Regionalismo como uma Nova Perspectiva para o Federalismo Brasileiro

June 1, 2017 | Autor: Talden Farias | Categoria: Direito Ambiental, Federalismo, Direito Urbanístico
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Regionalismo como uma Nova Perspectiva para o Federalismo Brasileiro: o Leading Case Relativo à Região Metropolitana do Rio de Janeiro ARÍCIA FERNANDES CORREIA Doutora em Direito Público; Mestre em Direito da Cidade pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Advogada; Procuradora do Município do Rio de Janeiro; Professora da Graduação e da Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

TALDEN FARIAS Doutorando em Direito da Cidade pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Doutor em Recursos Naturais pela Universidade Federal de Campina Grande; Advogado; Professor da Universidade Federal da Paraíba.

RESUMO: A decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da inconstitucionalidade de preceitos das leis estaduais que criaram a Região Metropolitana do Rio de Janeiro e disciplinaram alguns serviços públicos de interesse metropolitano – e que provocaram inicialmente uma pretensa rixa entre autonomia municipal e competência estadual – suscita a necessidade da governança compartilhada, entre Estados e Municípios dela integrantes, das funções públicas de interesse comum, contribuindo, assim como o fizeram, nas duas últimas décadas, os marcos regulatórios das grandes questões regionais, para um repensar o pacto federativo brasileiro, não mais por uma perspectiva de conflito de competências, mas de consenso federativo, primando-se, assim, pela gestão compartilhada dos problemas que assim também o são. PALAVRAS-CHAVE: Regionalismo. Federação. Cidades. Região Metropolitana.

SUMÁRIO: 1 Mapeando e Indexando o Tema. 2 As Coordenadas do Mapeador – Federalismo e Regionalismo: Tendências. 3 Tipo de Solo – Mas o que é Metropolitano? 4 Clima – Regiões Metropolitanas no Brasil e no Ordenamento Jurídico Brasileiro; 4.1 Regiões Metropolitanas e Constituição de 1937; 4.2 Regiões Metropolitanas e Constituição de 1988: a Vitória da Democracia e do Municipalismo; 4.2.1 A Titularidade e a Definição do Interesse Metropolitano; 4.2.2 O Conceito Jurídico-Constitucional de Regiões Metropolitanas; 4.2.3 A Natureza Jurídica da Região Metropolitana: o Modelo de Governança Metropolitana; 4.2.4 Organização, Planejamento e Execução de Funções Públicas de

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Interesse Comum; 4.2.5 Standards; 4.2.6 O Projeto de Emenda à Constituição e de Lei Ordinária: Estatuto da Metrópole. 5 Uma Topografia “Acidentada” – Região Metropolitana do Rio de Janeiro; 5.1 Escorço Histórico; 5.2 (Re) Instituição da Região Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro; 5.3 Duelo Federativo entre ERJ e MRJ: a ADIn 1.842/RJ. 5.4 Os Consensos Federativos Possíveis, a Despeito da Indefinição Quanto à Titularidade dos Serviços Públicos Legalmente Definidos como Metropolitanos, entre os quais, o de Saneamento Básico. 6 Movimento das Placas Tectônicas – Novo Regionalismo e Leading Case do Supremo Tribunal Federal; 6.1 Evolução dos Votos: Pró-Estado, PróMunicípio(s) e Pró-Gestão Compartilhada; 6.2 A Sintonia com a Melhor Doutrina; 6.3 O Desafio da “Solidariedade Metropolitana”. Bibliografia.

1 Mapeando e Indexando o Tema Assim avançou a humanidade na apropriação de seus espaços: nos primórdios, circunscrita à tribo e seus métodos singelos de sobrevivência; num sistema mais avançado de especialização das funções, entre as quais as estatais e de divisão do trabalho, a Cidade-Estado; cercada por muros de proteção, mas, por dentro, sem planejamento, a comuna medieval1; com a industrialização e a migração do campo para a cidade, a urbe; em função da conurbação das cidades, a metrópole e destas, a megalópole; quiçá, um dia, a ecumenópolis2, que talvez há tenha se tornado a “aldeia global”, na qual o progresso tecnológico reduziria todo o planeta à mesma situação que ocorre em uma aldeia, toda ela interligada. A globalização encurtou distâncias e distribuiu tecnologia e, também, riquezas em escala global, mas não diminuiu os flagelos urbanos, tampouco arrefeceram, se não acirraram, o fenômeno da segregação espacial, de há muitos anos qualificada pela gentrificação, e da exclusão urbana; a regionalização passou a encará-los sob uma perspectiva territorial, social e econômica mais dilargada: a cidade-polo virou metrópole e suas vizinhas, cidades-satélite; o policentrismo metropolitano se espalhou pela Europa, ao ponto de se falar em metápole ou cidade-região – o metropolitano superou (e absorveu) o urbano3. Segundo estudos da Organização das Nações Unidas, em 2050, 89% da população da América Latina viverá em cidades4; destas, a maior parte estará 1

Rolnik traça uma evolução do que seja cidade, desde as primeiras que surgiram, há cinco mil anos, nos vales da Mesopotâmia até hoje (ROLNIK, Raquel. O que é cidade? São Paulo: Brasiliense, 1995).

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Doxiadis, o mesmo arquiteto e urbanista que elaborou o Plano Doxiadis para a Cidade do Rio de Janeiro, em inglês, e que veio a ser engavetado nos escaninhos da burocracia, forjou, em 1975, um conceito sobre a cidade do futuro ou ecumenópolis: as cidades transformar-se-iam em megalópoles até alcançarem a urbanização dos continentes e finalmente a cidade de Anthropos (o Homem): Ecumenópolis (DOXIADIS, Constantinos Apostolou. Anthropopolis: city for human development. New York: Norton & Company, 1975).

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No Informe Mundial de Assentamentos Humanos de 2013, elaborado pela UNI-Habitat, apontam-se, como tendências do regionalismo, novas conturbações de megalópoles sob três modalidades diversas: as megarregiões, os corredores urbanos e as cidades-região (Informe Mundial sobre Asentamientos 2013. Disponível em: . Acesso em: 7 nov. 2013).

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Estado de las Ciudades de America Latina y el Caribe 2012. Disponível em: . Acesso em: 7 nov. 2013.

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concentrada em regiões metropolitanas, dividindo problemas em escala regional para cidades que, muitas das vezes, mal dispõem de ferramentas locais e recursos mínimos de sobrevivência, reféns que são dos repasses de recursos federais. A nova configuração territorial das grandes cidades – e de muitas daquelas que dela dependem para garantir o melhor exercício do direito à cidade pelos cidadãos – impõe uma visão talvez menos globalizada ou tribal da cidade: uma perspectiva de escala regional, uma modificação do mapa, no qual se indexam as questões urbanísticas de sempre: circulação, habitação, trabalho e lazer5, mas também as que sofreram a influência da necessidade de sustentabilidade não só ambiental, mas, também, social: meio ambiente ecologicamente equilibrado (tratamento adequado dos resíduos sólidos, energias renováveis, agenda verde), mas, também, qualidade de vida (saúde e educação). Não é à toa que já se proclama a existência de um Estado Democrático de Direito Social e Ambiental6: é a “pegada ecológica” sobre o território da urbe que, em crescendo, se tornou ente regional, numa mistura entre as agendas verde e marrom7. Bobbio já demonstrara, como tantos, a relação umbilical entre Direito e Poder; entre a legitimação do poder pelo direito e a legitimidade da norma pela autoridade de que ela se reveste8. A questão regional, uma vez juridicizada, precisa se legitimar pelas estruturas do poder: no lugar do maniqueísmo, governo central versus governo local, normas gerais versus matéria de interesse local, surge um tertium genus: o interesse metropolitano, que transcende à mera soma dos interesses locais. A federação “compartimentalizada” em escaninhos do poder – no caso brasileiro, federal, estadual e municipal – precisa ser repensada em termos de funções públicas de interesse comum: nem estaduais, tampouco somente municipais, mas compartilhadas; em matéria de solidariedade federativa: a integração dos satélites ao astro-rei (a capital); em questões não só de governabilidade, mas também de governança. É o tema de que se ocupa este ensaio: o resgate fluminense da questão metropolitana que vem à tona com a recente decisão do Supremo Tribunal Federal acerca das leis de instituição 5

Considerada um dos documentos embrionários do Urbanismo, a Carta de Atenas listava como funções da Cidade apenas quatro: habitação, trabalho, circulação e lazer. Hoje, por meio do Índice de Bem-Estar Urbano (IBEU), concebido pelo INCT, Observatório das Metrópoles, é possível analisar novos indicadores urbanos, tais quais de mobilidade, condições ambientais, condições habitacionais, prestação de serviços coletivos e infraestrutura em grandes aglomerados urbanos, como no caso das metrópoles brasileiras (RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; RIBEIRO, Marcelo Gomes. IBEU: Índice de Bem-Estar Urbano. 1. ed. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2013).

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CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional ambiental português e da União Europeia. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MORATO LEITE, José Rubens (Org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007.

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A respeito do entrelaçamento entre as agendas verde e marrom, confira-se o magistério de Edésio Fernandes: FERNANDES, Edésio. A construção do direito urbanístico brasileiro: 10 anos de Estatuto da Cidade, avanços e limites. In: RIOS, Mariza; CARVALHO, Newton Teixeira (Org.). Direito à cidade: moradia e equilíbrio ambiental. Belo Horizonte: Del Rey, 2012.

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BOBBIO, Norberto. Direito e poder. São Paulo: UNESP, 2008.

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da Região Metropolitana do Rio de Janeiro – e de todos os consectários que ela gera para o tema do regionalismo no contexto federativo brasileiro. A fim de traçar o mapa do regionalismo no Brasil e, em especial, com o objetivo de compreender o contributo da decisão que julgou a (in)constitucionalidade das leis de instituição da Região Metropolitana do Rio de Janeiro para uma nova perspectiva do federalismo brasileiro, mister conhecer: i) as coordenadas do mapeador: o pacto federativo que viabiliza o entrelaçar de competências entre os entes federativos (geralmente de forma maniqueísta – federal ou estadual; estadual ou municipal; federal ou municipal – e não compartilhada, salvo nas matérias de competência comum e concorrente), as teorias que embasam o estudo do regionalismo como modelo de governança regional – e mesmo de nova perspectiva do Federalismo – e as ferramentas com que elas podem municiar o estudo da matéria à luz do federalismo de integração; ii) o tipo de solo em que se pisa: de que região se está tratando, senão a metropolitana e o que ela contém: sua textura (natureza jurídica), sua (im)permeabilidade (as redes que conurbam as cidades grandes e as transformam em metrópoles cercadas ou ladeadas por cidades “menores” e sob que perspectivas o fazem: jurídica, econômica, social, ambiental), sua localização (físico-geográfica – a delimitação física dos lindes metropolitanos – e existencial: o ser metropolitano, a sensação de pertença à metrópole); iii) o “clima” das Regiões Metropolitanas no ordenamento jurídico brasileiro, desde que foram definidas pela primeira Constituição que delas tratou e criadas por lei federal e, principalmente, após a Constituição de 1988: da paralisia no texto fundamental à dinâmica que se aguarda da decisão pro futuro do Supremo Tribunal Federal no âmbito da Região Metropolitana do Rio de Janeiro; iv) a topografia acidentada em que se situa juridicamente a Região Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro, desde a sua criação (por lei) até suas recriações (por leis supervenientes e por decisão judicial), com cogitações históricas acerca de seus acidentes de percurso em comparação às demais Regiões Metropolitanas da Região Sudeste (São Paulo e Minas Gerais); e, finalmente, v) o movimento das placas tectônicas que o julgamento do Supremo Tribunal Federal, se espera, promova: não para provocar, mas afastar o risco de catástrofes metropolitanas que já se anunciam há tempos na Região Metropolitana do Rio de Janeiro; não para infirmar, mas ressaltar a autonomia e as competências dos Municípios que a compõem; não para acirrar os conflitos federativos, senão para neutralizá-los pela via democrático-discursiva do consenso.

2 As Coordenadas do Mapeador – Federalismo e Regionalismo: Tendências Quando the other father founders contrapunham seus argumentos aos dos federalistas – antes do nascimento formal do Federalismo –, pretendiam evitar

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que a suposta centralização do poder enfraquecesse a ex-colônia frente à Inglaterra ou que uma elite comprometida com interesses próprios se arrogasse poderes inerentes a um governo central e antidemocrático9. Os federalistas, ao contrário, viam na parcial abdicação do poder plural em prol de um órgão central a forma única de se manterem os Estados territorialmente íntegros e politicamente fortes o bastante para, representados pelo poder central, poderem enfrentar a ex-metrópole e o desafio de evitar a secessão10. O federalismo nasceu, pois, desse binômio que, a despeito das variações sofridas ao longo do tempo, de 1787 para cá, continua sendo sua essência: o binômio unidade/diversidade – um governo único, central, que represente a primeira e os governos parciais, cujas diversidades e autonomias sejam preservadas. Numa Constituição que também acolhia o princípio da separação dos poderes como forma de contenção do arbítrio, mediante divisão horizontal de competências (executivas, legislativas e jurisdicionais), o princípio federativo permitia nova divisão, dessa feita, vertical, da autoridade a favor da liberdade. Inicialmente dual, com divisões bem claras entre os poderes expressos da União e os remanescentes, dos Estados-membros, o Federalismo viria a se tornar, entre os vários matizes que recebeu ao longo do tempo11, cooperativo, de forma a se mesclarem diversos tipos de competências – exclusivas, privativas, comuns, concorrentes, suplementares, supletivas – e de integração, de forma a garantir o equilíbrio federativo; uma atuação dos entes federativos menos compartimentalizada e mais compartilhada. Em termos esquemáticos, o Estado Federal, porquanto composto, no mínimo, por duas órbitas governamentais (a central-total e as regionaisparciais) se opunha ao Estado Unitário. O Regionalismo é uma nova tendência existente na relação entre espaço e poder de se rearranjar em razão de questões regionais, sem se arrogar a qualidade de ente federativo, porquanto desprovido de autonomia política e financeira, a não ser administrativa, podendo se manifestar sob diversas modalidades: i) como um medium entre o Estado Unitário e o Federal, ii) como um bloco de Estados que compartilham interesses econômicos e sociais comuns (as macrorregiões) e que se institucionalizam e se imbricam mutuamente ou iii) como um entrelaçar de interesses territoriais sob um novo caráter, dito 9

CORNELL, Saul. The Others Founders: anti-federalism and the dissenting tradition in America, 1788-1828. Virginia: The University of North Carolina Press, 1999.

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MADISON, James; HAMILTON, Alexander; JAY, John. Os artigos federalistas, 1787-1788. Trad. de Maria Luzia Borges. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

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A respeito das novas perspectivas do Federalismo, confira-se: FILIPPOV, Mikhail et alii. Designing Federalism. New York: Cambridge, 2004.

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regional, de forma interestadual ou supralocal (as microrregiões em sentido lato), sem a conotação de um novo ente federativo, senão de uma nova instância administrativa compartilhada entre entes diversos. É nesta categoria que se encontram as regiões metropolitanas. É como se o Regionalismo apresentasse novas perspectivas ao próprio conceito de Federalismo12, para além de suas características clássicas de repartição de competências, participação da vontade regional (e não regionalista) na nacional e autonomia política, administrativa e financeira dos entes federativos. Ele pode gerar, na primeira modalidade descrita, um Estado Unitário descentralizado regionalmente; na segunda, uma união de Estados soberanos que não apenas se somam, como nas Confederações, mas que se entrelaçam em interesses econômicos, normas jurídicas e instâncias decisórias comuns, como no caso exemplar da União Europeia; e, na terceira, uma Região Metropolitana, formada por entidades “subnacionais” ou intraestaduais, que se qualificam territorialmente, em função da conurbação de cidades, por interesses que superam o urbano e encontram o metropolitano, de ordem econômica, social ou cultural comuns. Essa é a modalidade de regionalismo de que ora se ocupa este ensaio: o “regionalismo metropolitano”, por assim dizer. Garson estudou os vários modelos europeus de governança metropolitana das últimas décadas e os dividiu em três escolas: i) a Escola da Reforma (das décadas de 1960 e 1970), na qual o Estado estimulava as capacidades territoriais de escala de ação política metropolitana, inclusive garantindo eleições diretas e competências significativas para as instituições metropolitanas, as quais, bem por força dessa forte e concentrada legitimação política, acabaram sendo atacadas por governos centrais e locais; ii) a Escola da Escolha Pública (Public Choice), da década de 1980, caracterizada por: a) uma fragmentação institucional virtuosa, na medida em que a qualificação territorial se dava em função de escolhas próprias dos entes interessados e contingentes, de forma a não se obter a cooperação por imposição, senão pela vontade livre dos entes (public choice), daí sua matriz liberal; b) Municípios com mais autonomia e competências quase absolutas em matéria de gestão territorial; e c) nomeação de autoridades metropolitanas só para gestão conjunta, através da decisão colegial e voluntária dos próprios Municípios, que teve (a Escola) como principais defeitos: a’) um investimento público excessivo e disperso, porquanto não integrado e b’) a “guetização” dos problemas sociais ou as fortes externalidades negativas; e iii) a Escola do Novo Regionalismo (New Regionalism School), da década de 1990, que procurou integrar a virtude dos modelos de 12

A respeito do tema do regionalismo e de seu aparente antagonismo ao localismo, confira-se: BRIFFAULT, Richard. Localism and Regionlism. Columbia Law School: Paper nº 1, 1999. Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2013.

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reforma institucional (centralista) com as da public choice (autonomista), mediante reconhecimento de(o/a): a) policentrismo dos sistemas metropolitanos; b) interdependência entre territórios intrametropolitanos; c) necessidade de estratégias coordenadas de planejamento e ação; d) disponibilidade conjunta de estruturas de coordenação vertical (agências setoriais, p. ex.) e horizontal (parcerias, p. ex.); e) inclusão de diferentes atores com formas consensuais, cooperantes e multirresponsáveis; f) um novo conceito sociopolítico: o de governança; e g) sob permanente monitorização e accountability13. O Novo Regionalismo – que “reconhece a necessidade de reformas institucionais, sobretudo para as escalas supramunicipais, em franca necessidade de pensamento integrado e estratégico, mas, por outro lado, defende soluções flexíveis e adaptáveis, em processos semi-institucionalizados”14 – pode contribuir, então, para um novo Federalismo, que conjugue estruturas de coordenação horizontal e mecanismos interfederativos de cooperação, seja por meio de convênios “comuns” ou “especiais”, de cooperação, v.g., com instâncias de coordenação vertical das entidades federativas, como no exemplo das Associações Públicas15 e das próprias Regiões Metropolitanas, ora em relevo, tudo de forma a se buscar a resolução de problemas que extrapolam os limites da cidade e se enveredam para Municípios ou Estados contíguos, e cuja solução, sob o ponto de vista da eficácia, eficiência e economicidade, depende da união qualificada dessa região territorialmente (in)definida, do planejamento regional das ações a serem tomadas e, muitas vezes, da gestão compartilhada de serviços públicos que, embora mais do que locais, também são diferentes dos regionais: são metropolitanos16.

3 Tipo de Solo – mas o que é Metropolitano? Na definição jurídica de Eros Grau, as regiões metropolitanas podem ser conceituadas como “o conjunto territorial intensamente urbanizado, com marcante densidade demográfica, que constitui um polo de atividade econômica, apresentando uma estrutura própria definida por funções privadas e fluxos peculiares, formando, em razão disso, uma mesma comunidade 13

Trata-se de excerto do relatório, da lavra de Sol Garson, intitulado: A construção de projectos metropolitanos. Experiências internacionais de sistemas de governança metropolitana, de 2010, p. 47, fruto de um grupo de estudos sobre Governação Metropolitana na Europa, que se encontra no sítio eletrônico: . Acesso em: 14 jun. 2013.

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Ibidem.

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A Lei de Consórcios Públicos autoriza que entes federativos diversos constituam, mediante protocolo de intenções, leis autorizativas dos entes convenentes e celebração de contrato de consórcio público, pessoas jurídicas revestidas da personalidade de associações públicas que, por ficção legal, passam a ocupar a Administração Indireta de todos os entes consorciados.

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No direito comparado europeu, verificam-se experiências mais consolidadas de governança regional: de instâncias regionais de resolução de problemas de igual magnitude, como no caso dos Kreise alemães, citados na decisão que mais adiante se perscrutará. Villaça também reconhece uma espécie de “regionalismo por projetos”.

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socioeconômica em que as necessidades específicas somente podem ser, de modo satisfatório, atendidas, através de funções governamentais coordenada e planejadamente exercitadas”17. É que a cidade – e seus problemas políticos, sociais, econômicos, culturais, ambientais – se ampliou, tornando-se uma metrópole em torno da qual gravitam ou com a qual ladeiam outras cidades, formadoras de uma mesma comunidade socioeconômica ou de um território delimitado, cujas demandas se qualificam como contíguas ou próprias aos entes regionais assim imbricados, sem que essa ampliação seja, muitas das vezes, acompanhada de mecanismos institucionais de resolução de conflitos e prospecção de soluções não mais estritamente locais, mas regionais: metropolitanas. A cidade virou metrópole e as metrópoles, megalópoles, mas o planejamento urbano, as instâncias decisórias e a infraestrutura urbana nem sempre se regionalizaram, nem sempre se metropolizaram, nem sempre se megalopolizaram. No Brasil, o aumento demográfico vertiginoso e as necessidades urbanísticas se ampliaram e, muitas vezes, se metropolizaram, sem que o direito urbanístico tenha deixado de pertencer à esfera exclusiva de competência dos Municípios e de ter como objeto de disciplina a Urbe; sem que o regionalismo – e as novas formas de qualificação territorial de interesses partilhados por entidades políticas autônomas – permeasse as discussões acadêmicas acerca do federalismo; sem que a agenda pública urbana, seja de parte dos Municípios, seja do lado dos Estados, tenha se tornado efetivamente metropolitana. As grandes questões do Urbanismo e do Direito à Cidade – habitação, circulação, trabalho e lazer (Carta de Atenas) – se qualificaram (não mais um estreito direito à propriedade urbana, mas à função social da propriedade; não mais a visão privatística do direito à propriedade, mas ao direito fundamental coletivo à moradia e, mesmo, à função social da Cidade) ou se ampliaram (para a necessidade de planejamento e obras de infraestrutrura metropolitanas, bem como de prestação de serviços públicos de interesse metropolitano, não apenas o exemplo vetusto do saneamento básico, mas, também, o do Sistema Único de Saúde), sem que as discussões acerca das competências tenham ficado restritas aos escaninhos federativos da União, dos Estados ou dos Municípios18. 17

GRAU, Eros Roberto. Regiões Metropolitanas: uma necessária revisão de concepções. Revista dos Tribunais, n. 521, mar. 1979, p. 12. O conceito deve ser compreendido à luz do contexto constitucional que o fundamentava e que reduzia a região metropolitana ao conceito de uma mesma comunidade socioeconômica.

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A crise econômica e o processo de desconcentração industrial registrado a partir da década de 1980 tornaram as Regiões Metropolitanas brasileiras os loci mais notáveis da segregação espacial, exclusão social e miséria. Pode-se mesmo dizer que, em função de fenômenos como desemprego em massa, exclusão social crescente e violência urbana, a questão social no Brasil de hoje é, acima de tudo, urna questão metropolitana. As Regiões Metropolitanas concentram, de maneira paradoxal, a produção simultânea de desenvolvimento econômico e desigualdade social, riqueza e miséria, sofisticação tecnológica e degradação ambiental (GOUVÊA, Ronaldo Guimarães. Diretrizes para a Gestão Metropolitana no Brasil. Revista Eure, v. XXXV, n. 104, abril 2009, p. 47 – grifo nosso).

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Só num passado mais recente o ordenamento jurídico nacional, de natureza infraconstitucional, se voltou para as questões regionais, não pelo tratamento institucional das regiões metropolitanas, ou pela “autonomização” do interesse metropolitano – como preconizava Eros Grau há quase quatro décadas19 –, mas através de temas “metropolizáveis” (como saneamento básico, por exemplo: via Lei Geral de Saneamento Básico), para cujas soluções se buscou uma aliança regional em que se mantém respeitadas as competências de Estados-membros e Municípios, em regime de federalismo integrativo, de forma (aparentemente) tão legítima como aquela em que tal interesse, o metropolitano, ganha contornos de autonomia, à diferença de que as modalidades institucionalizantes do regionalismo lá (consórcios públicos e convênios de cooperação, v.g.) se dão de forma voluntária, enquanto aqui, especificamente em relação às regiões metropolitanas, a adesão tende a ser tratada como compulsória, impositiva mesmo àqueles que não queiram se valer dos benefícios, tampouco partilhar dos ônus, que as necessidades metropolitanas impõem. Além disso, fato é que o “metropolitano” pode ser definido sob as mais diversas variáveis (a jurídica, a econômica, a geográfica, a social, a filosóficopolítica), sob os mais variados arranjos jurídicos e institucionais (associações públicas entre Estado e Municípios, consórcios públicos entre Municípios de uma dada Região Metropolitana, Região Metropolitana de determinado Estado da Federação, formação de Regiões de Desenvolvimento Econômico compostas por Estados diversos), de forma temático-administrativa (o lixo metropolitano, o esgoto metropolitano, as águas metropolitanas, o transporte metropolitano [?]) e até sociológico-urbana (o ser metropolitano, a percepção de pertença – ou de indiferença – metropolitana). Nos estreitos limites deste ensaio, a instância em que se instrumentaliza a perspectiva de Regionalismo que ora interessa é a Região Metropolitana tal qual definida constitucionalmente no art. 25, § 3º, da vigente Constituição, do qual se cuidará com o vagar devido, não sem que antes se contextualize o “clima” do surgimento das Regiões Metropolitanas, no plano estritamente jurídico, no Brasil.

4 Clima – Regiões Metropolitanas no Brasil e no Ordenamento Jurídico Brasileiro O fenômeno urbano é recente na História, que dirá o metropolitano. A urbanização é tida como consequência inexorável da industrialização, de

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O próximo capítulo fará uma breve abordagem histórica acerca do tratamento constitucional e legal das Regiões Metropolitanas no ordenamento jurídico brasileiro.

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forma que as cidades modernas teriam sido forjadas pela imbricação dos dois fenômenos; já as megalópoles são cidades pós-industriais – e, para alguns, também pós-modernas20 –, cujo contingente humano passou a superar a população de Estados-membros e até de Estados soberanos. Muitas vezes parece que, sob outros arquétipos, ainda se vive, no Brasil urbano/metropolitano, a cultura do coronelismo, da enxada e do voto21, própria de aglomerados humanos ainda rurais, nos quais predominavam os setores primário, agora adaptado às mazelas do urbano – e a predominância do setor terciário: o patrimonialismo nas relações de poder, a precarização das relações de trabalho e o voto, não mais de cabresto, mas ainda, muitas vezes, fisiológico... Quanto ao fenômeno urbano, bem, o Brasil colonial sequer largamente ocupado era. Os primeiros aglomerados urbanos vão surgir em plena era contemporânea. Aqui, o moderno e o modernismo chegaram com bastante atraso... Observe-se, todavia, que o regionalismo, no Brasil, apresentava duas facetas: enquanto o desenvolvimento regional corrigia insuficiências de áreas críticas (Norte e Nordeste), afetadas pela desigualdade em relação a regiões brasileiras mais prósperas (Sudeste e Sul), com vistas ao respectivo crescimento econômico, a Região Metropolitana “nasceu de inspiração diversa. Não decorre das carências do subdesenvolvimento, mas, ao contrário, pode-se dizer que é fruto do desenvolvimento, da industrialização e da explosão demográfica”22. Em 1975, Raul Machado Horta ressaltava que “a concentração populacional reclama macrodecisões para preservar o bem-estar humano nas grandes áreas urbanas, na fase em que a metrópole se transforma em megalópoles”23. E indagava: “Quando começaram os sismógrafos constitucionais a registrar essa mutação, para oferecer a regra jurídica fundamental capaz de discipliná-la?”24.

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Famoso por cuidar do fenômeno da compressão espaço-tempo que ocorre na cidade pós-moderna, ou seja, por processos que alteram a qualidade objetiva do espaço e do tempo, modificando a forma como representamos o mundo: uma aceleração no ritmo de vida exigido pelo capitalismo avançado facilitado pelas novas formas de vencer barreiras no espaço via novas tecnologias (HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Loyola, 1993), em “Cidades Rebeldes”, o geógrafo, urbanista e antropólogo David Harvey tenta reconstruir, neste início de novo milênio, o papel das grandes metrópoles pós-modernas, defendendo que elas são bem mais que templos da desigualdade, da vida automatizada e cinzenta, da devastação da natureza. É a elas que afluem – e lá que se articulam – as multidões às quais o capital já não oferece alternativas. Elas podem significar a coesão reivindicante das periferias ou as famílias que fogem ao padrão nuclear-heterossexual-monogâmico. Nessas cidades, portanto, concentram-se tanto as energias do capital quanto as melhores possibilidades de superá-lo. “Elas não são túmulos, mas arenas” (HARVEY, David. Rebel cities: from the right to the city to the urban revolution. London/New York: Verso, 2012 – tradução livre).

21

LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

22

HORTA, Raul Machado. Regiões metropolitanas brasileiras. Revista de Informação Legislativa, abr./jun. 1975, p. 34

23

Ibidem.

24

Ibidem.

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Passados quase 40 anos e aumentada exponencialmente a população das megalópoles brasileiras, pergunta-se: será que os sismógrafos falharam?

4.1 Regiões Metropolitanas e Constituição de 1937 A primeira menção constitucional ao “agrupamento de Municípios” – sem se utilizar da expressão regiões metropolitanas – se deu na Constituição de 1937, na qual se facultava aos Municípios da mesma região agruparem-se para a instalação, exploração e administração de serviços comuns, cabendo ao Estado regular as condições em que tais grupamentos poderiam se constituir, bem como a respectiva forma de administração25. A competência deferida então aos Estados, todavia, não se exerceu. A Constituição Federal de 1967, desvinculando a Região Metropolitana dos Municípios e da administração municipal, localizou topograficamente o novo instituto no título constitucional da “Ordem Econômica e Social”, mais precisamente no art. 157, § 1026, o qual, com breves alterações formais, que não alteraram a substância da norma, veio, depois, no art. 164, sob a seguinte dicção: “Art. 164. A União, mediante lei complementar, poderá, para a realização de serviços comuns, estabelecer regiões metropolitanas, constituídas por Municípios que, independentemente de sua vinculação administrativa, façam parte da mesma comunidade sócio-econômica.”

Verifica-se que se atribuía à União a competência para instituir as Regiões Metropolitanas, sem que sequer se impusesse a participação dos Estadosmembros em sua formação, tida pelo conjunto de Municípios integrantes de uma mesma comunidade socioeconômica. A Lei Complementar Federal nº 14, de 8 de junho de 1973, instituiu, do ponto de vista jurídico, as primeiras oito Regiões Metropolitanas brasileiras: 25

Constituição de 1937. “Art. 29. Os Municípios da mesma região podem agrupar-se para a instalação, exploração e administração dos serviços públicos comuns. O agrupamento, assim constituído, será dotado de personalidade jurídica limitada a seus fins. Parágrafo único. Caberá aos Estados regular as condições em que tais agrupamentos poderão constituir-se, bem como a forma de sua administração.”

26

O preceito constitucional que previa a constituição de regiões metropolitanas foi fruto de uma emenda aditiva ao projeto constitucional de iniciativa do Presidente da República, da autoria do Senador Eurico Rezende, com o apoio de vários outros membros do Senado. Na justificativa da emenda, esclareceu-se que “por regiões metropolitanas entendem-se os Municípios que gravitam em torno da grande cidade, formando com esta uma unidade sócio-econômica, com recíprocas implicações nos seus serviços urbanos e interurbanos”. Esses serviços, prosseguia a justificação, “deixam de ser de exclusivo interesse local, por vinculados estarem a toda a comunidade metropolitana. Passam a constituir a tessitura intermunicipal daquelas localidades e, por isso mesmo, devem ser planejados e executados em conjunto por uma administração unificada e autônoma, mantida por todos os Municípios da região, na proporção de seus recursos, e se estes forem insuficientes, hão de ser complementados pelo Estado, e até mesmo pela União, porque os seus benefícios também se estendem aos governos estadual e federal” (Diário do Congresso Nacional – Suplemento ao n. 1 – 6 de janeiro de 1967, fls. 129-130).

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São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador, Curitiba, Belém e Fortaleza, prevendo dois órgãos metropolitanos: o Conselho Deliberativo e o Conselho Consultivo, os quais deveriam ser criados por lei estadual (art. 2º), muito embora suas funções já estivessem centralizadamente definidas pelo legislador federal/nacional27. A lei também elencou, em relação não exaustiva, quais seriam os serviços comuns de interesse metropolitano28-29. Note-se que, todavia, a Lei Complementar Federal nº 14, de 8 de junho de 1973, não instituiu a Região Metropolitana do Rio de Janeiro. É que, por força da evolução jurídica peculiar da cidade do Rio de Janeiro, que se verá mais adiante, com a transferência da capital da República do Rio de Janeiro para o Distrito Federal, em 1960, passa o “Rio de Janeiro a exercer, no contexto nacional, um papel singular: o de Estado e capital simultaneamente”30, o que, pela dicção constitucional, impedia a formação da Região Metropolitana 27

Lei Complementar nº 14/73. “Art. 2º Haverá em cada Região Metropolitana um Conselho Deliberativo, presidido pelo Governador do Estado, e um Conselho Consultivo, criados por lei estadual (Redação dada pela Lei Complementar nº 27, de 1973). § 1º O Conselho Deliberativo contará em sua composição, além do Presidente, com 5 (cinco) membros de reconhecida capacidade técnica ou administrativa, um dos quais será o Secretário-Geral do Conselho, todos nomeados pelo Governador do Estado, sendo um deles dentre os nomes que figurem em lista tríplice organizada pelo Prefeito da Capital e outro mediante indicação dos demais Municípios integrante da Região Metropolitana (Redação dada pela Lei Complementar nº 27, de 1973). § 2º O Conselho Consultivo compor-se-á de um representante de cada Município integrante da região metropolitana sob a direção do Presidente do Conselho Deliberativo. § 3º Incumbe ao Estado prover, a expensas próprias, as despesas de manutenção do Conselho Deliberativo e do Conselho Consultivo. Art. 3º compete ao Conselho Deliberativo: I – promover a elaboração do Plano de Desenvolvimento integrado da região metropolitana e a programação dos serviços comuns; II – coordenar a execução de programas e projetos de interesse da região metropolitana, objetivando-lhes, sempre que possível, a unificação quanto aos serviços comuns; Parágrafo único. A unificação da execução dos serviços comuns efetuar-se-á quer pela concessão do serviço a entidade estadual, que pela constituição de empresa de âmbito metropolitano, quer mediante outros processos que, através de convênio, venham a ser estabelecidos. Art. 4º Compete ao Conselho Consultivo: I – opinar, por solicitação do Conselho Deliberativo, sobre questões de interesse da região metropolitana; II – sugerir ao Conselho Deliberativo a elaboração de planos regionais e a adoção de providências relativas à execução dos serviços comuns.”

28

“Art. 5º Reputam-se de interesse metropolitano os seguintes serviços comuns aos Municípios que integram a região: I – planejamento integrado do desenvolvimento econômico e social; II – saneamento básico, notadamente abastecimento de água e rede de esgotos e serviço de limpeza pública; III – uso do solo metropolitano; IV – transportes e sistema viário, V – produção e distribuição de gás combustível canalizado; VI – aproveitamento dos recursos hídricos e controle da poluição ambiental, na forma que dispuser a lei federal; VII – outros serviços incluídos na área de competência do Conselho Deliberativo por lei federal.”

29

Observe-se, todavia, que embora a lei complementar não tenha discernido entre etapas e parcelas de serviços comuns destes como um todo, nada obstava, desde então, que, no exercício de sua competência, o Estado o fizesse, por lei própria. Por tal razão, a Lei Complementar nº 94, de 29.05.74, do Estado de São Paulo, em seu art. 4º, definiu que as etapas e parcelas de serviços comuns de interesse metropolitano, quando possam ser executadas pelos Municípios, sem prejuízo de seu planejamento global, deverão, preferencialmente, ficar sob a execução local.

30

MARAFON, Glaucio José et alii. Geografia do estado do Rio de Janeiro: da compreensão do passado aos desafios do presente. Rio de Janeiro: Gramma, 2011. p. 23.

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do Estado, a se formar por capital e Municípios vizinhos, porquanto fossem círculos de igual diâmetro: conteúdo e continente... Apenas com o advento da fusão dos Estados do Rio de Janeiro e da Guanabara, em 1975, e o retorno do Rio de Janeiro à condição de capital do Estado, em 197531, foi possível a instituição, em seu art. 19, da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, formada pelos seguintes Municípios: Rio de Janeiro, Niterói, Duque de Caxias, Itaboraí, Itaguaí, Magé, Maricá, Nilópolis, Nova Iguaçu, Paracambi, Petrópolis, São Gonçalo, São João do Meriti e Mangaratiba32-33. No magistério de Horta34, haveria duas modalidades de regionalismo consagradas pelo federalismo brasileiro de cooperação: o de desenvolvimento, voltado para o desenvolvimento econômico de determinadas Regiões do país (e os vários órgãos federais criados para fomentarem seu desenvolvimento – Sudene, Sudam, Sudeco, etc.), e o de serviços, criado para a prestação de serviços comuns. Segundo tal classificação, um dos maiores estudiosos brasileiros do tema do federalismo, ressalta que “a Região Metropolitana não decorre de carências do subdesenvolvimento, mas, ao contrário, podese dizer que é fruto do desenvolvimento, da industrialização e da explosão demográfica”35. Nesse contexto, o regionalismo de serviços, que as Regiões Metropolitanas poderiam representar, ficou muito atrelado, à época, ao regionalismo de desenvolvimento econômico, que, pari passu, era fomentado pelos governos militares de então, de forma que a constituição das regiões metropolitanas brasileiras por lei federal acabariam sofrendo a pecha de “ranso da ditadura”: de uma predeterminação do governo central36 acerca do bem, neste caso, metropolitano, esvaziando-as política, econômica e socialmente de suas potencialidades.

31

Lei Complementar nº 20/74. “Art. 8º Os Estados do Rio de Janeiro e da Guanabara passarão a constituir um único Estado, sob a denominação de Estado do Rio de Janeiro, a partir de 15 de março de 1975. Parágrafo único. A Cidade do Rio de Janeiro será a Capital do Estado.”

32

Lei Complementar nº 20/74. “Art. 19. Fica estabelecida, na forma do art. 164 da Constituição, a Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Parágrafo único. A Região Metropolitana do Rio de Janeiro constitui-se dos seguintes Municípios: Rio de Janeiro, Niterói, Duque de Caxias, Itaboraí, Itaguaí, Magé, Maricá, Nilópolis, Nova Iguaçu, Paracambi, Petrópolis, São Gonçalo, São João do Meriti e Mangaratiba.”

33

Ao longo do tempo, a Região Metropolitana do Rio de Janeiro sofreu uma série de alterações.

34

HORTA, Raul Machado, idem.

35

HORTA, Raul Machado, idem, p. 34.

36

No Brasil, a experiência de gestão metropolitana iniciada na década de 1960, sob os auspícios do governo autoritário, baseada na existência de Conselhos, teve seu auge na segunda metade da década de 1970, mas perdeu força ao longo da década seguinte, em virtude da desarticulação do sistema de planejamento idealizado pelo governo central, principal articulador e provedor de recursos para os projetos metropolitanos.

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Segundo a análise de Eros Grau37, a criação das regiões metropolitanas, responsáveis pela execução de serviços metropolitanos, desacompanhada da instituição de fundos metropolitanos hábeis a responder por investimentos de magnitude proporcional à das metrópoles e cidades vizinhas, formadoras de uma mesma comunidade socioeconômica, teria contribuído decisivamente para o respectivo fracasso. A Constituição, de 5 de outubro de 1988, com a vitória da democracia e um novo conceito de Região Metropolitana, parecia dar nova feição ao regionalismo, permitindo que ele proporcionasse uma nova leitura do próprio federalismo, na medida em que constituía uma nova instância, se não federativa, de imbricação, coordenação e composição de interesses necessariamente federativos: de três ou mais entidades políticas, no mínimo. À época dos debates constituintes e da entrada em vigor da atual Constituição, todavia, a vitória do municipalismo – com a ascensão dos Municípios à condição de Entes Políticos – ofuscou toda e qualquer pretensão de construção de políticas públicas metropolitanas. A História se constrói assim mesmo: dia após dia...

4.2 Regiões Metropolitanas e Constituição de 1988: a Vitória da Democracia e do Municipalismo Com efeito, a Constituição Brasileira de 1988 elevou, de forma pioneira e até então inédita, os Municípios à natureza jurídica de entes integrantes da Federação, dotados de todos os atributos da autonomia político-administrativa: capacidade de auto-organização (elaboração da própria Lei Orgânica pelo Parlamento Municipal, uma “espécie de Constituição Municipal”), autogoverno (eleições diretas para o Chefe e Vice do Executivo e os representantes do Legislativo local: Prefeito, Vice-Prefeito e Vereadores), autoadministração (exercício das competências próprias, gestão do governo local e do patrimônio municipal) e autonomia financeira (titularidade de tributos municipais e repasses financeiros do Estado e da União). Foi a justa vitória do Municipalismo, num país de proporções continentais como o Brasil e cuja evolução política muito devia ao papel desempenhado pelas Comunas e suas Câmaras de Vereadores38. 37

GRAU, Eros Roberto. Regiões metropolitanas: uma necessária revisão de concepções. Revista dos Tribunais, n. 521, mar. 1979, p. 11-34.

38

Já tivemos oportunidade de expor os debates, já superados, acerca da natureza jurídica dos Municípios: CORREIA, Arícia Fernandes. Intangibilidade do poder local: um ensaio jusfilosófico sobre a descentralização do poder como condição necessária ao exercício da democracia. Revista de Direito da Procuradoria-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, v. 12, n. 17, p. 109-146, jan./dez. 2008.

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Era a hora, então, de construir os exatos contornos das competências municipais, principalmente no que dizia respeito à definição das matérias de interesse local, que desafiavam a visão centralista de nosso federalismo centrífugo original, o qual, a rigor, vigora até os dias atuais. Os Municípios precisavam fazer jus à qualidade de entes políticos que passaram a ostentar, de forma que, definidas as competências entre Municípios, Estados e União, não houve muito espaço para o florescimento das regiões metropolitanas, que pareciam se imiscuir, agora, entre os primeiros e os segundos... Além disso, o entrelaçar de competências federativas se resolvia por um complexo sistema de competências – de matriz norte-americana: com poderes expressos e residuais e de raiz germânica, com competências comuns e concorrentes –, mas todas tratadas de forma estanque, ainda quando exercidas sob comunhão, sem falar nos conflitos federativos por elas suscitadas. O interesse metropolitano passa a integrar, então, esta disputa, autonomizando-se em relação ao interesse estadual e ao municipal, mas essa interpretação só foi possível diante da nova configuração da Região Metropolitana, que lhe conferiu a vigente Constituição, em seu art. 25, § 3º: “Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios da Constituição. (...) § 3º Os Estados poderão, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes39-40, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum.”

Destacam-se, a seguir, os aspectos mais relevantes do conceito constitucional de regiões metropolitanas em vigor. 39

Há diversas modalidades de entidades regionais: as formadas por Municípios intraestaduais (regiões metropolitanas, microrregiões e aglomerações urbanas) e as que podem ser constituídas por Municípios de Estados diversos, como no caso das Regiões Integradas de Desenvolvimento (Rides). No Projeto de Lei destinado à criação do Estatuto da Metrópole, cada uma destas entidades regionais urbanas é devidamente conceituada: as formadas por Municípios limítrofes situados num mesmo Estado (regiões metropolitanas, microrregiões e aglomerações urbanas), através de percentuais, em ordem decrescente, respectivamente, das seguintes variáveis: núcleo central com parte da população nacional, taxa de urbanização acima de um determinado patamar, concentração da população economicamente ativa nos setores secundário e terciário e urbanização contígua e as regiões integradas de desenvolvimento econômico, constituídas por Municípios também limítrofes, mas situados em mais de um Estado ou entre Estados e o Distrito Federal.

40

Doravante, cuidar-se-á apenas das Regiões Metropolitanas, muito embora as conclusões alcançadas possam se estender às demais entidades regionais intraestaduais, principalmente no que diz respeito ao princípio da “solidariedade federativa”, que, diferentemente das competências comuns, nas quais todos agem a respeito de um mesmo tema, porém mediante decisões solitárias, nas competências metropolitanas todos agem coletivamente no trato das competências de interesses comuns.

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4.2.1 A Titularidade e a Definição do Interesse Metropolitano A criação das Regiões Metropolitanas – formadas por Municípios limítrofes – por lei estadual trouxe à tona acirradas disputas doutrinárias acerca do titular do interesse metropolitano, divididas em três principais correntes acerca do ente federativo ao qual caiba esta titularidade: i) Estados, porquanto instituidores da Região Metropolitana (por lei complementar estadual) e na medida em que (supostamente) equivalente o interesse regional ao estadual; ii) Municípios dela integrantes, uma vez que dotados de autonomia federativa, insuscetível de degradação por lei de outro ente federativo, eis que conferida pela Constituição; e iii) Estado e Municípios metropolitanos, em conjunto (corrente híbrida), considerando-se que, distintamente do interesse regional, o interesse metropolitano ser-lhe-ia autônomo, formado pela convergência de Estado e Municípios metropolitanos na organização, planejamento e execução de funções públicas de interesse comum. Com efeito, Alaôr Caffé41 entendia que, se o interesse metropolitano equivalesse ao regional, já imanente aos Estados, despicienda seria a previsão constitucional da criação de Regiões Metropolitanas, podendo o próprio Estado, por competência original, dele, interesse metropolitano, tratar; se, por outro lado, apenas aos Municípios envolvidos coubesse, estar-se-ia ignorando sua instituição por competência legislativa estadual. Por tais razões, o estudioso das regiões metropolitanas brasileiras entendeu que a titularidade do interesse metropolitano seria híbrida: tanto do Estado que a instituir quanto dos Municípios limítrofes que a compuserem. Na mesma linha de raciocínio, José Afonso da Silva já assentara, por exclusão, aquilo que não seria de interesse comum ao Estado e aos Municípios integrantes de uma mesma Região Metropolitana (que ora denominados de interesse metropolitano): “(...) cabe à lei complementar estadual definir essas funções públicas de interesse comum. Mas essa definição tem limites, pois entre elas, evidentemente, não podem estar as de estrito interesse local, as que não têm dimensão metropolitana, que continuam integradas à autonomia dos municípios integrantes; nem as do Estado que não sejam também de estrito interesse metropolitano.”42 41

ALVES, Alaôr Caffé. Regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões: novas dimensões constitucionais da organização do Estado brasileiro. In: FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. Temas de direito ambiental e urbanístico. São Paulo: Max Limonad, 1998. p. 19.

42

SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 164.

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O interesse metropolitano é aquele que extravasa os limites geográficos e a autonomia política de um Município (provavelmente a metrópole) e se espraiam para outras Comunas que lhe sejam vizinhas e que somente organizarão, planejarão e executarão serviços públicos de interesse comum de forma satisfatória se o fizerem em conjunto, compartilhadamente, em reunião metropolitana. Não é um minus em relação à autonomia local, mas um plus: transcende-a sem deixar de lhe pertencer; não é um minus em relação ao interesse estadual, transcende-o, sem deixar de lhe pertencer; não é a soma dos interesses locais dos Municípios metropolitanos ao interesse estadual do Estado-instituidor-catalisador-metropolitano; é um plus a este todo; é um interesse singular; um interesse metropolitano. Não pode, todavia, o legislador estadual instituir Regiões Metropolitanas ao seu talante discricionário: é preciso respeitar as condições constitucionais, de ordem geográfica e jurídico-administrativa, que lhe são impostas.

4.2.2 O Conceito Jurídico-Constitucional de Regiões Metropolitanas Na dicção constitucional, as Regiões Metropolitanas são as coletividades regionais, que não dispõem de autonomia política, senão administrativa, criadas por lei complementar estadual e constituídas por agrupamentos de Municípios limítrofes, de maior escala do que as aglomerações urbanas e as microrregiões, destinadas a integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum aos entes metropolitanos. Embora a Região Metropolitana possa assim ser determinada por diferentes critérios, aqui há de prevalecer o jurídico-constitucional, que exigiu que os Municípios (ao menos dois), geograficamente limítrofes e localizados num mesmo Estado-instituidor, em torno de uma metrópole (cidade grande, cidade-polo, etc.), devam integrar, junto com este e em virtude de lei complementar deste, a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum: a saber, aquelas que transcendem os interesses locais dos Municípios que as compõem e que não se confundem com o regional, do Estado que as institui. Luís Roberto Barroso observa que não se pode ter um conceito apriorístico do que constitua a matéria metropolitana (nesse caso, as funções públicas de interesse comum): pode ser que, numa dada entidade regional, o saneamento básico seja de interesse metropolitano e, noutro, estritamente local, em dependendo das especificidades da região43. 43

Nesse sentido, interessante a definição legal fluminense (Lei Complementar Estadual nº 87, de 16 de dezembro de 1997, segundo a qual: “Art. 3º Consideram-se de interesse metropolitano ou comum as funções públicas e os serviços que atendam a mais de um município, assim como os que, restritos ao território de um deles, sejam de algum modo dependentes, concorrentes, confluentes ou integrados de funções públicas, bem como os serviços supramunicipais, (...).”

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Nesse sentido, a norma constitucional se, por um lado, parece tornar obrigatória a integração dos Municípios delimitados pela lei estadual à Região Metropolitana, porquanto o interesse metropolitano – para viabilizar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum – precise transcender aos interesses locais e regional (como se a soma das partes equivalesse a mais do que o todo), por outro, cria condições para que essas funções de interesse comum sejam juridicamente viabilizadas (e não artificialmente forjadas por um pretenso interesse metropolitano) e geograficamente delimitadas. Segundo a advertência de Alaôr Caffé44, o dever-ser (sollen) metropolitano deve se aproximar, o máximo possível, do ser (sein) metropolitano. A delimitação de quais Municípios integram a Região Metropolitana deve seguir alguma lógica – geográfica, econômica, social – que justifique a respectiva instituição por lei complementar e que não impeça eventuais alterações ao longo do tempo, seja em virtude da emancipação de novos Municípios intra ou latere metropolitanos, seja por conta de afeição a peculiaridades de outras regiões metropolitanas, a cujos interesses públicos comuns possam melhor servir, a critério político do Parlamento do Estado-membro Metropolitano, eis que a matéria é de reserva legal complementar45. A propósito, apenas a metrópole (o Município onde se situa a cidade grande que catalisa, de certa forma, e gera, de outras, os interesses metropolitanos) parece insuscetível de ser retirada pelo legislador complementar, sob pena de descaracterização da entidade regional “Região Metropolitana”. A propósito, há que se ter em conta que a “adesão” à Região Metropolitana é obrigatória para os Municípios metropolitanos, conforme já teve oportunidade de definir o Supremo Tribunal Federal, o que não impede que, por falta de razoabilidade do legislador complementar estadual na fixação dos entes políticos que efetivamente devam ser considerados metropolitanos ou do elenco de matérias metropolizáveis, a própria lei complementar que a instituir não possa ser objeto de controle abstrato de normas. Note-se, outrossim, que a criação ou não de uma Região Metropolitana é uma faculdade do Estado, mas, em sendo escolhida sua instituição, esta está vinculada aos requisitos constitucionais definidos na referida norma fundamental. Tais requisitos dizem respeito, todavia, às condições de criação e não ao modelo de gestão a ser instituído para a Região Metropolitana. 44

CAFFÉ, Alaôr, idem, p. 16-17.

45

Para evitar essa singularidade de Parlamento numa entidade regional (a metropolitana) que deve ter a gestão colegiada, mas que, por força da criação por lei complementar estadual, acaba excluindo as questões metropolitanas do efetivo e plural debate legislativo. Glauber Lucena, aluno de doutoramento do Curso de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, por força de convênio firmado com a Faculdade de Direito da Paraíba, que participa, neste semestre, de nossa disciplina sobre as Regiões Metropolitanas, defende a criação de um Parlamento Metropolitano, dotado da representatividade das Câmaras Municipais dos entes metropolitanos.

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4.2.3 A Natureza Jurídica da Região Metropolitana: o Modelo de Governança Metropolitana Com efeito, as Regiões Metropolitanas não constituem um novo ente político-federativo; não dispõem de competência legiferante, tampouco de autonomia política; no máximo, administrativa, ainda que restrita aos assuntos de interesse comum metropolitano. No magistério de Hely Lopes Meirelles46, poderiam se constituir sob os mais diversos modelos jurídicos: órgão do Estado (Secretaria, Departamento, Divisão, etc.), pessoa jurídica de direito público (autarquia) ou privado (paraestatal) ou sob a modalidade colegiada de Conselho ou Comissão. Para Alaôr Caffé, gozam da natureza jurídica de “autarquias territoriais intragovernamentais e plurifuncionais”47 e devem ser geridos por via de uma representação paritária, o que, a rigor, não afastaria a figura dos Conselhos Metropolitanos. Numa concepção mais recente, Alochio48, rechaçando as demais possibilidades vertidas por Hely – de órgãos públicos e conselhos, por serem despersonalizados e de paraestatais, por tratarem de atividades econômicas em sentido estrito –, entende que seriam verdadeiras autarquias sob regime especial, até porque, nessa qualidade, podem se tornar concedentes dos serviços públicos de interesse comum metropolitano. De fato, com sua afinidade às autarquias sob regime especial, as Regiões Metropolitanas podem ser tidas como verdadeiras autarquias territoriais sob regime especial49-50. Não parece prudente, todavia, engessar o modelo através do qual deve se dar a governança metropolitana, se órgão, autarquia, conselho51. Em verdade, 46

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 74.

47

CAFFÉ, Alaôr, idem, p. 19.

48

ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. O problema da concessão dos serviços públicos nas regiões metropolitanas: (re)pensando um tema relevante. Interesse Público, n. 24, v. 5, 2004, p. 187-204.

49

Poderiam ser tidas como verdadeiras “Agências Metropolitanas”, no sentido de demandarem alguns dos atributos conferidos pelo Direito Regulatório às autarquias sob regime especial, que recebem a alcunha de “Agências Reguladoras”, tais como a personalidade jurídica própria e a independência decisória em relação ao poder instituidor e aos “poderes instituídos”; a saber, a independência da autarquia metropolitana decorreria de ela representar o interesse metropolitano que transcende o regional (do Estado instituidor) e os locais (dos Municípios instituídos como Metropolitanos).

50

Não poderão revestir a natureza de associações públicas ou privadas, decorrentes de consórcios públicos, porquanto estes dependam de instituição por contrato (art. 3º da Lei Federal nº 11.107/05) e aquelas primeiras de leis autorizativas de todos os entes consorciados, enquanto a instituição da Região Metropolitana se dá ex vi legis. Não obstante a natureza jurídica diversa, por sua natureza naturalmente consorcial, mas, também, autárquica e, assim, dotada de personalidade jurídica própria, essas autarquias podem, em tese, tal como ocorre com as associações públicas na Lei de Consórcios Públicos, ser consideradas como ficticiamente pertencentes a todas as entidades federativas componentes da Região Metropolitana e cujo Conselho de Administração – ou órgão de diverso nomen juris, mas competência afim – deve comportar a representatividade de todos os entes metropolitanos de uma mesma região.

51

Para ajustar ao escaninho jurídico devido, verifica-se que ela não pode formalmente assumir a forma de consórcio público, eis que este se dá por força de contrato, enquanto a Região Metropolitana nasce ex vi legis, muito embora apresente uma lógica de comunhão de interesses de múltiplos entes federativos bem semelhante, sendo lá voluntária e cá compulsória.

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há vários modelos de governança possíveis para as Regiões Metropolitanas, os quais devem ser entendidos como a institucionalização de um “pensar, conceber e administrar metropolitano” que não se pulverize em ideias sem concretude ou viabilidade institucional ou que se concentrem na voluntas monológica do Estado-instituidor da Região52; há de refletir a instância metropolitana, em sua estrutura, a representatividade dos entes metropolitanos, a necessidade de concepção e execução de políticas públicas metropolitanas e de viabilizar um diálogo institucional metropolitano que efetivamente torne todos os entes partícipes da organização e do planejamento das funções públicas de interesse comum, ainda que não necessariamente providos de idênticos “pesos”53. O diálogo metropolitano, todavia, não estará completo se dele não participarem os destinatários das políticas públicas metropolitanas, que devem se fazer representar nessas institucionalidades54-55. Não se vislumbrou, todavia, tal qual uma Comissão de notáveis juristas conceberam no passado, que pudessem ser temporárias (numa espécie de regionalismo por projetos), devendo se institucionalizar de forma permanente e em razão da necessidade de execução coordenada das funções públicas de interesse comum a mais de um Município metropolitano, as quais não devem ser definidas por uma lei nacional, senão por leis estaduais que reflitam as 52

Nas palavras de Jório José Carneiro Barretto Cruz, “o conceito de governança metropolitana limitou-se, nas últimas décadas, à autoridade estadual, com os governadores num pseudopapel de prefeitos metropolitanos, já que os objetos de gestão são cidade e comunidade, tal como ocorre aos prefeitos, nos seus municípios. Como as metrópoles são cidades íntegras, perpassando o território de vários municípios, a melhor condição de governabilidade se manifesta na forma condominial, em razão do que os Municípios por elas abrangidos precisam aderir à perspectiva associada de governança. À autonomia absoluta assumida pelos Municípios e que dificulta as iniciativas de tratamento da metrópole na sua justa integridade se soma o predomínio dos Estados, erroneamente elevados à condição de gestores metropolitanos, só por ser deles a iniciativa constitucional de instituir regiões metropolitanas” (Regiões metropolitanas: compreender para governá-las. Disponível em: . Acesso em: 13 jun. 2013).

53

A Subsecretaria de Urbanismo da Secretaria Estadual de Obras vem realizando uma série de “Diálogos Metropolitanos”, tendo o dedicado ao tema da “Governança Metropolitana” ocorrido em 2012, na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro.

54

Algumas RMs destacam-se por experiências de certa forma mais inovadoras, como é o caso das unidades de Minas Gerais, nas quais se faz presente uma estrutura mais complexa de gestão que inclui Assembleia Metropolitana, Conselho Deliberativo de Desenvolvimento Metropolitano, Agência de Desenvolvimento Metropolitano, sendo que a de Belo Horizonte se reforça ainda com um Grupo de Governança Metropolitana, um Fórum Metropolitano e uma Associação dos Municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte. O cotejo das Regiões Metropolitanas da Região Sudeste vem sendo estudado no âmbito do Grupo de Pesquisas sobre Políticas Públicas Territoriais, criado dentro da Linha de Pesquisa em Direito da Cidade do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

55

Note-se, todavia, que a teoria que embasa o institucionalismo metropolitano – uma instância única para a solução de todos os problemas metropolitanos – corresponde à visão predominante da teoria do Regionalismo, do início do século passado, de forma que é necessário refletir se toda essa modernidade chega com atraso suficiente para que nos adaptemos à Teoria do Novo Regionalismo, que preconiza a existência de soluções pragmáticas para os problemas metropolitanos, tanto do ponto de vista vertical-generalista (pela instituição de uma Região Metropolitana que tenha como essência a formulação de Políticas Públicas Metropolitanas) quanto do prisma horizontal-especial, através do qual sejam fomentados acordos colaborativos interlocais, dentro de uma mesma região, garantindo-se, por vias diversas, que a ordem jurídica dê conta do policentrismo metropolitano ínsito ao Novo Regionalismo.

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peculiaridades de cada uma das Regiões Metropolitanas e, mesmo assim, com a observância a um princípio implícito de subsidiariedade56.

4.2.4 Organização, Planejamento e Execução de Funções Públicas de Interesse Comum Com efeito, a Constituição deferiu à União competência para estabelecer as diretrizes gerais da política urbanística, por força da qual, inclusive, tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que tem por escopo a implementação do Estatuto da Metrópole (numa clara analogia ao Estatuto da Cidade); aos Municípios, para legislar sobre matérias de interesse local e serviços públicos locais, sem falar na concepção da política de desenvolvimento urbano sustentável, inclusive mediante edição do respectivo Estatuto da Cidade; aos Estados-membros, as competências estaduais; e, via Regiões Metropolitanas, a Estados e Municípios, se não a competência legislativa, a administrativa para a gestão do interesse metropolitano; na dicção constitucional, a competência para a organização, o planejamento57 e a execução de funções públicas de interesse comum. Abstraídas aqui as divergências acerca da titularidade do interesse metropolitano postas entre Estado-instituidor, em razão dessa qualidade, e Municípios metropolitanos, como forma de “compensação federativa” à suposta mitigação à autonomia local, opta-se, desde logo, pela corrente híbrida, ou melhor, pela ideologia da política por consenso e não por dissenso; a gestão compartilhada do interesse metropolitano entre todos os entes políticos que o titularizam, mediante condomínio administrativo-federativo de Estado e Municípios componentes de uma mesma Região Metropolitana. Num país de proporções continentais como o Brasil, há regionalismos dos mais diversos matizes, assim como há regiões metropolitanas com vieses diversos, de forma que o ideal não é a fixação a priori dos temas metropolitanos, como ocorria sob a égide da Constituição anterior, mas sua regulação conceitual – no sentido de que o são aqueles que não devam ser tratados isoladamente, mas em conjunto metropolitano –, para fins de definição casuística a posteriori; caso se entenda que não é possível apenas a definição conceitual, em razão da necessidade constitucional de fixação, por lei complementar estadual, do que sejam interesses comuns, mister que haja, ao menos, standards para 56

Só mais adiante irá se tratar do princípio da subsidiariedade como forma definição de qual interesse deva prevalecer – o local ou o metropolitano –, em caso de conflito.

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O planejamento deve ser tratado separadamente, na medida em que ele demanda atuação legislativa, de que as Regiões Metropolitanas são destituídas, mas não os entes que a compõem e que podem, cada um em sua órbita legislativa, planejar a metrópole que integram, à luz da práxis administrativa das respectivas entidades regionais metropolitanas e da disponibilidade de recursos orçamentários para tanto.

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esta definição, tais como os princípios da subsidiariedade, da solidariedade (federativa) e da eficiência e economicidade.

4.2.5 Standards Pelo princípio da subsidiariedade, nas matérias em que Municípios, ainda que conurbados, sejam hábeis a resolver os problemas de raiz comum mediante soluções locais e desde que todos se encontrem nessa mesma situação, nada obsta que a subsidiariedade conduza à prevalência da subsidiariedade sobre a solidariedade federativa das entidades regionais; ao revés, se apenas um dos entes metropolitanos sofrer com a falta de uma solução colegiada para problema metropolitano que afete a todos, o princípio da solidariedade federativa, que atrai o exercício da competência metropolitana, há de prevalecer sobre o da subsidiariedade. Outro standard a ser levado em conta na delimitação das questões metropolitanas diz respeito à eficiência e à economia de escala – com consequente economicidade – de ações integradas, gerando economia de escala para todos os entes metropolitanos.

4.2.6 O Projeto de Emenda à Constituição e de Lei Ordinária: Estatuto da Metrópole O tema metropolitano vem despertando maior interesse nos meios político e acadêmico do fim do século passado para cá. Como as Regiões Metropolitanas parecem esbarrar na autonomia dos Municípios Metropolitanos e como o discurso da instância regional parece ultrapassado – ao menos como solução ótima e única para todos os problemas metropolitanos –, fato é que o instituto não teria florescido na organização político-administrativa brasileira. Nos últimos 10 (dez) anos, todavia, se viram florescer dois sintomas de ênfase no regionalismo, a saber: i) o fomento à gestão compartilhada de serviços públicos por entes políticos diversos e ii) a regionalização de “temas metropolitanos” específicos. Confira-se: i) como fomento à gestão compartilhada, i.i) em 1998, com a Reforma Administrativa do Estado, a previsão, no art. 241 da Constituição, da possibilidade de gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos entre entes políticos diversos, através da celebração de consórcios públicos e convênios de cooperação, regulamentado pela Lei Federal nº 11.107, de 6 de abril de 2005 e i.ii) em 2011, a Lei Complementar Federal nº 140, de 8 de dezembro de 2011, que regulamentou a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios nas ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum relativas à proteção das paisagens naturais notáveis, à proteção do meio ambiente, ao combate à poluição em qualquer de suas

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formas e à preservação das florestas, da fauna e da flora, criando também as hipóteses de exercício de competências supletivas e subsidiárias por parte de um ente federativo em relação ao outro; ii) como regionalização do trato de temas tradicionalmente discutidos como urbanos ou metropolitanos, a Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, que dedica um capítulo justamente à Prestação Regionalizada de Serviços Públicos de Saneamento Básico, prevendo, entre outros instrumentos, como consórcios e convênios, os contratos de interdependência. De toda sorte, em que pese essa ampla abrangência de instrumentos horizontais e verticais de regionalização de interesses comuns – e não necessariamente metropolitanos –, a opção pela instância única metropolitana e por uma política nacional de desenvolvimento metropolitano sustentável se encontram na agenda governamental, através do Projeto de Emenda Constitucional nº 50/201158 e do Projeto de Lei nº 3.640/04, que corresponde a um verdadeiro Estatuto da Metrópole, com vistas à instituição de diretrizes para a Política Nacional de Planejamento Regional Urbano. Na mensagem que acompanha o Projeto de Lei, o Executivo Federal salienta que: “Se o legislador, ao regulamentar os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, foi pródigo nos acertos da normatização do desenvolvimento municipal, o mesmo não se deu quanto ao impacto das questões do desenvolvimento regional urbano (...) Assim, é urgente que uma complementação, voltada para a regulamentação do universo das unidades regionais, dote o país de uma normatização que, de forma dinâmica e continuada, uniformize, articule e organize a ação dos entes federativos naqueles territórios em que funções de interesse comum tenham de ser necessariamente compartilhada. Apesar de os temas partirem do tema maior da gestão metropolitana, inevitavelmente ultrapassam esses limites das questões exclusivamente institucionais e de gestão, para adentrarem em causas mais profundas, onde se verificam, entre outras, questões de isolamento municipalista, 58

PEC nº 50/2011. Art. 1º O art. 182 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido dos seguintes §§ 5º a 8º: “Art. 182. (...) § 5º Os Estados deverão elaborar plano diretor metropolitano para as regiões metropolitanas instituídas na forma do art. 25, § 3º, abrangendo o território de todos os Municípios integrantes. § 6º A decisão sobre a elaboração de plano relativo a aglomerações urbanas que não tenham características metropolitanas fica a critério do respectivo Estado. § 7º A elaboração do plano diretor metropolitano, ou do plano referido no § 6º, não exime os Municípios integrantes da região metropolitana ou da aglomeração urbana da elaboração do plano diretor de que tratam os §§ 1º e 2º. § 8º O plano diretor metropolitano deverá ser revisto, no mínimo, a cada dez anos. Art. 2º Os Estados deverão finalizar a elaboração do plano diretor metropolitano previsto no § 5º do art. 182 da Constituição até, no máximo, três anos da entrada em vigor desta Emenda à Constituição, sob pena de suspensão do repasse dos recursos da União não classificados como transferências obrigatórias.”

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dificuldade em compartilhar interesses comuns, não integração intergovernamental, ausência de planos e projetos regionais gerais e setoriais, falta de recursos financeiros em todos os níveis de governo para as escalas intergovernamentais e, ainda, falta de vontade política de tratamento das escalas de integração intergovernamental.”

Recentemente, todavia, quem mais contribuiu para o debate metropolitano não foi o Parlamento, mas o Judiciário – embora com 15 anos de amadurecimento59 da questão –, mais especificamente no julgamento da ADIn 1.842/RJ, que julgou a (in)constitucionalidade de preceitos das leis de criação da Região Metropolitana do Rio de Janeiro e de regulação dos serviços públicos metropolitanos fluminenses, decisão esta da qual se tratará mais adiante, não sem uma contextualização histórica acerca da instituição desta Região.

5 Uma Topografia “Acidentada” – Região Metropolitana do Rio de Janeiro A posição peculiar da Cidade do Rio de Janeiro na História do Brasil talvez explique as peculiaridades do contexto de instituição e do parco desenvolvimento da Região Metropolitana do Rio de Janeiro em contraste com a autonomização da Administração Pública Municipal.

5.1 Escorço Histórico Cidade e Província do Rio de Janeiro foram instituídas em momentos históricos diversos e se desenvolveram por lógicas econômicas, sociais e culturais diversas, marcadas pela multiplicidade de estatutos jurídicos que regeriam a Cidade60 – de Capital do Império e da República a Município Neutro, Município do Estado da Guanabara e, finalmente, somente em 1975, Município do Estado do Rio de Janeiro –, o que teria contribuído para um enorme distanciamento político entre Município e Estado do Rio de Janeiro. De capital do Império do Reino Unido de Portugal e Algarves e, mais tarde, da República, na condição de Município Neutro, o Município do Rio de Janeiro, em 1960, quando da transferência do Distrito Federal para Brasília, tornou-se capital do Estado da Guanabara, que se separou do Estado do Rio 59

Não diria de atraso, porque, conforme se verificará, os primeiros votos não se coadunavam com o federalismo cooperativo brasileiro e o voto final sintonizou-se com a teoria do new regionalism.

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A propósito da multiplicidade de estatutos jurídicos que viriam a reger a cidade do Rio de Janeiro, confira-se, por todos: RIBEIRO, Miguel Ângelo. Considerações sobre o espaço fluminense: estrutura e transformações. In: MARAFON, Glaucio José; RIBEIRO, Marta Foeppel (Org.). Estudos de geografia fluminense. Rio de Janeiro: UERJ, 2001.

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de Janeiro61, fazendo com que se configurasse uma situação singular: a de coincidir o território da capital com a do Estado, o que impedia que se constituísse uma Região Metropolitana no Rio de Janeiro. Vejamos. Com efeito, enquanto as Capitanias Hereditárias com as quais a Coroa portuguesa dividiu horizontalmente o território brasileiro foram instituídas em 1543, dentre as quais o futuro território fluminense, que se distribuía entre as Capitanias de São Tomé, ao norte, e de São Vicente, ao sul, a Cidade do Rio de Janeiro veio a ser fundada por Estácio de Sá, em 1º de março de 1565. Em 1763, transferiu-se a capital do Vice-Reinado de Salvador para a cidade do Rio de Janeiro, cuja centralidade política, econômica e cultural culminou com a chegada da família real portuguesa, em 1808, o que redundou na sua elevação à condição de capital do Império. “Já em 1815, as terras do atual Estado do Rio de Janeiro passaram a constituir a província fluminense. (...)”. 61

Confira-se um traçado histórico detalhado acerca da separação histórica entre província e cidade, mais tarde, Estado e Município do Rio de Janeiro, respectivamente, que, de certa forma, contribuíram até hoje para a inexistência de debate acerca de políticas públicas metropolitanas: “Em 1534, o rei D. João III dividiu o Brasil em quinze lotes latitudinais: as Capitanias Hereditárias. O futuro território fluminense ficou dividido entre duas Capitanias: de São Tomé, pertencente a Pero de Góis de Silveira, e a de São Vicente, pertencente a Martim Afonso de Souza. A divisa entre as duas Capitanias ficava no Rio Macaé – a Capitania de São Vicente era dividida em dois lotes descontínuos. Entre os dois lotes localizava-se a Capitania de Santo Amaro. Em 1555, os franceses, comandados por Nicolas Durand de Villegagnon, invadiram a Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, apoiados pelos índios tamoios. O então Governador Geral, Mem de Sá, enviou, em 1560, uma expedição para combater os franceses. Em 1º de março de 1565, foi fundada por Estácio de Sá a Cidade do Rio de Janeiro, entre os morros Cara de Cão e Pão de Açúcar (...). Em 1567, com a derrota dos franceses, a cidade foi transferida para o Morro do Castelo, arrasado no século XX. A partir daí criou-se a Capitania Real do Rio de Janeiro de São João. Em 1808, com a Abertura dos Portos às Nações Amigas, houve uma grande valorização das terras da cidade do Rio de Janeiro e proximidades. Isso deveu-se ao fato de a Corte portuguesa ter fixado residência no Rio de Janeiro e a cidade ter se beneficiado com o aumento do comércio internacional. Em 1822, o Rio de Janeiro passou a sediar o Império do Brasil, cuja capital era a cidade do Rio de Janeiro. Em 1834, com o Ato Adicional promulgado pelo Governo Regencial, foi criado o Município Neutro. Assim, a Cidade do Rio de Janeiro ficou separada da Província do Rio de Janeiro.” Era o primeiro cisma entre Província (mais tarde Estado) do Rio de Janeiro e Cidade do Rio de Janeiro. O autor continua seu traçado histórico: “A Abolição da Escravatura, em 1888, e a Proclamação da República, em 1889, ambas ocorridas na cidade do Rio de Janeiro, foram fundamentais para a decretação da falência final da província. As novas relações econômicas capitalistas e o poder político eram liderados por São Paulo. O século XX marcou o grande desenvolvimento do agora Distrito Federal, antigo Município Neutro, localizado na cidade do Rio de Janeiro, enquanto o Estado do Rio de Janeiro, antiga província, tinha sua economia estagnada. (...).” Nova – e mais drástica – separação ocorreria na década de 1960 e perduraria até meado da de 1970: a criação do Estado da Guanabara. Continua a discorrer o autor: “Em 1960, a cidade do Rio de Janeiro perdeu o título de Capital Federal para Brasília. Foi criado, então, o Estado da Guanabara, que possuía as terras do antigo Distrito Federal. O Estado do Rio de Janeiro continuava separado da cidade que lhe dera o nome.” “Em 1975, o Governo Federal, ainda sob o regime militar, resolveu reintegrar a cidade do Rio de Janeiro, então Estado da Guanabara, ao antigo Estado do Rio de Janeiro. Pela Lei Complementar nº 20, de 3 de junho de 1974, encaminhada ao Congresso Nacional pelo Presidente Ernesto Geisel, ficava estabelecida a fusão dos Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, com o nome de Estado do Rio de Janeiro. A fusão seria efetivada a partir de 15 de março de 1975.” (LINHARES, Sérgio. Histórico do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: . Acesso em: 16 jun. 2013)

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Após a Independência, em 1834, todavia, a cidade do Rio de Janeiro desvincula-se da província fluminense62, sendo alçada à condição de Município Neutro da Corte. Nesse momento, o Rio de Janeiro é definitivamente consagrado como a Cidade-capital do Brasil, passando a ser um território único e institucionalmente diferenciado das demais províncias”63. Nesse sentido, podese afirmar que a caracterização do Município Neutro simbolizou o início do cisma político entre a cidade do Rio de Janeiro e a província fluminense. Após a proclamação da República, em 1889, com o advento da Constituição de 1891, conferiu-se ao Município Neutro o status de Distrito Federal e transformaramse todas as províncias do Império – inclusive, por óbvio, a fluminense – em Estados da República, de forma que o Distrito Federal (antiga cidade do Rio de Janeiro) era capital da República do Brasil e não do Estado do Rio de Janeiro: mantinha-se a separação política entre cidade e Estado... No ano de 1960, com a transferência da capital da República do Rio de Janeiro para Brasília, criou-se o Estado da Guanabara, “passando a cidade do Rio de Janeiro a exercer, no contexto nacional, um papel singular: o de Estado e capital simultaneamente”64, acirrando ainda mais aquele distanciamento político e impedindo a criação de uma Região Metropolitana do Rio de Janeiro por parte do Estado do Rio de Janeiro, mantendo-se o isolamento da cidade do Rio de Janeiro/Estado da Guanabara em relação aos demais Municípios do Estado do Rio de Janeiro. Somente em 1975, conforme se relatou, através da fusão entre os Estados do Rio de Janeiro e da Guanabara estabelecida pela Lei Federal nº 20, de 1974, que fez do Município do Rio de Janeiro capital do Estado do Rio de Janeiro, se criava, finalmente, a Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

5.2 (Re)Instituição da Região Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro Por isso, somente em 1975, com a fusão do Estado da Guanabara com o Estado do Rio de Janeiro, cuja capital deixou de ser Niterói e voltou a ser o Município do Rio de Janeiro, foi que se tornou possível a instituição da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, formada inicialmente pelos seguintes Municípios: Rio de Janeiro, Niterói, Duque de Caxias, Itaboraí, Itaguaí, Magé, Maricá, Nilópolis, Nova Iguaçu, Paracambi, Petrópolis, São Gonçalo, São João do Meriti e Mangaratiba. 62

A capital da província fluminense, em 1835, passa a ser a cidade de Niterói.

63

Geografia do estado do Rio de Janeiro, p. 22

64

MARAFON, Glaucio José et alii. Geografia do estado do Rio de Janeiro: da compreensão do passado aos desafios do presente. Rio de Janeiro: Gramma, 2011. p. 23.

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Trata-se, pois, de uma entidade regional historicamente marcada pela autonomização da metrópole – Rio de Janeiro – em relação aos demais Municípios do Estado do Rio de Janeiro, o que, se não explica, de certa forma justifica, em parte, o atraso do debate da questão metropolitana no Rio de Janeiro, ao contrário das demais Regiões Metropolitanas também criadas na década de 1970: a Região Metropolitana do Rio de Janeiro já nasceu com um distanciamento histórico entre o Município-polo e os demais Municípios Metropolitanos localizados no entorno da Baía da Guanabara65. Ademais, ao longo do tempo, os membros componentes do pacto metropolitano fluminense se alteraram, seja em função da emancipação/ incorporação de novos Municípios geograficamente localizados no espaço de antigos Municípios metropolitanos, seja em virtude da saída de outros, até para a formação de outras Regiões Metropolitanas: Leis Complementares Estaduais ns. 87, de 16 de dezembro de 1997, 97, de 2 de outubro de 2001, 105, de 4 de julho de 2002, 130, de 21 de outubro de 2009, e 133, de 15 de dezembro de 2009.

5.3 Duelo Federativo entre ERJ e MRJ: a ADIn 1.842/RJ Foi em relação à lei complementar estadual originária de (re)instituição da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, todavia, cujo cerne – titularidade dos serviços metropolitanos – se manteve intacto, a despeito das alterações em sua composição, e da lei ordinária, relativa à regulação de seus serviços, que o Partido Democrata Trabalhista (PDT) ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.842/RJ, a fim de ver declarada a inconstitucionalidade dos arts. 1º a 11 da Lei Complementar nº 87/97 e dos arts. 8º a 21 da Lei nº 2.869/97, ambas editadas pelo Estado do Rio de Janeiro. Travou-se, assim, em sede de controle de constitucionalidade, um duelo federativo entre Município e Estado do Rio de Janeiro: de um lado, a favor daquele, alegou-se violação i) ao pacto federativo, ii) à autonomia municipal, iii) às competências municipais para legislar e gerir os interesses locais, inclusive, mediante disciplina dos serviços públicos de interesse municipal, entre outros, o de saneamento básico; de outro, a favor deste, defendeu-se i) a competência constitucional para a instituição das regiões metropolitanas por lei complementar estadual e, ipso facto, da absorção da competência local pela metropolitana, que se confundiria com a regional, ii) bem como a disciplina 65

Para uma análise da Política Urbana Fluminense, confira-se o artigo de Ângela Moulin Penalva Santos, Mariana Medeiros e Pedro Vasques: Política urbana no Rio de Janeiro: entre a cidade do plano e a cidade real. Cadernos do Desenvolvimento Fluminense, (2), 2013. Disponível em: .

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das matérias de interesse comum que desbordassem do estritamente local, entre as quais a do saneamento básico66.

5.4 Os Consensos Federativos Possíveis, a Despeito da Indefinição Quanto à Titularidade dos Serviços Públicos Legalmente Definidos como Metropolitanos, entre os quais o de Saneamento Básico A ação, ajuizada em 1997 não fora julgada até 2007, quando os Entes Federativos Estado e Município do Rio de Janeiro decidiram uma solução regional (não metropolitana) para o impasse da (in)definição da titularidade do serviço público de saneamento básico da Cidade do Rio de Janeiro, que afugentava qualquer interesse por parte de potenciais concessionários do serviço, dada a insegurança jurídica quanto à validade de celebração de um contrato administrativo cuja parte concedente restava, ainda, indefinida pela Corte Suprema do país. Foi nesse contexto que se assinou, em 28.02.07, um Termo de Reconhecimento Recíproco de Direitos e Obrigações entre Estado do Rio de Janeiro e Município do Rio de Janeiro, no qual ambos os entes políticos, entre várias medidas, adotavam as seguintes: i) definiam suas competências quanto ao abastecimento de água e o esgotamento sanitário da Cidade do Rio de Janeiro, ficando a CEDAE com a exclusividade daquele e dividindo-se a Municipalidade quanto a este: AP-5 e áreas faveladas, sob competência do Município e demais porções do território carioca, com a mesma empresa pública estadual; ii) se comprometiam a desistir de todas as ações que porventura contrariassem os termos do ajuste; e iii) firmavam o compromisso de respeito aos contratos eventualmente celebrados com terceiros e ao ajuste em si, a despeito do teor da decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da matéria. Levando-se em conta, todavia, a obrigatoriedade de leis prévias para a celebração de consórcios públicos e, em tese 67-68, também, de convênios de cooperação, ambas do Estado do Rio de Janeiro, que versam sobre a instituição da gestão compartilhada de serviços públicos, nos moldes da norma inserta no art. 241 da Constituição, tornou-se necessário, para convalidar o referido 66

A questão específica do saneamento básico será tratada autonomamente, na próxima oportunidade.

67

Alice Gonzalez Borges bem ponderou, ao tratar dos convênios de cooperação previstos no art. 241 da Constituição, que: “A Lei nº 11.107/05 apenas alude aos convênios de cooperação, mas pouco tratou deles, embora o art. 41 da Constituição a eles se refira expressamente. É o Decreto nº 6.017/07 quem o conceitua – com certo excesso regulamentar, por dizer o que a Lei não disse – de modo a deixar bem claro que o convênio celebrado exclusivamente entre entes políticos da Federação não podem ser tratados como os convênios comuns de que trata a legislação administrativa em geral.” (BORGES, Alice Gonzalez. Consórcios públicos: problemática de sua institucionalização. Revista Zênite de Licitações e Contratos, ano XVII, n. 193, março 2010, p. 252)

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Art. 2º, § 8º, do Decreto Federal nº 6.017/07.

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termo e subsumi-lo às Leis Federais ns. 11.107/05 (Lei de Consórcios Públicos) e 11.445/07 (Lei Geral de Saneamento Básico), que leis autorizativas de ambos os entes conveniados fossem editadas e novos ajustes entre Estado e Município fossem firmados: convênio de cooperação entre ERJ e MRJ, contrato de interdependência entre MRJ e CEDAE (art. 12 da Lei Federal nº 11.445/07), com previsão de futura sub-rogação da posição do MRJ pelo concessionário do serviço, indicação do ente de regulação e fiscalização do serviço69, normas de regulação e, finalmente, a possibilidade de concessão do serviço pelo MRJ, que o fez, tendo celebrado um contrato de concessão com a sociedade de propósito específico criada pelo licitante vencedor do certame e cuja validade deveria ser preservada em caso de uma solução tradicional em matéria de disputa de competências (ou Estado ou Município), em razão do princípio da segurança das relações jurídicas, mas que, com a teoria híbrida vencedora (competência compartilhada pelos entes metropolitanos), restou plenamente “convalidado” pela decisão. Outras experiências de gestão regionalizada compartilhada do serviço de saneamento básico foram experimentadas no âmbito da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Eis que em 2013 o Supremo Tribunal finalmente decide a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) 1.842/RJ, de cujo teor se cuidará mais adiante, não sem prévia análise dos votos que a compõem.

6 Movimento das Placas Tectônicas – Novo Regionalismo e Leading Case do Supremo Tribunal Federal A Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.842/RJ tem como objeto os arts. 1º a 11 da Lei Complementar Estadual nº 87, de 16 de dezembro de 2007, e os arts. 8º a 21 da Lei Ordinária nº 2.869, de 18 de dezembro de 1997, ambas do Estado do Rio de Janeiro, que versam sobre a instituição, composição, organização e gestão da Região Metropolitana do Rio de Janeiro e da Microrregião dos Lagos e que fixam o conceito de interesse metropolitano ou comum às entidades regionais, atribuindo ao Estado a qualidade de poder concedente dos serviços públicos definidos como de interesse metropolitano, entre os quais o de transporte ferroviário e metroviário e o de saneamento básico70. 69

Decreto Municipal nº 33.767, de 6 de maio de 2011, que restabeleceu a Fundação Rio-Águas, criada pela Lei Municipal nº 2.656, de 23 de junho de 1998.

70

A análise acerca da questão específica do saneamento, que envolve, além da decisão judicial, acordos de vontades entre o Estado do Rio de Janeiro, o Município do Rio de Janeiro e a Companhia Estadual de Água e Esgoto em relação à questão do esgotamento sanitário, concretizados antes da decisão de mérito do Supremo Tribunal Federal, justamente por força da demora da decisão, envolvem outras variáveis, como a edição da Lei Geral de Saneamento e a utilização da Lei de Consórcios Públicos pelos referidos Entes Federativos, que merecem tratamento específico em outra oportunidade, que já está por vir.

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Por um lado, o Partido Democrático Trabalhista, que deflagrou o controle concentrado de normas na espécie, argui afronta: (i) ao princípio democrático e ao equilíbrio federativo, (ii) à autonomia municipal, (iii) ao princípio da não intervenção dos Estados nos Municípios e (iv) às competências deferidas aos Municípios. Alega-se, outrossim, (v) que as leis impugnadas usurpam a execução de Políticas Públicas cuja definição também pertence exclusivamente aos Municípios integrantes, quer da Região Metropolitana, quer da Microrregião. A Assembleia Legislativa e o Governador do Estado do Rio de Janeiro defendem que a Constituição, com fundamento no art. 25, § 3º, da Lei Maior, deferiu ao Estado a definição do que seja interesse comum dos Municípios que, em virtude do fenômeno da conurbação, devam receber tratamento unificado nas matérias de interesse comum a todos os entes públicos que componham a unidade regional criada por lei complementar estadual. A Advocacia-Geral da União suscitou preliminares de inépcia da inicial, rejeitadas ao longo do julgamento, e de perda de objeto em virtude de alteração legislativa superveniente, o que foi parcialmente acolhido, enquanto a Procuradoria-Geral da República opinou pela improcedência da ação, ao argumento de que a eventual transposição total ou parcial de certos serviços, antes de competência exclusiva municipal, para além de seus lindes, não ofenderia a autonomia municipal, restrita que é ao interesse local.

6.1 Evolução dos Votos: Pró-Estado, Pró-Município(s) e Pró-Gestão Compartilhada O Ministro Maurício Corrêa entendeu que a autonomia municipal outorgada constitucionalmente aos Municípios, em 05.10.88, já vinha mitigada pela própria Constituição Cidadã, em virtude da prerrogativa, conferida ao Estado, para criar entidades regionais, o que implicaria automática convolação das competências municipais em metropolitanas e, ipso facto, de competência estadual. Diante de tais argumentos, o voto do Ministro foi pela improcedência da ação. O Ministro Joaquim Barbosa rechaçou a tese da mitigação a priori da autonomia municipal pela própria Constituição, entendendo, ao revés, que a criação da Região Metropolitana pelo Estado não poderia amesquinhar a autonomia política dos Municípios dele integrantes. Nesse sentido, o Estado, sem interferência do Conselho Deliberativo da Região Metropolitana, não poderia prestar serviços comuns de interesse metropolitano.

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Segundo o Ministro Joaquim Barbosa, as competências metropolitanas deveriam ser exercidas por órgão próprio ou por ente – público ou privado – formado a partir da concessão dos Municípios integrantes do agrupamento regional, tendendo, portanto, a entendê-los como titulares do interesse metropolitano. Por sua vez, o Ministro Nelson Jobim dissecou as peculiaridades das unidades regionais (regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões), conforme se verifica do resumo de seu voto, que a seguir se esboça: (i) as entidades regionais não seriam entes políticos, mas entes com função executória e administrativa, (ii) não deteriam competência político-legislativa própria, (iii) teriam como competência o “somatório integrado das competências dos Municípios” delas integrantes, (iv) que poderia ser exercida por órgão próprio ou por concessões dos Municípios, (v) sendo o papel do Estadoinstituidor meramente “procedimental”. Nesse sentido, o Ministro Nelson Jobim também teria vinculado a titularidade da competência metropolitana, do ponto de vista material, aos Municípios, (vi) aos quais caberia decidir via Conselho Deliberativo através de um (vii) “órgão com representação proporcional dos Municípios”. O voto também foi conduzido no sentido de se reputar inconstitucional a concessão de competência executória ao Estadoinstituidor, bem como de submeter à aprovação do Governador a indicação de representantes dos Municípios nos Conselhos Metropolitanos. Em alentado voto, o Ministro Gilmar Mendes entendeu que a titularidade das funções públicas de interesse comum não caberia nem ao Estado, nem aos Municípios metropolitanos, mas a todos, devendo tal competência ser compartilhada por todos os entes federativos que, juntos, comporiam o ente regional: o Estado-instituidor e o agrupamento de Municípios metropolitanos, prenunciando a síntese do aparente “silogismo” federativo pretérito que viria de ser acolhida pelo novo Relator do feito, conforme se verificará mais adiante. A respeito das peculiaridades da Região Metropolitana, o Ministro Gilmar Mendes entendeu que (i) o interesse comum não se confunde com o simples somatório dos interesses locais, (ii) as decisões devem ser necessariamente colegiadas, (iii) a forma de obtenção do consenso deva ser tal que não implique a imposição de uma vontade sobre à dos demais; (iv) a integração metropolitana é condição de viabilidade de certas políticas públicas e (v) uma forma de exigir a tomada de decisões de maneira coletiva, diante do caráter compulsório da participação dos Municípios. Com efeito, em outra oportunidade, por ocasião do julgamento da ação direta de inconstitucionalidade de preceito da Constituição do Estado do Rio de Janeiro que autorizava que a integração da capital ao referido ente

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coletivo se desse mediante homologação da respectiva Câmara Municipal, já decidira o Supremo Tribunal Federal que a integração do Município à Região Metropolitana é compulsória, não se cogitando de placet do Parlamento local. O Ministro Ricardo Lewandowski veio, então, resumir, de forma simplificada, as principais teorias que poderiam definir a titularidade do interesse público comum metropolitano – e que acabaram servindo de esteio aos votos pretéritos proferidos por seus pares: (i) só do Estado, (ii) só dos Municípios ou (iii) de todos os entes federativos integrantes da Região Metropolitana, a saber, Estado e Municípios metropolitanos. A seu ver, a transferência integral das funções públicas de interesse comum aos Estados violaria a autonomia das Comunas, o que reclamaria uma “cooperação mútua entre os vários níveis de governo”, contribuindo para um novo tipo de federalismo: cooperativo ou de integração, no qual os Municípios devem participar das decisões regionais, ainda que estas não sejam paritárias. Como não dispõe de Parlamento próprio, a Região Metropolitana exigiria, dos entes que a integram, a formação de um condomínio legislativo, porquanto seja de reserva legal a regulação dos serviços públicos de interesse comum. Em matéria de governança metropolitana, o Ministro Ricardo Lewandowski respeitou a liberdade de escolha do modelo de governança ideal para a entidade regional, à luz de suas peculiaridades, exigindo, apenas, seja qual for o modelo de gestão compartilhada adotado, “(...) o compartilhamento das decisões relativas às funções públicas de interesse comum, inclusive quanto ao poder de concessão dos respectivos serviços, de tal modo que não haja concentração dessa competência na esfera de um único ente, seja ele o Estado-instituidor, o Município-polo ou qualquer dos demais Municípios, e desde que não se dê a preponderância da vontade de determinado ente federado sobre os outros no processo de tomada de decisão.”

Decidiu-se, então, que a ação deveria ser julgada parcialmente procedente , para (i) excluir a chancela, pelo Governador do Estado, das decisões tomadas pelo Conselhos Deliberativos da Região Metropolitana do Rio de Janeiro e da Microrregião dos Lagos, (ii) excluir a Assembleia Legislativa da posição de “Parlamento Metropolitano”, quanto à regulação dos serviços metropolitanos, porquanto representante de apenas um de seus integrantes e (iii) 71

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Na parte dispositiva do v. acórdão, julgou-se a ação prejudicada em relação aos preceitos modificados da Lei Complementar nº 87/97 (arts. 1º, caput e § 1º, 2º, caput, 4º, caput e incisos I a VII, e 11, caput e incisos I a VI) e parcialmente procedente, para declarar a inconstitucionalidade da expressão “a ser submetido à Assembleia Legislativa” do inciso I do art. 5º, além do § 2º do art. 4º, do parágrafo único do art. 5º, dos incisos I, II, IV e V do art. 6º, do art. 7º, do art. 10 e do § 2º do art. 11 da Lei Complementar nº 87/97 do Estado do Rio de Janeiro, bem como dos arts. 11 a 21 da Lei fluminense nº 2.869/97.

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para retirar do Estado todas as competências que lhe foram deferidas em caráter privativo, quando deveriam sê-lo em cogestão com os demais membros das entidades regionais, interpretando a constituição da Região Metropolitana e da microrregião conforme a Constituição, no sentido de uma gestão partilhada em relação aos interesses públicos metropolitanos, modulando-se, todavia, sua eficácia, para ter início 24 meses após a publicação da decisão, uma vez que caberá aos entes federativos integrantes das entidades regionais “elaborar um novo modelo de planejamento e execução das funções públicas de interesse comum (...), estabelecendo uma gestão compartilhada”, a depender de um novo arranjo federativo – a despeito de a Região Metropolitana não ser um ente político, senão administrativo, integrante da Federação –, que exige governança metropolitana com decisões colegiadas, partilhadas entre o Estado do Rio de Janeiro e os municípios metropolitanos, para a qual nosso Estado, nossa cidade, nossa metrópole não se prepararam e, ao que a História parece indicar, quase rechaçaram desde a chegada da Corte portuguesa nestas plagas, em 1808, prevalecendo o destaque da nova Capital em detrimento do resto da Província.

6.2 A Sintonia com a Melhor Doutrina Pode-se conceber que a decisão do Supremo Tribunal Federal estaria em sintonia com a melhor doutrina sobre o Novo Regionalismo, na medida em que reconhece a necessidade de criação de estratégias integradas de planejamento e de execução para temas de interesse supralocal – e não decisões autonômicas e descoordenadas, nos casos de interesses comuns –, conferindo aos entes metropolitanos uma liberdade de escolha do modelo de governança metropolitana, que leve em conta suas especificidades e suas autonomias políticas, ao tempo em que se rechaça qualquer “centralismo” nas decisões a serem tomadas, as quais, afinal, deverão ser colegiadas. Com efeito, na lição de Borja e Castells, “las decisiones de la ciudad central afectan a los habitantes de las periferias y éstos usan la ciudad central, pero no están representados en sus órganos de decisión”72. Demais disso, o tempo de amadurecimento da decisão levou a um juízo meritório capaz de contemplar a, ou mesmo de dar um upgrade à, essência do federalismo cooperativo brasileiro, estimulando a solidariedade federativa em detrimento da “compartimentalização” dos interesses regional e locais, quando do reconhecimento não de sua natureza jurídica – de entidade autárquica territorial, sujeita às mais diversas modelagens, cuja escolha 72

BORJA, Jordi; CASTELLS, Manuel. Local e global: la gestión de las ciudades en la era de la información. Madrid: Taurus, 1997. p. 283.

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o Judiciário deliberadamente não quis fazer em nome dos gestores públicos –, mas da titularidade das funções públicas de interesse comum, tanto do Estado-instituidor quanto dos Municípios metropolitanos, provando que não é um minus em relação à autonomia municipal, mas um plus. Por fim, restou prudente a fixação de um lapso de tempo razoável, graças à modulação da eficácia da decisão pro futuro (para dali a 24 meses), para que as pessoas políticas que compõem os Entes Regionais do Rio de Janeiro sentem à mesa para compartilharem decisões acerca de problemas que lhes sejam comuns, a respeito da execução das Políticas Públicas Metropolitanas, a propósito da concepção da instituição metropolitana hábil a prestar, diretamente ou via terceiros, os serviços públicos de interesse comum, como numa democracia discursiva em que os Entes Metropolitanos, a despeito de suas diferenças, possam dispor de idênticas condições de fala. Faltou, apenas, a ênfase na participação social para a formação da vontade metropolitana, cujo déficit de representatividade não se procurou suprir ou, quando menos, estimular a que seja eliminado.

6.3 O Desafio da “Solidariedade Metropolitana” A decisão a respeito da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, ao alijar o Estado do Rio de Janeiro do papel de titular único – ou de referenciador último – das competências relativas à instituição, à composição e à organização da entidade regional e ao impor a todos os Entes Metropolitanos (Estado do Rio de Janeiro e Municípios Metropolitanos fluminenses) que elaborem, de forma colegiada, um novo modelo de planejamento e execução das funções públicas de interesse comum, mediante gestão compartilhada, inova em relação ao “federalismo compartimentalizado” denunciado por Abruccio, obrigando os entes metropolitanos ao diálogo institucional73, forjando, assim, uma nova regra impositiva da solidariedade federativa (a “solidariedade metropolitana”) e permitindo que, pela união de entidades com tão díspares índices de desenvolvimento humano, possam ser superadas (ou, ao menos, minimizadas) históricas e abissais diferenças econômicas, sociais e culturais, com vistas à melhoria da vida de todos nesta metrópole tão desigual como o é a do Rio de Janeiro, de forma que possa ser maravilhosa não só a cidade, mas toda a região.

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Há que se prover a entidade regional de recursos financeiros, integrando-se o planejamento metropolitano às leis orçamentárias dos entes metropolitanos, mas isso é tema para um outro momento.

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TITLE: Localism as a new perspective for the Brazilian federalism: the leading case related to the metropolitan area of Rio de Janeiro. ABSTRACT: The decision of the Supreme Federal Court concerning the unconstitutionality of precepts of state laws creating the Metropolitan Area of Rio de Janeiro and that disciplined some metropolitan public services (and that initially raised an alleged brawl between municipal autonomy and state jurisdiction) evokes the need for shared administration between states and municipalities integrating it, contributing the regulatory benchmarks of the great regional issues, so to rethink about the Brazilian federative pact, no longer from a jurisdiction conflict-related perspective, but from federative consensus, thus aiming at the shared management of problems. KEYWORDS: Localism. Federation. Cities. Metropolitan Area.

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