Regimes de visibilidade no mercado editorial globalizado: Brasil e Argentina como convidados de honra na Feira do Livro de Frankfurt

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38º Encontro Anual da ANPOCS GT02 – Arte e Cultura nas Sociedades Contemporâneas

Regimes de visibilidade no mercado editorial globalizado: Brasil e Argentina como convidados de honra na Feira do Livro de Frankfurt

José de Souza Muniz Jr.1 Daniela Szpilbarg2

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Doutorando em Sociologia na Universidade de São Paulo (USP), com estágio doutoral no Centro de Historia Intelectual da Universidad Nacional de Quilmes (UNQ). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). 2 Doutoranda em Sociologia na Universidad de Buenos Aires (UBA) e pesquisadora do Instituto de Investigaciones Gino Germani (IIGG). Bolsista do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET).

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1. Introdução A Feira do Livro de Frankfurt é o maior e mais importante evento do mercado editorial em nível mundial. Anualmente, milhares de editores, autores, agentes literários e scouts convergem para este influente centro financeiro europeu, em busca de oportunidades na compra e venda de direitos de tradução. As atividades, reuniões e leilões realizados aí definem boa parte das ofertas de publicação em todo o mundo. Em 2013, a feira reuniu 7.275 expositores de 102 países, e atraiu 170 mil visitantes profissionais, que compareceram aos seus cerca de 3 mil eventos. Fundamentalmente, trata-se de uma feira internacional de negócios, à diferença das Bienais do Livro de São Paulo e do Rio de Janeiro (mais centradas no leitor) e de feiras como as de Buenos Aires e Guadalajara (que mesclam os dois modelos, em proporções distintas). Sorá, ao referir-se às feiras e exposições como os lugares mais “primitivos” dos mercados, destaca que “desde ‘a alta Idade Média’ as feiras têm regulado os intercâmbio de produtos entre lugares distantes e articulado a construção sóciohistórica dos mercados a par da diferenciação de unidades políticas estatais” (2003, p. 210). As origens da Feira do Livro de Frankfurt remontam a essa tradição centenária, vinculada às grandes feiras comerciais que se realizavam nessa importante cidade germânica. No século XVII ela se autonomiza da grande feira e se torna a principal feira de livros da Europa, ainda que nos séculos seguintes tenha de disputar essa hegemonia com sua homóloga de Leipzig. É somente a partir de 1949 – após uma interrupção forçada pela Segunda Guerra Mundial – que ela vai paulatinamente constituindo-se como ponto nevrálgico do mercado global de livros, onde são definidos muitos dos grandes êxitos comerciais do setor livreiro mundo afora. Ainda que se deva considerar, para explicar tal logro, a histórica localização estratégica de Frankfurt como centro financeiro e de negócios, entroncamento rodoferroviário e aéreo importante da Europa, essa supremacia se explica também à luz da decadência da feira de Leipzig, já que com a Guerra Fria e a divisão das duas Alemanhas, esta cidade fica sob domínio soviético, relativamente isolada dos mercados ocidentais.

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A hegemonia da Feira do Livro de Frankfurt no período pós-guerra é tributária de dois fenômenos interdependentes: a transformação de evento de vendas a livreiros em evento de negociação de direitos, e a maior participação de outros países e línguas. “O networking, a partir da rede online e da presença dos organizadores em outros eventos, mostra como esta feira se constrói como o momento mais visível e significativo de uma trama de relações comerciais internacionais contínuas” (BAYARDO; MIHAL, 2012, p. 14). É desse modo que ela vai se tornando um evento de grandes proporções e logra constituir-se como polo de institucionalização (DUJOVNE; SORÁ, 2010), primeiro do mercado editorial alemão e, logo, do mercado internacional. Ainda que os mercados de língua alemã tenham certa preponderância na Feira, os mercados editoriais britânico e norteamericano passam a ocupar um espaço significativo da feira. Os setores de língua inglesa se configuram como lugares de passagem quase obrigatória, à medida que esta se configura como língua central no sistema mundial de circulação de textos3. Na intrincada rede de fluxos que constitui um sistema mundial de traduções que se organiza na forma centro-periferia (HEILBRON, 2010), o inglês ocupa uma posição hipercentral4, não só porque seus níveis de extradução são muito maiores que os de intradução, mas também porque determina a relação entre distintas línguas periféricas: “a comunicação entre grupos periféricos frequentemente acontece através de uma língua mais central. O que é traduzido de uma língua periférica a outra depende muitas vezes do que foi traduzido dessas línguas periféricas para línguas centrais. Assim, quanto mais central é uma língua no sistema de traduções, mais ela é capaz de funcionar como língua intermediária ou língua veículo, ou seja,

Segundo Sorá, “depois da Segunda Guerra Mundial, em quase todos os mercados nacionais o inglês representa a origem de cerca de 75% dos títulos traduzidos” (2003, p. 222). 4 O autor distingue quatro grupos de línguas segundo níveis de centralidade no sistema de traduções: posição hipercentral (inglês), central (alemão e francês), semicentral (sete ou oito línguas, dentre as quais o espanhol e, talvez, o português) e periférica (línguas que têm menos de 1% de participação no sistema, ainda que possuam grande número de falantes, tal como o japonês, o árabe ou o mandarim) (HEILBRON, 2010, p. 2). Os dados oferecidos por Ortiz (2004, p. 12 e ss.) são expressivos da hegemonia que o inglês adquire nas últimas décadas frente a outras línguas, especialmente o francês e o alemão, seja como idioma estrangeiro ensinado nas escolas secundárias, seja como língua mais publicada e citada nos periódicos científicos mundo afora. 3

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como um meio de comunicação entre grupos de línguas que são, eles próprios, periféricos ou semiperiféricos” (idem, p. 5). Sorá (2003, p. 189-213), a partir de uma etnografia da feira, vê tal desequilíbrio do sistema refletido na própria estrutura espacial do evento, que dedica maior área física e maior visibilidade aos países e idiomas centrais em detrimento dos periféricos. Para o autor, o arranjo espacial do evento “se faz corpo e docemente introduz uma hierarquia de valores e formas de classificação sublimadas quando os editores e demais especialistas regressam a seus lugares ordinários de trabalho” (idem, p. 211). Peter Weidhaas (2011), ex-diretor da Feira de Frankfurt que narrou sua história, relata as pressões que, ano a ano, a crescente hegemonia dos mercados anglófonos exerceu sobre a organização do evento: o espaço cada vez mais amplo demandado pelas editoras dos capitalizados mercados americano e britânico entrava em choque com o objetivo expresso da feira de dar espaço aos outros mercados do globo. De algum modo, a decisão de apresentar certos países como convidados de honra, a partir de 1988, simboliza a necessidade de instaurar uma espécie de “território de exceção”, imune a tais pressões, no interior da feira, no sentido de dar mais visibilidade a mercados menos centrais, que se revezam anualmente na ocupação desse lugar.

2. Fluxos e circuitos do mercado editorial global A "moderna" Feira de Frankfurt se desenvolve e ganha dimensões monstruosas nas três últimas décadas do século XX, momento em que os fluxos e as circulações passam a cobrar atenção especial das ciências sociais. Se, por um lado, essa preocupação está diretamente vinculada aos objetos que se impõem no presente, com a chamada globalização ou mundialização, por outro lado servirá também para revisar objetos do passado tradicionalmente enfrentados em bases nacionais. A escala do Estado-nação segue tendo relevância analítica para o estudo da edição de livros se consideramos o alcance das políticas que regulam e fomentam a atividade editorial, moldando a produção e a distribuição de produtores nos respectivos territórios. A unidade nacional é não só o âmbito de ação dos

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organismos responsáveis por tais políticas, mas também “o critério de classificação dominante da estrutura espacial” (SORÁ, 2002, p. 129) da Feira de Frankfurt e de suas congêneres, fazendo emergir daí certas identidades culturais e literárias ancoradas nas distintas tradições nacionais. Por outro lado, o caráter global do mundo dos livros impõe-se como objeto de estudo num momento histórico onde a atividade de editores, autores, tradutores e agentes literários se vê constantemente condicionada pelas decisões de companhias transnacionais como Pearson, Random House, Bertelsmann, Hachette; pelos diagnósticos e recomendações de órgãos supranacionais como a Unesco e a CERLALC; e pelas negociações feitas em

“aduanas”

culturais

como

Frankfurt,

Barcelona,

Londres,

Bolonha

e

Guadalajara. Constitui, por tudo isso, um desafio epistemológico às histórias do livro e da edição, tradicionalmente construídas em bases nacionais5, num momento em que os países a partir dos quais tais histórias são escritas “deixam de ser unidades autônomas, independentes, que interagem entre si, para se constituírem em territórios atravessados pelo fluxo da modernidade-mundo” (ORTIZ, 2004, p. 9). Para a análise da Feira de Frankfurt e da participação do Brasil e da Argentina como países convidados de honra do evento, dois aspectos do problema das circulações nos interessam. O primeiro deles é o da circulação dos produtos culturais, tomados de modo geral seja em suas materialidades (cartas, manifestos, revistas, livros, filmes etc.), seja em suas expressividades (informações, ideias, gêneros, estilos, idiomas). Este é, afinal, o elemento que justifica a ocorrência de eventos como a Feira de Frankfurt: os múltiplos encontros entre autores, editores e agentes literários do mundo todo têm como finalidade básica estabelecer acordos que tornem possível a publicação de títulos para além de seus territórios nacionais e linguísticos de origem.

A esse respeito, propõe Mollier (2012, p. 271): “o marco nacional desses estudos é, sem dúvidas, um espaço cômodo e útil para seu desenvolvimento, mas não deve ocultar as porosidades, as circulações de um território a outro, os múltiplos e multiformes intercâmbios que se podem haver produzido, as adaptações, traduções, cópias ou mutilações e censuras dos textos. É nesses aspectos onde uma perspectiva transnacional dos fenômenos produz certamente o melhor resguardo frente aos riscos de fechamento ou cegueira que ameaçam todo pesquisador que trabalhe com um objeto tão proteico”. 5

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Diversos pesquisadores têm assinalado a importância dos trânsitos internacionais de textos para a formação dos mercados culturais, a constituição da produção de livros como negócio e o estabelecimento de hierarquias entre tradições intelectuais e mercados linguísticos. Esses trânsitos dão a ver uma constante luta pela redefinição dos territórios de distribuição de produtos industriais/culturais entre os distintos centros e entre os centros e a periferia (SAPIRO, 2009). Os fluxos globais de edição e tradução, mais do que operações textuais em sentido estrito, são resultado de operações sociais que envolvem, além de editores e autores, agentes literários, tradutores, diretores de coleção, prefaciadores – gate-keepers e descobridores (BOURDIEU, 2002, p. 4-5) posicionados de modos específicos nos campos de origem e destino das obras. Esses agentes “cosmopolitas” e “poliglotas” (CASANOVA, 2002, p. 37) atuam como cambistas num mercado global em que os graus de consagração e as capacidades de difusão são desigualmente distribuídos entre autores, gêneros, países e línguas. O estudo dos mercados editoriais contemporâneos exigiria, nesse sentido, pôr em primeiro plano as tensões por meio das quais o “nacional” e o “global” se constituem reciprocamente. A circulação transnacional dos textos é um aspecto fundamental a uma análise desse tipo, uma vez que, considerada em sua espacialidade e em sua temporalidade, deixa à mostra a construção de relações desiguais entre distintos países e/ou distintas comunidades linguísticas. Nesse sentido, a Feira do Livro de Frankfurt, mais do que configurar um ponto de “conexão” do mercado editorial global, constitui um “nó” para onde convergem e de onde emergem tensões de ordem cultural, política, econômica e linguística. Ao imaginário de uma rede transnacional desterritorializada, capaz de produzir um “mundo sem fronteiras”, é necessário contrapôr a ideia de um mundo onde a circulação de produtos, ideias, textos e livros é diuturnamente disputada pelos agentes, pelas comunidades intelectuais e por organismos públicos e privados. No caso do mercado de livros, essa circulação ocorre principalmente de duas formas. A primeira é a da importação e exportação de produtos (ou seja, de livros comercializados em suas edições e línguas “originais”, ainda que sejam eles

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próprios resultados de operações de traduções prévias). A segunda é aquela resultante de operações de intradução e extradução, como as que são negociadas em Frankfurt; nesse caso, o que está em jogo é a comercialização de matériasprimas editoriais, com o objetivo de criar produtos adaptados às realidades locais. Trata-se, portanto, de dois circuitos distintos, mas complementares. O segundo aspecto que nos interessa aqui, e neste caso subordinado ao primeiro, é o da circulação de pessoas. Ainda que não possuam a escala quantitativa dos fenômenos turísticos, a larga duração das migrações e diásporas, ou as implicações políticas dos exílios, certos modos "fugazes" de circulação das elites intelectuais são essenciais para a compreensão dos arranjos assumidos pela produção simbólica nos distintos territórios. Objetos como as turnês, as residências artísticas, as expedições, os estágios de estudo e pesquisa, os congressos e as feiras ganham importância analítica, à medida em que podem revelar a construção de vínculos, grupos, redes que irão condicionar de distintas maneiras o trabalho intelectual das partes envolvidas para além do breve espaço-tempo do encontro presencial. Se em alguns casos podem apontar para o estabelecimento de conexões inéditas entre grupos ou tradições intelectuais até então isoladas umas das outras, em outros casos esses eventos transnacionais darão a ver o fortalecimento ou a reconfiguração de intercâmbios previamente estabelecidos. O que importa ressaltar, de todo modo, é a necessidade de superar certa visão encantada segundo a qual tais encontros são regidos pela lógica da cooperação e do mutualismo. Ainda que essa dimensão esteja presente, devem-se considerar os aportes de dependência e dominação que acabam por configurar uma geopolítica das relações intelectuais, onde os agentes e os lugares de onde provêm tendem a desempenhar papéis desiguais nas trocas que aí se estabelecem. Essa dimensão pode ser vislumbrada tanto nas relações mais "desinteressadas", que não envolvem nenhum tipo de troca material direta, quanto em ocasiões como Frankfurt, onde o que ocorre são fundamentalmente reuniões de negócios, entre editores e agentes que atuam aí como executivos do mercado editorial. Em um e outro caso, as partes envolvidas comumente ocupam posições

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desiguais: uns como compradores, importadores, receptáculos, replicadores; outros como vendedores, exportadores, fornecedores, modelos. Portanto, o que tais circulações propiciam, para além dos contatos, são contratos, com todos os problemas conceituais e práticos que daí derivam.

3. Países convidados, identidades nacionais em disputa “Este pavilhão não tem nada a ver com a Itália. Aqui não vemos os desempregados do sul, os viciados em drogas, não vemos a máfia e nem a Itália que trabalha realmente. Aqui estamos em meio à hipocrisia da mediocridade. Como pode uma cultura viver debaixo de papel-machê?”6 Assim o polêmico escritor italiano Aldo Busi se referiu ao pavilhão da Itália, primeiro país a ser convidado de honra da Feira de Frankfurt, em 1988. A crítica inscrita em seu discurso – que remete à distância entre realidade e representação, ou à superficialidade da imagem de nação aí forjada – se tornaria uma constante no evento. A partir desse ano, a Feira do Livro de Frankfurt promove anualmente a participação de um país – ou, em algumas exceções, de comunidades linguísticas infra ou supranacionais – como convidado de honra do evento. O objetivo é dar um lugar destacado, dentro de um espaço expositivo de dimensões gigantescas, a tradições de produção editorial existentes para além dos mercados centrais7. Aponta Sorá (2013, p. 104) que “a escolha de um país como convidado de honra da Feira do Livro de Franfkurt acentua as disputas internas de um campo editorial nacional (a divergência de seus interesses, suas linhas de força, seus ponto de apoio coletivo etc.) e põe em evidência o teor das relações entre os editores e o Estado”. Tais momentos, caracterizados pelo acirramento das discussões entre editores, autores e gestores públicos, parecem-nos interessantes para investigar as disputas em torno do espraiamento da produção editorial (em especial da literatura) de países periféricos, num contexto em que a circulação

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Apud: WEIDHAAS, 2011, p. 219. Anteriormente, a partir de 1976 e com periodicidade bienal, a Feira de Frankfurt havia estabelecido o modelo dos “temas centrais”. Foram eles: América Latina (1976), A criança e o livro (1978), África negra (1980), Religião (1982), Orwell 2000 (1984) e Índia (1988). 7

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internacional de livros é hegemonizada por agentes que se interessam por tais países fundamentalmente como mercados tradutores e consumidores. Ainda que não implique reversão ou equilíbrio dos fluxos de extradução e intradução, a participação de países convidados na Feira é momento oportuno para que mercados não centrais se projetem de modo singular num espaço altamente hierarquizado. É como se tal presença fosse capaz de pôr em suspenso a estrutura fortemente desigual da circulação internacional de textos. Trata-se, evidentemente, de um fato econômico, dado que a Feira de Frankfurt gira em torno da compra e venda de direitos. Nesse sentido, a ocupação desse espaço privilegiado, espécie de “vitrine” (BAYARDO; MIHAL, 2012) do mercado editorial internacional, significa para um país e para seus autores a possibilidade de ampliar sua participação nos fluxos transnacionais de tradução. Entretanto, tais negócios não estão isentos de significados em nível simbólico, já que esses intercâmbios e as possibilidades de tradução que eles trazem são capitais importantes para os agentes do setor. A presença internacional permite a eles disputar reconhecimento de crítica e de público em outros países e mercados linguísticos, êxitos que depois podem ser reconvertidos em maior prestígio em seus campos de origem. Além disso, em nível mais amplo, a presença em Frankfurt – e o conjunto de espaços físicos, eventos e autores escolhidos para tal ocasião – gera a construção de imagens específicas do país no exterior. Isso não quer dizer que essa

participação

não

tenha

objetivos

econômicos,

mas

que

responde

fundamentalmente a uma estratégia de soft power, ou seja, à criação de uma identidade ou marca cultural/literária do país a ser exportada e cujos efeitos simbólicos, políticos e econômicos nem sempre são calculáveis no curto prazo. Os únicos países latino-americanos que até o momento ocuparam esse espaço especial de visibilidade no evento foram México (1992), Argentina (2010) e Brasil (1994 e 2013); este, por sua vez, foi o único país a repetir sua participação como convidado – o que se repetirá em 2016, quando esse espaço será ocupado por Holanda/Flandres (dobradinha que já havia sido tema em 1993). Brasil e Argentina foram convidados de honra em vários outros eventos do mercado

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editorial global que passaram a adotar essa estratégia, dando lugar de destaque a países, cidades ou áreas linguísticas8.

4. Argentina e Brasil: arquitetando presenças O acordo que definiu a participação da Argentina como país convidado foi assinado em 2007, mas o planejamento do evento começou efetivamente em setembro de 2008. Em uma reunião com editores e representantes das câmaras do livro, a presidenta Cristina Fernández, a partir do decreto 1316/08, declarava a participação argentina em Frankfurt de interesse nacional. Decidiu-se que o projeto seria levado a cabo por uma comissão especial, a COFRA. Esta foi formada por 14 pessoas, incluindo representantes da Cámara Argentina del Libro e da Cámara Argentina de Publicaciones9, e dirigida pela embaixadora Magdalena Faillace, responsável por Assuntos Culturais na Cancillería10. Nessa ocasião, comunicaramse os ícones que representariam a Argentina na feira: Eva Perón, Che Guevara, Diego Maradona e Carlos Gardel. Uma polêmica invadiu jornais e suplementos culturais nas semanas seguintes: diversos agentes do campo cultural protestavam contra a decisão do governo de não incluir figuras literárias. Logo, a Cancillería informou que aos quatro ícones se somariam Jorge Luis Borges e Julio Cortázar, dois dos escritores

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Na Feira do Livro de Guadalajara, a mais importante em âmbito hispanoamericano, Argentina e Brasil foram convidados de honra respectivamente em 1997 e 2001; Argentina repetirá o feito em 2014. Na LIBER (Feira Internacional do Livro da Espanha, que reveza suas sedes entre Madri e Barcelona), o Brasil foi tema em 1997 e 1998, e a Argentina ocupou tal espaço em 2009. No Salão do Livro de Paris, Brasil e Argentina foram convidados de honra em 1998 e 2014, respectivamente; o Brasil repetirá o feito em 2015; nesse mesmo evento, Buenos Aires foi a cidade convidada em 2011. Na Feira do Livro Infantil de Bolonha, a Argentina foi tema em 2008 e o Brasil em 2014. 9 Ao contrário do Brasil, onde os editores estão unificados sob a Câmara Brasileira do Livro (CBL), na Argentina eles se dividem em duas câmaras: a CAL, constituída principalmente por pequenas e médias editoras nacionais; e a CAP, que reúne sobretudo grandes editoras e conglomerados de capital transnacional. A COFRA reuniu também representantes dos seguintes organismos: Secretaría General de la Presidencia de la Nación, Jefatura de Gabinete de Ministros, Secretaría de Medios de Comunicación de la Nación, Secretaría de Cultura de la Nación, Secretaría de Turismo de la Nación, Fundación Exportar, Fundación El Libro e Sociedad Argentina de Escritores. 10 Nome que designa o Ministerio de Relaciones Exteriores, Comercio Internacional y Culto, equivalente ao Itamaraty. Na análise de Bayardo e Mihal (2012, p. 17), "a centralidade da Cancillería na COFRA aparecia como uma forma de priorizar o comércio internacional e a visibilidade do país no exterior através de um organismo que dispõe de instrumentos específicos para isso".

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argentinos mais conhecidos e traduzidos ao exterior. A polêmica continuou, e por meio de uma carta aberta um conjunto de escritores pediu que fossem incluídos também os nomes de Rodolfo Walsh, Alfonsina Storni, Manuel Puig e Alejandra Pizarnik. Solicitavam, além disso, que o governo trabalhasse em prol da difusão de novos escritores, abrindo-lhes portas no mercado internacional, posição respaldada pelo diretor da feira, Jürgen Boos, para quem o país convidado deveria apresentar um panorama atual e diversificado da cultura nacional, com ênfase nos jovens autores11. Alguns meses depois da polêmica, era anunciada a criação do Programa Sur, que dá subsídios a editoras estrangeiras para traduzir autores argentinos. É importante notar que o planejamento da participação em Frankfurt e a criação do Programa Sur se dão quase na ausência de marcos legais anteriores: a Ley de Fomento al Libro y a la Lectura, sancionada em 2001, dedica pouco espaço à difusão internacional do livro argentino e, ainda assim, dá ênfase ao Mercosul e ao restante da América Latina (cf. ARGENTINA, 2001, art. 3º, § k e m). Já no caso brasileiro, a internacionalização aparece, ainda que de forma tímida, na lei que estabelece a Política Nacional do Livro12. Diretrizes mais concretas surgem com o Plano Nacional do Livro e da Leitura (PNLL), instituído três anos depois por uma portaria interministerial (cf. BRASIL, 2006) e que rege atualmente as políticas setoriais no país13. Apesar das prévias definições legais, é possível dizer que, tal 11

Bayardo e Mihal (2012, p. 21), que oferecem uma análise detalhada das contendas prévias a Frankfurt entre intelectuais e agentes do Estado, assim sintetizam o tom do debate: "os ícones foram questionados por remeter à política e a divisões partidárias, mas também foram criticados por tratar-se de personagens desvinculados do mercado editorial, por conferir excessiva centralidade a expressões não literárias e por reiterar figuras da literatura consagrada mais que promover a novos autores". Houve, ainda, reclamações com relação à demora nas tomadas de decisões por parte do COFRA e quanto à falta de participação de certos agentes no processo. 12 O artigo 1º menciona, dentre outras diretrizes, as de “propiciar os meios para fazer do Brasil um grande centro editorial” e “competir no mercado internacional de livros, ampliando a exportação de livros nacionais”. Já o artigo 13 define a responsabilidade ao Poder Executivo de “instituir programas, em bases regulares, para a exportação e venda de livros brasileiros em feiras e eventos internacionais” (BRASIL, 2003). 13 O documento-base do PNLL estabelece quatro eixos de ação: democratização do acesso; fomento à leitura e à formação de mediadores; valorização da leitura e comunicação; desenvolvimento da economia do livro. Este último eixo é composto de quatro sub-eixos, dos quais o último está assim redigido: “4.4. Maior presença no exterior da produção nacional literária científica e cultural editada. Participação em feiras internacionais. Programas de exportação de livros e apoio para a tradução de livros brasileiros para edição no exterior. Difusão da literatura e dos escritores brasileiros no exterior. Reedição de obras importantes, mas fora de circulação” (BRASIL, 2006, p.

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como no caso argentino, ações mais efetivas passam a ser implementadas quando a Feira do Livro de Frankfurt aceita a proposta de que o Brasil participe como convidado de honra. Esse parece ser o estopim para o emprego mais sistemático de recursos destinados à internacionalização da produção editorial e literária. O acordo que permitiu a participação do Brasil como país convidado foi firmado em outubro de 2010 (durante a edição da Feira na qual a Argentina era o país central). O comitê organizador foi composto pela entidade que firmou tal acordo, o Ministério da Cultura (MinC), e outros quatro órgãos: o Ministério das Relações Exteriores (MRE), a Fundação Biblioteca Nacional (FBN) (subordinada ao MinC), a Fundação Nacional de Artes (FUNARTE) e a Câmara Brasileira do Livro (CBL). A Academia Brasileira de Letras (ABL) e a Liga Brasileira de Editoras (LIBRE) também foram consultadas sobre o evento e convidadas a participar da programação, que contou também com o apoio operacional da APEX (Agência Brasileira de Promoções de Exportações e Investimentos). O Conselho Diretivo14 do projeto convocou, ainda, três curadores para definir a programação do evento e selecionar os 70 autores que fariam parte da expedição a Frankfurt: Manuel da Costa Pinto, Maria Antonieta Cunha e Antonio Martinelli. A participação do país convidado em Frankfurt prevê, geralmente, formas de fomento à tradução. No caso argentino, o Programa Sur começou a ser planejado em 2009, por ocasião do próprio convite. Após a realização do evento, em 2010, com quase 300 obras já traduzidas o programa foi confirmado como política de Estado, com orçamento anual que permite seu funcionamento regular. O Brasil, em contrapartida, já possuía desde 1991 o Programa de Apoio à Tradução e à Publicação de Autores Brasileiros no Exterior (doravante denominado PATPABE). Trata-se, hoje, da principal iniciativa do Centro Internacional do Livro (CIL) – parte integrante da Fundação Biblioteca Nacional (FBN), vinculada do Ministério da 30). De modo complementar, o sub-eixo 4.3 (Apoio à cadeia criativa do livro) menciona, entre outros objetivos, “Programas de apoio à tradução” (idem, ibidem), sem definir se se trata de fomento à intradução ou à extradução. 14 Constituído pelos seguintes executivos: presidente da FBN; presidente da FUNARTE; diretor do Departamento Cultural do MRE; diretor de Relações Internacionais do MinC; diretor do Centro Internacional do Livro da FBN; gerente executiva do projeto; presidente da CBL.

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Cultura (MinC) –, que promove outras iniciativas de internacionalização da produção editorial brasileira15. Apesar dessa longevidade, foi somente em 2010, por ocasião da escolha do Brasil para 2013 (e talvez por inspiração do Programa Sur, criado no mesmo ano), que decidiu-se dar mais ênfase e recursos ao programa. A diferença é bastante expressiva: se entre 1991 e 2009 foram oferecidos pelo programa 161 subsídios a tradução, somente entre 2010 e 2013 foram 422 subsídios (ou seja, 72% do total da série em apenas quatro anos).

Figuras 1 e 2 – Logomarcas da participação da Argentina (2010) e do Brasil (2013) como convidados de honra da Feira do Livro de Frankfurt.

A análise das participações da Argentina e do Brasil como países convidados de honra da Feira de Frankfurt, respectivamente em 2010 e 2013, permite notar a importância que a presença nesse evento adquiriu para os mercados editoriais locais. Tal relevância, ao menos nesses dois casos, se expressa objetivamente pela presença na Feira de gestores públicos da alta cúpula, pela quantidade de recursos empregados pelos órgãos responsáveis e pela 15

São elas: o Programa de Apoio à Publicação de Autores Brasileiros na CPLP, para editoras sediadas nos países-membro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa; o Programa de Residência de Tradutores Estrangeiros no Brasil, para profissionais que já estejam trabalhando na tradução de algum autor brasileiro e queiram realizar um período de imersão no país; o Programa de Intercâmbio de Autores Brasileiros, para cobrir despesas de editoras estrangeiras que queiram promover no exterior os autores brasileiros de seu catálogo; o Prêmio Camões de literatura, realizado em parceria com o governo de Portugal; e a revista Machado de Assis (lançada durante a participação brasileira em Frankfurt, em 2013), que publica excertos de obras literárias brasileiras em outros idiomas (especialmente inglês e espanhol), fruto de uma parceria com o Itaú Cultural (coeditor), o Ministério das Relações Exteriores e a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Com exceção desta última iniciativa, todos os programas supracitados são regidos por editais que oferecem algum tipo de ajuda financeira aos selecionados

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ampla cobertura da imprensa especializada em cultura e literatura. Os países também tornaram-se tema de dezenas de eventos paralelos em Frankfurt e em outras cidades alemãs, em programações que se estenderam por meses. Em 2010, com o lema “Argentina, Cultura em Movimento”, o espaço do país central foi desenhado pelo cenógrafo Emilio Balsadúa para render tributo a seus dois grandes nomes literários: no acesso principal, o desenho de um jogo de amarelinha no chão (em homenagem ao clássico Rayuela, de Cortázar) dava acesso a uma espécie de labirinto (referência a Borges), onde o visitante podia passear por painéis-vitrines que traziam fotos de aproximadamente 50 autores (além das personalidades não literárias) dos séculos XIX e XX, com trechos de suas obras, objetos relacionados e, numa pequena tela, filmes baseados em suas obras. Dentro do pavilhão, um espaço especial foi dedicado a escritores e jornalistas desaparecidos na última ditadura militar: aí figuravam suas fotos e nomes, bem como lenços das Madres de Mayo simbolizando a luta pela memória. É preciso ressaltar alguns elementos contextuais que deram contornos específicos à participação argentina. De um lado, ela coincidiu com o bicentenário da Independência, o que trouxe implicações para a formulação de uma identidade nacional no exterior, plasmada por debates e comemorações que já estavam em vigor dentro e fora do país (cf. SORÁ, 2012). De outro lado, a designação, pela UNESCO, do título de Capital Mundial do Livro 2011 a Buenos Aires exigiu certa conciliação de interesses entre o governo federal e o governo da capital, que também queria garantir presença em Frankfurt. O governo da cidade acabou por lançar seu próprio programa de tradução e montou um stand próprio na feira, o que deixa entrever os altos graus de conflitividade entre os dois níveis, comandados por rivais políticos. Para além dessa circunstância, tal disputa refletiu conflitos historicamente pendentes: "a confrontação entre federalismo e centralismo, o interior 'latinoamericano' com a capital 'europeia', a diversidade cultural 'argentina' com a concentração editorial 'portenha'" (BAYARDO; MIHAL, 2012, p. 19).

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Figuras 3 e 4 – Aspectos do espaço da Argentina (Frankfurt, 2010). (Fotos: Atilio Pentimalli)

Já a participação brasileira – cujo lema foi “Brasil: Uma Terra Cheia de Vozes” – se dá num momento de explosão da visibilidade do país no exterior, antecedido por êxitos econômicos e caracterizado pela expectativa dos grandes eventos esportivos (a Copa do Mundo de Futebol de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016). Essa somatória converte o Brasil em objeto crescente de interesse internacional e plasma uma imagem de grande potência que os agentes políticos, culturais e econômicos do país passam a capitalizar de distintas maneiras. O pavilhão brasileiro foi concebido por Daniela Thomas e Felipe Tassara. Em um dos ambientes, painéis traziam fotos de grandes autores da literatura nacional; em outro, os visitantes podiam pedalar bicicletas fixas, gerando imagens sobre a história do país. Em outros locais, era possível sentar-se em redes para 15

ouvir canções de músicos como Chico Buarque e Caetano Veloso; ver reproduções de edifícios de Niemeyer em papel prensado; ver uma instalação que representava paisagens brasileiras em relação a obras literárias onde foram retratadas. Buscouse, sobretudo, erigir representações que fugissem dos estereótipos de samba, carnaval, futebol e verde-amarelo, ainda que referências esparsas estivessem presentes. Ao contrário do que ocorreu no caso argentino, a escolha de figuras extraliterárias não suscitou grandes críticas por parte de intelectuais brasileiros. Contudo, a remissão a Frankfurt 2010 era inevitável 16: uma fonte da CBL declarou, com ironia: “todo o nosso parâmetro foi ver o quanto a Argentina fez e fazer maior”.

Figuras 5 e 6 – Aspectos do espaço do Brasil (Frankfurt, 2013). (Fotos: Marilia Chaves) 16

Isto evidencia a atualidade das análises que mostram como os dois países têm constituído historicamente suas identidades um em contraposição ao outro. Ver, a esse respeito, os aportes de Sorá (2003) e Grimson (2007).

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5. Brasil e Argentina: os autores convidados

5.1. Relações de força e tomadas de posição As identidades literárias forjadas pelos países convidados em Frankfurt são o resultado de relações objetivas que operam em cada um dos espaços editoriais, envolvendo uma gama bastante heterogênea de práticas e representações dos agentes interessados. Além do objetivo mais imediato de explicar os mecanismos de funcionamento de um evento editorial global a partir de dois casos latinoamericanos, a abordagem desse objeto parece-nos relevante à medida que contribui para compreender os nexos entre Estado, cultura e economia na constituição das indústrias culturais latino-americanas. Exige, de todo modo, considerar as políticas culturais – e, mais especificamente, as de projeção da cultura nacional em espaços internacionais – como terreno comum à intervenção do Estado, do setor privado e do setor associativo, ou seja, de instâncias que “envolvem uma pluralidade de autores, com distintas magnitudes e capacidades de decisão, com diferentes formas organizativas e lógicas de funcionamento, e com objetivos e interesses diversos” (BAYARDO; MIHAL, 2012, p. 12). A presença de autores nacionais, convidados especialmente para participar do evento, busca promover a circulação de certa elite intelectual e fortalecer o espraiamento da produção editorial autóctone em outros mercados, aumentando as possibilidades de negociar sua publicação no exterior, derivando daí lucros simbólicos e econômicos para autores, editoras, tradutores e agentes literários. Funciona, portanto, de modo complementar a outras estratégias (programas de fomento à tradução e publicação no exterior, catálogos de divulgação da literatura nacional) de exposição da produção intelectual local aos players do mercado editorial global. Entretanto, essa dimensão é insuficiente para compreender essa circulação de pessoas, porque a seleção de autores pressupõe a formação de um consenso nem sempre possível a partir de operações de inclusão e exclusão, formas de exercício de poder entre os agentes envolvidos nesse processo.

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Um locus privilegiado de análise nesse sentido são as tomadas de posição dos excluídos ou dos que se propõem a falar em nome deles. Foi o caso dos escritores brasileiros Marcelo Mirisola, que criticou a curadoria do evento por não lhe haver incluído na comitiva, e Paulo Coelho, que recusou-se a participar por não concordar com a seleção de escritores, que excluía nomes jovens do tipo de ficção que ele próprio pratica. Mirisola, autor caracterizado por seus escritos irônicos e escatológicos, dirigiu suas críticas particularmente ao curador Manuel da Costa Pinto, a quem acusou de incoerência, ao passo que Coelho, grande best-seller da ficção brasileira atual, fez críticas mais amplas às políticas culturais do governo federal (apud MEIRELES, 2013). No caso argentino, tal como mencionamos anteriormente, destacaram-se as declarações contrárias à decisão unilateral do governo de privilegiar figuras clássicas da argentinidade em detrimento das personalidades capazes de consolidar uma imagem mais moderna da literatura nacional e de gerar dividendos simbólicos e econômicos às editoras e aos autores locais. Ao contrário da participação brasileira, cujas discussões se concentraram em torno da seleção dos autores vivos e se deram no calor dos acontecimentos, na Argentina o principal motor dos debates, ainda na fase de preparação, foi o privilégio de figuras literárias já consagradas e de figuras extraliterárias (o que, na ótica dos detratores, mostrava uma ignorância do Estado nacional com relação aos objetivos da feira). No Brasil, os posicionamentos fundamentalmente disseram respeito aos critérios de constituição de um presente literário que se pudesse mostrar ao mundo, ao passo que no caso argentino o centro da contenda foi a tensão entre um passado (literário ou não) estabelecido e um presente literário em busca de visibilidade. Os discursos de abertura foram expressivos das distintas ordens de preocupações sociais que cada país trasladou a Frankfurt nesse momento especial e das relações entre intelectuais e Estado. Na participação argentina, a dramaturga Griselda Gambaro destacou o papel dos intelectuais perseguidos em seu país durante a última ditadura militar, comparando tal episódio ao regime nazista alemão. Em tom bastante lírico, falou da literatura como capacidade de imaginar

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outros mundos possíveis e exigiu da política o mesmo papel, mencionando de soslaio os governos latino-americanos de esquerda (cf. GAMBARO, 2010). Luiz Ruffato também referiu-se a mazelas do passado nacional (o genocídio indígena e a escravidão africana), mas centrou-se em problemas atuais: desigualdade social, privação de direitos, violência estatal, machismo, homofobia, analfabetismo funcional (cf. RUFFATO, 2013). Ainda que tenha mencionado o papel libertador da literatura e destacado alguns êxitos, como o retorno à democracia e as conquistas sociais dos últimos governos, o tom de manifesto crítico incomodou autoridades presentes. Se, por um lado, Gambaro fez eco às ênfases que o Estado nacional argentino quis dar ao evento, o discurso de Ruffato representou um pequeno ato de rebeldia contra as representações politicamente depuradas do stand brasileiro.

5.2. Esboços de uma prosopografia A análise do conjunto de autores selecionados por cada país para representá-lo na “vitrine global” de Frankfurt não apenas dá acesso aos contornos de uma identidade cultural/literária forjada por frações de suas elites intelectuais sob auspícios do Estado, como também permite dar inteligibilidade sociológica às disputas vigentes antes e durante a ocupação desse espaço privilegiado. Isso significa que tal análise deve considerar três conjuntos de condicionamentos: primeiro, as características estruturais dos respectivos espaços intelectuais, que por sua vez refratam as relações de força vigentes em cada uma das sociedades nacionais; segundo, os aspectos conjunturais do momento em que cada país planejou sua presença no evento; terceiro, os critérios de seleção da curadoria, lidos à luz das pressões individuais, coletivas e institucionais que lhe deram forma. Tendo em vista esses aspectos e sem pretender esgotar as possibilidades de análise, consideramos alguns dados morfológicos dos conjuntos de autores convidados para compor as comitivas da Argentina e do Brasil – 56 e 70 autores, respectivamente. Com relação à representatividade dos gêneros, o número de homens é maior que o de mulheres nas duas delegações, mas o conjunto argentino tem um

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índice (55%) bem mais igualitário que o conjunto brasileiro (67%). Essa é uma diferença que certamente extrapola os limites da Feira de Frankfurt: ainda que em proporções diferentes (e nem sempre satisfatórias), o país austral tem apresentado melhor equidade de gênero e maior participação feminina em espaços de poder17. Quanto às faixas geracionais, os dois países apresentam conjuntos semelhantes: as médias de idade aproximada no ano de participação (2010 no caso argentino, 2013 no caso brasileiro) foram de 59,0 e 59,4, respectivamente. Nos dois casos, a proporção de autores nascidos até 1960 representou cerca de 65% do conjunto (sendo que ¼ dos argentinos e ⅕ dos brasileiros nasceram até 1940). Essa composição, à luz de outros dados, mostra que os dois países optaram por levar a Frankfurt um plantel de intelectuais e escritores com trajetórias mais longas, maior número de livros publicados e posições mais consolidadas no campo, em detrimento dos “recém-chegados”. Em contrapartida, a amostra brasileira possui maior proporção de jovens (nascidos na década de 1970): 12,8% (9 autores), contra apenas 5,3% (3 autores) no caso argentino. A projeção internacional parece ter sido levada em consideração na inclusão dos únicos três autores do conjunto argentino nascidos na década de 1970. Destaca-se, aqui, a figura de Samanta Schweblin (1978-), mais jovem da delegação de seu país, cujas obras já foram traduzidas a 13 idiomas e publicadas em 22 países. Seu segundo livro, Pájaros en la boca, obteve o prêmio Casa de las Américas, considerado um dos mais importantes da literatura de língua espanhola. Tendo obtido bolsas de várias instituições, viveu temporariamente no México, na Itália e na Alemanha, onde reside atualmente. Também Ariel Magnus (1975-) tem fortes vínculos com o país da Feira, não apenas por ser descendente de alemães, mas também porque ali viveu entre 1999 e 2005 e estudou com subsídio da fundação Friedrich Ebert Stiftung. Por fim, Félix Bruzzone (1976-), além de já ter livros traduzidos ao francês e ao alemão, é filho de desaparecidos da última ditadura militar, fato que o torna altamente adequado a uma programação cultural

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Podem-se mencionar, como exemplos dessa diferença, a quantidade de mulheres nas respectivas academias de letras e nos congressos nacionais.

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com bastante ênfase nos temas da memória e dos direitos humanos, em consonância com uma agenda social e política vigente no país desde o início da gestão de Néstor Kirchner. No caso do Brasil, os três mais jovens autores também possuem graus consideráveis de projeção internacional. O escritor Daniel Galera (1979-), que atua também como tradutor de literatura inglesa e norte-americana, integrou em 2012 a seleção de jovens autores brasileiros da revista britânica Granta. Antes da participação em Frankfurt, já tinha obras publicadas na Itália, Portugal, Argentina e França, além de figurar em antologias internacionais. Já os irmãos gêmeos Gabriel Bá e Fábio Moon (1976-), quadrinistas que assinam diversas parcerias, inclusive com autores de outros países, têm obras publicadas nos Estados Unidos, na Itália e na Espanha. Foram os primeiros brasileiros a ganhar um prêmio no Eisner Awards, principal honraria do universo das HQs em nível internacional18. Já a análise dos locais de nascimento dos autores mostra diferenças importantes: na delegação argentina, estão representadas 9 de suas 24 unidades federativas (37,5%); na comitiva brasileira, há autores nascidos em 14 das 27 unidades (51,8%). Na amostra argentina, os portenhos representam 62,5% (35) e, somados aos nascidos na província de Buenos Aires, totalizam 78,5% (44) do conjunto. Entre os autores brasileiros, 21% (15) são paulistanos e 17% (12) são cariocas. A totalidade de naturais dos estados de SP, RJ, MG e RS – 53 autores (75,7%) – é, então, proporcionalmente menor que a soma de portenhos e bonaerenses. Tais diferenças são expressivas do contraste entre os dois campos intelectuais no que se refere à sua configuração espacial. A Argentina, país demograficamente concentrado em Buenos Aires e em seu conurbano, tem na capital federal o epicentro absoluto de sua atividade intelectual, literária e editorial. De outro lado, o Brasil, onde a concentração demográfica não é tão forte, tem a hegemonia de seu campo cultural disputada por São Paulo e Rio de Janeiro, Os outros autores brasileiros do conjunto nascidos nos anos 1970 – Andrea del Fuego (1975), Carola Saavedra (-1973), Fernando Vilela (-1973), Férrez (-1975), Michel Laub (-1973), Veronica Stigger (-1973) – também possuíam, no momento da feira, algum grau de internacionalização: obras publicadas no exterior; participação em antologias publicadas fora do Brasil; períodos de vivência e estudos em outros países; prêmios internacionais no âmbito da literatura ou das artes. 18

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capitais que dividem espaço ainda com cenas locais, como as de Belo Horizonte e Porto Alegre, relativamente mais importantes que Córdoba e Rosario, por exemplo. Apesar dessa diferença, é importante notar que tanto Buenos Aires como o eixo Rio de Janeiro-São Paulo tendem a funcionar como polos de atração de intelectuais, escritores e artistas provenientes de outras capitais e do interior. Isso ocorre não só porque tais capitais concentram as instâncias de difusão e consagração do campo cultural, mas porque representam oportunidades de inserção laboral em atividades conexas (ensino e pesquisa nas universidades; empregos nos setores editorial, jornalístico, publicitário, televisivo, cinematográfico, teatral etc.). Não casualmente, dentre os brasileiros e argentinos convocados para a presença em Frankfurt, nota-se que uma quantidade considerável dos que nasceram no interior transladam-se a essas capitais, onde desenvolvem boa parte de suas trajetórias intelectuais e literárias. A questão da diversidade regional dos autores convidados esteve presente nos dois casos. No planejamento da participação argentina, a embaixadora Magdalena Faillace havia declarado tais intenções: “Em 2010, mostraremos um país federal e todas as paisagens culturais estarão representadas” (apud REINOSO, 2008). Contudo, para Bayardo e Mihal, a “perspectiva da diversidade cultural esteve praticamente ausente dos debates sobre a participação argentina na feira, que se apresentava como um marco propício para colocar um tópico relevante para o mercado editorial do país na agenda pública” (2012, p. 26). Já durante a participação brasileira, o escritor cearense Ronaldo Correia de Brito gabou-se, não sem ironia, de ser o único nordestino que mora no Nordeste dentre os brasileiros presentes (cf. BRITO, 2013). Ao tema da diversidade regional somouse o da diversidade étnica, já que a comitiva de autores brasileiros, à exceção de Paulo Lins e Daniel Munduruku, era fundamentalmente branca (ver, por exemplo, RODRIGUES et al., 2013; O GLOBO, 2013). Por fim, é preciso notar, nas comitivas brasileira e argentina, o considerável número de autores que se estabeleceram de forma passageira ou definitiva no exterior e aí traçaram trajetórias que pudessem ser reconvertidas em capitais

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reputacionais e sociais tanto em seu país de origem como em outros meridianos. É o caso da escritora Adriana Lisboa, do neurocientista Miguel Nicolelis e da antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, brasileiros que residem nos Estados Unidos, país onde vive também a poeta e crítica argentina María Negroni; o poeta brasileiro Age de Carvalho, radicado em Viena; e a escritora franco-argentina Laura Alcoba, que mora em Paris. Muitos outros passaram por universidades estrangeiras, onde completaram seus estudos ou trabalharam como professores visitantes; atuaram como diplomatas (caso do poeta brasileiro João Almino); participaram de residências artísticas e literárias ou de estágios de pesquisa na Europa ou nos Estados Unidos. Também forjaram inserções internacionais não necessariamente atreladas ao deslocamento físico: traduzem e são traduzidos; estabelecem redes e parcerias, algumas de coautoria, com autores estrangeiros. A análise comparada dos gêneros de ficção e não ficção que os autores das duas delegações representam dá uma ideia das ênfases que assumiu cada uma das participações. Neste momento da pesquisa, tal cálculo baseou-se na atribuição de um gênero principal a cada indivíduo do universo amostral, descartando-se por ora os gêneros secundários da produção de cada um. Tal rotulação, por sua vez, baseou-se na quantidade de obras escritas em cada gênero, bem como nas categorias usadas pela crítica e pelos próprios autores para referir-se a si próprios. O conjunto de autores dedicados principal ou exclusivamente aos gêneros literários clássicos (romance, contos, poesia e teatro) constitui maiorias expressivas nos dois casos: são 33 (58,9%) no caso argentino e 38 (54,3%) no caso brasileiro. Desse conjunto, os maiores contingentes são compostos pelos romancistas (32% e 30%), e os menores pelos dramaturgos (3,5% e 1,5%); poetas (14% e 10%) e contistas (8,9% e 12,8%) ocupam posições intermediárias. A preponderância dos romancistas, contistas e poetas no conjunto dos autores convidados é significativa da centralidade da literatura nas políticas de internacionalização do livro levadas a cabo pelos dois países, ênfase que se mostra ainda mais dominante no conjunto de obras

escolhidas

pelos

respectivos

programas

de

fomento

à

tradução,

mencionados anteriormente. Esses números também expressam uma tendência

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geral da circulação internacional de ideias: países como Brasil e Argentina conseguem fazer circular principalmente sua literatura e têm mais dificuldade para difundir sua produção humanística e científica, campos hegemonizados pelos países centrais. Isso fica mais claro à luz dos dados dos mercados editoriais locais: a rubrica “literatura” corresponde a 26,4% dos títulos publicados na Argentina em 2013 (CAL, s.d.) e a 8,05% dos títulos publicados no Brasil em 2010 (CBL; SNEL; FIPE, 2011)19; não obstante, constitui a grande maioria dos livros que tais países logram difundir em outros idiomas. Na sequência, os gêneros de não ficção (ensaio/humanidades, crítica literária, biografia/memória e ciências) representam 28,5% (16) e 24,3% (17) das comitivas da Argentina e do Brasil, respectivamente. Nesse universo, a diferença mais expressiva entre os dois países fica por conta da ênfase bem mais pronunciada da participação argentina na linha de biografias e memórias: 5 personalidades (8,9%), contra 2 (2,8%) no caso brasileiro. Este é, na verdade, um indicador da preocupação candente da Argentina com o tema da recuperação do passado da ditadura militar e da luta pelos direitos humanos. Isso é o que justifica, por exemplo, a presença na Feira de figuras relativamente alheias ao mercado editorial, como Estela de Carlotto (presidenta da associação Abuelas de Plaza de Mayo) e Elsa Oesterheld (viúva de Hector Germán Oesterheld20), bem como de escritores como Analía Argento (autora de De vuelta a casa: historias de hijos y nietos restituidos) e Ulises Gorini (que escreveu, entre outros livros do tipo, uma história das Madres de Plaza de Mayo em dois tomos). Mas tal ênfase extrapola a rubrica da memória na comitiva argentina: também nas obras ficcionais de Leopoldo Brizuela e Elsa Osorio e nos ensaios de Eduardo Jozami estão figurativizadas as questões relativas à ditadura militar e ao retorno à democracia. Também destacam-se, no conjunto de intelectuais convidados para participar da 19

Os relatórios de produção editorial produzidos pela CBL e pelo SNEL para os anos posteriores não continham caracterização por gênero. 20 Hector Germán Oesterheld se notabilizou pela HQ El Eternauta. Tendo se envolvido com a militância montonera, foi sequestrado em 1977 pelas Forças Armadas, tornando-se um dos milhares de desaparecidos da última ditadura militar argentina, assim como suas quatro filhas, além de genros e netos.

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Feira, figuras como Ricardo Forster, Horácio González e Osvaldo Bayer, bastante próximos do ideário sustentado pelo governo nacional-popular de Cristina Fernández de Kirchner. No caso brasileiro, ainda que alguns dos intelectuais convidados a Frankfurt estejam identificados com o governo do PT – caso da psicanalista e ensaísta Maria Rita Kehl –, o conjunto parece não apresentar forte ênfase nas pautas defendidas e estimuladas nesse âmbito. Por fim, as categorias histórias em quadrinhos e literatura infantojuvenil encontram bem mais espaço na delegação brasileira: os praticantes da LIJ e da HQ representam, respectivamente, 12,8% (9) e 8,5% (6) do universo de brasileiros, ao passo que na delegação argentina esses percentuais são de 8,9% (5) e 3,5% (2). Considerando que a participação do setor de LIJ na produção editorial dos dois países é equivalente – cerca de 15% dos títulos publicados por ano –, tal diferença talvez possa ser remetida (1) à ênfase da participação argentina em temas “adultos”, como a questão da memória da ditadura e (2) a uma estratégia do Brasil que tenha levado em consideração a participação como país convidado na Feira do Livro Infantil de Bolonha em 2014, quando o país usou a mesma logomarca e o mesmo lema da presença em Frankfurt – “Brasil: a land full of voices”.

6. Conclusões Referindo-se à crescente hegemonia da língua inglesa na circulação transnacional de livros, Gustavo Sorá nota que “[t]odos os outros domínios linguísticos com certa mobilidade no mercado internacional se movem com um alto grau de intervenção de políticas estatais de cultura. Essa tendência cresce proporcionalmente à ‘globalização’ da economia” (2003, p. 222). Isso parece explicar não só a importância que os editores dos países periféricos vão cada vez mais atribuindo à ida a Frankfurt, mas também o emprego de recursos que garantam essa presença, de origem tanto pública (dos governos e de seus órgãos de cultura) como privada (dos próprios editores) e também associativa (das câmaras do livro). Esse é, portanto, o pano de fundo institucional sobre o qual essa feira alemã consolida-se, nas últimas décadas, como um espaço-tempo onde, segundo o mesmo autor, “se

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montam os requisitos ‘aduaneiros’ de efeitos decisivos na configuração dos mercados culturais e espaços de produção intelectual dos países da América Latina” (SORÁ, 2002, p. 127). É, também, o solo no qual se assentam programas de tradução e outros similares, que buscam mitigar a estrutura altamente desigual e hierárquica de nações, línguas e literaturas da qual Frankfurt exerce a função tanto de símbolo como de ritual onde tal estrutura é reafirmada, contestada e disputada. A presença dos países convidados na Feira de Frankfurt é um objeto que deixa entrever a clássica oposição bourdieusiana entre mercado e cultura, base das oposições que regem o campo da produção simbólica. De modo mais específico, é possível encontrar aí duas "lógicas" opostas, mutuamente constitutivas, e duas "estratégias" a elas correspondentes, que disputam protagonismo na conformação geral dessa participação e na escolha dos autores convidados. De um lado, está a lógica econômica, que opera pela maximização dos retornos financeiros. Na disputa pela “vitrine” de Frankfurt, tal lógica encarna-se nos agentes e nas tomadas de posição que tendem a privilegiar autores e obras com maior possibilidade de espraiamento massivo a outras línguas e países. É nessa chave que se pode entender o convite a autores de altas tiragens como Paulo Coelho e Silvia Plager, cuja difusão não depende de subsídios estatais. Ainda que tenha sua legitimidade fortemente questionada pela crítica literária, a eleição de Coelho pelo conselho curador da mostra Brasil 2013 certamente fundamenta-se na projeção internacional de suas obras. Em contrapartida, a recusa de Coelho em participar do evento, ainda que tenha como pretexto um posicionamento crítico em favor de autores não contemplados (o que lhe dá certo ar de desinteresse), mostra mais que tudo um considerável grau de desprezo pelas supostas benesses econômicas e simbólicas que sua presença lhe poderia render. De outro lado, a lógica simbólica pressiona as decisões dos agentes envolvidos na direção dos critérios tradicionais de avaliação das obras. Ainda que o conjunto de convidados à feira seja de autores vivos e atuantes, sua eleição pressupõe expectativas, nem sempre anunciadas, de passar a fazer parte futuramente dos cânones nacionais. A Feira de Frankfurt, ainda que se configure

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sobretudo como evento comercial, é uma instância privilegiada de ingresso na “República Mundial das Letras” (CASANOVA, 2002): a presença como “autor eleito” em Frankfurt significa para os escritores mais chances de ser traduzido a outras línguas, e particularmente às línguas centrais. Essa conquista, além de significar ganhos econômicos, pode ser posteriormente capitalizada no pleito a posições de prestígio no campo literário local. Esse esquema dual, contudo, não esgota a análise, pois não dá conta de uma terceira lógica que atravessa as duas anteriores e a que poderíamos chamar de "política". Esta se relaciona às disputas em torno do "nacional" e dos elementos que devem constituí-lo neste momento em que o país se mostra ao mundo. Daí provêm os distintos investimentos que caracterizaram ambas as presenças analisadas: as pressões por contemplar a diversidade regional do país; disputas por representações calcadas no presente ou no passado, na literatura ou fora dela. Tais pressões, reguladas em cada caso por distintos graus de interdependência e de oposição entre intelectuais e o Estado, têm como efeito, para além de traduzir as respectivas literaturas nacionais no exterior, “traduzir” também certas questões locais em um espaço de alcance global. De toda maneira, a consideração dessa lógica política e de suas relações com lógicas concorrentes parece-nos particularmente relevante para o estudo da produção simbólica de países como Brasil e Argentina, onde o Estado possui grande protagonismo como regulador e como financiador das práticas simbólicas. Ainda que tenha que disputar com outros agentes a imposição de uma representação legítima do “nacional”, seu papel articulador da presença em Frankfurt e o aporte financeiro que dá à empreitada lhe põem em posição privilegiada na definição de suas formas e conteúdos.

7. Considerações finais O estudo comparado das duas participações ilumina algumas especificidades da formação dos espaços editoriais brasileiro e argentino em duas escalas que são interdependentes: de um lado, as disputas em torno da construção da identidade

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nacional e da ocupação de posições de prestígio no campo cultural; de outro lado, um espaço internacional de disputas, produzido pelos fluxos desiguais de edição e tradução entre diferentes países e línguas. Ainda que não seja nosso objetivo explorar os condicionantes gerais dos dois espaços editoriais nacionais, tal discussão traz dois panos de fundo: a constituição histórica do setor editorial-livreiro nos dois países, moldada por distintos fatores de ordem política, econômica, cultural e educacional; e a posição relativa de Brasil e Argentina nos respectivos mercados linguísticos (português e espanhol) e destes mercados no sistema internacional. Implica, portanto, considerar as semelhanças e diferenças na capacidade de cada país de constituir públicos letrados e leitores, bem como de responder às demandas de públicos constituídos para além de suas fronteiras; o desenvolvimento de mercados com maior ou menor dependência do Estado, seja como regulador, seja como cliente ou patrocinador da atividade editorial; e o modo como os dois países lograram formar atores coletivos capazes de marcar presença nos assuntos de interesse setorial (instituições públicas e privadas, grupos de pressão etc.). Considerando-se esses fatores para o estudo contrastado de ambos os espaços editoriais, as presenças arquitetadas pelos dois países em Frankfurt nos parecem objetos frutíferos, pontos de partida e de chegada para a compreensão de tais injunções históricas, apreendidas em suas semelhanças e diferenças.

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