Recursos Hídricos e Território: Tensões e Cooperação

August 31, 2017 | Autor: Gisela Pires do Rio | Categoria: Human Geography, Natural Resource Management
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III Encontro da ANPPAS 23 a 26 de maio de 2006 Brasília- DF

Recursos Hídricos e Território: Tensões e Cooperação1 Gisela A Pires do Rio Departamento de Geografia-UFRJ Resumo Neste artigo assume-se a concepção de geopolítica, compreendida como conjunto de manifestações de rivalidades entre forças que atuam em um ou mais territórios, para analisar algumas questões ligadas à gestão dos recursos hídricos, em particular no que diz respeito à constituição de um espaço para a gestão desses recursos e as implicações da noção de segurança ambiental nesse contexto. Considera-se redes e lugares como elementos estruturantes do espaço de gestão e que condicionam as distintas manifestações de tensões e cooperação. Argumenta-se que os requerimentos de um serviço em rede transformam alguns lugares, aparentemente desprovidos de interesse mais imediato, em áreas de importância estratégica. Para efetuar essa análise, consideramos os exemplos de dois comitês, CEIVAP e Comitê da Bacia do rio Guandu.

Introdução

No início da década de 1990, a noção de segurança ambiental emergiu em trabalhos vinculados aos estudos estratégicos. Na realidade, esses estudos tratam do tema para abordar situações de tensões que envolvem o uso compartilhado de recursos e de situações de contaminação e poluição transfronteiriças. A emergência dessa noção pressupõe, por um lado, a incorporação do princípio de precaução na exploração dos recursos naturais, em particular dos recursos hídricos; e, por outro, ela traz para o plano das políticas de Estado o controle sobre o ambiente como elemento estratégico de tais políticas (Le Preste, 1998; Painchaud, 2000; Chillaud, 2002). A idéia de segurança ambiental está parcialmente apoiada no pressuposto de escassez de recursos e a emergência de situações conflituosas no plano internacional. No que diz respeito aos recursos hídricos, vários são os exemplos citados, Israel

e Palestina, Líbia e Egito, Turquia e Síria, localizados principalmente no Oriente Médio e norte da África, regiões de escassez ou de stress hídrico significativo. Identifica-se no termo segurança ambiental ambigüidades que merecem ser melhor compreendidas. Para tanto, considera-se a abordagem geopolítica como uma perspectiva analítica para fazer emergir algumas dessas ambigüidades. A análise aqui esboçada parte da concepção de geopolítica no sentido atribuído por Lacoste (2001) e Giblin (2003), isto é como estudo das manifestações de rivalidades entre forças que atuam no interior de um ou mais territórios, para analisar algumas questões ligadas à gestão dos recursos hídricos, em particular no que diz respeito à constituição de um espaço para a gestão desses recursos e as implicações da noção de segurança ambiental nesse contexto. Durante muito tempo, o uso compartilhado de recursos hídricos foi, no Brasil, ignorado como questão política e de gestão do território. A idéia de abundância e de disponibilidade quase ilimitada permeou as políticas setoriais, principalmente aquelas voltadas para a geração de hidroeletricidade e irrigação. No presente trabalho admite-se que os recursos hídricos constituem elemento estruturante do território, quer do ponto de vista de sua disponibilidade, quer do ponto de vista da rede de abastecimento que condiciona o acesso a esses recursos. Enquanto a lei 9433/97 propõe uma descentralização da gestão e a organização em comitês de bacia, os conflitos e disputas se multiplicam criando situações de tensão, quer pelo uso do recurso, quer pelos investimentos decorrentes da cobrança pelo uso da água. Argumenta-se que os requerimentos de um serviço em rede transformam alguns lugares, aparentemente desprovidos de interesse mais imediato, em áreas de importância estratégica. Essa importância decorre de sua posição na rede de aprovisionamento de água. Para tanto consideramos a bacia do Paraíba do Sul, em particular, o trecho do médio vale e a bacia do rio Guandu, no estado do Rio de Janeiro.

1. A perspectiva geopolítica

Quais seriam as questões que norteariam uma abordagem geopolítica da água, e, em particular, no contexto brasileiro? Para responder a essa indagação retomamos, em primeiro lugar, uma síntese das contribuições mais recentes que caracterizam uma redescoberta da perspectiva geopolítica, para, em seguida tratar da “geopolítica da água”.

1.1. Uma síntese das contribuições recentes

Nos anos de 1990, diversos autores (Claval, 1994; Agnew, 1998; Parker, 1998; O Tuathail e Dalby 1998; Taylor e Flint, 2000; Blouet, 2001) mostraram o interesse por parte de várias disciplinas, inclusive da geografia, pela perspectiva geopolítica. Houve, no entender dos autores mencionados, uma “redescoberta” da geopolítica como grade analítica que comporta elementos fundamentais para a reflexão sobre as geoestratégias de distintos atores e em várias escalas de análise. Para aqueles autores, a geopolítica retomou, curiosamente, importância no exato momento no qual as ideologias do mundo bipolar vinham apresentando sinais de esgotamento principalmente das formas através das quais se manifestavam desde a segunda Guerra. Até o final dos anos de 1960, as bases e desdobramentos da geopolítica tenderam a enfocar, de modo quase exclusivo, as relações e disputas entre poderes hegemônicos em escala internacional. Alguns autores, entre eles Agnew (1998), Taylor e Flint (2000) e O Tuathail e Dalby (1998) chamam a atenção para os modelos geopolíticos estruturados,isto é, conjunto de práticas, materiais e de representação, do estado que define suas relações com o território e com os demais estados, que continham um apelo de estabilidade num mundo em rápida transformação. A amplitude e velocidade das transformações expressas em termos de contração do espaço-tempo, passaram a requerer o entendimento das diversas representações que produzem os espaços do mundo político (Agnew, 1998). As definições do termo geopolítica foram revistas e atualizadas por vários autores (Claval, 1994; Agnew, 1997 e 1998; Parker, 1998, Taylor e Flint, 2000), indicando, em termos gerais uma gama ampla de rivalidades e disputas de poder np território. No atual contexto, três definições podem ser destacadas: 

“estudo das relações internacionais sob uma perspectiva espacial” (Parker, 1998:5);



“estudo da distribuição geográfica do poder entre estados, especialmente no que se refere `a rivalidade entre os maiores poderes” (Taylor e Flint, 2000: 371).



“estudo do impacto das distribuições e divisões geográficas no mundo político” Agnew (1998: 2); Em que pese a brevidade dessas definições, elas tentam traduzir, na realidade, o

movimento iniciado, na década de 1970, no qual a geopolítica estaria recuperando seu potencial como importante grade de leitura para a análise das relações internacionais e das geoestratégias em diferentes escalas (Claval, 1994). A maior ou menor ênfase na escala internacional, questões foram à essa escala articuladas no que diz respeito às ações militares e diplomáticas, aos conflitos étnicos e religiosos, às representações espaciais, não obstante um

tratamento marginal. A tendência atual constitui, pois, na aceitação de incertezas de um mundo em transformação, no reconhecimento da instabilidade dos processos sociais, políticos e culturais em escalas distintas e na multiplicidade de construções políticas do espaço (O Tuathail, 1997). Parker (1998) e O Tuathail (1997) estabelecem cortes temporais para caracterizar o que consideram uma ruptura essencial no modelo de organização da economia internacional a partir da queda do muro de Berlim. Dalby (1991) sugere que tais transformações estão refletidas nos discursos impregnados de representações que resultam em políticas e práticas espaciais decorrentes: a) da ação das grandes corporações na estrutura produtiva dos países subdesenvolvidos, b) dos atores públicos na regulação das atividades econômicas, c) dos tratados e acordos internacionais e d) da ação de atores sociais organizados. Igualmente assinalando um caráter inovador na temática das representações, Dodds (1998) aborda a produção de imagens, isto é, o papel da iconografia nas representações geopolíticas de lugares e fronteiras, internas e externas. As características da geopolítica incluem elementos renovados em termos de centralidade dos estados, da natureza das atividades exercidas no território, da conectividade (ou por sua ausência) `as diferentes redes e, ainda, dos efeitos da informação e das tecnologias militares no espaço (Agnew e Corbridge, 1995). A concepção de geopolítica não expressa, portanto, o confronto entre estados, ou como foi amplamente divulgada como prática que visa o controle nacional ou imperial sobre o espaço, bem como sobre os recursos, as vias, a capacidade industrial e a população. Atualmente, essa perspectiva envolve as disputas entre grupos de interesse que atuam no território.

1.2. Segurança ambiental: ambigüidades do termo

A ampliação das questões relativas à degradação do ambiente e ao uso compartilhado dos recursos naturais permitiu, de certo modo, a emergência de um certo consenso sobre a necessidade de se estabelecer parâmetros de segurança. A esse respeito, vale lembrar o discurso de Madaleine Albrigth, reproduzido em jornais e revistas, em 1997: “os desafios ambientais fazem parte dos fundamentos da política externa americana”. Tratava-se, na ocasião, de uma extensão do campo de ação da política de Estado e que poderia perfeitamente justificar investidas de toda natureza em nome da segurança ambiental. Deslocar o problema para o campo da política externa representa deslocar as questões relativas ao ambiente para a esfera internacional na qual as fontes e as vítimas de uma contaminação tornam-se cada vez

mais difusas. Por outro lado, é inquietante a amplitude que uma tal representação pode atingir e servir de justificativa para uma ação em qualquer ponto fora do território norte-americano. Esse deslocamento do problema constitui, no nosso entender, uma mudança significativa em escala mundial. Em primeiro lugar porque a questão ambiental passa a ser objeto de política internacional. Vinculada à noção de soberania territorial pode justificar intervenções apoiadas em uma espécie de direito natural. A título de exemplo, podemos citar o trabalho de Dannenmaier (2001) no qual o autor sustenta a argumentação de que a estabilidade dos Estados nas Américas está cada vez mais ameaçada pelos crescentes problemas ambientais. Para esse autor, tal ameaça origina-se dos esquemas de crescimento econômico que aumentam os riscos de incidência de catástrofes, ampliam as conseqüências do crescimento demográfico e definem o tipo de utilização de terras. Em segundo lugar, o pressuposto que rege tais articulações faz emergir uma relação de causa e efeito entre política ambiental e segurança regional (Dannenmaier, 2001, op cit), o que implica, no nosso entender, uma mudança geoestratégica importante, no sentido de tomar os problemas ou ameaças ambientais como justificativa para implementar ações de dissuasão. Chillaud (2002) reconhece os vínculos entre ameaças militares e ambiente como componentes da noção de segurança ambiental, mas considera que os meios para responder ou defender das ameaças ambientais seriam prioritariamente medidas de conotação civil e multilaterais e, portanto, em um quadro geográfico mais amplo. Nesses termos, a noção de segurança ambiental remeteria, em termos gerais, às relações internacionais e, principalmente, a dois elementos essenciais constitutivos do Estado: território e população. A base da argumentação compreende, assim, um quadro geográfico mais amplo para responder a situações como: a) a realização de atividades vinculadas à exploração ou ao uso de recursos naturais por um Estado que constituam uma ameaça a outro; b) a poluição transfronteiriça que implique em reações mais ou menos intensas por parte dos países vizinhos; e c) a definição de objetivos de proteção e conservação ambiental que representem a mobilização de meios e medidas de alcance extraterritorial. Nessas situações, os objetivos de proteção ambiental podem, todavia, esconder disputas internas e, ao mesmo tempo, obter apoio internacional pela “boa causa” (Le Preste, 1998). O emprego da noção de segurança ambiental como instrumento de política interna comporta igualmente ambigüidades. Le Preste (1998 op cit) já salientou o fato de que questões ambientais podem facilmente adquirir uma dimensão nacionalista a partir da exacerbação de valores simbólicos que vinculam identidade nacional e ambiente. De modo semelhante, podemos pensar que grupos de interesse podem utilizar-se dos mesmos

argumentos em torno da segurança ambiental para fins de mobilização política que colocam em questão projetos polêmicos ou que implicam na alteração das condições ambientais ou a integridade de um determinado território tido como fundamento de identidade regional. Esta maneira bastante esquemática de situar a noção de segurança ambiental nos permite desvendar as ambigüidades do termo oscilando entre as posições de cooperação multilateral e em nível supranacional e igualmente uma efetiva militarização que o termo contempla. A partir do exposto, assume-se que os objetivos fixados em termos de política dos recursos hídricos, envolvem, na maioria dos casos apresentados no vasto volume de literatura sobre o assunto, argumentos cuja legitimidade é amplamente aceita: necessidade de controle do fluxo de água com vistas à redução dos efeitos de enchentes de terraços e áreas de baixada, aumento da capacidade de navegação fluvial, abastecimento urbano, ampliação da capacidade de produção agrícola pela irrigação, ampliação da capacidade de geração de energia hidroelétrica, etc. São todos argumentos que dizem respeito à regulação dos serviços públicos e das atividades econômicas que envolvem a exploração de recursos naturais (Lorot, 1999) e podem ser reforçados pela noção de segurança ambiental.. Assume-se que todos esses usos implicam na mobilização de meios e argumentos geoestratégicos, pois envolvem uma concepção de espaço, a construção de territórios, a afirmação de interesses específicos e o emprego de tecnologias consideradas eficientes no uso racional dos recursos (Sironneau, 1999).

1.3. Água: um problema geopolítico interno

As considerações anteriores indicam que emprego de termos como o de segurança ambiental podem facilmente conduzir a terrenos bastante escorregadios. As tensões que emergem no interior de um país comportam igualmente riscos de desvios. Em nome da segurança ambiental novas tensões podem vir a constituir representações bastante esquemáticas de grupos de interesses associados a um território. Não se quer negar a existência de tensões ou conflitos abertos em suas diversas manifestações. Trata-se, ao contrário, de indicar que tais representações são contraditórias e que a noção de segurança ambiental, constitui, nesse aspecto, um meio de representação geopolítica. Lacoste (2001) emprega o termo “geopolítica da água” para designar as rivalidades políticas na distribuição e controle dos fluxos fluviais e na exploração de recursos hídricos. Essa definição é suficientemente ampla para comportar tanto as disputas e conflitos entre países como sua manifestação no interior de cada país. Na análise geopolítica, acorda-se

importância às representações, mais ou menos subjetivas e contraditórias, que utilizam os agentes envolvidos nesses conflitos e disputas. A concepção de geopolítica não se limita, assim, aos conflitos e disputas entre Estados, mas engloba todas as manifestações de rivalidades entre forças que atuam no interior de um ou mais territórios (Giblin, 2003, op cit). O foco dessa abordagem concede amplo espaço para essas questões que estão estreitamente vinculadas ao território, ao jogo de interesses e às interdependências entre atores. A partir de um raciocínio cuja base pressupõe a interseção de conjuntos espaciais de diferentes ordens de grandeza, a abordagem geopolítica se direciona para as disputas e os meios empregados pelas diferentes forças, formais e informais, em território concreto. Nas palavras de Lacoste (2003:192) “os territórios e zonas de influência disputados por distintos meios e diferentes forças não são abstratos. São conjuntos geográficos onde manifestam-se disputas, heranças históricas, e onde entrecruzam-se as vias de circulação”. Nesse sentido, os conflitos, disputas e embates ocorrem entre regiões, unidades administrativas, cidades e áreas irrigadas que integram uma mesma bacia. Ao mesmo tempo, as companhias de água e esgoto, as empresas de engenharia responsáveis pelas obras hidráulicas, as agências de bacia e de regulação, as empresas grandes consumidoras de água, as companhias geradoras de eletricidade e os produtores agrícolas que dependem da irrigação emergem como atores importantes dos conflitos de uso e no processo de gestão dos recursos hídricos. Portanto, uma perspectiva geopolítica da água não pode tratar exclusivamente de disputas em escala global, mas igualmente de territórios de pequenas dimensões nos quais múltiplas forças tentam impor-se (Lacoste, 2001a, op cit., 2001b). O quadro territorial para a gestão dos recursos hídricos emerge, pois, como elemento de primeira linha de uma geopolítica interna.

2. A bacia hidrográfica: um dado geopolítico “Deus não joga dados”. Essa frase de Einstein pareceu-me bastante oportuna para situar a discussão a partir de uma perspectiva geopolítica. O complemento dessa frase poderia ser: os homens sim. Desde a promulgação da lei 9433/97, a bacia hidrográfica vem sendo considerada a unidade espacial para fins de gestão de recursos hídricos que impõe-se por si mesma, pois implica, para muitos, o reconhecimento de uma superioridade maior que há muito definiu o caminho natural das águas na superfície da terra. Contempla, assim, a idéia de não artificial e de normalidade, posto que é natural. Poderíamos supor que várias unidades espaciais seriam apropriadas para a gestão dos recursos hídricos: não apenas as unidades político-administrativas da federação, mas também aquelas que se configuram como unidades

de organização e manifestação de poder ou que emergem da lógica das atividades produtivas, como regiões, por exemplo.

2.1. Onde a rede técnica altera as relações entre os lugares

Nesse ponto consideramos importante introduzir, mesmo que de modo bastante sintético, a noção de rede. A perspectiva tratada até o presente não considera explicitamente a rede como elemento substantivo da organização política e da gestão dos recursos hídricos. Parece, contudo, importante considerar essa estrutura nas diversas escalas geográficas nas quais os conflitos, disputas, tensões e cooperação se manifestam. Podemos distinguir as redes como estruturas que direcionam fluxos, consideradas como redes técnicas nas quais estão incluídas as ferrovias, rodovias, eletricidade e de abastecimento de água, por exemplo. As redes, em sua definição mais circunscrita, constituem um conjunto de lugares geográficos conectados em um sistema por um certo número de ligações (Kansky, 1963). Os lugares geográficos são referências concretas colocados em relação e interação, mais ou menos intensas e freqüentes, pelas redes, donde são necessariamente diferenciados entre si, e principalmente, pela posição que ocupam na rede. Assim, uma rede é essencialmente uma estrutura de diferenciação dos lugares podendo conferir-lhes uma posição estratégica mais ou menos duradoura. De modo geral ela pode ser igualmente compreendida como uma forma de inscrição de poder sobre o espaço (Raffestin, 1981). Toda bacia hidrográfica comporta uma rede fluvial cujo desenho pode ser controlado morfológica e estruturalmente. Entretanto, a rede de infra-estrutura para abastecimento de água constitui um dado que altera significativamente a posição relativa dos lugares. Em outros termos, as características de um serviço em rede transformam alguns lugares, aparentemente desprovidos de interesse mais imediato, em áreas de importância estratégica. É nesse sentido que situação observada na porção do médio curso do rio Paraíba do Sul, no estado do Rio de Janeiro, ilustra bem o argumento de que a rede de dutos e as conexões que dela decorrem interpõem-se à estabilidade daquela unidade. O ponto central dessa argumentação reside na possibilidade de compreender que disputas e conflitos emergem em situações pacíficas e submetidas à mesma condição regulatória. De modo diferente de como são tratados as “guerras pela água” entre países que reivindicam liderança ou controle sobre os recursos hídricos, os conflitos e disputas infranacionais operam sobre tessituras mais ou menos fluidas, cuja estrutura elementar é constituída pela rede (Raffestin, 1981), espaço privilegiado no qual manifestam-se formas de

controle e poder mas igualmente as demandas sociais. As relações não se expressam somente por conflitos; alianças e formas diversas de cooperação são estabelecidas por sua própria existência. Este último aspecto parece tão mais relevante quando se trata do acesso à água potável.

2.2. Paraíba do Sul e Guandu: tensões e cooperação

A lei 9433/97 propôs uma descentralização da gestão de recursos hídricos e o estabelecimento de organismos de gestão que assumiram a denominação de comitês de bacia. Esses comitês têm, como a própria denominação indica, a bacia hidrográfica como unidade espacial que os fundamenta. Trata-se, portanto de organismos de gestão a partir de uma base espacial que circunscreve sua formação e atuação. No estado do Rio de Janeiro, a transposição, realizada na década de 1950, das águas do Paraíba do Sul (160m3/s) para o rio Guandu, constitui um exemplo significativo para a discussão em pauta. Essa transposição atende ao Complexo Hidroelétrico de Lajes, da Ligth, e ao sistema integrado Guandu-Lajes-Acari (49m3/s) de abastecimento de água da CEDAE (Companhia de Água e Esgoto do Estado do Rio de Janeiro). Em outros termos, o rio Guandu depende de 2/3 da vazão do Paraíba do Sul. Sem entrar nos aspectos técnicos dessa obra, é importante lembrar seu significado para a região metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ): dessa transposição depende cerca de 90% da população residente nos municípios que a integram. Assim, a conexão hidráulica e o uso compartilhado da água aproximam essas duas bacias que, a rigor, constituíam unidades distintas e independentes quer do ponto de vista do fluxo de água, quer do ponto de vista da gestão. No plano institucional, cada bacia tem seu próprio comitê. O Comitê para a Integração da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul (CEIVAP), criado pelo Decreto Federal número 1.842, de 22 de março de 1996, e o Comitê da bacia hidrográfica do rio Guandu, criado em 03/04/2002, pelo Decreto Estadual 31178, representam as instâncias de manifestação das disputas e tensões bem como das iniciativas de cooperação que podem ser observadas mais recentemente. O intervalo de tempo que separa a criação dos dois comitês é bastante representativo do ritmo necessário às adaptações às mudanças institucionais e ao novo marco regulatório definido pela Lei 9433/97. Enquanto o CEIVAP tem sua origem em período anterior à implantação do atual Sistema Nacional de Gestão dos Recursos Hídricos e, portanto, pôde aproveitar-se da experiência acumulada desde os anos de 1980; a criação do Comitê do

Guandu responde diretamente aos estímulos do SNRH. Sua implementação sofreu, entretanto, resistências do próprio CEIVAP (cf Quadro 1). A título de exemplo, indica-se no quadro 1 os conflitos entre esses dois comitês no período entre 2001 e 20052.

Quadro 1: Exemplos de Conflitos entre CEIVAP e Comitê da Bacia do rio Guandu Período do Manifestação do Conflito Motivação Conflito territorial de Anterior a CEIVAP opõe-se à constituição de um Limite comitê autônomo para a Bacia do competência 2002 Guandu Percentual a ser repassado pelo CBG ao Representatividade de usuários CEIVAP Posterior a Reivindicação do CBG para participar na Localização dos investimentos: 2002 definição dos critérios pelo CEIVAP de bacia X estado alocação dos recursos oriundos da cobrança Fonte: Entrevistas realizadas junto a representantes do Comitê da Bacia do rio Guandu e em Reunião da Câmara Técnica de Gestão do Comitê do Rio Guandu Realizada em 25/08/05.

A manifestação de um conflito em torno da autonomia Comitê do Guandu é um problema que antecede sua criação. A leitura dessas disputas em termos de organizações às quais estão associados usos da água nos remete a antigas disputas entre Light e CEDAE desde a formação do complexo de Lajes. Não iremos retomar o histórico desse conflito3, pois nos distanciaríamos, em muito, dos objetivos propostos nesse trabalho. Interessa-nos, mais precisamente, considerar o ano de 2001, período durante o qual foi observada uma redução importante no nível de água nos reservatórios localizados ao longo do Paraíba do Sul, principalmente na barragem de Santa Cecília. O volume bombeado para abastecimento da RMRJ, localizado a jusante desse reservatório, emergiu como ponto de disputa, colocando em discussão a autonomia do Comitê do Guandu. Deve-se lembrar que, naquele momento, tratava-se do Pró-Comitê, tendo sido o comitê instituído no ano seguinte. Os principais usuários de água situados na bacia do Guandu são: CEDAE, Light, Gerdau, Furnas, Kaiser, Ambev e Fábrica de Catalisadores, dentre os quais CEDAE e Light integram a diretoria colegiada. Esse exemplo parece-nos resumir claramente as disputas e conflitos que emergem no uso compartilhado de recursos hídricos, quando confrontado ao território. Muito além da competência ou jurisdição de um comitê, são estruturas territoriais em rede que conferem sentido à gestão.

Após a instituição do Comitê do Guandu, e o reconhecimento de sua autonomia, as disputas entre CEIVAP e CBG voltaram-se para os critérios de cobrança do uso da água que incidem sobre o volume de água transposto para o Guandu. A própria instituição da cobrança gerou conflitos envolvendo atores que não participavam diretamente nos Comitês. A título de exemplo, cita-se a Lei estadual número 4.247 de dezembro de 2003 que recebeu críticas de várias associações como a Confederação Nacional das Indústrias (CNI) da qual participam grandes usuários de água tanto da bacia do Paraíba o Sul como do Guandu. As manifestações contrárias ao texto dessa lei estadual sobre a cobrança de uso da água diziam respeito: a) à sua legalidade dada a ausência de participação do Comitê do Guandu na discussão do texto da lei; b) ao excessivo poder concedido à Superintendência Estadual de Rios e Lagoas (SERLA) para arrecadar, gerir e aplicar os recursos provenientes da cobrança no Guandu; c) aos percentuais a serem destinados aos diferentes órgãos estaduais (SERLA, Conselho Estadual de Recursos Hídricos), bem como ao CEIVAP; e d) aos critérios de transferência inter-bacias dos recurso oriundos da cobrança nessa bacia. Os questionamentos apontam para dois tipos de disputas que operam em registros diferentes. O primeiro tipo refere-se ao choque de competência em virtude do papel atribuído, no texto da lei estadual, à SERLA. Na qualidade de gestor da política estadual de recursos hídricos, esse órgão seria responsável, ao mesmo tempo, pela arrecadação e aplicação dos recursos financeiros oriundos da cobrança pelo uso da água. Segundo a legislação federal, a decisão sobre onde os recursos deverão ser aplicados é da competência exclusiva dos comitês. O segundo diz respeito às relações CEIVAP-Guandu. Os recursos arrecadados na bacia do Guandu seriam assim distribuídos: 10% para a SERLA, 15% para o CEIVAP incidindo sobre o volume relativo à transposição para a bacia do rio Guandu 4, 5% para pesquisas e estudos sobre os recursos hídricos no estado, 50% investimentos na própria bacia e 20% possivelmente em outras bacias. Em 200No que tange à participação de membros do Comitê do Guandu no CEIVAP, os embates opõem vários interesses. De um lado, os representantes do trecho paulista recusam a participação plena de representantes do CBG, considerando que é da competência estrita do CEIVAP dispor dos recursos arrecadados na Bacia do Paraíba do Sul. Para o Comitê do Guandu, representante de grandes usuários, que localizados nessa bacia, dependem das águas do Paraíba, devem poder discutir a aplicação dos investimentos arrecadados e transferidos ao CEIVAP, tendo em vista que uma parcela significativa da arrecadação do CEIVAP é originária da bacia do Guandu. As relações não se expressam exclusivamente em termos de disputas, embates e conflitos. As primeiras tentativas de cooperação começam a ser implementadas. Para discutir

os pontos relativos à aplicação dos investimentos foram formadas duas comissões, uma em cada comitê. Ainda é prematuro elaborar qualquer diagnóstico sobre o futuro dessas comissões e os reais efeitos em termos de articulação institucional. Chama a atenção, contudo, a composição da comissão do CBG. Ela é composta por três membros: um membro da diretoria executiva do comitê, um da Light e o terceiro da CEDAE. Emergem, mais uma vez, Ligth e CEDAE como atores de primeira linha na condução da gestão. Na base territorial dessas organizações, mais do que a bacia hidrográfica, malha hídrica e as redes de infraestrutura comandam as ações e negociações que envolvem o uso compartilhado dos recursos. Ao assumirmos que o uso compartilhado de recursos envolve uma concepção de espaço e a construção de territórios, a capacidade de resolução das tensões ou as estratégias de cooperação remetem à seguinte questão: como interesses divergentes podem ser aprisionados a um único plano espacial se a estrutura que lhes dá forma, a rede, pressupõe lugares geográficos colocados em relação e interação? Essa indagação longe de estar plenamente respondida neste trabalho, permite, no entanto, uma última reflexão ao retomarmos a noção de segurança ambiental mencionada precedentemente. Os usos múltiplos da água requerem uma rede de infra-estrutura que de certo modo evidencia as contradições do termo segurança ambiental. Os princípios contemplados por essa noção: soberania, direito de acesso, integralidade dos cursos d’água, direito histórico, a bacia como unidade hidrológica integrada e hierarquia de necessidades reais (Le Preste, 1998) esbatessem-se na dinâmica dos territórios. Pressupor que o curso natural do rio no interior de uma bacia representa a integralidade de usos (e abusos) é evacuar o sentido dos lugares e das conexões. A idéia de que cada bacia consiste uma unidade em si não constitui, como foi visto, uma representação satisfatória para a manifestação dos interesses relacionados aos usos: os usuários a jusante necessitam negociar os níveis aceitáveis de contaminação e de derivação. A “segurança ambiental” da população da RMRJ depende da qualidade da água que chega aos reservatórios do complexo de Lajes, das características técnicas empregadas nas estações de tratamento localizadas a jusante dos reservatórios e dos investimentos necessários em tecnologia de tratamento de água. Tudo muito natural!

À Guisa de Conclusão

Ao longo deste trabalho buscou-se mostrar tanto do ponto de vista conceitual como empírico que uma abordagem geopolítica e, em particular, da geopolítica da água, abre um

campo importante para uma análise abrangente das práticas, concepções e representações privilegiadas pelos distintos atores no processo de gestão de recursos hídricos no Brasil. A abordagem geopolítica constitui, assim, uma vertente possível para analisar as rivalidades, os conflitos de competência e de interesse a partir de uma perspectiva do território. Há, sem dúvida, uma representação que se impõe: a água como recurso limitado. Se por um lado a posição geográfica da bacia do Paraíba do Sul afasta as possibilidades de penúria, por outro, densidade demográfica e concentração de atividades econômicas que aí são observadas exercem forte pressão sobre as águas dos rios que formam essa bacia, exigindo, portanto, soluções que ampliem a eficiência da rede de infra-estrutura. As disputas, conflitos e tensões aqui apresentados indicam, em grande medida, o abandono da dimensão topológica que toda rede contém. Por traz das tensões assinaladas, observou-se uma competição pela água tanto em termos setoriais (energia elétrica e abastecimento) como em termos espaciais. Trabalhar essas questões considerando a rede como estrutura elementar das relações entre lugares permitiu evidenciar igualmente a importância da malha hídrica que articula as diferentes áreas e que as submete à uma lógica de interação distinta daquela dirigida pelo curso natural de um rio.

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Trabalho realizado com apoio do CNPq. Na qualidade de bolsista de Iniciação Científica- CNPq-Balcão, participou desse levantamento Débora Mota Rodrigues. 2

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Em 1971, o decreto federal 68.324, previa a construção de uma UHE em Caraguatatuba. Naquele período, a segurança do aprovisionamento do reservatório de Santa Cecília já se colocava como questão entre Light e CEDAE. 4 ) A CEDAE possui ao todo 17 captações no trecho fluminense da Bacia do Paraíba do Sul, incluindo-se as captações de água diretamente desse rio e aquelas efetuadas em afluentes como Pomba , Muriaé e Sapucaia. Nessas últimas, a cobrança é repassada diretamente à ANA.

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