Reflexões para uma teoria da validade das normas jurídicas etnograficamente construída: um experimento a partir do caso dos judeus no ENEM

June 13, 2017 | Autor: Alexandre Fernandes | Categoria: Direito Constitucional, Supremo Tribunal Federal, Antropologia Do Direito
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Reflexões para uma teoria da validade das normas jurídicas etnograficamente construída: um experimento a partir do caso dos judeus no ENEM Alexandre Fernandes RESUMO O presente artigo busca refletir sobre as teorias do direito propostas por Hans Kelsen e Peter Haberle sobre, respectivamente, o fundamento de validade de uma norma jurídica e os sujeitos intérpretes da Constituição. A partir de uma pesquisa em arquivos de caráter exploratório, especificamente da Suspensão Tutela Antecipada 389, busca-se apresentar como foi o processo judicial em que um grupo de estudantes judeus demandaram que a União e o INEP realizassem a prova do ENEM em uma data diversa aos sábados e domingos. Posteriormente, busca-se refletir quais são as teorias do direito que são utilizadas nas práticas dos sujeitos que buscavam validar determinadas normas jurídicas. Sugere-se que as celeumas em torno da validade da norma jurídica é um campo de disputa, no qual os inúmeros sujeitos buscam determinar a norma inferior desejada – específica para o caso. A regra principal desse campo é afirmar que ela está de acordo com uma norma superior. Sugere-se que, ainda que haja inúmeros intérpretes da Constituição, no contexto dos conflitos judiciais, os discursos realizados por juízes possuem um valor superior às outras interpretações. Com isso, sugere-se que uma teoria do direito deve levar em conta esses saberes locais, na medida em que elas são mais explicativas para compreender o cotidiano dos juristas. INTRODUÇÃO Esse artigo é um experimento de teoria etnográfica do direito empiricamente construída. Vamos começar com o empírico. Tal artigo é assim chamado porque as reflexões nele contidas foram estimuladas pela leitura de documentos que se referiam a um conflito judicial travado entre um grupo de pessoas e uma pessoa jurídica de direito público. Resumidamente, durante os meses de setembro a dezembro de 2009, um grupo de vinte e dois estudantes secundaristas e uma associação – o Centro de Educação Religiosa Judaica – promoveram uma ação judicial contra a União Federal e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Os autores no processo judicial buscaram condenar a União em uma ação de caráter cominatório, ou seja, obrigando o réu a fazer algo para resguardar algum direito subjetivo dos autores. A conduta desejada pelos vinte e dois estudantes e pela Associação era que a União aplicasse a prova do Exame Nacional do

Ensino Médio (ENEM) em dia e horário não coincidente com o Shabat e o Sucot, período da semana judaica que corresponderia às datas de aplicação de provas do ENEM, marcadas inicialmente para os dias 5 e 6 de dezembro de 2009. O Centro de Educação Religiosa Judaica e os estudantes secundaristas, apesar de contratarem advogados para que o judiciário brasileiro coagisse, pelos procedimentos judiciais, os organizadores do ENEM a atenderem ao pedido, não lograram êxito. Desse modo, os estudantes do colégio mantido por essa associação tiveram de seguir as regras previamente estabelecidas pelo ENEM. Caso não fizessem desse modo, eles não poderiam participar do Exame e, consequentemente, deixariam de concorrer a uma vaga em diferentes universidades particulares e públicas do Brasil.1 Durante o processamento judicial da ação movida pelo grupo de estudantes judeus e a respectiva associação, inúmeros juristas construíram discursos sobre a validade das normas jurídicas em questão. Dentro da lógica documental dos autos judiciais que constituíram o processo, os juristas defenderam e/ou se contrapuseram ao pedido da associação. Enquanto os advogados dos autores tentavam persuadir os diferentes juízes, de modo geral, com argumentos que situavam a recusa da União em realizar o pedido como uma afronta à norma jurídica que assegurava a liberdade de crença religiosa, os advogados da União fizeram argumentos contrários, afirmando que tal procedimento seria uma afronta as normas superiores que resguardavam a isonomia entre os diferentes cidadãos do Brasil. Já os juízes das diferentes instâncias, por sua vez, no ato de decidir sobre esses processos, decidiram tanto com argumentos favoráveis quanto com argumentos contrários, prevalecendo, no entanto, a decisão do órgão colegiado do Supremo Tribunal Federal (STF), que julgou improcedente o pedido feito pelos autores. Mas vamos voltar para teoria do direito, alcunha que tento situar esse texto. Isso porque, ainda que o interesse seja de construir uma descrição sobre um evento a partir dos autos de um processo judicial, ele também visa conceber modos de como pensar sobre a validade de normas jurídicas e dos processos pelos quais uma comunidade política constrói

Tal ação judicial adquiriu um caráter singular dentro do contexto nacional por múltiplas razões. Inicialmente porque o Exame Nacional do Ensino Médio, em 2009, ainda não tinha essa dimensão tão determinante para o acesso ao ensino superior. Somente no segundo governo Lula que tal exame, por meio do SISU (sistema de ingresso ao ensino superior unificado), passou a ser o principal critério de seleção para entrar nas diferentes instituições de ensino superior do Brasil, substituindo os vestibulares locais. Nesse sentido, esse processo judicial foi uma das primeiras ações sobre o ENEM a ter relevância nacional. Outra singularidade que caracterizou o ENEM foi a consideração da decisão como jurisprudência vinculante, ou seja, uma interpretação fundante do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o direito de liberdade religiosa, positivado pelo artigo 5º, incisos VI e VIII, da Constituição Federal. A decisão realizada pelo STF, portanto, adquiriu um caráter de relevância, de modo tal que os diferentes juízes e intérpretes do ordenamento jurídico, em casos tidos como semelhantes, ficam mais vinculados a seguir as mesmas orientações advindas dessa decisão. 1

determinada norma válida ou não válida. A questão é fundante dentro do contexto da teoria do direito. Desde os teóricos clássicos do contratualismo como Thomas Hobbes (2014 [1651]) ou Jean-Jacques Rousseau (2013 [1762]), a discussão sobre a validade do ordenamento jurídico estatal tem se imposto com diferentes proposições sobre como justificar a validade de uma determinada norma jurídica. Saber o porquê de determinadas condutas serem consideradas obrigatórias, proibidas e/ou permitidas é objeto de celeuma produtiva para a discussão sobre as correntes filosóficas – seja para os que se intitulam como jus naturalistas, positivistas os realistas jurídico.2 Lembremos que, para Hans Kelsen (xxxx), o ato de construir decisões judiciais – usualmente entendido como “interpretação das normas jurídicas” – é também a produção de normas jurídicas. Nesse sentido, pode-se entender que esse processo judicial constituiu, de certa maneira, não apenas numa “interpretação” de normas jurídicas, mas na produção das mesmas. É por tal razão que Hans Kelsen afirma que a jurisprudência tem caráter “constitutivo” do ordenamento jurídico.3 Portanto, é compreensível que o processo judicial analisado também se constituiu num evento de produção normativa no contexto do direito positivo brasileiro. Entretanto, a prática cotidiana na arena judiciária tem se imposto por formas idiossincráticas de construir a validade de uma determinada norma jurídica. O que se mostra muito interessante, de um certo ponto de vista, é que existem teorias do direito utilizadas no cotidiano forense, mas que essas teorias tomam conformações muito próprias por se envolverem dentro de um ambiente de discussão historicamente e espacialmente construído. Qual é essa teoria do direito praticada nos autos desse processo judicial? Essa é a principal questão do texto. Mediante a análise detida dos autos processuais da Suspensão de Tutela Antecipada (STA) 389, uma ação originária no STF que continha cópias do processo judicial inicialmente originado pelo grupo de estudantes judeus, pretendo expor a produção simbólica (discursos) realizados pelos participantes do processo (advogados e juízes) e o

Norberto Bobbio (1996 [1960]) caracteriza as três correntes por diferentes formas de como cada um avalia a validade da norma jurídica. Enquanto, para os jusnaturalistas, o direito positivo apenas tem validade se for adequado aos critérios de justiça e eticidade, Bobbio sugere que os positivistas vinculam a validade do ordenamento jurídico a sua característica de coercibilidade. Já os realistas jurídicos condicionariam a validade do ordenamento jurídico a sua eficácia, ou seja, ao fato de ser ou não seguido. 3 Não é que Hans Kelsen desconsidere a diferença entre legislador e juiz, mas que ele entende essa diferença enquanto de grau, não de qualidade: “(...) a [diferença] (...) consiste apenas em que a vinculação do legislador sob o aspecto material é uma vinculação muito mais reuzida do que a vinculação do juiz, em que aquele é, relativamente, muito mais livre na criação do Direito do que este. Mas também este último é um criador de Direito e também ele é, nesta função, relativamente livre. Justamente por isso, a obtenção da norma individual no processo de aplicação da lei é, na medida em que nesse processo seja preenchida a moldura da norma geral, uma função voluntária” (KELSEN, 2006 [1960], p. 249) 2

quanto isso dará a validade de determinadas proposições normativas. Nesse sentido, a proposta do presente artigo é compreender como, nas práticas textuais, os sujeitos desses processos constroem a validade do ordenamento jurídico e tentam formar suas proposições jurídicas em válidas. Noutro ponto, é importante levar em conta que também será buscado compreender não apenas as práticas discursivas “vencedoras”, ou seja, aquelas que que lograram êxito dentro do âmbito judicial e que conseguiu construir uma norma considerada válida. Também será buscado compreender os discursos jurídicos “perdedores” – nomeadamente os dos advogados dos autores e de alguns juízes. Tal preocupação decorre da potencialidade de analisar esses discursos perdedores, não porque eles sejam relevantes por si enquanto um arcabouço jurisprudencial, mas porque eles são também constituintes de um campo de disputas que legitimam as decisões judiciais vencedoras.4 Nesse sentido, busco empreender as teorias do direito trazidas nas práticas discursivas dos autores desse processo judicial, independentemente se elas lograram êxito em criar normas jurídicas. 2. O Caso dos vinte e dois judeus no ENEM Essa é uma história de uma batalha judicial perdida por quem as iniciou. Em 25 de setembro de 2009, três advogados contratados pela Associação de direito privado “Centro de Educação Religiosa Judaica”, mantenedora do Colégio Jayne Beith Chinuch (escola localizada no bairro Jardins da cidade de São Paulo-SP) e pelos vinte e dois estudantes, terminaram de escrever uma petição inicial.5 Protocolada na Justiça Federal, a petição foi endereçada a um juiz de alguma vara cível da subsecção da capital paulista. A petição indicava como réu do processo duas pessoas jurídicas: a União Federal e o INEP, uma autarquia federal. As alegações realizadas pelos três advogados nessa petição inicial começavam com um tópico intitulado “DOS FATOS”. Escreveram esses advogados que, nos dias 3 (sábado) Segundo Callon e Latour, é importante explicar a derrota e o sucesso nos mesmos termos. Isso não é para sustentar contra a evidência que tudo se vale e que entre uma teoria que foi eliminada e uma teoria que se impõe não existe nenhuma diferença. É uma maneira tocante de dizer que é preciso explicar a construção de assimetria, reconstruir todas as provas que têm pouco a pouco estabelecido consenso. (LATOUR & CALLON, 1990, p. 23) 5 Em determinada parte da petição, os autores da petição inicial discutiram sobre a legitimidade ativa e passiva das partes. A legitimidade é um critério para saber se as partes colocadas são titulares dos direitos subjetivos em questão. Nos termos discutidos, a União Federal foi chamada porque ela tem o poder regulamentar para criar normas referentes às diretrizes e bases da educação nacional e o INEP figura como réu por ser o organizador da prova. Já os estudantes foram os autores porque eles estariam com o seu direito de participar da prova não garantido por serem judeus e a escola porque “a impossibilidade de participação de seus alunos no ENEM, por força da liturgia religiosa dada a malsinada coincidência do exame com datas caras à fé judaica, e de guarda obrigatória, prejudica enormemente o Colégio Iavne, uma vez que seu desempenho no cômputo geral do ranking estará irremediavelmente comprometido pelo altíssimo nível de absenteísmo”. 4

e 4 (domingo) de outubro de 2009, seriam realizadas as provas do ENEM no período da tarde (13h00 às 17h00). Para os advogados que representavam os autores, o ENEM era uma prova não apenas essencial pelo fato de ser uma avaliação do Ensino Médio, mas também porque, a partir de sua realização, os estudantes poderiam concorrer a uma bolsa no Programa Universidade para Todos (ProUni). Eles tentaram destacar a relevância do ENEM naquele contexto: Pode-se verificar a importância da participação no ENEM do aluno que pretende ser avaliado e poder cursar o Ensino Superior em uma das tantas Universidades que utiliza o resultado do ENEM como critério, parcial ou total, para a seleção dos candidatos. Outrossim, com base no resultado das avaliações dos alunos, pode-se ranquear as Escolas do Ensino Médio.

O objeto de controvérsia, contudo, era que os estudantes autores da ação sairiam prejudicado pela organização do ENEM não estar de acordo com o calendário judeu. Os advogados alegaram que aquilo não respeitava a forma como os judeus administram seu tempo: Ocorre, que ao fixar as datas das avaliações do ENEM, o INEP não observou o calendário judaico, coincidindo os dias do exame com duas importantes datas do judaísmo: o shabat, no sábado, dia tradicionalmente de guarda, e o sucot, no domingo, que em hebraico significa festa das cabanas, dia sagrado que relembra o êxodo dos judeus no deserto após saída do Egito; no deserto viveram sob as cabanas por quarenta anos. Ambos significam que o judeu não pode realizar qualquer atividade a não ser a religiosa até o pôr-do-sol.

No tópico “III-Mérito”, os advogados tentaram articular essa conduta dos réus a um descumprimento das normas impostas pelo ordenamento jurídico. Afirmaram esses que (...) o INEP cerceia a liberdade religiosa no País e, mesmo que sem intenção, discrimina os estudantes do Ensino Médio em razão da sua profissão de fé. Certamente, deve-se observar e respeitar os Direitos Constitucionais à Liberdade de Crença e ao Acesso à Educação.

Após citar os dispositivos legais, constitucionais e alguns tratados internacionais que regularizam a liberdade religiosa6, os advogados afirmaram que, desses dispositivos legais, “deduzem-se os seguintes enunciados deônticos”: a) permissão para a consciência e crença (subjetivas) e para o exercício de atos religiosos e seculares que não contrariem suas crenças e consciências; b) proibição de quaisquer condutas por parte do Estado e de particulares que prive direitos de cidadão em razão de sua crença religiosa; c) tratando-se de obrigação legal a todos imposta, o Estado ou entes equiparados têm a obrigação de garantir prestação alternativa.

Artigo 5º, VI, VIII da Constituição Federal; Art. 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos; artigo 12.2. da Convenção Americana sobre Direitos Humanos; artigos 18, 25 e 26 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos; Artigo 6º da Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação com base em Religião ou Crença (Resolução 36/1955 da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 25 de novembro de 1981) 6

Além de utilizar dispositivos legais, os advogados também trouxeram uma extensa literatura de textos de cunho jurídico para argumentar que a União e o INEP estavam agindo inadequadamente. Passando por autores nacionais como Fábio Comparato a Imannuel Kant para argumentar sobre a “dignidade da pessoa humana”, os comentários de Celso Láfer sobre o pensamento de Hannah Arendt para argumentar sobre a “liberdade” e outros autores, os advogados dos autores da ação argumentaram que a conduta do INEP e da União são agressões à liberdade religiosa dos estudantes que professam o judaísmo: Em virtude deste fato, quando se impede o exercício de um dever religioso, também se está agredindo a dignidade humana em seu viés público e privado, porque em sua esfera íntima, o indivíduo sente a agressão estatal como um obstáculo para a realização de um dever advindo da vontade de Deus; já na esfera pública, o sujeito passivo da ação sentese excluído da sociedade, sua cidadania é diminuída, gerando-se um mal estar na comunidade.

Nessa construção de fatos e direitos, constituindo uma diferença entre o que “é” e o que “deve ser”, os advogados realizaram os seguintes pedidos: (...) determinar (...) a adoção das providências de seu mister em ordem a assegurar que os alunos co-autores, que professam o credo judaico, possam realizar o Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM, originalmente previsto para os dias 3 (três) e 4 (quatro) de outubro de 2009, em dia e horário compatível com a liturgia da religião por si professada, de molde a tornar viável a prestação alternativa referida no artigo 5º, VIII, da Constituição Federal, excluindo-se especialmente o período compreendido entre o por do sol da sextafeira e o pôr-do-sol do sábado, bem como os demais feriados religiosos, consoante calendário incluso Requer-se, outrossim, a procedência da ação em face da UNIÃO FEDERAL, a fim de, mediante preceito cominatório judicial (...) esta proceda à edição de decreto regulamentador das exceções e especificidades, que decorram da religião, fixando e oferendo a prestação alternativa prevista na Carta Magna, a fim de ensejar uma alternativa factível de conduta aos que professem outras fés em ordem a possibilitar a seus fiéis a observância de liturgias incompatíveis com o calendário laico do Poder Público Federal”.

Esses pedidos foram feitos com antecipação de tutela, uma vez que, do momento em que foi protocolada na Justiça Federal, faltavam poucos dias para o julgamento. Ao final da petição, estavam juntados documentos necessários pelas formalidades jurídicas, tais como as procurações que davam poderes aos advogados de protocolarem a ação, uma Moção Pública de Apoio feita pela Escola e o Estatuto Social da associação. A ação foi enviada, depois da distribuição – ato em que é sorteada a vara que julgará o processo –, para a 16ª Vara Federal Cível da Justiça Federal da Subsecção de São Paulo. Em 30 de dezembro de 2009, a juíza titular daquela vara se pronunciou sobre a petição na decisão que recebia, uma vez que foi pedida a tutela antecipada. Na decisão interlocutória, ato jurídico no qual se respondeu tal pedido, a Juíza da Vara manifestou-se. Após fazer um resumo sobre a petição, a Juíza argumentou que o pedido feito pelos autores era a de criação de regras especiais e que, caso atendesse a esse pedido, ela estaria ofendendo à “isonomia”.

[os autores] pretendem o estabelecimento de regras especiais relativamente aos demais candidatos, que também são adeptos de outras religiões e devem submeter-se aos exames nas datas designadas pelo INEP, o que ofende, a meu ver, o princípio da isonomia”.

Nesse sentido, revela-se que a juíza argumentou a negação do pedido a partir de uma concepção de que a criação de regras especiais, diante da existência de uma demanda fundada na liberdade de crença, seria inadequada. Além desse argumento, a juíza federal também justificou que os pedidos seriam inviáveis para adequar a todas as religiões: Se o calendário de exames e concursos houvesse que respeitar todos os feriados religiosos, de todas as religiões, não previstos em lei, certamente haveria muita dificuldade na designação de datas adequadas para todos, sendo de notar-se que o comparecimento dos alunos bem como o deslocamento são mais facilitados nos fins de semana (...).

Para justificar também esse argumento, a Juíza trouxe decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ)7, que se pronunciou em caso semelhante a um adventista que queria um calendário diferente dos demais. Por fim, ela decidiu que não acataria o pedido, “por não reconhecer a relevância jurídica na tese exposta na petição inicial”. Os advogados perderam uma primeira batalha, mas eles nãos se deram por satisfeitos. No dia seguinte, em 30 de setembro de 2009, eles protocolaram um recurso da espécie “Agravo de Instrumento”, em que tentavam contestar a decisão da Juíza Federal da 16ª Vara Cível. Endereçada para o Tribunal Regional Federal da 3ª Região, o Agravo de Instrumento basicamente repetia, de modo reduzido e resumido, os pedidos realizados na petição inicial. O recurso foi distribuído nessa instância e enviado para o desembargador Mairan Maia. Entretanto, esse desembargador não julgou a tempo da aplicação da prova do ENEM. Aconteceu, no entanto, que uma das versões da prova do ENEM tinha vazado para o público, de modo que a aplicação das provas foram canceladas. A nova data passou a ser 5 e 6 de dezembro de 2015. Assim, eles conseguiram que o Agravo de Instrumento fosse julgado a tempo de produzir os efeitos que desejavam. Entretanto, se a juíza da primeira instância não teve concordância quanto aos pedidos, o desembargador lançou um novo entendimento sobre a questão discutida e decidiu, em 22 de outubro de 2009, pela procedência dos pedidos dos autores. Nas suas justificativas, o desembargador começou sua decisão com a seguinte frase: “Para aqueles que professam uma religião, a vida é dom de Deus, pois concentra a plenitude de todos os direitos, e sem vida, os direitos não podem ser exercidos”.

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ROMS 16.107 – Relator Paulo Medina – DJ 01/06/2005

O argumento pela a procedência do pedido declarava a “laicidade do estado”. Nesse sentido, o desembargor afirmou que os direitos só fazem sentido para quem tem “vida” e que, para os religiosos, a vida é um Dom de Deus. A República Federativa do Brasil é um Estado laico. Não obstante, consta em seu preâmbulo que a Constituição [...] é promulgada sob a proteção de Deus, e é invocando o nome de Deus que a então Assembléia Nacional Constituinte, como representante do povo brasileiro, institui um Estado Democrático, como representante do povo brasileiro, institui um Estado Democrático (...).

Citando jurisprudências produzidas no Tribunal Constitucional Alemão, o desembargador afirmou que era dever do estado atender aos pedidos feitos pelos autores. Não há sociedade livre sem liberdade de crença religiosa. Dessa forma, incumbe ao Estado planejar e ao executar as tarefas que a constituição lhe atribui, como por exemplo, promover a educação, observar e respeitar a liberdade de crença e a pluralidade de crenças religiosas entre seus integrantes.

Assim, também argumentando que é de interesse do Estado “a participação de todo o universo de estudantes secundaristas”, esse desembargador determinou que fosse (...) oportunizada aos autores a participação no ENEM, em dia compatível com o exercício da fé por eles professada, a ser fixado pelas autoridades responsáveis pela realização da prova, observando-se o mesmo grau de dificuldade das provas realizadas por todos os demais estudantes.

Parecia, portanto, que o INEP e a União teriam de se submeter a essa determinação. Entretanto, a União e o INEP não se deixaram intimidar por essa decisão. Em 13 de novembro de 2009, três advogados da AGU, entre eles o então advogado geral da União, Luís Inácio Lucena Adams, protocolaram uma ação da espécie “Suspensão da Tutela Antecipada” no Supremo Tribunal Federal contra a decisão realizada pelo desembargador do TRF da 3ª Região. Em nome apenas da União, a ação teve como fundamento de admissibilidade o fato de que a decisão do TRF acarretaria “grave lesão à ordem jurídicoadministrativa”. (...) caso mantida a tutela recursal, haveria um exame aplicado para mais de quatro milhões de alunos que estão inscritos no ENEM, e outro, para os vinte e dois autores desta ação – sem contar o efeito multiplicador, no qual outros indivíduos, que se sintam violados no seu direito de crença, também poderiam ser beneficiados com tutela semelhante. Haveria, então, quantas provas diferentes a serem aplicadas? Certamente tal panorama comprometeria a credibilidade do ENEM.

Observa-se também que um argumento fundamental propagado pelos Advogados da União foi um temor ao efeito “multiplicador”, temendo que as possam se sentir legítimas para realizar o mesmo pedido: Com efeito, a decisão antecipatória da Corte Regional pode representar precedente a ser utilizado por milhares pessoas que professem sua fé perante as principais religiões do país

É indiscutível, portanto, o efeito multiplicador que tal decisório possui, podendo, ainda, representar precedentes a serem copiados pelos demais órgãos do Judiciário em atuação no país”

Além da problemática de abrir um precedente, os argumentos trazidos pela Advocacia Geral da União foram apresentados por um conjunto de outros critérios pela improcedência do pedido. Primeiramente, afirmou-se a laicidade do estado “implica a neutralidade formal, fato que impede a imposição de benefícios ou de prejuízos em virtude da crença religiosa, razão pela qual o Estado laico não interfere na atividade religiosa e garante a liberdade de consciência e de crença dos indivíduos”. Posteriormente, os advogados da União argumentaram que tal pedido poderia “comprometer o Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o interesse particular” e “quebra do princípio da isonomia”. Citando-se alguns precedentes do Supremo Tribunal Federal8 e do Superior Tribunal de Justiça9 e de tribunais locais e argumentando pela necessidade de uma decisão urgente do STF para o caso, a Advocacia Geral da União argumentou: “(...) tendo em vista a proximidade da data, resta evidente a necessidade de que a tutela recursal seja suspensa o mais rápido possível por essa Suprema Corte, a fim de que os autores recebam o cartão de confirmação de inscrição e possam realizar a prova juntamente com os demais alunos do País, em condições de igualdade com os inscritos do exame”.

Além da petição inicial que realizava a suspensão, a advocacia geral da União juntou aos autos desse processo um ofício do Ministério da Educação e do INEP, afirmando que foi ofertado para os autores a opção de atendimento com necessidade especial, conforme era ofertada para os adventistas que queriam guardar o shabat. Em 20 de novembro de 2009, uma semana depois de protocolada a ação de Suspensão de Tutela Antecipada, o então Presidente Ministro do STF, Gilmar Mendes, decidiu contra o pedido feito pelos estudantes secundaristas. Esse ministro, em uma decisão monocrática, começou afirmando que (...) não há dúvida de que o direito fundamental à liberdade religiosa (...) impõe ao Estado o dever de respeitar as escolhas religiosas dos cidadãos e o de não se imiscuir na organização interna das entidades religiosas. Trata-se, portanto, de dever de neutralidade axiológica do Estado diante do fenômeno religioso (princípio da laicidade), revelando-se proscrita toda e qualquer atividade do ente público que favoreça determinada confissão religiosa em detrimento das demais.

Observa-se que esse argumento é seguido com o uso de uma conjunção de adversidade: “Contudo” – iniciou o Ministro Gilmar Mendes – “a fixação de data alternativa para a realização das provas do ENEM coloca em risco a ordem pública, em sua acepção jurídico-administrativa”. 8 9

ADIN nº 2.806-5/RS RMS 22825-RO, 5ª Turma, Relator Ministro Felix Fischer; RMS 16107-PA, 6ª Turma, Rel. Min. Paulo Medina

Nesse sentido, o ministro do STF elencou um conjunto de argumentos para afirmar que o pedido dos estudantes judeus não era factível. Inicialmente, o Ministro negou pela ausência de “critérios objetivos que possam indicar, de forma cabal, se duas provas possuem grau de dificuldade equivalente ou diverso”. Depois, Gilmar Mendes indicou que “a fixação de data alternativa apenas para um determinado grupo religioso configuraria, em mero juízo de delibação, violação ao princípio da isonomia e ao dever de neutralidade do Estado diante do fenômeno religioso”. Do mesmo modo, o ministro também encampou o argumento do “efeito multiplicador” e também argumentou que, caso os judeus queiram, eles podem se adequar ao modelo proposto para os adventistas. Por fim, afirmou que permitir essa exceção seria “diminuir a credibilidade do ENEM, já prejudicada em virtude do anterior vazamento das provas”. Os advogados da Associação e dos vinte e dois estudantes recorreram da decisão. Interpondo um Agravo Regimental contra a decisão do Ministro Gilmar Mendes, eles colocaram a questão na pauta no Plenário do Supremo Tribunal Federal. Os advogados em defesa dos judeus enviaram a petição via fax. Nela, eles repetiram as argumentações semelhantes às colocadas originalmente na Petição Inicial, destacando em negrito que os adeptos da fé judaica “(...) são privados de direitos por motivos de crença religiosa” e que “(...) o ENEM deixou de ser mera opção complementar aos estudantes secundaristas. Sua realização tornou-se imperativa àqueles que almejam vaga em instituições federais de ensino superior”. Do mesmo modo, os autores afirmaram que o “(...) o Estado Brasileiro parece se valer de vários pesos e medidas”. De um lado, justifica medidas como a instituição de quotas sociais (que em realidade apresentam-se essencialmente como quotas raciais) com base no argumento de que ações afirmativas são necessárias à preservação da isonomia. De outro lado, não garante a um grupo religioso o acesso ao exame educacional mais importante da atualidade, com base ao argumento de que a isonomia impõe a neutralidade, não permitindo medidas diferenciadas destinadas a grupos diferenciados.

Com os pronunciamentos dos advogados da União e dos diferentes juízes, os advogados dos estudantes também se valeram de novos argumentos para contrapor ao que foi defendido pela União, que apenas naquele momento teve a oportunidade de se manifestar no processo. Os advogados da União afirmaram, por exemplo, a possibilidade de criar provas diferentes com os mesmos níveis de dificuldade, uma vez que o INEP teria essa capacidade técnica. Além disso, esses advogados argumentaram que os custos por uma aplicação exclusiva aos estudantes não seria um “custo excessivo”. Por fim, houve um conjunto de argumentos afirmando que a “medida alternativa” para estudantes religiosos, que se

caracterizaria “pelo confinamento de jovens por sete horas”, esperando que o Sol se ponha, seria um tratamento não isonômico. No dia 3 de dezembro 2009, dois dias antes da nova data de aplicação da prova, a questão foi para o Plenário do STF. O Ministro Gilmar Mendes, na ocasião, apresentou um relatório do processo e, no seu voto, engrossou os argumentos que tinha feito quando decidiu sozinho. É interessante observar, por exemplo, que Gilmar Mendes trouxe um precedente da Suprema Corte dos Estados Unidos da América (Everson versus Board of Education) para justificar que não há “indiferença estatal”, mas “neutralidade estatal”. Não sou insensível as esses argumentos, mas vejo que a medida adotada revela-se, em face dos problemas advindos da designação de dia alternativo, mas consentânea com o dever do Estado de neutralidade diante do fenômeno religioso (que não se confunde com indiferença, consoante salientado anteriormente) e com a necessidade de se tratar todas as denominações religiosas de forma isonômica.

Por fim, Gilmar Mendes citou que havia duas ações diretas de inconstitucionalidade a serem julgadas pelo STF que voltariam a tocar na questão10. A maioria dos outros integrantes do Plenário se mostrou favorável. O Ministro Ricardo Lewandowski voltou a ressaltar sobre a previsão do atendimento diferenciado no edital do ENEM. Já o Ministro Carlos Britto reforçou que o “estado brasileiro é laico, o que não significa indiferentismo”, que seria impossível assegurar o “mesmo grau de dificuldade entre uma prova massiva para toda uma população e outra também – agora, não é tão massiva porque parece que os requerentes são vinte e dois” e que “no caso concreto seria praticamente instalar o caos no âmbito da Administração Pública (...)”. Em relação ao Ministro Cézar Peluso, esse afirmou que não vislumbrava, na conduta do estado brasileiro em não fazer uma prova nos moldes diferentes, qualquer impedimento ao exercício de direitos por motivo de ordem religiosa. O único integrante do Plenário que apresentou voto contrário foi o Ministro Marco Aurélio. Esse Ministro afirmou que o ato do INEP em não realizar uma prova em horário alternativo não teria cabimento porque foi feito por um ato administrativo, norma jurídica inferior a uma Lei, aprovada pelo Congresso Nacional. Sugeriu esse Ministro que fosse colocada a prova para um dia da semana: “[o INEP] atuou no campo da razoabilidade, da proporcionalidade? A meu ver, não. Não atuou. Manteve o ato e o exame poderia ocorrer em qualquer dia da semana: segunda, terça, quarta, quinta – excluída a sexta -, tendo em conta o islamismo. (...) A prestação alternativa, mais do que viável, seria a designação do exame para dia útil, dia de atuação normal, tendo em conta os diversos segmentos da sociedade”.

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ADI 3.714 e ADI 391.

Entretanto, restou o Ministro Marco Aurélio vencido. Por tal razão, o processo transitou em julgado e os estudantes judeus, que estavam prestando o Exame Nacional do Ensino Médio, tiveram de se submeter às regras dispostas pelo INEP e pela União. O autor desse artigo não sabe se eles foram realizar a prova. 3. A produção de normas enquanto um campo de disputas Fazendo uma análise de síntese sobre o processo, é interessante observar um conjunto de práticas discursivas semelhantes em um campo discursivo comum, reconhecidamente legítimo diante das regras colocadas pelos autores. O mais importante, nesse sentido, é a classificação do judaísmo e do calendário enquanto “religioso”. Tanto os advogados quanto os juízes partiram desse pressuposto de que determinadas práticas realizadas pelos estudantes, tais como guardar os sábados e domingos, são compreendidas como práticas religiosas. Em nenhum momento a “religiosidade” do calendário foi objeto de discussão. Isso difere, por exemplo, as controvérsias em torno das práticas de consumo e produção de maconha do líder da Primeira Igreja Niubingui Etíope Coptic de Sião do Brasil, em que promotores, juízes e advogados discutiram incessantemente sobre se essas práticas eram ou não eram religiosas (LAGES, 2015). O campo de disputas, se não foi em referência à classificação do calendário enquanto religioso ou não, intensificou em torno das potencialidades que “as práticas religiosas” podem interferir na conduta da pessoa jurídica da União. Discutindo-se profundamente sobre a “liberdade de crença e religião”, os advogados discursivamente buscavam estabelecer que esse direito subjetivo compelia os órgãos do estado a coagirem os agentes públicos que se recusassem a realizar uma prova de acordo com o “calendário judeu”. Do mesmo modo, a instância recursal ordinária – representada pelo desembargador – constituía discursivamente o dever do estado em respeitar a liberdade de crença e a pluralidade de crenças religiosas entre seus integrantes. Mas, se a “liberdade religiosa” foi uma forma de tentar construir uma norma jurídica para que os agentes do estado fossem compelidos a cumprir, os outros agentes foram igualmente perspicazes em se posicionar contra esse modo de entender a “liberdade religiosa”. As afirmações eram, de fato, que havia a garantia de “liberdade religiosa”, mas que a conduta do estado de não acobertar a demanda dos estudantes judeus não correspondia a uma afronta a esse direito subjetivo de liberdade religiosa, visto que ela não interferiria na “religiosidade” dessas pessoas.

Além da discussão em torno da “liberdade de crença religiosa”, o argumento contínuo dos contrários à demanda era de que havia um estabelecimento de “normas especiais” para os estudantes demandantes, e que tal demanda feria a isonomia com os outros candidatos do ENEM. Isso ficou explicitamente colocado pelos advogados da União quando fizeram a comparação entre a quantidade total de pessoas que iriam fazer a prova no fim de semana com a quantidade dos demandantes. Tal argumento, quando tomado pelo órgão colegiado do STF, logrou sucesso com os julgadores do STF, que, à exceção de um, entenderam que a “isonomia” do estado impedia um tratamento diferenciado para os judeus. É interessante perceber, por sua vez, que os advogados dos estudantes judeus e da associação não negaram a ideia de isonomia como um critério basilar para considerar a demanda, mas a encamparam para dizer que, na verdade, essas são instâncias que dão validade a suas demandas dentro do ordenamento jurídico. Não à toa, esses advogados confirmaram que acatar um tratamento diferenciado aos estudantes judeus seria semelhante a acatar o tratamento diferenciado aos negros nas cotas raciais. Percebe-se, portanto, que os diferentes atores do processo judicial, em suas diferentes formas de argumentar pelas demandas que desejam observar validadas pelo ordenamento jurídico, consideram que o “direito a crença religiosa” e a “isonomia” estão sendo respeitados, mesmo que ambos queiram produzir normas diferentes. Nesse sentido, mostra-se que as normas jurídicas, por mais que adquiram em torno dela práticas discursivas que afirmem estar de acordo com normas superiores – e, por isso, estariam validadas – elas podem produzir diferentes condutas. Tal consideração nos leva a algo que Hans Kelsen considerava em Teoria Pura do Direito. Ele afirmava, tratando do problema da interpretação, que Não há absolutamente qualquer método – capaz de ser classificado como de Direito positivo – segundo o qual, das várias significações verbais de uma norma, apenas uma possa ser destacada como “correta” (...) (p. 248).

Nesse sentido, ainda que possamos observar duas normas jurídicas possíveis – uma que estaria de acordo com a demanda dos estudantes judeus e do colégio e outra de acordo com a demanda da União e do INEP – uma logrou êxito em ser considerada válida e outra não. Tal ponto permite sugerir que todos os atores tentam validar as normas que coadunem com suas visões do direito afirmando que esses estão em conformidade com uma norma superior. Uma vez que a Constituição Federal declara “isonomia” e “liberdade religiosa” enquanto valores que ordenam as condutas dos sujeitos, as proposições normativas produzidas pelos diferentes discursos são construídas como se estivessem de acordo com

àquela norma superior.11 O que se demonstra, portanto, é que existe um valor ideologicamente englobante sobre todos os discursos apresentados pelos participantes do processo. Esse valor é a afirmação de que as normas que eles buscam validar são inferiores a uma norma superior – a Constituição Federal – mas que, ainda que inferiores dentro do ordenamento jurídico, elas estão em acordo com a norma superior. Por tal razão, é importante resguardar que, ainda que certa teoria do direito afirme que há um ordenamento jurídico unificado, a análise desse processo jurídico permite sugerir que o direito se constrói dentro de um conjunto de disputas. Desse modo, é possível sugerir que uma teoria do ordenamento jurídico, para ser devidamente explicativa, tem de ser pensada enquanto um campo de disputas em que os diferentes atores disputam qual é o sentido único do ordenamento jurídico. Tal forma de pensar a teoria do direito já era proposta por Pierre Bourdieu. Em seu texto “A Força do Direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico” (1989), Bourdieu já indicava que uma teoria descritiva da teoria do direito deve trata-la como um sistema simbólico em que há uma contínua ação em que se impõem as normas jurídicas sem percebê-las como arbitrárias, ou seja, fazem com que elas aparentem independentes das relações de força que ele sanciona e consagra (idem, p. 212)12. Caso não se sintam convencidos, os diferentes sujeitos se submetem por temor a coação institucional garantida pelo monopólio da força pelo estado.13 Assim, é possível constituir que todos estavam jogando dentro de regras estruturantes e estruturadas. Talvez isso explique a aversão tão grande aos discursos normativos propostos pelo juiz Edilson Rumbelsperger Rodrigues. Em 2009, ao sentenciar sobre um processo com base em questões de violência doméstica, Edilson Rodrigues não fez uso da Constituição Federal como motivo para afastar a validade da Lei Federal nº 11.340/2006 – a Lei Maria da Penha

Hans Kelsen já antevia que a validade das normas se envolvia enquanto um campo de diferentes posições. Afirmando que isso não era uma atividade “científica”, mas “política”, Kelsen sugere que a constituição de uma interpretação única é um ato político e que os sujeitos fazem isso porque eles estão numa arena política, não necessariamente científica: Um advogado que, no interesse do seu constituinte, propõe ao tribunal apenas uma das várias interpretações possíveis da norma jurídica a aplicar a certo caso, e um escritor que, num comentário, elege uma interpretação determinada, de entre as várias interpretações possíveis, como a única “acertada, não realizam uma função jurídico-científica, mas uma função jurídico-política (de política jurídica). Eles procuram exercer influência sobre a criação do Direito. Isto não lhes pode, evidentemente, ser proibido. Mas não o podem fazer em nome da ciência jurídica, como frequentemente fazem. (2006 [1960], p. 251) 12 Segundo Bourdieu, ao produzir as normas jurídicas de um conjunto de mecanismos, como a apriorização, universalização e neutralização das proposições jurídicas, os diferentes atores acabam por se conformar as normas (BOURDIEU, 1989). 13 Um efeito da coação é que, em certa medida, aos estudantes judeus, foi imposta (ou reconfirmada) uma compreensão de que a prática de guardar os sábados e domingos não é apenas “judaica”, mas também é “religiosa”. 11

–, mas utilizou-se de outros tipos de discursos, remetendo-se ao cristianismo. Esse é um trecho de uma reportagem posterior que narrava o caso: Na época, Rodrigues atacou a lei em algumas sentenças, classificando-a como um “conjunto de regras diabólicas”. Ainda segundo o juiz, a “desgraça humana” teria começado por causa da mulher. "A vingar esse conjunto de regras diabólicas, a família estará em perigo (..) Ora, a desgraça humana começou no Éden: por causa da mulher. Todos nós sabemos, mas também em virtude da ingenuidade, da tolice e da fragilidade emocional do homem", segundo trechos de decisões do juiz. 14

Por tal razão, Edilson Rodrigues sofreu punições do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Nas justificativas de um dos membros do conselho, ““A visão que o magistrado em causa tem da mulher entra em mortal rota de colisão com a Constituição. O juiz decidiu de costas para a Constituição”. 2. A hierarquização dos discursos Mas vamos voltar ao caso dos judeus. É interessante perceber que, apesar de haver uma pluralidade de discursos no processo, alguns discursos ganham mais destaques do que os outros pelos sujeitos que os enunciam. Isso é perceptível por vários motivos. O primeiro é o papel que os juízes possuem no processo. O discurso produzido pelos juízes adquire a característica de “decisão”. Nesse sentido, é possível ver que “decisão interlocutória” e “acórdãos” são as “interpretações” normativas que adquirem validade, o que não acontece, por exemplo, com os discursos produzidos pelos advogados, que são entendidas enquanto interpretações cuja função é convencer, não decidir. Tal hierarquização dos discursos é corroborado, inclusive, pelos advogados. Esses citam as decisões judiciais dos tribunais – Superior Tribunal de Justiça, Supremo Tribunal Federal – como decisões que tem o caráter de “precedente”. No afã de tornarem suas demandas favoráveis, eles “colacionam” tais precedentes para mostrar que os juízes devem se sentir convencidos para julgarem de uma maneira semelhante. Os juízes também concordam com isso, na medida em que, para decidir, eles citam precedentes anteriores para justificar as suas decisões. Nesse sentido, é interessante perceber que os juízes também citam os precedentes, afirmando que, em caso semelhante, o Tribunal decidiu de determinada maneira. Por fim, é interessante perceber que as decisões judiciais são sucedidas por um conjunto de valorações. No momento em que os advogados vão recorrendo das decisões, eles vão subindo as instâncias recursais. Essas instâncias assumem que uma decisão colegiada

Reportagem >. Retirado em 18 de dezembro de 2015. 14

é superior às decisões judiciais singulares. É também perceptível que também se valoriza mais os Tribunais de ordem nacional – os Tribunais Superiores. Tanto os precedentes quanto as decisões realizadas dentro do processo são valorizadas quanto mais superior é a decisão. Isso nos faz repensar algumas discussões já realizadas sobre quem detém a possibilidade de interpretar o ordenamento jurídico. Peter Haberle, no texto “Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição” (1997). Em certa medida, esse jurista alemão propõe que a Constituição Federal é interpretada por inúmeros sujeitos. A teoria do direito, segundo Haberle, estaria relativamente obsoleta por ainda não ampliar os sujeitos que estão realizando a interpretação da constituição. Ele sugere que deve ser levado em conta que inúmeros sujeitos – partidos políticos, legisladores, igreja, sociedade civil organizada, indivíduos – estão continuamente realizando a interpretação. De fato, é possível observar que isso é realizado continuamente. Bastamos ver em redes sociais virtuais que indivíduos buscam legitimar suas condutas e sua imaginação sobre como deve ser o estado brasileiro afirmando que a Constituição Federal está de acordo com essas normas. Entretanto, ainda que seja possível observar esse papel interpretativo, uma teoria do direito deve perceber que as interpretações têm validades diferenciadas nos contextos em que elas são aplicadas. Dentro do contexto judiciário, por exemplo, é perceptível que o autor e o réu não podem se pronunciar sobre seu entendimento normativo diretamente, mas apenas por intermédio dos seus advogados. Os advogados são quem traduzem as demandas judiciais (FERNANDES, 2011). Do mesmo modo, os discursos dos advogados são entendidos como pequenos para a produção de uma norma válida. Desse modo, é importante perceber que uma teoria do direito, etnograficamente construída, deve levar em conta que as diferentes interpretações do ordenamento jurídico, no cotidiano forense, são hierarquizadas. Se observarmos, os advogados englobam sua interpretação normativa em relação às demandas trazidas pelos leigos. Já os juízes realizam o englobamento das outras discussões normativas, destacando-a como superior a todos os outros discursos. 4. Considerações Finais A partir de uma pesquisa em arquivos de caráter exploratório, especificamente da Suspensão Tutela Antecipada 389, buscou-se apresentar como foi o processo judicial. Posteriormente, buscou-se refletir quais são as teorias do direito que são utilizadas nas

práticas dos sujeitos que buscavam validar determinadas normas jurídicas. Sugeriu-se que a validade da norma jurídica é um campo de disputa, no qual os inúmeros sujeitos buscaram determinar a norma inferior desejada – específica para o caso. A regra principal foi afirmar que essas normas jurídicas estavam de acordo com uma norma superior. Sugeriu-se que, ainda que haja inúmeros intérpretes da Constituição, no contexto dos conflitos judiciais, os discursos dos juízes possuíam um valor superior aos outros e que, dentro dos discursos dos juízes, havia uma hierarquia que colocava o órgão colegiado do STF em posição superior ao do órgão colegiado do TRF que, por sua vez, era superior ao da juíza singular. Tal conformação analítica nos faz perceber que existem teorias do direito que ocorrem nas práticas jurídicas cotidianamente. Entretanto, quando colocamos lado a lado com alguns teóricos do direito, vemos que elas se adequam apenas parcialmente para explicar o funcionamento das práticas judiciais. Talvez essa consideração seja exigir dos autores algo que eles não estavam, de fato, dispostos a fazer. Não se sabe, por exemplo, se Peter Haberle pretendia elevar os outros sujeitos à intérprete da Constituição ou se a ideia era, de fato, demonstrar que os outro sujeitos – além dos juízes – faziam também essa interpretação. No entanto, o uso que pretendo fazer da ideia de “teoria do direito” aqui é entendela como algo que tem potencial de explicar o funcionamento das práticas judiciais a partir das práticas dos atores envolvidos. A análise detida de autos processuais potencializa a compreensão sobre o funcionamento do cotidiano forense. É nesse sentido que talvez seja desejável que uma teoria do direito explique os valores e as ideologias que estão sendo mobilizados cotidianamente pelos juízes, tanto para torna-las potencialmente mais explicativas quanto para que as transformações propostas sobre a prática jurídica sejam melhores mobilizadas.

Referências Bibliográficas BOBBIO, N. (1996 [1960]). Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: UnB. BOURDIEU, P. (1989). A Força do Direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico. Em P. BOURDIEU, O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil. FERNANDES, A. (2011). Traduzindo demandas – uma etnografia das ações de alimentos na defensoria pública de São Sebastião. Monografia de Graduação em Direito. Brasília: UnB. HABERLE, P. (1997). Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editores.

HOBBES, T. (2014 [1651]). O Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. São Paulo: Martin Claret. KELSEN, H. (2006 [1960]). Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes. LATOUR, B., & CALLON, M. (1990). Introduction. Em B. LATOUR, & M. (. CALLON, La science telle qu´elle se fait (pp. 7-37). Paris: Découvert. ROUSSEAU, J. J. (2013 [1762]). Do contrato Social. São Paulo: Martin Claret.

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