Refletindo sobre a ausência de preparação para a aposentadoria compulsória: uma análise do filme Lugares Comuns

June 13, 2017 | Autor: Diogo Helal | Categoria: Aging, Retirement
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REFLETINDO SOBRE A AUSÊNCIA DE PREPARAÇÃO PARA A APOSENTADORIA COMPULSÓRIA: UMA ANÁLISE DO FILME LUGARES COMUNS Tatiana Aguiar Porfírio de Lima Assistente em Administração da PROGEP/UFPB Doutoranda em Administração pela UFPB [email protected] Cléverson Vasconcelos da Nóbrega Prof. de Administração do Campus SHNB/UFPI Doutorando em Administração pela UFPB [email protected] Diogo Henrique Helal Doutor em Ciências Humanas: Sociologia e Política pela UFMG Professor do Programa de Pós Graduação em Administração da UFPB Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco [email protected]

RESUMO A centralidade do trabalho na vida das pessoas faz com que a sua ausência, sem planejamento, gere consequências negativas para os indivíduos. Nessa ótica, a partir da análise do filme Lugares Comuns 1se busca refletir sobre o momento anterior e posterior a aposentadoria compulsória, que quando ocorre sem preparação, pode ocasionar perdas financeiras, sociais e dificuldades de reinserção do idoso no mercado de trabalho. A literatura revela que a aposentadoria compulsória é uma decisão unilateral, na qual os trabalhadores que não forem orientados profissionalmente podem se sentir inúteis, sem perspectiva de vida e de carreira, acarretando dificuldades financeiras e baixa estima, como ocorreu com o personagem principal do filme. Assim, observa-se que uma preparação dos idosos para a aposentadoria se torna crucial para que possam se planejar, reorientar sua carreira e sua vida pessoal. Palavras-chave: aposentadoria compulsória; orientação; perdas.

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O Filme Lugares Comuns (Lugares Comunes), é argentino, dirigido e produzido em 2002 por Adolfo Aristarain e pelo Instituto Nacional de Cine Y Artes Audiovisuales (ICAA), estrelado por Mercedes Sampietro, Federico Luppi e Arturo Puig, com duração de 1h52min. Ganhador dos prêmios: Goya 2003, Festival de Gramado 2003, Festival de Havana 2002 e Festival San Sebastian 2002.

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1 INTRODUÇÃO Nas sociedades pré-industriais, o trabalho não tinha tempo específico e nem tempo controlado, servia para a subsistência, era realizado no ambiente familiar, onde as pessoas eram detentoras dos meios de produção (SILVA, 2008). Esse trabalho era regulamentado pelo costume, pelas regras das guildas e das cidades. O mercado tinha papel incidental na vida econômica da sociedade, uma vez que a economia servia as relações sociais (POLANYI, 1980). Com o advento da modernidade, as grandes organizações passaram a desenvolver as atividades que antes eram realizadas pelos pequenos trabalhadores individuais e pelo Estado. Desta maneira, tornaram-se detentoras do poder e absorveram a sociedade pela maior dependência de salário, externalização dos custos sociais e propagação da burocracia industrial, influenciando a economia, a tecnologia, a política, as classes sociais, a religião e as famílias (PERROW, 1992). Houve uma inversão de valores: o trabalhador passou a ser valorizado pelo quanto produzia em menor tempo, conforme o padrão ditado pela empresa. Deveria ser flexível e dispor todo o seu tempo, esforço físico e mental para a empresa, exigindo-se dele cada vez mais dedicação (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009). No sistema capitalista, a economia se separa dos vínculos sociais, cujo fim não é mais a subsistência, mas sim o lucro (POLANYI, 1980). A lógica do capital é quem ditas as “regras do jogo” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009; POLANYI, 1980). Principalmente em épocas de crise econômico-financeiras, as empresas costumam demitir ou estimular a aposentadoria dos mais idosos, alegando que eles são mais lentos e tem maiores dificuldades de aprendizagem, fato que deixa em segundo plano o tempo trabalhado, a experiência e a vida dedicada ao ambiente profissional. O Estado, por meio legal (art. 40, § 1º, II, da Constituição Federal de 1988 e art. 51 da Lei nº 8.213/91), obriga aos idosos que trabalham tanto da esfera pública quanto da privada a se aposentarem compulsoriamente, ou seja, sem a necessidade de consentimento do empregado, visando garantir meios de subsistência, em virtude de possíveis limitações de ordem físicas e cognitivas decorrentes do envelhecimento. Na seara pública esse ato ocorre quando o servidor completa 70 anos, independente de tempo de serviço ou gênero, enquanto na área privada, essa modalidade poderá ser requerida pela empresa, desde que o empregado tenha cumprido o período de carência e completado 70 anos se homem ou 65 anos se mulher (BRASIL, 1988; 1991).

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Todavia, muitos idosos mesmo após os 70 anos ainda se sentem aptos para trabalhar, em virtude da melhor qualidade de vida com os avanços decorrentes da tecnologia e da saúde (SILVA, 2008). Nesse contexto, o que se passa quando, abruptamente, se é retirado do sujeito o direito de trabalhar? Para responder a esta questão recorre-se à análise do filme argentino Lugares Comuns, produzido em 2002, pelo diretor Adolfo Aristarain, com o objetivo de refletir acerca das consequências da aposentadoria compulsória, das perdas financeiras, sociais e das dificuldades de reinserção no mercado de trabalho para os idosos, considerando o caso brasileiro. Apesar de o filme representar o contexto histórico a Argentina em seu período de crise econômica no início dos anos 2000, pós-governo do presidente neoliberal Carlos Menem, pode-se certamente associá-lo ao sentimento de incerteza, angústia e impotência vivenciada pela maioria dos idosos brasileiros nessa fase da vida, em que se observa a crise do capitalismo e a crescimento do desemprego (ANTUNES, 2010). Essa estória foi retratada pelo protagonista Fernando Robles, um professor de literatura de uma universidade em Buenos Aires, que ao completar 70 (setenta) anos foi surpreendido com a notícia de sua aposentadoria compulsória, enquanto planejava seu afastamento para participar de um curso de verão. Sua indignação pode ser relacionada a falta de preparo psicológico e financeiro e a incapacidade jurídica para voltar ao trabalho. Então, na nova condição social, ele vê seu salário ser reduzido e procura outras oportunidades de emprego, mas não consegue trabalho, então busca na bebida e no fumo um consolo para sua entrada na velhice. Com o aumento de sua crise financeira, ele tem que negociar o apartamento de Buenos Aires por uma certa quantia em dinheiro e uma chácara na região montanhosa de Córdoba, na qual ele irá morar com sua esposa Lili. Tal mudança, ao mesmo que surge como uma esperança de melhores dias para o casal, se assemelha a um exílio imposto, reforçando o sentimento de exclusão social e de falta de utilidade. Fernando começa a trabalhar na chácara, tenta se adequar ao lugar, estudar e compreender o plantio de flores para extrair a essência delas. Mas, a condição social, a idade e o salário que recebe constituem empecilhos para a obtenção de crédito junto a um banco, inviabilizando o negócio. Ao final, ele não se adapta a esse novo modo de vida no interior e distante do contexto que viveu, acaba adoecendo e vem a falecer.

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2 ENVELHECIMENTO E APOSENTADORIA O senso comum sobre o envelhecimento preconiza que, mesmo sendo um processo biológico natural da vida humana, geralmente não estamos muito preparados para aceitar a velhice. Considera-se a princípio que esta etapa da vida carrega consigo uma baixa na autoestima, decorrente de uma fragilidade da saúde e transformações anatômicas e funcionais, que trazem como consequência uma redução da qualidade de vida. Essa perspectiva, que ganhou força com o advento da Revolução Industrial, ao se vincular a saúde física à capacidade laboral como instrumento de ganhos financeiros para os empregadores, ao mesmo tempo em que foi responsável por consolidar uma imagem negativa da velhice como em um processo contínuo de decadência e perdas, proporcionou a legitimação de direitos sociais como a universalização da aposentadoria (DEBERT, 2012). Uma visão contemporânea do envelhecimento (FRANÇA, 2009; SOUZA, 2012;), por outro lado, tem defendido que o avanço da idade pode ser convertido em uma espécie de “vida nova”, ao elevar a autoestima, manter relações sociais no ambiente de trabalho ou simplesmente por preservar um sentimento de “utilidade”, repercutindo no prolongamento da vida laboral. De um lado, há uma concepção – velhice – que destaca os aspectos negativos; e de outro, há a noção de terceira idade, que enfatiza questões positivas, fortemente associadas ao consumo, dando uma falsa ideia de autonomia e independência (SILVA, 2008). Sobre a aposentadoria, alguns autores têm demonstrado que as mudanças que ocorreram ao longo do tempo (HARDY, 2011; SCHULTZ; WANG, 2011) e a falta de consenso em relação a seu conceito, contribuem para que atualmente algumas contradições e ambiguidades sejam percebidas (ECKERDT, 2010; ROESLER, 2010). Uma delas diz respeito ao entendimento de que a aposentadoria é uma instituição, uma experiência e um processo. Reconhecê-la como uma instituição implica a existência de estruturas sociais que regulam a saída dos trabalhadores do mercado de trabalho e, em troca, lhe fornecem algum tipo retribuição pecuniária. É, ao mesmo tempo, tratada como experiência, quando um indivíduo constrói, ao longo dos anos, sua própria condição de aposentado. Por fim, a aposentadoria enquanto processo de transição, tem a ver com as decisões e os diversos contextos que incidem na escolha do indivíduo sobre se e quando aposentar (SZINOVACZ, 2003).

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3 A PREPARAÇÃO PARA A APOSENTADORIA Muitas vezes a decisão de se aposentar não depende do trabalhador, depende do agente externo, o Estado ou a empresa, que o estimula a aderir algum plano de demissão voluntária ou obriga-o a se aposentar pela restrição legal a idade de trabalho, como por exemplo, a aposentadoria compulsória. Assim, não há escolha; o idoso se aposenta por imposição e com perdas salariais (MARSHALL; TAYLOR, 2005). Além disso, o indivíduo pode sentir sofrimento após a aposentadoria pela ausência do trabalho no que tange aos aspectos emocionais (ausência do sentimento de se sentir parte da organização, das responsabilidades e de enfrentar desafios no trabalho); aspectos tangíveis (status do cargo, perda de participar de eventos e reuniões); relacionamento com colegas de trabalho; redução de salários e benefícios (FRANÇA, 2009; FRANÇA; SOARES, 2009; SOUZA, 2012). Seja por necessidade, seja por desejar a continuidade de uma atividade, muitos aposentados tentam retornar ao mercado de trabalho, dessa forma, a aposentadoria cada vez mais deixa de representar a saída definitiva dos trabalhadores do mercado de trabalho, e passa a ser percebida como uma etapa em que se torna possível continuar produzindo (FRANÇA; SOARES, 2009). O problema, no entanto, se insere quando, ao tentar retornar ao mercado de trabalho, o idoso encontra dificuldades de reinserção. Não é raro encontrar aposentados que tiveram somente um único emprego ou desenvolveram a mesma atividade durante vários anos, sem conhecer outras experiências (FRANÇA, 2009). Assim, pela ausência de uma preparação adequada, pela falta de alternativas ou como uma forma de sobrevivência, alguns idosos se submetem a trabalhos precários, com contratos temporários ou a tempo parcial, tornando-se assim duplamente excluídos (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009). A orientação no momento que antecede a aposentadoria pode propiciar o planejamento e a reflexão acerca do processo de aposentadoria para o trabalhador, que pode envolver aspectos psicológicos, familiares, carreira e sociais (BITENCOURT et al., 2011). Geralmente, ela é realizada através de programas de preparação para a aposentadoria elaborados pelas organizações. Esse programa pode ser composto de um módulo informativo (legislação) e/ou módulo experiencial ou formativo (qualidade de vida), o qual geralmente mantém o

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acompanhamento do trabalhador até cinco anos após a aposentadoria (FRANÇA, SOARES, 2009). 4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS A pesquisa qualitativa foi escolhida como a abordagem metodológica mais adequada para a investigação, cujo objetivo foi analisar o filme criticamente e relacioná-lo a situações vivenciadas pelo principal personagem diante da aposentadoria numa conjuntura marcada por uma crise instaurada pelo capital em meados dos anos 2000 na Argentina. Bartes (1972) apud Melo, Marçal e Fonseca (2009) alerta para a complexidade que é a seleção das cenas, uma vez que, o que é excluído é tão importante quanto ao que se vai incluir e irá interferir no restante da análise. Assim, além do roteiro em si, devem ser levados em consideração outros aspectos como, por exemplo: a fotografia, a trilha sonora, se o filme é preto e branco ou colorido etc. Para tentar minimizar tal limitação, durante as exibições do filme os pesquisadores tentaram analisar o roteiro, as reflexões sociais inculcadas na trama, o momento-chave da história do país, os valores sociais e o relacionamento familiar, os domínios da vida cotidiana e as emoções do professor Fernando. O percurso metodológico se iniciou com a exibição do filme para os pesquisadores, de forma individualizada, durante o mês de julho do corrente ano. Após tal etapa, foram estabelecidas as cenas temáticas e os quadrantes que seriam analisados. O recorte dos relatos foi apoiado pelo uso do software Subtitle Edit versão 3.3.15, cuja função é a edição de legendas. Nesse sentido, o corpus da pesquisa (transcrições ou legendas para análise textual) resultou em 91 páginas, que além das falas, registrava o tempo em minutos e segundos da cena que seria selecionada. As etapas na condução da análise foram baseadas em Denzin (1989b, p.231-232) apud Flick (2004) que sugere que o filme seja considerado no todo, que as cenas-chave sejam anotadas, que sejam conduzidas “microanálises estruturadas” das cenas e das sequências individuais e, por fim, que seja feita uma busca por padrões estendidos a todo o filme como forma de responder as questões de pesquisa.

5 ANÁLISE DAS CENAS PRINCIPAIS Após a microanálise das cenas, compreendeu-se que o filme poderia ser observado em dois momentos distintos: a decisão de se aposentar, ou seja, o recebimento da notícia da

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aposentadoria compulsória; a o depois da aposentadoria, as consequências da não preparação para esse processo. A seguir apresenta-se os dois enquadres escolhidos para a discussão da temática. Após a seleção das cenas, destacou-se as frases que as representam, com breve descrição e, a posteriori, identificou-se os significados (moral da história) de cada uma delas.

5.2.1 Enquadre 1: A decisão de se aposentar No quadro 1 se analisa o momento em que a notícia da aposentadoria é dada pelo reitor da faculdade, sendo possível verificar o sentimento de ausência de responsabilização pelo ato, o sentimento de culpa de Fernando pela própria aposentadoria, a auto reflexão e a representação que a aposentadoria tem para a sociedade. QUADRO 1- Análise do momento da notícia da aposentadoria Descrição Verbal Cena 1: Fernando momentos antes de saber a notícia

Frases Destacadas Consegui uma licença de 15 dias com esses cursos de verão... já faz dois anos que não paro.

Cena 2: A responsabilização

Não, não tenho nada com isso. É coisa do Ministério. O decreto começou a vigorar há menos de um mês. E se cortam as verbas, não há outro jeito... é demitir ou obrigar as pessoas a se aposentarem. (...)Diga que vai ignorar o meu pedido, mas não me dê conselhos. - Eu não estou dizendo 'não',

Descrição da Cena (4 min 22 s a 5 min 1s) Fernando estava conversando com outra professora, ele estava pensando em tirar férias, de uma semana a dez dias, visto que já fazia dois anos que não parava, mas sem gastar muito. Nesse momento recebe um comunicado escrito de sua aposentadoria compulsória (nesse instante o ângulo da câmera foca no documento e logo após no rosto de Fernando, o que nos leva a crer que o diretor quis enfatizar a sensação da notícia vivenciada por Fernando. (5 min 13 s a 6min 59s) Fernando vai a sala do reitor tomar satisfações, saber de quem mandou o aposentar. O reitor, diz que é má sorte e coloca a culpa no Governo que está reduzindo os gastos e afirmando que não há nada a fazer e ainda insinua que a culpa também é do professor

Moral da história Não há tempo para férias, lazer, o trabalho é central na vida do indivíduo. Também ausência de uma preparação para a aposentadoria, a notícia é dada por qualquer pessoa nenhum envolvimento emocional.

Há uma descentralização do poder, no qual a gerência imediata não se responsabiliza pelo ocorrido, repassa a culpa para algo maior (a legislação, o Estado e o sistema) no qual o trabalhador se sente desprotegido e sem ter a quem recorrer.

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Cena 3: A reflexão do momento

mas existem outras questões a considerar: a honestidade, capacidade, disciplina, ideologia... Esse é o problema. - Não, não. Todos temos direito à opinião... - Mas, às vezes, você vai longe demais. Vá sentar em um banco da praça, e dar de comer aos pombos. - Acho que está mesmo na hora. - Eu estava brincando.

que é diferente e crítico (a cena expõe a indiferença em relação ao ato de aposentadoria, quando o reitor se levanta e oferece uma xícara de café com a fisionomia de que nada estivesse acontecendo).

A uma culpabilização do professor pela má-sorte e por apresentar uma postura crítica perante o sistema, diferente dos demais.

(10 min 28 s a 11m 46s) Fernando vai avisar ao advogado sobre aposentadoria, pede para ele recorrer e não contar nada a sua esposa para não estragar a viagem. Logo após no clima de brincadeira, o advogado insinua que Fernando está velho e manda sentar em um banco e dar comida aos pássaros (nesse momento, Fernando olha para o chão e balança a cabeça refletindo)

As pessoas têm o receio de se aposentar serem vistos como inúteis, por isso não dizem que estão aposentados ou postergam o momento da aposentadoria. A imagem da velhice é muito associada a incapacidade para o trabalho, ao corpo doente e a solidão.

Fonte: Cenas extraídas do Filme Lugares Comuns, 2002.

No filme analisado, percebe-se claramente a consideração da aposentadoria enquanto instituição (SZINOVACZ, 2003), uma vez que, sua atribuição compulsória não permite ao trabalhador a preparação necessária nem tampouco a possibilidade de decidir quando se aposentar. É algo imposto, estabelecido legalmente. Quando esse dia da aposentadoria chega, não há o que fazer ou a quem recorrer, não se saber a quem responsabilizar, ninguém pode fazer nada para suspender o ato, pois a legislação é inflexível, não favorece o retorno do indivíduo após a aposentadoria ao mercado de trabalho. Muitas vezes, nesse tipo de aposentadoria, as pessoas se sentem ainda mais deprimidas, principalmente as que ainda estão se sentindo bem e aptas para desempenhar as atividades, por terem geralmente sua imagem de aposentados associada a corpo envelhecido, a doença e a incapacidade (SILVA, 2008). 5.2.2 Enquadre 2: O depois da aposentadoria O momento após a aposentadoria é geralmente muito complicado para o idoso que se depara com perdas salariais e dificuldade de reinserção no mercado de trabalho. O Estado

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e as empresas geralmente não preparam as pessoas para a etapa de pós-aposentadoria, para outras carreiras ou novas atividades. Essa responsabilidade pela reinserção é imposta ao próprio trabalhador que na maioria das vezes se sente despreparado, sem competências necessárias para assumir uma nova carreira e enfrentar a competência acirrada por uma vaga no mercado de trabalho. A ausência dessa orientação profissional pode favorecer o sentimento de desesperança e de inutilidade do aposentado. No quadro 2 é possível observar o momento logo após a confirmação da aposentadoria, a desesperança pela impossibilidade em reverter a aposentadoria, a necessidade de se replanejar financeiramente e busca por outro emprego. QUADRO 2 – Análise do momento após a confirmação da aposentadoria Descrição Verbal Cena 1: A desesperança

Frases Destacadas - Não tenha boas notícias. Não consegui demover o Reitor, de modo que você está despedido. E ferrado. Vão começar a lhe pagar, com sorte, em dois ou três meses. - Quanto? - O mínimo. - Não pode, eu contribuí para muito mais. - Pode, se a situação melhorar, eles aumentam. Por agora, é o que se pode conseguir.

Descrição da Cena (33 min 31 s a 34 min 29s) Fernando vai ao escritório do advogado que confirma a aposentadoria e que não há o que fazer, os processos contra o Governo demoram demais e não adiantam

Moral da história A aposentadoria para muitos representa a perda de sentido da vida, de esperança de dias melhores.

Cena 2: O replanejamento

- Andaremos de ônibus. Cinema, vídeos, livros. Que tal a metade, também? - Corte. Se sobrar, aí vamos ver. - Não sei como, Lili. - Nós ficaremos em casa, esquecemos o vinho, o café... deixamos o telefone para o mínimo... - Não tem jeito, Lili, ainda assim não dá.

(34 min 30 s a 36min 39s) Na mesa da cozinha Fernando com a caderneta faz o controle das contas a pagar e conversa com sua esposa Lili dos cortes que terão que fazer depois da aposentadoria.

Com a aposentadoria há perda de salário e o mínimo não é digno, o idoso tem que replanejar suas finanças e economizar ainda mais para tentar sobreviver.

Cena 3: A busca por outro emprego

De repente, compreendemos que pensar era tudo que podíamos fazer. E ninguém nos pagaria por isso, e tampouco, nos daria qualquer tipo de trabalho. Disseram que estávamos fora do mercado, desatualizados,

(36 min 40 s a 37min 25s) Lili busca empregos em jornais impressos para Fernando, enquanto ele procurar emprego nas agências por telefone. Fernando vai enfrentar as filas de desempregados a

O capitalismo é excludente, há grande discriminação do idoso no mercado de trabalho. E sem alternativas, preparação e reorientação de

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fora do sistema. Fora de tudo. Estávamos à margem. Excluídos, prescindíveis, descartáveis.

busca de trabalho. E coloca anúncios nas universidades para dar aulas particulares, mas não tem retorno. Então, sua esposa coloca a casa a venda.

carreira, o trabalhador idoso se submete a trabalhos precários para tentar sobreviver.

Fonte: Cenas extraídas do Filme Lugares Comuns, 2002.

Constata-se que essa queda na alta estima, pode decorrer das perdas financeiras, sociais e das dificuldades encontradas para se reinserir no mercado. Tal fato favorece o isolamento social do aposentado e o sentimento de inutilidade. Uma adequada orientação profissional para a aposentadoria poderia reduzir os efeitos negativos que a aposentadoria pode causar no indivíduo (CAMBOIM et al., 2011). Portanto, esse planejamento poderia ter contribuído com uma preparação social e psicológica para que Fernando refletisse e se adaptasse a nova condição, facilitasse a obtenção de novas competências para desenvolver atividades distintas, seguisse na carreira de empreendedor ou aprendesse a viver o tempo livre, minimizando perdas e, talvez, prolongando a sua vida.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Fernando buscou durante o filme explicar os acontecimentos da vida e não apenas descrevê-los, criticar o sistema que é excludente, incerto e alienante. Mas, a “verdade” acerca da vida é relativa e as melhores perguntas que poderiam auxiliar nesse trajeto (O quê? Como? Onde? Quando? Por quê?) são muitas delas “lugares comuns”, desconsideradas, pois muitos só se importam com o objetivo (o fim) e não os meios. Assim é o capitalismo, que valoriza a busca pelo lucro, fragiliza os valores que se vão em nome do progresso avassalador, de uma economia de mercado. Há uma quebra de tradição e de respeito à herança, do trabalho que transpassa de pai para filho, para um trabalho que gere mais renda, mais individual (POLANYI, 1980). Fernando, ao longo da história, faz o filho refletir pelo sentido do trabalho, por trabalhar por vocação, fazer aquilo que se gosta, por prazer e não tão somente por dinheiro. Mas, ao mesmo tempo, observa-se que ele não tira férias há muito tempo e nem tem o costume de ficar com a família (filhos e netos), o trabalho também é centralizante e individual. Apesar disso, o trabalho é visto como um mecanismo essencial para essa integração

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social e a autorrealização do indivíduo. Ficar sem trabalhar ou aposentado, pode gerar sensação de perdas pela ausência do trabalho, no que tange aos aspectos emocionais (ausência do senso de parte da organização, das responsabilidades e de enfrentar desafios no trabalho); aspectos tangíveis (status do cargo, não participação em eventos e reuniões); relacionamento com colegas de trabalho; redução de salários e benefícios (BITENCOURT et al., 2011; MOREIRA, 2011; FRANÇA, 2009; FRANÇA, SOARES, 2009; SOUZA, 2012). Foi o que aconteceu com Fernando, após se aposentar. Sofreu, teve perdas financeiras, emocionais, isolou-se. Mas, o sistema capitalista não está preocupado com os sentimentos desses trabalhadores; culpabiliza-os e apropria-se da situação de fragilidade para flexibilizar os direitos deles e precarizar as relações laborais. Quem é idoso e está desempregado, é duplamente penalizado sendo mais difícil replanejar a vida nesse momento. Os “não empregáveis” têm maior dificuldade de sobressair dessa situação precária e de se reinserir no mercado de trabalho (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009). A preparação para a aposentadoria pode minimizar os efeitos negativos que a aposentadoria possa causar no indivíduo (CAMBOIM et al., 2011), reorientar o idoso para outra carreira ou para desenvolver outras atividades. No filme, Fernando não conseguia mais trabalho, não tinha como sobreviver com uma renda tão baixa, teve que se desfazer dos bens, morar em outro lugar e tentar empreender individualmente, sem conhecimento do negócio e sem recursos financeiros, gerente do próprio risco, do fracasso e da desilusão de estar fora do sistema. Ao final, o personagem não consegue prosperar no negócio, não se adapta a esse novo modo de vida do interior, e solitário, distante do contexto que viveu, acaba adoecendo e morre. E a vida continua, como se nada tivesse acontecido, indiferente, como um lugar comum. É preciso, portanto, se preparar para esse momento, pensar em outras carreiras ou atividades que propicie o sentimento de bem estar e de utilidade a pessoa aposentada. 8 REFERÊNCIAS ANTUNES, R. A crise, o desemprego e alguns desafios atuais. Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 104, p. 632-636, out./dez. 2010. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: Acesso em: 01.set. 2014.

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______. Lei federal nº 8.213, de 25 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Disponível em: Acesso em: 01 set 2014. BITENCOURT, B.M.; GALLON, S.; BATISTA, M. K.; PICCININ, V. C. Para Além do Tempo de Emprego: o sentido do trabalho no processo de aposentadoria. RCA - Revista de Ciências da Administração, vol.1, n.31, p.30, 2011. BOLTANSKI, L.; CHIAPELLO, È. O novo espírito do capitalismo. São Paulo. Martins Fontes. 2009. CAMBOIM, V. et al. Aposentadoria, o desafio da segunda metade da vida: estudo de caso em uma agência bancária. Revista Gestão Organizacional, v. 4, n. 1, art. 3, p. 49-70, 2011. DEBERT, G. A Reinvenção da Velhice: socialização e processos de reprivatização do envelhecimento. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: FAPESP, 2012. EKERDT, D. Frontiers of research on work and retirement. Journal of Gerontology: Social Sciences, 65B, n.1, p.69-80, 2010. FLICK, U. Uma introdução à pesquisa qualitativa. 2.ed. Porto Alegre: Bookman, 2004. FRANÇA, L. H. de F. P.; SOARES, D. H. P. Preparação para a aposentadoria como parte da educação ao longo da vida. Psicol. ciênc. prof., Brasília, v. 29, n. 4, 2009 . FRANÇA, L. H. de F. P. Influências sociais nas atitudes dos 'Top' executivos em face da aposentadoria: um estudo transcultural. RAC, Curitiba, v. 13, n. 1, mar. 2009. HARDY, M. Rethinking retirement. In: SETTERSTEIN JR., R.; ANGEL, J. (Eds.). Handbook of Sociology of Aging. New York: Springer, 2011. LUGARES comuns. Direção: Adolfo Aristarain. Produção: Adolfo Aristarain, Instituto Nacional de Cine Y Artes Audiovisuales (ICAA): Europa Filmes, 2002. 1 DVD (110 min), NTSC, color. Título original: Lugares comunes. MARSHALL, V.; TAYLOR, P. Restructuring the lifecourse: work and retirement. In: M. L. JOHNSON (ed.). The Cambridge Handbook of Age and Ageing. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. MELLO, S.; MARÇAL, M.; FONSÊCA, F. Os sentidos do trabalho precarizado na metropolis: fato e ficção! Revista O&S, vol.16, n.49, p. 307-323, abr./jun., 2009. MOREIRA, J.O. Imaginários sobre aposentadoria, trabalho, velhice: estudo de caso com professores universitários. Psicologia em estudo, vol.16, n.4, p.541-550, 2011. PERROW, C. B. Una sociedade de organizaciones. REIS – Revista Española de Investigaciones Sociologicas, vol. 59, n.92, p.19-55, 1992. POLANYI, K. A grande Transformação: as origens de nossa época. Editora Campus. 1980. ROESLER, V. Posso me aposentar “de verdade”. E agora? Contradições e ambivalências vividas no processo de aposentadoria de bancários. Florianópolis, 2012. 255. folhas. Tese (Doutorado em Psicologia). Programa de Pós-Graduação em Psicologia, UFSC. SILVA, L. R. F. Da velhice à terceira idade: o percurso histórico das identidades atreladas ao processo de envelhecimento. Hist. Ciênc. Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, vol. 15, n. 1, mar. 2008. SCHULTZ, K.; WANG, M. Psychological Perspectives on the Changing nature of retirement. American Psychologist, vol. 66, n. 3, p.170-179, 2011. SOUZA, C. Geração e Trabalho na Atualidade: uma análise sociológica. Contemporânea, v.2, n.2, p.513-531, jul./dez. 2012. SZINOVACZ, M.E. Contexts and pathways: Retirement as institution, process and experience. In: ADAMS, G.A.; BEEHR, Terry A. (Eds.). Retirement: Reasons, Processes, and Results. New York: Springer Publishing Company, 2003.

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