Recursos Humanos (peça - texto incompleto - resenha)

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Que Recursos possuem realmente esses des-Humanos?
Há algo de eminentemente errado, e nós o sabemos muito bem, sempre que tratamos como algo substancialmente fora de nós (no caso, aquilo a que a palavra "recursos" se refere) tudo aquilo que um ser humano pode proporcionar. É a mesma atitude que muitas vezes me afasta de quem interpreta faculdades arduamente conseguidas com coisas das quais (essa pessoa) poderia vir a eventualmente usufruir. Pois sabemos muito bem que a pessoa ao nosso lado sempre é aquilo que pode resultar de NOSSO relacionamento com ela. Assim como sabemos que tudo aquilo cavoucado por uma alma durante sua vida não é um conteúdo que pode simplesmente ser-lhe arrebatado. Pessoas que tratam tudo o que lhes rodeia como coisas causam pena – num primeiro momento – e nojo – num segundo. Para a pena permanecer.
O maior problema deste espaço e tempo é que todos, em maior ou menor grau, fazemos exatamente isso. Não adianta culpar o capitalismo. Nem dizer que somos pouco cristãos. Ou dizer que caímos na vala sem fundo da inamobilidade das coisas. Tratamos, em última instância, uns aos outros como coisas. Como seres que possuem características que, em última instância, apenas usamos.
Não importam nossos medos. Não importam quaisquer justificativas. Usamos, nesse sentido, e muitas vezes, as características peculiares de cada um como autorizações veladas para delas tirar sarro ou "curtir" em nome de interesses ou vontades passageiras/os para nosso exclusivo deleite. Há ambientes, claro, em que essa tendência a coisificar os outros é mais forte do que em outros. O ambiente corporativo é, sem dúvida, um desses ambientes. E não é tão difícil, para quem está ligado à vida como ela é e como deveria ser, sequer imaginar como é esse tipo de ambiente. Pois corporação é qualquer ambiente formalizado em empresa. Ambiente com métodos, procedimentos e objetivos formalizados, em que cada um cumpre uma função – e no qual passa a vida.
Uma pessoa entra em uma corporação visando satisfazer fins determinados. Seja qual for a corporação, sejam quais forem os parâmetros éticos envolvidos, sejam quais forem as pessoas envolvidas, temporaria ou permanentemente, a questão dos fins e meios está sempre dado. Permanecer na corporação dependerá da satisfação dos fins dados pela corporação, assim como da viabilidade de tentar atingir seus próprios fins pela satisfação dos fins da corporação, e nesse sentido passar a vida na corporação torna-se, muitas vezes, um preço a pagar. Pois ao que parece ninguém em sã consciência gostaria de gastar sua vida no ambiente da corporação. Sendo assim, a convivência, na corporação, está em grande parte restrita a se atingir fins por intermédio de meios. Ocorre que, independente de meios e fins, os recursos humanos têm cara, face, nome e – puxa vida, que incômodo – sentimentos.
Acontece que, mutatis mutandis, toda humanidade represada sempre acha algum canto em qualquer lugar para dar mostras de existência. E não existem mais cantos do que em uma corporação. Esses cantos são os que mostram ali existir algo mais do que recursos visando cumprir funções. Esses cantos, normalmente existentes nos banheiros, corredores, salas vazias, saguões ou espaços externos (onde as pessoas fumam e não por coincidência gostam de trocar ideias), são aqueles em que normalmente a vida se dá. Em que a humanidade represada transborda e em que o drama dos recursos, para muitos infelizmente humanos, se dá em toda sua dramaticidade. Não à toa a peça "Recursos Humanos" começa em um desses cantos. "Recursos Humanos" é a peça que o Marcos Gomes e trupe de atores/atrizes reestreia no começo de fevereiro no espaço Pequeno Ato (Rua Dr. Teodoro Baima, 78). Ela já havia estreado e cumprido temporada no Teatro Cemitério de Automóveis.
Mas se a humanidade torna-se escrachada nos cantos, é nos ambiente principal, qual seja, no escritório em si, que ela determina a si mesma. Mas, claro, se a humanidade ali se determina, isso só pode ser verdadeiramente naqueles momentos em que os padrões pré-determinados pela corporação são desrespeitados, desafiados ou simplesmente seguidos sem muita convicção. Em que – novamente – a humanidade subverte os fins e os meios, em que o arbítrio mostra seus verdadeiros fins, em que a ingenuidade cobra seu preço de inviabilidade, em que a pusilanimidade tenta valorizar aquilo que não tem função. Somos humanos, não esqueçamos. Mas precisamos seguir normas e valores. Precisamos fazer de conta que tudo bem. Como quando o funcionário tem um síncope e em que a garota não consegue ajudar, em que o chefe ajuda e em que é mordido pelo funcionário (finalmente) fazendo aquilo que realmente quer. Jogando seu desejo para fora – quase morto. Como num Beijo no Asfalto (peça de Nélson Rodrigues) ao contrário. Não à toa o chefe recém-mordido assume para si a tarefa "inglória" de realizar uma traqueostomia e, portanto, de acabar logo com aquilo. Com o sofrimento do coitado.
Quando surge outro igual e resolve falar a que veio. E só restam risadas. Porque afinal não é seguindo um papel pré-determinado que a pessoa, na corporação, pode imaginar vir a ser alguma coisa. O ser humano é um eterno vir a ser, mas na corporação esse vir a ser só poderá mesmo ser alguma coisa, ou ter autorização para vir a ser, se esse vir a ser puder ser enquadrado em algo que faça algum sentido na corporação. Cabe ao ser humano adaptar seu eterno vir a ser a algum vir a ser maior, ou menor, dado pela corporação. Não havendo vir a ser desse tipo, melhor é sair, cumprir o tempo que lhe resta de vida ou tornar-se outsider. A vida de um insider é estreita demais para ser algo que só possa vir a ser. Falam de Steve Jobs. Ok, faça algo que ele propõe na prática. Utilize seus conselhos na estreiteza dos ambientes em que nos é dado viver. Não é possível que deixem de reparar no fato de que Jobs só escreveu o que escreveu a posteriori. Narrando uma história de sucesso após ela ter ocorrido. Falando com o olhar no retrovisor assumindo a necessidade de explicar o sucesso e não o fracasso.
Não se assuma, porém, que tudo seja assim tão escuro quanto o cenário vazio da peça do Marcos. Já a cor, porém, não poderá jamais ser algo além de negra, de noir. Porque a humanidade que nós aqui tanto incensamos não dá muita margem a algo distante do negro, do preto, da cor que suprime todas as outras porque as engole. Porque é essa humanidade que faz com que, no fundo, as regras da corporação valham, a bem da verdade, fora e independentemente dela. Como nas relações pessoais, ou na família, ou entre amigos, ou nas mesas de bar, ou em qualquer tipo de relação em que as pessoas passam a CUMPRIR uma função. Em que suas propriedades, características, qualidades e deméritos passam a existir às custas de si mesmas. E em que elas são esquecidas.
Porque, afinal de contas, a vida sem reais problemas é tão sem graça, não é? Pois: por que deixar que pessoas com reais qualidades entrem ou saiam de nossas vidas, se suas reais qualidades, e não as pessoas em si, muito menos suas vontades, contribuem de alguma forma para nosso prazer, nosso conhecimento ou nossa vontade de viver? Pois: tendemos a usar, claro, as pessoas mais caras a nós, assim como só podemos trair mesmo nossos amigos, porque ninguém trai o inimigo. Como nas corporações, em que tendemos a ser mais cruéis com aqueles com quem convivemos com bastante proximidade. Como, nas relações pessoais, tendemos a manipular com maior desfaçatez aqueles que são mais próximos de nós, embora não TÃO próximos assim, porque aí não há amizade que subsista. Pois: é necessária uma proximidade bastante profunda para termos algo de que possamos nos aproveitar sem nos comovermos, mas uma proximidade não tão aprofundada, por outro lado, como a de amigos eternos, porque senão aí ultrapassamos uma barreira ética inamovível da qual não podemos nos safar sem causar danos irreversíveis ao outro e a nós mesmos.
Pois: quando conseguimos nos safar facilmente de problemas éticos é quando, na prática, sabemos estarmos pouco comprometidos. Pois: quando o mais importante de alguém é o que realmente vale, isso assim se dá porque essa pessoa não cumpre FUNÇÃO QUALQUER para nós. Pois: quando surge a humanidade verdadeira, é às custas da falsa. E isso ninguém consegue controlar. E isso vale para qualquer ambiente.
Sábados, 21h. Domingos, 20h.

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