Reconstruindo Cajueiro Seco e cinco décadas do começo do fim

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Reconstruindo Cajueiro Seco e cinco décadas do começo do fim Diego Inglez de Souza

Janeiro/2015

A partir de abril de 2014, muitas foram as reportagens, edições especiais e ‘históricas’ que se propuseram a lembrar os 50 anos do golpe civil-militar de 1º de abril de 1964, grande parte delas estendendo a cronologia e ampliando o foco de interesse para as duas décadas de ditadura que se seguiram. No entanto, os anos 1960 e os meses que imediatamente antecederam e que sucederam o golpe ainda podem nos revelar múltiplos aspectos do que estava em jogo naquele momento na política nacional e nas cidades brasileiras, sobretudo no que diz respeito ao Estado de Pernambuco, um dos epicentros das tensões e conflitos geopolíticos e nacionais, então governado por Miguel Arraes. A mítica experiência habitacional de Cajueiro Seco é um destes momentos ímpares da história urbana cuja pesquisa e curiosidade nos leva a desvelar um complexo panorama que envolvia múltiplos atores e que se notabilizaria na historiografia da arquitetura e das políticas públicas como um momento de síntese entre o saber popular e as competências da moderna arquitetura, entre as possibilidades e os desejos de condições melhores de vida para todos. Luiz Amorim, Professor do Departamento de Arquitetura da UFPE, destaca a singularidade do episódio: “Cajueiro Seco é um dos episódios mais emblemáticos da história urbana brasileira do século XX, reverenciado como exemplo paradigmático de interação entre projeto político, movimentos sociais e arquitetura.” O Professor José Tavares Correia de Lira, da Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo (FAU USP), apresenta o contexto da experiência e sua absorção pela história particular de um período turbulento e controverso:

“Implantado durante o primeiro mandato de Miguel Arraes à frente do governo do Estado, entre 1962 e 1964, o projeto para o núcleo habitacional de Cajueiro Seco, na atual Região Metropolitana do Recife, notabilizou-se por suas dimensões participativas, que incluía o recurso à taipa préfabricada como estratégia de produção. Desde então o episódio permaneceu recoberto por uma forte conotação idealista, como se a sintetizar o espírito de uma época agitada, inquieta, destemida que, por uma astúcia da razão, servira-se do encontro entre o arquiteto herói e a cultura popular para a realização de seus propósitos.” O clima de guerra fria permeava os debates, as políticas e o cotidiano; entre Havana e o mundo livre, Pernambuco parecia ser um local estratégico para o Governo de John F. Kennedy, que canalisou muitas das verbas da Aliança para o Progresso para programas sociais no Estado, tentando ganhar a simpatia da população e afastá-la da ‘tentação comunista’. De fato, no começo dos anos 1960, o Partido Comunista Brasileiro, o antigo PCB ou ‘partidão’, mesmo ilegal, tinha importância central no jogo político regional, oferecendo uma alternativa palpável a uma situação de exploração francamente insustentável, tanto no campo quanto na cidade. É exatamente nesta franja em que se situam Cajueiro Seco e seus primeiros moradores, marginalmente integrados numa metrópole que explodia. As condições de habitação das classes trabalhadoras no Recife, cristalizadas nas aglomerações de mocambos que ocupavam os terrenos alagadiços ou íngremes, era o aspecto mais visível e chocante dos desajustes na ‘arcaica estrutura fundiária’, contraste sublinhado por Josué de Castro e tão evidente que levou o geógrafo Mario Lacerda de Mello a chamar de Mucambópolis a capital pernambucana, antes conhecida pela muito mais gloriosa alcunha de Veneza Americana.

Coerente com o espírito de renovação das práticas da administração pública e da participação popular que marcaram as gestões de Miguel Arraes no Governo do Estado e de Pelópidas Silveira à frente da Prefeitura, a experiência de Cajueiro Seco procurou representar uma alternativa realista às políticas elitistas e corporativas que marcaram a ação do Serviço Social Contra o Mocambo, naquele momento dirigido pelo jovem e idealista arquiteto Gildo Guerra, que por sua vez convidou seu antigo professor Acácio Gil Borsoi para colaborar na autarquia como Diretor Técnico. Imbuído do entusiasmo que caracterizou a ação de boa parte dos intelectuais e artistas pernambucanos que decidiram colaborar com os esforços do governo popular, Borsoi era já naquele momento um dos profissionais mais solicitados pelo poder público e pelo mercado imobiliário da cidade, além de ser uma figura de proa no ensino da profissão na Universidade. A solução apresentada pelo novo governo popular deveria envolver o povo e também os intelectuais – a florescente arquitetura moderna pernambucana poderia agora ser posta a serviço dos pobres. Eis que o mocambo racionalizado sintetizado pelo arquiteto Borsoi surgiu como imagem-símbolo de um novo encontro entre poder e povo, entre a afirmação de uma cultura profissional erudita e a valorização do saber popular. De alguma maneira, tal solução já vinha sendo sugerida desde as décadas de 1920 e 1930 por Gilberto Freyre, em diversas de seus livros em que aborda a habitação das classes populares e ao longo da polêmica que travara com Josué de Castro acerca dos significados do mocambo. Lira, que se debruçou sobre as múltiplas leituras dos escritos de Freyre sobre os mocambos, contextualiza: “Retornemos a Gilberto Freyre. Os mocambos permitiam então fazer um estudo da arte popular da região exatamente porque se encontravam voltados para um ajustamento ao meio físico e ao espaço social. Em Gilberto Freyre, há uma leitura ecológica sem dúvida tradicional, da casa adaptada ao meio geográfico, que se desdobra porém em características formais e culturais bem específicas: a simplicidade de linhas, a economia de ornamentos, o apoio quase exclusivo sobre as qualidades do material, a honestidade plástica. E não apenas neste sentido o mocambo era investido de valor; também ganharia precedência por realizar virtudes sociológicas de adaptação e mobilidade perfeitamente condizentes com as exigências contemporâneas da habitação urbana. Do primitivismo passava-se aos traços coerentes com uma estética moderna. Do ecologismo tradicional passava-se às suas virtudes sociológicas tal como modernamente era possível compreendê-las.” (Lira, 1997, P.96)

Coube à Borsoi, falecido em novembro de 2009, depois cinco décadas de milhares de metros quadrados construídos em diversas capitais nordestinas, a síntese projetual deste projeto coletivo e transdisciplinar que estava sendo gestado por diversas cabeças durante alguns anos. Mesmo o arquiteto atribui a realização da experiência ao espírito e entusiasmo coletivo que caracterizou o começo dos anos 1960 em Pernambuco: “O Cajueiro Seco surgiu por uma razão muito simples: a euforia da liberdade.” O arquiteto Artur Lima Cavalcanti é certamente uma destas figuras pouco constante nos livros acerca da gloriosa escola pernambucana mas fundamental para entendermos a importância do que se vivia naquele momento no Grande Recife. Cavalcanti era naqueles anos deputado federal e encarregou-se da redação do projeto de lei para a criação de uma Superintendência para a Reforma Urbana (SUPURB), trabalho vinculado aos debates travados por ocasião do Seminário de Habitação e Reforma Urbana (SHRu), organizado pelo Instituto de Arquitetos do Brasil em São Paulo e em Petrópolis, no Hotel Quitandinha, em 1963. Também no VII Congresso da União Internacional de Arquitetos celebrado na Havana pós revolucionária, que contou com expressiva delegação brasileira, a experiência de Cajueiro Seco foi apresentada como um possível modelo para uma política habitacional realista e adequada às condições de desenvolvimento do Brasil. Gildo Guerra, colega das primeiras turmas da Faculdade de Arquitetura da então Universidade de Recife e ex-sócio de Artur Lima Cavalcanti, camarada engajado nas ‘agitações’ do Partidão, é uma figura emblemática destes anos, cuja trajetória, ainda que obscurecida pelos anos de chumbo, culmina em rumo incerto, supostamente em Washington, nos quadros das secretarias de habitação do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Ao mergulhar na documentação e nas fontes do período, vem à tona a importância do planejamento urbano envolvido em Cajueiro Seco como plataforma de inclusão social e desenvolvimento humano da comunidade, na medida em que o núcleo era equipado de lavanderia coletiva, escola, posto de saúde e cooperativa de consumo. Cajueiro Seco, pois, mais do que uma experiência projetual ou de mutirão habitacional, surgia como experimento de reforma urbana. A série de artigos que celebram o primeiro aniversário do Governo Arraes publicadas na Última Hora entre Janeiro e Fevereiro de 1964 divulgam entusiasticamente os feitos da sua gestão (Arraes – Ano I), constituem documentação histórica importante das propostas implementadas assim como, logo após o golpe de 1964, provas incriminadoras da ‘subversão’ para as novas autoridades locais. O jornal dedicou algumas páginas ao Cajueiro Seco, abrindo com a manchete “Mocambo ensina à nação – Experiência pioneira de Cajueiro Seco é exemplo nacional”. Introduzia-se ali o histórico da questão, chamando atenção para a “abordagem do problema da habitação na política atual do Governo, feita sob critério realista, subordinando a ação do Estado a uma orientação de rentabilidade efetiva dos investimentos imobiliários a uma perspectiva social”. Parece que a historiografia da arquitetura reteve foi o aspecto meramente arquitetônico da experiência, sem dúvida de grande importância para o campo disciplinar, o que talvez tenha a ver com determinados rumos apontados nas periferias recifenses que logo seriam obstados pelo regime que se implanta com a deposição de Goulart, Arraes e Pelópidas. O suplemento Imóveis e Móveis do Diário de Pernambuco parece ter embarcado num certo entusiasmo pelas possibilidades da tal experiência habitacional que marcaria a gestão Arraes, ecoando a condenação aos agrupamentos de mocambos:

“o novo núcleo residencial de Cajueiro Seco representa um esforço da técnica contra a implantação de bairros imundos e toscos como Brasília Teimosa e Cais do Areal, que tanto nos humilham e tão mal falam e gesticulam dos nossos foros de civilização. Cajueiro Seco é o planejamento, o bom senso dentro de linhas humildes (taipa), que mais tarde, à força do tempo, se transformará em bairros apresentáveis, tudo de acordo com a evolução social de nossa gente” “Usuário constrói sua casa”, Diário de Pernambuco – Imóveis & Móveis, Recife, 23/nov/1963. A condição ímpar do Recife naqueles agitados anos, assim como as múltiplas possibilidades e caminhos que foram imaginados, iniciados e obstados são evocadas brilhantemente pelo sociólogo Francisco de Oliveira, que participou ativamente dos primórdios da SUDENE juntamente com o economista Celso Furtado em um livro de memórias sobre os Tempos de Arraes no qual ele se refere ao Recife como ‘A noiva da revolução’: “Não quero fazer a história do Recife, pois para tanto não tenho artes. Quero fazer com que você ame e sonhe com essa cidade, que ao ler o lamento cantado em suas ruas, tenha saudade do passado que você não viveu, uma saudade benjaminiana, do que poderia ter sido e não foi; nos versos de Maiakóvski, tenha, com ela, com os que lá moraram e viveram, com os que lá vivem, saudade do futuro.” (Oliveira, 2008, p.27) A experiência de Cajueiro Seco, que de alguma maneira deu origem a um importante tentáculo da metrópole recifense, estação terminal de uma linha de metrô e pólo articulador do distrito de Prazeres, em Jaboatão dos Guararapes, parece ter sido inscrita também neste futuro do pretérito, no tempo do que poderia ter sido e não foi, do que não sendo muito já era algo e não era pouco.

>>>Para saber mais: Inglez de Souza, Diego (2010) Reconstruindo Cajueiro Seco: Arquitetura, política social e cultura popular em Pernambuco (1960-64) São Paulo: FAPESP/Annablume Editora

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