. Petersburgo” (idem:62) e nem o telegrama, no dia seguinte, do tutelar constituinte dos Estrangeiros, Miliukov, reiterando a participação russa na guerra, irá serená­‑lo. A 23, Reis reco‑

Actas_I_Republica.indd 206

10/11/11 11:59:48

Marcos Nunes de Vilhena | 207

menda “[...] ao Governo Português toda a reserva em oficialmente felicitar e reconhe‑ cer direito nova situação Governo russo [...]” reconhecendo “[...] não sólida reforma definitiva [...] dependente da “Assembleia Constituinte que vai eleger­‑se.” e recor‑ dando “[...] conveniência esperar que se pronunciem outras potências.” (idem:69,70). Assim procede o governo, instruindo­‑o a seguir os representantes das nações aliadas (28 de março) e acabando por reconhecer a nova situação política, embora isto não esconda que, por alguns dias, a diplomacia portuguesa, fiando­‑se dos ditames alia‑ dos, negligencia a opinião do seu diplomata mais bem colocado. Reis continuará, ao longo desse ano, a dar conta dos acontecimentos e a 28 de setembro atenta “[...] para o facto de não serem as nações centrais únicas que podem lucrar com desmembramento Rússia.” (idem: 141); talvez por isso, o primeiro tele‑ grama remetido já iniciada a Revolução, a 8 de novembro, não indicie surpresa, prestando­‑se a curta notificação sobre o desaparecimento de elementos constituintes (idem:152). Mas já então a subserviência diplomática lusa às orientações aliadas se vai tornando óbvia: a 18, Reis telegrafa: “Governo Bolchevique parcialmente constituído sob presidência do notório Lenine e Trotsky judeu alemão ministro dos Negócios Estrangeiros.” (idem:157,158); enquanto Ferreira, de Berna, parafraseando o homó‑ logo russo naquela cidade, regista: “O grupo maximalista é composto, no dizer destes mesmos russos, de uma horda de selvagens sem inteligência nem conhecimento algum, somente apoiada por uma multidão anónima fortemente enquadrada em elementos comandados pelos alemães e pelos que lhe fornece a judiaria internacional, sem outro norte que não seja o seu próprio interesse e também o instinto de vingança por ter sido sempre uma raça oprimida na Rússia.” (idem:54­‑157) E a 24, em novo ofício: [...] O espírito organizador de Lenine conduziu até aqui, na prática, à pavorosa anarquia em que se debate a Rússia e que só tem sido aproveitável aos seus inimigos. [...] Lenine é um amoral. Nunca ele teve o sentimento do dever da Rússia para com os seus aliados e até acusa estes de terem dado o seu apoio ao imperialismo czarista. [...] Perante a traição consumada poderá Lenine ser subvertido no turbilhão da política interna do seu país, mas terá ele feito, ape‑ sar dessa sanção, um irreparável mal pela dispersão de uma força que se não era já agora, esperamos, um elemento indispensável de definitiva vitória para a Entente, mantinha pelo menos um fator importante para apressar o triunfo da liberdade sobre a barbárie.” (idem:164­‑166) Tais caracterizações dos bolcheviques, amiúde reproduzidas em toda a imprensa burguesa ocidental, denunciam uma mesma ou um mesmo conjunto de fontes: governos, agências noticiosas e imprensa que, naquele período filtram, em ambos os lados da contenda, a informação mais favorável aos correspondentes esfor‑ ços de guerra. Só assim se explica que o antissemitismo surja como elemento da caracterização bolchevique no discurso de Batalha Reis, quando este nem consegue

Actas_I_Republica.indd 207

10/11/11 11:59:48

208 | congresso internacional i república e republicanismo – Atas

identificar os bolcheviques por detrás agitação revolucionária, ou até de Bartolomeu Ferreira. Bastará notar que sai do Bureau da Imprensa Britânica em Lisboa uma das primeiras obras conhecidas, em Portugal, sobre a Revolução. Em Papel histórico da Alemanha na Rússia (1918) lê­‑se: “No momento atual a Rússia está sendo dirigida pela suposição infantil muitas vezes adotadas pelos socialistas extremos, que as leis económicas são uma invenção maliciosa e supérflua da classe média. Se a fase por exemplo se prolongar, o que lhe está reservado no futuro é o que se pode chamar escravi‑ dão económica a uma potência estrangeira. A única potência à qual se voltam com alguma confiança Lenine e Trotsky é a Alemanha.” (ibidem:2) Mas a mesma subserviência, semelhantemente condicionada pela necessidade de um reconhecimento internacional e de justificar a ação repressiva sobre a oposição, se encontra durante o sidonismo, em que, a despeito da forma negligente como o consulado acompanha a guerra, se faz eco aos receios interaliados de revolução. Em 28 de março de 1918, o gabinete do ministro da Guerra recebe, do Bureau Inter­‑Allié, o aviso de que a revolução pode ter lugar em todos os países beligerantes. Curiosamente, é a missão portuguesa neste mesmo bureau e não o estado português que, no mês seguinte, reitera que “socialistas ou anarquistas” incitarão à revolução 1, face à apa‑ rente apatia da secção portuguesa da Polícia Interaliados, tutelada pela Secretaria de Estado do Interior, em reportar­‑lhe quaisquer atividades relevantes – fá­‑lo­‑á apenas em novembro, quando a greve geral revolucionária obriga, enfim, a transmitir o receio de uma “desordem bolchevique”. Já no princípio de outubro, porém, e no seguimento de um ofício da Legação dos Estados Unidos da América em que se perguntava “[...] se o Governo Português está disposto a adotar algum imediato procedimento, inteiramente aparte da atmos‑ fera de beligerância e conduta de guerra, para fazer sentir aos autores desse crimes [os bolcheviques] a aversão com que a civilização encara os seus presentes atos de atroci‑ dade.”, o Ministro do Negócios Estrangeiros, Egas Moniz, respondera que “[...] o Governo da República associar­‑se­‑á a qualquer ato das nações no sentido indicado na Nota de V. Ex.ª, dando desde já o mais decidido apoio à iniciativa de que se trata, que o Governo Português acompanhará com a maior simpatia no seguimento que o Governo dos Estados Unidos da América entender imprimir­‑lhe.” – bem entendido, o governo português dará expressão às deliberações aliadas a respeito da Rússia (Silva, 1984: 227,228). Numa nota de 25 de novembro que a comissão portuguesa do Bureau remete ao subchefe do Estado­‑Maior do Exército, solicita­‑se a “defesa contra o movimento anarquista, conhecido pelo bolchevismo” e a tomada de “medidas enérgicas de defesa contra tais elementos que livremente campeiam em alguns Estados neutrais, tais como Suíça e Espanha.” 2 – tal nota, expressando, já pelo final de 1918, um questio‑ 1 2

  Vide Arquivo Histórico Militar 1,36,32,1  Arquivo Histórico Militar 1,36,40,117

Actas_I_Republica.indd 208

10/11/11 11:59:48

Marcos Nunes de Vilhena | 209

nável desconhecimento da natureza da Revolução, vem, aparentemente, ao encontro de algumas necessidades do Estado português e dos seus aliados: a de mostrar algu‑ mas tendências ou elementos subversivos dos respetivos movimentos operários sob o mesmo escopo com que se faz a representação da Revolução, ao mesmo tempo que referencia a neutralidade da Suíça ou da Espanha como problemática. Já o ofício da legação americana indiciara o paradigma que parecem seguir, com o fim da guerra, as representações da Rússia: imputar aos bolcheviques ações que justifiquem, até junto da opinião pública ocidental, no pós­‑guerra e em plena crise económica, uma intervenção contra um estado soberano e com um governo pelo menos tão legítimo como aquele que os aliados haviam reconhecido no decurso da Revolução de feve‑ reiro. Que tal paradigma se mostrará pernicioso, deixa­‑o bem claro a edição de A Sementeira de fevereiro de 1919: “A agonia do bolchevismo ou maximalismo, tantas vezes anunciada, prolonga­‑se demasiadamente, e a revolução russa completa o seu primeiro ano [...] Não lhe faltaram, entretanto, inimigos poderosos e implacáveis, além de desleais, que por cima de de tudo alvejam a revolução russa, visando a extin‑ guir um incêndio que ameaça dilatar­‑se. E a resposta veio, em forma de inter‑ venção armada e de calúnia “de grande estilo” [...] O nó da calúnia foi apresen‑ tar o socialismo maximalista, adversário de todos os imperialismo, como vendido ao “inimigo” e como um inimigo igual ao outro [...]” (ibidem: 161­ ‑164) E prossegue­‑se, dando até conta, neste contexto preciso, de algumas preocu‑ pações operárias: “Os censores pseudo­‑revolucionários da revolução russa estarão, na verdade, convencidos de que, por trás da ditadura leninista, nada mais há na Rússia? [...] apenas a ditadura feroz de um grupo, que milagrosamente se con‑ serva no poder pela violência a despeito dos poderosos inimigos internos e externos que o cercam? [...] Certamente nós preferiríamos a revolução social sem a ditadura; mas temos que a defender, tal como está, contra a reação […] pelo que ela tem de socialista, pelo que ela tem já de anarquista, nas realiza‑ ções diretas do povo e nas suas possibilidades futuras. A ditadura não. [...] Quanto ao Terror, nem sequer o procuraremos justificar como imposto pelas circunstâncias [...] é por isso que não o deploramos.” (ibidem: 161­‑164) Saltando os cerca de três anos em que na imprensa se relatam, diariamente, os avanços e recuos da guerra civil russa, toda a espécie de atrocidades cometidas pelos bolchevistas e a discussão inerente àquela intervenção, percebe­‑se como tal para‑ digma se mantém, recursivamente, de forma a inibir o alastramento de ideais ditos avançados – e não apenas ou necessariamente os de outubro; ou, como se viu já, a justificar uma intervenção interna contra alguns grupos. Em Portugal, curiosamente, ele não serve, por via direta, ao partido “de governo”, vulgarmente o Democrático,

Actas_I_Republica.indd 209

10/11/11 11:59:48

210 | congresso internacional i república e republicanismo – Atas

porventura temendo as consequências de uma completa alienação do operariado ou a instabilidade decorrente de uma retórica pejada de acusações de bolchevismo, de que mesmo se torna, eventualmente, vítima. Melhor serve à oposição de direita – em 1923, no “Manifesto ao Paiz” que o Partido Republicano Nacionalista publica na edição de 17 de fevereiro do República, seguramente redigido por Cunha Leal ou Álvaro de Castro, lê­‑se: “Portugal, transitoriamente doente, precisa de renascer da sua crise de pessimismo, de negativismo, de indiferença e de desordem [...] A hora é das direitas. [...] perante a onda crescente do misticismo comunista russo, a velha Europa Ocidental ou se defende ou morre.”; como serve às discussões ideológicas que pela mesma altura se desenvolvem dentro do movimento operário, em que os argu‑ mentos das violências e hegemonia bolcheviques visam suspender as dissidências que a FMP e o PCP encorpam. Atesta­‑o Bento Gonçalves, em Palavras Necessárias (1941:16): “O período histórico em que se deu o aparecimento da AI dos Trabalhadores [entenda­‑se ISV], o período mais laboriosamente intenso da consolidação do regime soviético na Rússia, pôs singularmente em foco a dia‑ lética do aparecimento do oportunismo de direita e do oportunismo de esquerda no seio da classe operária. Parecendo repelir­‑se, pelo modo distinto como atuam, eles encontram­‑se na mesma síntese (mantendo as distâncias aparentes): campanha contra a Pátria Socialista dos Trabalhadores, contra a IC, a ISV, e contra tudo e todos que se destinassem a apoiar a Revolução Russa.” E confirma­‑o o insuspeito Alexandre Vieira: “[...] se por banda daqueles elementos [comunistas] houve uma tenta‑ tiva [de modificar as táticas e princípios sindicais em favor do PC], por parte dos orientadores da central sindical não se verificou uma atitude de simples defesa das táticas e princípios da CGT, antes se registou uma ação que colide com um dos fundamentos do sindicalismo revolucionário, o que passou a ter como adição a excrescência […] o que não é menos condenável.” (1950:54) Vieira refere­‑se tanto às perseguições levadas a cabo contra os comunistas dentro da CGT, como ao tom que a discussão assume, por ambas as partes, no triénio 1922/24. Se a 1 de setembro de 22, n’A Batalha, o líder da CGT, Manuel Joaquim de Sousa, escreve que “[…] a questão está apenas em não se confundir a obra emancipa‑ dora tentada pelo povo russo e a obra de domínio e escravização do governo saído da revolução […]”, que “[…] os bolchevistas iniciaram as perseguições sobre elementos revolucionários avançados por estes persistirem em defender os sovietes livres e as relações morais e económicas entre os operários das cidades e os camponeses, exerci‑ das sob um plano de recíproca liberdade […]”; cerca de um ano depois, no número de novembro de O Comunista pode­‑se ler ainda que o sindicalismo – o da CGT, entenda­ ‑se – “[…] não foi capaz de evitar a guerra nem opor­‑lhe ao menos a tática mais cómoda da sabotagem e da resistência pacífica […]”, que nele “[…] predomina um

Actas_I_Republica.indd 210

10/11/11 11:59:48

Marcos Nunes de Vilhena | 211

acanhado espírito de classe[…]”, ou que os dirigentes da CGT são uns “[…] burocra‑ tas que pretendem […] a desorganização do proletariado[…]” e uma “[…] parcela mal preparada intelectualmente, sem coragem nem energia […]”. Muito mais, portanto, e por via indireta se aproveitam as direitas. O fascismo e o riverismo, completa ou parcialmente tidos como uma consequência dos devaneios bolchevistas do operariado italiano e espanhol na esteira da Revolução Russa e tam‑ bém recebidos à luz da memória viva do sidonismo, não parecem, ainda assim, sedu‑ zir tanto pelo teor das transformações que introduzem, como pelo estabelecimento de um regime que pode representar o fim da hegemonia dos democráticos – ideia cara tanto aos prosélitos do fascismo luso, católicos e diferentes fações monárquicas e da direita republicana, como a um movimento sindical dividido e cansado de dar a cara por um regime que dispersa a tiro e espadeiradas as suas manifestações e comícios e que nisso vai entrevendo, num miserabilismo de periferia europeia, a possibilidade de lançar a sua revolução social. A concluir, mesmo insuficientemente, note­‑se que são nenhumas as relações estabelecidas, tanto na imprensa como noutra literatura portuguesa da época, entre o 28 de maio e o impacto e representações da Revolução Russa, que, em verdade, se vêm até dissipando por 1925 e 1926: ao nível da imprensa operária, a Revolução passa a surgir à margem das próprios discussões de tendência que viera lançar, sugerindo até que a má formação ideológica do operariado português, recorrência paternalista na análise de quase todos os historiadores referidos, pouco ou nada pode obstar à força de inúmeros outros condicionalismos; para a demais imprensa da época, essen‑ cialmente a partir do momento em que a questão do regime se vai secundarizando na agregação das forças conservadoras, União Soviética e Comunismo, conquanto che‑ guem a funcionar como um repositório ocasional de baixas associações e compara‑ ções com a já velha primeira ordem republicana, estarão sempre muito longe de lhe disputar qualquer pequena parte da responsabilidade da decadência do país, e talvez por isso se extingam com aquela. Não deixará de ser curioso, porém, que quando uma nova vaga de referências à União Soviética surge, já em meados da década de 30 e no contexto da preparação da guerra civil no país vizinho e da emergência do estalinismo, os mesmos velhos argumentos das duas décadas anteriores acabem, inevitavelmente, por ser recupera‑ dos: até Massis, autor que, porventura, mais influenciará os meios conservadores por‑ tugueses e europeus a respeito da Rússia desde a publicação, em 1927, de La Défense de L’Occident, continuará a repetir, já em 1945, em A Rússia Nova, que “[...] o bolche‑ vismo constitui um perigo – na medida […] em que assenta sobre um princípio antio‑ cidental, anti­‑humano, […] (idem:115); ou que “[…] comunismo, eslavismo e a orto‑ doxia [que] aparecem hoje ‘como as três velocidades do mesmo motor que propulsa atualmente o génio russo pelo mundo’” (idem:189), a que associa ainda “[…] a ação determinante do povo judeu e do seu instinto nacional […]” (idem:191). Mas o que atrás se procurou mostrar, no entanto, é que se tal recorrência de argumentos na caracterização da Revolução e dos seus agentes pudesse sequer funda‑ mentar a hipótese de um grande impacto da Revolução Russa em Portugal e, assim, da criação de um sentimento anticomunista que suficientemente influi no colapso da I República – espécie de tese dominante na historiografia conhecida – ela mostrar­‑se­

Actas_I_Republica.indd 211

10/11/11 11:59:48

212 | congresso internacional i república e republicanismo – Atas

‑ia sempre, ainda assim, profundamente insuficiente e inconsistente na explicação de outros efeitos, muito mais complexos e profundos, da Revolução Russa no nosso país. Nesses, contudo, não logramos já aqui atentar, mas que ao se desmistifique esse terror imenso em que se tem uma sociedade afinal já tão habituada a tiros e bombas.

Bibliografia GONÇALVES, Bento. ([1941] 1974), Palavras Necessárias – A Vida Proletária em Portugal de 1872 a 1927, Porto, Inova. “Manifesto ao Paiz”. (1923), República, n.º  3735, pág. 1, 17 de fevereiro, (texto atribuído a Cunha Leal ou Álvaro de Castro). MARGARIDO, Alfredo. (1975), A Introdução do Marxismo em Portugal (1850­‑1930), Lisboa, Guimarães Editores. MASSIS, Henri. (1927), Defense de l’Occident, Paris, Plon. MASSIS, Henri. (1945), A Rússia Nova, Porto, Tavares Martins. OLIVEIRA, César de. (1976), A Revolução Russa e a Imprensa Portuguesa da Época, Lisboa, Ed. Brasil. Papel histórico da Alemanha na Rússia. (1918), Bureau da Imprensa Britânia em Lisboa, Lisboa. “Para a História”. (1923), O Comunista, n.º 7, pág. 1, 6 de novembro. (texto atribuído a Carlos Rates). PEREIRA, José Pacheco. (1971), Questões Sobre o Movimento Operário Português e a Revolução Russa, Porto. QUINTELA, João. (1976), Para a História do Movimento Comunista em Portugal: A construção do partido (1.º período 1919­‑1929), Porto, Afrontamento. SILVA, Joaquim Palminha. (1984), Jaime Batalha Reis na Rússia dos Sovietes ou Dez Dias que Abalaram um Diplomata Português, Porto, Edições Afrontamento. SILVA, Joaquim Palminha. (1978), “Quando a revolução era libertária”. Diário de Lisboa, n.º 1976 (23 de setembro) e n.º 1978 (7 de outubro). SOUSA, Manuel Joaquim. (1922), “A conferência internacional dos sindicalistas revolucioná‑ rios”. A Batalha, n.º 1155 pág.1, 22 de setembro. VALENTE, Manuel Alberto. (1977), “Breves notas sobre a revolução de 1917 e Portugal”. Vida Soviética, n° 30, novembro. VENTURA, António. (1976), “A Sementeira e a Revolução de outubro”. Seara Nova, n.º 1573, novembro. VENTURA, António. (1977), “A Federação Maximalista Portuguesa foi fundada há 59 anos”. Diário de Lisboa, 15 de junho. VENTURA, António. (1977), “Algumas notas sobre a imprensa comunista em Portugal (1919­‑1921)”. Seara Nova, n° 1580, junho. VENTURA, António. (1977), “O primeiro delegado operário português na União Soviética”. Seara Nova, n° 1586, dezembro. VIEIRA, Alexandre. (1950), Em volta da minha profissão, Lisboa, Gráfica Boa Nova.

Actas_I_Republica.indd 212

10/11/11 11:59:48

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.