Relações entre estado e democracia na teoria política contemporânea

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Copyright © 2015 Matheus Passos Silva Todos os direitos reservados. Qualquer parte deste livro pode ser copiada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes sem autorização por escrito dos editores e/ou dos autores, desde que para fins acadêmicos e com a devida citação.

S586r Silva, Matheus Passos. Relações entre estado e democracia na teoria política contemporânea [recurso eletrônico] / Matheus Passos Silva. Brasília: Vestnik, 2015. Recurso digital. Inclui bibliografia. Formato: ePub Requisitos do sistema: multiplataforma ISBN: 978-85-67636-08-5 Modo de acesso: World Wide Web 1. Política. 2. Democracia. 3. Representação. 4. Estado. I. Título.

Todos os direitos reservados, no Brasil, por Editora Vestnik CNB 13 Lote 9/10 Apto. 304 – Taguatinga 72115-135 – Brasília – DF Tel.: (61) 3201-6437 Email: [email protected]

Esclarecimentos prévios à leitura O texto a seguir corresponde à versão original, sem alterações, da dissertação de mestrado apresentada em 2005 no âmbito do programa de pós-graduação em Ciência Política, promovido pelo Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília. O texto foi devidamente aprovado pela Banca Examinadora. Nesse sentido, ressalta-se que alguns elementos do texto, especificamente dados estatísticos, quando aparecerem, podem estar desatualizados, o que de forma alguma diminui ou desabona o texto como um todo. Além disso, destaca-se que o texto está sendo publicado conforme as regras ortográficas da época, o que significa dizer que o texto não foi alterado para o novo Acordo Ortográfico atualmente em vigor. Por fim, o leitor verificará que a palavra "estado" está sempre redigida com inicial minúscula, ao contrário do que normalmente ocorre na literatura, especialmente em língua portuguesa, que geralmente redige com letra maiúscula ("Estado"). Optou-se pela escrita com letra minúscula para se evitar a "fetichização" do estado, ou seja, a uma importância maior a tal instituição do que aquela que ela realmente tem – ainda mais quando se considera que vivemos em um estado democrático de direito que propugna, conforme o parágrafo único do artigo 1º da Constituição federal, que "todo o poder emana do povo". Em outras palavras: é ao povo que deve ser dada a importância, não ao estado.

Sobre o autor Matheus Passos Silva atualmente (2015) cursa o doutorado em Direito, com especialização em Ciências Jurídico-Políticas, na Universidade de Lisboa (Portugal). Possui mestrado em Ciência Política pela Universidade de Brasília (2005) e graduação também em Ciência Política pela Universidade de Brasília (2002). Cursa também pós-graduação em Direito Eleitoral e em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (Brasília/DF, Brasil). É Conselheiro Científico e Editor da Revista Jus Scriptum, do Núcleo de Estudos Luso-Brasileiro da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, desde 2014. Leciona disciplinas no curso de Direito, tais como Ciência Política e Teoria Geral do Estado, Filosofia Geral e Jurídica, Direito Constitucional, Direito Eleitoral, Orientação de Trabalho de Conclusão de Curso, História do Direito, Sociologia e Metodologia de Pesquisa. Tem larga experiência como coordenador de núcleo de pesquisa na área jurídica, bem como na coordenação de trabalhos de conclusão de curso. Dedicou-se ao Núcleo Docente Estruturante e ao Colegiado do curso de Direito em várias IES nas quais trabalhou. Áreas de interesse: Ciência Política, Democracia, Direito Constitucional, Direito Eleitoral, Direitos Políticos, Representatividade, Justiça, Nações e Nacionalismo no Leste Europeu. Mais informações sobre o autor podem ser encontradas nos links abaixo: Canal no Youtube: www.youtube.com/profmatheuspassos Página no Facebook: www.facebook.com/profmatheus Site do Prof. Matheus Passos: http://profmatheus.com Twitter: www.twitter.com/profmatheus Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4314733713823595

Agradecimentos Esta, sem dúvida, é a parte mais difícil de ser feita nesta dissertação, simplesmente porque é muita gente que devo lembrar e corro o risco de me esquecer de alguém. Em todo caso, vamos lá. Como em todos os agradecimentos, os primeiros vão para a minha família – pais e irmãos. Sem aquelas seis pessoas, não seria quem sou hoje. Sem o incentivo deles, não poderia ter chegado aonde cheguei. Além desses, agradeço de coração ao meu tio Gilberto e à minha falecida avó Genny. Foram pessoas que me deram suporte, especialmente financeiro, durante todo o tempo em que trabalhei não apenas dessa dissertação, mas nos cursos de mestrado e de graduação na UnB. Em segundo lugar, gostaria de agradecer aos meus amigos, colegas e conhecidos de maneira generalizada. Todos, em algum momento, me auxiliaram – nem que fosse me incentivando e me dizendo “termine logo esta dissertação para que você possa sair conosco!”. De maneira especial, gostaria de citar as seguintes pessoas: Thales, Daniel, Mary, Claus, Breno, Henrique, Guilherme, Marco Aurélio, Daniel Longo, Everaldo. José Manuel, Olga e Marina “A Chefe”. Àqueles que não foram nominalmente citados, não se preocupem: vocês estão em algum lugar da minha memória. Em terceiro lugar, agradeço aos professores que tive no Instituto de Ciência Política, tanto na graduação quanto no mestrado. O agradecimento se dirige a todos, alguns mais, outros menos. Cito nominalmente três que me auxiliaram bastante neste período: professor Paulo Afonso, professor Argemiro Procópio e professor Paulo Kramer. A estes, um “muito obrigado” em especial. Por último, mas não menos importante, gostaria de agradecer à pessoa que me fez chegar a este ponto, academicamente falando: professor Terrie Groth. Agradeço de coração pela dedicação, pela paciência, pelas instruções e pela orientação durante estes sete anos que passei no Instituto de Ciência Política. São agradecimentos especiais a alguém que se tornou algo que, para mim, é muito mais importante do que ser professor ou do que ser orientador: se tornou um amigo, um amigo por quem tenho respeito e muita admiração. Como é de praxe, gostaria de dizer que todos e quaisquer erros que estiverem presentes neste trabalho são de minha total responsabilidade. Nenhuma das pessoas citadas acima, e nenhuma das não-citadas, são responsáveis por erros, omissões ou falhas.

Resumo Este trabalho tem por objetivo confirmar a existência de dois paradigmas na ciência política contemporânea, chamados de paradigma dominante, relacionado ao modelo pluralista e liberal de organização estatal, e de paradigma alternativo, relacionado ao modelo marxista de organização estatal. Além disso, mostraremos como, dentro de cada um desses paradigmas, as teorias políticas contemporâneas analisam os conceitos de estado e de democracia. Pretendemos mostrar também que as teorias políticas do paradigma dominante não estudam o estado como ator político, estudando, em seu lugar, o regime democrático estabelecido nos países que passaram por processos de redemocratização nas décadas de 1980 e 1990, com ênfase principal nos países da América Latina e do Leste Europeu. Artigos acadêmicos publicados em revistas especializadas compõem a principal fonte a ser utilizada nesta pesquisa. Além desses artigos, trabalharemos também com as teorias políticas que deram origem aos dois paradigmas da atualidade.

Introdução O foco desta pesquisa é direcionado à análise dos conceitos de estado e de democracia na ciência política contemporânea e também do relacionamento entre estes mesmos conceitos. Ênfase especial será dada à forma como tais conceitos são utilizados na análise dos processos de redemocratização ocorridos no mundo nos últimos vinte e cinco anos, com destaque para a América Latina. O relacionamento entre teorias de estado e teorias de democracia será analisado primordialmente com base nas ideias de Chilcote (1997), ou seja, por meio dos conceitos de paradigma dominante e de paradigma alternativo da ciência política contemporânea1. Esta tarefa será norteada por três questionamentos principais. O primeiro deles refere-se ao fato de que o processo de democratização é apresentado, de acordo com o paradigma dominante, em duas fases: a primeira é chamada de transição, onde os principais arranjos políticos são feitos em direção a um regime democrático, e a segunda é chamada de consolidação, quando o regime democrático, já instalado, deve ser fortalecido. No entanto, os diversos problemas existentes na fase de transição simplesmente desaparecem durante a fase de consolidação, ou seja, considera-se que o regime democrático já está instalado e que daí em diante basta apenas aprofundar e/ou fortalecer as novas instituições democráticas para que o novo regime se consolide. A segunda questão é decorrente da primeira: a maneira descrita acima de enxergar os processos de democratização se baseia em teorias de democracia e de estado desenvolvidas no âmbito do paradigma dominante da ciência política. No entanto, é perfeitamente viável o seguinte questionamento: como o paradigma alternativo da ciência política enxerga o estado, a democracia e os próprios processos de redemocratização? Quais as diferenças e, consequentemente, quais as novas perspectivas abertas para uma nova aplicação prática da democracia e para uma nova definição do papel do estado caso tais conceitos sejam analisados de acordo com outras teorias que não as dominantes? O terceiro questionamento surge como uma síntese dos dois anteriores: qual o enfoque dado às teorias de estado e às teorias de democracia pelos dois paradigmas da ciência política contemporânea? Caso o processo de democratização de determinado país seja analisado por meio destes dois paradigmas, quais serão os resultados obtidos? Da mesma maneira, quais as relações existentes entre as teorias de estado e as teorias de democracia de acordo com o paradigma dominante e de acordo com o paradigma alternativo? E, por fim, o que leva a ciência política contemporânea a

analisar os processos de redemocratização – e os próprios conceitos de democracia e de estado – com base majoritariamente nas teorias englobadas pelo paradigma dominante da ciência política?

Formulação do problema Nos últimos 25 anos do século XX, muito se falou sobre o tema “democratização”. A chamada “terceira onda”, com processos de transição democrática saindo de regimes fechados2 em direção a regimes democráticos, teve seu início em 1974, no sul da Europa – em Portugal, na Grécia e na Espanha; posteriormente, principalmente na primeira metade da década de 1980, tais processos aconteceram também na América Latina, e ao final dos anos 1980 a onda democratizante chegou aos países do Leste Europeu e à então União Soviética. Diversos autores, tais como O’Donnell (1982), Reis F (1988), Przeworski (1994), Huntington (1994) e Linz & Stepan (1996), dentre muitos outros, se dedicaram a estudar os processos de democratização acontecidos neste período. Alguns destes trabalhos se focalizaram na América Latina e, mais especificamente, no Brasil; outros trabalharam de forma comparativa as transições democráticas ocorridas nestes três blocos citados anteriormente. Obviamente, a pesquisa na área de democratização não está restrita aos livros publicados; diversos artigos sobre o tema, publicados em revistas acadêmicas, também foram e são continuamente escritos. A título de exemplo, uma rápida pesquisa de artigos por assunto no site SciELO Brasil3 utilizando a palavra-chave democracia retornou um total de 72 artigos; utilizando-se o termo em inglês, democracy, a pesquisa retornou um total de 73 artigos disponíveis para leitura4. Há também disponível uma grande quantidade de artigos relacionados a questões teóricas sobre o estado e sobre a democracia no site Periódicos da Capes5, onde é possível ter acesso a muitas revistas acadêmicas especializadas no assunto. Ao se fazer a leitura inicial dos principais livros e de muitos dos artigos obtidos nos dois sites anteriormente citados sobre os temas democracia, democratização e estado, e tendo-se em mente os objetivos desta pesquisa já citados anteriormente, é possível definir duas áreas principais nas quais estes textos se incluem: 1. Textos que ou buscam a aplicação e o aprofundamento do modelo neoliberal como forma de solucionar os problemas da democracia contemporânea (Tebble 2003), ou propõem a melhoria da democracia dentro do âmbito da democracia liberal atualmente existente. Neste tipo incluem-se tanto artigos que aceitam o liberalismo político e propõem seu aprofundamento para solucionar os

problemas da democracia quanto artigos que criticam o sistema atual da democracia liberal, mas propõem soluções tendo como base este mesmo sistema (Stephens 1988, Collier & Levitsky 1996, López 1992, Payne 1992, Buchanan 1991, Conaghan & Espinal 1990, Helmke 2003, Coppedge 2002, Durán 2000, Zielinski 1999, Shin & Lee 2003, Wantchekon 2004, Pevehouse 2002, Inglehart 2003, Bowler 2002, Feng 1997, Panizza 2000, Santos F 2000, O’Donnell 1988a; 1992; 1993, Inoguchi & Bacon 2003, O’Neill 2000, Arturi 2001, Diniz 2001, Monclaire 2001, Guildry & Sawyer 2003, dentre muitos outros); 2. Textos que apresentam soluções para os problemas atuais do estado e da democracia baseadas em alterações das relações sociais, ou seja, textos que criticam a organização política atual da sociedade e que buscam soluções para tais problemas em outras alternativas, ou ainda textos que buscam uma nova ótica no estudo das relações entre estado e democracia sem se basearem nos métodos do paradigma dominante (Chambers 2004, Borón 2003, Stamatis 2001, Vitullo 2001, Tedesco 2004, Bieler & Morton 2003). Como conclusão que tiramos a partir dessa leitura de tais artigos, temos a confirmação da proposta feita por Chilcote (1978, 1997) de que existem atualmente na ciência política contemporânea dois paradigmas que orientam o pensamento teórico – o paradigma dominante e o paradigma alternativo da ciência política. O paradigma dominante é associado ao liberalismo e ao pluralismo, e enfatiza o aspecto comportamental da análise política. Seria o que Chilcote (1997, 88) chama de “tradição positiva, fortemente ligada ao pensamento liberal, com uma grande influência do empirismo lógico em seus estudos”. O paradigma alternativo na ciência política, ligado ao pensamento marxista, considera não simplesmente os aspectos empíricos e quantitativamente observáveis dos acontecimentos políticos: esse paradigma se baseia em análises pós-comportamentalistas do acontecimento político, ou seja, não utiliza apenas cálculos matemáticos para se criar uma teoria política, já que “[...] a mente é ativa, não passiva, e seleciona e dá forma à experiência de acordo com sua atenção prioritária. [...] Visões de mundo são temporais e relativas, não absolutas” (Chilcote 1997, 95). Usando este conceito de paradigmas, fica claro que os textos do item um – a maioria absoluta – incluem-se no paradigma dominante, enquanto os textos do item dois incluem-se no paradigma alternativo. Para além da inicial confirmação da existência dos dois paradigmas, o que se percebe por meio da análise e leitura de tais artigos é que, nos últimos 25 anos, e especialmente nos últimos 10 anos, período no qual a maioria dos artigos foi publicada e que coincide com o fim do chamado “socialismo real”, o pensamento liberal não apenas manteve como também aprofundou suas raízes no campo teórico e acadêmico. Dentro desse paradigma, a maioria dos artigos é escrita com o objetivo de confirmar o fato de que a democracia política é a única alternativa existente; que o

capitalismo é o único sistema econômico possível; que o relacionamento desigual entre democracia e capitalismo é algo inevitável; e que os eventuais problemas existentes nas democracias atuais devem ser resolvidos com as ferramentas disponibilizadas por meio deste mesmo modelo de democracia liberal. Há certa contestação ao formalismo democrático, mas em geral tal contestação é feita com a utilização dos próprios mecanismos pluralistas, ou seja, se há problemas nas novas democracias, os mesmos devem ser resolvidos com a aplicação ainda mais incisiva dos preceitos pluralistas de igualdade política entre os cidadãos, e não com a busca de alguma outra alternativa política ou econômica. Inversamente proporcional ao grande número de artigos que defendem a democracia liberal, constata-se um reduzido número de textos que fazem análises sobre o estado. Este objeto de estudo da ciência política, talvez o mais importante, é simplesmente ignorado pela maioria das análises feitas em relação à democracia. Em outras palavras, verifica-se se a democracia é boa ou ruim, se ela ainda se encontra em fase de transição ou se já está consolidada, ou ainda se os pressupostos básicos da democracia existem em determinado país ou não, mas não se verifica qual o papel do estado como criador ou avalista desta mesma democracia. Mesmo quando se exige algo do estado, tais exigências são feitas tendo-se como limites aqueles impostos pelo sistema capitalista e pelas “regras do jogo” político e econômico (Inoguchi & Bacon 2003, Arturi 2001, Santos F 2000). O estado, quando analisado, é tomado como a entidade que irá dar garantias à democracia, desde que os aspectos políticos da mesma sejam garantidos; faz-se uma separação de aspectos econômicos, políticos e sociais, e conclui-se que, se há democracia política, determinado estado é automaticamente democrático, já que o mesmo permite eleições livres e regulares, com regras préestabelecidas e aceitas por todos os grupos que se dispõem a participar da competição política. Quando se fazem demandas de mais democracia ou participação, ambas são feitas no âmbito da política, ignorando-se questões econômicas e sociais (O’Neill 2000, Linde & Ekman 2003, Oliveira 2000). Esta é a base da teoria pluralista, que por sua vez serve como marco teórico para a grande maioria destes estudos: “para os pluralistas, o estado é neutro, um ‘programa vazio’, e ainda um servidor da cidadania – do eleitorado [...]” (Carnoy 1988, 54). Ou seja, não há como o estado ser dominado por uma elite política – refutando a ideia dos teóricos das elites – como também o estado não pode ser manipulado por uma elite econômica – refutando os argumentos marxistas. Por existirem diferentes grupos, todos teoricamente com o mesmo peso e poder político, nenhum destes grupos que formam a sociedade conseguirá sobrepor-se aos demais, já que as regras do jogo garantem a igualdade de condições a todos os grupos existentes nesta sociedade. Desta forma, a possibilidade de participação está aberta a todos os indivíduos e a todos os grupos, e o estado – que, por princípio, é neutro e não

beneficia nenhum destes grupos – será ocupado pelo(s) grupo(s) que se sair(em) vitorioso(s) após a competição política, sendo esta competição entendida aqui como eleições livres e regulares. Com as regras do jogo garantidas, não há porque se estudar o estado e suas implicações para com a sociedade, já que o mesmo nada mais é do que um “objeto” nas mãos do grupo político vencedor e, como todos os grupos podem ter acesso ao estado, se o grupo dominante não governar adequadamente, os demais grupos poderiam, por meio de eleições, removê-lo do poder. Após estas considerações, vemos que as análises feitas até o momento foram insuficientes para concretizar o que Borón (2003, 48) chama de “busca da boa sociedade”, que deveria ser o principal objetivo das análises políticas. Sem dúvida alguma que as análises feitas até agora são de fundamental importância para mostrar o quanto os países dos três blocos citados anteriormente avançaram em direção a regimes políticos democráticos. Por meio de tais análises formais, pôde-se fazer uma comparação entre os graus de participação política e de contestação pública ao regime antes e depois do processo de transição, ou seja, tais análises serviram para mostrar o grau de liberdade garantido à população. [...] Para uma grande parcela da população dos países que passaram por regimes militares a democracia é considerada não só como um regime desejável de articulação da vida política, mas também como o caminho mais eficaz, embora provavelmente lento, para assegurar sociedades mais justas e igualitárias (Silva Júnior 1998, 6). O problema, no entanto, é que as análises políticas feitas de acordo com o paradigma dominante não levam em consideração o relacionamento entre política, economia e sociedade, ou seja, partem do princípio de que todos são iguais politicamente e, portanto, os países são democráticos. Tal posição é sustentada devido à não necessidade de se estudar o estado, já que, como vimos anteriormente, este é autônomo para a teoria política dominante. Consequentemente, estuda-se como a democracia funciona (ou não funciona) nos países, mas não se estuda qual o papel ou função do estado na criação, consolidação e aprofundamento dessa mesma democracia. Em outras palavras, ignora-se o que o estado faz ou deixa de fazer, no que se refere à economia e à sociedade; o estado, quando incluído nas análises, é visto apenas em termos políticos, como o garantidor da igualdade política aos cidadãos.

Hipótese Considerando-se os fatos descritos anteriormente – quais sejam, o de que as análises políticas prendem-se muito a ideias pluralistas, que defendem uma democracia liberal

ou política, e o de que o estado não é mais, pelo menos para o paradigma dominante, um objeto de estudo da ciência política –, gostaríamos de propor a seguinte hipótese como norteadora da nossa pesquisa: se a teoria política contemporânea pensasse primeiramente o estado e depois a democracia, as análises dos processos de redemocratização deixariam de ser puramente formais, concentrando-se na redemocratização política destas sociedades, e incluiria questões sociais como problemas fundamentais a serem também resolvidos por tais processos de redemocratização, já que tais questões sociais, vistas pelo paradigma alternativo, são refletidas na política. Ou seja, considerar-se-ia que as desigualdades econômicosociais geram desigualdades políticas – proposição ignorada pelo paradigma dominante. Nessa direção, existem algumas ideias contrárias a essa dominação intelectual exercida pelos teóricos do paradigma dominante. Algumas vozes tentam desafiar tal paradigma da ciência política e fazem críticas a essa excessiva formalização das análises dos processos de democratização ocorridos nessas regiões. Da mesma maneira, há autores que acreditam ser necessário trazer o estado de volta para o âmbito da análise política, levando em consideração não apenas sua estrutura e sua atuação na sociedade, mas também a própria participação da população nas atividades que envolvem o estado. Uma voz que se levanta em direção oposta ao paradigma dominante é a de Atílio Borón (2003). O autor defende explicitamente que deixemos de lado os procedimentos meramente formais e quantitativos da análise política, que é dominante no pensamento da ciência política contemporânea, e nos voltemos ao que ele chama de “filosofia política”. Segundo Borón, em geral o termo “filosofia política” é tomado no sentido pejorativo, ou seja, são considerados filósofos – e talvez “inúteis” – aqueles que se preocupam com o que deveria ser e não com o que existe na realidade. No entanto, argumenta Borón, a filosofia política é mais do que necessária nos dias atuais, pois se os analistas políticos restringirem seus estudos ao que existe a realidade não será alterada, e portanto as Ciências Sociais de forma geral, e a ciência política em particular, tornar-se-ão disciplinas estéreis e inúteis. Borón dá o exemplo dos chamados “filósofos políticos”, citando Aristóteles, São Tomás de Aquino e Maquiavel, e pergunta: tais autores, por acaso, estavam destacados da sua realidade social? A resposta, negativa, mostra que é possível fazer análise política falando-se não apenas do que realmente existe – característica marcante do paradigma dominante da ciência política –, mas também fazendo propostas sobre o que deveria ser feito para se melhorar a sociedade atual. No âmbito destas ideias, Borón mostra também a atualidade da filosofia política marxista como uma forma de se alterar o modo de pensar dos cientistas políticos, com a consequente alteração nos resultados de seus estudos. Assim, analisando-se um processo de democratização tendo como base as

teorias do paradigma alternativo – ou, nos termos de Borón, utilizando-se da filosofia política marxista –, talvez tais processos pudessem ser mais bem estudados e entendidos, e talvez seja possível enxergar a transição para a democracia por outro prisma. Um exemplo de como o processo de transição democrática pode ser analisado por meio de teorias que se enquadram no paradigma alternativo da ciência política é dado por Groth (2003). O autor afirma que existem duas formas de se enxergar um processo de democratização: a primeira é por meio de um enfoque liberal e pluralista, que corresponde ao paradigma dominante e que enxerga o processo como a formulação de um novo consenso em relação às “regras do jogo”; a segunda, chamada de “popular”, baseia-se em uma visão sócio-econômica na qual resultados concretos para a maioria necessitada da população sejam produzidos. Nesta segunda visão, o autor argumenta que é necessária a mudança não apenas do regime, mas também do estado e do esquema de propriedade e de produção vigente na atual sociedade capitalista. Assim, os processos de democratização ocorridos principalmente na América Latina referem-se à transição do regime, e não a uma transição do estado – o que corresponderia, em termos gramscianos, à perda de hegemonia por parte da classe dominante em relação ao que Gramsci chamou de “sociedade civil”, e não a uma efetiva democratização do estado.

Relevância do estudo Na ciência política, assim em qualquer outra área das ciências humanas em geral, os avanços científicos são obtidos quando os pesquisadores debruçam-se sobre teorias passadas com o objetivo de analisar o presente e, caso seja necessário, alterar ou refutar tais teorias, agregando novo conhecimento ao já existente. Acreditamos, desta forma, estar dando uma contribuição para a área da teoria política contemporânea no que concerne às teorias sobre estado e sobre democracia e também aos processos de transição e consolidação da democracia. Conforme mostrado anteriormente, a ciência política contemporânea é ainda dominada por proposições teóricas que buscam explicar em termos formais os processos de democratização ocorridos nos últimos 25 anos do século XX. De maneira geral, é possível afirmar que as análises existentes verificam a presença de eleições e de instituições que permitam a participação e a contestação públicas; se tais itens existem, um país é democrático, e se não existem, a democracia ainda não está consolidada. Tais análises foram aparentemente confirmadas com o fim do bloco comunista, entre

1989-1991: a proposta de uma sociedade mais justa e igualitária sendo buscada por meios estatais foi descartada, visto que deixou de existir, e restaria à política apenas as funções de realizar eleições, permitindo a participação das pessoas no processo eleitoral, e de permitir a contestação pública aos governantes eleitos, contestação esta feita não apenas por meio de manifestações e atos públicos, mas principalmente pela retirada de tais governantes por meio das eleições. O fim prático desta alternativa ao sistema político e econômico dominante reforçou, nos trabalhos acadêmicos, a ideia de que tal sistema é efetivamente o único existente, o único possível (Fukuyama 1992). Percebe-se que a análise formal do processo político, que já vinha sendo desenvolvida deste a década de 1950, ganhou força como a única possibilidade existente, sendo cada vez mais reduzidos o número de estudos com base em teorias alternativas como o marxismo. No entanto, há uma série de questões, principalmente relacionadas à área de justiça social, que permanecem em aberto, pois não são estudadas pelos trabalhos apresentados de acordo com o paradigma dominante. Tais questões são geralmente ignoradas pela análise dominante, o que fica claro quando se considera que, de repente, um país em estudo saiu da fase de transição e passou para a fase de consolidação da democracia – e nesta passagem os inúmeros problemas existentes no primeiro momento, de transição, simplesmente não existem mais no segundo momento, de consolidação; ainda, tais estudos referem-se sempre à democracia política, e nada é dito sobre os problemas sociais ou econômicos enfrentados por esses novos regimes políticos e que influem decisivamente no resultado da democracia. Ao mesmo tempo, as teorias alternativas que estudam o processo político, atualmente esquecidas pela área acadêmica, se dedicaram não apenas à análise das questões sociais, mas também à proposição de maneiras adequadas para se solucionar tais questões. O resultado da aplicação prática de tais teorias é subjetivo, depende dos valores individuais, e não será objeto de estudo nesta pesquisa. Buscamos com este trabalho trazer à tona novas possibilidades de se enxergar o processo político atual; é mostrar que é possível fazer análise política utilizando-se outro ferramental que não o disponibilizado pela teoria política dominante; é discutir o por quê de as questões sociais, que influenciam fortemente as questões políticas, serem simplesmente ignoradas ao se estudar tais questões políticas de acordo com o paradigma dominante; é trazer de volta à ciência política a discussão das questões sociais, tendo como base uma nova maneira de pensar a própria ciência política, o estado, a democracia e, quem sabe, as nossas próprias sociedades. Pretendemos, assim, mostrar que há ideias úteis e interessantes fora do âmbito do paradigma dominante da ciência política contemporânea e que apenas com tais ideias

é possível atingir a justiça social. Desejamos apontar a existência de outras maneiras de se pensar as nossas sociedades, desejamos mostrar que há outras formas de se analisar a participação política dos cidadãos, que há outra maneira de se enxergar a política, que há uma outra forma de verificar quais as relações existentes entre estado e democracia na nossa sociedade contemporânea. Há uma lacuna nesta área do conhecimento, ou seja, pouquíssimos são os trabalhos que se baseiam em teorias alternativas da ciência política, e acreditamos que o nosso trabalho se encaixa nesta lacuna ao tentar mostrar que ela existe e que é possível fazer análise política por meio de teorias que não são consideradas dominantes no pensamento acadêmico atual. Por que o novo estado, agora democratizado – de acordo com os preceitos do paradigma dominante – se tornou incapaz de solucionar os problemas das sociedades contemporâneas nos países da América Latina? Em nível teórico, é possível afirmar que tal incapacidade decorre do fato de que o paradigma dominante da ciência política contemporânea define primeiramente o que é democracia e só depois define o que é o estado, isso quando o faz. Como consequência, os analistas políticos fazem suas análises baseados em definições formais de democracia, o que se reflete nas análises feitas sobre os processos de redemocratização ocorridos na América Latina e no Leste Europeu nos últimos 25 anos do século XX. Além disso, as análises são feitas com um enfoque predominantemente econômico em relação às transições, o que leva os analistas a subestimar ou, no mínimo, relegar a segundo plano os problemas políticos e sociais surgidos durante o processo de democratização. Como diz Tedesco (2004, 31), durante os anos 1970, o debate definia democracia como um conjunto de procedimentos políticos formais. A primeira onda do debate analisou a maneira pela qual transições políticas de regimes autoritários deveriam ocorrer, enfatizando atores tais como agências políticas, [...] construção de pactos e as estratégias das elites dirigentes. [...] Com a continuidade das transições, nos anos 1980 a atenção se voltou para os fatores econômicos e o papel da sociedade civil. Esta segunda fase do debate preocupava-se com o relacionamento entre democracia e reformas econômicas estruturais, e com o papel da sociedade civil no processo de democratização.6 No entanto, o resultado dessa ênfase na área econômica fez com que “[...] uma das principais fraquezas do estado democrático [tenha sido] a sua falta de habilidade em estabelecer igualdade frente à lei” (Tedesco 2004, 30, grifos no original). Como consequência, “[...] ao tentar isolar a implementação de reformas [econômicas das reformas políticas], os governos tenderam a tratar questões políticas, econômicas e sociais como compartimentos separados. A classe política tentou ignorar as consequências políticas e sociais das reformas econômicas” (Tedesco 2004, 32).

Ao separar questões políticas, econômicas e sociais, ignorou-se a influência das questões econômicas nas outras duas esferas. Consequentemente, as análises feitas partem do pressuposto de que tais esferas não são conectadas umas com as outras, e dessa forma seria perfeitamente possível considerar um país politicamente democrático ainda que com grandes desigualdades sociais. No entanto, caso haja um resgate do estado como ator fundamental da política – e que, obviamente, deve ser estudado – e caso se defina a democracia a partir do estado – e não antes, como acontece atualmente –, talvez seja possível evitar a “[...] perda de relevância da reflexão teórica, [o] crescente distanciamento da realidade política [e a] esterilidade propositiva” que caracterizam a ciência política contemporânea, como resultado da “‘colonização’ de uma disciplina por outra” – no caso, a “colonização” da ciência política pela metodologia da economia neoclássica, nas palavras de Borón (2003, 48). Como nos diz Tedesco (2004, 35) mais uma vez: É necessário mover a atenção do debate sobre a democracia em direção ao estado, já que este último conceito guarda em si mesmo, mais profundamente, as relações sociais em um dado período e território [...]; a democracia se torna sustentável quando [...] está inserida no funcionamento do próprio estado [...].

Metodologia Segundo Vergara (2005), a pesquisa científica pode ser classificada de acordo com dois aspectos: quanto aos fins e quanto aos meios. No que diz respeito aos fins, a pesquisa ora em andamento será eminentemente descritiva, e em relação aos meios o método utilizado será o de pesquisa bibliográfica. Na pesquisa descritiva, o pesquisador “[...] descreve o objeto de pesquisa. Procura descobrir a frequência com que um fenômeno ocorre, sua natureza, característica, causas, relações e conexões com outros fenômenos” (Barros & Lehfeld 2000, 70). O objetivo da pesquisa será descrever a situação em que se encontra o debate sobre a relação entre os conceitos de estado e de democracia na teoria política contemporânea. Como iremos trabalhar eminentemente com o estudo de tais teorias, o meio utilizado será a pesquisa bibliográfica, por meio de revisão bibliográfica dos principais autores relacionados com os temas apresentados anteriormente. “A pesquisa bibliográfica é a que se efetua tentando-se resolver um problema ou adquirir conhecimentos a partir do emprego predominante de informações advindas de material gráfico, sonoro ou informatizado” (Barros & Lehfeld 2000, 70). Esta pesquisa procurará explicar um problema a partir de referências teóricas publicadas

em documentos, tais como livros e artigos. Buscaremos conhecer e analisar as contribuições científicas existentes sobre as teorias políticas contemporâneas, sobre o estado e sobre a democracia. Assim, serão observados, registrados, analisados e correlacionados fatos ou fenômenos sem que variáveis sejam diretamente manipuladas. “Em se tratando de pesquisa bibliográfica típica de estudos mais descritivos, reflexivos, interpretativos e críticos, [a determinação de hipóteses e de variáveis] pode ceder lugar ao levantamento e à revisão de literatura que, sem dúvida, permitirá ao pesquisador a fundamentação teórica do estudo” (Barros & Lehfeld 2000, 72). Por meio das revisões bibliográficas feitas anteriormente, procuraremos descobrir a natureza e as características das teorias políticas contemporâneas tanto do paradigma dominante quanto do paradigma alternativo da ciência política atual. Considerando-se o fato de que a pesquisa será teórica, não serão conduzidas entrevistas para a realização do projeto. No decorrer da pesquisa será adotado o método hipotético-dedutivo. A dedução consiste em um recurso metodológico em que a racionalização ou combinação de ideias em sentido interpretativo vale mais que a experimentação de caso por caso. [...] Pode-se dizer que [a dedução] é o raciocínio que caminha do geral para o particular. [...] É importante entender que no modelo dedutivo a necessidade de explicação não reside nas premissas, mas na relação entre as premissas e a conclusão (Barros & Lehfeld 2000, 63-64). De acordo com Popper (citado por Viegas 1999, 130), o método hipotético-dedutivo inicia-se pela construção de um modelo, ou uma representação abstrata da realidade, com a indicação das relações entre as variáveis selecionadas, visando-se: 1) Representar a realidade de maneira esquemática; 2) Isolar as relações entre as variáveis; e 3) Prever o comportamento dessas variáveis. A técnica de utilização do processo popperiano implica na dedução e, posteriormente, na confirmação ou falseamento da hipótese. Neste método, parte-se do geral para o particular, iniciandose de princípios tidos como verdades absolutas para a obtenção de soluções formais. O protótipo do raciocínio dedutivo é o silogismo, que, a partir de duas proposições chamadas premissas, retira uma terceira, nelas logicamente implicadas, chamada conclusão. É possível também fazer mais duas definições acerca de nossa pesquisa. Como diz Hart (2002, 46, grifos no original), a pesquisa pode ser caracterizada como uma “avaliação formativa”, já que pretende [...] trazer melhorias a um programa, política ou conjunto de atividades

específico, em um período de tempo e em um lugar específico, com um grupo específico. O objetivo é focalizar a pesquisa, usando o método de estudo de caso e evidência qualitativa. As questões são frequentemente focalizadas e específicas. É possível também considerar a pesquisa como uma avaliação iluminadora, [onde o objetivo é] [...] tornar comportamentos ou atitudes-chave em um dado contexto visíveis para contemplação. O objetivo é esclarecer policy makers ou praticantes de política à dinâmica dos comportamentos em situações comparáveis a fim de que tais comportamentos possam ser compreendidos e solucionados de maneira mais apropriada. Uma escala da evidência, frequentemente qualitativa, é empregada. Ainda no que diz respeito à metodologia, seria possível fazer um corte temporal, delimitando um período inicial e um período final, bem como um corte espacial, delimitando quais revistas, de quais países, teriam seu conteúdo analisado. No entanto, a pesquisa não é um estudo de caso, ou seja, não pretendemos analisar revistas acadêmicas específicas e verificar qual o conteúdo ali publicado sobre os conceitos de estado e de democracia. Nosso objetivo é fazer um levantamento generalizado sobre o assunto, e foi por esse motivo que decidimos fazer a pesquisa de maneira aberta, ou seja, sem focalizar ou delimitar o estudo a uma revista, época ou país. Como resultado, tivemos acesso a aproximadamente 130 artigos dos mais variados tamanhos, locais de origem e orientação teórico-ideológica. Graças aos portais SciELO Brasil e Periódicos da Capes, já referidos anteriormente, pudemos coletar artigos de revistas nacionais e estrangeiras. Dentre as primeiras destacam-se a Revista Brasileira de Ciências Sociais e a revista Dados. No que diz respeito às revistas estrangeiras, como era de se esperar a maioria tem sua origem nos Estados Unidos ou no Reino Unido, com destaque para as revistas American Political Science Review e para o Journal of Latin American Studies. Encontramos, no entanto, artigos estrangeiros com origens tão diversas quanto a Argentina, China, Rússia, Tailândia e Japão, dentre outros. Por limitações linguísticas, restringimo-nos à leitura de artigos em português, inglês e espanhol.

Estrutura da dissertação A dissertação será composta de três capítulos principais, que se seguirão a essa introdução. Comporá também a dissertação uma conclusão ao final dos três capítulos, além das referências bibliográficas.

No primeiro capítulo, iremos apresentar as teorias do paradigma dominante e do paradigma alternativo da ciência política sobre estado e sobre democracia. Nenhuma análise será feita nesta parte do trabalho, já que o objetivo é simplesmente o de descrever as bases sobre as quais a teoria política do século XX se desenvolveu. No Capítulo Dois serão apresentadas as ideias de alguns dos artigos citados anteriormente. O objetivo será mostrar um pouco sobre o que foi escrito a respeito dos conceitos de estado e de democracia nos últimos quinze anos, separando os artigos de acordo com o paradigma ao qual fazem parte. O Capítulo Três consistirá em uma análise sobre a ênfase que é dada ao conceito de democracia, por parte dos autores do paradigma dominante. Além disso, pretendemos mostrar que tal ênfase é prejudicial para se entender o estado. Tentaremos também mostrar que, com o auxílio das teorias do paradigma alternativo, é possível alterar a ordem de análise de tais conceitos e as conclusões às quais a mesma chega. Por fim, na conclusão do trabalho o objetivo será destacar alguns pontos que podem servir de base para estudos futuros sobre o relacionamento das teorias de democracia e de estado com os dois conceitos de paradigma que compõem a ciência política contemporânea. __________ Notas: 1 Uma explicação detalhada sobre os paradigmas será feita no tópico “Formulação do

problema”, a seguir. 2 Chamaremos de “regimes fechados” tanto os regimes autoritários quanto os regimes

totalitários. 3

“O objetivo deste site é implementar uma biblioteca eletrônica que possa proporcionar um amplo acesso a coleções de periódicos como um todo, aos fascículos de cada título de periódico, assim como aos textos completos dos artigos. [...] O site da SciELO é parte do Projeto FAPESP/BIREME/CNPq e um dos produtos da aplicação da metodologia para preparação de publicações eletrônicas em desenvolvimento, especialmente o módulo de interface Internet”. Descrição obtida no próprio site (www.scielo.br). 4 Pesquisa realizada no dia 11 de abril de 2004.

5 “O portal de periódicos da CAPES oferece acesso aos textos completos de artigos de

mais de 7.200 revistas internacionais, nacionais e estrangeiras, e a 80 bases de dados com resumos de documentos em todas as áreas do conhecimento. Inclui também uma seleção de importantes fontes de informação acadêmica com acesso gratuito na internet”. Descrição obtida no próprio site (www.periodicos.capes.gov.br). 6 Nesta citação e nas demais citações cujo original está em outra língua, a tradução foi

feita pelo autor dessa dissertação.

Teorias do paradigma dominante e do paradigma alternativo da ciência política contemporânea sobre estado e sobre democracia O surgimento da ciência política contemporânea De acordo com Schwartzenberg (1979, 22), a ciência política considerada como “contemporânea” surge por volta de 1890, com a criação de diversos departamentos de ciência política nas universidades americanas. O autor reconhece que o estudo da política como tal foi iniciado na Grécia antiga, com Platão e Aristóteles, e que esse tipo de estudo continuou se desenvolvendo durante toda a história da humanidade até chegar aos dias atuais. Entretanto, é apenas no final do século XIX e início do século XX que se torna possível fazer uma diferenciação entre o que passa a ser chamado de filosofia política – ou o estudo do que deveria ser – e o que se torna conhecido como ciência política (ou ainda sociologia política) – o estudo do que realmente é1. Com a ciência política contemporânea, passa-se a tentar analisar empiricamente os fatos e as situações políticas, dando maior ênfase aos processos que estão inseridos no desenrolar dos acontecimentos políticos ao invés da simples descrição das estruturas políticas existentes (Schwartzenberg 1979, 24). Como conseqüência dessa mudança de enfoque, passou-se a dar mais importância ao comportamento político dos diversos atores envolvidos no processo político. Ao mesmo tempo, objetivando dar à ciência política ares de ciência “verdadeira”, buscou-se a aplicação de métodos matemáticos e estatísticos aos acontecimentos políticos, com o objetivo de quantificá- los e analisálos matematicamente. É o início da criação e definição do paradigma dominante, ainda que, como veremos, o precursor de tal paradigma seja Max Weber. Schwartzenberg não fala, em nenhum momento, da contribuição dada por Marx e aqueles que o seguiram à ciência política contemporânea. O resultado foi o surgimento da corrente behaviorista (comportamentalista), ou seja, que analisava o comportamento político por meio de trabalhos estatísticos e matemáticos. “A abordagem behaviorista visa, portanto, a observação sistemática do comportamento. De ora em diante, a análise concentra-se no ‘comportamento

observável’ para descobrir uniformidades e regularidades nesse comportamento real, elaborar modelos de comportamento, generalizações e, em certo prazo, formular teorias” (Schwartzenberg 1979, 25). As principais áreas de estudo da corrente comportamentalista são aquelas relacionadas a eleições e ao voto, à participação eleitoral e à opinião pública, pois estas áreas possuem dados numéricos empíricos e quantificáveis. Surgiram muitas pesquisas principalmente sobre partidos políticos e grupos de interesses. Porém, o excesso no uso de métodos quantitativos na ciência política traz críticas a esses mesmos métodos. “São os assuntos que se adaptam aos métodos, e não o inverso. (...) O exagerado pendor pelas matemáticas e pelas técnicas dos behavioral scientists tende a desequilibrar a disciplina, a reduzir a realidade social ao que é mensurável (...)” (Schwartzenberg 1979, 28, grifos no original), ou seja, a ciência política passa a ser feita tendo em vista os métodos disponíveis para analisá-la, e não mais se procura o método correto para o tipo de pesquisa que se pretende fazer. Outra crítica feita ao uso indiscriminado dos métodos quantitativos na ciência política contemporânea é que esse uso trouxe resultados abundantes, mas que não serviam para muita coisa porque não mais se investiu em pesquisas teóricas sobre a política – não havia teorias políticas que sustentassem os resultados matemáticos da análise comportamental. Além disso, a ampliação do leque de assuntos estudados pela ciência política após o final da Segunda Guerra Mundial fez com que novos métodos de pesquisa em ciência política se tornassem necessários e surgissem a partir da década de 1960. Até certo ponto, a utilização pura e simples de métodos quantitativos na ciência política foi reduzida, e houve um certo retorno à utilização de conceitos de história política, filosofia e direito na definição dos modelos políticos formais. Assim, em um primeiro momento buscava-se de todas as formas deixar de lado a filosofia política, considerada como extremamente descritiva e, principalmente, valorativa, ou seja, contendo grande apelo sentimental de quem escrevia os textos. Iniciou-se, então, o uso de ferramentas matemáticas na ciência política. Isso era visto como uma forma de aproximar a ciência política, uma ciência social e/ou humana, das ciências naturais, estas sim consideradas “ciência” no verdadeiro sentido da palavra. Ora, utilizando-se métodos matemáticos, quantificáveis, reproduzíveis em qualquer lugar, a ciência política deixaria de ser a filosofia política de outrora e se tornaria uma ciência verdadeira, isenta de valores pessoais dos pesquisadores, e produziria resultados concretos, baseados no que realmente acontecia no âmbito político, e não mais se referindo ao utópico, ao que deveria ser. Entretanto, passou-se cada vez mais a buscar, com os métodos quantitativos, soluções para problemas que nem mesmo existiam. Não se estudava mais o evento em si, de acordo com a metodologia existente; ao contrário, era a metodologia existente que

definia qual seria o objeto de estudo. É claro que o resultado para esse tipo de pesquisa não poderia ser outro que não resultados abundantes, mas sem muito conteúdo. Além disso, houve a descaracterização da ciência política como ciência devido à associação de pesquisadores com pesquisas governamentais, impossibilitando a isenção total dos interesses no resultado das pesquisas. Verificouse, desta forma, a necessidade de se retornar à ciência política histórica, filosófica, com o objetivo de embasar com teorias políticas os resultados adquiridos com o uso dos métodos quantitativos. Além disso, foi necessário se buscar um certo distanciamento entre os interesses dos financiadores das pesquisas políticas e os resultados das mesmas, ainda que isso não tenha sido completamente atingido. No entanto, Borón (2003, 39-47) afirma que esse retorno recente à filosofia política não é verdadeiro, já que os atuais filósofos políticos estariam mais preocupados em justificar a realidade atual ao invés de fazer uma crítica à mesma com o uso da filosofia.

Os paradigmas da ciência política contemporânea Por meio do exposto anteriormente, nota-se a existência de paradigmas difundidos na ciência política contemporânea por duas principais diferentes escolas de pensamento. De acordo com Chilcote (1978, 56; 1997, 84), “(...) um paradigma é a perspectiva de mundo própria de uma comunidade científica, seu conjunto de crenças e de compromissos – conceituais, teóricos, metodológicos e instrumentais. Um paradigma guia a seleção de problemas, a avaliação dos dados e a defesa teórica feitas por uma comunidade científica”. Dentro desta perspectiva, a ciência política é dividida em dois grandes paradigmas, baseando-se respectivamente em idéias comportamentalistas e idéias historicistas: o paradigma dominante e o paradigma alternativo da ciência política (Chilcote 1978, 1997). O primeiro paradigma, considerado o paradigma dominante na ciência política, enfatiza o aspecto comportamental da análise política, incluindo-se aí a utilização de métodos quantitativos. Seria o que Chilcote (1978, 56) chama de “tradição positiva”, fortemente ligada ao pensamento liberal e às tradições estabelecidas no século XIX pelo empirismo inglês clássico de David Hume e pelos princípios positivistas de Auguste Comte, com grande influência do empirismo lógico em seus estudos. “De acordo com estas tradições, os princípios científicos são baseados em experiências sensoriais independentes de tempo, lugar e circunstância. Generalizações sobre o mundo externo são significantes apenas se elas forem baseadas na experiência prática”. A análise política abstrata tem seu conteúdo separado da teoria política, e os procedimentos quantitativos, com testes rigorosos, tornam-se a única maneira de sistematizar o estudo do comportamento social (Chilcote 1978, 56); as generalizações

sobre o mundo externo só são significativas se são construídas ou testadas a partir da matéria bruta da experiência. “O conhecimento baseado na experiência é o objetivo. Não se pode saber o que não se pode ver, tocar ou ouvir” (Chilcote 1997, 88). É interessante notar que o modo de pensamento do paradigma dominante – o positivismo – surgiu como uma reação ao historicismo, base do paradigma alternativo. O segundo paradigma, chamado por Chilcote de paradigma alternativo na ciência política, considera não simplesmente os aspectos empíricos e quantitativamente observáveis dos acontecimentos políticos. “O historicismo assume a posição de que a ciência somente pode ser entendida em termos da história (...)” (Chilcote 1997, 102). Este paradigma, ligado ao pensamento marxista, se baseia em análises póscomportamentalistas do acontecimento político, ou seja, não utiliza apenas cálculos matemáticos para se encontrar uma teoria política, já que (...) dados baseados em sensações não são adquiridos em situações sem inclinações. A mente é ativa, não passiva, e seleciona e dá forma à experiência de acordo com sua atenção prioritária. Não se pode determinar se a fonte de experiência corresponde à perspectiva do mundo objetivo. (...) Existe uma variedade de visões, não uma única visão, do mundo objetivo. (...) Visões de mundo são temporais e relativas, não absolutas (Chilcote 1997, 95).

Chilcote identifica também os autores que chama de “precursores” de cada um destes paradigmas da ciência política contemporânea. Para o paradigma dominante, Chilcote (1997, 92) identifica Max Weber: “(...) sua preocupação com os estágios de desenvolvimento e a racionalização da atividade social, o seu foco sobre os grupos que competem pelo poder e a sua percepção dos tipos ideais de autoridade serviram como um dos fundamentos intelectuais da ciência social contemporânea e contribuíram substancialmente para o paradigma dominante da política contemporânea”. Já para o paradigma alternativo, Chilcote define Karl Marx como seu precursor: “(...) o historicismo nasceu do debate acadêmico alemão no final do século dezenove. Era adotado por Hegel, Marx e outros” (1997, 87). “O historicismo assume a posição de que a ciência somente pode ser entendida em termos da história (...) e o paradigma alternativo retira suas suposições do pensamento marxista” (1997, 102).

O desenvolvimento do paradigma dominante da ciência política contemporânea Pretendemos agora fazer uma breve análise sobre as principais características do

paradigma dominante. Faremos uma exposição sobre Max Weber e seus principais construtos teóricos. Posteriormente, iremos mostrar os resultados da construção acadêmica de Weber concretizados nas teorias pluralistas e de escolha racional. Não iremos trabalhar nesta pesquisa com as teorias de sistemas e institucionalista, as quais também fazem parte do paradigma dominante.

Weber: precursor do paradigma dominante da ciência política contemporânea Max Weber concebeu a sociologia como uma ciência compreensiva da ação social. Em seu foco analítico nos atores humanos individuais, ele diferiu de muitos dos seus predecessores, cuja sociologia era concebida em termos sócio-estruturais. O foco de Weber estava nos significados subjetivos que os atores humanos anexam às suas ações nas suas mútuas orientações dentro de contatos sócio-históricos específicos. Weber foi o criador dos “tipos ideais”. Ele fez isto porque o cientista poderia se “perder” em seu trabalho. Por exemplo, quando o conceito científico é muito geral, o cientista provavelmente irá esquecer pontos fundamentais e intrínsecos àquele conceito. Por outro lado, se ele usa a conceituação tradicional dos historiadores e particulariza o fenômeno em pauta, o cientista não dá espaço para a comparação com outros fenômenos correlatos. Daí a utilização de “tipos ideais”. Um tipo ideal é uma construção analítica que serve ao investigador como uma ferramenta de mensuração para encontrar similaridades, bem como desvios, em casos concretos. Ele fornece o método básico para um estudo comparativo. Não se espera que um tipo ideal baseie-se em valores morais, e Weber não os criou baseando-se em médias estatísticas. O tipo ideal envolve ações típicas de conduta relacionadas a determinado assunto, e ele nunca corresponde à realidade concreta: está sempre um passo adiante. O tipo ideal é composto por certos elementos da realidade e forma um todo preciso e coerente, que não pode ser encontrado como tal na realidade. Os tipos ideais permitem aos pesquisadores construírem hipóteses, ligando-as com as condições que colocaram o fenômeno ou o evento em evidência, ou com as conseqüências que seguem o seu surgimento. Os três tipos ideais de Weber distinguem-se pelos níveis de abstração. Primeiro estão os tipos ideais baseados em particularidades históricas, como as “cidades ocidentais”, “a ética protestante” ou o “capitalismo moderno”. Refere-se a fenômenos que aparecem apenas em períodos históricos específicos e em áreas culturais particulares. O segundo tipo envolve elementos abstratos da realidade social, como “burocracia” ou “feudalismo” – encontrados em contextos históricos e culturais. Por último, há um terceiro tipo ideal, que são as reconstruções racionais de um tipo particular de

comportamento. Todas as proposições na teoria econômica são, para Weber, deste tipo. Weber distinguiu quatro grandes tipos ideais de ação social: a ação racional orientada a fins; a ação racional orientada por valores; ações com motivação emocional; e, por último, ações realizadas tendo por base a tradição. Estes tipos de ação social permitiram que Weber fizesse distinções tipológicas sistemáticas, como por exemplo a distinção entre os tipos de autoridade. Além disso, serviram também como base para a investigação weberiana do curso do desenvolvimento ocidental em uma perspectiva histórica, com um tipo de autoridade sucedendo-se ao outro. A conclusão de Weber é que a sociedade ocidental, que era seu foco de estudo, realiza ações racionais orientadas a fins, e que esta mesma civilização já passou pelos outros “três estágios”: tradição, emoções e racionalidade orientada por valores. Para Weber, seja na política, na economia ou até mesmo nas relações pessoais, a aplicação eficiente dos meios objetivando algum fim tornou- se predominante e substituiu outras formas de ação social. Weber, entretanto, não analisou a história de maneira materialista ou idealista. A última unidade de análise weberiana continua sendo o agente concreto, e não suas idéias. Conceitos como “estado”, “associação”, “feudalismo” e outros designam certas categorias da interação humana. Assim, é tarefa da sociologia reduzir esses conceitos a ações “compreensíveis”, que sejam, sem exceção, ações com a participação individual dos homens. Weber rejeitava tanto os historicistas quanto os positivistas. Contra estes, Weber argumentou que os homens, diferentemente dos objetos, podem ser observados não só pelo seu comportamento, mas também por motivações internas; e, contra aqueles, Weber disse que o método científico, seja o objeto de estudo os homens ou objetos, sempre passa pela abstração e pela generalização. Um cientista social dificilmente irá realizar algum trabalho sem ser influenciado pelos seus próprios valores. Weber argumenta, entretanto, que tais valores devem ser os do cientista, e não os do cidadão comum. Além disto, o cientista pode avaliar as conseqüências prováveis do curso da ação, mas não deve fazer julgamento de valor. Weber acredita na casualidade sociológica e histórica, mas tal casualidade é expressa em termos de probabilidade. Tal probabilidade, entretanto, não possui nada em comum com a “vontade própria” ou com a impossibilidade de previsão das ações humanas: ela deriva dos resultados das ações racionalmente tomadas pelos homens. Esse mesmo tipo de probabilidade é usado nas definições criadas por Weber: ela é definida por expectativas normais e racionais, que teoricamente seriam tomadas pelos

homens. É importante notar que há, para Weber, uma diferença entre a casualidade sociológica e a casualidade histórica. No primeiro caso, é assumido o estabelecimento de uma relação regular entre A e B, não do tipo “A torna B impossível”, e sim do tipo “A é mais ou menos favorável do que B”. Já a casualidade histórica determina as circunstâncias únicas que colaboraram com o surgimento de um evento. É importante essa divisão porque, por exemplo, a casualidade histórica perguntará “Quais as causas da revolução bolchevique?”, enquanto que a casualidade sociológica envolve questões sobre a economia, a demografia, ou até causas sociais específicas a todas as revoluções ou a um tipo ideal de revolução. As questões para causas históricas podem surgir por meio dos “experimentos mentais”, como Weber chamava. É algo do tipo “O que teria acontecido se ...?”. As casualidades sociológicas são encontradas de maneira semelhante. Só que, além do experimento mental, pode-se fazer um estudo comparativo com outras situações, e então chegar a uma conclusão. Deve-se lembrar que não encontramos a conclusão, e sim uma das conclusões. É curioso notar que Weber realizou suas pesquisas baseando-se em explicações amplas e estruturais, e não na pessoa atuante, ainda que o indivíduo seja a base dessas explicações.. Seu método é posto em prática em todas as suas análises substantivas, seja quando ele fala sobre a queda do Império Romano, seja quando fala sobre a racionalização do mundo moderno. A discussão weberiana sobre relações de autoridade – porque os homens acham que têm autoridade sobre outros, além da legitimidade em ser obedecido – ilustra o uso dos “tipos ideais” na análise e classificação das ações sociais. Weber definiu três tipos ideais de autoridade: a carismática – quando a autoridade é devida a alguém por sua extraordinária virtuosidade, seja ética, heróica ou religiosa; a autoridade tradicional – quando a autoridade é devida a alguém por acreditar-se na santidade da tradição. Este tipo não se baseia em regras impessoais, e sim na vontade da própria pessoa; e, por fim, a autoridade racional-legal – que se sustenta em bases racionais e depende de regras impessoais que foram legalmente definidas e/ou contratadas. Deve-se lembrar que estes são “tipos puros”, como em todo o trabalho de Weber. Isto significa dizer que, na vida real, eles podem aparecer misturados. É importante notar em Weber que ele define a autoridade tomando por base tanto os líderes quanto os seguidores, e não apenas os líderes, como seus contemporâneos faziam. A autoridade do líder só existe se os seguidores realmente acreditarem no mesmo. Weber não se ateve ao significado que os atores impõem aos seus respectivos

relacionamentos, ou seja, ele não se limitou ao estudo dos tipos ideais de ação social. Ele via tais ações sociais como forma de compreender as mudanças históricas. Ele percebeu que a mudança de uma ação de fundo tradicional para uma de fundo racional era crucial para a evolução humana e mostrou que a ação racional dentro de um sistema de autoridade racional-legal era o núcleo da moderna e racionalizada economia, isto é, era o núcleo do sistema capitalista. É apenas neste sistema que os indivíduos realizavam a comparação custo-benefício de uma maneira racional. Para Weber, a racionalização da ação econômica só poderia ser feita quando o indivíduo abandonasse conceitos tradicionais de preços e taxas justas, e quando ele passasse e buscar satisfazer seus próprios interesses. Tal racionalização era baseada na ética protestante, que rompeu com o tradicionalismo e incutiu nos homens a idéia do trabalho racional, metodológico e rigoroso. Essa posição de Weber vem do fato de que ele recusava-se a ver, nas idéias, simples reflexos de interesses materiais. As diferentes esferas da vida têm uma relativa autonomia, apesar de se influenciarem mutuamente. Não há uma harmonia preestabelecida entre o conteúdo de uma idéia e os interesses materiais daqueles que se tornam seus realizadores; apenas uma “afinidade eletiva” pode surgir entre os dois. Um exemplo de “afinidade eletiva” pode ser dado: as idéias calvinistas e as pretensões de certos burgueses, no século XVII. Weber era fascinado pelas dinâmicas das mudanças sociais, e tentou mostrar que as relações entre um sistema de idéias e estruturas sociais eram multiformes e variadas e que as conexões casuais existiam em ambas as direções, e não só da infra-estrutura para a superestrutura, como afirmam os marxistas. O conceito weberiano para “classes” é muito próximo ao conceito marxista, qual seja, é uma categoria de homens que têm em comum um componente causal específico em suas chances na vida de modo que esse componente é representado exclusivamente por interesses econômicos na posse de bens e oportunidades para se obter renda, e é representado sob as condições do mercado de trabalho. A diferença é que Weber acrescenta os grupos estamentais. Estes grupos estamentais são baseados nos modelos de consumo dos indivíduos, ao invés de basearem-se no lugar dos indivíduos no mercado ou no processo de produção. Tais grupos são normalmente comunidades, que são mantidas juntas por meio de idéias de estilo de vida próprios e pela estima social e pela honra oferecida por outros. Um grupo estamental só existe se os outros estão de acordo em relação ao prestígio dos seus membros, o que faz com que tais membros distingam-se dos outros na forma de “eles” e “nós”. Dentro de um grupo estamental, seus membros não precisam, necessariamente, estar dentro da mesma classe, na concepção marxista. Desta forma, um membro mais pobre do grupo pode exercer uma influência muito grande, quando por exemplo ele tem medo de perder seu status. O comportamento político pode, portanto, ser influenciado

por pessoas que, na visão marxista, fazem parte do proletariado, mas que, na visão weberiana, fazem parte de um grupo estamental. A sociedade, desta forma, estaria dividida não só em classes, mas também em grupos sociais estratificados. Os membros de um grupo podem ou não ser membros do outro, e seus interesses – os interesses de uma classe ou de um grupo – podem ou não ser os mesmos. Com esta dupla classificação da estratificação social, Weber fornece a base para o entendimento das formas pluralistas da sociedade moderna. Além disso, ele ajuda a explicar o por quê de, em alguns casos, esta sociedade estar dividida entre os que “têm” e os que “não têm”. Também na análise de poder da sociedade, Weber adotou uma postura pluralista. Ele viu que não são só os aspectos econômicos que garantem o poder a alguém. Por exemplo, homens que comandam grandes organizações burocráticas podem adquirir uma grande quantidade de poder econômico mesmo se forem apenas trabalhadores assalariados. Mais sobre o pluralismo será dito posteriormente nesse trabalho. Poder, na visão weberiana, é a chance de um homem, ou um número de homens, realizar seus próprios desejos na ação comunitária, mesmo contra a vontade dos outros. A base para que tal poder seja exercido pode variar consideravelmente, de acordo com o contexto social em questão. Ainda, a origem de tal poder não pode ser restrita a uma só; os homens não aspiram ao poder apenas para enriquecer. O poder, incluindo o poder econômico, pode ser avaliado “por si mesmo”. Muito freqüentemente, a aspiração ao poder é também condicionada pela honra social que ele contém. O interesse de Weber na natureza do poder e da autoridade, assim como sua preocupação com a racionalização, levaram-no a pesquisar o modo de funcionamento das grandes empresas modernas. A organização burocrática é a marca da era moderna. As burocracias são organizadas de acordo com princípios racionais; os escritórios obedecem a uma ordem hierárquica baseada em regras impessoais; os dirigentes têm sua área de ação delimitada pela alocação metodológica de áreas de jurisdição; promoções são feitas de acordo com qualificações especializadas. É apenas por meio da centralização do poder político que recursos econômicos podem ser mobilizados. A organização burocrática tornou-se o padrão para a política, tecnologia e economia modernas, e ela é tecnicamente superior a todas as outras formas de administração. Weber também viu os pontos negativos da burocracia. O principal deles é a impossibilidade de se tratar casos individuais, pois a burocracia iguala todos. Ocorre, portanto, uma despersonalização das ações humanas, ou seja, são removidos o amor, o ódio e qualquer outra atitude pessoal, irracional e incalculável da execução das tarefas. A cultura moderna não pode ter emoções, além de ser estritamente

profissional. A burocratização e racionalização cada vez mais intensas pareciam ser inevitáveis para Weber. O desempenho de cada trabalhador seria mensurado matematicamente e cada homem tornar-se-ia uma pequena peça na máquina. A civilização tornar-se-ia mais perfeita, mais racional, e suas bases seriam muito mais mecanizadas. Mas o quê seria dela? Weber aponta a alienação como resultado desta burocratização e racionalização crescentes. Ele não acredita no estágio futuro como o mundo da liberdade, ou seja, a alienação não é uma transição para algo melhor. Mesmo permitindo-se acreditar no surgimento de um líder carismático que tiraria a humanidade do curso de sua própria criação, Weber acreditava que o futuro seria uma “jaula de ferro”, ao invés de ser o “Jardim do É den”. Weber acreditava que a expropriação dos meios de produção dos trabalhadores era resultado não do capitalismo em si, mas sim da crescente produção racionalizada e coordenada centralizadamente. Além disto, acreditava também que não só os trabalhadores perderam seus meios de produção, mas também que os cientistas perderam os meios de pesquisa, que os administradores perderam os meios de administração, que os guerreiros perderam os meios da violência e assim sucessivamente. E isto não por causa do capitalismo, e sim pela crescente racionalização e burocratização da sociedade: essas expropriações caracterizariam tanto sistemas socialistas quanto capitalistas. O ser humano, na visão weberiana, não conseguiria se engajar em ações sociais significativas se ele não se juntasse a uma organização de grande porte, na qual ele só seria admitido se sacrificasse seus desejos pessoais e na qual realizaria tarefas específicas. O homem, portanto, racionalizou e tornou calculável e previsível o que antes era governado pela sorte, sentimentos, paixões e pelas convicções pessoais. Esta é a visão de Weber. Ele buscou traçar o caminho, em seus estudos da sociologia das religiões, pelo qual o homem trocou o procedimento mágico pelo racional na relação do homem com o divino. A ética protestante é o resultado desta racionalização. Também no campo do direito Weber documentou a racionalização da humanidade. Ele traçou o desenvolvimento da autoridade política dos reis, endeusados por um carisma hereditário, até a dominação fria do estado moderno, “reinando” dentro dos limites legais e com leis racionalmente escritas.

Teoria pluralista: descendência direta de Weber Um dos principais desdobramentos que a teoria de Weber teve no século XX refere-se à idéia de “sociedade pluralista” ou “pluralismo”. Como nos diz Chilcote (1997, 379), “(...) o pluralismo sustenta que a democracia tem por premissas a diversidade de interesses e a distribuição do poder”. Assim, para os pluralistas, o poder político não

está concentrado nas mãos de uma pequena parcela da população – como diriam os teóricos das elites – nem nas mãos de uma determinada classe da sociedade que detém o poder econômico – como diriam os teóricos marxistas. Ao contrário: não existe divisão da sociedade em classes, sejam elas políticas ou econômicas; não há hierarquização da sociedade; as pessoas se unem em grupos devido aos seus interesses comuns em torno de determinado assunto, e irão participar politicamente votando em um indivíduo que representa os interesses do seu grupo específico. “Para os pluralistas, o estado é neutro, um ‘programa vazio’, e ainda um servidor da cidadania – do eleitorado (...)” (Carnoy 1988, 54). Ou seja, não há como o estado ser dominado por uma elite política – refutando mais uma vez a idéia dos teóricos das elites – como também o estado não pode ser manipulado por uma elite econômica – refutando os argumentos marxistas. Por existirem diferentes grupos, teoricamente com o mesmo peso político, nenhum destes grupos que formam a sociedade conseguirá sobrepor-se aos demais – já que as regras do jogo garantem a igualdade de condições a todos os grupos existentes em dada sociedade. Dessa forma, a possibilidade de participação está aberta a todos os indivíduos e a todos os grupos, e o estado – que, em princípio, é neutro e não beneficia nenhum destes grupos – será ocupado pelo(s) grupo(s) que se sair(em) vitorioso(s) após a competição política, sendo esta competição entendida aqui como eleições livres e regulares, com regras préestabelecidas e aceitas por todos os grupos que se dispõem a participar da competição política. A ligação entre os teóricos pluralistas e a teoria política de Weber está claramente exposta aqui: existem muitos outros interesses específicos que influenciam as pessoas do que meramente interesses econômicos. A noção weberiana de diferentes estamentos, que impossibilitariam a consciência de classe definida por Marx, é a base da teoria política pluralista, e esta última é construída tendo justamente essa segmentação da sociedade como ponto de partida. O argumento pluralista é simples, porém racional: as pessoas não se unirão apenas devido a argumentos econômicos, mas também – e, talvez, até mesmo principalmente – devido a outras necessidades que elas tenham em comum. Além disso, os pluralistas enfatizam a questão de que os indivíduos não têm o mesmo interesse pelo mesmo assunto. Dessa forma, a possibilidade da consciência de classe seria muito relativa e até mesmo improvável de ser realizada, já que na classe dos proletários haveria pessoas que seriam realmente exploradas economicamente – e para estas a teoria marxista seria válida –, mas também existiriam proletários em uma ótima situação de vida – como os dirigentes de grandes empresas –, e estes últimos, teoricamente, não teriam interesse em alterar o seu status quo e nem mesmo o status quo da sociedade. A consciência de classe, desta forma, seria difícil de ser alcançada.

Outro ponto básico da teoria pluralista é a afirmação de que as pessoas não têm o mesmo interesse em participar da política. Assim, no exemplo anterior, o trabalhador braçal de uma fábrica se preocuparia com os problemas mais próximos de sua realidade. Ele poderia não estar interessado, por exemplo, se o estado irá emitir títulos com uma determinada taxa de juros, já que ele acha que isto não influi diretamente em sua própria vida. Este trabalhador se preocuparia em saber se o governo autorizou um aumento nas taxas de luz elétrica para famílias de baixa renda, por exemplo. Por outro lado, o dirigente desta mesma empresa pode ter muito mais interesse nas emissões de títulos feitas pelo estado, já que ele pode se beneficiar (ou beneficiar a empresa que dirige) com tais ações estatais, do que em saber se a tarifa básica de luz elétrica para populações carentes aumentou ou se manteve estável. Além da questão do grau de interesse, os pluralistas se baseiam também no grau de informação que as pessoas possuem. Indivíduos em uma sociedade comumente têm acesso a diferentes tipos de informação, e têm acesso a graus diferentes da mesma informação. Como os indivíduos não trabalham com distribuição perfeita de informações, os resultados políticos da participação destes indivíduos vão ser diferentes, já que uma pessoa pode participar estando muito mais consciente – por ter mais acesso a informação relevante, que pode qualificar ou alterar sua forma de pensar sobre determinado assunto – do que outras pessoas. Para os pluralistas, a relativa apatia política de uma parte da população é benéfica como um todo. Todas estas características se juntam para formar a base da teoria pluralista. A divisão da sociedade em diferentes e múltiplos grupos, não apenas em dois (elite/não-elite ou burguesia/proletariado); a distribuição igualitária do poder político entre estes diferentes grupos sociais; regras do jogo bem estabelecidas e aceitas por todos os grupos sociais; a aceitação de que quem obtiver a maioria vence; o interesse desigual pelos aspectos políticos; e a distribuição desigual da informação entre os membros de uma sociedade são aspectos que, vistos de uma perspectiva liberal, são totalmente racionais e válidos para as sociedades políticas atuais. Além disso, todos esses princípios pluralistas são encontrados também na teoria weberiana, o que mostra que os pluralistas são “descendentes diretos” de Max Weber.

Teoria da escolha racional: concretiza-se o “desencantamento do mundo” “A essência da teoria da escolha racional é que ‘quando diante de vários possíveis caminhos de ação, as pessoas usualmente escolhem aquele que elas acreditam que trará o melhor resultado geral para si próprias’.” (Elster, citado em Ward 2002, 65). A teoria da escolha racional tem como metodologia básica aspectos econômicos

aplicados à ciência política. Desta forma, busca-se aplicar uma metodologia econômica, que se baseia em quatro características principais, aos acontecimentos políticos. Tais características são: 1) intencionalidade do ator (o ator realmente quer agir daquela forma, de acordo com suas finalidades e objetivos); 2) racionalidade (o ator planeja antecipadamente e tenta maximizar a satisfação de seus planos, ao mesmo tempo em que tenta minimizar os custos); 3) distinção entre informação completa e incompleta (o ator geralmente não trabalha com informação completa, ou seja, age incluindo em seus cálculos um certo risco); e 4) distinção entre ação estratégica e ação interdependente (o ator escolhe qual ação executar de acordo com seus objetivos próprios – estratégicos – ou interdependentes – de acordo com as possíveis escolhas dos outros atores) (Baert 1997, 65-6). O exemplo típico da aplicação da teoria da escolha racional na ciência política é a questão das eleições, proposta por Anthony Downs. A tese de Downs tenta sustentar a idéia de que governos democráticos agem racionalmente para maximizar o apoio político que recebem. Por ação racional quer-se dizer uma ação que é eficientemente criada para atingir os fins econômicos ou políticos conscientemente selecionados do ator. No modelo de Downs, o governo atinge seu objetivo sob três condições: uma estrutura política democrática que permita que partidos de oposição existam; uma atmosfera de vários graus de incerteza, e um eleitorado com eleitores racionais. Como nenhuma das glórias da vitória eleitoral podem ser obtidas sem ser eleito, o principal objetivo de cada partido é a vitória nas eleições. Assim, todas as suas ações desejam maximizar o número de votos, e ele trata as políticas meramente como meios para atingir tal fim. O modelo de Downs (1) avança a hipótese da maximização de votos como uma explicação do comportamento político democrático; e (2) constrói uma norma positiva por meio da qual podemos distinguir entre um comportamento racional e irracional na política. Em um mundo repleto de informação completa e sem custos, o cidadão racional faz sua decisão na hora de votar da seguinte maneira: 1. Comparando o fluxo de renda útil vindo da atividade governamental que ele recebeu do governo atual (ajustado pelas tendências) com os fluxos que ele acredita que receberia se os vários outros partidos de oposição estivessem no governo, o votante encontra os diferenciais do seu partido. Eles estabelecem suas preferências entre os partidos que disputam seu voto. 2. Em um sistema bipartidário, o eleitor vota no partido que ele prefere. Em um sistema multipartidário, ele estima que o que ele acredita são as preferências de

outros eleitores; então, ele age como segue: Se seu partido favorito parece ter chances razoáveis de vitória, ele vota nele; Se seu partido favorito mostra que tem quase nenhuma chance de vencer,ele vota em algum outro partido que tenha uma chance razoável para manter longe da vitória o partido que ele menos gosta. Se ele é um eleitor orientado ao futuro, ele pode votar no seu partido favorito, mesmo que ele quase não tenha chances de vencer, para melhorar as alternativas oferecidas a ele em eleições futuras. 3. Se o eleitor não puder estabelecer uma preferência entre os partidos, pelo fato de um partido de oposição estar empatado com um partido de situação em primeiro lugar na sua ordem de preferência, ele então age da seguinte forma: Se os partidos estiverem empatados, mesmo tendo plataformas diferentes, ele se abstém; Se os partidos estiverem empatados porque têm plataformas idênticas, ele compara o desempenho do partido da situação com o desempenho de seus predecessores no governo. Se a situação fez um bom trabalho, ele vota nela; se fez um trabalho ruim, vota contra ela; e se seu desempenho não foi bom nem ruim, ele se abstém. Para sumariar, a teoria da escolha racional explica as ações individuais e os resultados que elas trazem em termos das estratégias abertas aos indivíduos, suas preferências sobre as conseqüências resultantes das as escolhas dos outros indivíduos e suas crenças sobre parâmetros importantes tais como as preferências dos outros. Ela funciona pela aplicação da lógica e da matemática a um conjunto de suposições, algumas das quais são axiomas sobre o comportamento racional e outras das quais são suposições auxiliares sobre o contexto no qual os atores se encontram, para fazer suas predições (Ward 2002, 69). Em relação à teoria weberiana, fica claro, por meio da teoria da escolha racional, que o “desencantamento do mundo” previsto por Weber se concretiza, caso utilizemos a escolha racional. O mundo político deixa de possuir elementos aleatórios, nãoprevistos; tudo é racionalizado, tudo é previsto, tudo é burocratizado; tudo funciona de acordo com a lógica, sem elementos carismáticos, por exemplo. Os indivíduos agem politicamente de determinada maneira porque esta será a melhor para ele, ou seja, será a que trará mais benefícios ao mesmo tempo em que traz menos gastos; da mesma forma, o indivíduo age de determinada maneira porque não possui mais liberdade para agir de outra forma – com o estado burocratizado e rotinizado, a melhor forma de agir é fazendo escolhas racionais.

Implicações do paradigma dominante para a ciência polit́ ica

contemporânea Max Weber é, sem dúvida alguma, um dos maiores expoentes das Ciências Sociais em geral e da ciência política em particular. Seus conceitos e idéias são conhecidos por muitos, e suas proposições teóricas são até hoje utilizadas como base em diversos trabalhos acadêmicos. Além disso, várias de suas proposições continuam sendo válidas ao serem aplicadas a vários aspectos da ciência política contemporânea, tais como seus tipos ideais de dominação, de ação social e seus conceitos sobre o que é o estado e sobre o que é e como surgiu o capitalismo. Weber baseou seus estudos na racionalidade. Esta racionalidade era composta pela eficiência, pela profissionalização e pela burocratização, e foram estas três características que mais influenciaram os demais autores que se seguiram a Weber na construção de um paradigma dominante na ciência política contemporânea. Outros pontos teóricos definidos por Weber e absorvidos pelos teóricos do paradigma dominante são os seguintes: 1) a crença de que o capitalismo é essencial para o mundo moderno; 2) a idéia de que a estrutura estatal gerencia uma pluralidade de interesses, e portanto não há como haver o domínio de uma classe em relação a outra; 3) existem grupos baseados em outros aspectos que não só os econômicos, antes da existência das classes. Assim é que uma classe é composta por pessoas provenientes de vários grupos, os quais são constantemente rearranjados de acordo com a situação do mercado; 4) é importante não só o conceito de mudança dos grupos, com um grupo estamental subindo ou descendo de classe; também o indivíduo, por meio do seu esforço racional, pode mudar de grupo estamental; 5) Weber argumenta que há outros aspectos, tais como o nacionalismo, as crenças religiosas e as lealdades étnicas, que são mais fortes que a consciência de classe e que promoveriam a fragmentação da mesma; 6) com a evolução (burocratização, rotinização e racionalização) do capitalismo, passa a existir um corpo de funcionários responsáveis pela administração estatal. Também segundo Weber, a revolução não seria necessária para o avanço da classe trabalhadora. Weber achava que os interesses da burguesia poderiam trazer melhorias das condições políticas e econômicas à classe trabalhadora. Reconhecia os conflitos de classe na história, mas sua ênfase estava no conflito entre grupos estamentais e outros grupos de interesse, como os partidos políticos. Após destacarmos todos estes pontos, fica fácil compreender por que Weber é considerado o precursor do paradigma dominante na ciência política. Todos os pontos de seus estudos foram utilizados por uma ou por outra linha teórica sobre o estado, sobre o capitalismo ou sobre a democracia. Assim é que os pluralistas basearam-se em Weber para mostrar que os indivíduos estão divididos em diversos grupos na sociedade (ou, em termos weberianos, em grupos estamentais), e que portanto não há como se formar uma elite, nem política, nem econômica. Os teóricos de sistema se

baseiam na racionalidade, na rotinização e na burocratização do estado, a ponto de transformá-lo em uma “caixa preta” que deve ser estudada como um todo – se o estado é um “todo”, não há necessidade de se estudá-lo separadamente; é mais fácil e produtivo estudar como este sistema se relaciona com os demais sistemas que compõem a sociedade. Para os institucionalistas, as instituições governamentais regem o jogo político, o que era temido por Weber – pois isto seria o resultado máximo da burocratização estatal, resultado da busca contínua pela eficiência e pela especialização. Por fim, a teoria da escolha racional concretizaria o “desencantamento do mundo” previsto por Weber, ao propor que todas as escolhas são feitas de modo a maximizar os lucros e minimizar as perdas, ou seja, ao se definir uma metodologia lógica, racional e “seca” (no sentido de não se analisar as diferentes nuances que podem influenciar na política) para a análise dos acontecimentos políticos.

O desenvolvimento do paradigma alternativo da ciência política contemporânea O paradigma alternativo da ciência política contemporânea – conforme definido por Chilcote e apresentado anteriormente – tem como seu precursor o alemão Karl Marx. Faremos primeiramente uma apresentação dos temas e dos eixos da análise de Marx, e em seguida apresentaremos um pequeno resumo de O manifesto comunista, uma das principais obras deste autor, e também resumos de textos de alguns dos principais pensadores que se seguiram a Marx e que serão úteis em nossa pesquisa: Lênin, Gramsci e Poulantzas. Ao final dessa parte, faremos um tratamento sobre a evolução do pensamento marxista durante o século XX e suas principais alterações em relação ao “original”, devido à crescente complexidade das sociedades contemporâneas pósMarx.

A vida e a obra de Karl Marx O conceito de alienação tem significado considerável para Marx. Ele deu um significado concreto a este termo, enraizando-o no processo de trabalho e, então, estabelecendo uma base para sua crítica ao sistema capitalista. Para Marx, o trabalho e seu produto assumem uma existência separada do indivíduo a partir do momento em que surgem a propriedade privada e a divisão do trabalho. Tal separação causa a alienação para o trabalhador. Além do conceito de alienação, deve-se entender o materialismo histórico, ou teoria da História de Marx. Para ele, a história é um processo de contínua criação, satisfação e recriação das necessidades humanas. É desta forma que a consciência dos indivíduos sobre as relações sociais entra em contradição com as forças de produção,

causando a divisão do trabalho. Essa divisão é não só do trabalho, mas também de seus produtos, na forma de propriedade, com a conseqüente divisão da sociedade em classes. Como os interesses da classe dominante, que possui os meios de produção, são diferentes dos interesses da classe dominada, que trabalha para a primeira, tem início uma luta de classes. Tal luta desaparece com a dissolução da propriedade privada e com a produção comunista, que destrói a alienação entre pessoas e o que estas produzem. A teoria do estado de Marx, e também sua teoria sobre a revolução socialista, foram construídas sobre uma crítica do idealismo filosófico alemão e também sobre a crítica da revolução política burguesa. Vale lembrar que, à época de Marx, a sociedade ainda estava sob influência da Revolução Francesa e das guerras napoleônicas. A crítica à revolução burguesa está nas limitações da “emancipação política”. Marx defende a “emancipação social” e, em sua juventude, isto significa revolução social. A democracia não pode ser apenas política. Marx desqualifica o status da burocracia como representante do universal, substituindo-o pelo proletariado. Ele deseja que a sociedade civil participe dos acontecimentos políticos, e não apenas o estado – ou aqueles que o controlam. Para que isto aconteça, é necessário que haja a revolução do proletariado, com sua conseqüente emancipação social e política. A revolução é necessária porque o que é definido como “direitos do homem” nada mais é do que os “direitos do burguês”. Os direitos gerais assegurados pelo estado, na verdade, não definem uma igualdade social; antes pelo contrário, pressupõem e reforçam a desigualdade econômica e social, garantindo apenas igualdade política. Apenas a revolução proletária traz como resultado, portanto, a emancipação geral (política, econômica e social) e a igualdade. As revoluções burguesas trazem a igualdade apenas no plano das ilusões e das formas do estado e da ideologia. Além da dominação política, também a dominação ideológica é necessária para que a classe dominante mantenha o poder. Marx afirma que são os homens que produzem os conceitos e as idéias, e estas são decorrência do seu comportamento material. Assim, a classe que dispõe dos meios materiais de produção dispõe também dos meios intelectuais de produção. As idéias predominantes são criadas para manter as relações materiais predominantes de dominação. A burguesia mantém sua dominação não só pelos aspectos econômicos e políticos, mas porque dá às suas idéias a forma de universais, ou seja, são as únicas razoáveis e universalmente válidas. A revolução proletária pretende acabar com a própria dominação de classes. A

Comuna de Paris foi o exemplo concreto de como o estado centralizado deveria ser destruído e substituído pelos órgãos comunais. A Comuna, segundo Marx, era um exemplo da ditadura do proletariado. A destruição da propriedade proposta por Marx tem em vista a propriedade burguesa, pois ela é fruto da exploração do trabalhador. Para Marx, o estado tem de ser destruído. Não basta apenas que o proletariado tome posse do aparelho estatal e utilize-o para seus próprios fins. Isto ficou claro após a experiência da Comuna de Paris, em 1871: a destruição total do estado é necessária porque a burguesia controla todas as faces do estado. Como o próprio Marx diz, “o governo do estado moderno não é mais do que uma junta que administra os negócios comuns de toda a classe burguesa” (Chilcote 1997, 135). É necessário, desta forma, que o proletariado torne-se a classe dominante; esse passo é, para Marx, a conquista da democracia. Após esta conquista, devem-se mudar as finalidades do estado. Se nas mãos da burguesia a função do estado é preservar a propriedade privada e assegurar os interesses da classe burguesa, nas mãos do proletariado sua função seria a de retirar da burguesia todo o capital, acumulando-o nas mãos do estado proletário. O passo seguinte seria a destruição do estado, por meio do desenvolvimento de novas forças produtivas, as quais causariam o desaparecimento das diferenças de classe, levando à perda do caráter político do estado. O período no qual o estado estaria nas mãos do proletariado é chamado de ditadura do proletariado. Esse período não é mais do que o caminho para a abolição de todas as classes e para uma sociedade sem classes. A frustração de Marx em relação à Revolução Francesa é que ela, ao invés de destruir a máquina estatal, aperfeiçoou-a. Fez a centralização do poder e aumentou o número de servidores do governo e suas atribuições. É claro que havia uma base para esta sustentação estatal, mas tal base servia para submeter a sociedade à vontade burguesa. Na Revolução Francesa, os revolucionários não fizeram nada além de trocar uma classe pela outra, e foram criadas novas formas de opressão. À sua época, contudo, estava havendo a simplificação das oposições de classe. Era necessário, pois, que, antes de tudo, o proletariado de cada país acabasse com sua própria burguesia. Após a análise dos fatos, Marx concluiu que o estado tem certa autonomia em relação à burguesia. Para que esta mantenha a sua propriedade e sua capacidade de enriquecimento, ela entrega a sua autonomia ao estado. A burguesia beneficia-se do estado, mas não o governa. Ao mesmo tempo, poderia parecer contraditório o fato de o estado, às vezes, beneficiar o proletariado, tendo em vista que o estado é burguês. Contudo, quando ele assim o faz, é objetivando benefícios futuros para a própria burguesia.

A derrocada do estado e da classe burguesa era inevitável porque o burguês era incapaz de cumprir a sua função básica, qual seja, a de assegurar as condições de sobrevivência do proletariado. Os trabalhadores iriam, assim, tornando-se cada vez mais pobres, enquanto a riqueza da burguesia aumentaria mais e mais. Para Marx, o papel de dominação da sociedade civil por parte do estado é exercido por meio da estrutura de classes hierarquizada, com a distinção nítida entre burguesia e proletariado. O estado é o agente que mantém a posse da propriedade por parte de uma minoria rica, com a conseqüente opressão da maioria pobre, pois o estado está sempre ao lado dos dominadores. No aspecto ideológico do estado, Marx via a cultura no contexto da alienação humana. A cultura é mais um instrumento da superestrutura para manter sua dominação. Essa conclusão é decorrência da visão materialista de Marx, para o qual os períodos da história criam formulações culturais sobre as quais o estado se funda, e sobre as quais a classe dominante legitima sua exploração. Marx explica a cultura com base nas conjunturas políticas, sociais e econômicas da sociedade. A dominação estatal, em conjunto com a classe dominante, tinha uma falsa legitimidade, tendo em vista que tal legitimidade era disfarçada pela ideologia de crenças e símbolos oriundos da superestrutura ideológica. Para que houvesse mudança na superestrutura ideológica, era necessário que houvesse mudanças econômicas. A mudança na economia mudaria o modo de produção, alternando as condições de dominação burguesa. Em suma, a mudança econômica causaria mudanças ideológicas, políticas e, em conseqüência, sociais. A teoria marxista do estado pode ser resumida nestas palavras: “O poder político é, no sentido próprio, o poder organizado de uma classe em vista da opressão de outra” (Chilcote 1997, 138). É a partir desta linha mestra que Marx desenvolve seu pensamento em relação ao estado, sendo este visto como a tradução dos antagonismos de classe. Em resumo, os elementos essenciais do pensamento de Marx que podem ser relevantes para uma discussão crítica da teoria do estado são a classe dominante, a superestrutura e a base estrutural, a realidade e a ideologia, as forças materiais e as relações de produção, bem como os modos de produção que caracterizaram épocas da história. O estado existe ao lado da classe dominante e gerencia os seus problemas. A base estrutural é encontrada nas forças materiais e relações de produção – o modo de produção ou a fundação real que determina a divisão do trabalho e de classes. A superestrutura consiste nas concepções ou teorias legais e políticas que visualizam a sociedade como deveria ser, não como é; elas são ideais, abstraídas dos fenômenos

históricos concretos; mas tais ideais perpetuam falsas ideologias sobre o mundo no qual as pessoas vivem (Chilcote 1997, 139-40). A idéia marxista expressa no livro “O manifesto do Partido Comunista” Em 1848 mudou-se completamente o método de análise da sociedade, da luta de classes e da própria construção de uma sociedade socialista. Em O Manifesto do Partido Comunista, Karl Marx e Friedrich Engels formularam uma nova concepção da História. Para os dois pensadores, a burguesia moderna nasceu das cinzas da sociedade feudal e, ao invés de remover as disputas de classe (objetivo pelo qual a burguesia foi criada), fez o contrário: manteve o mesmo esquema de dominação, e quase sempre piorou ainda mais a situação dos proletários. Por burguesia compreende-se a classe dos capitalistas modernos, proprietários dos meios de produção social, que empregam o trabalho assalariado. Por proletariado compreende-se a classe dos trabalhadores assalariados modernos que, privados de meios de produção próprios, vêem-se obrigados a vender sua força de trabalho para poder existir. Marx diz também que a burguesia, além de dominar os proletários de seu próprio país, está também invadindo outros países, tentando dominar seus proletários. Isso ocorre porque a burguesia deseja obter lucros cada vez maiores, e se a população do seu país já não consegue absorver os bens produzidos, então a solução é tentar vender estes bens em outros lugares do mundo. Vale notar que esta internacionalização dos bens refere-se tanto à capacidade material quanto à capacidade intelectual. Com o objetivo de dominar e explorar os cidadãos, a burguesia centralizou os meios de produção, concentrou a propriedade em poucas mãos e aglomerou as populações. Assim, províncias que antes viviam isoladamente, ou no máximo com um pequeno contato com outras, foram unidas, sendo regidas por uma lei, por um só governo, um só interesse nacional. A burguesia utilizou o capitalismo para chegar à perfeição material por meio da superprodução. Contudo, como absorver esta superprodução? Por meio da conquista de novos mercados e da exploração mais intensa dos mercados antigos. Novamente, caímos no problema da exploração do proletariado pela burguesia. O operário transforma-se em um acessório para a máquina, e seus salários decrescem na medida em que seu trabalho torna-se mais e mais enfadonho. O custo do operário reduz-se aos meios básicos de manutenção para seu sustento e perpetuação. Por mais que as pessoas pensem que os sindicatos e as uniões trabalhistas ajam em

benefício da classe operária, quem está por trás de tais atitudes é a classe burguesa. A burguesia utiliza a união proletária em seu próprio favor, fazendo com que esta união acabe com os restos da monarquia, com os proprietários rurais, com os pequenos burgueses. Estes, estando derrotados, não irão oferecer resistência ao ímpeto dominador da classe burguesa. Chegará um momento em que, devido a esta manipulação do proletariado por parte da burguesia para atingir os objetivos desta última, os primeiros irão ter condições intelectuais de unirem-se contra a burguesia, ou seja, os proletários tomarão consciência de classe, e só então poderão agir em conjunto contra a classe burguesa. Na hora decisiva, a ação será estritamente violenta. A classe média não pode ser considerada como uma classe proletária porque defende seus interesses próprios, e não os do proletariado. A burguesia atrapalha a classe média, e é por isto que esta luta contra aquela. A classe média é, portanto, conservadora, e não revolucionária. Quando é revolucionária, luta não pelos seus interesses atuais, mas por seus interesses futuros. Os comunistas, portanto, aparecem como a elite dirigente dos operários, com o objetivo de transformá-los em uma classe com representatividade, derrubar a supremacia burguesa e conquistar o poder político. O objetivo primordial dos comunistas é destruir a propriedade privada. Isto porque é esta propriedade que faz com que a burguesia seja cada vez mais gananciosa, exigindo mais e mais dos operários. Marx acredita que os operários estão em um círculo vicioso: o trabalho assalariado não cria propriedade para o proletário, e sim capital; este capital explora o trabalho assalariado, que só pode aumentar sob a condição de produzir novo trabalho assalariado, a fim de explorá-lo novamente. O problema da propriedade privada é que ela pertence a um décimo da população. E é justamente por não existir aos nove décimos que ela pertence ao último décimo. Desta forma, o comunismo quer não expropriar alguém de suas posses, mas apenas destruir o poder de escravizar o trabalho alheio por meio desta atual apropriação. As etapas para atingir-se o “ápice” socialista seriam: 1o) o advento do proletariado como classe dominante; 2o) arrancar pouco a pouco todo o capital da burguesia, transferindo-o ao estado; 3o) remoção dos antagonismos de classe, pois, existindo-se apenas a classe operária, já no poder, não haveria outras classes; 4o) exclusão do poder político, ou fim do estado, que nada mais é do que o poder organizado de uma classe para a opressão de outra.

Lênin: a relação entre o estado e a revolução

Lênin escreve O estado e a revolução em agosto-setembro de 1917, no auge da crise política que culminou na Revolução de Outubro na Rússia. Baseado em experiências históricas – as revoluções de 1848-1851 na Europa, nomeadamente na França, e na Comuna de Paris de 1871 –, Lênin faz uma explanação pormenorizada da doutrina de Marx e Engels sobre o estado, e mostra como esta teoria poderia ser aplicada na prática – no caso, na prática do momento histórico em que vivia na Rússia czarista do início do século XX, no meio da Primeira Guerra Mundial. Em primeiro lugar, Lênin vai definir o que é o estado, o aparelho do estado, a máquina do estado. Aqui, baseia-se primariamente em Engels: a força que gerencia a sociedade, que modera e legaliza o conflito de classes, que evita que as diferentes classes sociais destruam-se mutuamente é o estado, e este estado utiliza-se de seus meios de coerção para manter a ordem e reprimir as classes dominadas e exploradas. A ordem criada por este estado consiste, por um lado, em remover das classes dominadas e exploradas os meios que lhes permitiriam derrubar seus opressores e, por outro lado, em acumular, nas mãos destes opressores, os meios de impor e manter sua vontade de classe. O estado, para Lênin, surge apenas em conseqüência da impossibilidade de se conciliar os interesses das diferentes classes que compõem a sociedade (Chevallier 1998, 376). A essência do estado, para Lênin, reside em seus aparelhos coercitivos e repressivos, notadamente o exército permanente e a polí cia. É por isso que, para ele, seria impossível substituir o estado burguês pelo estado proletário sem uma revolução violenta. Dever-se-ia proceder com a destruição completa da velha máquina estatal, já que nenhuma forma e/ou instituição do antigo aparelho de estado poderia ser reformada. Outra peça fundamental do estado coercitivo e benfeitor das classes burguesas é a burocracia. Tendo em vista esta situação de “exploração institucionalizada” de uma classe social em relação à outra, é tarefa intrínseca ao proletariado realizar a revolução de forma violenta. O proletariado deve apoderar-se desta máquina burocrática apenas por meio da força – já que a “república democrática” definida por Engels “é o melhor invólucro político de que se pode revestir o capitalismo” (Chevallier 1998, 378). A república democrática, com possibilidade de participação das massas, nada mais é do que um engodo para o proletariado, que continuaria sendo explorado do mesmo jeito – ou até mais, com a ampliação da área de atuação do estado. As massas operárias e camponesas devem estar conscientes de que só atingirão o poder por meio de uma revolução violenta. Após se apoderar da máquina estatal, o proletariado transforma-se em classe dominante; estabelece- se a ditadura do proletariado, período transitório, temporário,

que levará à completa eliminação do estado; não apenas do estado burguês, que legitima a exploração, mas a eliminação de todo e qualquer estado. Porém, em um primeiro momento, a destruição do estado burguês e a criação de um estado proletário é necessária para a transformação de todos os meios de produção, que seriam anteriormente privados, ou seja, que estariam nas mãos dos capitalistas, em meios de produção coletivos, do estado. Além disso, a presença de um estado proletário, que se utiliza provisoriamente de instrumentos de coerção, é necessária não apenas para expropriar dos capitalistas os meios de produção, mas também – e principalmente – para a própria supressão do caráter de classe existente na sociedade atual. Ainda, a força do estado é necessária para se evitar a contra-revolução e a retomada do poder por parte dos capitalistas, ou seja, para se reprimir os adversários da revolta proletária. Durante a ditadura do proletariado, deverá ser exercido um controle extremamente rigoroso sobre a produção e a distribuição dos bens, sobre a medida de trabalho e sobre a medida de consumo entre os indivíduos que compõem a sociedade. Isto é necessário para se passar da fase de distribuição dos bens segundo seu trabalho – ou socialismo – para a fase da distribuição dos bens segundo sua necessidade – ou comunismo (Chevallier 1998, 379). Um aspecto que Lênin destaca e dá importância é em relação à participação de todos no período posterior à tomada do poder pelos proletários: Quanto mais completa a democracia, mais próximo está o momento em que se tornará supérflua [a necessidade de existência de um aparelho estatal]. Quanto mais democrático é o estado constituído pelos operários armados, estado que deixou de ser um estado no sentido próprio da palavra, mais rapidamente começa a deperecer todo o estado. (...) A necessidade de observar as regras simples e essenciais de toda sociedade humana logo se tornará um hábito. (...) O hábito, o costume trarão certamente a obediência “sem violência, sem constrangimento, sem submissão, sem o aparelho especial de coerção que se chama: estado” (Chevallier 1998, 386, grifos no original). Lênin tinha um projeto para a revolução que se baseava na existência de um partido submetido a uma disciplina férrea que conduziria as massas trabalhadoras a uma inevitável vitória sobre o absolutismo czarista. O desenvolvimento de sua teoria segue as seguintes características: com as pressões externas, imperialistas, o estado oprimiria ainda mais a classe operária, pois o imperialismo exige que exista um número cada vez maior de mercadorias para serem vendidas em outros mercados

consumidores. No sistema capitalista, para que as classes não se exterminem mutuamente, é necessária a existência de um mecanismo de proteção, e tal mecanismo é o estado. Contudo, o estado gerencia as lutas de classe legalizando-as, e não acabando com elas. O estado passa a usar sua força para oprimir os trabalhadores, por um lado, e para acumular os meios de impor e manter sua vontade de classe, por outro. Para destruir o estado, o proletariado deve apoderar-se da máquina estatal de maneira violenta. Após esta fase, o proletariado, agora classe dominante, estabelece a sua ditadura. É por meio dela que haverá a transformação dos meios de produção em propriedade do estado. Os proletários usarão a máquina estatal provisoriamente, apenas para acabar com as disputas de classe. Após atingir este objetivo, o proletariado deve destruir o estado, ao contrário das outras revoluções, que aperfeiçoaram-no. Essa destruição estatal é feita de maneira gradual; o estado, por si só, iria desaparecendo, ao mesmo tempo em que seus instrumentos deixassem de ser usados. O desaparecimento do estado ocorre também porque as regras do sistema comunista tornam-se um hábito, sem a necessidade do papel coercitivo do estado para obrigar os cidadãos a fazerem determinada coisa ou agirem de determinada maneira. Esta seria a fase superior do comunismo. Lênin, de fato, via a transição ao socialismo como tarefa do Comitê Central de um Partido Comunista de vanguarda, que guiaria os trabalhadores em direção ao comunismo, em vez de contar com eles para prover a dinâmica da transformação social. Lênin acreditava que a consciência deveria ser levada à classe trabalhadora a partir de fora e, para ele, a agência que o realizaria não era a intelectualidade tradicional, mas o próprio partido revolucionário, um partido no qual os ex-trabalhadores e os ex-intelectuais profissionais de descendência burguesa se fundiram em uma unidade coesa. Deixada aos seus próprios recursos, escrevia Lênin, a classe trabalhadora é incapaz de desenvolver qualquer concepção da missão histórica que Marx lhe atribuía. “O desenvolvimento espontâneo do movimento dos trabalhadores conduz precisamente a sua subordinação à ideologia burguesa (...) [e à] escravização ideológica dos trabalhadores pela burguesia”. Lênin defendia que tal “partido de novo tipo” necessitava de uma organização de novo tipo. Ele devia ser organizado e centralizado como um exército, com todo o poder e autoridade residindo em seu Comitê Central (Carnoy 1988, 87, grifos no original). Ou seja: ainda que defendesse a participação das massas no processo revolucionário,

estas, na verdade, participariam como massa de manobra em tal processo, já que a função de guia da revolução seria feita pelo partido de vanguarda, pelo partido comandado por aqueles que efetivamente tivessem consciência de seu papel revolucionário, já que as massas, por não terem ainda a consciência necessária sobre esta função na revolução, acabariam sendo cooptadas pela burguesia e, assim, causariam a derrocada do processo revolucionário. Lênin, desta forma, sugere explicitamente a formação e consolidação de uma elite política, a elite dos que têm consciência de classe e que podem guiar o processo revolucionário. No entanto, esta elite política não seria eleita, como pretendia Schumpeter posteriormente, mas seria criada e consolidada tendo por base o critério de “bons serviços para a revolução”, ou ainda a “grande consciência do processo revolucionário”. Desta forma, as massas, ou a sociedade como um todo, seriam guiadas por uma pequena elite, por um pequeno grupo que efetivamente se interessaria pela política de forma revolucionária. Vale destacar, entretanto, que o centralismo defendido por Lênin se referia apenas ao processo da revolução, ou seja, o partido de vanguarda, a “elite revolucionária”, agiria como tal apenas durante a revolução. Após a extinção do estado, todos na sociedade teriam o direito – e até mesmo o dever – de participar democraticamente da definição dos rumos que essa nova sociedade – sem poder coercitivo, sem estado, sem classes – seguiria.

A ampliação do estado para Gramsci Gramsci enriquece a idéia marxista do estado com a sua teoria ampliada do estado. Com essa teoria, Gramsci cria um novo componente: a sociedade civil, que seria o elo mediador entre a infra- estrutura econômica e o estado em sentido restrito. Esta sociedade civil é uma nova esfera social, com leis e funções relativamente autônomas e específicas em relação aos ditames econômicos e também aos aparelhos repressivos do estado. Ela é formada por organismos nos quais as pessoas ingressam voluntariamente, e estes organismos não fazem uso da repressão para cooptar membros. Sua teoria amplia o conceito de Marx, que formulava idéias apenas em relação à estrutura repressiva do estado. A sociedade civil não se apóia em repressão, e sim na busca de aparelhos privados de hegemonia. O estado, portanto, seria formado por duas esferas: a sociedade política, que é aquela que detém os meios de repressão (estado-coerção), e a sociedade civil, aquela formada pelo conjunto de organizações responsáveis pela elaboração e/ou difusão das ideologias. Exemplos destas organizações são as escolas, as Igrejas, os partidos políticos e os meios de comunicação de massa.

A diferença fundamental entre a sociedade civil e a sociedade política é que a primeira quer ganhar aliados para suas posições por meio do consenso, solidificando sua hegemonia; a segunda quer ganhar aliados para suas posições por meio da coerção e do uso da força. Outra diferença importante é em relação à sua materialidade própria. A sociedade civil, quando viu que poderia se organizar e atingir seus objetivos, assim o fez por meio da criação e/ou renovação de entidades sociais, que passaram a funcionar como portadores das relações sociais de hegemonia. Gramsci afirma que a sociedade civil é uma característica de sociedades politizadas, onde existe organização popular. Quanto mais os indivíduos se preocuparem com política, mais irão tentar se proteger dos abusos cometidos pelo estado. Seus opositores dizem que esta divisão entre sociedade civil e sociedade política é feita tendo como base a visão do burguês, legitimando assim a divisão da sociedade em classe burguesa, que faria parte da sociedade política, e em classe proletária, fazendo parte da sociedade civil. Contudo, estas críticas não levam em consideração o fator ideológico da moderna sociedade capitalista, fator este que é um dos responsáveis pelo sucesso do capitalismo e um dos pilares da teoria de Gramsci. Um dos instrumentos desse fator ideológico foi, sem dúvida, a Igreja. Para justificar esta afirmação, basta lembrarmos-nos de que a Igreja e o estado eram praticamente um só e que a Igreja dominava o sistema educacional, imputando em seus alunos a ideologia coercitiva do estado. Com as revoluções democrático-burguesas, os instrumentos ideológicos de dominação, principalmente a Igreja, começaram a perder sua influência e seu poder, tendo em vista que tais instrumentos tornaram-se privados. O estado já não impõe coercitivamente a sua religião. A adesão a tais aspectos ideológicos torna-se voluntário, e não obrigatório. Para Gramsci, o estado só irá acabar quando a sociedade política tiver sido englobada pela sociedade civil. Os meios de coerção e dominação cedem lugar ao consenso e à hegemonia. Entretanto, as estruturas básicas do estado garantem sua perpetuação. É aí que reside a necessidade de uma crítica contundente e constante às idéias capitalistas. A idéia gramsciniana vai contra a idéia stalinista: para Stalin, o estado socialista deveria fortalecer- se ao máximo durante o período de transição ao comunismo, pois a organização popular é fraca ou inexistente. Por isto, com o fortalecimento do estado, seria possível que o mesmo após certo período, passasse o acesso ao poder às estruturas sociais. Para Gramsci, o estado deve fortalecer primeiro a sociedade civil para que esta tenha condições de assumir o poder posteriormente. É importante frisar

que o que será extinto será o estado, ou seja, os meios de coerção utilizados pelo mesmo, mas não as organizações sociais. Gramsci, portanto, acha que a experiência soviética foi errada, pois, ao invés de haver a extinção do estado, este se fortaleceu ainda mais, utilizando-se dos antigos meios de coerção do estado capitalista burguês. E como o estado será controlado no socialismo? Para Gramsci, haveria o partido operário, instituição que encarregar-se-ia de controlar as ações tomadas pelo governo no sentido de preencher as necessidades de cada um. Este partido operário, chamado por Gramsci de o moderno Prí ncipe (em alusão ao livro de Maquiavel), iria ser usado para superar inteiramente os resíduos egoístas deixados pelo estado capitalista, tornando-se assim seus membros agentes de atividades gerais, de caráter nacional e internacional. O ponto chave da argumentação de Gramsci é que não basta mudar a estrutura econômica e social; é necessário também mudar a estrutura cultural da sociedade, sendo necessária uma nova cultura. A frente cultural é um terreno decisivo na luta das classes subalternas, e Gramsci associa a dominação política à dominação ideológica. É necessário que os meios culturais também sejam distribuídos de maneira igualitária entre todos, e o mais importante: todos os membros do partido operário devem ser intelectuais. Ele divide os intelectuais em duas classes: a dos tradicionais, que são os já existentes, e os orgânicos, que estão surgindo com a nova orientação da sociedade. Os intelectuais orgânicos é os que são responsáveis pela mudança da mentalidade cultural. Os intelectuais dentro do partido são divididos em três níveis: o nível inferior, com intelectuais “bons”; o nível superior, com intelectuais que controlam o partido; e o nível médio, que faz a interligação entre os dois níveis anteriores. Como existem pessoas controlando o partido, poder-se- ia supor que o partido tornar-se-ia burocrático; Gramsci, contudo, diz que não há a possibilidade disso acontecer, desde que três princípios básicos sejam observados: se houver circulação interna no partido, ele não será burocrático; se sua função não é repressiva, e sim progressista, ele não será burocrático; e o partido não deve ser um mero executante, e sim um deliberador. Gramsci, portanto, sugere que o fortalecimento das instituições sociais dê-se antes da tomada do poder, e não depois, pois senão pode-se perder os objetivos e desvirtuar-se.

Algumas idéias de Nicos Poulantzas O problema das teorias relativas ao estado é que elas colocam a luta de classes como algo que apenas faz variar ou concretizar esse estado, e baseiam-se apenas nas relações de produção. As constantes mudanças pelas quais o estado passou mudaram profundamente suas relações de produção e sua divisão social do trabalho. É

necessária, portanto, a construção de uma teoria do estado que leve em consideração, partindo-se das relações de produção, as lutas de classes. Nota-se que as teorias marxistas ficam centradas em apenas um aspecto: todo estado capitalista é uma ditadura da burguesia. Acha-se que tudo o que acontece de ruim com o proletariado é culpa do estado e da burguesia, toda dominação política é uma ditadura de classe, e assim sucessivamente. É necessário, então, construir uma teoria que coloque as lutas de classes como papel histórico fundamental responsável pelas sucessivas mudanças e alterações pelas quais o estado capitalista passou no decorrer de sua existência. O estado capitalista coloca a burguesia como classe política dominante. É importante notar, contudo, que a classe dominante não é composta de uma burguesia, e sim de várias frações burguesas, que impõem suas vontades à direção do estado. O próprio estado é organizado para manter o interesse da classe burguesa dominante em longo prazo. O estado, contudo, dispõe de certa autonomia em relação a essas frações, pois ele está relativamente separado das relações de produção. Essa autonomia está garantida pelo fato de que o estado precisa dela para assegurar a organização do interesse geral da burguesia sob a hegemonia de uma de suas frações. O estado produz resultados não de forma mecânica, mas por meio de uma intensa luta entre as burguesias dominantes. Poder-se-ia, desta forma, supor que a orientação social dada pelo estado poderia mudar, desde que a fração dominante fosse operária. Existem duas concepções em relação ao estado: a primeira diz que o estado é uma Coisa, e que suas atitudes são tomadas pela simples manipulação por parte de uma única fração da burguesia, ou seja, o estado não tem nenhuma autonomia. A segunda diz que o estado é um Sujeito, e, portanto, tem uma vontade pensante, um poder próprio e, principalmente, autonomia em relação às classes sociais. O estado seria um instrumento para impor a política burguesa aos interesses divergentes e concorrentes da sociedade civil. Na concepção de estado-Coisa, cada fração dominante ficaria com a melhor parte para si, dando unidade ao estado. Já na concepção de estado-Sujeito, a unidade do estado seria uma decorrência do fracionamento da sociedade civil. O estado não é unitário. O poder do estado está disperso em cada ramo do mesmo. O poder é exercido, então, pela fração mais hegemônica, ou então pela aliança de várias frações contra outra ou outras. Por mais contraditório que pareça, é o jogo destas disputas na materialidade do estado que torna possível a função de organização do estado. A autonomia do estado não advém do fato de o estado manter-se exterior às frações do bloco de poder. A autonomia existe justamente pelas disputas de e pelo poder por

parte destas diversas frações. Isso não significa que não existam medidas coerentes, nem que o estado não tenha um papel próprio exercido por sua burocracia; o estado possui unidade de aparelho. Isto significa dizer que ele empenha todos os seus recursos para atender as reivindicações da classe ou fração hegemônica. Essa unidade está no núcleo do estado, por meio da própria divisão social do trabalho dentro dele próprio, e da separação específica das relações de produção. Pode-se dizer, portanto, que as medidas adotadas pelo estado têm como origem a fração ou classe dominante no poder, ou seja, as políticas que estrangulam certas classes e beneficiam outra(s). A classe hegemônica não utiliza apenas os aparelhos dominantes que já estão ao seu lado; usam todo o aparelho dominante do estado. Analisando-se agora um partido operário que quisesse fazer uma transição para o socialismo, vemos que não é necessário apenas tomar o poder de estado. Deve-se estender a transformação dos aparelhos de estado, e isso só é possível com a tomada do poder. O simples fato de a esquerda ocupar o poder não significa necessariamente que ela detenha o poder. A burguesia pode alterar os lugares do poder real e do poder formal. Além disto, mesmo que a esquerda detenha o poder e os aparelhos de estado, ela pode ainda não dominar o mesmo, caso a burguesia domine o pivô central do estado, ou seja, caso a burguesia seja a classe ou fração dominante. E mesmo que a esquerda domine o aparelho dominante do estado, a burguesia pode alterar este papel dominante, tornando dominante o papel que ela, burguesia, detém, e tirando o poder da esquerda. O estado é, portanto, um campo estratégico, que aceita permutações e trocas por parte da burguesia para que esta se mantenha sempre no poder; ele está sempre em mudança. Vale a pena ainda lembrar que, em relação aos aparelhos do estado, o poder propriamente dito situa- se difuso dentro do próprio aparelho, e não no cume, hierarquizado. Desta forma, caso a esquerda domine um aparelho, a burguesia existente dentro dele pode modificar o foco do poder e continuar manipulando tal aparelho. Assim, mesmo que a esquerda domine os cumes, resta saber se ela controla realmente os núcleos do poder real.

Implicações do paradigma alternativo para a ciência polit́ ica contemporânea Após essa revisão bibliográfica daqueles que consideramos como os autores marxistas mais importantes, pode-se chegar a algumas conclusões interessantes, e novas direções para o pensamento marxista podem ser definidas.

A primeira conclusão, clara e óbvia para todos que estudam um pouco a teoria marxista, é a mudança do enfoque da análise de classes entre Marx, Engels e Lênin, de um lado, e os demais marxistas, de outro. Os três primeiros fazem parte da chamada “análise restrita” do estado, uma análise que leva em consideração os meios repressivos de atuação do estado. As análises dos marxistas posteriores a estes três pensadores são consideradas como análise “ampliada” do estado, já que incluem, além dos meios repressivos, também os meios ideológicos e até mesmo legitimadores do estado em suas análises. A diferença não é difícil de ser explicada. Marx e Engels viveram em uma época onde o estado se refletia principalmente pelo poder Executivo. Praticamente não havia parlamentos, não havia eleições, não havia participação política da sociedade, não havia organização política da sociedade. Desta forma, com um estado, ele próprio, tão centralizado, nada mais lógico do que lutar contra o cerne, o núcleo desse estado; e, para que esta luta fosse bem-sucedida, era obviamente necessário utilizar-se da violência física contra este estado opressor e onipotente. A idéia de estado caracterizado apenas como “aparelho repressor” muda ainda ao final do século XIX; é por isto que Engels vai afirmar, ao final de sua vida, que a violência não deve ser usada mais para o ataque contra as posições ocupadas pelo estado, e sim para a defesa das posições conquistadas pelo proletariado. Além disso, a dominação de classe não se manifesta mais apenas por meio da coerção, mas também por mecanismos de legitimação que asseguram o consenso dos governados, como um parlamento eleito por sufrágio universal, partidos políticos legais e de massa etc. Conseqüentemente, a transição ao socialismo não ocorreria mais de forma abrupta e violenta, e sim dentro dos quadros legais existentes na república democrática – ainda que esta república continue exibindo características coercitivas e classistas. Engels enfatiza, assim uma transição processual ao socialismo, e não mais explosiva. Como explicar, então, a postura extremamente radical, violenta e explosiva de Lênin, que deu vida às suas idéias em termos teóricos após essas mudanças propostas por Engels? A explicação reside no contexto histórico. A Rússia czarista da época assemelhava-se, politicamente, a um país europeu do meio do século XIX, e daí advém a ênfase leninista em destruição do estado, destruição dos meios de exploração de uma classe sobre a outra; daí surge a idéia de que não é possível lutar contra o estado utilizando seus próprios mecanismos burgueses – notadamente as eleições. Para se efetuar mudanças sociais, os dominados deveriam utilizar sim a violência física, deveriam utilizar a força para atingir seus objetivos. Tal era a situação política da Rússia na época que permitiu que as idéias de Lênin dessem resultados concretos – com a Revolução de Outubro de 1917. Se a essência do estado reside em seus aparelhos coercitivos e repressivos, para Lênin é impossível substituir o estado

burguês pelo estado proletário sem uma revolução violenta, com a destruição completa da velha máquina estatal (nenhuma forma e/ou instituição do antigo aparelho de estado pode ser reformada) e com as massas operárias e camponesas estando conscientes de que só atingirão o poder por meio de uma revolução violenta. Se a solução “explosiva” deu certo na Rússia, assim não aconteceu nos demais países da Europa, notadamente nos da Europa ocidental. Porém, o marxismo não morreu – e surge então Gramsci para fazer a ampliação definitiva do conceito de estado. Ora, o que é esta ampliação do conceito de estado, senão o reconhecimento de que a luta de classes não se dá apenas entre os proletários, de um lado, e a burguesia de outro, sendo esta última apoiada única e exclusivamente pelo poder Executivo, mas sim entre os proletariados, de um lado, e a burguesia de outro, apoiada pelo poder Executivo, pelo poder Legislativo, pelo poder Judiciário, pelo sistema partidário, pelo sistema educacional, pelo sistema religioso... De um momento para outro, o estado ampliou sua área de atuação, trazendo novas dificuldades e desafios para a doutrina marxista. Não basta apenas lutar contra as armas: deve-se lutar também contra as idéias pelas quais estas armas lutam. É claro que o estado não deixa de ser um aparelho repressivo, que garante a dominação de uma classe sobre a outra meramente por meio de idéias. Ao contrário: o estado reforça essa idéias, essa dominação ideológica, por meio do seu já consolidado aparelho repressivo. No entanto, Gramsci destacou não apenas o que seria a “sociedade política” (conjunto de aparelhos pelos quais a classe dominante detém e exerce o monopólio legal da violência), mas principalmente o que seria a “sociedade civil” – que também estaria no campo da superestrutura e seria formada por sistema escolar, igrejas, partidos políticos, organizações profissionais, meios de comunicação, etc. O estado ampliou sua área de atuação; ampliou-se também a área de atuação da teoria marxista. A dominação de uma classe por outra não tem mais apenas justificativas ou explicações econômicas; as ideologias, as idéias passam também a ter papel fundamental nesta dominação. É importante destacar a função que ambas esferas executam na vida social. As duas esferas – força e idéias – formam o estado em sentido amplo: é a “hegemonia escudada pela coerção”. A parte coercitiva (sociedade política) abrange a todos de forma indiscriminada; a parte não- coercitiva (no sentido da violência, ou seja, a sociedade civil) abrange apenas aqueles indivíduos que a ela se submetem, sugerindo uma voluntariedade da dominação. Isto é claro: todos devem submeter-se à polícia, já que este é um aparelho repressivo do estado – ou seja, compõe a sociedade política. Mas o indivíduo escolhe, “livremente”, em qual escola ele vai matricular seu filho – ou seja, ele se voluntariza a

ser dominado por esta ou por aquela outra escola. Porém, mesmo no caso da sociedade civil, sua abrangência é imensa sobre a maioria da população. Será justamente essa sociedade civil gramsciana que faz a ligação entre a base econômica da sociedade (a infra-estrutura) e o estado em sentido restrito – que domina pelo uso da força. Inverte- se o argumento de Marx: a dominação não surge mais de baixo para cima, da economia para o político e o ideológico, da infraestrutura para a superestrutura; há condicionantes também na superestrutura que garantem, corroboram, legalizam esta dominação e exploração. Além disso, o estado – ou sociedade política – não necessariamente precisa dominar por meio da força: ele pode utilizar a sociedade civil – de uma escola, por exemplo – para inculcar nos indivíduos a sua vontade própria, ou seja, o estado em sentido restrito mantém contato com a infra-estrutura por meio de um incrível aparelho ideológico do estado. Como tomar o poder, em uma situação destas? A saída para Gramsci é simples: a classe que se propõe uma transformação revolucionária da sociedade deve ser uma classe dirigente (ou hegemônica) antes de ser dominante, ou seja, ela deve ter em suas mãos, primeiramente, os aparelhos ideológicos do estado. A classe revolucionária deve conseguir dominar ideologicamente a sociedade, deve primeiro apoderar-se da sociedade civil, infiltrar-se em uma “guerra de posições”, para só depois, concluída a conquista dos aparelhos ideológicos do estado, partir para o ataque contra os aparelhos repressivos do estado. É claro o caráter processual da transição revolucionária: deve haver uma expansão da hegemonia das classes subalternas, por meio da conquista progressiva de posições, resultando na imposição de uma nova classe ao poder do estado. O que fazer, no entanto, se as atividades do estado como garantidor da dominação e da exploração de uma classe por outra forem atividades intrínsecas a este estado, ou seja, se o estado tiver sido criado especificamente para isto? Mais ainda: o que fazer caso este estado reproduza as relações sociais – desiguais, é claro – de forma inconsciente? Como fica a luta de classes? Onde ela ocorre? Como o proletariado pode alterar os sistemas econômico, político, ideológico e social se o próprio estado, autonomamente, garante a reprodução e a continuidade do sistema atual? Essas são perguntas fundamentais para os estruturalistas marxistas, tanto para os estruturalistas em termos políticos – como Poulantzas – quanto para os estruturalistas em termos econômicos – como Offe. O problema se complica ainda mais se levarmos em consideração a existência não de uma, mas de várias burguesias – ou melhor, de várias frações da classe burguesa como um todo. O estado, estruturalmente, vai reproduzir as desiguais relações sociais; no entanto, cabe à fração burguesa dominante definir de que modo isto vai acontecer,

ou em outros termos, para qual lado o estado irá pender. O que resta ao proletariado? Resta enfatizar a luta de classes não apenas na tomada do poder formal, mas em todo e qualquer espaço existente, disponível, a ser preenchido por alguém da classe dominada. Por que isto é necessário? Porque a classe dominante, obviamente, se sente satisfeita pelo estado refletir estruturalmente a divisão da sociedade em classes e, conseqüentemente, reproduzir tal divisão sem a necessidade da presença constante dos dominantes nas estruturas do estado. No entanto, caso os proletários consigam atingir o poder – principalmente no caso disto ocorrer por meios formais –, a classe dominante tem condições de alterar o verdadeiro foco do poder. Por exemplo, ela pode tirar o poder das mãos do poder Executivo, ocupado naquele momento por um representante da classe dominada, e transferir esse poder para o poder Legislativo, caso este ainda esteja nas mãos da classe dominante. Ou seja, o poder real passa de uma instituição a outra, de um ramo a outro do estado, e este continuará, portanto, a simplesmente reproduzir as desigualdades sociais. É necessário, então, organizar e realizar a luta de classes em todas as “trincheiras” possíveis, em todos os espaços disponíveis, para que a burguesia não possa alterar o foco do poder real – para que o proletariado consiga, efetivamente, tomar o poder e realizar as mudanças necessárias. A situação é um pouco mais complicada quando se reconhece que o estado é, estruturalmente, um estado capitalista – ou seja, ele beneficia a classe burguesa não apenas porque ele é um reflexo da sociedade, e as desigualdades da sociedade estão dentro de sua própria estrutura, mas porque o próprio estado depende da economia capitalista para sobreviver como tal. Aqui, a autonomia estatal é ainda maior: o estado deve assegurar as relações de dominação e de desigualdade entre as duas principais classes da sociedade porque, caso não faça isto, ele mesmo desaparece. Ou seja, o estado, nesta visão, depende da existência de uma classe burguesa dominante e depende também da manutenção desta classe como tal. No entanto, esse estado estruturalmente capitalista não pode se mostrar como tal. Ao contrário, o estado deve, sempre, se mostrar como autônomo em relação a todas as classes sociais; deve se mostrar como aquela instituição que busca “o bem comum”, “o melhor para todos”, independentemente de conflitos de classe. No entanto, “por baixo dos panos”, o estado garante e perpetua a dominação burguesa, já que depende dos dividendos auferidos por meio de impostos para sobreviver como tal. Em suma, podemos ver como um amplo leque de “opções” a serem analisadas pelos marxistas surgiu com a ampliação do estado. Ao abarcar novas tarefas para si, o estado tornou-se, obviamente, mais forte, mais presente na sociedade, mas também mais vulnerável, com mais flancos por onde ser atacado. No entanto, o embate entre “burguesia e proletariado”, entre um estado “neoliberal” e um estado “socialista”

ainda está longe de acabar: por mais que se mostrem as deficiências do estado capitalista, este sempre tenta se manter, se reproduzir, utilizando-se de todos os meios disponíveis – a força e as idéias. Cabe aos marxistas encontrar fórmulas que efetivamente minem a estrutura capitalista e levem a sociedade a um patamar melhor do que o atual, sem, entretanto, basear-se em “ilusões” reformistas, que prometem muito e pouco fazem. __________ Notas: 1 Tal diferenciação, útil para Schwartzenberg, é veementemente criticada por Borón

(2003, cap. 2).

Estado e democracia na literatura da ciência política contemporânea Conforme explicitado anteriormente, o Capítulo Dois se dedicará à apresentação das idéias de alguns dos artigos publicados em revistas acadêmicas nacionais e internacionais e que tratam dos temas estado e democracia, bem como da relação entre os mesmos. O objetivo é mostrar um pouco sobre o que foi escrito a respeito dos conceitos de estado e de democracia nos últimos quinze anos, separando os artigos de acordo com o paradigma ao qual fazem parte. Seguindo a estruturação do trabalho até o momento, iremos dividir este capítulo em duas partes. A primeira será baseada nos artigos que fazem parte do paradigma dominante, enquanto a segunda parte irá se basear naqueles que fazem parte do paradigma alternativo. Nenhuma análise será feita neste capítulo, pois o objetivo neste momento será o de apenas apresentar as idéias publicadas nos últimos anos. Começaremos a apresentação mostrando o que foi publicado por aqueles textos que se enquadram no paradigma dominante. Em primeiro lugar, exibiremos textos que fazem uma defesa do pluralismo como única possibilidade de surgimento, de garantia e de aprofundamento da democracia nos tempos atuais. Posteriormente, apresentaremos textos que fazem avaliações sobre a democracia pluralista, ou seja, que debatem a noção de como os conceitos de democracia são avaliados pela população submetida à mesma, bem como debatem como a população analisa a eficácia e a eficiência da democracia. O terceiro bloco é composto de textos que tratam das relações entre pluralismo e democracia, com ênfase especial para os processos de redemocratização da América Latina e como tais processos foram vistos por alguns teóricos. O quarto bloco de textos do paradigma dominante refere-se a textos que criticam conceitos pluralistas modernos, mas que propõem a solução dos problemas por meio destes mesmos conceitos, aplicados de maneira diferente do que a habitual.

A defesa do pluralismo no paradigma dominante O primeiro texto, de Bruno Reis (2003), trata do desenvolvimento do mercado e da democracia no decorrer da história humana. O autor defende a idéia de que, a partir de determinado período, o desenvolvimento dessas duas “entidades” foi concomitantes, o que trouxe problemas para suas respectivas definições iniciais, ou seja, um conceito influenciou e foi influenciado pelo outro. A solução apresentada pelo autor para a solução das divergências entre o mercado e a democracia é a aplicação de uma

democracia procedimental, como veremos abaixo. O artigo de Reis tem como objetivo fundamental tratar as relações entre estado e mercado e como as mesmas se refletem na teoria democrática. Segundo o próprio autor, seu ensaio (...) procura analisar o problema das relações entre o estado e o mercado, entre a democracia e o desenvolvimento, a partir da clássica proposição segundo a qual a plena operação de uma economia de mercado requer a existência de um estado formalmente institucionalizado, não só para assegurar a operação impessoal das normas vigentes, mas também para atuar distributivamente de maneira a minimizar as inevitáveis externalidades provocadas pela intensificação dos laços de interdependência humana que a própria expansão do mercado favorece (Reis 2003, 55). Segundo o autor, a ampliação do mercado leva à expansão do estado como forma de regular o primeiro; ao mesmo tempo, a aplicação dos conceitos neoliberais à estrutura do estado moderno não deve ser encarada como solução para conter o aumento do tamanho do estado. Reis (2003, 56) pretende, portanto, “(...) discutir os efeitos que a operação da política produz sobre a dinâmica econômica e, mais precisamente, sobre a condução política do funcionamento da economia em sociedades modernas”. Reis inicia sua exposição sobre o mercado baseando-se no livro Economia e sociedade, de Max Weber. Ele pretende trabalhar com um tipo ideal weberiano, já que considera que as análises atuais sobre o tema trabalham mais sobre a maneira de operar do mercado do que sobre o próprio conceito de mercado em si. No âmbito de tal tipo ideal, o mercado é visto como uma relação comunitária, na qual as pessoas que tomam parte de tal relação se sentem como se pertencessem a um mesmo grupo e assim se comportam de maneira subjetiva, e não como uma relação associativa na qual se considera que a união é feita buscando se atingir objetivos racionais de maneira objetiva. A relação é considerada efêmera, pois a mesma acaba com a finalização da troca, e a participação de cada indivíduo nessa relação não é objeto de elucubrações racionais visto que a decisão de participar ou não de um mercado não é racionalmente tomada – todos têm a possibilidade de participar nessa relação já que potencialmente podem ser vendedores ou compradores de qualquer coisa. “Assim, a apreensão weberiana do conceito de ‘mercado’ identifica nele a forma de socialização por excelência que é simultaneamente interessada (‘societária’) e solidária (‘comunal’) (...)” (Reis 2003, 56): ao mesmo tempo em que os participantes da relação de mercado podem realizar suas trocas sem se preocuparem com o bem-estar dos outros, reconhecem que a outra parte tem direitos nessa relação que não podem ser violados – o que caracteriza um tipo de comunidade. O mercado, por um lado, é

uma relação fria e impessoal, mas ao mesmo tempo é a única relação pacífica entre estranhos: “Daí a ambigüidade fundamental do mercado: emancipatório por autorizar a perseguição de fins pessoais, independentemente da opinião alheia; e (o outro lado da mesma moeda) opressivo por viabilizar, rotinizar e – por fim – legitimar a indiferença recíproca” (Reis 2003, 58). As sociedades modernas e complexas têm como base as relações mercantis, que facilitam o contato entre “estranhos” e possibilitam o desenvolvimento destas mesmas sociedades. Cabe então responder à pergunta: “(...) qual a peculiaridade da nossa época que faz emergir e disseminar-se tão vigorosamente esta estrutura historicamente sui generis – a economia de mercado” (Reis 2003, 59, grifos no original)? Quais são os valores e as instituições específicas de uma sociedade racionalizada que fazem com que a mesma tenha sua vida social regulada pelo mercado? Reis propõe a utilização do materialismo histórico de Marx para responder a esta pergunta: “(...) é difícil conceber qualquer teorização sobre processos de mudança social de largo alcance que deixe de aludir (...) às condições ideais de estabilidade ou instabilidade de determinadas configurações sociais descritas de maneira sistêmica (...)” (Reis 2003, 59). Ao se defrontar com dificuldades crescentes, a sociedade complexa necessita do mercado para, de maneira rápida, atomizada e descentralizada, satisfazer suas necessidades funcionais; tal necessidade não explica a criação do mercado, mas sim sua disseminação com a modernização da sociedade. Com tal disseminação em mente, devemos trabalhar, segundo Reis, com a idéia de que “(...) estamos condenados a reservar ao mercado um papel extremamente relevante na configuração de qualquer mundo futuro que concebamos” (Reis 2003, 60), já que é este mercado que permite que relações entre estranhos aconteçam da melhor maneira possível. No entanto, tal ampliação do papel do mercado e a transformação do mesmo na base material que rege as relações sociais dos indivíduos fazem com que o mesmo chegue à fronteira que o separa de outro tipo de relação importante: a política. Com a imprevisibilidade típica das “sociedades comerciais” no que concerne às possibilidades de acumulação de riqueza (logo, à multiplicação das fontes potenciais de poder na sociedade), bem como a atomização decisória induzida pelo princípio mercantil, impõe-se cedo ou tarde um relativo igualitarismo polí tico como forma de incorporar de modo rotineiro os relativamente imprevisíveis deslocamentos das fontes de poder em uma economia de mercado (Reis 2003, 60, grifos no original). Como todos podem participar igualitariamente nas relações de mercado – ainda que as mesmas tenham como base a desigualdade, já que uns irão oferecer o que outros não têm –, supõe-se que todos poderão também participar igualitariamente na arena

política, já que esta é regulamentada por leis e/ou normas que impeçam o abuso de uns sobre outros. Vale destacar, no entanto, que a extensão de direitos políticos aos indivíduos não é conseqüência dos seus “direitos mercadológicos”, ou seja, o fato de um indivíduo poder participar das relações mercantis não garante ao mesmo o direito de participar nas relações políticas. Como diz Reis (2003, 61), “(...) a relação de afinidade e dependência recíproca entre democracia e mercado acima postulada não impede que o próprio processo de modernização – tanto em sua dimensão material como em seus desdobramentos políticos – se dê de maneira conflituosa e mesmo violenta (...)”. Entretanto, há evidências históricas que mostram que o surgimento de uma ordem competitiva no âmbito do mercado permitiu ou até mesmo facilitou o surgimento de uma ordem competitiva também no âmbito da política, ainda que tal processo não tenha se pautado sempre por princípios competitivos ou democráticos, pois o sucesso econômico do mercado produz focos de poder que são externos a qualquer elite política anteriormente definida. (...) A existência de uma classe proprietária de terras poderosa é a fonte histórica por excelência da “adscrição” social: se ela se enfraquece, isso por si só já é um sintoma da afirmação de uma sociedade mais competitiva – e, em alguma medida, mercantil, se se trata de uma sociedade complexa. E o enfraquecimento dessa classe aparece como condição relevante do avanço da causa democrática (...). Ademais, parece-me evidente que tanto a competição no mercado econômico como a democracia repousam – ao menos parcialmente – sobre os mesmos princípios de legitimidade, os mesmos postulados morais individualistas: a afirmação de si, a busca individual da felicidade, a legitimidade de se ir à procura de interesses próprios. (...) O papel central desempenhado pelo mercado na moderna sociedade complexa induz a alguma competição também na esfera política (...) (Reis 2003, 61-2). Em um ambiente de concomitante existência de dois focos de poder principais – o mercado e o estado –, a relação entre os mesmos deve ser pautada por ordenamentos jurídicos que garantam a proteção dos direitos individuais dos cidadãos nesses sistemas de troca – já que, em última instância, tanto as relações mercantis quanto as políticas se dão entre os indivíduos. Supõe-se, assim, uma predominância do estado sobre o mercado, pois é o primeiro que irá definir e aplicar as leis, as normas, as regras e as punições aos eventuais infratores, o que irá garantir uma troca de produtos com base na competição justa entre os indivíduos. Reis (2003, 63) nota que (...) não há motivo para se presumir que as normas necessárias à operação

rotineira do mercado sejam apenas as destinadas à proteção da propriedade privada e da integridade física dos participantes. (...) Saúde e educação, por exemplo, podem ser bens tão públicos quanto a segurança. Epidemias podem, em princípio, devastar uma economia. Da mesma maneira, sem regulação estatal o mercado, seguindo mecanismos estritamente racionais, poderá criar uma crise de superprodução, ou ainda poderão surgir monopólios e/ou oligopólios que, apesar de serem individualmente a expressão máxima da racionalidade, irão contribuir para o declínio e eventual “fechamento” do mercado. Este apenas poderá funcionar em sua potencialidade máxima se houver um aparelho estatal que seja o “fiador” das normas, regras e leis junto ao público, ao mesmo tempo em que coordena as expectativas de uma maneira que seja coletivamente desejável. No entanto, mesmo com a clara necessidade de coordenação da sociedade pelo estado – incluindo- se aqui também o controle do mercado –, há aqueles que defendem que as atividades mercantis devem ser deixadas livres para que sejam “automaticamente reguladas” pela competição entre os que tomam parte nas relações mercantis – “(...) o que produz nos autores liberais a visão do mercado como ‘ordem espontânea’ e os induz à defesa do ‘estado mínimo’. Entretanto, dada a relativa ineficácia da sanção moral em uma sociedade complexa (...)”, cabe ao estado coordenar a sociedade por meio das normas citadas anteriormente para garantir uma “regulação competitiva mercantil da coexistência” entre os entes que tomam parte das relações de mercado, e entre estes e os demais entes da sociedade que tomam parte das relações políticas de uma sociedade (Reis 2003, 65). O estado liberal deverá ser um estado “expandido” por natureza, já que é sua função proteger os direitos dos cidadãos de determinada sociedade. O estado liberal deve “(...) exercer maior controle e maior vigilância que seus antecessores sobre os atos dos cidadãos, ainda que o governante esteja, simultaneamente, mais constrangido por normas legais do que em outras formações políticas” (Reis 2003, 65). Uma destas funções é a própria proteção da propriedade privada, base do liberalismo, pois é com a existência desta propriedade privada que o próprio estado irá subsistir por meio do recolhimento de impostos. É uma situação contraditória: o liberalismo deseja que o estado seja o menor possível, não interferindo em nenhum momento nas relações econômicas; no entanto, a interferência nessas mesmas relações econômicas é fundamental porque é ela que garante a existência da propriedade privada. Ao mesmo tempo, ao estado cabe o direito de impor compensações aos eventuais grupos que se sintam prejudicados e façam pressão junto ao estado para serem beneficiados de alguma maneira.

A intervenção estatal cada vez maior nas relações econômicas se dá como resultado da conquista paulatina, por parte dos cidadãos (em contraposição à elite governante), dos direitos civis e dos direitos políticos, culminando com a obtenção e garantia dos direitos sociais. A possibilidade de tirania da maioria voltava à tona no início do século XX, com a possibilidade de que a própria sociedade escolhesse, de maneira democrática, ser governada despoticamente. “A partir do início do século XX (...) generaliza-se a intervenção governamental nas disputas na indústria, o que traz como contrapartida natural a intervenção, fragmentada que seja, das corporações no funcionamento do governo” (Reis 2003, 67). Ainda segundo o autor, é este cogerenciamento da sociedade praticado pelas elites política e econômica, somado à participação política dos cidadãos, o que levou ao surgimento dos estados de bemestar social após a Segunda Guerra Mundial, quando os indivíduos passam não apenas a lutar pelos seus direitos, mas também passaram a ter consciência dos seus deveres como cidadãos. Por outro lado, os governos e o mercado se vêem frente à necessidade de incluir todas as camadas sociais nas relações políticas e mercadológicas, já que é apenas por meio desta inclusão (social) que as aspirações da sociedade serão concretizadas e o sistema se manterá em equilíbrio. “Contemporaneamente, lidamos (...) com os riscos envolvidos no recente processo de desregulamentação econômica no plano infranacional, que freqüentemente tem resultado em certo desmantelamento do conjunto de normas que compõem os direitos sociais” (Reis 2003, 71). O resultado desta desregulamentação, no entanto, levará a um movimento contrário, de mais regulamentação e de intervenção estatal cujo objetivo é a manutenção do status quo – incluído aqui a manutenção de um nível mínimo de vida para os cidadãos, já que sem este nível mínimo de vida a possibilidade de revoltas ou revoluções aumentaria bastante. No entanto, como esta regulamentação será variável para cada ator envolvido no processo, a tendência é surgimento de “(...) longos períodos de grave turbulência política (...)” como resultado do atual processo de desintegração do estado nos moldes neoliberais. Devido à desregulamentação ocasionada pela necessidade de reforma do estado, a situação da democracia seria complicada e delicada. (...) Parece imprevisível o efeito desse desmantelamento da legislação social sobre a legitimidade futura do arcabouço institucional das democracias contemporâneas. (...) Se se dissemina a percepção de que o sistema político simplesmente se torna injusto, deixando de promover alguns valores socialmente compartilhados, então todo o aparato institucional democrático se tornará particularmente vulnerável a eventuais “ataques carismáticos” (Reis 2003, 71, grifos no original).

Ou seja, a desregulamentação e desfragmentação estatal promovida pelos neoliberais leva à ausência de democracia – ou, pelo menos, à diminuição das possibilidades de participação democrática por parte dos cidadãos, já que o estado deverá regular cada vez mais a sociedade e o mercado para que o próprio país não entre em colapso. A conclusão a que o autor chega é que a democracia legítima na sociedade moderna depende de um fator importante – o caráter procedimental da democracia: “(...) esses procedimentos apóiam-se em formas específicas de tratamento entre pessoas tomadas individualmente, pessoas essas cujo bem- estar (definido de maneiras variadas por cada uma delas) se torna o grande fim legítimo a ser buscado (...)” (Reis 2003, 72). Ao não buscar “fins substantivos”, a democracia de procedimentos garante que todos poderão buscar seus fins de acordo com suas convicções, seus meios e seus desejos específicos, os quais nem sempre são compatíveis com os dos demais indivíduos pois, na sociedade moderna, liberal, o fim a ser coletivamente perseguido não mais pode consistir em um feito coletivo, mas sim numa certa liberdade – desfrutada individualmente – para buscarmos o fim que pessoalmente nos aprouver, contanto que ele não inclua o uso direto de violência sobre terceiros (Reis 2003, 72). Apenas com a igualdade de oportunidades, somada a uma certa supervisão do estado (para evitar que a busca da felicidade por um não diminua as chances de outro) é que a democracia estará garantida e segura. Só com uma competição justa entre os indivíduos é que os mesmos podem lutar por seus objetivos sem atrapalhar ou prejudicar outros indivíduos que também farão de tudo para a obtenção dos seus próprios objetivos. (...) O poder público tem a atribuição complexa e paradoxal de interferir continuamente na operação do mercado para de fato refundar permanentemente o próprio mercado, ao mantê-lo em um estado tão próximo quanto possível da “concorrência perfeita” e amparar minimamente os casos de insucesso, dada a tendência concentradora que resulta da livre interação dos agentes econômicos no mercado (Reis 2003, 72, grifos no original). Uma análise prática dessas divergências existentes entre o mercado e a democracia, e sobre qual a esfera em que um e outro podem atuar, é dada por Bonney (2004). O autor faz um estudo de caso no Reino Unido, e pretende mostrar como as reformas implantadas pelo que chama de “Novos Trabalhistas” a partir de 1997 e aprofundadas posteriormente por Tony Blair não trouxeram os resultados esperados, ou seja, tais reformas, ao invés de melhorarem e aprofundarem a democracia no Reino Unido,

fizeram com que, ao contrário, uma nova classe de burocratas surgisse e, além disso, fizeram também com que, em nível local, o país se tornasse ainda menos democrático do que era antes. O autor defende tal idéia partindo de estudos feitos por outros autores, estudos estes que mostraram que (...) entre as críticas [feitas ao] sistema então existente (...) estão uma alegada falta de accountability e responsividade para com as pessoas, baixa participação nas eleições, falta de participação popular em nível local e de envolvimento deliberativo na tomada de decisões, centralização do governo (...) e um número comparativamente baixo de pessoas em posições eleitas (Bonney 2004, 43, grifos no original). Bonney afirma ainda que os “Novos Trabalhistas” impuseram uma reforma no modelo político de então do Reino Unido por acreditarem que o nível local de tomada de decisão estaria nas mãos dos “Velhos Trabalhistas”. Com o objetivo de não perder o poder, os “Novos Trabalhistas” propuseram um novo sistema político, mais centralizado, onde os níveis locais dependeriam diretamente do nível nacional e funcionaria como uma extensão do governo central em nível local: “não se deve confiar no governo local”. Este passou a trabalhar em conjunto com agências públicas e privadas, as quais traziam as determinações diretamente do governo central para serem aplicadas em nível local (Bonney 2004, 43-4). Citando uma série de exemplos, Bonney chega à conclusão de que as diversas agências inglesas que promovem a “inclusão social” são geridas pelo governo central, seja por meio de apoio financeiro, logístico ou mesmo institucional. Os Programas de Inclusão Social (SIPs) são, na realidade, iniciativas do poder Executivo escocês (vindas do poder central) que foram estabelecidas separadamente da autoridade local, mas com um limitado envolvimento das autoridades locais por toda a Escócia. Eles são uma indicação direta da falta de fé, por parte do governo central, nas autoridades locais, e também uma tentativa de trabalhar de maneira independente das mesmas, ainda que haja, até certo ponto, uma associação com o governo local (Bonney 2004, 45). O financiamento de tais programas é independente (privado), o que faz com que a prestação de contas seja trabalhosa e, muitas vezes, não seja completa. Se tais iniciativas fossem tomadas por parte das autoridades locais, o problema de falta de accountability não aconteceria. Tais agências e organizações, por trabalharem de maneira privada ou fechada, não permitem o controle público de suas ações. O máximo que o cidadão comum consegue obter de prestação de contas em relação a tais organizações vem por meio da mídia, a qual também distorce o conteúdo da

mensagem. Cria-se uma estrutura para-governamental que cresce à sombra e com o auxílio e incentivo do governo central e dos próprios governos locais, já que estes, destituídos de seu verdadeiro poder político, não vêem outra alternativa que não seja se aliar a tais corporações para garantir ainda algum tipo de participação na tomada de decisões. “(...) O resultado cumulativo é uma profunda falta de coerência em geral e de accountability” (Bonney 2004, 45, grifos no original). Por outro lado, ao mesmo tempo em que garantiu às organizações de “inclusão social” um importante e decisivo papel na tomada de decisões em âmbito local, o governo dos “Novos Trabalhistas” também buscou novas maneiras de integrar a população nos processos de criação de políticas públicas e de tomada de decisão do governo local. Tais maneiras incluem “(...) inovações como assembléias cívicas, painéis públicos, júris populares e fóruns de área[s específicas]” (Bonney 2004, 46). O exemplo dado pelo autor refere-se à cidade de Aberdeen, onde foi fundado um “Fórum Cívico” no qual os diversos grupos e organizações da comunidade são representados. Tal Fórum tem como função principal dar conselhos e idéias à “Aliança da Cidade de Aberdeen”, que por sua vez é uma organização que incorpora outras dezesseis agências envolvidas no plano de desenvolvimento da cidade. Representantes vindos do Fórum têm o direito de participar do próprio processo de tomada de decisões dentro da Aliança, e esta, por sua vez, criou outros fóruns internos sobre os mais diversos assuntos. A conseqüência deste sistema é “(...) o estabelecimento de um grupo de cidadãos ativos como representantes do público por meio de mecanismos que são menos defensáveis democraticamente do que aqueles que criam como autoridade local membros eleitos” (Bonney 2004, 47), já que estes últimos são responsáveis frente ao restante da população e necessitam do apoio de parte da mesma para se manterem como representantes eleitos, além de conduzirem seus trabalhos de maneira pública e, portanto, responsiva. Assim, apesar deste novo sistema implantado se dizer responsivo e aberto à participação popular, é duvidoso dizer que o mesmo aprimora a democracia em nível local. “Outra forma de aprimorar a participação popular no sistema democrático local que foi recentemente proposta com entusiasmo e recebeu apoio oficial (...) e que também requer alguma atenção crítica são os júris dos cidadãos e os painéis públicos” (Bonney 2004, 49). No primeiro caso, permite-se que um pequeno número de residentes participe de discussões abrangentes e de debates sobre os maiores problemas que afetam suas comunidades. Suas conclusões podem ou não influenciar as decisões da autoridade local. Tal mecanismo faz com que a autoridade local tome suas decisões sabendo qual a opinião e o ponto de vista dos cidadãos a respeito daquele determinado tema em pauta, os quais são selecionados antecipadamente pela

autoridade local. O problema desse mecanismo é o fato de que ele garante a participação a apenas uma pequena parcela da população, pois são proporcionalmente poucos os que tomam parte nos debates sobre os temas relevantes; além disso, “(...) pode-se argumentar que eles [os júris] são essencialmente ferramentas do Executivo. Seu uso indica uma falta de credibilidade nos processos democráticos representativos normais e ajuda a minar os mesmos ainda mais, ao surgirem como uma nova opção em relação aos mesmos” (Bonney 2004, 49). Já os painéis públicos são mecanismos de larga escala de representação de cidadãos que se submetem a questionários sobre a qualidade, a eficiência e a satisfação – dentre outros itens – em relação aos serviços prestados e às políticas criadas pela autoridade local. No entanto, as mesmas críticas feitas aos júris dos cidadãos são feitas também aos painéis públicos: eles “(...) superrepresentam os grupos sócio-econômicos das camadas mais altas, os usuários dos serviços públicos e aqueles mais favoravelmente inclinados [a avaliar positivamente] tais serviços” (Bonney 2004, 49). Para Bonney, a solução para esses problemas de falta de participação é o fortalecimento da democracia representativa local. (...) Uma tendência do contínuo debate democrático é composto pelos desafios à representatividade e à legitimidade da forma de organização das várias instituições democráticas. (...) Isso se aplica tanto às inovações associadas com a tentativa de revigorar a democracia local quanto às instituições [democráticas] mais fortalecidas (...) (Bonney 2004, 50). O novo sistema proposto pelos “Novos Trabalhistas” falhou tanto por achar que o sistema antigo era falho (o que não era verdade) quanto por imaginar que as soluções propostas resolveriam todos os problemas. Portanto, o autor afirma que se por um lado as soluções propostas foram boas para se pensar novas formas de democratização da sociedade, por outro apenas a democracia representativa em sua concepção liberal é capaz de garantir, ao mesmo tempo, a necessária accountability e a suficiente participação popular no governo local no Reino Unido. Três autores buscam, por meio do modelo pluralista, solucionar o problema identificado por Bonney. As idéias de Hunold (2001) e de Guildry & Sawyer (2003) são uma tentativa de se mostrar que o pluralismo pode solucionar a alegada falta de democracia nos países ocidentais. Hunold faz uma defesa explícita defesa do pluralismo como o mecanismo primordial para a solução dos problemas políticos por meio de uma real deliberação pública, enquanto Guildry & Sawyer lançam a idéia chamada por eles de “pluralismo contestatório”, que seria uma nova forma de se enxergar o pluralismo e de garantir a participação política das classes populares na política sem grandes mudanças estruturais. O ponto de partida de Hunold é o seguinte:

Contrariamente ao que é expresso pelos corporativistas democráticos, recentes práticas pluralistas de representação dos interesses também parecem ser compatíveis com a deliberação pública. Assim, um movimento em direção a uma maior abertura na tomada de decisão administrativa é possível tanto do ponto de vista pluralista liberal quanto do corporativista. O corporativismo claramente não tem o monopólio sobre a deliberação democrática (Hunold 2001, 151). Para ele, as agências governamentais têm como função principal a formulação de regras e de regulamentações cujo objetivo é transformar os desejos do Legislativo em leis estabelecidas e válidas para todos. No entanto, tal função é frequentemente executada por pessoas que não foram eleitas pela população, e este é o principal desafio para a democracia contemporânea: fazer com que os Legislativos voltem a ter predominância na tomada de decisões em detrimento das agências administrativas governamentais (Hunold 2001, 151). A solução proposta pelo autor é a aplicação da teoria de democracia deliberativa às agências estatais, fazendo com que o nível de participação popular seja aumentado e também com que as demandas da população sejam ouvidas e postas em prática. Com isto, objetiva-se também aumentar o accountability das agências governamentais em relação à sociedade por meio do envolvimento direto do público no processo de tomada de decisão. Nesse processo, tem-se como base a idéia de que apenas por meio do corporativismo tal participação seria viável e efetiva. O autor, entretanto, pretende refutar essa idéia mostrando que a democracia deliberativa, com intensa participação popular, pode existir e ser efetiva tanto em um ambiente corporativista como em um ambiente liberal (Hunold 2001, 152). “Em uma democracia deliberativa, os cidadãos usam a deliberação pública para tomar decisões coletivas. A deliberação pública envolve a troca de idéias cujo objetivo é avaliar alternativos rumos de ação a serem levados a cabo pelos políticos” (Hunold 2001, 152). Os cidadãos, em um ambiente de democracia deliberativa, expõem suas idéias, escutam as idéias dos outros, trocam críticas acerca das mesmas e, após um intenso debate onde todos têm a possibilidade de expressar seus pontos de vista, uma decisão coletiva a respeito de determinado assunto é tomada, com a aceitação e legitimação de todos que participaram do processo de deliberação. O grande atrativo da democracia deliberativa é a possibilidade de participação de todos no processo de tomada de decisão, o que se traduz em uma grande legitimidade democrática do resultado final. Segundo Hunold (2001, 152), o processo de tomada de decisão não se resume à possibilidade dada a todos de falar: outros requisitos devem existir para que o processo seja considerado democrático, tais como a participação de todos afetados pela decisão, uma verdadeira igualdade política substantiva, igualdade no momento de

se definir a pauta de discussão e a troca livre e aberta de informações entre todos os participantes do processo deliberativo. Ainda segundo o autor, três são as principais objeções feitas à aplicação do método deliberativo à tomada de decisão da administração pública. A primeira delas é a de que a democracia deliberativa requer consenso, sendo que este é impossível de ser atingido na sociedade moderna devido à sua complexidade. No entanto, argumenta Hunold, (...) a democracia deliberativa não requer que todos os cidadãos concordem pelas mesmas razões (...) [É possível] que a legitimidade democrática [requeira] apenas uma cooperação contínua na deliberação pública, mesmo com desacordos constantes. Esse ideal de cidadania democrática requer apenas que os cidadãos continuem a cooperar e a se comprometerem mutuamente em um processo constante de diálogo para resolver os problemas e conflitos comuns a todos (Hunold 2001, 153). A segunda crítica ao processo de democracia deliberativa afirma que ela é ineficiente por ser lenta, já que, por precisar do consenso e da participação de todos os envolvidos no problema, o debate entre todos os participantes levará mais tempo e o problema demorará mais para ser resolvido. Por outro lado, os defensores da democracia deliberativa afirmam que, apesar do tempo gasto para se chegar a uma solução consensual, o tempo geral será diminuído, pois com mais consenso da população sobre determinado assunto menores serão as chances de acontecerem disputas legais na justiça entre pontos de vista diferentes sobre aquele determinado assunto. Além disso, a implementação da política pública será mais rápida, por já haver um consenso prévio onde todos sabem o que será implantado, o que se espera de cada um e quais serão os resultados daquela política pública, já que todas essas informações já serão de conhecimento público devido ao processo de deliberação. Mesmo que um consenso não seja atingido em determinada política pública (como no caso do aborto), o processo deliberativo terá sido também benéfico por permitir que todos os lados envolvidos na questão tomem conhecimento de opiniões e posições contrárias, o que favorece o aumento de conhecimento geral de todos sobre o problema em questão; ainda, a administração pública terá uma melhor base com mais informações para tomar suas decisões (Hunold 2001, 154). A terceira crítica à aplicação da democracia deliberativa na administração pública refere-se ao fato de que este processo de deliberação não consegue acomodar os interesses conflitantes, o que, em um ambiente de administração pública, traria ineficiência à administração. Entretanto, argumenta Hunold, “(...) os interesses não podem ser conhecidos antes de um processo de deliberação pública”, ou seja, os

interesses não são fixos ou dados e sim descobertos e transformados no decorrer do debate público sobre determinado assunto; sem a deliberação, os interesses não serão levados em consideração no momento de se definir a política pública ideal para aquele problema. Além disso, por “interesses” deve-se ter em mente os interesses gerais dos cidadãos, e não interesses específicos ou pessoais que não podem ser levados em consideração durante o processo de deliberação. É claro que, na política, interesses pessoais existem, mas os mesmos devem ser transformados ou acomodados para satisfazerem os interesses gerais daqueles que estão participando do debate em torno de determinado tema (Hunold 2001, 155). Hunold pretende, também, mostrar como controlar o poder administrativo, com seus oficiais não eleitos, por meio da deliberação pública. Isto é importante porque as (...) agências administrativas ganharam a autoridade de criar regras que definem a base da política pública sem serem sujeitas a um nível razoável de prestação de contas. (...) O desafio é criar ligações entre as instituições administrativas e suas decisões e redes e associações de deliberação, contestação e argumentação (...) (Hunold 2001, 156). Cada agência administrativa deveria criar sua “esfera pública de atuação” – uma esfera que envolve todas as pessoas que se sintam afetadas pelas decisões a serem tomadas por aquela própria agência administrativa. Ao mesmo tempo, as próprias agências deveriam ser encorajadas a solucionarem seus problemas por meio de processos deliberativos, participando de discussões e debates que serviriam para se alcançar uma solução em comum para todas as agências envolvidas. As agências deveriam reportar-se frequentemente ao seu público específico, garantindo assim o accountability de suas ações e os resultados dos mesmos (Hunold 2001, 156). Para que tal mudança acontecesse, três pontos fundamentais devem ser considerados. O primeiro deles refere-se à publicidade: “a publicidade exige que as agências administrativas divulguem as regras propostas para discussão e crítica públicas”. Para que se possa haver deliberação sobre determinado assunto, é necessário que o mesmo seja conhecido. Da mesma forma, é necessário que a opinião da agência seja divulgada, a partir da qual as pessoas e/ou grupos interessados no assunto passem a debater e deliberar sobre o tema. Entretanto, deve-se atentar para o fato de se evitar que essa abertura à participação seja feita em termos corporativistas, com apenas pessoas diretamente relacionadas à área em debate participando do processo (Hunold 2001, 157). O segundo ponto fundamental refere-se à igualdade: na situação atual, as agências muitas vezes “ouvem” o que seus “clientes” têm a dizer; no entanto, o fato de serem

ouvidos não garante que suas vontades serão postas em prática. Muitas vezes as agências se relacionam de maneira direta com seus “clientes” mas não põem em prática as demandas dos mesmos. Portanto, para que o processo de democracia deliberativa seja eficiente, os cidadãos devem participar de maneira igualitária com os oficiais administrativos e com os peritos técnicos. Na prática, isso significa que todos os participantes das deliberações políticas deveriam ter a mesma chance de definir tópicos, apresentar idéias e formar a agenda. A participação igualitária na discussão, mas não na tomada de decisão, significa cooptação: os cidadãos são consultados, mas têm pouca influência nas decisões políticas (Hunold 2001, 158). O último ponto fundamental para garantir o sucesso do processo deliberativo nas agências administrativas do estado é a inclusividade. Em geral, a participação no processo de tomada de decisão é dado àqueles que têm algum tipo de relação com o assunto; outsiders raramente são chamados para participar do processo. “Os oficiais [administrativos] tendem a concentrar [a possibilidade de participação] nos grupos e indivíduos com interesses bem conhecidos ou legalmente documentados no resultado de uma decisão”; os atores com poucos contatos são frequentemente esquecidos e/ou ignorados (Hunold 2001, 158). O autor passa, agora, à defesa de um modelo de democracia deliberativa na administração pública que não depende apenas de modelos corporativistas de organização daqueles que vão tomar parte no processo deliberativo. O autor defende a idéia de que o modelo pluralista de organização da sociedade é compatível com a democracia deliberativa na administração pública, já que a deliberação não deve ficar restrita apenas a grupos específicos que têm relações diretas com aquela determinada área ou órgão da administração pública. Em teoria, o modelo corporativista seria mais próximo ou favorável à democracia deliberativa. Isto fica claro se pegarmos dois pontos distintivos entre o corporativismo e o pluralismo: Onde o pluralismo vê os grupos de interesse como agregando as preferências de seus membros e trabalhando para maximizar tais preferências em uma arena política caracterizada pelo conflito, o corporativismo encoraja atividades mais deliberativas, tais como o descobrimento e a transformação das preferências dos grupos por meio da solução conjunta de problemas. Onde o pluralismo aceita que os grupos de interesse são motivados primeiramente pelo auto-interesse [dos indivíduos], o corporativismo encoraja negociações que não perdem de vista uma

concepção compartilhada do bem público (Hunold 2001, 161). No entanto, segundo o autor, o próprio conceito tripartite do corporativismo falha em pôr em prática os pontos de publicidade e de inclusividade descritos anteriormente. Os grupos que não são convidados a participar do processo de negociação deliberativa corporativista são vistos como outsiders que não têm direito a voz durante o processo de deliberação. Sendo assim, nem todos podem participar do processo – ou melhor, apenas alguns (grupos ou indivíduos) participam do processo deliberativo dentro da sua área de atuação ou interesse, contrariando os próprios princípios da democracia deliberativa. Por outro lado, o pluralismo moderno está mudando: enquanto o pluralismo clássico “(...) era baseado em normas adversas e estruturas fechadas de representação de interesses, o novo modelo defende a cooperação e a distribuição dos benefícios a um maior número de grupos e atores (...)” (Hunold 2001, 161). Nesse modelo de “pluralismo deliberativo”, a atuação de grupos em áreas específicas força a participação de outras pessoas que não faziam originariamente parte do grupo. Um exemplo são grupos que lutam por meio ambiente: em termos pluralistas, são grupos de interesse que se organizam e fazem pressão em um ambiente altamente competitivo e adverso, mas tais grupos se esforçam para fazer com que mais pessoas participem do processo de deliberação já que os resultados obtidos por aquele grupo não ficarão restritos aos membros do mesmo, sendo disseminados para todos daquela sociedade. A competição entre os diversos grupos no pluralismo continua a acontecer, mas agora tal competição é feita tendo por base regras pré-estabelecidas pelos próprios grupos de forma que todos possam ser beneficiados de alguma maneira, e tais regras são também criadas por meio da deliberação entre os grupos. “Essas novas formas corporativistas e pluralistas de representação de interesses são geralmente mais capazes de acomodar os valores de publicidade, igualdade e inclusividade do que os velhos modelos de pluralismo liberal e de corporativismo tripartite”. Fica claro, portanto, que “(...) transições em direção a uma maior abertura na tomada de decisão da administração pública são possíveis tendo como ponto de partida tanto o modelo corporativista tripartite quanto o modelo pluralista liberal” (Hunold 2001, 163). Guildry & Sawyer (2003) também buscam o aprofundamento do sistema pluralista como uma forma de solucionar os problemas políticos existentes nas sociedades atuais. Para tanto, os autores criam a noção de pluralismo contestatório, que seria um método pelo qual (...) os grupos marginalizados usam uma variedade de métodos subversivos para retirar a esfera pública de sua história exclusivista, (...) [para criar]

novas possibilidades democráticas que não existiram previamente. Ao fazer isso, plantam as sementes de uma política pública mais igualitária em novas épocas e lugares (Guildry & Sawyer 2003, 273). O objetivo dos autores é chamar a atenção dos cientistas políticos para “(...) os movimentos populares e [para] as estruturas políticas em mudança”, já que estes, “(...) ao explorarem as promessas da democracia, repensam a diferença entre a democracia como um ideal e as maneiras pelas quais as pessoas realmente a experimentam” (Guildry & Sawyer 2003, 273). Eles vão aplicar esta idéia de “movimentos sociais de fora” (outsiders social movements) para explicar como as pessoas “comuns” podem ter acesso de fato ao poder, já que “o espaço para política pública não está igualmente disponível para todas as pessoas, mesmo nas democracias desenvolvidas” (Guildry & Sawyer 2003, 273). Vale destacar aqui que o termo “política pública” refere-se à possibilidade efetiva de participação dos cidadãos, e não a uma política específica de governo. É mais fácil entender o conceito dos autores contrastando-o com seu inverso, que seria a “política privada”, onde apenas um número reduzido de pessoas tem acesso efetivamente às “altas rodas” do poder político. “(...) A política pública pode ser uma força poderosa para mudanças sociais e políticas democráticas” (Guildry & Sawyer 2003, 273). Por meio do contato com outras pessoas interessadas no mesmo assunto, e por meio do contato destas com aquelas que já estão inseridas nas “altas rodas”, é possível se fazer mudanças no padrão de distribuição do poder político e é possível também se fazer ouvir no jogo político, indo além dos limites estabelecidos pela elite governante. Esse processo de contestação constante e de satisfação das demandas é exemplificado pelos autores em quatro situações diferentes, em quatro épocas e lugares diferentes, e eles mostram que a contestação é um requisito fundamental, ainda que não suficiente, para o florescer da democracia, pois é por meio da contestação que as pessoas podem alterar as práticas políticas correntes, bem como ir além do que está previsto ou garantido pelas instituições formais atualmente existentes (Guildry & Sawyer 2003, 273-4). O pluralismo contestatório tem como objetivo subverter os meios, os mecanismos e as ideologias da exclusão social em qualquer regime político. Em outras palavras, o que importa não é saber se um sistema é autoritário, totalitário ou já democratizado, e sim ter consciência e buscar melhorias nas relações entre as instituições políticas e as condições sociais. “Esses processos não são apenas condições necessárias, em primeiro lugar, para o desenvolvimento da democracia, mas eles também são essenciais à sobrevivência da democracia no decorrer do tempo” (Guildry & Sawyer 2003, 274). Para os autores, o problema da democracia no mundo contemporâneo é que ela

prometeu muito e fez pouco. “Enquanto a teoria democrática afirma que regimes liberais abrem espaço para pessoas comuns e para grupos sem poder, esta não é a experiência da maioria das pessoas que viveram sob regimes democráticos nos últimos 200 anos” (Guildry & Sawyer 2003, 274). Ao mesmo tempo, toda a participação conseguida por grupos populares e pela própria sociedade como um todo teve origem na luta pela distribuição do poder – ou, ao menos, pela possibilidade de algum tipo de influência, por parte daqueles que são excluídos politicamente, de participar nas decisões tomadas pelo poder político. E uma característica de todos os tipos de pressão já feitos é a tentativa de luta pelos mesmos direitos e princípios – “igualdade, cidadania, liberdade e auto-governo” (Guildry & Sawyer 2003, 274). Guildry & Sawyer fazem coro a outros autores que acreditam que o trabalho de Guillermo O’Donnell e seus colegas sobre redemocratização na América Latina é muito importante para o estudo de tal fenômeno, mas acreditam – assim como outros autores – que a metodologia utilizada por O’Donnell é insuficiente para analisar corretamente os acontecimentos políticos da região. Segundo eles, a ênfase em tratar os processos de transição democráticos como um pacto entre elites – entre as elites militares, por um lado, e as elites políticas civis, de outro – obscurece a força das mobilizações sociais existentes durante o período e que, para eles, foram também fundamentais no processo de abertura. Guildry & Sawyer criticam não apenas as transições pactuadas, mas também as próprias transições causadas pelas “mobilizações das massas” da maneira que elas foram estudadas por O’Donnell, pois, segundo eles, é necessário “(...) ir até as raízes da mobilização de massa estudando casos de políticas públicas imaginativas que deram uma luz ao que está em jogo para os grupos que estão excluídos de muitos dos benefícios da democracia” (Guildry & Sawyer 2003, 274). É com o objetivo de estudar tais movimentos de base que os autores pensam em termos de “pluralismo contestatório”. Há um parágrafo onde os autores definem exatamente o que têm em mente ao cunhar tal termo. (...) Argumentamos que a emergência e o desenvolvimento da política democrática deve ser compreendido a partir das bases das práticas populares, que expressaram demandas normativas e materiais em relação à política. E, como os institucionalistas, compreendemos que as estruturas procedurais da democracia contêm importantes barganhas e limitações designadas para restringir e moldar as políticas contestatórias que surgem da sociedade. O que ambas essas perspectivas precisam, entretanto, é um entendimento mais completo do papel central da contestação política, cujo objetivo é criar uma esfera pública inclusiva – uma condição necessária para a democracia. A política, em ambas as formas pré-democrática e

democrática, é comandada por desafios ao poder. O poder não pode parar de operar quando as constituições liberais são escritas e quando acontecem eleições; ele meramente torna-se restringido ou se transforma. Por exemplo, (...) [há a questão do] financiamento de campanha; (...) o financiamento excessivo de campanha limita a democracia americana e exclui vozes de fora da estrutura de poder dos dois principais partidos políticos (Guildry & Sawyer 2003, 274). O pluralismo contestatório existe em qualquer tipo de regime, tanto pré- quanto pósdemocrático, pois a própria democracia em si exclui alguns grupos que, por sua vez, passarão a contestar e a tentar serem ouvidos no processo político – e esta contestação é permitida pela própria democracia que os exclui. Esse caráter contraditório é conseqüência do regime não-democrático ou autoritário aos quais os países se submetiam antes da existência da democracia: “(...) Nenhuma democracia nos tempos modernos surgiu como uma arena política completamente inclusiva Os processos contestatórios de expandir as fronteiras da esfera pública continuam após a ocorrência das eleições e após o estabelecimento de regras procedurais (...)” (Guildry & Sawyer 2003, 275). Para exemplificar sua teoria, Guildry & Sawyer utilizam-se de quatro exemplos de diferentes épocas e lugares: as rebeliões populares na Inglaterra do século XVIII; a situação dos afro- americanos recém libertos na era da Reconstrução em Richmond, Virgínia (EUA); mães dos desaparecidos políticos e de soldados na Argentina e na Nicarágua dos anos 1980 e 1990; e os atores dos movimentos sociais da década de 1990 contra a globalização. O primeiro e o terceiro casos referem-se a situações prédemocráticas e buscam uma maior abertura e inclusão ao forçar as elites políticas a aceitarem uma esfera política mais inclusiva do que a existente naquele momento, enquanto o segundo e o quarto casos surgem como demandas de grupos politicamente excluídos em sistemas já democratizados e estáveis exigindo uma maior participação política. “Procuramos casos onde grupos excluídos procuraram um debate mais inclusivo na política pública” cujo objetivo era expandir as fronteiras da esfera pública e da participação política (Guildry & Sawyer 2003, 275). Antes, porém, de entrarem diretamente nos exemplos, Guildry & Sawyer se dispõem a fazer um breve levantamento teórico sobre a democracia. O conceito principal para o qual eles dão atenção é o de “esfera pública”, o qual eles acreditam se comportar como “os dois lados de uma mesma moeda”. Por um lado, durante o século XVIII o conceito descreveu um espaço livre e compartilhado entre todos – considerados iguais – para o discurso e para a disputa política; por outro, com o passar do tempo, no século XIX e, principalmente, no século XX, por esfera pública passou-se a considerar o espaço político reservado aos homens brancos e donos de propriedades.

As mulheres, os pobres jovens, imigrantes e não brancos – dentre outros – não tiveram (e alguns ainda 66 não têm) acesso a esta esfera pública, sendo consequentemente excluídos do jogo político (Guildry & Sawyer 2003, 275). Houve, é claro, algumas tentativas de inclusão, principalmente no século XIX (já que se considera que no século XX os direitos políticos foram plenamente adquiridos por todos, ao menos de uma maneira formal). No entanto, muita da inclusão tentada no século XIX foi feita tendo como base o “apoio”, “auxílio” ou até “apadrinhamento”, ou seja, como uma ajuda dada aos excluídos politicamente, e não como um direito efetivamente garantido a tais excluídos. Devemos distinguir entre entrar na política pública por meio da patronagem de elites simpáticas e entrar na política pública por meio da sua própria agência. Nesta última situação, o poder das elites, mesmo das elites simpáticas [à causa da maioria que passa a participar da política pública] é questionado, e a imaginação democrática dos atores sem poder frequentemente ultrapassa as mudanças incrementais ou muito lentas que os sistemas dos grupos dominantes podem permitir (Guildry & Sawyer 2003, 276). Ao invés de esperar por apoio político das elites dominantes (e às vezes mesmo quando o recebia), os grupos excluídos passaram a criar novas formas de contestação, enquanto a classe média reclamava a esfera pública da democracia para si própria. As pessoas das classes sociais inferiores, nos Estados Unidos e na Europa ocidental dos séculos XVII e XVIII, passaram a se encontrar para discutir política e outros assuntos de seu interesse. Outras agremiações, ainda que não políticas – como igrejas negras nos EUA, grupos de mães na América Latina, eventos esportivos, etc. – também contribuíram para o amadurecimento da criação de uma esfera pública mais inclusiva ao agir como um centro de organização de base que poderia lutar por objetivos específicos de cada um desses grupos (Guildry & Sawyer 2003, 276). Baseando-se nas idéias de Robert Dahl, Guildry & Sawyer (2003, 276) acreditam que a esfera pública é um domínio público onde grupos rivais e competitivos entre si lutam para atingir seus objetivos. Os atores desses grupos, ainda que interajam entre si, têm objetivos, interesses e capacidades distintas um dos outros, o que leva à conclusão de que não há um centro de poder único, forte e centralizado estabelecido na sociedade. Assim como existem grupos poderosos que dominam a esfera pública,

há também grupos marginalizados e/ou excluídos da “grande política”, aos quais nada resta a não ser se organizarem para tentar, nos moldes da democracia pluralista, alterar a correlação de forças para que sejam incluídos no sistema político e na esfera pública, objetivando terem também voz no processo decisório para que possam acabar com a desigualdade na distribuição do poder político dentro da sociedade. A idéia de existência de uma esfera pública é forte por parte daqueles que efetivamente participam da mesma, mas a defesa de tal idéia é mais forte ainda por parte daqueles que estão excluídos da esfera pública e que acreditam que a única forma de serem efetivamente ouvidos é participando da mesma. A imagem da democracia – incluindo a esfera pública, a cidadania, a participação, a confrontação e assim por diante – que surge aqui é a de pluralismo contestatório. Este conceito descreve a política como um processo de contestação entre grupos na sociedade, ao mesmo tempo em que desmascara e questiona explicitamente a dinâmica do poder existente entre os diversos grupos (Guildry & Sawyer 2003, 277). Ao contrário do pluralismo clássico, onde a disputa política se dá entre grupos mas cuja ênfase está na liderança desses grupos, o pluralismo contestatório aceita e defende a idéia de uma sociedade politicamente dividida em grupos, como o pluralismo clássico, mas acrescenta também o componente popular ou a “mobilização social” que não só não é encontrada como é repelida pelo pluralismo clássico. Os grupos participam politicamente, é claro, mas tal participação é resultado direto da pressão que as bases fazem em relação à direção do grupo; mais ainda, no pluralismo contestatório todos os grupos efetivamente têm possibilidade de participação na esfera pública. “Ao entender [e aceitar] a dinâmica da esfera pública, podemos revigorar a idéia pluralista analisando a política de poder e seus efeitos nas pessoas comuns” (Guildry & Sawyer 2003, 277). A contestação por parte dos grupos menos favorecidos pode ser civil ou confrontacional, e é apenas por meio dessa contestação que “(...) a imaginação social [é] ampliada”. É apenas por meio da contestação que os grupos alternativos poderão entrar na esfera pública, confirmando os princípios pluralistas da sociedade. A construção de democracias, tanto as existentes quando as futuras, dependerá de quanto o pluralismo contestatório poderá ajudar a construir novas formas de reconhecimento nas quais os princípios da política privilegiem um discurso civil que possa satisfazer as estruturas de poder – já que o poder e a desigualdade, ao invés do conflito e da contestação, são os verdadeiros culpados trabalhando contra a democracia e uma verdadeira esfera “pública” (Guildry & Sawyer 2003, 277).

Guildry & Sawyer passam, então, a trabalhar com os exemplos históricos já citados anteriormente, com os quais eles pretendem explicitar a existência do pluralismo contestatório e defender esse modelo como uma possibilidade para se expandir a democracia no âmbito do pluralismo liberal- democrático dos países ocidentais na atualidade. Eles dividem a contestação em três tipos principais: 1) A contestação procedural – aquela na qual as pessoas fazem com que o estado e os atores dominantes prestem contas à sociedade por meio das regras e dos procedimentos institucionais já estabelecidos; 2) A contestação retórica – quando as pessoas desafiam o poder diretamente por meio da retórica, da ideologia e de protestos; 3) A contestação demonstrativa – quando, por exemplos práticos, as pessoas mostram ao público em geral que existem alternativas viáveis à situação política existente. Esses três tipos de contestação servem para “(...) criar um mundo com uma maior igualdade polí tica” (Guildry & Sawyer 2003, 277, grifos nossos). O primeiro exemplo é chamado pelos autores de “o caso inglês”. Nos séculos XVII e XVIII, a população se mobilizou e fez demonstrações contra o aumento dos preços dos produtos nos mercados ingleses. Iam de fazenda em fazenda verificando os estoques e ameaçando queimar ou destruir tudo caso a produção não fosse disponibilizada nos mercados e se os preços não fossem abaixados. Os revoltosos frequentemente usurpavam a produção agrícola, levavam para os mercados, vendiam aos preços que consideravam justos e traziam o dinheiro da venda de volta aos agricultores e fazendeiros. Tais ações, ainda que nem sempre pacíficas, contribuíram para formar uma cultura de negociação e de troca de opiniões sobre os diversos assuntos, os quais são a base de uma cultura democrática (Guildry & Sawyer 2003, 278-9). (...) Uma nova tradição começou a emergir, impulsionada pela ação e pela imaginação das classes inferiores. Da metade do século XVIII até o início do século XIX, as demandas das massas começaram a mudar. De pedidos sobre preços e leis, [surgem] pedidos sobre [soluções para o problema da] pobreza de maneira mais generalizada e sobre o “nivelamento” das ameaças contra os ricos (Guildry & Sawyer 2003, 279). Houve o surgimento dos sindicatos, os quais passaram não apenas a reclamar sobre os preços dos alimentos como também exigir um salário mínimo que desse condições de vida aos trabalhadores agora urbanos. O foco de ação não era mais diretamente sobre os mercados, mas sim sobre o estado para que este regulasse o mercado. Surgiram também demandas sobre a separação entre os setores público e privado, ou seja, sobre a área de atuação do estado. “(...) Uma mudança tinha acontecido na esfera pública, e as pessoas pobres eram os agentes dessa mudança” (Guildry & Sawyer 2003, 279). Para aqueles que não tinham nenhum tipo de acesso à esfera pública, mobilizações em

massa da população eram a única maneira de se fazer ouvido no âmbito político; além disso, tais mobilizações mostram que “(...) pessoas regulares eram capazes de forçar uma mudança na esfera pública que teve como conseqüência última uma maior democratização da Inglaterra no século XIX” (Guildry & Sawyer 2003, 279). A criação dos movimentos sociais na Inglaterra daquela época alterou a forma como a esfera pública era vista e gerenciada por parte da elite governante, e a participação em movimentos sociais se transformou em um modelo para todos aqueles que queriam contestar e participar da esfera pública dos demais países ocidentais. Estas revoltas na Inglaterra dos séculos XVII e XVIII não concretizavam a (...) democracia como poderíamos desejar hoje em dia (ou talvez em qualquer período), mas apesar disso a história destes exemplos mostra os estágios de desenvolvimento da esfera pública que rigorosamente evita a exclusão. Juntamente com o uso posterior de cortes e procedimentos legais, esse caso demonstra como os campesinos ingleses e as classes trabalhadoras emergentes usaram modos de subversão tanto retóricos quanto procedurais para abrir avenidas para a política pública e para a democracia. Nestes casos, o pluralismo contestatório dos públicos marginalizados e sem poder sempre ameaça quebrar fronteiras, não apenas pela maneira da confrontação, mas também pela imaginação de um tipo de política diferente e mais inclusivo não previsto por elites simpáticas ou até mesmo por muitos dos próprios grupos sem poder. (...) Vemos que a igualdade real é sempre apenas o resultado de lutas [entre os que detêm e os que não detêm o poder político] (Guildry & Sawyer 2003, 280). Pode-se pensar que a confrontação é a única maneira de acabar com a opressão e de se fazer ouvido, mas os autores pretendem mostrar, com os exemplos seguintes, que é possível se conseguir benefícios em relação à esfera pública por meio de ações civis e de inclusão legal (Guildry & Sawyer 2003, 280, grifos no original). O segundo exemplo de pluralismo contestatório é o caso da “Reconstrução” em Richmond, Virgínia, Estados Unidos, logo após a Guerra Civil americana. “O período da Reconstrução após a Guerra Civil nos Estados Unidos, 1865-1877, é frequentemente visto como uma experiência radical na democracia americana tanto nos livros de história quanto no entendimento popular da política racial” (Guildry & Sawyer 2003, 280). Apesar de pouco ter sido mostrado sobre o período, o mesmo foi um dos mais importantes da história americana no que diz respeito à obtenção de direitos civis por parte da população: (...) a Reconstrução também propôs uma alternativa radical que não seguiu

nenhum modelo da democracia americana jamais imaginado. Os votantes afro-americanos, os membros da comunidade e os legisladores desafiaram as fronteiras da participação política em nossa república e apresentaram uma versão radical do que a democracia americana poderia se tornar por meio de subversão procedural, retórica e demonstrativa (Guildry & Sawyer 2003, 280, grifos no original). Aos olhos dos contestadores, o que garantia seu direito de participar politicamente era o fato de fazerem parte da comunidade – não apenas da comunidade negra, mas também da própria comunidade (ou sociedade) americana. O fato de não terem sido legalmente eleitos não constrangia os contestadores, que se arrogavam o direito de expandir as fronteiras da democracia então existente por meio de encontros “fechados”, onde participavam apenas negros, e por meio da imposição de suas vontades e de sua cultura ao resto da sociedade, como por exemplo com a criação do “Dia da Emancipação” e a imposição desta data como um feriado nacional. Muitos à época acreditavam que a ação dos recém-libertos afro-americanos era caótica devido à inexperiência dos mesmos com os processos democráticos, “mas as ações dos novos cidadãos eram deliberadas e relacionadas com uma maior crítica radical de como a participação política e o papel do legislador estavam configurados” (Guildry & Sawyer 2003, 280). Os representantes dos negros à época não poderiam agir da mesma forma que os representantes dos brancos: aqueles deveriam ser responsáveis e prestar contas às suas próprias bases com mais freqüência e/ou intensidade do que estes, pois estavam tentando criar uma nova forma de representação política. Ao mesmo tempo, os representantes negros deveriam se relacionar de maneira também amigável com os demais legisladores, caso quisessem concretizar seus planos de representar efetivamente a classe negra norte-americana. “Dessa forma, vemos os negros de Richmond do período da Reconstrução usando os modos retórico, procedural e demonstrativo de subversão” (Guildry & Sawyer 2003, 281). Esses “novos” cidadãos se utilizaram da legislação existente à época para ampliar e até mesmo reformar o modelo democrático em que viviam, como por exemplo por meio da eleição de legisladores negros para o parlamento, e criaram novas formas de expressar suas idéias, opiniões e desejos por meios antes não imaginados, como o jazz. O terceiro exemplo de expansão da democracia por meio do pluralismo contestatório é o que os autores chamam de “identidade maternal”, ocorrida na Argentina nas décadas de 1970 e 1980 e na Nicarágua nas décadas de 1980 e 1990. “As Mães da Praça de Maio na Argentina durante o regime militar de 1976-1983 e [nos anos seguintes] são um exemplo de política maternal organizada obtendo reconhecimento internacional” (Guildry & Sawyer 2003, 281). O grupo se formou como conseqüência

da busca por informações de pessoas desaparecidas durante o regime militar na Argentina: ao se encontrarem em hospitais e mesmo em delegacias, as mães dos desaparecidos começaram a criar um sentimento de igualdade entre si próprias e acabaram criando um movimento organizado que serviu como oposição ao governo militar, ainda que em sua origem não tivesse nenhum objetivo político a ser atingido. A presença das mães criou uma política pública oposicionista que teve significado especial na Argentina militarizada, onde o discurso oficial do regime enfatizava o papel privado e restrito à família das mulheres e de sua abstenção de assuntos públicos. (...) O [movimento] Mães dos Desaparecidos na Argentina ficou entre os mundos oficialmente sancionados do privado (a família) e o público (o político) (Guildry & Sawyer 2003, 281-2). Essas mulheres entraram na arena política não por meio da política propriamente dita, mas sim desempenhando o papel que tinha sido anteriormente dado a elas na sociedade – o papel de mãe no âmbito familiar. Segundo os autores, sua atuação de forma retórica e procedural acabou desembocando em uma poderosa oposição ao regime militar argentino, desestabilizando o mesmo. Na Nicarágua, o surgimento do grupo “Mães dos Heróis e dos Mártires” surgiu com o apoio do estado (ao contrário da Argentina, onde o movimento “Mães dos Desaparecidos” surgiu em oposição ao estado). “(...) O regime Sandinista desenvolveu o grupo como uma organização de apoio para as mulheres que tinham perdido seus filhos na luta [durante a guerra civil]” (Guildry & Sawyer 2003, 282). Esse era o objetivo privado; o objetivo político do movimento era criar uma forma que pudesse dar vozes às mães desamparadas por terem perdido seus filhos sem, no entanto, se tornarem uma força oposicionista ao estado como ocorrera na Argentina. No entanto, o movimento foi além do que o planejado e/ou definido primeiramente pelo estado: a partir de 1992, o grupo passou a aceitar também as mães dos que tinham morrido lutando contra o próprio regime sandinista, o qual havia criado e administrado o movimento durante a guerra civil. O movimento, desta forma, sentiase livre e independente em relação ao estado sandinista, adquirindo sua autonomia de maneira não prevista pelos criadores originais do mesmo. Ambos os movimentos serviram para, em princípio, aumentar a participação política das mães; mas Guildry & Sawyer acreditam que eles serviram também para rever a maneira de participação da população como um todo em relação a um estado autoritário. Em ambos os casos, as demandas dos grupos tiveram início dentro dos padrões estabelecidos pelo governo autoritário: “(...) essas mulheres estavam apenas expandindo a maternidade tão longe quanto fosse necessário para concretizar seus

objetivos tradicionais” (Guildry & Sawyer 2003, 282); ainda, os movimentos serviram para redefinir o papel das mulheres na política nacional ao acabar com as restrições e com as limitações impostas pelo governo a esta mesma atividade. É interessante, para os objetivos dos autores, notar que o movimento dessas mulheres em ambos os países aconteceu fora da estrutura de poder oficialmente estabelecida; em outras palavras, os movimentos “(...)ilustram a capacidade do discurso público em usar aspirações – expressas de maneiras retóricas e procedurais – como um meio de transformar a política por meio da contestação pública” (Guildry & Sawyer 2003, 282). Ou seja, o pluralismo contestatório defendido pelos autores é realmente eficiente no sentido de aumentar a participação de determinados grupos na sociedade, tendo como conseqüência a democratização da sociedade como um todo. Esses grupos de mães “(...) aspiram a uma parte da esfera pública para si mesmos, destruindo construções tradicionais criadas pelo estado em relação à maternidade e à feminilidade que mantiveram as mulheres apáticas (...)” em relação à política nestes países (Guildry & Sawyer 2003, 283). O quarto e último exemplo de pluralismo contestatório comentado pelos autores é o que eles chamam de “público internacional”. A base para esse exemplo é a reunião da Organização Mundial de Comércio (OMC) ocorrida em Seattle, Estados Unidos, em 1999. Naquela ocasião, milhares e milhares de pessoas, com pouca ou mesmo nenhuma coisa em comum, se uniram para lutar contra a agenda neoliberal de livre comércio que os governos e os líderes da OMC estavam tentando implantar no comércio internacional. “Os protestos, as reações da polícia e as reuniões a portas fechadas destacaram como a elite econômica mundial e os oficiais do governo estavam acabando com o debate público sobre políticas que afetariam as pessoas em praticamente todos os lugares do planeta” (Guildry & Sawyer 2003, 283). Outro ponto de encontro – desta vez pacífico, para o “público internacional” – foram os Fóruns Sociais Mundiais (FSM) ocorridos no Brasil em 2001 e 2002. Estes Fóruns serviram para a criação de uma identidade supranacional contra decisões econômicas que atingem todos no mundo, mas que são tomadas por uma minoria formada por membros das elites política e econômica mundiais. Ao mesmo tempo, os Fóruns Sociais Mundiais serviram também para centralizar a atuação destes movimentos sociais, fazendo com que todos se tornassem conhecidos e pudessem se juntar para aumentar a sua força de pressão contra a tomada de decisões econômicas sem a participação da população. O objetivo dos Fóruns Sociais Mundiais é “(...) unir milhares de atores progressivos e de movimentos sociais para criar uma resposta às reuniões do Fórum Econômico Mundial [FEM], que desenvolveram a agenda da OMC ao longo dos últimos anos” (Guildry & Sawyer 2003, 283), ou seja, é a criação de um espaço público que foi negado à população nas reuniões da OMC e dos FEMs

(Guildry & Sawyer 2003, 283). “O Fórum Social Mundial (...) ilustra um modo demonstrativo de subversão” (Guildry & Sawyer 2003, 284). Nas reuniões do FSM, as pessoas buscam um espaço para debaterem propostas alternativas ao neoliberalismo desejado por parte dos principais agentes econômicos mundiais – muitas vezes com o apoio de seus próprios governos, os quais se utilizam da máquina burocrática para fechar o acesso à política por parte das “vozes descontentes”. O FSM auxilia também na criação de alternativas por meio do debate na esfera pública tanto em nível local quanto em nível transnacional. Esse debate é resultado da transnacionalização dos movimentos sociais, a qual está intimamente relacionada com o desenvolvimento de fóruns públicos e outras formas de comunicação que servem para contestar a política dos estados, tanto de forma individual quanto coletiva. Essa forma de contestação envolve os três tipos definidos anteriormente – a contestação retórica, a procedural e a demonstrativa. “Essas formas de ação internacional e transnacional contestam e potencialmente ‘reconfiguram’ a soberania dos estados, ao trazer para a arena vozes que são normalmente excluídas, marginalizadas ou simplesmente locais” (Guildry & Sawyer 2003, 284). Ações na esfera pública internacional questionam as maneiras que as relações de poder são construídas e reforçadas, mostrando as possibilidades para a mudança democrática e para uma maior inclusão. Ao mesmo tempo, é possível mudar o sistema com a utilização de seus próprios mecanismos: “o uso de cortes, convenções sobre os direitos humanos e leis trabalhistas são proceduralmente subversivas (...)” (Guildry & Sawyer 2003, 284), e são utilizadas por aqueles que são contra o próprio sistema. Os autores, assim, chegam à conclusão geral de que o pluralismo contestatório, por meio dos exemplos citados anteriores, (...) cria arenas que transformam a subversão do poder em uma prática política normal (...). A tarefa (...) é construir uma sociedade “civil” na qual o conflito é reconhecido, mas canalizado por meio de políticas públicas que desenvolvam práticas de transparência e accountability que monitorem tanto o estado quanto os atores privados (Guildry & Sawyer 2003, 285, grifos no original). Antes de finalizar o texto, quatro outros pontos são destacados pelos autores no que diz respeito ao pluralismo contestatório: 1. Conceber a política como uma interação entre forças dominantes e forças oposicionistas nos leva a incluir na análise política os tipos de atores que estão normalmente ausentes dos estudos institucionais da política (como os famintos na Inglaterra ou das mães dos desaparecidos na Argentina), o que nos mostra ser

possível a participação política para além dos canais formalmente estabelecidos. 2. Os casos mostram como o capital social – e as formas de associação que derivam dos mesmos – é freqüentemente desenvolvido como uma conseqüência de relações de poder assimétricas, e em oposição às mesmas. A união obtida pelos ex-escravos em Richmond ou pelas mães da Praça de Maio mostra que esse capital social é formado ao se confrontar o estado e as estruturas políticas dominantes. 3. Os casos exemplificam a centralidade da contestação para a política democrática, tanto na emergência dos sistemas políticos democráticos quanto em sua contínua evolução. Ao se juntarem, os indivíduos de determinado grupo social passam a ter um grande poder político, que serve como ameaça à estrutura política já estabelecida. No entanto, modos de subversão disponíveis a estes novos grupos são condicionados pelo nível de democracia formal onde a ação ocorre. 4. Os Estados Unidos são vistos como um país como qualquer outro, que deve lutar para manter sua democracia, sua cidadania e sua igualdade política em funcionamento. Como o trabalho dos autores se baseia na maneira como os excluídos ou oprimidos de uma sociedade se engajam em projetos de transformação social e política – forçando uma interação política aberta na esfera pública –, para eles a sociedade americana não é diferente em nenhum aspecto das demais sociedades existentes no mundo. Guildry & Sawyer (2003, 286) destacam ainda o fato de que o pluralismo contestatório traz à tona o âmbito da contestação contida no pluralismo clássico de Robert Dahl, mas não é uma simples cópia do mesmo. O pluralismo contestatório é baseado na coragem que os grupos têm para tentar mudar o status quo, mesmo sabendo que podem sofrer represálias por ir contra o mesmo; esse modelo é a chance que os grupos têm de transformar a democracia, construindo um novo tipo de distribuição do poder político na sociedade.

Avaliação da democracia pluralista Para além da própria estrutura política existente, e ainda para além da forma como ela teoricamente é posta em prática, surge a pergunta: como a democracia atualmente existente, que segue os moldes liberais, é vista pela população? Há um apoio verdadeiro à noção de democracia ou a mesma é aceita pela população como o “melhor dos piores” regimes de governo, como o era para Aristóteles? É sobre tais questões que Inglehart (2003) se dedica. O autor pretende fazer comparações entre vários países de diversas áreas culturais, como países ocidentais, países da ex-União Soviética e também países islâmicos, com o objetivo de descobrir até que ponto há apoio em tais países ao regime democrático.

Segundo o autor, é necessário fazer tal tipo de comparação porque “(...) o apoio público à democracia diminuiu em alguns países, muitos dos quais são democráticos apenas em teoria”. A principal fonte do autor é o World Values Survey durante o período de 1999 a 2001, e apesar de apoiar tal tipo de pesquisa (assim como outras semelhantes), Inglehart (2003, 51) afirma também que “(...) ninguém demonstrou que o alto nível de apoio popular a estes itens [constantes nas diversas pesquisas de opinião e que mostram o elevado apoio à democracia] leva necessariamente a [criação de] instituições democráticas”. Ele pretende medir o quão forte respostas a determinadas pesquisas de opinião pública estão ligadas a altos (ou baixos) níveis de democracia. Inglehart utiliza a tabela de países autoritários e democráticos proposta pela Freedom House1. O resultado de sua pesquisa é claro: apesar dos resultados das entrevistas mostrarem que as pessoas defendem um regime democrático em seus países, isso não significa necessariamente que este regime tenha criado raízes profundas nos mesmos. Para o autor, itens como tolerância, confiança, atividade política e liberdade de expressão são os que mais podem garantir se um país é democrático ou não, deixando em segundo plano a percepção das pessoas acerca deste tema. Como conseqüência, o desenvolvimento econômico é visto por Inglehart como condição fundamental para a implantação, ampliação e consolidação da democracia, já que o desenvolvimento econômico traz em seu bojo os itens citados acima, os quais são mais característicos do aprofundamento da democracia em determinado país. Em outras palavras, o apoio aberto à democracia parece uma condição necessária, mas não suficiente, para a emergência de instituições democráticas. A menos que a massa pressione por democracia, é pouco provável que as elites com sede de poder dêem ao público o poder para removê-las de seus cargos. Atualmente, o apoio aberto à democracia está difundido entre o público por todo o mundo. Mas atitudes favoráveis em direção à idéia geral da democracia não são suficientes. Para as instituições democráticas sobreviverem em longo prazo, elas precisam de uma cultura de massa de tolerância, confiança, orientação participatória e ênfase na auto- expressão, além de níveis razoavelmente altos de bem-estar [econômico] subjetivo. Em grau impressionante, as sociedades cujos públicos são classificadas em nível alto de valores de auto-expressão mostram altos níveis de democracia (Inglehart 2003, 52). A democracia é vista por Inglehart (2003, 52) como “(...) virtualmente o único modelo político com apelo global. (...) As principais alternativas à democracia foram desacreditadas”, tais como o fascismo ou o comunismo. Ele chega a essa conclusão baseando-se em dados de pesquisas de opinião onde se buscou saber se a democracia

é tida como um regime regular ou bom. O nível de apoio mais baixo à democracia obtido por estas pesquisas vem da Rússia, com 62% da população; o Brasil fica com 85% de apoio popular ao regime democrático, enquanto em primeiro lugar aparecem Albânia e Egito, com 99% de apoio (Inglehart 2003, 52). No entanto, o apoio à democracia não é tão difundido e sólido quanto parece. Ao se fazer uma pesquisa sobre se o governo de um líder forte, que não tem de se preocupar com eleições ou parlamentos, seria uma boa maneira de se governar um país, os resultados foram bem diferentes da pesquisa anterior: “em nenhum das democracias estáveis (continuamente sob um governo democrático nos últimos 30 anos) a maioria endossou esta opção. Mas em outras 18 sociedades, a maioria apóia esta opção autoritária” (Inglehart 2003, 52). O Brasil aparece nesta pesquisa com 61% de sua população apoiando essa opção. A explicação dada por Inglehart (2003, 53) para esse baixo apoio à democracia em tais países baseia-se, mais uma vez, no âmbito da economia: as taxas de apoio mais altas a tal opção autoritária foram obtidas em países da ex-União Soviética e em países da América Latina, além de alguns países da África. Esses países tiveram seu primeiro contato com um regime democrático em momentos de convulsões econômicas, o que levaria as pessoas de tais países a associarem o baixo desempenho econômico ao modelo democrático. Como examinar, portanto, até que ponto há um apoio verdadeiro, por parte da população, ao regime democrático? Inglehart acredita que a cultura política – definida como “orientações relativamente bem enraizadas e duradouras” – do país é fundamental para se avaliar o apoio ao regime democrático, e por este motivo prefere fazer uma comparação com base em longos períodos de tempo: As correlações entre atitudes da massa e democracia são sistematicamente mais altas quando usamos um período longo, pois a cultura política prediz melhor a estabilidade em longo prazo da democracia do que o nível democrático da sociedade em determinado ponto no tempo. (...) É improvável que uma sociedade mantenha suas instituições democráticas em longo prazo, a menos que a democracia tenha apoio contínuo entre o público (Inglehart 2003, 53-4). É na cultura política que são encontrados os itens já citados anteriormente (tolerância, confiança, ativismo político, bem-estar econômico e apoio à liberdade de expressão) e que possibilitam descobrir se um país é mais propenso ao regime democrático que outro, sendo a análise de tais itens mais importante para a definição de um país como democrático ou não do que o apoio aberto à democracia. Ao utilizar o critério da cultura política em longo prazo para se avaliar a tendência à

democracia por parte da sociedade, Inglehart afirma que o desenvolvimento econômico – o que ele chamou antes de “bem-estar subjetivo” – é o principal mantenedor de uma tendência positiva (ou negativa) em apoiar a democracia. “O desenvolvimento econômico tende a permitir uma crescente ênfase popular em valores de auto-expressão – fornecendo condições sociais e culturais que dão à democracia mais chances de emergir e sobreviver” (Inglehart 2003, 55). Além disso, outra comprovação de que o desenvolvimento econômico é fundamental para o desenvolvimento e para a manutenção da democracia – com a criação de uma cultura política que dê suporte à mesma – é dada por meio da análise dos países asiáticos e islâmicos: para Inglehart, os primeiros estão caminhando em direção à democracia porque têm se desenvolvido economicamente nos últimos anos, enquanto os segundos – à exceção da Turquia e do Irã, que segundo o autor se modernizaram economicamente em anos recentes – mostram um apoio na prática muito menor à democracia do que o declarado nominalmente em entrevistas. Inglehart aponta a seguinte relação causal: o desenvolvimento econômico leva a níveis maiores de valores de auto-expressão (itens descritos anteriormente), o que, por sua vez, leva a um nível maior de democracia. Para ele, o desenvolvimento econômico é importante por contribuir para a emergência destes valores, que por sua vez estão contidos na cultura política; como conseqüência, a cultura política – analisada em longo prazo – é, para Inglehart, fundamental para a implantação e manutenção da democracia em determinado país. No entanto, Inglehart não defende a idéia inversa, ou seja, a de que a democracia leva à criação de uma “boa” cultura política: “esta interpretação é tentadora e sugere que temos uma solução rápida para a maioria dos problemas mundiais: adotar uma constituição democrática e viver feliz para sempre” (Inglehart 2003, 56). O autor toma como exemplo dessa impossibilidade os países que compunham a ex-União Soviética: após sua mudança para um regime democrático, suas sociedades não se tornaram mais tolerantes, confiantes, felizes com seu nível de vida ou mais propensas a aceitar a liberdade de expressão do que antes. Também os países da América Latina são vistos por Inglehart como um exemplo que é a cultura política – com seus valores já citados – que leva à democracia, e não a democracia que leva a uma maior tolerância, confiança etc. Inglehart refuta também a idéia de transição para a democracia por meio de acordo entre elites, defendendo mais uma vez a proeminência do desenvolvimento econômico como agente indutor de processos de democratização ao afirmar que as instituições democráticas mantiveramse estabelecidas apenas em países considerados ricos; o único país de baixa renda no qual as instituições democráticas funcionaram por mais de dez anos seguidos foi a Í ndia. Outros autores também trabalham a aceitação da democracia por parte da população. Linde & Ekman (2003) concentram-se sobre a Europa Oriental em seu artigo e, assim

como Inglehart (2003), acreditam que o “desempenho” da democracia é dependente do desenvolvimento econômico do país no qual a democracia está instalada. O objetivo dos autores é lidar com a variável “satisfação com a democracia” nas pesquisas de opinião realizadas principalmente no Leste Europeu, ainda que o argumento possa ser também transposto para as democracias ocidentais, pois tal variável é frequentemente utilizada como um dos principais indicadores em favor da democracia. A hipótese dos autores é de que tal variável não é um indicador de apoio aos princípios democráticos, ou seja, ela serve apenas para analisar um determinado regime político, mas não serve para se verificar até que ponto os princípios democráticos estão verdadeiramente enraizados naquela sociedade e nem mesmo para se saber até que ponto o regime democrático já está efetivamente consolidado. O primeiro questionamento feito pelos autores refere-se ao próprio conceito da variável “satisfação com a democracia”. Segundo os autores (2003, 372), consta no relatório Central and Eastern Eurobarometer (CEEB) de 1997 que 78% dos búlgaros afirmaram estar insatisfeitos com a democracia. O que tal porcentagem realmente significa: que os búlgaros não apóiam os próprios princípios democráticos – preferindo um regime totalitário, por exemplo – ou que, por exemplo, estavam insatisfeitos com o desempenho econômico do país à época e acreditavam que tal desempenho ruim seria uma conseqüência do regime democrático? É essa diferença na interpretação do próprio conceito da variável que os autores pretendem esclarecer, ou seja, separar o apoio que a população dá aos princípios democráticos, por um lado, do apoio que a população dá ao desempenho do país sob um regime democrático, por outro, sendo esse desempenho associado ao desempenho econômico. O apoio que um sistema recebe da população pode ser dividido em cinco níveis ou objetos para serem apoiados: a comunidade política, os princípios do regime, o desempenho do regime, as instituições do regime e os atores políticos. Esses objetos estão dispersos em um continuum, indo de um apoio difuso (à comunidade política) a um apoio específico (a um ator político em particular). O apoio à comunidade política é visto como uma maneira de se analisar o sentimento de inclusividade que o indivíduo tem em relação à comunidade na qual vive (“(...) um sentimento de pertencer a um sistema político”). Os princípios do regime referem-se ao apoio dado à democracia como um princípio ou como um ideal, enquanto o apoio ao desempenho do regime refere-se aos resultados obtidos pelo regime democrático em determinado país e em determinado período de tempo. O apoio às instituições do regime refere-se à diferenciação entre apoiar a instituição da presidência e apoiar o presidente, e o apoio aos atores políticos refere-se diretamente a uma pessoa ou a um partido em particular (Linde & Ekman 2003, 393). Vale destacar, no entanto, que o apoio dado ao regime – tanto na variante “apoio aos

princípios” quanto na variante “apoio ao desempenho” – não deve ser tomado em termos absolutos e sim em termos relativos: no caso principalmente dos países do Leste Europeu, as respostas dadas às perguntas constantes nas pesquisas de opinião sobre o tema podem dar o apoio à democracia não como o melhor regime de governo já existente em todos os tempos, mas sim como o melhor regime de governo em comparação com outros aos quais a população já foi submetida. Exemplificando melhor, as pesquisas de opinião no Leste Europeu podem dar como resultados um apoio maciço à democracia não porque ela seja efetivamente o melhor regime dentre todos os existentes, mas sim porque, em termos comparativos, ela é melhor do que o regime totalitarista ao qual os países estavam anteriormente submetidos. Além disso, a sensação de “euforia” sentida no final da década de 1980 e início da de 1990 com o fim dos regimes comunistas e com a possibilidade de se voltar a fazer parte da Europa foi substituída por um misto de realidade e pessimismo ao final da década de 1990 e no início do novo século por parte dos governos da região, que tiveram de satisfazer tanto suas próprias populações, que passaram a exigir o mesmo nível de vida da Europa ocidental, quanto os governos ocidentais, que condicionaram a “volta à Europa” a uma série de condições difíceis de serem satisfeitas pelos antigos regimes comunistas (Linde & Ekman 2003, 395). Enquanto as primeiras pesquisas de opinião conduzidas na Europa póscomunista mostraram que seus cidadãos eram, frequentemente, grandes apoiadores de seus novos sistemas democráticos, pesquisas mais recentes mostraram uma história diferente: o apoio à democracia diminuiu com o passar do tempo (Linde & Ekman 2003, 395). Segundo Linde & Ekman, com a divulgação de tais pesquisas passou-se a acreditar que a democracia não teria mais apoio em tal região; os autores, no entanto, trazem à tona a separação entre apoio aos princípios do regime e apoio ao desempenho do regime para explicar o resultado de tais pesquisas de opinião. Ao tentar saber se os cidadãos estão satisfeitos “com a forma que a democracia trabalha”, está-se buscando saber o nível de apoio ao desempenho do regime, e não especificamente o nível de apoio aos princípios do regime democrático. “(...) Insatisfação com o desempenho da democracia não implica necessariamente em insatisfação com a democracia como tal, ou que as pessoas prefeririam alguma alternativa autoritária [ao invés do regime democrático]” (Linde & Ekman 2003, 396). Pode acontecer também de a pessoa ser altamente favorável à democracia, ainda que aceite um regime autoritário em momentos de dificuldade; ainda, o indivíduo pode também achar que a democracia, como princípio, é efetivamente o melhor regime de governo, mas pode acreditar que seu país ainda não esteja preparado por algum motivo para o mesmo. Portanto, respostas para a pergunta “satisfação com a maneira que a democracia trabalha” devem ser vistas como o grau de apoio ao desempenho da democracia e não à

democracia como princípio. Ao mesmo tempo, é óbvio que o grau de apoio ao desempenho da democracia influencia no grau de apoio que a democracia como princípio recebe. Portanto, “(...) se estivermos interessados em medir o nível de legitimidade democrática, necessitamos de itens que explicitamente perguntem aos cidadãos sobre a forma de governo mais apropriada para o seu próprio país no momento presente” (Linde & Ekman 2003, 397, grifos no original). (...) Após ter explorado o apoio à democracia como um princípio do regime, agora vamos para a próxima dimensão do desempenho do regime. Esse nível relaciona-se ao apoio a como o sistema político democrático funciona na prática. (...) É sabido que um bom desempenho aumenta a legitimidade do regime, enquanto um mau desempenho faz com que o público se sinta menos satisfeito com o regime (Linde & Ekman 2003, 400). Aqui parte-se do princípio de que o desempenho é analisado não apenas em relação ao que o regime garante à população, mas também com o que ele impede a população de fazer. “A aprovação de um regime não é influenciada apenas pela sua habilidade de fornecer [coisas para os cidadãos], mas também pela ausência de ação estatal indesejada” (Linde & Ekman 2003, 400-1). Analisando dados de terceiros, os autores afirmam que a melhor maneira de se analisar a satisfação dos povos do Leste Europeu com a democracia é por meio do seu sentimento de liberdade pessoal e de garantia dos direitos humanos, e não por meio de liberdade de agir no mercado. No entanto, vale destacar que a “satisfação com a maneira como a democracia trabalha” é apenas um dos itens necessários para se avaliar o apoio ao desempenho da democracia em determinado país. A filiação partidária pode influenciar no apoio do indivíduo: “um social-democrata vivendo em um país governado atualmente por um partido democrata-cristão poderia ser, provavelmente, mais crítico com o desempenho daquele governo em particular do que seria seu vizinho democrata- cristão” (Linde & Ekman 2003, 401). O ponto enfatizado pelos autores, portanto, é o de que as preferências dos indivíduos são moldadas por suas preferências partidárias, e tais preferências se refletem nas pesquisas de opinião e na avaliação do desempenho dos governos instituídos no momento de tais pesquisas. Aqueles que votaram no partido ou candidato vencedor tenderão a fazer uma avaliação mais positiva do desempenho do governo (e do regime democrático), enquanto que aqueles que “perderam” tenderão a ser mais críticos e pessimistas em relação ao desempenho do governo. “(...) Demonstramos aqui que o item ‘satisfação com a forma que a democracia trabalha’ não é um indicador bem claro de apoio ao desempenho do regime, já que ele é altamente sensível em relação às preferências partidárias dos respondentes” (Linde & Ekman 2003, 403).

Linde & Ekman (2003, 405) afirmam que “(...) mostramos aqui que [a variável] ‘satisfação com a forma como a democracia trabalha’ não é um indicador de apoio aos princí pios da democracia”; ele serve muito mais para se avaliar como o regime democrático funciona na prática. Ao mesmo tempo, essa variável também é insuficiente para se avaliar o desempenho da democracia, já que ela é sujeita a “variações de humor” dos cidadãos, que avaliarão tal item de acordo com suas preferências partidárias. Ainda, vale lembrar que o apoio à democracia – tanto no sentido de desempenho quanto no sentido de um princípio – demora um certo tempo, e que o próprio regime deve ser capaz de “(...) manter a ordem, manter o estado de direito, (...) e respeitar os direitos humanos e as regras democráticas do jogo” (Linde & Ekman 2003, 406, grifo nosso). Ao mesmo tempo, novas ferramentas de pesquisa devem ser criadas, como um questionário feito pelo Instituto Allensbach da Alemanha, no qual “(...) é apresentada aos respondentes uma lista de várias características geralmente consideradas como sendo as propriedades definidoras da democracia (isto é, itens de pesquisa que realmente relembram uma operacionalização do modelo poliárquico de Dahl)” (Linde & Ekman 2003, 406, grifo nosso).

Relações entre pluralismo e democracia no paradigma dominante Após mostrarmos como o desempenho da democracia é dependente do desenvolvimento econômico, de acordo com Inglehart (2003) e com Linde & Ekman (2003), passaremos a uma análise mais localizada do processo de redemocratização como ele é visto pelo paradigma dominante. Para tanto, iremos começar por aquele autor que é considerado como fundador da “transitologia”: Guillermo O’Donnell. O primeiro texto deste autor a ser analisado é O estado autoritário e os movimentos populares, publicado no Brasil em 1979. Iremos relacioná-lo com as idéias propostas por este mesmo autor em seu artigo “Tensões no estado autoritário-burocrático e a questão da democracia”, publicado em Collier (1982). Por fim, avançaremos temporalmente até o artigo Delegative democracy?, de 1992. No primeiro texto, O’Donnell faz uma definição do modelo chamado por ele de “estado burocrático-autoritário” (EBA ou BA), que corresponde aos governos militares instalados na América Latina. Segundo o autor, este modelo estatal foi instaurado nesses países com o objetivo de manter a ordem e a estrutura de dominação na sociedade. O EBA surge como uma tentativa, por parte do capitalismo internacional e das elites políticas internas – especialmente os militares – de se manter o país no “rumo certo”, acabando com possíveis mobilizações populares que pudessem levar os países da região em direção ao socialismo. Vale lembrar que no período de instauração desses regimes a Guerra Fria ainda existia, e por isso a disputa ideológica entre o modelo capitalista e o modelo comunista de organização social

bastante acirrada. A hipótese central do modelo burocrático-autoritário (BA) é a de que “(...) a emergência (impactos sociais e dinamismo) desses fenômenos não pode ser entendida nem explicada se não se começa por ver sua íntima e sistemática relação com a estrutura e mudanças de certo tipo de capitalismo, que tem características próprias que têm de ser devidamente especificadas” (O’Donnell 1979, 29). Segundo o autor, são características definidoras do modelo BA (tomando como base o Brasil, a Argentina, o Uruguai e o Chile): 1. Aparecem depois de uma forte ativação política do setor popular, sobretudo o urbano, como conseqüência desta ativação; 2. As posições superiores são ocupadas por pessoas vindas de organizações complexas e altamente burocratizadas, como as Forças Armadas, o próprio estado, grandes empresas privadas; 3. São sistemas de exclusão política, fechando os canais de acesso ao estado por parte do setor popular, além de desativá-lo politicamente por meio da repressão e do controle corporativo dos sindicatos pelo estado; 4. São sistemas de exclusão econômica, ao reduzir e adiar as aspirações de participação econômica do setor popular; 5. São sistemas despolitizantes, transformando questões sociais e políticas públicas em questões “técnicas” solucionadas pelas grandes instituições burocráticas acima citadas; 6. Correspondem a uma etapa de importantes transformações nos mecanismos de acumulação nas suas sociedades, as quais, por sua vez, são parte de um processo de profundización de um capitalismo periférico e dependente, mas – também – já dotado de uma extrema industrialização (O’Donnell 1979, 30-1). O BA emerge como uma tentativa de se manter o país no rumo certo. Após uma rápida e alta ativação política do setor popular, outros setores podem enxergar esta ativação “(...) como uma ‘ameaça’ à continuidade dos parâmetros sócio-econômicos dessas sociedades e de suas filiações internacionais”. Tais processos políticos vinculam-se a crises econômicas que precedem a instalação do Estado BurocráticoAutoritário (EBA). Essa ameaça representada pela ativação política faz com que: 1) Membros “linha dura” das Forças Armadas passem a pensar mais seriamente no uso da força para reprimir as organizações de classe do setor popular; 2) Após a implantação do BA, a aliança que o implantou se desintegra – já que setores que apoiaram o golpe vêem que não fazem parte da lista de beneficiários do BA. A burguesia nacional perde também seu assento no estado, pois este, juntamente com o capital internacional, exclui o setor popular e também seus aliados originais. Só

depois de muito tempo é que o BA aceita novamente a burguesia nacional (O’Donnell 1979, 31-3). Devido à questão do tempo – que tem um papel fundamental nesse modelo –, a ameaça ao EBA, logo após a sua implantação, é muito pequena. Isto é decorrente do fato de que a burguesia nacional, sozinha, não consegue desafiar o estado e sua união com o capital internacional. Ao mesmo tempo, não pode, em um curto período de tempo após a implantação do BA, buscar fazer uma aliança sólida com as classes populares contra o EBA, já que a própria burguesia havia lutado antes contra a agitação política dessas classes populares – daí a importância do fator tempo. A burguesia nacional não pode se aliar às classes populares contra o EBA, mas enquanto não o fazem, não têm força suficiente para desafiá-lo sozinho. Brasil, Argentina e México estavam longe da imagem de países “subdesenvolvidos”, pois a industrialização nos países da América Latina se deu de forma “lenta e gradual”. A partir da década de 1950, começam a surgir agitações políticas decorrentes desse processo de industrialização (urbanização, demandas salariais, sindicatos, etc.). Essas agitações coincidiram com os primeiros momentos da Revolução Cubana, por um lado, e com mudanças no sistema capitalista mundial por outro, com o crescente papel das empresas transnacionais, que foram atraídas a todo custo para a América Latina pelos governos ditos “desenvolvimentistas” de então. Ocorre a “(...) primeira ‘profundización’ da estrutura produtiva urbana para atividades mais complexas e mais distantes do consumo final”, sendo essa profundización o processo de abertura ao capital internacional com apoio do estado burocráticoautoritário. Como resultado da entrada das empresas transnacionais nos mercados nacionais, criaram-se novos focos de poder (político, econômico, cultural) em torno destas empresas transnacionais; diversas empresas nacionais tiveram de se subordinar, financeira e tecnologicamente, a essas empresas transnacionais; essas que se subordinaram tiveram taxas de crescimento maiores que as que não quiseram ou não puderam fazer isto; alteraram-se profundamente as relações internas dos países e também a posição relativa que a burguesia nacional conquistou com a etapa anterior (início da industrialização); foram feitos cortes internos, impostos á classe operária e também à classe média, como resultado do maior dinamismo e das melhores retribuições advindas destas empresas transnacionais; aumentou-se a dificuldade para um empresário local entrar no mercado. “O estado e o capital internacional foram aparecendo cada vez mais como os únicos capazes de iniciar as novas atividades” (O’Donnell 1979, 40). As empresas transnacionais eram vistas como única saída para os problemas econômicos de então. Para solucionar os problemas causados pela primeira entrada de empresas transnacionais nos países – tais como a restrição do crescimento do produto nacional,

problemas inflacionários e crises sócio- políticas causadas por estes problemas –, o EBA decidiu realizar uma nova profundización, trazendo para o país, em uma segunda etapa, empresas transnacionais que produziriam insumos para a primeira leva de empresas transnacionais. Assim, mais uma vez aliando-se ao capital internacional, ocorreria uma grande ampliação da infra-estrutura básica (comunicações, energia, transporte) e da capacidade já instalada de alguns insumos e de tecnologia, bem como a criação de novas linhas de insumo (indústria petroquímica, de papel, de alumínio, etc.). (...) Em termos das condições do comércio internacional pouco adequadas para confiar nas conseqüências de não aumentar significativamente a produção local de insumos e bens de capital – e da oferta mundial de inversões e tecnologia, reforçada pela impossibilidade política e ideológica de explorar seriamente alternativas por parte das classes e setores que consolidavam sua dominação mediante o EBA –, essa profundización aparecia como única direção possível a tomar. O único possível parecia também politicamente indispensável (...) [pois esta aparecia como única opção possível para a solução dos problemas que justificaram a implantação do EBA] (O’Donnell 1979, 41-2, grifos no original). Duas observações importantes devem ser feitas sobre essa segunda profundización: 1) Para esta segunda fase, praticamente apenas o estado e o capital internacional têm condições de fazê-lo, já que requerem mais capital de longo prazo, mais investimento de/em tecnologia e uma maior organização gerencial; 2) Em decorrência deste ponto, as grandes organizações teriam lucros muito grandes, e teriam a possibilidade de obter esses lucros por muito tempo, garantindo a continuidade futura de benefícios. Nos anos anteriores ao EBA, “(...) os capitalismos cumpriam pobremente a função essencial de transformar a acumulação em inversão reprodutiva” (O’Donnell 1979, 43). O EBA buscava, então, solucionar esse problema, ao mesmo tempo em que buscava “melhorar o caixa” do estado. Apenas grandes corporações tinham possibilidade de fazê-lo (investir muito e esperar muito tempo pelo retorno). Ao estado competia a função de garantir a certeza futura de lucros, para que as empresas pudessem investir – o que não acontecia (garantir a certeza) antes do EBA. Só assim esta nova profundización poderia ocorrer. O estado anterior ao EBA não conseguia garantir a estabilidade, não só em termos políticos e econômicos, mas também sociais. Daí que uma das primeiras funções do EBA era desarticular o setor popular, considerado uma ameaça aos investimentos estrangeiros. O EBA deveria garantir a estabilidade, por meio da força, se necessário, para garantir ao capital internacional os lucros (com conseqüente benefício para o

estado, que estaria recebendo inversões por ser um estado “confiável”). Eliminar-seiam os obstáculos políticos à reconstituição dos mecanismos de acumulação de capital, e garantir-se-ia a paz social nas empresas, paz esta vital para as inversões de capital internacional. Com a exclusão da possibilidade de dissenso e com a manutenção da ordem, o capital internacional teria a garantia de previsibilidade de lucros futuros, já que o estado não se tornaria socialista. Além disso, teoricamente as variáveis econômicas seriam mais bem controladas, sem as grandes flutuações características do período pré-EBA. Ainda, a livre remessa de lucros e as restrições à saída de capitais tinha de ser garantida, como forma de incentivo às empresas transnacionais já presentes no país e também a outras ainda por virem (O’Donnell 1979, 44-5). O EBA surge para excluir os setores populares que causam crises políticas (resultado do populismo e de mentalidade “desenvolvimentista”), e essa exclusão é necessária para a manutenção da ordem política e da estabilidade econômica; estas, por sua vez, são necessárias para a atração do capital privado internacional para que ocorra a profundización. A profundización tem de ser executada conjuntamente pelo estado e pelo capital internacional; individualmente, nenhum dos dois é capaz de fazê-lo. Ao mesmo tempo (ou por isso mesmo), um é dependente e independente do outro. O capital internacional é fundamental para a implantação e expansão do EBA, além, é claro, de ser necessário para a profundización. O EBA se expande ao “(...) institucionalizar o atrelamento corporativo das organizações de classe do setor popular, de forma que elas se convertam, na realidade, em baluarte fortificado do estado em sua fronteira mais problemática com a sociedade civil” (O’Donnell 1979, 46). Deve-se desenvolver o estado para torná-lo capaz de garantir a ordem e a estabilidade. Ao mesmo tempo em que controla a sociedade, o EBA deve ser desenvolvido para executar as obras necessárias à atração do capital (obras físicas de infra-estrutura, mas também econômicas, como saneamento e disciplina fiscal, etc.). O EBA e o capital internacional “(...) se aliam em uma relação de mútua indispensabilidade” (O’Donnell 1979, 47). “O EBA não é imutável. Ao contrário, muda rapidamente a face que oferece em seus momentos inaugurais”. Os dois primeiros problemas enfrentados pelo EBA são: 1) Conter a ameaça causada pelas agitações populares; 2) Conseguir captar capital internacional. Ambos levam tempo e são instáveis: “(...) não se consegue de imediato nem para sempre” (O’Donnell 1979, 49). O EBA deve ser capaz de convencer que pode executar políticas atrativas para o capital internacional; mas, mais que isso, deve provar que possui “(...) capacidade política necessária para manter essas políticas por um bom tempo”; deve convencer que eliminou (e não apenas suspendeu) “(...) a

instabilidade política e econômica que caracterizou o período anterior à sua implantação” (O’Donnell 1979, 50). O EBA precisa de tempo para acabar com a agitação popular e para mostrar-se capaz de acabar com ela novamente, caso ressurja; tempo para colocar em prática políticas favoráveis ao capital internacional, mas principalmente para convencer os investidores de que é um local seguro para seus investimentos. Em seus primeiros anos, o EBA é administrado economicamente pelos ortodoxos. Lutam, internamente, contra aqueles que não querem seguir seus rumos, como aliados civis e militares com tendências populistas ou “pequeno-burguesas”, contra o big business; e também contra a própria burguesia nacional, sua aliada durante o golpe, já que o objetivo inicial do EBA é obter financiamento externo. A burguesia nacional se desilude com esta atitude do EBA, mas não faz nada para mudá-la, não se aliando ainda às classes populares contra o EBA. Apenas com a garantia de continuidade de tais políticas econômicas, somada à “benção” do FMI e do Banco Mundial e ao fator tempo, é que o EBA começa a receber inversões, as quais também vão variar, crescentemente, de acordo com o fator tempo. As primeiras inversões são divulgadas como sucesso do novo modelo, não apenas para legitimar-se internamente, mas também externamente, frente a outros possíveis (e desejáveis) investidores. Essa situação pode levar a burguesia local a se aliar às classes populares contra o EBA; isso vai depender do nível de ameaça representado por essas classes populares antes da implantação do EBA. A situação de descontentamento das classes populares e da própria burguesia local leva os ortodoxos ao isolamento político fora do EBA. Eles têm de convencer os militares a os apoiarem institucionalmente (inclusive contra os desejos populares e contra a burguesia local), e os militares, de forma geral, os apóiam – relembrando-se sempre da ameaça representada pelas manifestações populares –, mesmo que este apoio traga prejuízos sociais e econômicos, os quais são considerados como “(...) sacrifícios necessários em nome da grandeza da nação” (O’Donnell 1979, 53-4). O EBA é um estado dependente. Mesmo o EBA já em uma segunda fase, que reflete as conseqüências dos movimentos rumo à profundización (em contraste com a primeira fase, de instalação do EBA e implantação de políticas para se manter a ordem e a estabilidade), ele continua a ser dependente – até mesmo aprofunda um pouco esta dependência em relação e em direção ao capital internacional. O papel fundamental do capital internacional leva o estado a criar e a aplicar políticas que garantam o ingresso contínuo do mesmo; tais políticas, “(...) por sua vez, provocam profundas mudanças em nossa sociedade” (O’Donnell 1979, 57). Tais políticas refletem e comprovam o caráter dependente do EBA.

Nessas primeiras duas fases, o EBA se afasta bastante da sociedade, sendo autônomo em relação a esta. É esta autonomia que permite a ortodoxia econômica, o contato com o capital internacional (duo EBA e capital internacional) e a profundización. O EBA necessita, então, de tempo, para ganhar a credibilidade que garanta uma entrada contínua de capital internacional. Este tempo é condicionado pelo nível de ameaça existente antes da implantação do regime. O EBA é, no fundo, um estado nacional como qualquer outro. Então, em algum momento, o EBA tem de se voltar à sua própria sociedade, representada aqui pela burguesia nacional, já que os setores populares estão excluídos do processo. O EBA precisa mostrar à sociedade que os “sacrifícios” que lhe são impostos pela sua direção trarão benefícios a todos no longo prazo. Como a economia do EBA não pode ser irrestritamente internacionalizada, surge a possibilidade de formação de um “trio” – EBA, capital internacional e capital nacional. É assim que os benefícios são distribuídos à sociedade civil – ou a parte dela –, e com isso a ideologia de “sacrifícios hoje para benefícios amplos para todos amanhã” se concretiza. O EBA tutela a burguesia nacional; mas para isso tem de ser mais nacionalista, com protecionismo e subsídios. O EBA tem de criar, na economia, um espaço para a burguesia nacional e para si próprio, envolvendo-se em atividades produtivas. Mas o EBA e o capital internacional continuam dependendo um do outro, e a ligação entre estes dois entes continua forte. O EBA deve se equilibrar entre o capital internacional (ainda preponderante) e nacional (aparecendo com vontade no jogo). O próprio estado, entretanto, tenta melhorar suas condições frente às imposições do capital internacional, em um jogo contínuo de interesses entre as duas partes envolvidas. A burguesia nacional aparece como legitimadora, política e ideologicamente, do EBA, ao mesmo tempo em que depende do mesmo para se manter como burguesia. Ela também se relaciona com o capital internacional, já que se vincula ao mesmo, tentando, no entanto, não ser engolida por ele. A burguesia nacional consegue manter sua independência frente ao capital internacional. “O EBA adveio arrancando pela raiz a ‘ameaça’ de uma crescente agitação política que se fazia acompanhar de um afrouxamento dos controles do estado e das classes dominantes sobre o setor popular” (O’Donnell 1979, 73). O sistema de dominação do EBA trabalha nos âmbitos econômico e político pela “(...) negação das aspirações de participação econômica do setor popular (...) e, também, como fecho dos canais de acesso político, junto com a eliminação ou subordinação de suas bases organizacionais do setor popular” (O’Donnell 1979, 74). Caso a dominação econômica e política já exista, cabe ao EBA conservar a mesma, o que é mais fácil,

tendo tal situação ocorrida no México e na Espanha. O EBA deve controlar o setor popular, minimizar flutuações sócio- econômicas e apresentar-se como um mercado atrativo frente ao capital internacional. O ponto central é garantir que essas conquistas vão se manter em um futuro previsível. Os EBAs mexicano e espanhol foram implantados em estados já autoritários, o que facilitou algumas coisas e dificultou outras: não houve variações bruscas nos indicadores econômicos; os ingressos de capital aumentaram, mas se estabilizaram mais rápido que nos outros EBAs; a economia não necessitou ser tão ortodoxa; não passou pela tensão “duo” “trio”; os impactos sociais foram mais distribuídos no tempo, não sendo tão “repentinos” como nos outros EBAs. Como impactos sociais em todos os EBAs, temos: (...) regressivas tendências na distribuição da renda, a permanente dependência tecnológica e financeira, a elevada participação do capital internacional em seus rumos industriais mais dinâmicos, as acirradas pressões sobre sua balança de pagamentos e, certamente, a repressão que não se vacilou em aplicar quando os controles sobre o setor popular pareceram ser questionados (O’Donnell 1979, 75-6). A possibilidade do surgimento de movimentos democráticos no âmbito do EBA é o tema tratado por O’Donnell em seu segundo texto (1982). Essa possibilidade indica tensões internas inerentes a este regime, “(...) no núcleo desse sistema de dominação, bem como de setores sociais que o EBA exclui” (O’Donnell 1982, 268). Apesar da sua aparente força e unidade, o EBA sofre profundas tensões internas devido a diversos motivos, tais como: 1) O fato de que o regime é fundado na coação; 2) Os apoiadores do EBA são uma fatia muito pequena da sociedade, enquanto o EBA se coloca como representante de toda a nação; 3) A base da sociedade (setor popular) rejeita o regime, já que foi sua derrota que levou ao aparecimento do EBA (O’Donnell 1982, 268). Segundo O’Donnell, o EBA, como todo estado capitalista, “mantém e estrutura a dominação de classe”. A dominação advém de uma estrutura de classe, criada de acordo com o funcionamento e reprodução das relações capitalistas de produção. O estado é “(...) o aspecto estritamente político das relações de dominação” (O’Donnell 1982, 269). Há dois temas que são inter-relacionados em relação ao estado: 1) Ele é o aspecto político de certas relações sociais de dominação; 2) É um conjunto de instituições e normas legais. Como conseqüência, a racionalidade do estado não é distinta ou superior à da sociedade, e não há como negar o papel decisivo do estado na função de

articular a sociedade civil de uma maneira desigual ou contraditória (O’Donnell 1982, 269). Ao se mostrar para a sociedade por meio de instituições públicas, o estado esconde sua função de “fiel da balança” das relações de dominação dentro da sociedade; ao mesmo tempo, é por meio destas instituições – que mediam as relações estadosociedade – que o consenso é criado. “O estado, em última análise, se baseia na coação, mas também se baseia geralmente no consenso, que tanto abrange como esconde a coação” (O’Donnell 1982, 270). O principal consenso que o estado forja na sociedade é a noção de nação. O segundo consenso é a noção de cidadania, que inclui: 1) Uma igualdade abstrata, obtida por meio de eleições e que legitima as ações realizadas “em nome de todos” pelo estado; e 2) O direito à proteção jurídica contra atos do estado. Há ainda um terceiro consenso principal – o “povo” – que, diferentemente do “nós-nação” e do “nós-cidadania”, “(...) é portador de exigências de justiça substantiva que constitui a base para as obrigações do estado para com os segmentos menos favorecidos da população” (O’Donnell 1982, 270-1). O direito de lutar por justiça substantiva existe, mas é limitado devido à estrutura de classe da sociedade. Entretanto, enquanto a possibilidade de usá-lo permanecer, ele garante o consenso. A utilização dos conceitos de nação, cidadania e povo permite ao estado afirmar que ele trabalha por um interesse geral. As idéias de cidadania e de povo fornecem “(...) uma base consensual para o exercício do poder (...) [e da] coação pelas instituições do estado” (O’Donnell 1982, 271). O estado se legitima porque suas instituições trabalham por ordem do estado em benefício daqueles que compõem o nós-nação, o nós-cidadania e o nós-povo, estando tais instituições e estes “nós-”, aparentemente, acima das divisões de classe e isentas das conseqüências dessas divisões. Assim, trabalhando por todos, sem considerar (ou até “resolvendo”) as divisões de classe, o estado atinge o consenso e se legitima. O indivíduo, por sua vez, ao se utilizar das instituições que trabalham para ele (pois ele é parte do “nós-”), não percebe que tais instituições – o aparelho do estado – organizam e mantêm a divisão social em classes. O indivíduo crê que as instituições trabalham em decorrência dos direitos que possui, e não crê que as mesmas sejam influenciadas pela divisão social (ou até trabalhem para manter esta divisão social). “Essa tensão é a chave da análise teórica do estado” (O’Donnell 1982, 272). Também o EBA, apesar de não possuir todas estas mediações entre estado e sociedade, necessita “(...) mascarar a realidade da dominação e parecer ser a expressão de um interesse geral, abrangente” (O’Donnell 1982, 272).

O EBA, portanto, funciona da seguinte maneira em suas relações com a sociedade: 1) Organiza a dominação exercida pela alta burguesia, oligopolizada e transnacionalizada; 2) Suas instituições de maior peso são as que detêm o poder coercitivo e as que buscam a “normalização” da economia; 3) Exclui, politicamente, o sistema popular previamente ativo; 4) Suprime o “nós-cidadania”, nos dois sentidos explicitados acima, principalmente com a destruição das instituições da democracia política; ainda, suprime também, pela coação, o “nós-povo”; 5) Aumenta a desigualdade econômica, com transferência da (pouca) renda dos pobres para os ricos; 6) Transnacionaliza cada vez mais a economia nacional; 7) Despolitiza as questões sociais, tentando resolvê-las apenas por meio de critérios “neutros e objetivos”, complementando a impossibilidade de invocar a cidadania e o “povo”2; e 8) Fecha os canais democráticos de acesso ao governo, notadamente aqueles referentes à representação dos interesses populares e de classe. Apenas uma restrita elite (pública, privada e militar) tem acesso ao governo (O’Donnell 1982, 273-5). Em outras palavras, o EBA se isola da sociedade com o objetivo de não ser “importunado” pelas pressões oriundas das classes populares e da própria burguesia nacional. O EBA impõe-se como o único mecanismo capaz de colocar ordem no país. Para isso, as suas duas primeiras (e drásticas) ações são: 1) Transnacionalização da economia, em um primeiro momento, com o objetivo de “acalmar os mercados”, normalizando a economia e, em um segundo momento, objetivando manter um clima favorável de investimentos a fim de garantir a entrada contínua do capital internacional, como foi explicitado anteriormente; e 2) A contração do “nós-nação”, a supressão do “nóscidadania” e a proibição de apelos ao “nós-povo”, já que foi essa agitação popular que levou à desordem característica do momento anterior à implantação do EBA e que justificou a sua própria instauração. Só fazem parte do “nós-autoritário” aqueles que se adaptam ao seu projeto (O’Donnell 1982, 275-6). “Por outro lado, como todos os estados, o EBA afirma ser um estado nacional”. Ele estatiza o conceito de nação, ao mesmo tempo em que privatiza a economia. O interesse geral, “da nação”, passa a ser o mesmo interesse “(...) com o sucesso das instituições do estado em sua busca para estabelecer uma ordem particular na sociedade e para normalizar a economia” (O’Donnell 1982, 276). O poder das instituições perde a legitimidade (por trabalharem para si), e a dominação se dá em bases de coerção física e econômica. Além disso, as outras mediações entre estado e sociedade (cidadania e “povo”) já não existem, ou seja, a mediação é feita pelo conceito de nação, que é definido pelo EBA. “A implantação do EBA é a conseqüência de uma reação amedrontada ao que é percebido como uma ameaça grave à sobrevivência dos parâmetros capitalistas básicos da sociedade” (O’Donnell 1982, 277). O autor deixa claro, aqui e em outras

passagens mais à frente, que o EBA é um típico estado de classe. Os líderes do EBA não são os representantes de nenhuma das classes “majoritárias” da sociedade. Os líderes do EBA não são, nem podem eles verem-se a si mesmos, como os representantes quer desta nação em ordem de batalha, quer dos antagonismos da sociedade civil. Pelo contrário, a missão deles é transformar a sociedade profundamente de maneira tal que, em um futuro distante, o “nós” da nação seja sustentado por uma utopia de integração social (O’Donnell 1982, 277). O EBA exclui os processos democráticos e a mediação estado-sociedade para tentar solucionar os problemas enfrentados pelo país. Ao fazer isso, a sociedade civil deixa de sentir-se parte da nação, perde sua cidadania e não possui mais os direitos do “povo”. A participação da sociedade no EBA se dá de modo passivo, “aprovando” as ações realizadas pelas instituições do estado. Forma-se um “(...) ‘consenso tácito’, isto é, despolitização, apatia e um recuo para uma existência diária completamente privatizada” (O’Donnell 1982, 277-8). Esse consenso tácito, no entanto, é insuficiente para o estado manter-se como tal. É necessário ao estado o apoio da alta burguesia, de alguns setores da classe média e o uso constante da força física, causando medo aos seus opositores. O EBA também tem medo – o medo de que as coisas voltem a ser como antes –, mas esse medo diminui com o passar do tempo e com o “sucesso” de suas políticas. As ações tomadas pelo EBA no sentido de reorganizar a nação acabam por diminuir a sua base de apoio, ou seja, faz com que aqueles que antes o apoiavam retirem esse seu apoio – e, em alguns casos, não só deixam de apoiar como também passam a fazer oposição ao EBA. Essa é a situação, principalmente, da burguesia nacional, que apóia o EBA pela manutenção/restauração da ordem capitalista, mas se sente frustrada pela preferência dada pelo EBA à burguesia e ao capital internacionais (ponto fundamental da normalização da economia nacional, como visto anteriormente). Como conseqüência, se a burguesia perde muito, ela tende a se associar aos setores populares, os quais ajudou a excluir antes, politicamente; se perde pouco, não possui margem de manobra, não se alia aos setores populares e reforça a insipidez da sociedade civil. Disso resulta que a única camada que apóia o EBA “(...) é a alta burguesia – isto é, as frações superiores da burguesia local e do capitalismo transnacional” (O’Donnell 1982, 279). Porém, contraditoriamente, este é o componente menos nacional da sociedade. Como o EBA reduz ou remove as mediações estado-sociedade e possui como componente principal de sua base uma entidade transnacional, “(...) a base final do estado – a coação – é revelada completamente”. Além disso, por mais que diversos

apelos nacionalistas sejam lançados pelo estado, a nova “nação” do EBA não consegue mediar as relações estado-sociedade, devido à “(...) desnacionalização posterior da sociedade civil e a contradição da nação” (O’Donnell 1982, 279). Uma saída para estes conflitos e contradições é o próprio estado tomar a frente desenvolvimentista e ocupar o espaço previamente ocupado pela burguesia nacional, criando, desenvolvendo e implantando um projeto de desenvolvimento nacional. No entanto, esta ação entraria em conflito com o capital internacional, que é o principal financiador e apoiador do próprio EBA. As duas preocupações iniciais do EBA são restaurar a ordem (por meio da coação exercida pelas forças armadas) e normalizar a economia (por meio da ortodoxia econômica dos tecnocratas conhecidos do capital internacional). “A implantação do EBA é uma tentativa de salvar uma sociedade cuja continuidade como sistema capitalista foi percebida como ameaçada” (O’Donnell 1982, 280). Com isso, fica exposto o caráter capitalista do estado – ou seja, ele é um estado capitalista, antes de ser um estado nacional ou popular. Entretanto, por não poder legitimar-se a si próprio sendo apenas um estado capitalista, o EBA legitima-se pelo consenso tácito, pela coação, pelo medo e pelo apoio das frações menos nacionais da sociedade. No EBA, outro possível ponto de contradição surge entre os dois entes principais do estado: as forças armadas, que se justificam por manter a ordem, e os tecnocratas ortodoxos da área econômica, que se justificam com o objetivo de normalizar a economia. A contradição surge pelo fato de que os economistas desejam uma transnacionalização cada vez mais extensa e profunda da economia, integrando fortemente a economia nacional à internacional (mesmo que a primeira seja submissa à segunda). Já as forças armadas são mais nacionalistas e menos inclinadas ao lucro, com suas doutrinas de segurança nacional e com a pouca importância dada ao lucro excessivo. No entanto, esses dois pólos, aparentemente antagônicos entre si, “(...) tendem a se tornar transparentemente próximos e apoiando-se mutuamente” (O’Donnell 1982, 282), já que a área econômica necessita da ordem garantida pelas forças armadas para reiniciar a acumulação econômica e para garantir a confiança no futuro da economia, enquanto a área militar necessita da normalização da economia para garantir sua dominação política e sua própria existência como classe política dominante. Assim, “No EBA, o domínio econômico e a coação, juntamente com os seus portadores sociais, são mutuamente indispensáveis” (O’Donnell 1982, 282). Essa aliança, contudo, não impede o surgimento de tensões, disputas e contradições entre os dois blocos dominantes. “A indispensabilidade mútua da alta burguesia e das forças armadas é a chave para descobrir as dissonâncias e tensões que surgem entre elas” (O’Donnell 1982, 282).

Para solucionar tais divergências, “uma possibilidade seria o aumento do aparelho do estado que pode expandir grandemente o seu papel econômico direto, inclusive o seu papel na produção econômica” (O’Donnell 1982, 283). Seria a aliança entre o estado, representado aqui pelas forças armadas com a burguesia nacional “contra” o capital internacional, agindo um como uma forma de contrapeso ao poder do outro. Isso, no entanto, é inviável no primeiro momento, quando é imperativo normalizar a economia – incluindo-se aí a drástica redução do papel do estado na economia, com redução do déficit fiscal, retorno de atividades lucrativas ao setor privado da economia e eliminação de subsídios aos consumidores e produtores ineficientes, inclusive empresas estatais. Com o passar do tempo, no entanto, o EBA segue pelo caminho nacionalista e estatista, já que chega a um ponto no qual é possível acreditar que a economia e a sociedade já não apresentam mais os defeitos que justificaram sua própria instauração. Esse ponto estimula o estado a ter um papel econômico mais ativo e empreendedor, aliando-se à burguesia nacional. Dois fatores são importantes para se determinar quão rápido se chega a esse ponto: 1) Os níveis de ameaça que precediam ao EBA; e 2) A rapidez com que as políticas econômicas implantadas pelo EBA obtêm sucesso. Quanto mais alto o nível de crise e ameaça anteriores, menor a probabilidade de conseguir sucesso (mesmo do ponto de vista dos líderes do EBA e seus aliados) na normalização da economia, mas, por este mesmo motivo, maior é a certeza por parte da alta burguesia de que as políticas econômicas ortodoxas sejam mantidas (O’Donnell 1982, 286). “A perpetuação (aliviada em alguns sentidos mas agravada em outros) da crise econômica que precede o EBA é a melhor garantia de que suas ligações com a alta burguesia serão mantidas, apesar das tensões discutidas acima” (O’Donnell 1982, 286). No entanto, a continuação da crise faz com que o lucro da alta burguesia venha por meio de especulações financeiras, e não por meio de crescimento econômico sustentado, já que, devido à diminuição do consumo causado pela ortodoxia econômica, as estruturas produtivas do país, uma boa parte, ficarão ociosas. A especulação, entretanto, aumenta ainda mais a crise econômica. Enquanto essa situação persistir, a profundización não pode ser posta em prática. O Brasil foi o único país onde, após quatro anos de ortodoxia, o papel do estado na economia expandiu-se novamente, em aliança com a burguesia local, sem, contudo, acabar com a aliança original do estado com a alta burguesia internacional. “Essa mudança coincidiu com o período de maior repressão” (O’Donnell 1982, 287). Em contraste com o argentino, o EBA brasileiro foi capaz de mostrar que continuava detendo em suas mãos o poder de repressão necessário para a manutenção da ordem,

sufocando os apelos à cidadania e ao “povo” apesar das tensões internas ao EBA entre militares e economistas. A reafirmação do poder de coerção do estado brasileiro mostrou confiança à alta burguesia internacional, que respondeu com os investimentos necessários para o surgimento do “milagre brasileiro”. A partir deste ponto, foi possível ao EBA brasileiro manter a aliança com a alta burguesia ao mesmo tempo em que expandia suas próprias atividades produtivas. A alta burguesia, ao ver isto acontecer, quis limitar esta expansão, mas não impedir o estado de expandir-se, ao mesmo tempo em que este quis manter a confiança daquela. “O EBA só é compreensível como alternativa diante do abismo da ameaça – tanto no passado como potencialmente no futuro – da eliminação dos parâmetros capitalistas da sociedade” (O’Donnell 1982, 288-9), pois o EBA: 1) Suprime ou reduz as mediações entre estado e sociedade, as quais favorecem o consenso “espontâneo”; 2) Mostra a base fundamental do estado – a coação; 3) Transforma a alta burguesia em principal base social desse estado; 4) Esta burguesia, paradoxalmente, é o componente menos nacional da sociedade; 5) Transforma as instituições coercitivas em núcleo do EBA, enquanto a base social – a alta burguesia – possui valores diferentes dos destas instituições estatais. No entanto, apesar de sua aparente força, o EBA possui fragilidades: 1) O estado torna-se frágil, em termos de legitimidade, devido ao fim dos “nós-nação”, cidadania e povo (sendo que o “nós-nação” não é extinto, mas alterado drasticamente). Além disso, também a exclusão política e econômica do setor popular e o medo recíproco de ambas as partes, uma pela outra, aumentam a deslegitimação do EBA. 2) Há o afastamento de setores médios e das frações mais fracas e/ou nacionalistas da burguesia nacional em relação ao EBA, ou seja, este perde o apoio do qual inicialmente dispunha. 3) A presença constante da alta burguesia no aparelho do EBA, apoiando-o e, pelo menos frente às demais camadas sociais, deslegitimando-o ainda mais. 4) A busca de apoio, por parte da burguesia nacional, junto a setores estatais atentos às suas reclamações, notadamente junto às Forças Armadas. Apesar dessas fragilidades, o EBA se apresenta como um poder intacto, forte e bemestruturado, cujas ações, por mais que prejudiquem certas parcelas da sociedade, têm como objetivo a melhoria da situação de todos, ou seja, contribuem para a criação de uma grande “nação”. No entanto, mesmo sendo visto pela parcela excluída da sociedade como um todo único, é visto pelos próprios aliados como “altamente poroso”. Além disso, devido à exclusão política e econômica dos setores populares e à utilização dos instrumentos do estado pela burguesia de forma “não-oficial”, o estado perde sua unidade, sua eficiência e sua racionalidade técnica. Conseqüentemente, o EBA “destaca- se” da sociedade.

Como “atrelar” novamente estado e sociedade? O’Donnell propõe duas saídas pela visão do EBA. A primeira é a criação de uma sociedade corporativista estruturada. Para isso, o EBA teria de absorver toda a sociedade, e não apenas os trabalhadores – coisa que a alta burguesia não deseja, já que ela própria ficaria subordinada ao estado. Assim, o corporativismo serve “(...) para consolidar uma vitória de classe, mas não como meio de substituir as mediações entre o estado e a sociedade que o EBA suprimiu” (O’Donnell 1982, 291). A segunda maneira é pela instalação de um sistema como o mexicano, onde o PRI mantinha as mediações entre estado e sociedade, mas ao mesmo tempo evitava de forma eficiente os desafios populares. A única e verdadeira forma de “religar” o estado e a sociedade é restaurando a democracia, coisa que o EBA nega radicalmente. Com a restauração democrática, ao menos o “nós-cidadania” reapareceria. Vendo-se a si próprios como iguais, os cidadãos dariam ao estado aquilo que lhe falta – a legitimidade externa, ou seja, oriunda de fora do próprio estado. Além disso, solucionaria a questão da sucessão presidencial, o que seria altamente vantajoso para a alta burguesia – já que existiria a possibilidade de redução do poder dos militares, ao estes dividirem o poder político com civis eventualmente eleitos. Sob a ótica da dominação do EBA, a democracia “(...) teria que ser uma que consiga o milagre de ser tudo isto [fazer a ponte entre o EBA e a sociedade] e que ao mesmo tempo mantivesse a exclusão do setor popular” (O’Donnell 1982, 292). Essa democracia “a lá” EBA deveria manter suprimido o “não-povo” por meio de controle rigoroso das organizações e movimentos políticos do setor popular, bem como o controle do conteúdo difundido por aqueles que ocupariam as posições institucionais criadas pela democracia. O EBA carece “(...) tanto de mediações quanto de legitimidade” (O’Donnell 1982, 293). Como democratizar? Obviamente que a democratização seria apenas política. A possibilidade de democratização pode trazer novamente à tona as “crises” causadas pela atividade política popular que levaram ao surgimento do EBA, e tais crises reapareceriam ainda mais fortes que antes. A saída seria “(...) uma forma de democracia cuidadosamente limitada, no sentido de que as invocações em termos de povo ou classe estão proibidas, mas que ao mesmo tempo não é uma farsa tal que não possa proporcionar as mediações e, em última análise, uma legitimidade que possa se transformar em hegemonia” (O’Donnell 1982, 293, grifos no original). O grande temor de um sistema de domínio simultaneamente tão imponente e tão inseguro é o medo de que os adversários – que, apesar do seu silêncio, existem bastante claramente – se galvanizem em torno dessas questões em uma grande explosão que destrua não só o EBA mas também o sistema de

domínio social que ele ajudou a impor (O’Donnell 1982, 294). “A proposta para uma forma limitada de democracia, sem povo e em última análise sem nação, não é concessão graciosa de um poder triunfante, mas a expressão de suas fraquezas intrínsecas” (O’Donnell 1982, 295, grifos no original). O termo democracia, portanto, é deliberadamente manipulado pelos líderes do EBA, em seu benefício próprio, além de estar relacionado diretamente – e apenas – com a democracia política. O lado negativo da democracia em um EBA seria a “(...) possibilidade da democracia representar simplesmente um convite ao oportunismo para aqueles que desejam usá-la só para entrarem em um jogo pré-determinado”. Pode-se também “(...) rejeitar (...) a democracia por ser ela iniciada de cima e por haver um esforço tão cuidadoso para impor limites a ela” (O’Donnell 1982, 295). Porém, segundo o autor, seria possível privilegiar o lado positivo da democracia: ela seria “(...) uma luta pela apropriação e redefinição do sentido da democracia, orientada no sentido de se impregnar dos sentidos defendidos por aqueles que estão excluídos do EBA e que constituem, juntamente com eles, a base de um sistema alternativo de domínio político” (O’Donnell 1982, 295). Em outras palavras, a democratização levaria à democracia política, garantindo mais participação, mas sem mudar o estado. Além disso, seu objetivo seria meramente o de legitimar esse EBA, sem garantir nem mesmo a mínima democracia política. A importância do termo “democracia” revela a contradição entre a menção desse termo e a realidade da vida diária; mostra “(...) a importância daqueles que são excluídos e forçados ao silêncio (...)” (O’Donnell 1982, 296). Estes são uma das fontes de tensões do/no EBA, além daquelas já citadas anteriormente (exclusão do setor social, normalização da economia, tensões militares versus economistas, etc.). Após um período de solidez inicial, o EBA começa a sofrer tais tensões – vistas principalmente pelo fim dos efeitos do medo e pelo ressurgimento de algumas vozes, antes silenciadas. Tais vozes impactam não apenas na sociedade, mas também dentro do próprio aparelho estatal. Estas mudanças são oportunidades muito boas para aqueles que foram excluídos na fase de implantação do EBA, e o sucesso ou falha da democratização depende, em grande parte, da maneira de agir destes mesmos “excluídos”. Após mostrarmos como O’Donnell analisa o surgimento do EBA – caracterizado claramente como um estado de classe, que tem como objetivo beneficiar a burguesia internacional e manter a dominação capitalista na sociedade – e como o autor encontra tensões intrínsecas a esse modelo que o fazem seguir pelo caminho da

democracia – ainda que esse não seja o objetivo final da cúpula que administra o EBA –, passemos agora ao terceiro texto do autor, onde ele fala sobre como a democracia política estabelecida após a queda do EBA funciona em países que passaram por este tipo de regime. O’Donnell claramente segue o modelo liberal-democrático, pluralista, de organização da sociedade. A constatação clara disso vem do fato de que ele não comenta, em nenhum momento, as desigualdades sociais que, nesse período histórico (1992), afligiam os países da América Latina. Nesse texto (O’Donnell 1992), o objetivo do autor é delinear um novo subtipo de democracia que ele chama de “democracia delegativa”. Este novo tipo criado por O’Donnell não é resultado direto dos processos de transição de regimes fechados para regimes politicamente democráticos (grifo nosso): o autor justifica que “(...) fatores históricos de longo prazo e (...) o grau de severidade da nova crise socioeconômica instalada nos governos democráticos (...)” justificam a criação deste novo tipo de democracia (O’Donnell 1992, 4). A argumentação segue o seguinte raciocínio lógico: tem-se como modelo de democracia as democracias representativas existentes nos países ocidentais, baseadas na poliarquia de Dahl. Os novos países democratizados na chamada “terceira onda” de Huntington (1994) são democracias por satisfazerem os requisitos para serem considerados poliarquias, de acordo com Dahl; esses países, no entanto, não correspondem ao modelo de democracia representativa, e daí vem a necessidade de se falar em democracia delegativa: “as democracias delegativas não são nem democracias consolidadas, nem institucionalizadas, mas podem ser duradouras; em muitos casos, nenhuma ameaça iminente de uma regressão autoritária aberta nem avanços em direção à representatividade institucionalizada estão em vista” (O’Donnell 1992, 4-5, grifo nosso). Como conseqüência, as profundas crises social e econômica que a maioria desses países herdou de seu passado autoritário leva ao surgimento da democracia delegativa, e não representativa. Aqui podemos ver claramente que a análise se focaliza sobre a mudança de regime, e não sobre alterações estruturais que poderiam caracterizar uma verdadeira reforma do estado. Um dos principais pré-requisitos básicos para a instauração e consolidação de uma democracia representativa são as instituições. “Instituições são modelos regulados de interação que são conhecidos, praticados e regularmente aceitos (...) por determinados agentes sociais que, por virtude daquelas características, são esperados a continuar interagindo sob regras e normas formal ou informalmente presentes nestes modelos” (O’Donnell 1992, 6, grifos no original). Às vezes as instituições se materializam na forma de edifícios ou de pessoas que “falam” por tais instituições. O que interessa ao autor são as instituições democráticas: elas são políticas por natureza, por se relacionarem com os temas principais da política. Algumas são instituições oficiais,

por serem definidas constitucionalmente (tais como o Congresso, o Judiciário e os partidos políticos). “Outras, como eleições justas e regulares, têm um caráter organizacional intermitente, mas são tão necessárias quanto as instituições permanentes” (O’Donnell 1992, 6). As instituições políticas “(...) são um nível crucial de mediação e agregação entre, por um lado, fatores estruturais e, por outro, não apenas indivíduos mas também os diversos grupamentos sob os quais a sociedade tende a organizar seus múltiplos interesses e identidades”. Ao executar tal função de mediação, as instituições criam automaticamente representantes nos vários grupos que formam a sociedade, já que serão estes que irão tratar diretamente com aquelas; além da exclusão, as instituições levam também à criação e aumento da burocracia. Apesar desses pontos negativos, as instituições são fundamentais para o bom andamento da democracia representativa, visto que esta se baseia em instituições políticas citadas anteriormente, tais como o parlamento e as eleições periódicas (O’Donnell 1992, 8-9). As democracias delegativas, por outro lado, são aquelas nas quais o governante eleito governa de acordo com sua própria visão de mundo, sem levar em consideração as mediações realizadas pelas instituições. “O presidente é a corporificação da nação e o principal guardião do interesse nacional, o qual é definido pelo próprio presidente. O que ele faz no governo não precisa estar associado ao que ele disse ou prometeu durante a campanha eleitoral – ele foi autorizado a governar da maneira que achar melhor” (O’Donnell 1992, 9). Seu apoio não vem de um partido, mas sim dos movimentos sociais que o consideram como um “pai”: o presidente eleito está acima de todos os partidos. Prestar contas a outras instituições é algo que apenas atrapalha o presidente no exercício do cargo que foi delegado a ele. Segundo O’Donnell, as democracias delegativas são democráticas por satisfazerem os pré- requisitos da poliarquia de Dahl, mas menos liberais que as democracias representativas já de longa data estabelecidas. Espera-se que haja uma intensa atividade política no período das eleições, quando todos os candidatos trabalham com o objetivo de ganhar as eleições e, consequentemente, o cargo que será delegado a ele. Os eleitores, por sua vez, são encorajados a participar, porém apenas durante o período eleitoral, após o qual devem “(...) retornar à condição de espectadores passivos, mas cordiais, daquilo que o presidente faz” (O’Donnell 1992, 10). A nação será salva pela atuação do presidente e de seus auxiliares, sem interferência direta dos poderes Legislativo ou Judiciário – e, mesmo quando tais poderes tentam interferir, suas demandas devem ser ignoradas, pois apenas o presidente sabe o que fazer para tirar o país da situação caótica em que se encontra. O presidente deve se isolar de tudo e de todos, e será o responsável único pelos sucessos ou fracassos de seu plano de ação.

Apesar de tais características também estarem presentes em sistemas burocráticoautoritários, a diferença destes para a democracia delegativa é o fato de que, nos primeiros, a oposição não podia se manifestar contra os erros ou abusos daqueles que detinham o poder, enquanto que nas segundas a oposição tem voz e faz uso da mesma. O presidente, no entanto, continua a se considerar como aquele que trará ordem e estabilidade ao país, e aprofunda ainda mais seu isolamento em relação aos demais atores do processo político. Uma diferença marcante entre democracias representativas e democracias delegativas é que, nas primeiras, o elemento de accountability existe fortemente e é respeitado pelos atores políticos. Esta prestação de contas se dá não apenas em sentido vertical, ou seja, não apenas entre o governo e seu eleitorado, mas também em sentido horizontal, quando o governo se responsabiliza pelos seus atos frente às outras instituições políticas de importância no cenário nacional, tais como o parlamento, o poder judiciário, os partidos políticos e outros. Ao mesmo tempo, nas democracias representativas as demais instituições têm o poder legal e prático de punir o presidente caso este não aja de acordo com as regras pré-estabelecidas, enquanto que no caso das democracias delegativas, apesar das demais instituições também deterem legalmente o poder, elas se sentem constrangidas por motivos diversos e não conseguem, na prática, remover o presidente a quem foi delegado a função de “salvar o país”. Da mesma forma, o processo relativamente lento de tomada de decisão nas democracias representativas garante que tais decisões serão postas em prática e, mais que isto, há uma garantia razoável de que serão bem-sucedidas; por outro lado, na democracia delegativa o presidente arroga- se poderes quase ilimitados, fazendo com que suas decisões sejam postas em prática com mais rapidez, mas também com mais probabilidade de falhas e erros, que se transformam em problemas para este próprio presidente no futuro próximo (O’Donnell 1992, 11-12). O que levou ao surgimento de democracias delegativas na maioria dos países que se democratizaram na “terceira onda” das décadas de 1980 e 1990? Segundo O’Donnell (1992, 13), a maioria desses governos eleitos após um primeiro governo de transição entre o regime autoritário precedente e o novo regime democrático herdou um país com grandes dificuldades financeiras, onde o desempenho econômico não era suficiente para satisfazer as novas demandas sociais e econômicas advindas com o processo de democratização. Neste contexto, a idéia de que apenas um líder forte e determinado poderia resolver tal situação de caos econômico e social surgiu com extrema facilidade. A exceção a esse modelo de O’Donnell é o Uruguai. O autor afirma que a exceção ocorreu por um motivo simples: o ressurgimento efetivo do Congresso como um ator de peso e, portanto, fundamental, na nova configuração política após o fim do regime

militar. Para O’Donnell, com o Congresso do Uruguai forte, o presidente daquele país não pôde aplicar “medidas resolutas” para resolver os problemas econômicos e sociais daquele país, como foi o caso da Argentina, do Brasil e do Peru. Por ter de negociar com o Congresso – não apenas com o Congresso, mas com todos os demais movimentos que se faziam ouvir no Uruguai naquele período –, as mudanças aconteceram de maneira muito mais lenta e sem estardalhaço do que nos países vizinhos; no entanto, a eficiência e os resultados positivos, ainda que lentos, foram muito maiores e mais duradouros do que nos demais países da América do Sul, onde o presidente delegativo teve a chance de agir de maneira muito mais livre do que o presidente representativo do Uruguai (O’Donnell 1992, 14). Os países nos quais o modelo “puro” de democracia delegativa surgiu foram a Argentina, o Brasil e o Peru. Nesses três países, os governos pós-regime autoritário encontraram uma situação quase catastrófica na economia, o que fez com que surgisse nos mesmos o modelo de democracia delegativa. Tal crise gera um forte sentimento de urgência. Problemas e demandas acumulam-se para os novos governos democráticos, que não têm experiência e devem trabalhar com uma fraca e desarticulada (talvez até não leal) burocracia. Os presidentes são eleitos prometendo que eles – fortes, corajosos, acima dos partidos e dos interesses, machos – salvarão o país. Seus governos são os “salvadores da pátria” (O’Donnell 1992, 14, grifos no original). Quanto mais os presidentes se colocam na posição de “salvadores”, de “única opção disponível”, mais suscetíveis a erros eles se tornam. A solução disponível é o lançamento de “pacotes de estabilização”, um atrás do outro, para não apenas solucionar os problemas mas, principalmente, para relançar o caráter de “salvador” do presidente, após algum erro ou decepção com a administração anterior. Com o passar do tempo, dos erros e dos planos econômicos falhos, a base de apoio popular ao presidente despenca; para se manter no poder, ele deve ao menos controlar a inflação e implementar algumas políticas sociais que mostrem que, ainda que ele não possa resolver os graves problemas sociais e econômicos em curto prazo, se preocupa com os “fracos e oprimidos”, assim como se preocupa com a classe média – politicamente importante – que começa a se empobrecer com os consecutivos planos econômicos (O’Donnell 1992, 15). A marginalização do papel do Congresso e dos partidos políticos no cenário político do país recém- saído de um regime fechado tem conseqüências profundas no próprio processo de democratização, segundo O’Donnell (1992, 16): o Congresso e os partidos políticos não irão aperfeiçoar sua maneira de agir, já que não são

“utilizados”; quando, finalmente, o Executivo precisar do apoio do Congresso para implantar suas medidas, este não se sentirá responsável pelo estado em que o país se encontrará; o Congresso, os partidos e os próprios políticos, ainda que não tenham relação direta com o presidente, irão ser associados a este e terão seu prestígio diminuído, pois serão vistos como co-responsáveis pela situação do país estar crítica. A governabilidade do país tende a decair, da mesma forma que o nível de vida caiu devido à implementação dos diversos pacotes econômicos: como as decisões são tomadas por meio de decretos, de maneira rápida e não negociada, as mesmas têm a tendência de não serem cumpridas. Novos decretos são lançados para obrigar o cumprimento dos anteriores, mas os novos também não são cumpridos. Além disso, (...) devido à maneira que tais decisões são tomadas, quase todos os agentes políticos, sociais e econômicos podem razoavelmente negar sua responsabilidade por tais políticas. Quando as falhas se acumulam de maneira visível e repetida, o país se vê com um presidente amplamente criticado que, abandonando o dinamismo inicial, meramente tenta sobreviver no cargo até o fim do seu mandato (O’Donnell 1992, 17). Como conseqüência dessa situação, aqueles países nos quais a democracia delegativa mais se aprofundou são os mesmos que terão mais dificuldades de sair do círculo vicioso de crises e governos que prometem acabar com as crises mas que se transformam em criadores de novas crises. O surgimento de novas instituições democráticas, e o fortalecimento das já existentes, é praticamente impossível na democracia delegativa, já que as ações são postas em prática independentemente da existência dessas instituições. A única saída vista por O’Donnell (1992, 18) para se sair deste círculo vicioso é o aprendizado, por parte de um segmento predominante da liderança política, de que não há possibilidade de se sair da crise se não for pelo fortalecimento das instituições democráticas e por uma nova maneira de competir eleitoralmente e de governar o país, levando o mesmo em direção a uma efetiva democracia representativa. Como é sabido, O’Donnell foi um dos primeiros teóricos da redemocratização – da chamada “transitologia” e também de sua descendente, a “consolidologia” –, que se valeram da noção de “transição pactuada” para analisar esses processos, ou seja, autores que defenderam a idéia de que as transições foram a conseqüência de negociações que resultaram em um pacto entre as principais lideranças envolvidas no processo, entre oposição e governo, para o desenho de novos sistemas políticos democráticos. Com o fim do comunismo no Leste Europeu e na União Soviética, alguns autores

decidiram aplicar o modelo de transição proposto por O’Donnell na análise das transições ocorridas no Leste Europeu, e Zielinski é um deles. O objetivo do autor é saber por que alguns processos de transição terminam de maneira pacífica enquanto outros descambam para a violência. Sua justificativa é a má comunicação interna do próprio governo, ao invés de se considerar a origem da violência na intransigência da oposição. Seu modelo trabalha com três categorias: reformadores, oposicionistas e os militares no poder, e sua hipótese é a de que os reformadores estão mais bem informados sobre as ações dos militares do que a oposição. O autor toma como exemplos a Hungria e a Polônia durante a década de 1950: ambos os países tentaram liberalizar suas ditaduras, e apenas na Hungria houve intervenção militar soviética contra tal ação. Zielinski inicia o texto afirmando que “um problema crítico da transição é chegar à democracia sem ser morto” (1999, 213). Citando exemplos da Europa Oriental, Zielinski mostra que, em alguns momentos, tentativas de liberalização foram seguidas pelo uso indiscriminado da força, enquanto em outros momentos os países chegaram à democracia por vias pacíficas. O que diferencia uma situação da outra? Para o autor, o problema fundamenta-se na má comunicação interna daqueles que detêm o poder e não em demandas inatingíveis que poderiam ser feitas pela oposição. Para Zielinski, o comportamento dos reformadores – sendo estes os que fazem parte do governo, mas aceitam mudanças no sistema – é responsável por mostrar à oposição as reais intenções dos militares, o que permite a esta oposição adequar suas demandas a tais intenções. Assim, a violência ocorreria apenas quando os reformadores estivessem errados em suas opiniões sobre os militares, o que levaria a uma má avaliação por parte da oposição sobre a relação custo- benefício de levar adiante o processo de democratização. Quando os reformadores de dentro do governo superestimam a tolerância dos militares em relação à mudança política, eles respondem à pressão pública com a liberalização do sistema político. Vendo a liberalização, a oposição conclui que provavelmente os militares não irão intervir e, por isso, demandam reformas mais profundas. A conclusão da oposição, entretanto, é falsa. Os militares, de fato, não desejam tolerar as reformas e tentam reverte-las com o uso da força. Em contraste, quando os reformadores percebem que os militares são contra mudanças, eles respondem à pressão pública com poucas reformas, o que sinaliza à oposição que os militares estão prontos para intervir. Conseqüentemente, a oposição aceita limites na democratização para prevenir a violência (Zielinski 1999, 213-4).

Para chegar a estas conclusões, o autor divide seu texto em três partes. Na primeira, ele faz um breve resumo sobre as teorias mais comumente usadas para se estudar os processos de transição democrática. Na segunda, Zielinski define “(...) um modelo formal de democratização no qual a intervenção militar ocorre porque os reformadores subestimam a tolerância dos militares às reformas” (1999, 214). Por fim, o autor compara as tentativas de abertura ocorridas em 1956 na Hungria e na Polônia, e aplica seu modelo para explicar porque na Hungria o término do processo foi violento e porque o mesmo na Polônia foi pacífico. No que diz respeito aos modelos sobre transição para a democracia, Zielinski baseiase nos trabalhos de O’Donnell & Schmitter (1986b) e de Przeworski (1994). Segundo o autor, estes três acadêmicos tratam do processo de redemocratização como uma barganha entre os reformadores que estão no poder e os moderados que estão na oposição: os primeiros tentam reter o máximo de poder político possível em suas mãos, enquanto os segundos tentam se aproximar o máximo possível da democracia. O resultado final dessa barganha é influenciado pela atuação de dois outros atores políticos importantes – os “linha-dura” do governo e os radicais da oposição. Para que o processo termine de maneira pacífica, é necessário que o acordo firmado entre os reformadores e os moderados seja aceito pelos “linha-dura” e pelos radicais; caso contrário, o processo terminará com violência. Para facilitar o entendimento desse modelo, Zielinski propõe a omissão dos radicais da oposição, considerando que ou eles são controlados pelos moderados ou são fracos e não conseguem impor seus objetivos. Conseqüentemente, o acordo pró-democracia é feito entre os reformadores (dentro do governo) e os moderados (da oposição), o que leva à adição, neste acordo, de um certo grau de incerteza, já que nem um nem outro sabem até que ponto os militares – entendidos aqui como os “linha-dura” – irão aceitar este acordo. Supõe-se que os reformadores saibam mais do comportamento dos militares do que os moderados da oposição, já que os primeiros formam, juntamente com os segundos, o próprio governo. Já os moderados não têm tal informação, o que prejudica a sua maneira de atuar durante o processo de democratização por não saberem o quão forte podem pressionar o governo para obter concessões sem correr o risco de ver o processo desvirtuando-se em violência por parte dos militares para manter seu poder. Zielinski apresenta as seguintes questões, que estão relacionadas a esta problemática: 1) Os reformadores atuarão de maneira honesta no processo ou irão exagerar as demandas dos militares, objetivando maior poder para si mesmos? 2) Se os reformadores exagerarem, a oposição irá acreditar neles e irá aquiescer, ou irá se manter cética e arriscar um movimento contrário por parte dos militares ao exigir uma reforma mais ampla e/ou profunda? 3) O que aconteceria se os próprios reformadores

estiverem errados em relação às demandas dos militares? Para solucionar tais questões, o autor define, em suas próprias palavras, um “modelo formal de democratização” que pode ser aplicado a tais situações. Esse modelo segue o raciocínio da teoria dos jogos e tem como base três aspectos principais: 1) O processo de transição em si; 2) As informações disponíveis aos três atores envolvidos (reformadores, oposição e militares); 3) A violência nas mãos dos militares. Basicamente, a negociação começa com um ator A (seja reformador ou opositor) fazendo uma oferta (ou expondo uma demanda) ao outro ator B, com o ator B aceitando ou rejeitando tal pedido. Caso o ator B rejeite, é provável que ele faça uma contra- oferta ao ator A, com este agora tendo o poder de decidir se aceita ou não a contra-oferta. “Em outras palavras, com o progresso do jogo, os atores se alternam na apresentação de propostas (...)”. No entanto, a partir do momento em que reformadores e oposição chegam a um acordo sobre determinado assunto, os militares entram no jogo, dizendo se aprovam ou não tal proposta. Se aceitarem, o jogo termina; se não aceitarem, por um lado os militares ganham o jogo, ao impor sua própria distribuição dos recursos políticos – descontados os custos de tal intervenção –, e por outro reformadores e oposição perdem (Zielinski 1999, 215). Vale destacar dois fatos: 1) Apenas os militares têm conhecimento do custo real da aceitação ou refutação das propostas feitas pelos reformadores e pelos oposicionistas; 2) Tanto os militares quanto os reformadores, ambos formando o governo, têm interesse em manter o poder político em suas mãos. O modelo é feito para explicar uma situação na qual a oposição e os reformadores negociam sobre a extensão das reformas políticas. Não há um limite a priori ao escopo das reformas possíveis. A liberalização pode ser extensiva e levar a uma transição democrática, ou pode ser limitada e levar apenas a uma ditadura menos repressiva. (...) Um aspecto importante desta situação é que qualquer acordo feito entre reformadores e oposição está sujeito à ratificação dos militares (Zielinski 1999, 216). Assim, se os militares acharem a reforma muito extensiva, eles podem redistribuir o poder para si mesmos, ignorando o acordo feito pelas outras duas partes. Isso significa dizer que obter informação sobre a vontade dos militares é de fundamental importância para o processo, já que estes podem alterar o processo de redemocratização a qualquer momento. Tendo explicado sumariamente seu modelo, o autor explicita como o mesmo pode ser utilizado para se fazer previsões sobre o uso (ou não uso) da violência por parte dos militares. Para ele, a oposição irá fazer demandas menores ou mais restritas quando se supõe que os militares têm tendência a intervir com o uso da força, e tal tendência é

repassada à oposição por meio dos reformadores. A oposição faz a proposta A, e se a mesma é recusada pelos reformadores, a oposição acreditará que os militares interviriam caso tal proposta fosse aprovada; aceitam, portanto, a contraproposta B, feita pelos reformadores, onde é dado menos do que foi pedido inicialmente na proposta A. Para Zielinski, a oposição irá reduzir suas demandas voluntariamente assim que a proposta A for recusada, receando intervenção por parte dos militares. Conseqüentemente, de acordo com este modelo, a intransigência por parte da oposição não pode ser a causa da intervenção militar, já que a oposição observa o comportamento dos reformadores e ajusta suas demandas de acordo com tal comportamento. Segue-se que a violência ocorre apenas quando os reformadores comprometem muito porque eles estão errados sobre as atitudes dos militares em relação à reforma (Zielinski 1999, 217). Se a visão que os reformadores têm dos militares estiver correta, uma proposta aceita pelos primeiros será também aceita pelos segundos, pois os custos contra a proposta são altos para estes, e o processo termina de forma pacífica. Mas se os reformadores estiverem errados, com os custos de intervenção por parte dos militares sendo baixos, estes rejeitam o acordo e intervém, com uma violenta restauração da ditadura ao invés da implantação da democracia ou até mesmo de uma liberalização parcial do regime. “(...) O modelo prevê que as reformas políticas disparam intervenções militares porque os reformadores recebem um sinal errado [vindo dos militares], o que os leva [os reformadores] a subestimar a vontade dos militares de usar a força, comprometendo assim mais do que é possível” (Zielinski 1999, 218). Para mostrar a efetividade de seu modelo, Zielinski aplica o mesmo a duas tentativas de abertura ocorridas na Hungria e na Polônia, em 1956. Ele diz que os dois países eram similares em diversos aspectos: 1) Ambos consideravam suas ditaduras como uma imposição soviética que os afastou do Ocidente; 2) Ambos implementaram políticas econômicas semelhantes, com nacionalização da indústria, coletivização da agricultura e o investimento planificado em bens de capital ao invés de bens de consumo; 3) Ambos tinha passado por problemas relacionados à falta de bens e à fome; 4) A similaridade de ambos os países era aceita pelas suas próprias elites políticas, bem como pela elite política da União Soviética à época. Tais semelhanças, segundo o autor, mostram que seu modelo é válido para saber por que na Polônia a tentativa terminou pacificamente e na Hungria não, já que todas as demais variáveis seriam muito semelhantes e não influenciariam no resultado do processo. Devido ao seu poderio militar, a União Soviética é vista como os “militares” de seu modelo, enquanto os reformistas seriam a facção chamada de “nacionalista” dentro dos dois partidos comunistas, com a oposição sendo composta de líderes religiosos, trabalhistas e estudantis, além de intelectuais.

Segundo Zielinski, o início do processo foi causado pela própria União Soviética quando, em fevereiro de 1956, Khrushchev fez seu famoso discurso no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, o que sinalizou, para as elites comunistas do Leste Europeu, que alguma mudança seria aceita nos países satélites pela liderança soviética. Assim, em ambos os casos (Hungria e Polônia) houve uma luta interna em seus respectivos Partidos Comunistas pela manutenção do poder, sendo que nos dois casos a facção “stalinista” foi removida e, em seu lugar, assumiu o poder a facção nacionalista. No caso da Polônia, a nova elite política negociou com a União Soviética a cooptação dos opositores. Tendo relativo sucesso, tal cooptação acalmou os ânimos da oposição e garantiu uma solução pacífica à tentativa de abertura, tanto com concessões quanto com negativas, por parte dos reformadores (os nacionalistas), à oposição. Da mesma forma, tais concessões feitas pelos reformadores chegaram ao limite suportável pela União Soviética, que ameaçou intervir militarmente caso o processo não fosse contido adequadamente (Zielinski 1999, 219-21). “Ao fim de novembro [de 1956], a situação começou a se estabilizar. No final, os nacionalistas tiveram sucesso em limitar o escopo da liberalização ao convencer a oposição de que reformas mais profundas não eram possíveis. Ao fazer isso, eles evitaram uma intervenção militar soviética” (Zielinski 1999, 221). Já na Hungria, os reformadores – agora no poder, com a substituição dos stalinistas pelos nacionalistas – tentaram fazer a mesma coisa que na Polônia: promover as reformas que eram demandadas pela oposição. O processo de tomada do poder por parte dos nacionalistas, no entanto, foi mais tumultuado do que na Polônia, com a entrada de tropas soviéticas em Budapeste que garantiram a posse do novo governo. Espelhando-se ainda na Polônia, os reformadores húngaros não fizeram muitas concessões à oposição. A União Soviética, ao ver a situação se acalmar, propôs – por meio de seus embaixadores em Budapeste – a retirada de suas tropas do país e deu aprovação à criação de um sistema multipartidário, o que foi interpretado pela nova liderança política como a aprovação de reformas mais profundas no sistema político húngaro que levariam à democratização. No entanto, a liderança soviética em Moscou voltou atrás e concluiu que tal abertura seria inaceitável, e ao ver o processo sair de controle das mãos dos reformadores interveio militarmente na Hungria (Zielinski 1999, 221-2). Zielinski (1999, 222-3) afirma que o seu modelo serve para se chegar a três conclusões: 1) O processo de abertura na Hungria, o país que sofreu a intervenção militar soviética, estava mais avançado do que o processo na Polônia; 2) Os reformadores húngaros receberam informações da liderança soviética de que reformas mais profundas não levariam a uma intervenção militar, e por isso aceitaram as

demandas da oposição; 3) A oposição em ambos os países deveria ter revisto suas idéias sobre os limites que a liberalização poderia atingir com a observação das concessões feitas pelos reformadores: na Polônia, com pouco sendo oferecido pelos reformadores, a oposição concluiu até onde era possível chegar e moderou suas demandas, enquanto na Hungria as grandes concessões feitas pelos reformadores fizeram com que a oposição pedisse mais do que fosse possível alcançar e se surpreenderam, posteriormente, com a reação da União Soviética. Vale lembrar que, na Hungria, a oposição pediu mais do que era possível conseguir devido a erros na avaliação dos reformadores sobre a possível reação da União Soviética em todo o processo.

Críticas de dentro do paradigma dominante ao pluralismo e à escolha racional Porém, nem todos os autores que escrevem sobre o período de redemocratização concordam com O’Donnell, e Monclaire (2001) é um deles. O autor pretende fazer uma crítica à forma como surgiram os estudos de transitologia e de consolidologia na ciência política contemporânea. Segundo ele, essas disciplinas foram criadas para estudar a democracia na América Latina tendo como base os modelos democráticos já existentes, notadamente EUA e Europa, e como conseqüência tais disciplinas não são capazes de prever e de explicar coerentemente os acontecimentos em nossa região. Além disso, para ele esses modelos são extremamente abstratos e formais, “(...) que desconsideram os fatores sócio-econômico-culturais em favor de esquemas juridicistas e estritamente politicistas” (Monclaire 2001, 61). Para Monclaire, a transitologia tem como característica básica a crença de que os resultados possíveis de um processo de transição rumo à democracia dependem das ações das elites políticas que organizam esse mesmo processo. Para os autores da transitologia, não há característica econômica, política ou social própria (nacional) relevante nesse processo; não há pré-requisitos para a democracia, e esta é vista como o resultado do bom acordo feito entre os moderados que fazem parte do governo e os moderados que fazem parte da oposição, sendo que esse acordo é o mais cauteloso possível para não colocar em risco todo o processo de transição. No entanto, esse processo feito “a portas fechadas” resultou em “erros de apreciação”, que levaram esses autores a se surpreenderem quando os processos de redemocratização saíram dos trilhos no início dos anos 1990 em alguns países da América do Sul, da Ásia e do Leste Europeu. Muitos autores edificaram uma teoria que cobre somente o “curto prazo” e, assim, não se preocuparam suficientemente com a legitimação das situações

políticas derivadas dos pactos. Por certo, outros autores, mais lúcidos quanto aos perigos daquele presbitismo científico, introduziram uma dose de temporalidade e analisaram as transições como mudanças compostas de seqüências caracterizadas pelo tipo de problemas que as elites tinham de resolver; mas eles caíram no teleologismo, ao considerar que uma transição bem concluída (isto é, dando luz à democracia) dependeria da efetividade de uma trajetória (the path dependency) respeitosa da ordem (supostamente cheia de virtudes) das escolhas (supostamente obrigatórias) a efetuar (Monclaire 2001, 62-3, grifos no original). O resultado dessas falhas nos estudos de transitologia mostrou “(...) que ela era somente um dos momentos da construção democrática” (Monclaire 2001, 63, grifos no original) e levou à criação da consolidologia, sendo essa segunda disciplina a responsável por analisar o que viria após a fase de transição e cuja característica principal seria estudar a “(...) passagem do regime pluralista formal, geralmente instaurado no período final da transição, para práticas democráticas mais efetivas” e cujo objetivo seria saber “(...) porque aqui a consolidação ocorreu e porque lá não” (Monclaire 2001, 63). A grande maioria dos consolidólogos considera que o objeto da sua disciplina não é mais, contrariamente à transitologia, os modos de surgimento (e a sua tipificação) das novas regras de conquista do poder, atestando uma mudança do regime, mas o grau de institucionalização das regras que caracterizam os novos regimes. Quanto menos essas regras são contestadas, mais o regime torna-se apto a superar crises graves. (...) Assim, o objeto da consolidologia é a passagem das novas configurações políticas em rotinas (Monclaire 2001, 64). Os estudiosos da consolidologia buscam, dessa forma, explicar até que ponto as novas regras do jogo democrático estão enraizadas não apenas nos dois atores que participaram do processo de transição para a democracia – os moderados de dentro e de fora do regime anterior –, mas também verificar o quanto a própria população e demais atores políticos relevantes aceitam tais regras. No entanto, para Monclaire, esses estudos são tão vazios quanto os estudos de transitologia por não considerarem questões sociológicas, específicas de cada país ou região, em suas análises, o que tornaria impossível avaliar efetivamente se a democracia realmente é a única opção para os diversos grupos que formam a sociedade. “Assim, os vieses metodológicos de que sofrem as tentativas de verificação empírica efetuadas pelos transitólogos tornam inconfiável a listagem dos fatores indicados como propícios à aceleração ou ao adiamento da consolidação, e

tornam suspeitas as afirmações quanto à responsabilidade efetiva de cada um deles” (Monclaire 2001, 64). Os arranjos institucionais propostos pelos consolidólogos, conseqüentemente, não são aplicáveis a todos os países da mesma maneira: podem ser válidos e úteis em alguns e desnecessários em outros. Ao falar desses arranjos, Monclaire critica principalmente a idéia lançada por Linz (1990) de que o regime presidencialista seria o menos recomendado para as novas democracias, já que para esse autor tal regime levaria a um acúmulo de poder político nas mãos do poder Executivo, especialmente nas mãos do presidente, ao mesmo tempo em que enfraqueceria o poder Legislativo por este não ser capaz de influenciar o poder Executivo em sua tomada de decisões; conseqüentemente, o regime recomendado para as novas democracias seria o regime parlamentar. A crítica de Monclaire (2001, 66-7) a esse posicionamento segue três direções principais. Em primeiro lugar, ele afirma que essa idéia de Linz é inválida porque a dominação dos vencedores não é tão ampla quanto parece: a oposição pode ganhar em níveis locais ou estaduais, contrabalançando o poder federal nas mãos da situação. Em segundo lugar, segundo Monclaire, Linz erra ao “uniformizar as categorias regime parlamentar e regime presidencial que, na realidade (...), cobrem uma grande variedade de configurações de separação dos poderes entre Executivo e Legislativo” (Monclaire 2001, 66-7). O terceiro erro de Linz, segundo Monclaire, e também dos próprios críticos de Linz, é o que ele chama de juridicismo, ou seja, a qualificação jurídica dos regimes com o objetivo de criar o desejado estado de direito da maneira mais rápida e estável possível. O valor que esses autores atribuem, quase espontaneamente, aos regimes qualificados de maneira muito rápida de parlamentar ou presidencial, vem do fato de eles tenderem a fazer das regras constitucionais o princípio explicativo pertinente das condutas dos atores. Eles emprestam ao Direito uma força inerente que ele não tem, pelo menos uma força que o Direito não tem adquirido pelos meios que os juristas pensam (Monclaire 2001, 67). O autor passa, então, a falar dos recursos que estão disponíveis aos atores políticos durante os processos de transição e de consolidação. Segundo Monclaire, a transição se dá de acordo com os recursos disponíveis, bem como suas quantidades disponíveis, enquanto a consolidação acontece com a estabilização dos recursos utilizados no processo. Ele deixa claro que considera todos os recursos – jurídicos, políticos, econômicos, sociais e comunicacionais – tão importantes quanto os outros, já que todos podem influenciar esses processos. No entanto, dá certa superioridade aos recursos jurídicos, porque são eles que (...) terão demonstrado às elites políticas (mas também econômicas,

militares, culturais (...)) sua capacidade de assegurar uma ordem política socialmente aceitável. Em outras palavras, a consolidação é esse momento (de duração variável) no qual o pessoal político e o essencial da população são levados a depositar sua confiança nas instituições, nas relações inter e intrainstitucionais (principalmente naquelas que organizam as modalidades da redistribuição periódica dos postos de poder no seio do Executivo e do Legislativo, nos níveis local e nacional, e naquelas encarregadas de fazer respeitar essas modalidades), com base no “valor de ordem” que nelas reconhecem (Monclaire 2001, 69). Ou seja, a consolidação é considerada por Monclaire como o momento em que as novas relações jurídicas, políticas, econômicas, sociais e comunicacionais – usando suas próprias palavras – se tornam capazes de garantir uma nova ordem política, aceita amplamente pela sociedade e não apenas pela elite governante. A aceitação dessas novas relações, dessas novas instituições, faz com que o regime seja aceito e seja considerado naturalmente aceitável por aqueles que compõem determinada sociedade, o que garante a estabilidade das mesmas e sua perpetuação no decorrer do tempo. Outra idéia proposta por Monclaire é a de que o maciço apoio popular ao novo regime não é necessário para a consolidação do mesmo. Segundo ele, “considerar que a democracia exige um apoio explícito e amplo da população às instituições do novo regime e necessita [de parte da população] comportamentos participativos (taxa alta de comparecimento às urnas, associativismo e outras práticas participativas)” é uma ilusão. Para ele, “um apoio difuso é suficiente”, já que o que importa para a consolidação do novo regime é fazer com que a maioria das pessoas tenha consciência de que “as urnas decidem” o futuro do país e seja “(...) apegada ao princípio do voto”, não sendo necessário que todos aqueles que detêm o poder de votar efetivamente votem (Monclaire 2001, 69). A última crítica que Monclaire faz às “disciplinas” transitologia e consolidologia, principalmente a esta última, é o que ele chama de “economia do voto”. Para o autor, os consolidólogos devem parar de acreditar que os eleitores são racionais e estrategistas e que votarão de acordo com a melhor opção dentre as várias disponíveis, bem como não devem acreditar que a situação da economia influenciará diretamente o resultado das eleições. “Para eles, quanto mais a situação é ruim, mais ela ameaça os dirigentes do novo regime e, através deles, a democracia (re)nascente” (Monclaire 2001, 70). Não somente não há relação direta e sistemática entre comportamento eleitoral e a conjuntura, como as análises de muitos consolidólogos tendem

a fazer da economia um requisito. De fato, eles estimam que a consolidação torna-se mais fácil e rápida quando o sistema econômico é compatível com o jogo e a satisfação tendencial dos interesses diversificados, contraditórios e doravante livremente exprimíveis no espaço público. Mas é esquecer que uma conjuntura não existe em si, que é sempre o resultado de uma construção social da realidade, de processos de objetivação e de imputação: ora, isso não tem unicamente a ver com o nível dos índices econômicos – e quais índices privilegiar? Vários autores confundem democracia e economia de mercado (Monclaire 2001, 71). A conclusão de Monclaire é, portanto, a de que as “ciências” da transitologia e da consolidologia trabalham com ferramental insuficiente para serem consideradas verdadeiras ciências. Seus pressupostos básicos são falhos ou muito simples, o que inviabiliza a possibilidade de previsão e de acerto. Além disso, trabalha de maneira estritamente formal, o que, conseqüentemente, não mostra a realidade econômica, política e social em todas as suas facetas, prejudicando os trabalhos e, fechando o círculo, impossibilitando que boas previsões e análises sejam feitas. As teses da consolidologia, assim como as da transitologia, através de seu objeto, de suas questões e das respostas cogitadas, são mais próximas do ilusionismo – ora parcialmente, ora muito preclusas de pressupostos, julgamentos de valor, aproximações epistemológicas, vieses metodológicos e produtoras de ilusões – que de uma ciência confirmada (Monclaire 2001, 72). Outros autores que pretendem mudar o foco da “transitologia” são Inoguchi & Bacon (2003). Os autores pretendem fazer um estudo relacionando os conceitos de governança, de democracia e de consolidação democrática com o fim dos processos de transição pelos quais passaram os países do Leste Europeu, da América Latina e da Ásia durante as décadas de 1980 e 1990. Eles pretendem analisar não o processo de transição em si, mas o quanto este processo levou ou não a uma melhor governança dos países que agora são considerados democráticos. As conclusões desses dois autores são baseadas em análises que eles fazem sobre outros textos de outros autores citados no decorrer do texto. Antes de tais termos serem utilizados, os mesmos precisam ser conceituados. Inoguchi & Bacon (2003, 169-70) definem governança como processos pelos quais a democracia é promovida, estabelecida e consolidada, evocando idéias de transparência, de accountability e de estado de direito. Tal definição leva a um outro questionamento: a existência de múltiplos níveis de governança. O estado continua sendo um dos principais (se não o principal) ator político relacionado à questão de

governança, mas não é o único: a governança divide-se em sub-nacional, nacional e supranacional, por um lado, e em privada, governamental e em terceiro setor, por outro. Citando Yu (2002), Inoguchi & Bacon chegam à conclusão de que os termos governança e democracia se associam, significando a mesma coisa: É crítico para a boa governança que as pessoas tenham poderes e direitos suficientes para participar em eleições, na tomada de decisões e na supervisão do governo. Obviamente, apenas sob condições democráticas as pessoas podem usufruir de tais poderes e direitos. Assim, uma boa governança e a democracia coincidem (...). É possível haver um bom governo sob um regime autoritário, mas nunca uma boa governança sem um mecanismo democrático em funcionamento. No que diz respeito à noção de transição democrática, Inoguchi & Bacon compartilham da idéia de Carothers (2002). Este autor afirma que a idéia de transição democrática serve apenas para os primeiros dias de tais processos, ainda na década de 1970, e que tal paradigma já não é mais útil para se analisar as transições democráticas que aconteceram no final das décadas de 1980 e 1990. Para Carothers, ainda citado por Inoguchi & Bacon, a transição democrática, nesse paradigma, parte de dois princípios básicos: 1) Que todo estado autoritário, ao se transformar, segue necessariamente para um regime democrático; 2) Que o processo de transição se dá por meio da abertura, da transformação de um regime autoritário em um regime democrático, e da consolidação da democracia. No entanto, nem todos os países seguiram completamente por esse rumo: alguns ficaram no meio do caminho, não sendo nem totalmente autoritários, nem totalmente democráticos. Para Carothers, os países que se encontram nesse terreno intermediário entre o autoritarismo e a democracia estão em uma “zona cinza”, e têm como características um pluralismo ineficaz3 e uma política de poder dominante4. Os países dessa zona movem-se entre uma e outra destas duas características, e podem se mover também em direção a um sistema autoritário ou a um sistema democrático liberal. Como conseqüência, o paradigma de transição democrática não fornece um plano de fundo realista que explique o que está acontecendo com a maioria dos países em transição. Inoguchi & Bacon (2003 173-4) chegam, então, a três conclusões: 1. O termo governança deve ser associado ao termo democracia; 2. A governança é aplicada em vários níveis; 3. O paradigma de transição democrática, que tem por objetivo garantir a governança, não necessariamente atinge este objetivo.

Os dois autores passam, então, a fazer uma revisão bibliográfica de diversos outros autores, os quais estudaram áreas específicas do globo (países da Europa Central e do Leste, Coréia do Sul, Indonésia, Rússia e China), com o objetivo de analisar o relacionamento entre os conceitos de governança e democracia, de um lado e de transição e consolidação democrática, por outro, nos níveis nacional e sub-nacional. Os países da Europa Central e do Leste não são considerados ainda totalmente democratizados, mas estão seguindo o rumo certo por ser a democracia considerada como a única opção possível de regime político; além disso, as populações de tais países supõem que a solução de problemas deve ser feita por meios democráticos e não autoritários. O bom desempenho econômico está se tornando um fator fundamental para se explicar o desempenho da democracia na região. Na Coréia do Sul, a situação não é tão otimista quanto na Europa Oriental. Apesar do regime ser considerado democrático, inclusive com a eleição de um partido de oposição em 1997, a população ainda não se encontra satisfeita com o novo regime político: quase um terço da população sul- coreana ainda não considera o regime democrático. Além disso, o presidente retém poderes excessivos ao influenciar o funcionamento do parlamento, quebrando assim um dos pilares da democracia – a separação entre os poderes. O principal ponto destacado em relação à Coréia do Sul, no entanto, refere-se ao fato de que ainda não há no país um estado de direito completamente estabelecido. “Mesmo após mais de uma década de política democrática, líderes políticos, bem como cidadãos comuns, precisam internalizar as normas do procedimento democrático de competição, compromisso, cooperação e tolerância como princípios básicos de um governo democrático” (Inoguchi & Bacon 2003, 176-7). Também na Indonésia a situação não é considerada boa: as instituições políticas indonésias não foram reformadas para refletir a nova maneira democrática de agir e trabalhar, o que pode ser justificado pelo fato do país ter iniciado seu processo de transição em 1998. Além disso, problemas étnicos e religiosos dividem a sociedade, fazendo com que uma das características básicas da democracia – a tolerância – não seja encontrada de maneira bem desenvolvida naquele país: os problemas devem ser resolvidos de maneira procedural e constitucional, e não por meio da violência política. Os partidos políticos indonésios também não são bem desenvolvidos, impedindo a competição política necessária em uma democracia já estabelecida. “Em um país tão diverso quanto a Indonésia, a democracia só pode sobreviver se o pluralismo for adotado como a base do estado” (Inoguchi & Bacon 2003, 178). A sociedade civil, ator fundamental em um processo de redemocratização, é débil no país, o que faz com que o mesmo seja considerado um país de democracia procedural, mas cuja consolidação ainda é incerta.

A situação na Rússia também não é satisfatória. O uso do aparelho estatal em benefício dos governantes faz com que os russos vejam a não participação política como uma grande vitória, e a fraqueza do estado se torna a melhor garantia que os russos têm de liberdade. O presidente é benquisto pela população, mas as instituições governamentais não são; esse apoio à pessoa do presidente – e não às instituições –, somado à antipatia dos russos em relação à participação política, não garante o desenvolvimento de uma sociedade civil em médio prazo, elemento fundamental para a consolidação da democracia naquele país. A Rússia, portanto, pode ser caracterizada como uma democracia procedural que não está consolidada, e com tendências fortes de ser um exemplo de política de poder dominante, com poucas possibilidades de surgimento da sociedade civil em curto prazo (Inoguchi & Bacon 2003, 179-81). A China, por sua vez, é vista como um país onde nem mesmo a democracia procedural existe, mas onde já se inicia a formação de entidades de base que podem servir como precursoras da sociedade civil. Além disso, há uma certa descentralização do poder político na tomada de decisões locais por meio de instituições que permitem a participação em níveis locais, com administradores urbanos e rurais tendo poder suficiente até mesmo para impor novas taxações. “Essas eleições diretas para comunidades que se autogovernam estabelecem um mecanismo por meio do qual se espera que organizações não-governamentais tenham um papel significante na governança urbana” (Inoguchi & Bacon 2003, 182). O mesmo acontece no âmbito da governança rural, onde se nota um decréscimo na interferência direta do estado, inclusive com o fornecimento de bens por meio de agências não-estatais e com a atuação do mercado e dos “novos ricos” nas áreas rurais. No entanto, apesar dessas características, e apesar de existirem eleições (em nível local) e uma certa responsabilidade por parte dos eleitos frente à população que os elegeu (inclusive contrabalançando um pouco com o poder do representante do Partido Comunista nestas vilas), a China atual não é uma democracia eleitoral (Inoguchi & Bacon 2003, 181-3, grifos nossos). Em nível supranacional, a governança deve ser avaliada também, já que, por exemplo, as sociedades pós-comunistas receberam um grande apoio e assistência em seus esforços para criar estados democráticos de sucesso: fundos externos para aumentar a transparência, para incentivar a repluralização da vida política e apoio à adoção de valores democráticos foram elementos importantes para o processo de transição desses países. “É indiscutível que atores estrangeiros tiveram um grande impacto [no processo de democratização], apoiando o desenvolvimento da democracia na Europa Central” (Inoguchi & Bacon 2003, 183). Também a possibilidade de se entrar na União Européia5 fez com que estes países criassem novas instituições, reformassem antigas e adequassem o país politicamente para participar do bloco – ainda que essa preparação para a entrada no bloco econômico não remova todos os empecilhos

existentes para a consolidação da democracia nesses países (Inoguchi & Bacon 2003, 183-4). Contrastando com o apoio dado pelos países europeus ocidentais aos europeus orientais, a situação dos Bálcãs é, segundo os autores, útil para mostrar o quanto a atuação supranacional é importante para se definir os rumos democráticos de um país. Com a União Européia considerando o processo de desintegração da Iugoslávia como um assunto interno a ser resolvido pela sociedade deste país, a situação chegou ao extremo da guerra civil na região. Vendo, porém, que o desequilíbrio da região dos Bálcãs estava afetando seus interesses, a União Européia criou, juntamente com outras instituições internacionais, um plano de ação para a região em 1999, que contribuiu para a estabilização e solução dos conflitos na região (Inoguchi & Bacon 2003, 185-7). O mesmo ocorreu no sudeste asiático. Após a crise de 1997, os países da região perceberam que os processos de democratização e de busca da segurança regional estavam mutuamente ligados. Boa governança – no sentido democrático – foi buscado pelos países da região, até mesmo por Cingapura e pela Malásia, ambos regimes autoritários. “Os estados perceberam que sua melhor resposta para essa sensibilidade à globalização é desenvolver uma estratégia explicitamente regionalista, mas para fazer isso eles precisam se adaptar a diferentes normas democráticas, transparentes, de governança política e econômica nos âmbitos individual e coletivo” (Inoguchi & Bacon 2003, 187). Os países da região devem ainda redefinir as relações estadosociedade, com ênfase na pluralidade institucional, já que a crise de 1997 mostrou que os regimes democráticos podem ser mais eficientes do que regimes autoritários para solucionar problemas econômicos. A conclusão a que os autores chegam é a de que a governança, entendida como democracia, é obtida não apenas por mudanças internas de determinado país, em âmbito nacional e sub-nacional, mas também em nível supranacional. A atuação dos atores internacionais também é fundamental para a implantação e consolidação do regime democrático – considerando-se como democracia a possibilidade de participação e de contestação – pois o relacionamento de um país com outro será tanto melhor quanto mais aberto e transparente os mesmos forem. Ao mesmo tempo, obtém-se um bom desempenho econômico, que em troca favorecerá a democracia. Citando Rhodes (1996), os autores afirmam que “(...) já que a boa governança objetiva atingir eficiência nos serviços públicos, a governança deve ser relacionada a uma defesa da democracia e do neoliberalismo” (Inoguchi & Bacon 2003, 188). Ao falar de governança, remetemo-nos ao texto de Oliveira (2000). A autora pretende analisar se o Brasil pode ser considerado um país de democracia majoritária, sendo tal

democracia entendida como um modelo no qual o poder é concentrado na maioria governista dentro do parlamento, de forma que o poder Executivo tenha total prevalência na definição das leis do país, ou se o país segue o modelo de democracia consociativa, onde há uma associação entre o maior número possível de partidos – inclusive da oposição – dentro do poder Legislativo que faz com que este, tendo mais força, consiga contrabalançar o poder político do poder Executivo (2000, 21). Ao mesmo tempo, Oliveira pretende analisar até que ponto a definição do modelo a ser adotado pelo país (majoritário ou consociativo) é influenciado pela literatura sobre transição democrática. Na primeira parte, Oliveira disserta sobre as teorias comumente aceitas como padrão na área de redemocratização. Ela afirma que o processo segue geralmente algumas fases, sendo estas a (...) transição, quando ocorre a mudança do regime, ainda mantendo fortes elementos do passado; em seguida, vem a instalação ou instauração, em que são implantadas as estruturas político-institucionais democráticas e são formalizadas novas regras de procedimento político; a permanência ou manutenção é a terceira etapa, quando as regras vão sendo sedimentadas em toda a sociedade; finalmente, pode-se chegar à consolidação, momento em que o sistema adquire sustentação, continuidade e legitimidade (Oliveira 2000, 11, grifos no original). A autora cita ainda as idéias de Linz & Stepan (1996), de Huntington (1994) e de Di Palma (1990), que falam, por um lado, sobre as características dos processos de redemocratização e, por outro, da situação dos países no que seria a última fase deste processo, a de consolidação da democracia. No entanto, há um problema para Oliveira: a construção da democracia no Brasil é vista pelos analistas sempre como trabalhosa ou difícil porque o modelo utilizado para se avaliar o quão democrático o país é baseia-se no conceito de poliarquia, de Robert Dahl, “(...) modelo fundamentado na história de países que não passaram pelas experiências [autoritárias] dessas novas democracias. Embora relevantes, essas análises são prejudicadas pela dificuldade em comparar realidades históricas muito diversas” (Oliveira 2000, 12). Outro problema visto pela autora refere-se ao fato de haver pelo menos duas correntes de análise do processo de redemocratização brasileira, o que pode levar a resultados conflitantes e até mesmo contraditórios. “Uma primeira postura é aquela que procura enfatizar o caráter conservador da nova democracia brasileira, mostrando o quanto a transição manteve os aspectos autoritários vigentes no período anterior e o quanto

esses aspectos continuaram influenciando, no sentido de cercear e limitar o alcance da democratização” (Oliveira 2000, 13). Essa visão, segundo a autora, é a visão dominante dos analistas em relação à redemocratização brasileira, tendo como principais defensores autores como O’Donnell & Schmitter (1986b), Weffort (1992) e Hagopian (1992). A outra forma de se analisar o processo brasileiro é aquela que refuta a visão anterior em três pontos. Em primeiro lugar, os autores dessa segunda corrente acreditam que a maior dificuldade da transição brasileira foi não ter estabelecido, de maneira pública, nenhum tipo de acordo político entre os grupos democráticos e autoritários que participaram da transição. Em segundo lugar, os autores dessa corrente defendem a idéia de que a causa para o mau funcionamento das instituições políticas brasileiras deve ser buscado no próprio processo de instauração da nova democracia e das escolhas políticas de seus atores, ao invés de atribuí-lo a fatores macro-sociais. Por fim, a construção das novas regras do jogo democrático é vista, por esses autores, como um dos momentos cruciais do processo de consolidação democrática (Oliveira 2000, 14). A autora afirma que fazem parte desta corrente autores como Paramio (1989), Souza (1988) e Lamounier (1996). Para solucionar o impasse, Oliveira se propõe a analisar um segundo elemento, além da governabilidade – visto como o principal fator que caracteriza se um país teve sucesso ou não em seu processo de consolidação democrática –, que pode ser considerado como fundamental para se caracterizar um país como democrático ou não: o relacionamento entre os poderes Executivo e Legislativo. Para ela, é necessário “(...) se considerar a qualidade da democracia que vem sendo construída”, indo além “(...) dos problemas relativos à preservação do sistema político e da eficácia dos governos (...)” (Oliveira 2000, 16). Para fazer tal análise, ela acredita ser fundamental comparar a forma como os poderes Executivo e Legislativo se relacionam no Brasil com a forma como estes poderes se relacionam nos países do sul da Europa – tradicionalmente Portugal, Espanha e Grécia, aos quais Oliveira acrescenta a Itália –, os quais também fazem parte da chamada “terceira onda” de redemocratizações. Com tal comparação, seria possível verificar em que lugar da escala entre o modelo de democracia majoritária e o de democracia consociativa esses países se situam, o que serviria para saber qual a qualidade da democracia que está sendo implantada em nosso país. A autora faz, então, um breve histórico sobre os processos de redemocratização ocorridos nos quatro países citados anteriormente, com ênfase sobre a fase final do processo – a da consolidação. Ela destaca o fato de que, desses países, apenas a Espanha teve uma transição pactuada, onde todas as forças políticas, inclusive os detentores do poder autoritário, compreenderam a necessidade de romper com o

passado e inaugurar a democracia. Já nos demais países, o processo se fez por ruptura, onde o governo ditatorial foi destituído do poder. Outro destaque dado pela autora se refere ao período transcorrido – no caso da Itália, o processo de consolidação demorou aproximadamente 30 anos, enquanto nos outros três países a duração não foi superior a 10 anos. Ênfase especial é dada pela autora, na descrição desses processos de redemocratização, à atuação dos partidos políticos: ela deixa claro que, para a consolidação da democracia, foi fundamental o papel desempenhado pelos partidos políticos nestes quatro países (Oliveira 2000, 20-3). Ao tratar do papel dos partidos políticos, Oliveira faz então a classificação desses quatro países: (...) ao longo do contínuo democracias majoritárias-democracias consociativas (...) apenas a Itália pode ser considerada caracteristicamente consociativa; Portugal encontra-se em uma situação intermediária, apresentando mais aspectos consociativos que majoritários; a Espanha é mais majoritária que consociativa; a Grécia situa-se entre as democracias mais majoritárias do mundo ocidental (Oliveira 2000, 21, grifos no original). Percebe-se que a relação entre processo de transição democrática (por ruptura ou por pacto) leva a um resultado bastante variável, com organizações político-institucionais que tanto podem favorecer a tomada de decisões por uma maioria executiva – caso das democracias majoritárias – quanto fortalecer as minorias políticas presentes no Legislativo – caso das democracias consociativas. Resta, então, analisar o caso do Brasil, seguindo-se o mesmo método. A autora, aqui, refuta a idéia de que o Brasil seguiria o modelo majoritário, com predominância do poder Executivo sobre o poder Legislativo. Por um lado, ela concorda com o fato de que “(...) o percentual de interferência do Executivo tem sido bastante alto no Brasil (...)” (2000, 23); por outro, ela afirma que “o mais importante para a consolidação parece ser o apoio aberto – da opinião pública, das organizações e dos partidos políticos – à democracia”. Assim é que, para ela, o papel dos partidos políticos é destacado neste processo, já que são eles que podem “(...) canalizar as reivindicações da sociedade (...) Crescem as chances de consolidação democrática quando os partidos ou as lideranças partidárias exercem controle sobre a sociedade organizada, auxiliando o processo de centralização decisória” (2000, 24). É por dar ênfase ao papel dos partidos políticos – e de sua atuação no parlamento – que Oliveira chega à conclusão de que o modelo democrático adotado pelo Brasil não é tão majoritário quanto se pensa. Ela mostra que, no período entre 1995 e 1999, os

partidos que formavam o parlamento – tanto de direita quanto de esquerda – conseguiram aprovar diversos projetos de sua própria autoria, variando entre projetos voltados para questões de estado, para direitos civis, políticos e difusos, para direitos sociais e para corporativismo e localismo. “A produção legislativa de origem na Câmara Federal demonstra que todos os partidos, inclusive os partidos da oposição, têm participado co- responsavelmente da elaboração de políticas voltadas para a esfera pública” (Oliveira 2000, 27). Mesmo admitindo-se a ampla dominância do poder Executivo durante o período analisado, observa-se que o poder Legislativo apresentou uma atuação relevante para o equilíbrio da democracia. A idéia do controle absoluto do Executivo sobre o Legislativo deve ser considerada com cuidado. Como é possível observar, o reduzido campo de atuação que cabe ao Legislativo tem sido produtivamente aproveitado, percebendo-se que a Câmara Federal é o espaço de atuação das oposições, que participam ativamente do processo Legislativo (Oliveira 2000, 27). Outra análise que diz respeito à governança e à forma como a democracia foi implantada no Brasil após o regime militar é a de Panizza (2000). O autor pretende mostrar em seu texto o relacionamento entre as reformas econômica e política que aconteceram durante as décadas de 1980 e 1990 na América Latina, de acordo com o que ele chama de “política tradicional” e de “nova economia”. Panizza dá também especial atenção à natureza da democracia na região. Em relação a este último item, o autor pretende criticar a idéia de “democracia delegativa”, definida e defendida por Guillermo O’Donnell (1992). Supõe-se que, como a modernização econômica erode as instituições sociais “tradicionais”, ela também acaba com a política “tradicional”, fazendo surgir no país em questão a cultura e as instituições da moderna democracia liberal ocidental. No entanto, Panizza acredita que esse papel modernizador que a economia aplicaria à política não aconteceu na América Latina. Para ele, ao contrário, a política tradicional – caracterizada pelo clientelismo, pela patronagem e pela corrupção – ajudou a garantir as reformas econômicas “modernizantes”, ao mesmo tempo em que se adaptou aos novos rumos econômicos que se seguiram a estas reformas (Panizza 2000, 738). No que diz respeito à democracia na região, Panizza afirma que é comumente empregado o modelo de democracia delegativa criado por Guillermo O’Donnell. No entanto, tal modelo é insuficiente para descrever tais regimes, já que o mesmo não leva em consideração o contexto político no qual o presidente trabalha, além de ignorar a importância da construção de coalizões e as restrições formais e informais

ao uso deste poder político. “O modelo de O’Donnell falha em explicar porque alguns presidentes tiveram mais sucesso do que outros em implementar reformas econômicas, e subestima a importância das configurações político-institucionais nas quais estas reformas aconteceram” (Panizza 2000, 738). O autor pretende utilizar o Brasil e a Argentina como exemplos para explicar seus argumentos. O ponto de partida do autor são as reformas econômicas que ocorreram em meados dos anos 1980 e início dos anos 1990 nos países da América Latina. Para ele, tais reformas econômicas aconteceram não tanto como resultado dos processos de democratização ocorridos na mesma época, mas sim devido à necessidade de reconstrução da capacidade do estado de governar a sociedade, a qual era praticamente nula em vários países devido à hiperinflação e à recessão econômica do período. Esta recessão, por sua vez, ocasionou a queda dos índices de confiança da população em relação aos governos democráticos recém-estabelecidos, que tiveram de reverter a situação tendo em mente dois fatores: 1) A maneira pela qual as antigas tradições políticas formaram as novas políticas democráticas; 2) Sua própria habilidade para utilizar a política tradicional e a legitimidade democrática para forjar uma aliança política que apoiasse seus programas de reforma econômica e política (Panizza 2000, 739). No caso da Argentina e do Brasil, ambos os países estavam em situação parecida no final dos anos 1980, com inflação ao redor de 3.000% ao ano e com taxas de crescimento negativas do PIB ao redor de 6%. Tal situação mostrou a incapacidade dos primeiros presidentes civis de ambos os países, Raúl Alfonsín e José Sarney, respectivamente, em implantar reformas econômicas que pudessem levar os países novamente em direção ao crescimento econômico. Como conseqüência, tal situação abriu um vácuo no poder em tais países, preenchido por Carlos Menem e por Fernando Collor de Melo. Na Argentina, Menem foi capaz de obter sucesso inicial com suas reformas econômicas, enquanto Collor foi acusado de corrupção e seu destino foi o impeachment. A Argentina de Menem passou a ser vista como o destino preferencial do investimento estrangeiro na região, tendo reduzido sua inflação e voltado a ter taxas positivas de crescimento do PIB. Já o Brasil, após o sucesso inicial do Plano Collor, voltou a ter inflação e fraco crescimento econômico. Essas diferenças podem ser explicadas pelo fato de a crise econômica ser maior na Argentina, ao passo que no Brasil o principal problema era político e não econômico (Panizza 2000, 740-2). Ainda, tais resultados mostram que o modelo proposto por O’Donnell de democracia delegativa não funciona sempre: “reformas econômicas neopopulistas tiveram sucesso (...) na Argentina de Menem e no Peru de Alberto Fujimori, mas falharam no Brasil de Collor, no Equador de Abdala Bucaram e em todo o resto da América Latina” (Panizza 2000, 741).

Para Panizza, o que fez com que a crise econômica fosse maior na Argentina do que no Brasil foi o fato de que o modelo desenvolvimentista brasileiro durante o período militar obteve um considerável sucesso em promover o desenvolvimento e crescimento econômico do país, enquanto o modelo argentino não atingiu o mesmo resultado. Assim, a elite industrial brasileira tinha poucos motivos para se rebelar contra o antigo modelo econômico, enquanto na Argentina os defensores do antigo modelo dispunham de poucos recursos para defendê-lo (Panizza 2000, 743). Já no âmbito político, após o retorno do poder às mãos civis, no Brasil o mesmo foi dividido entre vários atores políticos alternativos, enquanto na Argentina o poder continuou centralizado nas mãos do poder Executivo. Tal situação era o oposto do que acontecera anteriormente, durante o período militar: enquanto no Brasil o poder político ficou centralizado nas mãos dos militares, permitindo coesão do poder político e permitindo a criação de políticas públicas de longo prazo, na Argentina este poder ficou disperso devido à falta de legitimidade política e de recursos institucionais que impediram a criação das mesmas políticas. Segundo o autor, três fatores podem explicar as diferenças de posicionamento do poder Executivo dos dois países no período pós-autoritário: 1) As diferentes maneiras pelas quais a herança das antigas formas de representação política formou as novas democracias; 2) A relativa maior legitimidade da presidência argentina após o retorno do país à democracia, se comparada com a brasileira; 3) A habilidade particular do presidente Menem de forjar uma aliança reformista entre políticos tradicionais e reformadores econômicos, colocando a “política tradicional” e a legitimidade democrática em uma aliança a serviço da “nova economia” – aliança esta que foi atingida no Brasil apenas posteriormente, no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (Panizza 2000, 743-4). Vale destacar que a aparente incongruência, no Brasil, entre um poder Executivo forte, durante o período militar, e um poder Executivo fraco, no período democrático, é explicada pelo surgimento, no segundo período, de outros atores que demandaram poder político para si próprios, como os partidos políticos, o próprio parlamento e os movimentos sociais, enquanto no primeiro período todo o poder estava centralizado na presidência e nos tecno-burocratas que controlavam a economia do país com orientação desenvolvimentista. A dispersão do poder resultante da fragmentação política possibilitada pela democratização fez com que o poder Executivo perdesse muito de sua capacidade nos primeiros anos do período pós-autoritário no Brasil, ainda mais por não ser apoiado por uma maioria parlamentar coesa. Outro fator que levou à desconcentração do poder político no Brasil foi o fato de que o mesmo estava sendo disputado entre o governo federal e os governos estaduais, de forma que uma das bandeiras do processo de redemocratização era a descentralização política e administrativa do país. Já na Argentina, o fim do regime militar consolidou a

formação de presidências que eram apoiadas por fortes maiorias no parlamento, fazendo com que houvesse uma maior unidade na tomada de decisões do que no Brasil. Além disso, a questão de distribuição de poder político e de descentralização da administração em benefício das províncias argentinas não esteve tão fortemente presente na pauta de reivindicações dos democratas argentinos quanto na dos brasileiros. Ao contrário do Brasil, a crise do estado na Argentina facilitou a concentração de poder no Executivo e favoreceu a idéia de implantação de reformas a qualquer custo (Panizza 2000, 744- 7). O sistema político no período autoritário também auxiliou a desfragmentar o poder político no Brasil durante o período de redemocratização. Ao impedir a participação política em nível federal, os militares incentivaram indiretamente a criação de oligarquias locais, que trabalhavam nas eleições estaduais e municipais a favor do partido oficial em troca de benefícios para si próprios. Tal padrão continuou existente no período da Nova República: “(...) o modo de transição para a democracia permitiu à elite política conservadora manter um papel proeminente em todos os níveis do governo, o que significou que as práticas tradicionais do clientelismo, do personalismo e da patronagem [ou fisiologismo] também continuassem como parte integral da política na democracia” (Panizza 2000, 747). Na Argentina, por sua vez, a maneira de se fazer política foi alterada com a implantação do novo regime, com os dois principais partidos tendo sobrevivido, de uma forma ou de outra, durante o período militar argentino: Apesar de ambos [os partidos] se moverem rapidamente com o objetivo de revitalizar suas antigas redes clientelísticas após o retorno da democracia, o ambiente no qual este tipo de política operou era significativamente diferente do [ambiente do] passado (...). A vitória de Alfonsín (...) foi amplamente vista como a aurora de uma nova e moderna cultura democrática (Panizza 2000, 748). Resta saber, agora, como a política tradicional influenciou a reforma econômica – em busca de modernização – durante os governos de Carlos Menem, na Argentina, e de Fernando Collor de Melo e Fernando Henrique Cardoso no Brasil. No caso do Brasil, Panizza (2000, 749) dá pouca ênfase ao governo Collor, afirmando que o mesmo se iniciou com forte apoio popular devido à trajetória política de Collor como “o caçador de marajás” e terminou com o impeachment do presidente, de forma que o mesmo não conseguiu fazer as reformas a que se propôs ao se candidatar à presidência. Já no caso de Fernando Henrique Cardoso, Panizza (2000, 751) afirma que

para ganhar aprovação parlamentar para as principais emendas constitucionais relacionadas à administração [pública] e à seguridade social, Cardoso escolheu usar tanto as ferramentas democráticas de persuasão e negociação quanto as práticas “tradicionais” de patronagem estatal: alocação seletiva de fundos e indicações públicas motivadas politicamente. Essas últimas práticas podem todas ser vistas como a antítese da política de modernização do estado. Tal atitude foi necessária porque o presidente encontrou dificuldades nos dois últimos anos de seu primeiro mandato para implantar as reformas econômicas no país, de forma que “(...) em março de 1998, a proposta de reforma da previdência ainda estava presa na Câmara dos Deputados” (Panizza 2000, 752). A solução por barganhas também era favorável aos deputados e senadores, que obtinham benefícios pessoais em termos políticos e aumentavam ainda mais o apoio que obtinham em suas bases eleitorais. A conclusão de Panizza é que é a escala e a maneira sistemática na qual [a alocação de recursos públicos em troca de apoio político] foi aplicada no Brasil que a tornou tão central no programa das reformas. Seria errado, entretanto, entender todo o processo de reforma apenas como um cínico jogo de “política tradicional” de patronagem ou até mesmo corrupção aberta. Debates, persuasão e a construção de uma coalizão pró-reforma também foram partes do processo de reforma, e influenciaram o caminho e o sucesso de diferentes reformas [propostas pelo governo] (2000, 753). Na Argentina, o surgimento de Menem como líder do partido peronista se deu por meio de uma luta interna no partido, com Menem aceitando as idéias das tendências modernizadoras (os “renovadores”) sem, entretanto, deixar de lado a tradição do partido, associada à “política tradicional” (Panizza 2000, 754). Uma vez eleito, a gravidade da crise deu a Menem um alto grau de autonomia para impor reformas de cima para baixo. No entanto, em gritante contraste com Collor, Menem usou sua posição de autoridade para construir uma forte aliança política tanto dentro quando fora do Congresso, com o objetivo de obter apoio para as reformas econômicas. O núcleo de sua estratégia foi baseada em uma aliança improvável que foi além da política tradicional do país e das linhas de luta de classe. Era uma aliança que combinou a tradicional máquina política dos peronistas (...) com novos líderes provinciais de fora da “política tradicional”, figuras nacionais favoráveis ao livre comércio e reformadores econômicos tanto de dentro quanto de fora do partido (2000, 755).

O apoio que Menem conseguiu dentro do congresso foi crucial para o rápido andamento das reformas econômicas na Argentina. Se em um primeiro momento Menem administrou a Argentina de maneira delegativa – seguindo a terminologia de O’Donnell –, em um segundo momento sua atuação política se deu pelo envolvimento direto dos partidos políticos, em especial seu próprio partido, nos assuntos relacionados às reformas aplicadas no país. Em seu segundo mandato, o poder político já não se encontrava diretamente em suas mãos, tendo passado principalmente à esfera legislativa. Houve interação entre a “política tradicional” e a “nova economia” na definição das reformas tanto em seu aspecto temporal quanto de conteúdo, já que Menem precisou do apoio dos governos das províncias periféricas e dos líderes de sindicatos – locais onde a “política tradicional” mais se destacou na Argentina – para se manter no poder (Panizza 2000, 757). Viu-se que, no caso do Brasil, Fernando Henrique Cardoso conseguiu levar adiante as reformas por utilizar meios característicos da “nova” democracia, como debates, persuasão e alianças partidárias, em associação a meios característicos da “política tradicional”, como barganhas e trocas de favores. Na Argentina, Menem também fez uso de meios tradicionais e novos para implantar suas reformas, ainda que houvesse grau maior de delegação em suas ações do que no caso do presidente brasileiro. No entanto, a “política tradicional” operou dentro de certos limites, em certas áreas e com certo custo (Panizza 2000, 758-9). “(...) A ‘nova economia’ leva a marca da ‘política tradicional’” (Panizza 2000, 759). Em primeiro lugar, esta “política tradicional” atrasou ou impediu certas reformas, tanto no Brasil quanto na Argentina. Em segundo lugar, o uso dos mecanismos tradicionais aumentou direta e indiretamente o custo das reformas, com a distribuição de recursos estatais a atores envolvidos no processo e com a dependência contínua de administrações estaduais (ou provinciais, no caso da Argentina) que se baseavam em relações clientelistas com as oligarquias municipais e com o próprio governo central. Ainda, as reformas econômicas gerais implantadas na Argentina e no Brasil dependeram fortemente da opinião pública, que se mostravam a favor (ou contra) os planos de estabilização econômica implantados nos dois países, nos quais havia um certo elemento de populismo econômico (Panizza 2000, 760). O poder presidencial na Argentina e no Brasil é forte, mas não tão forte quanto o proposto por O’Donnell. Ambos os presidentes utilizaram elementos da “política tradicional” de seus respectivos países, mas não eram prisioneiros dos mesmos; da mesma forma, as reformas propostas pelos dois presidentes não poderiam ser entendidas fora do contexto de consolidação de um processo de transição para a democracia: essas reformas tinham como objetivo não apenas mudar o modelo econômico anterior, mas também redefinir os parâmetros da nova ordem política,

econômica e social imposta pelo modelo democrático. Em ambos os países, o poder do presidente está enraizado em uma densa rede de instituições políticas formais e informais sem as quais o presidente não pode governar propriamente. Os presidentes escolhem estratégias políticas diferentes para atingir seus objetivos, e as crises econômicas aumentam sua autonomia tanto como articuladores de coalizões políticas quanto como educadores políticos (Panizza 2000, 760). Panizza propõe três hipóteses para explicar a continuidade do modelo híbrido que junta a “política tradicional” com a “nova economia”, modelo este que, segundo Panizza, mostra que a idéia de democracia delegativa não é tão forte e/ou válida quanto parece à primeira vista.. A primeira hipótese é a que ele chama de “hipótese de diferença de tempo”: apesar dos meios da “política tradicional” ainda estarem presentes na América Latina, é uma questão de tempo até que a modernização econômica traga à tona a modernização política, com a opinião pública e as relações de mercado se impondo sobre as relações de clientelismo, patronagem e personalismo. A segunda hipótese é chamada de “hipótese de cultura política”: devido á sua colonização – marcada pelas instituições autoritárias dos governos ibéricos e da Igreja Católica –, os países sul-americanos não seriam capazes de implantar em seus territórios o modelo da moderna democracia pluralista, já que os grupos intermediários são fracos, as instituições têm pouca legitimidade e a idéia de “vontade popular”, ao invés de estado de direito, é a base da democracia. A terceira e última hipótese é a “hipótese neodualista”: aqui, considera-se a sociedade dividida entre aqueles que fazem parte do setor formal da economia, e aqueles que se encontram no setor informal. Os primeiros estariam inseridos em um modelo político semelhante ao das democracias maduras, enquanto aqueles que não estão incluídos no setor formal – a maioria – seriam ativos politicamente apenas com a utilização dos mecanismos da “política tradicional” (Panizza 2000, 761-2). Ainda que defenda a democracia liberal, Diniz (2001) também faz uma crítica à forma como os processos de transitologia e de consolidologia são estudados. A autora inicia seu texto contextualizando a situação sobre a qual irá escrever, qual seja, a de que, durante os anos 1990, os países da América Latina, em especial o Brasil – país tomado como base em seu artigo –, passaram por processos de abertura e de reforma de suas estruturas estatais, objetivando “(...) a reestruturação da ordem econômica e, sobretudo, (...) a refundação do Estado e da sociedade de acordo com os novos parâmetros consagrados internacionalmente”. No entanto, “(...) limitada por uma visão restritiva de teor administrativo, a reforma do Estado do governo Cardoso foi capturada pela meta do ajuste fiscal, revelando-se incapaz de realizar a ruptura anunciada” (Diniz 2001, 13). Ou seja, a reforma do estado proposta por Fernando

Collor e continuada por Fernando Henrique acabou resultando em reformas fiscais e administrativas, e não se alterou a estrutura de funcionamento do estado propriamente dito. “Torna-se imperativo implantar novas formas de gestão pública, que permitam a consecução das metas coletivas e viabilizem formas alternativas de administrar a inserção na ordem globalizada” (Diniz 2001, 13). Um dos fatores que levou as reformas a serem incompletas no Brasil é o processo de globalização. Para Diniz (2001, 14), um dos maiores equívocos ao se falar em globalização é acreditar que este é um processo apenas econômico; ao contrário, a globalização seria um fenômeno que obedece estritamente às decisões de natureza política, ou seja, há uma primazia dos objetivos políticos em detrimento dos objetivos econômicos no processo de globalização. Para a autora, dá-se atualmente ênfase exagerada à economia, e não à política, nesse processo, e para ela tal visão economicista é errada. Diniz (2001, 14) afirma que “(...) a economia não se move mecanicamente, independente da complexa relação de forças políticas que se estruturam em âmbito internacional, através da qual se tecem os vínculos entre economia mundial e economias nacionais”; as elites políticas nacionais têm papel fundamental, para ela, na definição dos rumos que o país vai tomar dentro do processo de globalização. Além de ignorar os trâmites políticos internos a cada país, a ênfase economicista no fenômeno da globalização torna os processos econômicos mundiais automáticos, nos quais não haveria outra opção disponível às elites nacionais a não ser adequar-se o mais rapidamente possível a tais processos. Nessa visão, os governos são fracos e incapazes de atingir seus objetivos próprios, anulando sua ação política. (...) Cabe salientar que a globalização não está comandada por forças inexoráveis e nem marcada exclusivamente por relações e processos de natureza econômica. Está, sobretudo, sujeita a uma lógica política (Diniz, 2000a, cap.1), que por sua vez, tem a ver com relações assimétricas de poder, que se estabelecem entre as potências em escala mundial, traduzindose pela formação de blocos e instâncias supranacionais de poder. Configuram-se, assim, as redes transnacionais de conexões, através das quais articulam-se alianças estratégicas, envolvendo atores externos e internos, destacando-se, entre estes, as grandes corporações multinacionais, a alta tecnocracia de teor cosmopolita, as organizações financeiras internacionais, burocratas de alto nível, entre outras elites estratégicas. Tais relações estão por trás das escolhas feitas pelos atores, escolhas estas que não são aleatórias, nem o reflexo de critérios exclusivamente técnicos ou econômicos, senão que se orientam também por um cálculo político (Diniz 2001, 14). A ênfase que Diniz dá às decisões políticas encampando as decisões econômicas é

explicada pelo fato de que para “(...) conquistar posições favoráveis no jogo de poder internacional [é necessária] uma alta capacidade de gestão do Estado, ao contrário do que advogam os defensores do Estado mínimo” (Diniz 2001, 14). Ao participar de uma comunidade de nações, os estados têm de ser politicamente fortes para poder atingir seus objetivos nessa mesma comunidade; conseqüentemente, as decisões que afetam a maneira como os estados se relacionam uns com os outros são tomadas em uma esfera política nacional, e não simplesmente impostas pelas grandes corporações internacionais, ainda que a esfera política nacional se relacione com tais corporações internacionais. “(...)Reverter uma posição subordinada ou rejeitar a predominância da lógica das empresas transnacionais na estruturação das atividades econômicas de um país é um ato de natureza política, requerendo uma ação deliberada capaz de definir e executar uma nova estratégia nacional” (Diniz 2001, 14). Outro ponto que leva Diniz a defender a supremacia da política sobre a economia no processo de globalização é o efeito desestruturador que tal processo causa nos países. Conseqüentemente, os governos têm de ser politicamente fortes para poderem implantar políticas que resolvam tais problemas causados internamente por agentes externos, já que a globalização não é (...) um jogo de soma positiva, no qual todos tenderiam a ganhar. Ao contrário, longe de se ter produzido uma ordem econômica mundial mais integrada e inclusiva, o que se observou foi a configuração de um sistema internacional marcado por grandes contrastes e polaridades, reproduzindose as desigualdades entre as grandes potências e os países periféricos, reeditando-se, de forma ainda mais dramática, a exclusão social (Diniz 2001, 15). Um último ponto que Diniz critica em relação à visão economicista da globalização é o que ela chama de “teor minimalista da agenda pública”. Nesse caso, a visão economicista tenderia a ver apenas os problemas econômicos como importantes e válidos de solução, sendo qualquer outro objetivo – político ou social, por exemplo – supérfluo e causador de distúrbios na sociedade. Além disso, para a visão economicista, os problemas políticos e sociais deveriam ser resolvidos de maneira técnica, já que apenas a reforma econômica do estado conseguirá pavimentar o caminho para a retomada do desenvolvimento econômico e para a modernização almejada com essas reformas. Com o passar do tempo, entretanto, viu-se que a própria implantação das reformas exigia um estado também politicamente reformado, capaz de implantar essas próprias reformas econômicas necessárias que seriam o resultado de políticas criadas pelo próprio estado, resultando de opções políticas estatais; a idéia de um estado mínimo, como defendido pelo ideário neoliberal, foi posta de lado em benefício da idéia de “(...) revalorização da capacidade de ação estatal como um pré-

requisito do êxito dos governos na administração de situações de crise e transição” (Diniz 2001, 15). Tendo falado sobre a idéia de globalização e como a mesma se relaciona com a necessidade de se reformar o estado, Diniz volta sua atenção para a questão da democracia em sua dimensão histórica: baseando-se na tradição histórica de cada país, qual será o tipo de democracia instalado nesse processo de reforma? Sua definição de democracia segue a proposta por Dahl, com “(...) certos traços elementares, que são encontrados em todos os exemplos de democracia política” (Diniz 2001, 16). No entanto, ela afirma que o resultado da aplicação de tal modelo é variável de país para país devido às condições históricas de cada um, já que tais condições influenciam diretamente os dois eixos definidos por Dahl – contestação pública e participação política. Logo, o resultado da transição para a democracia não se dá no mesmo ritmo em todos os países, e não obedece à uma única seqüência de acontecimento dos fatos. Também baseada em fatores históricos, outra característica fundamental para a implantação e consolidação da democracia nos países da América Latina é a efetividade da lei e a garantia de igualdade formal entre os cidadãos. Diniz afirma que há uma extrema fragilidade institucional que sobreviveria às tentativas de mudança ao longo do tempo. Entre tais debilidades, sobressaem a incompletude do processo de constituição da cidadania, resultando importantes lacunas quanto aos direitos civis e sociais, o estreitamento dos espaços públicos, além de sérias deficiências quanto à efetividade da lei. Esta se estende de forma pronunciadamente irregular sobre o conjunto do território nacional e sobre as diferentes camadas da população, resultando um amplo contingente que se situa fora da cobertura legal (Diniz 2001, 16). Ainda tratando da perspectiva histórica, mas especificamente no caso do Brasil, Diniz afirma que a história brasileira contribui para a formação de um poder Executivo todo-poderoso, com o poder Legislativo sendo menosprezado na tarefa de levar o país um passo adiante. Tal característica permitiu a ascensão ao poder político de tecnocratas que gerenciavam a economia de maneira fechada e excludente, reforçando “(...) a concepção acerca da validade da supremacia da abordagem técnica na formulação das políticas públicas, abrindo caminho para a ascensão dos economistas notáveis às instâncias decisórias estratégicas para a definição dos rumos do capitalismo nacional e sua inserção externa” (Diniz 2001, 17). Ela afirma que os modelos estatais brasileiros foram calcados, desde 1930, na visão de que o poder Executivo seria o responsável por realizar as reformas necessárias ao país, sendo o único poder que conseguiria levar o país à modernização, enquanto o poder

Legislativo estaria associado aos interesses particularistas e tradicionais da política brasileira. Tal formação histórica permitiu que, no Brasil, a democracia fosse vinculada diretamente à presidência da República, diminuindo outras instâncias participativas da sociedade. A autora relaciona, então, as idéias de reforma do estado – tendo como base o processo de globalização – e de teoria democrática contemporânea. Ela afirma que a tendência na América Latina, Brasil incluído, foi realizar uma reforma do estado que (...) reforçou a primazia do paradigma tecnocrático, segundo o qual, independentemente do regime político em vigor, eficiência governamental seria a resultante de um processo de concentração, centralização e fechamento do processo decisório, sendo a eficácia de gestão reduzida à noção de insulamento burocrático. Desta forma, preservar a racionalidade burocrática implicaria a meta de neutralizar a política e reforçar a autonomia decisória de elites enclausuradas na cúpula burocrática (Diniz 2001, 18). Por fortalecer a primazia do estado sobre as decisões econômicas, ou seja, por subordinar os resultados econômicos às decisões políticas, Diniz (2001, 18) afirma que a idéia de estado mínimo liberal é uma falácia, já que o estado foi capaz de realizar tal subordinação. Por outro lado, houve o fortalecimento desproporcional do poder Executivo frente às outras instâncias democráticas abertas à participação popular, já que o Executivo foi visto como o único ramo do poder capaz de realizar as reformas necessárias durante o processo de democratização. Esse fortalecimento, por sua vez, centralizou ainda mais o poder de decisão nas mãos de poucos, ainda que houvesse, a partir desse momento, a possibilidade de votar e ser votado à disposição da população. Tal fortalecimento e centralização, obviamente, não contribuíram para a efetiva democratização política do estado e nem mesmo da sociedade. Ao mesmo tempo, também como conseqüência dos processos concomitantes de globalização e de reforma do estado, a democracia não pôde ser efetivamente garantida pelo estado devido à busca do ideal do estado mínimo. Sob o impacto das crises fiscal e política, e como resultado da primeira onda de reformas liberais inspiradas no corte de gastos e de pessoal, aprofundouse de forma expressiva a incapacidade histórica de o Estado penetrar no conjunto do território nacional e incluir, em seu raio de ação, os diferentes segmentos da sociedade, garantindo de forma universalista o acesso aos serviços públicos essenciais, nas áreas de saúde, educação e saneamento básico, bem como a eficácia de seus ordenamentos legais (Diniz 2001, 19).

Diniz propõe uma “(...) ruptura com o enfoque tecnocrático-reducionista (...)”, deixando de acreditar que democrático é o estado que possui eleições regulares onde todos aceitam seus resultados de maneira pacífica. Para ela, é necessário “(...) criar e fortalecer novos arranjos institucionais que possibilitem o funcionamento da democracia nos intervalos entre as eleições” (Diniz 2001, 19), bem como garantir uma melhor e maior responsividade por parte dos governantes em relação à sociedade, acabando com o isolamento dos tecnocratas que povoam o poder Executivo e que acreditam que as melhores soluções para os problemas econômicos são tomadas por uma minoria esclarecida. Da mesma forma, ela acredita que o caráter economicista deve ser extinto, e deve-se levar em consideração também aspectos políticos e sociais na solução dos problemas que afligem a sociedade. (...) Adquirem prioridade os mecanismos e procedimentos garantidores da responsabilização dos governantes em relação aos governados, notadamente os aspectos ligados à dimensão de accountability, sobretudo em sua forma horizontal, à relação entre os poderes, reduzindo os problemas de assimetria pelo uso exacerbado das Medidas Provisórias, ao reforço do poder infraestrutural do Estado e à expansão dos direitos de cidadania, além da reestruturação dos mecanismos de articulação entre o Estado e a sociedade (Diniz 2001, 19, grifos no original). Diniz (2001, 20) afirma que “repensar a reforma do Estado requer uma ruptura com o paradigma ainda dominante nos estudos desta área. (...) É preciso levar em conta a dimensão política da reforma do Estado e não apenas seus aspectos técnicos, administrativos, fiscais e financeiros”. Além da dimensão política, Diniz enfatiza também os aspectos democráticos que a reforma deve inserir na sociedade; a reforma do estado requer “(...) o fortalecimento das conexões do Estado com a sociedade e com as instituições representativas, expandindo também os mecanismos de accountability, vale dizer, os procedimentos de cobrança e de prestação de contas, os meios de controle externo, a transparência e a publicização dos atos do governo” (Diniz 2001, 20, grifos no original). Para concluir, para a autora a obtenção da democracia durante a reforma do estado passa por “(...) perspectivas que preconizam novos estilos de gestão pública, revertendo o isolamento e o confinamento burocrático”. Acabando-se com a concentração do poder nas mãos dos tecnocratas economistas, é possível reforçar as instituições representativas, especialmente o controle parlamentar sobre as ações do poder Executivo e a participação social por meio do voto, garantindo uma democracia mais ampla e verdadeira nesses países. O reforço da democracia representativa, dos instrumentos de responsabilização da administração pública por controle parlamentar e o fortalecimento da sociedade civil, sem tirar do estado sua capacidade de

coordenação das políticas públicas, são itens destacados por Diniz (2001, 21) como fundamentais a uma verdadeira democracia surgida após a reforma do estado.

O paradigma alternativo e as relações entre estado e democracia Como foi mostrado até o momento, o paradigma dominante encampa diversas maneiras de se enxergar a política de maneira geral e os processos de redemocratização de maneira específica. Esperamos ter mostrado como o paradigma dominante é definido, é avaliado, é aplicado e é criticado por si próprio. Além disso, esperamos ter mostrado que as análises feitas com o ferramental disponível ao paradigma dominante em nenhum momento trata do estado como agente político, o que confirma a nossa hipótese – de que este paradigma analisa a democracia, como ela surge, como ela é vista pela população, mas não leva em consideração as ações do estado na definição dessa democracia. Por seu lado, o paradigma alternativo, para o qual nos viramos agora, tem como foco central a análise do estado e das relações econômicas que influenciam o e são influenciadas por esse estado, trazendo novos argumentos que podem ser agregados à análise dominante, como veremos no próximo capítulo. O primeiro texto do paradigma alternativo que acreditamos ser relevante e que trouxemos a este trabalho é o de Morais (2002). O tema desse texto é uma crítica ao pensamento liberal que é dominante na atualidade. O autor inicia seu texto afirmando que a ação política tem como base vários instrumentos, dentre os quais a produção de idéias é um deles. Assim sendo, com a crise da década de 1970, teve início uma nova ação política, considerada como o “pensamento único” atual e chamada de neoliberalismo, cuja base consistia em apresentar soluções para os problemas da época, sendo que tais problemas teriam sua origem na falência do regime monetário definido na conferência de Bretton Woods (1944), no esgotamento dos modelos de acumulação de capital do pós-guerra e das instituições políticas que lhe eram afins (em especial a democracia de massas), com a inviabilidade das políticas nacionais voltadas para promover o desenvolvimento econômico, para controlar os ciclos de crescimento e recessão e para gerir eficientemente as relações interclasses (as políticas de renda e de bem-estar social, em particular). Em outras palavras, as idéias neoliberais objetivaram – e, até certo ponto, conseguiram – oferecer explicação aceitável para a crise daquele momento, além de ter se estabelecido como uma alternativa viável ao consenso keynesiano do pós-Segunda Guerra Mundial. Os conceitos neoliberais se assentaram no ideário político tendo como base uma crítica ao modelo do bem-estar social. Essa crítica baseia-se em três pontos principais:

1) Os custos crescentes (e tendencialmente insuportáveis) das políticas sociais e seu impacto sobre os fundos públicos (inflação, endividamento); 2) Os efeitos deletérios dessas políticas sobre valores, comportamentos de indivíduos, grupos sociais e empresas; 3) Os resultados desastrosos, sobre o processo decisório e sobre as instituições democráticas, da maquinaria política exigida pela implementação desses programas. (...) O neoliberalismo econômico acentua a supremacia do mercado como mecanismo de alocação de recursos, distribuição de bens, serviços e rendas, remunerador dos empenhos e engenhos inclusive. Nesse imaginário, o mercado é matriz da riqueza, da eficiência e da justiça (Morais 2002, 15). O ideário neoliberal acredita que o estado, ao proteger os trabalhadores contra a exploração, está influindo negativamente na obtenção da riqueza, da eficiência e da justiça. Ao mesmo tempo, inibe o investimento privado – que garante o desenvolvimento do país – com taxações e regulações legais. “Desse modo, além de pressionar os bolsos dos ricos (que assim se vêem impedidos de investir), gera ‘desincentivos’ ao trabalho, induzindo ao comportamento, digamos, preguiçoso ou aproveitador, ‘encostado’” (Morais 2002, 16). Os defensores do neoliberalismo conseguiram juntar idéias aparentemente separadas ou opostas: por um lado, o mercado como instituição inovadora, que acaba com tradições antigas e implanta o novo, e por outro o conservadorismo – não apenas político, mas social –, que defende exatamente as tradições e a autoridade já estabelecida. Constitui um grande mérito literário da Nova Direita ter conseguido conectar todos esses elementos ideológicos, não necessariamente integráveis, em um discurso razoavelmente persuasivo. Assim, conseguiu ir além da denúncia “econômica” ou “fiscal” das políticas sociais, o que arriscaria preservá-las como “coisas boas, mas impossíveis de sustentar”. Com o enfoque da Nova Direita, elas aparecem, mais e melhor, como sintomas de decadência civilizacional e, simultânea e paradoxalmente, como indutoras da decadência. Como algo intrinsecamente mau e que não se deve sustentar, mesmo quando possível fazê-lo (Morais 2002, 18). As narrativas do neoliberalismo, expressadas pelos membros da Nova Direita, estavam voltadas para desfazer um consenso e substituí-lo por outro. Para se atingir tal objetivo, as idéias precedentes tinham de ser apresentadas como contra-senso, como manifestação de interesses corporativos e/ou particularistas, ou ainda como sobrevivências de doutrinas antigas. No entanto, a reforma de estado defendida pela Nova Direita não leva à anarquia: as agências estatais “(...) são supostamente

‘profissionalizadas’ e ‘despolitizadas’ por meio de um enfoque ‘gerencial’, voltado para o ‘cliente’, para os ‘resultados’, para a ‘qualidade do output’ e não para a fidelidade a normas” (Morais 2002, 19, grifo no original). Assim, a Nova Direita pretende não apenas acabar com o modelo econômico de estado de bem-estar social, mas também com o modelo político associado a este estado – a democracia representativa, ou até mesmo a própria democracia. A proposta neoliberal de “reforma” dos serviços públicos, como se sabe, é orientada por uma idéia reguladora: a idéia de privatizar, isto é, de acentuar o primado e a superioridade da ratio privada sobre as deliberações coletivas. Daí suas diferentes maneiras de manifestação. Privatizar, no sentido estrito do termo, é apenas uma delas: transferir a agentes privados (empresas) a propriedade e gestão de entes públicos. Mas há outros modos de fazer valer o mandamento. Pode-se delegar a gestão, sem necessariamente transferir a propriedade. Pode-se ainda manter na esfera estatal a gestão e a propriedade, mas providenciando reformas que façam funcionar os agentes públicos “como se” estivessem no mercado, modelando o espaço público pelos padrões do privado. Diferentes modos de descentralização e dispersão de operações – com a correspondente centralização e o insulamento dos âmbitos de definição das grandes políticas, das práticas de avaliação de desempenho, de distribuição do bolo orçamentário – são pensadas como formas de introduzir o ethos privado (dinâmico, purificador) do mercado no reino das funções públicas (Morais 2002, 20, grifos no original). Conclui-se, portanto, que as mudanças econômicas propostas pelos neoliberais trouxeram, em seu bojo, mudanças também políticas, com o objetivo de diminuir a possibilidade de participação da sociedade. As reformas neoliberais pretendem mudar a agenda do país, mudando os locais e as maneiras de se fazer política em determinado país, ao afirmar que a dívida social é causada não pelo excesso de capitalismo, mas pelo excesso de democracia (Morais 2002, 21).

Crit́ icas à transitologia Seguindo essa crítica ao pensamento liberal e ao pluralismo como única maneira de avaliar a democratização de um país, Vitullo (2001) critica a análise feita sobre os processos de democratização da América Latina, afirmando que a transitologia e consolidologia seriam “simples” demais por não levarem em consideração questões econômicas ou sociais, além de fazer uma crítica ao formalismo excessivo do paradigma dominante. O objetivo do autor é fazer uma rápida revisão bibliográfica sobre as teorias de

redemocratização aplicadas à América Latina e mostrar que as mesmas são “limitadas e ‘conformistas’”, e que, portanto, não permitem “(...) observar e julgar, de modo mais exigente, as democracias latino- americanas contemporâneas (...)” (Vitullo 2001, 53). Segundo Vitullo (2001, 53), criou-se uma série de ferramentas analíticas para se estudar os processos de transição iniciados a partir de 1974. Tais ferramentas, além de analisarem os processos de redemocratização ocorridos no sul da Europa e na América Latina, foram utilizadas posteriormente para a análise de outras regiões e situações para as quais não foram originadas. Tal situação levou à criação de dois subgrupos na ciência política contemporânea, a “transitologia” e a “consolidologia”, que seriam as disciplinas responsáveis pelo estudo dos processos políticos ocorridos após o desmoronamento dos regimes militares nessas regiões citadas anteriormente. Esses processos, que compõem a transição democrática, não possuem conteúdos ou critérios substantivos que possam identificar seu início, seu decorrer e sua conclusão: “(...) o que conta, fundamentalmente, é o fator tempo” (Vitullo 2001, 54). Esses trabalhos são caracterizados por Vitullo como uma “nova vertente” de pensamento acadêmico, onde o resultado do processo dependerá das ações e das vontades das elites governantes, desconsiderando-se questões econômicas ou sociais. O resultado do processo está nas mãos de poucos, e é necessário analisar as idéias, desejos, anseios e vontades desses poucos para saber se o resultado será um país autoritário ou democrático. Para ele (2001, 54), [a] nova vertente mudou o foco e decidiu concentrar sua atenção nas elites políticas e suas eleições, opções e estratégias. A democracia passou a ser vista, a partir de então, como o resultado das habilidades, tomadas de decisões e estratégias racionais desdobradas pelos grupos dirigentes e atores políticos mais relevantes. Desde essa nova ótica, os diversos quadros e situações políticas dependerão, fundamentalmente, das “jogadas” levadas a cabo por um número limitado de participantes e de suas interações contingentes. (...) A disposição das elites, seus cálculos e os pactos que celebrem determinarão, segundo essa perspectiva, as probabilidades de uma abertura para a democracia e os traços mais marcantes que esta última virá a assumir. Outra característica identificada por Vitullo é o caráter “seqüencial ou gradualista” que tais análises possuem. Os processos de democratização vão, automática, seqüencial e gradualmente, solucionando os problemas e déficits que surgem durante o mesmo; mais uma vez entra em cena o fator tempo, ou seja, quanto mais o processo avança, temporalmente falando, mais solúveis se tornam os problemas. Os casos da

democracia britânica ou da redemocratização espanhola são tomados como exemplos a serem seguidos: se seguirem tais modelos, os demais processos de democratização irão obter sucesso, invariavelmente. Uma terceira característica apontada por Vitullo é a tendência desses estudos de trabalharem com diversos casos nacionais, de maneira comparativa, ou então tomando os casos partindo de um modelo básico e mostrando que eles podem resultar em sistemas políticos diferentes. É o caso, segundo Vitullo, da obra de Linz & Stepan (1996), na qual os autores fazem análises de países de três regiões e mostram como, partindo de um modelo geral de redemocratização, os mesmos chegam a resultados distintos. Citando Karl (1990), Vitullo (2001, 55) diz: (...) É bastante significativa a influência que determinadas eleições anteriores haverão de ter sobre os resultados futuros dos processos de consolidação democrática. Essa autora preocupa-se em estudar em que medida as variações nos modos de transição repercutirão sobre os eventos posteriores e considera, igualmente a muitos outros autores, que as transições ou períodos de mudança de regime são momentos fundadoreschave para entender o desenvolvimento político ulterior. Após descrever sucintamente as características da “transitologia”, Vitullo nos apresenta algumas críticas a essa corrente acadêmica. A primeira delas reside na impossibilidade de se tratar da mesma maneira, seguindo o mesmo modelo, regiões tão díspares quanto o sul da Europa e a América Latina, e mais ainda, comparar essas duas com o Leste Europeu. Isso é possível apenas porque tais autores esforçam-se por tomar como base “(...) uma definição restringida e formal demais do liberalismo democrático, [a] qual pode levar a assemelhar, de maneira falaz, situações que pouco têm a ver entre si, ou a cair no risco de um reducionismo político que, ao transladar experiências de um contexto para outro, faça-o de um modo apriorístico e acrítico” (Vitullo 2001, 55, grifo nosso). A generalização extrema tentada por tais ferramentas impede a análise da história individual e das singularidades de cada país, o que deixa de fora componentes importantes na formação da nova democracia a ser estabelecida após a derrocada do regime anterior. O autor sugere um enfoque mais sensível e maleável, que leve em consideração tais características históricas nacionais, para se criar uma tipologia democrática que realmente reflita as características de cada país dessas regiões estudadas. A segunda crítica refere-se à concepção minimalista de democracia utilizada em tais estudos, onde a democracia é vista como regras mínimas e aceitas por todos, como o estabelecimento de procedimentos que garantam a alternância rotineira de poder entre rivais eleitorais e a possibilidade de contestação, por parte da população, ao novo

regime democrático. Para Vitullo (2001, 56), “(...) um conjunto de regras procedimentais de modo algum pode ser suficiente para explicar práticas sociais concretas”, especialmente na América Latina, onde a situação sócio-econômica influencia diretamente a situação política. Outra crítica feita por Vitullo é a escolha daqueles que farão parte do processo elitizado dentro do qual se dá a transição democrática. Ele lança a pergunta: por que as análises verificam o relacionamento entre os líderes militares e os líderes mais destacados dos partidos políticos e ignoram chefes de movimentos sociais, associações, comunidades locais e outros atores políticos tão importantes quanto os dois primeiros? “Cabe pensar se não seria oportuno começar a examinar a democracia também segundo a ótica das grandes massas e não cair sempre na reiterada análise que coloca o foco, unicamente, nos profissionais da alta política” (Vitullo 2001, 56). Dando continuidade, o autor diz: Como criteriosamente argumenta Bunce (2000, p. 635), ficar nesse único plano de análise [considerando apenas as elites políticas e militares como responsáveis por todo o processo de redemocratização] implica dizer que são as elites e não a sociedade, a política e não a economia, os processos internos e não as influências internacionais, os que constituem os fatores cruciais da democratização e que, portanto – agregaríamos – a democracia pode ser confeccionada ou desmontada de acordo com as opções ou decisões tomadas por um reduzido grupo de lideranças políticas. Vitullo (2001, 57) critica também a visão “etapista” do processo: “não há motivo aparente que leve a concordar com os transitólogos quando defendem que primeiramente devem ser consolidadas as instituições democrático-liberais para, só em um momento posterior, assumir os desafios que implicam uma democratização social e econômica mais substantiva”. Essa transição por etapas, tendo como objetivo inicial a consolidação de estruturas institucionais para só depois se buscar algum tipo de melhoria social, contribui para desvalorizar a dimensão participativa da democracia e para aumentar a apatia da população. Já que os indivíduos vêem que todas as decisões são tomadas por parte da elite, sem participação popular, podem se perguntar: “para quê participar”? Além disso, o etapismo “(...) veda qualquer possibilidade de imaginar uma luta por uma democracia mais avançada, e elimina, também, as chances de produzir uma análise verdadeiramente crítica das realidades estudadas” (Vitullo 2001, 57), já que tais estudos primam pela manutenção da ordem democrática precariamente estabelecida pelas elites governantes devido à pouca margem de manobra permitida àqueles que defendem a democracia: estes devem tentar obter apenas um mínimo necessário para garantir a participação popular formal no processo de tomada de decisão por meio de eleições, pois se forçarem

demasiadamente em suas demandas poderão ficar sem nada ao final do processo. Não há, nesses trabalhos, considerações acerca dos necessários processos de aprofundamento da democracia e de sua extensão às esferas econômica e social. Toda e qualquer proposta em favor de mudanças mais radicais costuma ser vista, sob essa perspectiva, como uma ameaça à estabilidade e consolidação das instituições democráticas (Vitullo 2001, 58). O resultado desse “isolamento” ou “destacamento” das teorias de transição e consolidação democráticas em relação à situação social real dessas sociedades fez com que “muitas análises originadas desses moldes teóricos realmente deixaram de ser críticos, para converterem-se em prescrições para a ação e para o desenho de políticas governamentais (...) com o que se afetou seriamente o rigor, profundidade e qualidade dos estudos realizados” (Vitullo 2001, 58). Muitos teóricos deixaram de lado questões fundamentais como conflito social, luta de classes, influência da economia na esfera da política e desigualdade social para trabalharem por uma nova ordem democrática “viável e estável”. “A viabilidade, estabilidade e governabilidade vêm a mascarar, dessa maneira, uma resignada aceitação da aparente imodificabilidade das pobres e incompletas democracias existentes na América Latina (Vitullo 2001, 58). O resultado é a ignorância acerca dos efeitos que o sistema capitalista traz para a criação e consolidação de um verdadeiro sistema democrático na América Latina contemporânea. Nessa visão, a democracia nada mais é do que “(...) uma simples alternativa às ditaduras militares, um simples método dissociado, como agudamente assinala Borón (1994), dos fins, valores e interesses que animaram e animam a luta dos atores coletivos” (Vitullo 2001, 59). Em suma, haverá que se deixar para trás essa leitura dicotômica e restabelecer a importância dos componentes sócio-econômicos, assim como haverá que se prestar maior atenção às percepções, sentimentos e atitudes da cidadania face à realidade política, relativizando o peso que, em prejuízo de outros atores coletivos e das grandes massas populares, costuma-se outorgar às elites dirigentes. Essa mudança de enfoque permitirá começar a percorrer novos caminhos teórico-metodológicos que possibilitem um melhor entendimento de como funcionam as democracias realmente existentes por estas latitudes, abandonando – insistimos – a preocupação com uma mera sobrevivência formal das instituições, para internar-se no exame de sua qualidade, de sua densidade social e de sua legitimidade popular (Vitullo 2001, 59). Outra voz que critica o excessivo formalismo do paradigma dominante é a de Tedesco (2004). Assim como Vitullo (2001), a autora critica a análise feita com base nos

escritos de O’Donnell sobre a redemocratização da América Latina, e sugere explicitamente que novas análises sejam feitas não mais tendo como objeto de estudo a democracia como regime, e sim o estado como rincipal ator em qualquer tipo de regime. O objetivo da autora é fazer uma breve análise sobre alguns artigos que tratam da temática transição e consolidação democrática, tema debatido em um painel da Conferência Anual da Sociedade de Estudos Latino-Americanos do Reino Unido ocorrida em 2001. Ao mesmo tempo, pretende levantar um pequeno debate acerca da necessidade de se estudar o papel do estado nesses mesmos processos, bem como a função da classe política em construir um estado democrático e não apenas uma sociedade democrática. Segundo ela, nas décadas de 1970 e 1980 diversos autores buscaram fazer análises sobre os processos, respectivamente, de transição e de consolidação da democracia nos países latino- americanos. Os trabalhos referentes à transição basearam-se nas idéias de criação e/ou reforma de instituições, no papel das elites políticas e na construção de pactos, enquanto aqueles referentes à consolidação têm sua atenção voltada ao papel da sociedade civil nesse processo, bem como leva em consideração os fatores econômicos que influenciam o mesmo (Tedesco 2004, 31). Levando-se em consideração os trabalhos do segundo tipo, a democracia é, nas palavras de Przeworski (1994) (citado em Tedesco 2004, 31), uma “incerteza organizada”, onde os atores não sabem o que pode acontecer; ou então sabem o que é possível acontecer, mas não sabem como isso se sucederá; ou, ainda, sabem que é possível e como pode acontecer, mas não o quê. No entanto, Tedesco levanta a seguinte questão: a democracia na América Latina não é uma “incerteza organizada”, já que o estado não é capaz de manter a igualdade dos indivíduos perante a lei e, conseqüentemente, alguns são beneficiados em detrimento de outros – o que não garante a incerteza para todos, já que alguns têm certeza de como as coisas funcionarão para si próprios. A autora cita novamente Przeworski, quando este autor diz que “(...) o passo decisivo em direção à democracia é a devolução do poder de um grupo de pessoas para um conjunto de regras”, o que, segundo Tedesco, não aconteceu na América Latina, já que algumas pessoas se utilizam de contatos pessoais com membros da classe política, por exemplo, para obterem benefícios para si mesmas. Não há, nos estados latino-americanos, um balanço entre “perdas e ganhos”, balanço este fundamental à vida democrática, já que o estado não conseguiu garantir a igualdade de todos perante a lei. No âmbito econômico, as reformas instauradas nos países da região foram criadas por tecnocratas “de cima para baixo”, sem a devida participação popular. O argumento utilizado para esse isolamento foi a idéia de que o envolvimento popular em um momento de transição poderia ser ruim internamente, com o retorno dos militares ao

poder, e também externamente, com o perigo de fuga de capitais internacionais que, à época, eram fundamentais para a manutenção das reformas. “O discurso do governo era de que ‘não havia alternativas às reformas’. Ao tentar isolar a implementação das reformas, os governos tenderam a tratar questões políticas, econômicas e sociais como compartimentos separados” (Tedesco 2004, 32). Como conseqüência desse tratamento diferenciado dado a essas três esferas, “a classe política tentou ignorar as conseqüências políticas e sociais das reformas econômicas” (Tedesco 2004, 32) ao acreditar que as mesmas poderiam ser divididas em duas: primeiramente, aplicar-seiam reformas macroestruturais, cujo objetivo era atingir estabilidade, e em seguida seriam aplicadas reformas na microeconomia, juntamente com alterações políticas institucionais que garantiriam o bom funcionamento político, econômico e social do país. “Essa concepção de dois conjuntos diferentes de reformas a serem aplicados sequencialmente foi errônea” (Tedesco 2004, 33). Segundo ela, essa concepção estava errada, em primeiro lugar, porque ambas as reformas buscavam alterar as relações sociais e as instituições estatais, e por isso deveriam ser aplicadas ao mesmo tempo. Em segundo lugar, essa visão é otimista por acreditar que as reformas que viessem em segundo lugar não entrariam em conflito com as que vieram primeiro: “esse argumento pressupõe que a implementação das reformas de primeira geração obteve sucesso e ignorou os conflitos que poderiam ter surgido como conseqüência das reformas” (Tedesco 2004, 33). Essa diferença temporal entre a aplicação de reformas econômicas e reformas estruturais no estado trouxe como conseqüência a inadequação deste último em lidar com os novos problemas advindos da reforma econômica, já que o estado estava “acostumado” a lidar com um tipo de problema e, de repente, se viu obrigado a utilizar suas antigas estruturas para solucionar novos problemas advindos da reforma econômica, o que, por sua vez, enfraqueceu ainda mais o novo, porém já frágil, estado democrático. “A idéia de seqüência – tratando primeiro com os militares, depois com a economia e finalmente com a qualidade da democracia – negligenciou o papel necessário do estado-instituição na organização das vidas tanto pública quanto privada dos grupos e dos cidadãos individuais” (Tedesco 2004, 33). Durante as reformas econômicas, o estado foi reduzido, ao invés de ser reorganizado; a conseqüência lógica disso foi a diminuição da capacidade estatal de exercer as funções que vinha exercendo anteriormente, no que concerne à população. O estado intervencionista passou a ser associado ao autoritarismo, e devia, portanto, ser jogado fora e substituído por um novo modelo estatal. Como conseqüência, o estado foi incapaz de satisfazer as demandas da população, o que contribuiu ainda mais para o aumento da desigualdade social e da concentração de renda nas mãos de poucos. A democracia, nesse sentido, foi relegada a segundo plano, como um instrumento para obtenção de dirigentes, em estilo schumpeteriano, já que os indivíduos estariam mais preocupados com seus problemas econômicos que políticos.

Tedesco parte, então, em busca de algo mais que o modelo formal de democracia. Para ela, “sem democracia formal, a possibilidade de transformar as estruturas políticas, econômicas e sociais é limitada. No entanto, a democracia política não pode coexistir em longo prazo com o autoritarismo social, a exclusão econômica e com restrições à liberdade civil” (2004, 35, grifos no original). E para ela, a única forma de rever o potencial de transformação social do qual a democracia é capaz é analisar não a democracia propriamente dita, mas o papel do estado na formação da sociedade, já que esses dois conceitos – democracia e estado – não são os “dois lados da mesma moeda”. Depois de vinte anos estudando as transições democráticas, a consolidação democrática e a qualidade da democracia, parece apropriado avançar e focalizar a atenção no estado. Isso nos oferece maneiras de entender as estruturas sociais, políticas e econômicas sobre as quais a democracia, como um regime político, é proclamada. (...) A chave [para a solução do problema] não é uma democracia de baixa qualidade per se, e sim as desigualdades das relações sociais que estão refletidas no estado-instituição e nos valores que prevalecem na sociedade. A democracia não pode ser aprofundada se o estado-instituição ainda reflete relações sociais nãodemocráticas. O debate deve reconhecer as diferenças entre os conceitos de regime democrático e de estado democrático. (...) Assim, é necessário mover a atenção do debate sobre a democracia em direção ao estado, já que esse último guarda em si, mais profundamente, as relações sociais em determinada época e território, que podem ser governadas, ou não, sob um conjunto de regras democráticas (Tedesco 2004, 35, grifos no original). O estado só irá ser democrático quando a democracia estiver inserida em suas estruturas internas, e quando o estado garantir, acima de tudo e efetivamente, a igualdade dos cidadãos frente à lei. As relações sociais também devem ser democráticas, e apenas a igualdade substantiva garantida pelo estado poderá fazer, segundo Tedesco, com que a democracia exista de fato, e não apenas de direito. Para ela o estado, na forma como se encontra atualmente, combina autoritarismo social, exclusão econômica e liberdades civis restritas com democracia política, ou seja, não é um estado verdadeiramente democrático (Tedesco 2004, 36). Devido a reformas mal-feitas, conforme explicado anteriormente, o estado atual na América Latina mantém a mesma estrutura dos períodos pré-autoritário e autoritário, onde a distribuição desigual de renda é refletida na fraca participação política da população e onde o estado não é efetivo em suas funções, as quais, por sua vez, irão dar base de apoio ao regime democrático. Ainda, vale destacar que o estado atual é mal-visto na América Latina justamente por ter se associado às reformas econômicas: deu-se ênfase exagerada à reforma econômica e associou-se a mesma à democracia.

Conseqüentemente, se a economia vai bem, a democracia é bem-vista; caso contrário, a democracia não serve. Isso é resultado de um regime democrático, mas não um estado democrático; daí a necessidade de se estudar, segundo Tedesco (2004, 36), se as estruturas estatais são (ou foram) democratizadas, e não apenas se o regime é democrático ou não.

Revisão das relações entre capitalismo e estado Em consonância com a aceitação do estado como principal objeto de estudo, Stamatis (2001) levanta um debate sobre os modelos de democracia liberal, associativa e deliberativa, afirmando que todos estes modelos se restringem a análises tendo como base o âmbito político. As relações econômicas entre os indivíduos que formam determinada sociedade não são estudadas, o que, para o autor, é um ponto negativo em tais análises. Por fim, Stamatis afirma que a democracia só existirá se as relações econômicas forem “sociais”, ou seja, se as próprias relações econômicas também forem democratizadas, e não apenas o regime político. O autor pretende fazer uma discussão sobre três vertentes da teoria democrática contemporânea, quais sejam, a democracia liberal, a democracia deliberativa e a democracia associativa. Ele argumenta que, por um lado, a democracia deliberativa traz soluções para alguns problemas encontrados na democracia liberal, mas por outro também se mantém presa a pré-requisitos formais. Nesse contexto, o modelo de democracia associativa traria soluções a esse engessamento da democracia deliberativa, mas também esse modelo não consegue trazer boas soluções à questão da democracia contemporânea. Para o autor, “(...) um novo impulso só pode ser dado à democracia se a deliberação democrática penetrar o campo atualmente fechado da produção capitalista e da exploração social, lugares onde a desigualdade social e a verdadeira servidão são perpetuamente produzidas” (Stamatis 2001, 390). Para atingir tal objetivo, Stamatis inicia seu texto afirmando que a democracia deliberativa parece ser a resposta necessária às falhas existentes na democracia liberal. A democracia deliberativa tem como característica básica a legitimação do poder estatal por meio da formação democrática de vontades e de tomada de decisões, onde as pessoas participam diretamente nesses processos por meio de suas liberdades políticas em associação a outros mecanismos como a soberania popular, o parlamentarismo, o exercício legal do poder estatal e liberdades civis. A democracia deliberativa contribuiria, também, para o fortalecimento de uma teoria da justiça mais abrangente (Stamatis 2001, 390). Por outro lado, Stamatis afirma que uma verdadeira teoria da democracia não pode se basear apenas em princípios formais que garantam a possibilidade de participação: é

necessário que essa teoria busque uma efetiva “(...) igualdade, liberdade e solidariedade para todas as pessoas que possam estar envolvidas em processos de justificação do que tem de ser feito” (2001, 391). Uma verdadeira teoria da democracia deve buscar garantir os pré-requisitos básicos que façam com que a deliberação seja substantiva, de forma a tornar a deliberação livre de impedimentos de quaisquer ordens, e a solução que o autor vê é a “(...) diminuição das desigualdades materiais existentes, especialmente aquelas que são intrinsecamente ligadas à exploração social e à dominação” (Stamatis 2001, 391) dos que têm menos pelos que têm mais poder aquisitivo. Stamatis afirma que o problema para a democracia contemporânea está na predominância de interesses particulares sendo representados pelos centros de poder econômico. Nesse sentido, as democracias se tornaram incapazes de exprimir os interesses particulares dos indivíduos por meio de interesses gerais sendo postos em prática por aqueles que foram escolhidos por meio de eleições, e a solução proposta para tal problema – de se recriar um novo contrato social – falhou e não trouxe resultados significativos para a teoria democrática contemporânea (Stamatis 2001, 391). Essa situação é agravada devido às estratégias neoliberais postas em prática pelos governos de todo o mundo no momento atual, onde “grupos poderosos podem manipular o jogo político tanto por ameaças quanto por incentivos aos representantes, controlando assim os resultados das disputas eleitorais (...)”, com a conseqüente transformação dos cidadãos em indivíduos sem direitos em um verdadeiro “(...) absolutismo de mercado” (Stamatis 2001, 392). Por outro lado, as teorias contratualistas que buscam um novo modelo democrático tendo como base a justiça são incapazes de atingir seus objetivos devido à confusa situação social atual, já que se tornaram teorias comuns por não darem atenção a pré-requisitos fundamentais para a garantia da democracia: essas teorias são incapazes de buscar uma verdadeira justiça social por terem como base as atuais estruturas capitalistas que criam e perpetuam a desigualdade entre os indivíduos. Uma teoria da democracia que busque ser válida deve refletir sobre as desigualdades estruturais geradas pelo sistema capitalista e deve tentar solucionar tais desigualdades; caso contrário, poderá até defender a igualdade, a liberdade e a diminuição das desigualdades sociais, mas será algo meramente superficial e que não atingirá os objetivos a que se propôs (Stamatis 2001, 392-3). Ao falar sobre a democracia deliberativa como uma possibilidade teórico-prática para solucionar tais problemas, Stamatis afirma que a mesma também se prende a concepções formais de participação política. Para ele, a democracia deliberativa garante formalmente a participação de todos, garante a possibilidade do discurso individual e faz com que os indivíduos tenham chance de refletir sobre suas convicções e opiniões em confronto com as convicções e opiniões de outros, o que faz com que as decisões sejam tomadas de acordo com as deliberações com que todos

concordam. A legitimidade democrática é garantida na democracia deliberativa devido ao fato de as instituições colocarem em prática o que foi livremente decidido por aqueles que deliberaram e tomaram determinada decisão. No entanto, mesmo na democracia deliberativa há uma falta de legitimidade democrática porque os indivíduos não são substantivamente iguais, e conseqüentemente a qualidade das decisões tomadas não será a mesma para todos os participantes da deliberação: “desigualdades materiais fazem surgir desigualdades políticas. (...) Essa é a razão pela qual as relações capitalistas de produção e de troca servem para minar a igualdade requerida nas próprias arenas deliberativas” (Stamatis 2001, 394). Vem à tona, dessa maneira, a relação conflituosa entre democracia e capitalismo. (...) A democracia política sob o capitalismo pode obter algum grau adequado de legitimação substantiva apenas se seu funcionamento conseguir, em longo prazo, diminuir com sucesso as desigualdades materiais entre os cidadãos. Mas se torna evidente que a perspectiva de um controle democrático sobre o capitalismo está longe de ser social ou moralmente neutro. Ele é dependente de uma concepção básica sobre o bem público, que não é compartilhada de maneira alguma por teorias morais e abrangentes como aquelas do individualismo aquisitivo (Stamatis 2001, 394, grifos no original). Dessa forma, para Stamatis o marxismo se torna a única teoria social crítica que pode auxiliar na criação de uma verdadeira teoria da justiça e da democracia. O autor afirma que o marxismo é a única teoria que leva em consideração as condições substantivas de toda a reprodução da sociedade, e que é a única maneira de se compreender corretamente “(...) a complexa realidade da divisão capitalista atual do trabalho social (...)”, e que sem essa compreensão é impossível se criar uma teoria democrática contemporânea abrangente e correta (Stamatis 2001, 395). Stamatis afirma que uma possível resposta dos teóricos da democracia deliberativa às críticas feitas a esse modelo seria a de que a base para o funcionamento democrático de uma sociedade é a autonomia do indivíduo, ou seja, o indivíduo ser livre para agir de acordo com sua própria consciência, ação essa permitida pela estrutura do arranjo deliberativo. Além disso, a igualdade substantiva dos indivíduos seria atingida, de acordo com os teóricos da democracia deliberativa, com o passar do tempo: “(...) os discursos práticos têm um caráter auto-corretivo, ou seja, eles podem ter um impacto pedagógico, em longo prazo, sobre os participantes, o que, por sua vez, melhoraria a própria democracia” (Stamatis 2001, 396). A idéia é de que os participantes, com o passar do tempo, saberão como se portar, como se comportar, como argumentar e como chegar a melhores decisões devido à experiência acumulada durante o processo, tendo como resultado a possibilidade de ter as soluções aprovadas por pessoas as mais

diferentes. Além disso, as pessoas se tornariam capazes de enxergar além de seus próprios interesses e objetivos pessoais, participando na tomada de decisão de maneira mais abrangente, coletiva e com uma maior visão de longo prazo do que antes. O autor critica tal posição dizendo que o ato de aceitar uma deliberação não traz consigo a idéia de que a mesma é racional e correta; o máximo que se pode tirar de tal aceitação é que a deliberação é razoável para todos os participantes do processo: a deliberação “não pode nem mesmo alegar uma suposição de correção”, ou seja, sua aceitação não significa que a decisão é correta para todos, e sim que foi considerada como razoável pela maioria e, por isso, tomada. “(...) O valor ou a correção de um julgamento prático não é medido unicamente pelo consenso que ele pode obter” (Stamatis 2001, 397). No âmbito da democracia deliberativa, é necessário que os cidadãos tenham real igualdade substantiva – voltando o foco do debate para as relações entre democracia e capitalismo – porque só assim a decisão tomada poderá ser considerada correta. Apenas quando todos os indivíduos que participam da deliberação concordarem com determinada proposição de determinado indivíduo é que a mesma poderá ser considerada válida para todos, e não apenas um desejo individual, particular; mais que isso, essa aceitação dessa proposição pelos demais deve ser tomada tendo como base a igualdade substantiva porque apenas dessa forma todos poderão corretamente julgar essa proposição feita inicialmente pelo indivíduo. Stamatis critica, portanto, a idéia de que basta um aparato institucional que permita a deliberação, o debate e a tomada de decisões coletiva para que soluções ideais sejam propostas, aceitas e postas em prática; para além da institucionalização dessa possibilidade, que é fundamental, a igualdade substantiva entre os indivíduos deve também ser levada em consideração para que todos possam, da melhor maneira possível, chegar à melhor solução para todos (Stamatis 2001, 397-8). Stamatis passa, então, a falar sobre a democracia associativa. Ele afirma que é favorável a uma reconstrução da teoria democrática contemporânea nos moldes da democracia associativa (modelo esse não explicitado por ele em seu texto), mas discorda em dois pontos nos quais essa teoria trabalha as relações entre democracia e capitalismo. Em relação ao primeiro ponto, Stamatis afirma que o capitalismo é baseado em uma distribuição desigual dos recursos, transgredindo a igualdade moral que deveria existir entre as pessoas do mundo inteiro. “A transformação desse sistema corresponde a um real interesse universal da humanidade, em oposição à tendência interesseira dos donos do capital de acumulação por meio da exploração do trabalho alheio” (Stamatis

2001, 399). O autor acredita que em qualquer sociedade deva haver um excedente material, tecnológico e humano para que essa mesma sociedade possa produzir bens e serviços que satisfaçam as demandas de sua população. O que não pode acontecer, entretanto, é que esse excedente fique nas mãos de poucos, que acabam possuindo privilégios administrativos sobre o mesmo; ao contrário, esse excedente deve ser administrado por processos deliberativos de tomada de decisão para saber qual rumo esse excedente irá tomar. Mais precisamente, podemos imaginar a reprodução da vida social como um problema político par excellence, dentro do campo de ação da vontade geral, de forma que todos os assuntos de interesse comum sejam submetidos à determinação coletiva. Se por um momento nós ousarmos meditar sobre a questão por inteiro, então já começaremos a reivindicar coisas além do capitalismo existente. Começaremos a fazer demandas para que a soberania popular penetre no – até agora impenetrável – domínio da produção social e da exploração humana. Começaremos a pensar em uma democracia econômica e social, que vai além da democracia representativa (Stamatis 2001, 400, grifos no original). Segundo o autor, essas reivindicações estão ausentes das teorias atuais de democracia liberal, deliberativa e associativa. “Como conseqüência, as demandas de igualdade nelas são deixadas para trás, no nível da uma idéia desejável. (...) Nessas teorias, de regra, a divisão impessoal do trabalho social consiste em uma parte não consciente e não racional que constitui a vida social” (Stamatis 2001, 401). O segundo ponto de contraste que Stamatis levanta refere-se à idéia de que o estado de bem-estar social, para os associativistas, nada poderia fazer além de gerenciar burocraticamente as sociedades ocidentais, levando à expansão administrativa do estado com conseqüente concentração de poder estatal e inevitável ineficiência. Essa visão associativista, ainda segundo o autor, defende também a idéia de que a atual estrutura capitalista é legítima e que não há como contestá-la: “nessa concepção, a pré-condição intelectual e a predisposição ética de trazer para o debate novamente a ‘questão social’ desaparece (...)”(Stamatis 2001, 401), e o autor acredita que essa tendência a aceitar a atual estrutura social como dada e imutável é decorrente da atual crítica neoliberal ao estado de bem-estar social. Nesse sentido, as associações seriam estruturas onde vários interesses sociais se misturam e que fariam a ligação entre o estado e a economia de mercado, mas que falham em seus objetivos porque dependem financeiramente ou do estado ou do setor privado da economia, sendo que suas ações seriam ou influenciadas pelas vontades dos financiadores ou, em uma situação ainda pior, não seriam financiadas nem por um nem pelo outro.

De um ponto de vista moral, isso resulta novamente em uma socialização das pessoas por meio dos mercados e a transformação da vida humana em commodities. Em nível institucional, isso faz com que as sociedades do capitalismo tardio santifiquem novamente os interesses particulares e privados (volontés particulières) como novas formas de regulação social, separadamente de e talvez contra os interesses públicos e gerais de dadas sociedades (volonté générale) (Stamatis 2001, 402, grifos no original). A conclusão à qual o autor chega é a de que o modelo de democracia associativa acaba legitimando a ordem já estabelecida e apoiando a reorganização neoliberal da sociedade mundial, ao mesmo tempo em que se afasta da tradição do bem-estar social que, para Stamatis, é a única que pode fazer com que a democracia substantiva seja obtida. Também a democracia deliberativa é insuficiente, ainda que tenha seus méritos, como a possibilidade dada aos indivíduos de exprimirem suas opiniões e tentarem melhorar suas próprias condições por meio de debates e de troca intensiva de idéias; “a democracia deliberativa, em oposição ao pluralismo competitivo, destaca a racionalidade comunicativa do fórum, em comparação à racionalidade estratégica do mercado”. No entanto, “enquanto a deliberação, a vontade das pessoas, ficar de fora da tomada de decisões na economia, bem como na política, os méritos da democracia deliberativa continuam, em parte, inertes ou até mesmo em suspenso” (Stamatis 2001, 404, grifos no original). __________ Notas: 1 “Freedom House, uma organização sem fins lucrativos e apartidária, é uma voz clara

pela democracia e pela liberdade ao redor do mundo. Por meio de um vasto conjunto de programas e publicações internacionais, Freedom House está trabalhando para avançar a notável expansão mundial da liberdade política e econômica”. Descrição obtida no próprio site: www.freedomhouse.org. 2 Caracterí stica esta que tera continuidade posteriormente, ja no perí odo politicamente

́ ́ democrático. Esta idéia de “critérios neutros e objetivos”, em associação à busca da eficiência administrativa, é uma das bases da tão propagada “reforma do estado” durante as décadas de 1980 e 1990 nos países da América Latina. 3

Definido como um sistema com alternância de poder entre grupos realmente diferentes; tal alternância, no entanto, é ineficaz e não corresponde ao modelo clássico de pluralismo.

4 Aqui, um grupo polí tico, seja um movimento social, um partido, uma “famí lia” ou

um único líder, domina o sistema de tal maneira que parece haver poucas possibilidades de alteração do poder em um futuro próximo. 5 Fato consumado em 2004.

Considerações sobre os conceitos de estado e de democracia para os dois paradigmas da ciência política contemporânea O objetivo desse capítulo é fazer um debate tendo como base as informações apresentadas nos dois capítulos anteriores. Como vimos, o Capítulo Um apresenta uma visão geral sobre as teorias e idéias constantes nos dois paradigmas da ciência política contemporânea. No Capítulo Dois, procuramos mostrar o que tem sido feito nas áreas de democracia, democratização e estado, por meio da apresentação de resumos de artigos publicados em revistas acadêmicas. Nesse Capítulo Três, pretendemos relacionar as informações disponibilizadas nos dois Capítulos anteriores e mostrar algumas possíveis soluções para o problema suscitado entre os conceitos de estado e democracia e a forma como os mesmos são vistos pelos dois paradigmas. Relacionando-se as teorias apresentadas no Capítulo Um com os artigos mostrados no Capítulo Dois, surgem alguns pontos que podem ser destacados em relação ao objetivo desse trabalho. Nesse Capítulo, iremos fazer comentários sobre dois desses pontos, que consideramos fundamentais para a dissertação: as relações entre as idéias de liberdade e de igualdade na teoria política contemporânea e o enfoque dado aos conceitos de estado e de democracia por ambos os paradigmas. Antes, contudo, faremos um breve retrospecto sobre as teorias marxistas sobre o estado na atualidade.

Teoria marxista contemporânea sobre o estado Existem duas correntes principais no marxismo contemporâneo, os instrumentalistas e os funcionalistas. O instrumentalismo marxista clássico acreditava que o estado é um instrumento que está nas mãos da classe burguesa e, portanto, age em benefício desta mesma classe. “Os instrumentalistas modernos tiveram como base as idéias de Kautsky de que a classe capitalista controla mas não governa, se contentando em controlar os sucessivos governos (...)”(Dunleavy & O’Leary 1987, 237) que detêm o poder do estado. Além disso, o marxismo moderno toma por base algumas idéias da teoria das elites ao afirmar que “(...) os capitalistas, burocratas estatais e líderes políticos estão unificados em um único grupo coeso pela sua origem social comum, estilos de vida e valores semelhantes, e pela existência de numerosas redes e fóruns onde estratégias coordenadas para [a criação de] políticas públicas são definidas”

(Dunleavy & O’Leary 1987, 237). A própria burocracia estatal gerencia o estado de maneira capitalista, e naqueles países onde a esquerda atinge o poder as dificuldades para governar são muito grandes, já que “a orientação preponderante e absoluta do estado na sociedade capitalista é em direção à contenção da pressão vinda de baixo” (Dunleavy & O’Leary 1987, 238). Os marxistas instrumentalistas modernos concordam com Marx e dão pouca atenção às instituições democráticas da democracia liberal, afirmando que as mesmas são apenas “de fachada” para garantir e legitimar a dominação da classe proletária pela classe burguesa: “o [poder] Executivo americano é majoritariamente ocupado por membros da classe superior, [e] o Congresso serve, no máximo, como um lugar no qual os membros dissidentes da classe superior podem exprimir suas queixas” (Dunleavy & O’Leary 1987, 239). As elites administrativas são vistas como funcionários que executam as vontades e desejos da classe capitalista, e a burocracia como um todo é vista de maneira unificada: Qualquer fragmentação aparente é um estratagema da classe dominante criado para dividir as classes exploradas que desenvolvem consciência revolucionária ou reformista. (...) Governos locais ou regionais servem como os comitês Executivos para gerenciar os assuntos comuns da burguesia local ou regional (Dunleavy & O’Leary 1987, 239). O modelo instrumentalista para o marxismo moderno corresponde ao modelo neutro para o marxismo clássico. Marx e Engels sugeriram que (...) se as forças das classes sociais fossem balanceadas durante algum tempo, então a burocracia estatal e um forte líder político-militar poderiam intervir para impor políticas de estabilização que não fossem controladas [diretamente] pelo capital, ainda que elas pudessem ter como objetivo a manutenção da predominância capitalista na vida econômica (Dunleavy & O’Leary 1987, 243). Os marxistas modernos que aderem a esse modelo, por sua vez, acreditam que esse fenômeno é muito mais longo do que Marx e Engels achavam. A autonomia do estado em relação às classes sociais existe, mas a estrutura do estado é tal que este beneficiaria constantemente a classe capitalista. Ou seja: se o estado beneficia alguns em detrimento de outros, não pode garantir nem a igualdade, nem a liberdade individual. Ao mesmo tempo, cabe ao estado garantir o apoio da pequena burguesia e da própria classe trabalhadora ao status quo, de maneira a garantir a si próprio como entidade autônoma: o estado necessita do apoio de todas as classes sociais, desde a classe burguesa até a classe trabalhadora, e tal apoio é garantido com a ilusão de

eleições livres e regulares, onde o indivíduo influenciaria as decisões do estado. No entanto, por ter uma estrutura capitalista o resultado de suas ações tenderia a beneficiar com freqüência a classe burguesa. Manter essa configuração requer que o aparelho estatal opere com um considerável grau de autonomia em relação à fração de classe dominante, e que os líderes que juntam e coordenam o “bloco de poder” dominante devem aparecer no palco político com atores independentes. Mas essa autonomia [liberdade] das agências é relativa, já que em última instância os requerimentos do capitalismo como um sistema econômico irão sempre prevalecer sobre qualquer outra política estatal [que seja contrária a esse sistema] (Dunleavy & O’Leary 1987, 243, grifos no original). A coordenação do estado capitalista é feita pelos altos escalões administrativos do governo, em associação com a própria burocracia estatal. Esta, por meio de arranjos organizacionais e constitucionais, filtra os interesses dos capitalistas em relação aos interesses do estado, pondo em prática apenas os interesses burgueses que também sejam interessantes para o estado. A separação institucional entre estado e burguesia faz com que o estado pareça ser autônomo em relação a todas as classes sociais e, ao mesmo tempo, acessível não apenas à classe burguesa, mas também à classe trabalhadora. “O estado deve parecer ser neutro em relação às classes, para melhor preservar os interesses de longo prazo da classe capitalista” (Dunleavy & O’Leary 1987, 245). Os próprios trabalhadores do estado dependem do sistema capitalista e trabalham para que o mesmo seja continuamente reproduzido: isto é claro se pensarmos que o estado depende de recursos advindos do sistema capitalista para sobreviver e que o funcionário estatal precisa da existência do estado para ter onde trabalhar. Ao mesmo tempo, a burocracia estatal tenta criar suas políticas públicas de forma que as mesmas tragam benefícios a todas as classes socais, ainda que se utilizando o sistema capitalista para atingir tal objetivo. A distribuição coletiva dos benefícios é fundamental para se evitar qualquer tipo de reforma mais profunda, ou até mesmo revolução, que acabe com o sistema capitalista e, conseqüentemente, com o estado e com a própria burocracia. O modelo funcionalista moderno clássico defende a idéia de que o estado e a burocracia são formados pela necessidade de manutenção do sistema capitalista. Mudanças na base econômica da sociedade determinam alterações na superestrutura política e legal do estado. “Os funcionalistas modernos mantêm a ênfase de que a intervenção estatal é mais bem explicada por uma lógica impessoal do desenvolvimento do capitalismo avançado”, e para eles a burocracia estatal

simplesmente preenche lugares vazios: seu comportamento é largamente prédeterminado por forças estruturais ligadas aos imperativos funcionais do modo de produção capitalista (Dunleavy & O’Leary 1987, 249-50). A organização do estado irá variar de acordo com a melhor função necessária ao capital em determinado momento, e o estado poderá ser conquistado pelas classes trabalhadoras apenas se o mesmo não executar suas funções específicas que garantam a ordem e o domínio político e ideológico por parte da classe capitalista. Dentre as teorias funcionalistas, a que mais se destaca é a teoria estruturalista de Louis Althusser e de Nicos Poulantzas. De acordo com os estruturalistas, “(...) o estado é visto essencialmente como um fator de coesão na sociedade, com funções para organizar a classe dominante e para desorganizar e subordinar a classe [trabalhadora] pelo uso de aparelhos tanto ideológicos quanto repressivos do estado” (Dunleavy & O’Leary 1987, 254). Os aparelhos repressivos são o exército e a polícia, ao passo que os aparelhos ideológicos são aqueles, tais como igrejas e escolas, que exercem dominação ideológica na sociedade e garantem a estabilidade da mesma. Ambos aparelhos irão criar as condições sociais, políticas, econômicas, culturais e militares que garantem o domínio da classe burguesa sobre determinada sociedade por meio da criação de pontos de vista, idéias e comportamentos favoráveis ao sistema capitalista por parte da classe trabalhadora, criando uma “ditadura da burguesia” que não se mostra como tal: “a democracia liberal, a vida privada, os direitos civis e os grupos de interesse são todos simplesmente construções ideológicas designadas a pacificar (...)” a classe trabalhadora (Dunleavy & O’Leary 1987, 255). Louis Althusser, francês que escreveu durante a década de 60, não acreditava na capacidade do indivíduo de ser agente da história. Para este autor, o indivíduo é apenas um “apoio” das relações estruturais que o estado reproduz na sociedade: “O indivíduo é destituído de toda liberdade, exceto a de aceitar sua submissão” (Carnoy 1988, 122). Althusser afirma que todas as pessoas da sociedade possuem uma “função” e estão irremediavelmente determinadas pela mesma. Porém, Althusser não defende o determinismo social dos indivíduos. Na verdade, esse determinismo é conseqüência da reprodução das estruturas sociais feitas pelo estado – como se não houvesse outra saída para os indivíduos além de se submeterem a tais estruturas. Além disso, é importante destacar a ênfase de Althusser no que ele chama de “aparelhos ideológicos do estado”: assim, as estruturas sociais seriam reproduzidas não apenas por meio do aparelho repressivo do estado (como polícia e exército, que detêm o monopólio do uso da força física), mas também – e talvez até mesmo principalmente – pelas escolas, partidos políticos, igreja, sistema Judiciário, etc. Com essa idéia, Althusser admite que a luta de classes não acontece apenas no estrato econômico da sociedade (na infra-estrutura), mas também no campo político

propriamente dito e, principalmente, no campo da ideologia, já que esta se concretiza materialmente – a ideologia torna possível a existência de um aparelho ideológico (as escolas, principalmente) para a sua própria reprodução. Os aparelhos ideológicos do estado – com ênfase no sistema educacional – ajudam a difundir a ideologia burguesa. Porém, tal difusão apenas acontecerá a partir do momento em que a classe burguesa se impuser como classe dominante, detendo em suas mãos não apenas os aparelhos ideológicos do estado, mas também os aparelhos repressivos do estado. Assim, a classe burguesa deve dominar todos os estratos da sociedade – a parte pública, representada pelos aparelhos repressivos, e a parte privada, representada pelos aparelhos ideológicos do estado, para poder manter sua dominação. Para acabar com a dominação de classe, Althusser irá defender o controle, por parte da classe dominada, dos aparelhos ideológicos do estado, para somente posteriormente partir para uma luta em direção á tomada do aparelho repressivo do estado. Vale destacar, entretanto, o seguinte ponto: Althusser separa o aparelho de estado do poder de estado. O objeto de disputa é o poder do estado. O aparelho do estado pode continuar, mesmo que os operários atinjam o poder. Quem detém o poder do estado usa o aparelho do estado em benefício de sua classe – aparelho este formado pelos meios repressivos e ideológicos que a classe dominante usa para se manter no poder. Daí a necessidade premente, para os proletários, de terem em suas mãos não apenas o poder do estado, mas também os aparelhos do estado – principalmente os ideológicos – para se evitar uma possível contra-revolução por parte da classe capitalista. Já com Poulantzas “(...) descobrimos um estado que se insere nas e se define pelas relações de classe (as ‘estruturas’ da sociedade capitalista), ao mesmo tempo em que é um fator de coesão e regulamentação do sistema social no qual funciona” (Carnoy 1988, 129). Carnoy divide a teoria de Poulantzas em duas partes: a primeira refere-se ao Poulantzas do livro Poder Polí tico e Classes Sociais (1968), mais estruturalista, onde o estado é moldado pelas relações de classe, é relacionado diretamente com o modo de produção e, para ser um estado de classe, deve ser bastante independente da luta de classes; e a segunda refere-se ao Poulantzas do livro O estado, o poder e o socialismo, de 1978, onde Poulantzas reformula o conceito de estado como sendo criado pela luta de classes e relativiza a relação entre este e as classes sociais de acordo com o desenvolvimento capitalista em que determinada sociedade se encontre. No início de seus trabalhos, Poulantzas via a alienação do trabalhador como conseqüência do aparato jurídico-ideológico criado pela classe capitalista. Ou seja: a alienação do trabalhador – conceito fundamental em Marx e que, para este, é parte da

infra-estrutura – era resultado, para Poulantzas, não da própria infra-estrutura, mas sim da atuação da superestrutura. Por outro lado, não há como afirmar que exista apenas uma classe burguesa, uma burguesia única e unida em torno do mesmo objetivo. A classe burguesa é composta de diferentes estratos, de diferentes burguesias, e o estado atuará em relação à classe trabalhadora com o objetivo de beneficiar a fração da burguesia que está no poder naquele determinado momento. Ao mesmo tempo, o estado tem de se mostrar, para as classes dominadas, como uma entidade autônoma, que não sofre influência da classe capitalista e que está agindo em benefício de toda a sociedade. Ora, o próprio termo “estruturalista” surge em função disso: o estado nada mais é do que a “sociedade institucionalizada”, ou seja, o estado é uma organização política que reflete as relações sociais existentes em determinada sociedade. Por ser um reflexo, o estado irá, automaticamente, reproduzir as relações de dominação e de exploração que já se encontravam presentes antes de sua criação. Em outras palavras: em um primeiro momento, a sociedade se encontra dividida entre dominadores e dominados (não necessariamente em termos capitalistas); o estado surge como forma de organizar ou gerenciar, esta mesma sociedade; porém, ao ser criado, o estado refletirá a situação inicial de desigualdade em sua própria estrutura. Assim, posteriormente, mesmo que o estado seja autônomo, ou seja, mesmo que o estado não seja diretamente usado nem influenciado pela classe capitalista, ele beneficiaria intrínseca e automaticamente esta classe, já que sua própria estrutura é baseada em desigualdades sociais. Assim, ao funcionar, o estado já estaria, automaticamente, beneficiando a classe capitalista. A luta de classes, portanto, deveria se dar não na infra-estrutura, mas sim na própria superestrutura, no próprio estado, para que o mesmo não reproduzisse automaticamente a estrutura social presente em si próprio – estrutura que se baseia na desigualdade entre as duas principais classes sociais. Essa característica de luta de classes dentro do próprio aparelho estatal – ou seja, também na superestrutura, e não apenas na infra-estrutura da sociedade – fica mais clara na obra da segunda fase de Poulantzas. Aqui, o estado não reproduz automaticamente, inconscientemente, a separação dos indivíduos em classes sociais; ele incorpora a luta de classes em si. Isto significa dizer que o estado passa a atuar, conscientemente, com o objetivo de reproduzir as diferenças existentes entre as duas principais classes sociais e de, conseqüentemente, beneficiar a classe capitalista. Desta forma, torna-se necessária a luta de classes no interior do aparelho estatal, e não apenas em relação aos meios de produção. O estado, para os marxistas modernos, pode sofrer quatro tipos de crises principais: econômica, de racionalidade, de legitimidade e de motivação. A crise econômica clássica se refere ao declínio das taxas de lucro dos capitalistas. Com a queda das taxas de lucro, os capitalistas tenderiam a investir cada vez menos, o que levaria ao

desemprego e a uma possível consciência de classe por parte dos trabalhadores desempregados que resultaria na revolução proletária, objetivando destruir a infraestrutura atual, mudar o sistema e melhorar o nível de vida dos trabalhadores com uma nova organização social. Já as crises econômicas modernas são costumeiramente associadas à teoria do imperialismo. O imperialismo pode ser explicado como a (...) dominação política e econômica de países periféricos ou colônias por estados capitalistas centrais, [e] (...) é usualmente explicado tanto como uma solução para crises econômicas em países de capitalismo avançado porque ele fornece novos mercados (...) quanto como uma causa de crises para o capitalismo em escala global pelas rivalidades interimperiais geradas pela competição por mercados (Dunleavy & O’Leary 1987, 263). Apesar de o imperialismo ter um componente internacional em sua definição, ele serve também como política interna, ao “(...) expandir os mercados e comprar a legitimidade dos capitalistas por fornecer benefícios materiais e simbólicos para as massas domésticas” (Dunleavy & O’Leary 1987, 263-4). A crise de racionalidade é considerada como uma conseqüência da crise econômica, ainda que esta não seja o motivo principal da crise: “se o planejamento estatal falha em alocar recursos adequadamente, então há um déficit na racionalidade administrativa [do estado]. Déficits de racionalidade são crises na administração do estado que ocorre quando o estado não pode administrar as contradições que surgem do sistema econômico” (Dunleavy & O’Leary 1987, 265). Podem existir quatro tipos de crises de racionalidade: Primeiro, o planejamento econômico organizado do estado e o “capital anarquicamente organizado” podem ser incompatíveis. Segundo, um aumento do gasto público pode gerar conseqüências não desejadas, como inflação. Terceiro, o planejamento do estado por crescimento e a abertura do estado aos grupos de pressão podem ser incompatíveis, o que restringirá o planejamento estatal. Quarto, a intervenção estatal pode gerar novas estruturas e movimentos destacados do capitalismo e incompatíveis com o mesmo (Habermas, citado em Dunleavy & O’Leary 1987, 265). Outra crise possível para o estado é a crise de legitimidade. “Agências estatais tipicamente querem fazer estas intervenções [na economia] parecerem justas para manter o apoio eleitoral, mas elas devem também preservar as desigualdades e os incentivos necessários para que a acumulação de capital continue a todo vapor – uma tensão que cria potenciais crises de legitimidade” (Dunleavy & O’Leary 1987, 267). Essa garantia dada pelo estado à acumulação privada é necessária já que o estado

depende da mesma nas mãos da burguesia para poder sobreviver; no entanto, ao objetivar uma coisa e fazer outra na prática, o estado passa a ter esta crise de legitimidade que pode levar à fragilização e eventual perda do poder político por parte da burguesia. Ao mesmo tempo, ao perceber que o estado tenta regular os valores existentes e criar novos, congruentes com sua função de apoiador da burguesia, o mesmo passa também a perder a legitimidade conquistada junto aos cidadãos por meio das eleições, que leva à crise de motivação do estado em agir em benefício da classe capitalista.

Considerações sobre liberdade e igualdade O relacionamento entre os conceitos de liberdade e igualdade compõe a base das teorias políticas contemporâneas, independentemente do paradigma à qual fazem parte. Tanto os teóricos do pluralismo quanto os teóricos do marxismo – identificados aqui, respectivamente, como “representantes” do paradigma dominante e do alternativo – enfatizam estes dois conceitos, essas duas idéias, em seus escritos. Ambas as vertentes afirmam que defendem a liberdade individual e a igualdade entre todos os cidadãos que formam determinada sociedade. O objetivo desta seção, portanto, será o de verificar qual o sentido dado a estes dois conceitos pelos dois paradigmas aqui debatidos, ou seja, mostrar como estes dois conceitos são vistos por estes respectivos paradigmas e qual a implicação que suas conclusões trazem às suas respectivas teorias, além de mostrar que, a nosso ver, a noção defendida pelo paradigma dominante leva necessariamente ao estudo apenas do conceito de democracia e não ao conceito de estado. A democracia liberal é o modelo predominante de democracia no mundo atual, tanto em nível teórico quanto na prática. Esse modelo tem como proposta garantir tanto a igualdade, caracterizada na idéia de democracia, quanto a liberdade, vista pela ótica do liberalismo político. Ambas essas idéias são hoje o resultado de um longo desenvolvimento histórico no qual os indivíduos lutaram contra o poder absoluto do estado para ter garantidas suas liberdades individuais, refletidas em direitos civis, políticos e sociais adquiridos ao longo do tempo, entre os séculos XVIII e XX. O critério meritocrático (de distinção) é uma das bases do liberalismo: todos os indivíduos têm o mesmo ponto de partida e se diferenciam devido ao esforço individual de cada um, não se considerando o resultado final. Já a democracia baseiase no critério igualitário, onde o ponto de partida de cada indivíduo é ignorado e a ênfase está no ponto de chegada de todos – a igualdade. O indivíduo, para o liberalismo, é abstrato, pois é formalmente igual a todos os outros.

Porém, isso não se reflete na realidade, já que o que importa para o liberalismo é o ponto de partida e os resultados são diferentes devido ao esforço próprio de cada um: conseqüentemente, não há homogeneidade social, com conseqüente estratificação da sociedade. Por outro lado, para a democracia o indivíduo é real, pois é no âmbito democrático que todos se expressam e onde há espaço igual para a manifestação comum das diferenças entre cada indivíduo. O pressuposto filosófico do estado liberal é a doutrina dos direitos do homem elaborada pela escola do direito natural: doutrina segundo a qual todos os homens têm por natureza e, portanto, independentemente de sua própria vontade, e menos ainda da vontade de alguns poucos ou de apenas um, certos direitos fundamentais, como o direito à vida, à liberdade, à segurança, à felicidade – direitos esses que o estado deve respeitar, e portanto não invadir, e ao mesmo tempo proteger contra toda possível invasão por parte dos outros. Atribuir a alguém um direito significa reconhecer que ele tem a faculdade de fazer ou não fazer algo conforme seu desejo e também o poder de resistir, recorrendo, em última instância, à força (própria ou dos outros), contra o eventual transgressor, o qual tem em conseqüência o dever (ou a obrigação) de se abster de qualquer ato que possa de algum modo interferir naquela faculdade de fazer ou não fazer (Bobbio 2000, 11-2, grifos no original). O estado liberal surge, portanto, como uma associação política que deve conservar os direitos naturais e não prescritíveis do homem. (...) Os indivíduos têm direitos que não dependem da instituição de um soberano e a instituição do soberano tem a principal função de permitir a máxima explicitação desses direitos compatíveis com a segurança social. O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo é a comum concepção individualista da sociedade, a concepção segundo a qual primeiro existe o indivíduo singular com seus interesses e com suas carências, que tomam a forma de direitos em virtude da assunção de uma hipotética lei da natureza, e depois a sociedade (...) (Bobbio 2000, 15). Com o passar do tempo, autores liberais foram afirmando a idéia de que a única forma de democracia compatível com o estado liberal, isto é, com o estado que reconhece e garante alguns direitos fundamentais, como são os direitos de liberdade de pensamento, de religião, de imprensa, de reunião etc., seria a democracia representativa ou parlamentar, onde o dever de fazer leis diz respeito não a todo o povo reunido em assembléia, mas a um corpo restrito de representantes eleitos por aqueles cidadãos a quem são reconhecidos direitos políticos. Nessa concepção liberal

da democracia, a participação no poder político, que sempre foi considerada o elemento caracterizante do regime democrático, é resolvida por meio de uma das muitas liberdades individuais que o cidadão reivindicou e conquistou contra o estado absoluto: o direito de ser representado. A participação é também redefinida como manifestação daquela liberdade particular que, indo além do direito de exprimir a própria opinião, de reunir-se ou de associar-se para influir na política do país, compreende ainda o direito de eleger representantes para o parlamento e de ser eleito. Na concepção liberal da democracia, o destaque é posto mais sobre o fato da participação, com a ressalva de que esta participação seja livre, isto é, seja uma expressão e um resultado de todas as outras liberdades. Segundo a concepção liberal do estado, não pode existir democracia senão onde forem reconhecidos alguns direitos fundamentais de liberdade que tornam possível uma participação política guiada por uma determinação da vontade autônoma de cada indivíduo. A liberdade do indivíduo está garantida no estado de direito a partir do momento em que o indivíduo não está obrigado, por quem detém o poder coativo, a fazer aquilo que não deseja, nem quando não está impedido de fazer aquilo que deseja, dentro, obviamente, de certos limites que o estado impõe para garantir a boa convivência dos indivíduos, notadamente o limite garantido pelo direito à propriedade privada. A liberdade individual estará garantida, mais que pelos mecanismos constitucionais do estado de direito, também pelo fato de que ao estado são reconhecidas tarefas limitadas à manutenção da ordem pública interna e internacional. O estado liberal deve ser mínimo e possuir apenas três deveres de grande importância: a defesa da sociedade contra os inimigos externos, a proteção de todo indivíduo das ofensas que a ele possam dirigir os outros indivíduos, e o provimento das obras públicas que não poderiam ser executadas se confiadas à iniciativa privada. Segundo Adam Smith (citado em Bobbio 2000, 23), se o estado se restringir a essas três funções, a liberdade política – e, por conseqüência, também a econômica – dos indivíduos estará assegurada, pois o controle dos abusos do poder é tanto mais fácil quanto mais restrito é o âmbito em que o estado pode estender a própria intervenção. Em outras palavras, o estado mínimo é mais controlável do que o estado máximo, e esse estado mínimo terá a tendência a ser menos intrusivo na vida das pessoas que o estado máximo. “O estado não deve se imiscuir na esfera dos negócios privados dos cidadãos, salvo se esses negócios se traduzirem imediatamente em uma ofensa ao direito de um por parte de outro” (Bobbio 2000, 24-5). Por outro lado, no que concerne à democracia, de maneira geral sua evolução – em íntima relação com o liberalismo político – nos regimes representativos seguiu duas direções distintas, porém concomitantes:

1. Alargamento gradual do direito ao voto, que inicialmente era restrito a uma pequena parte dos cidadãos com base em critérios fundados sobre o censo, a cultura e o sexo, e que depois foi se estendendo, dentro de uma evolução constante, gradual e geral, para todos os cidadãos de ambos os sexos que atingiram um certo limite de idade (sufrágio universal); 2. Multiplicação dos órgãos representativos (isto é, dos órgãos compostos de representantes eleitos), que em um primeiro tempo se limitaram a uma das duas assembléias legislativas, e depois se estenderam, aos poucos, à outra assembléia, aos órgãos do poder local ou, na passagem da monarquia para a república, ao chefe do estado. Ao longo de todo o curso de um desenvolvimento que chega até nossos dias, o processo de democratização, tal como se desenvolveu nos estados que hoje são chamados de democracias liberais, consiste em uma transformação mais quantitativa do que qualitativa do regime representativo. Nesse contexto histórico, a democracia não se apresenta como alternativa ao regime representativo, mas é o seu complemento. Como conseqüência, é possível afirmar que definiu-se primeiramente os princípios do liberalismo, e posteriormente somou-se ao liberalismo os “princípios democráticos”, principalmente o de representação. A única exceção fica por conta do item “participação”, onde há diferenças entre a apatia defendida por Schumpeter e a democracia participativa defendida por Pateman (citados em Cunningham 2002, 29). Além da participação, são considerados outros princípios da democracia liberal (Cunningham 2002, 30-40): 1. Igualdade – ainda que a maioria dos autores seja “(...) cética em sancionar mais do que igualdade política formal em nome da democracia liberal” (Cunningham 2002, 30), ou seja, a igualdade, na democracia liberal, é a igualdade em poder participar de eleições e ter votos com o mesmo peso, independente de classe social, renda ou grau de instrução. 2. A relação entre o sistema político democrático e o sistema econômico capitalista – alguns teóricos vêem a democracia inserida no liberalismo, enquanto outros vêem uma relação interativa entre democracia e liberalismo. 3. Individualismo – talvez o principal pilar da democracia liberal, ou seja, o governo deve respeitar a liberdade dos indivíduos ao definir suas preferências, ao invés de forçá-los a ter determinados desejos. 4. Liberdade e autonomia – o estado deveria permitir ao máximo possível que as pessoas ajam de acordo com suas preferências, ou que pelo menos tivessem liberdade e autonomia para rever seus objetivos continuamente e se decidir por ações que as auxiliassem a atingir tais objetivos.

Pode-se afirmar que todos os teóricos da democracia liberal concordam com: a) a democracia representativa, sendo os representantes eleitos de acordo com regras formais; b) a proteção estatal das liberdades civis e políticas dos indivíduos; e c) uma esfera privada livre de interferência estatal. A temática da liberdade, oriunda do liberalismo político, é transformada em principal pilar da democracia liberal, e a essa temática é associada a idéia do capitalismo como o melhor sistema econômico que pode garantir a liberdade individual. Entre o estado e o cidadão deve haver um acordo que fixa claramente a cada uma das partes quais são suas obrigações: as regras da democracia liberal estão dispostas em leis, definidas e garantidas pelo estado. Essas regras, no entanto, são regras formais, pois se baseiam primordialmente na igualdade política existente entre os cidadãos. Tal igualdade política, sem dúvida, é importante, pois dá chance a todos os indivíduos de participar politicamente na tomada de decisões (ou, pelo menos, de participar em eleições). A cidadania minimalista liberal é fundada sobre o importante princípio normativo de igualdade política, que requer a manutenção de igualdade de direitos políticos formais entre aqueles considerados como cidadãos. O princípio de ser dado a cada cidadão apenas um voto nas eleições deriva da crença de que nem a riqueza, nem o poder ou o status poderiam valer frente à lei, e nem no extremo exercício do poder político, as eleições. Esse princípio anti-aristocrático de igualdade legal e política é central para o minimalismo liberal. A cidadania igualitária não é um fim em si mesma, mas um instrumento essencial de proteção contra a opressão e a injustiça (Carter & Stokes 2002, 29). No entanto, a forma como essa igualdade, influenciada pelo capitalismo e por questões econômicas, é usufruída pelos cidadãos é desconsiderada, o que leva à conclusão de que a igualdade é, necessariamente, formal. A democracia liberal não condena as opressões na esfera privada, já que seu âmbito oficial de atuação é a esfera pública (ou política): a democracia liberal não pode nem deve interferir nos problemas da esfera privada, pois se assim o fizer deixa de ser liberal. A esfera privada dos indivíduos deve ser coordenada pelos mesmos em situações de mercado, sendo esse último a única instituição capaz de satisfazer os desejos dos indivíduos de maneira eficiente. Alega- se que “(...) não apenas a intervenção não é necessária, mas também que o estado não é responsável pela perpetuação dos arranjos opressivos no mundo privado” (Cunningham 2002, 70). A democracia liberal prioriza os direitos individuais em detrimento dos de grupo ou de classe, e ao mesmo tempo afirma ser incapaz de lutar por direitos universais, pois isto seria “insensibilidade” frente às diferenças entre grupos: o estado deve, por um lado, garantir a liberdade do indivíduo em atingir seus objetivos, e por outro deve trabalhar de forma isenta, como um mediador que faz com

que a busca de soluções para os problemas individuais seja equilibrada entre os indivíduos que compõem determinada sociedade. A ênfase da democracia liberal no individualismo e na liberdade do indivíduo frente ao poder do estado, entretanto, não se traduz em igualdade política real. Atualmente, todos (ou praticamente todos) têm o direito (e às vezes o dever) de participar politicamente nos fóruns legalmente estabelecidos para tal participação, tais como eleições, plebiscitos, referendos, leis de iniciativa popular etc., mas qualquer tentativa de participação além desses limites formalmente estabelecidos é vista como perigosa por ameaçar os valores políticos liberais. Essa ênfase, ao invés de enfatizar a igualdade, faz com que as democracias capitalistas preservem a igualdade política formal, mas neguem a igualdade política substantiva (Carter & Stokes 2002, 52, grifos no original). No entanto, essa igualdade política substantiva deve ser buscada, já que “(...) a desigualdade política substantiva é errada em princípio, e a desigualdade material é errada porque ela inibe a concretização desse ideal fundamental” – a expansão da participação política além da esfera do formal em direção à esfera do substantivo (Carter & Stokes 2002, 53, grifos no original). Ou, nas palavras de Stamatis (2001, 390), apenas se a esfera econômica for também democratizada será possível obter uma verdadeira democracia substantiva, com igualdade real entre os indivíduos. A liberdade individual no campo econômico, defendida pela democracia liberal, leva ao surgimento de desigualdades no âmbito político, já que as pessoas irão buscar satisfazer suas necessidades individuais por meio da obtenção de bens e serviços no mercado. Essa desigualdade não se apresenta no voto dos cidadãos, o qual já está garantido e distribuído igualitariamente entre os mesmos, sem diferenciação por renda, idade, sexo, raça ou qualquer outro critério. Mas, de acordo com Carter & Stokes (2002, 54-5), quatro outros fatores dão aos mais ricos mais influência política na tomada de decisão, ainda que o voto tenha o mesmo peso para todos: 1. Os mais ricos têm dinheiro para gastar em campanhas políticas e em lobby, o que faz com que suas demandas tenham mais probabilidade de serem aceitas e/ou aprovadas. 2. Os mais ricos estão em uma melhor posição de barganha para atingir seus objetivos, já que as sociedades precisam dos recursos que estão nas mãos desses mais ricos. 3. Os mais ricos controlam os principais ativos da sociedade, tanto em termos econômicos, políticos ou culturais, controlando a agenda do debate político devido à sua força econômica. 4. Os mais ricos tendem a ser mais beme ducados, o que faz com que possam tomar melhores decisões em relação ao seu interesse próprio e em relação à própria

sociedade. Se alguns têm um entendimento muito melhor sobre determinados assuntos do que outros, eles estão em uma melhor posição para exprimir seu voto em relação aos seus próprios interesses (e, por esse motivo, em votar altruisticamente pelos interesses dos outros), assim como são capazes de manipular o comportamento eleitoral de outros (Carter & Stokes 2002, 68). Intrinsecamente, o capitalismo – sendo aqui considerado como um dos requisitos da democracia liberal – não tem como objetivo específico causar ou aumentar as desigualdades políticas entre os cidadãos; ele é um “(...) sistema de geração e distribuição de riqueza em que os agentes econômicos agem livremente em um mercado, realizando intercâmbio de direitos de propriedade” (Araújo M 2005, 1). No entanto, com a ênfase sendo dada à liberdade individual, e não à igualdade – esta é dada como garantida, a partir do momento em que todos têm direito a voto e têm acesso a referendos e plebiscitos –, a conseqüência natural do capitalismo é fazer com que alguns tenham mais retorno econômico de suas atividades do que outros, e tal retorno a mais para uns e a menos para outros leva à desigualdade política, refletida pelos quatro pontos citados anteriormente. (...) Arranjos políticos e econômicos criados para promover a igualdade econômica são, na prática, incompatíveis com a igualdade política substantiva, e até mesmo com a formal. (...) Igualdade política substantiva requer a disponibilidade dos meios, e não apenas do direito formal, de discordar. Alguém sem os meios efetivos para expressar suas visões políticas simplesmente não tem direitos políticos substantivos. (...) O capitalismo de livre mercado é incompatível com a igualdade política substantiva; é por isso que Friedman afirma que a igualdade política formal é o melhor que o capitalismo pode nos dar (Carter & Stokes 2002, 59). A igualdade de recursos para participar na arena política torna-se um valor central do ideal igualitário (Carter & Stokes 2002, 62). A garantia de liberdade individual é uma condição necessária, mas não suficiente, para o aprofundamento e a manutenção da democracia, já que, ao supor que todos podem fazer tudo, o liberalismo (econômico e político) ignora o ponto de partida real dos indivíduos: como dito anteriormente, aqueles que têm mais recursos econômicos ou políticos irão estar em vantagem em relação àqueles que não têm tais recursos. O capitalismo como conhecemos é incompatível com a igualdade política substantiva; nada além de uma massiva e irreversível redistribuição de renda em direção à igualdade pode garantir que ninguém tenha mais

influência sobre a agenda das políticas públicas simplesmente em virtude do seu lugar na distribuição de riqueza (Carter & Stokes 2002, 66). Em suma: a ênfase dos liberal-democratas em garantir a liberdade dos indivíduos, considerando a igualdade política em segundo plano como algo dado e garantido, leva a diferenças notáveis entre os indivíduos. O capitalismo desregulado defendido pelos economistas clássicos, bem como pelos neoliberais da atualidade, garante uma igualdade política formal, onde a função do voto é destacada e considerada como a grande possibilidade de participação política. No entanto, a qualidade do voto não é levada em consideração, fazendo com que os votos daqueles que tenham mais recursos sejam votos “melhores” por serem mais informados ou mais conscientes. Além disso, mesmo que o voto tenha peso igual para todos, aqueles que dispõem de mais recursos são capazes de influenciar o voto de outrem, fazendo com que os mesmos não sejam tão livres quanto parecem em um primeiro momento. E é um pouco difícil acreditar na resposta dada pelos liberais a este problema: Em uma economia de mercado, todos são proprietários de ativos: ao menos o indivíduo pode vender sua força de trabalho. O mercado aumenta as alternativas para a realização dos interesses materiais das pessoas, que realizam trocas voluntárias de direitos de propriedade. Relações précapitalistas, baseadas na família, clã ou tradição, são gradualmente substituídas por aquelas em que a busca por ganho não é restringida por considerações não econômicas. A venda da força de trabalho, antes restrita por regras tradicionais (obrigações feudais, limites à circulação de pessoas em um mesmo país, carreiras restritas a certos grupos sociais), passa a ser guiada pelo mercado, permitindo a cada trabalhador obter a renda máxima possível (salário) de acordo com a demanda por suas habilidades e quanto a sociedade valoriza cada ocupação (Araújo M 2005, 2). Não há como acreditar que a igualdade de possibilidades exista para todos na prática, já que os recursos econômicos disponíveis aos indivíduos não são iguais. Como citado anteriormente, aqueles que dispõem de mais recursos serão mais beneficiados pelos mesmos ao colocarem em prática suas ações, seja em âmbito político ou econômico, e a apresentação da liberdade como o bem supremo a ser perseguido pela democracia liberal apenas faz com que a diferença de recursos políticos e econômicos entre os que têm pouco e os que têm muito aumente com o passar do tempo. Até mesmo Robert Dahl, criador do conceito de poliarquia, assumiu que a diferença de renda (correspondendo à infra-estrutura marxista) traz como resultado “(...) a criação de grandes diferenças entre os cidadãos na riqueza, no status, nas habilidades, na formação e no controle sobre a informação e sobre a propaganda e no acesso aos

líderes políticos”, e que estas diferenças “(...) ajudam a criar desigualdades significativas entre os cidadãos em suas capacidades e oportunidades para participar como membros políticos iguais no [ato de] governar o estado” (Cunningham 2002, 87-8). Ou seja, a relação entre democracia e capitalismo, entre liberdade e igualdade, é fundamental para se criar uma participação mais consciente e mais igualitária dos indivíduos.

Relações entre os conceitos de democracia e de estado O segundo ponto que pretendemos destacar nesse Capítulo é a relação existente entre os conceitos de democracia e de estado para os paradigmas dominante e alternativo. A idéia a ser desenvolvida é a de que o paradigma dominante dá importância primeiramente ao conceito de democracia, deixando em segundo lugar a noção de estado, enquanto o paradigma alternativo inverte essa relação ao considerar como fundamental analisar primeiramente o estado e, posteriormente, a democracia existente no mesmo. Como mostramos no Capítulo Um, consideramos que o precursor do paradigma dominante é Max Weber, devido principalmente às suas idéias de tipos ideais – criando uma situação que pode ser formalmente analisada –, de burocracia e burocratização – contra a qual o indivíduo deveria lutar para ser livre – e de comunidades estamentais – que é a origem da idéia de grupos existente no pluralismo. No entanto, as idéias liberais, primeiramente em termos econômicos e posteriormente em termos políticos, que formam a base da democracia liberal atual foram sendo criadas e difundidas desde o século XVII, e terminaram desembocando no pluralismo do século XX, considerado como o modelo político por excelência de democracia liberal em associação às idéias neoliberais da “Nova Direita”. Durante o decorrer dos séculos, criou-se e foi-se consolidando a idéia de liberalismo político, conforme explicado anteriormente. As idéias dos liberais foram associadas à noção de democracia, e mais posteriormente à noção de democracia representativa, para criar o conceito de pluralismo moderno. Dunleavy & O’Leary (1987, 13) afirmam que o primeiro pensador liberal que trouxe grande contribuição para o pluralismo foi Locke, com seu Segundo tratado sobre o governo civil, em contraposição a Hobbes, com seu Leviatã, e que “a rejeição do poder estatal absoluto, unificado e não controlado é a marca registrada do pluralismo”. Montesquieu, com sua teoria de separação dos poderes e de democracia representativa, e os revolucionários que escreveram Os artigos federalistas, com a idéia de federalismo, também contribuíram com idéias e perspectivas para enriquecer o conceito de pluralismo, que teve desenvolvimento pleno no século XX principalmente devido ao

trabalho de Robert Dahl. “Ainda que sua influência [de Dahl] não seja atualmente tão grande quanto foi antes [nas décadas de 1950 e 1960], seus trabalhos tiveram um efeito duradouro no pensamento político contemporâneo” (Held 1987, 186). “(...) O pluralismo político reconhece a existência de diversidade nas práticas sociais, institucionais e ideológicas, e dá valor a esta diversidade” (Dunleavy & O’Leary 1987, 13). Assim pode ser definido o pluralismo, um conjunto de idéias, conceitos e preceitos que formam a base do paradigma dominante da ciência política contemporânea. Ainda que o pluralismo pretenda ampliar a teoria de Schumpeter, uma das principais idéias desse autor é também aceita pelos autores pluralistas, qual seja, a idéia de que o que distingue um país democrático de um país não- democrático são os métodos pelos quais os líderes políticos são escolhidos. No entanto, diferentemente de Schumpeter, os pluralistas “(...) não acreditam que uma concentração de poder nas mãos das elites políticas que competem entre si seja inevitável” (Held 1987, 187). Aqui, a descendência de Weber é clara, ao tomar a idéia weberiana em relação à existência de diversos grupos na sociedade como um argumento contra a centralização do poder político em poucas elites, conforme defendido por Schumpeter. (...) Os pluralistas clássicos assumem que seus estudos sobre a democracia são ancorados em verdades descobertas por estudos empíricos. Mas, diferentemente dos schumpeterianos, que têm como ponto de partida competições eleitorais entre partidos políticos, os pluralistas se focam nos conflitos entre os “grupos de interesse” de uma sociedade (...). (...) Seu objetivo principal é fazer recomendações sobre como manter a estabilidade e a paz de acordo com princípios democráticos em sociedades conflituosas (Cunningham 2002, 73). Outra fonte da qual os pluralistas tiram outro de seus princípios básicos é James Madison, um dos autores de Os artigos federalistas. Os pluralistas aceitam a idéia de que uma das funções do governo é garantir e proteger os direitos dos diversos grupos existentes na sociedade, de forma que tais grupos sejam livres para buscar seus objetivos políticos. Ao mesmo tempo, o governo deve ser responsável também por evitar que um determinado grupo atinja o poder e restrinja as chances dos demais grupos de retirá-lo do poder. Agindo assim, o governo garante a estabilidade do país, já que permite que todos os grupos tenham chances iguais de aceder ao poder, sem beneficiar algum(ns) e prejudicar os demais. “Para os pluralistas, a existência de diversos interesses competitivos é a base do equilíbrio democrático e do desenvolvimento favorável das políticas públicas” (Held 1987, 187- 8). Esses pensadores criaram suas teorias políticas tendo como ponto de partida a busca

pela liberdade e a garantia da mesma em relação ao estado, mas sem considerar a participação popular direta no processo de tomada de decisão. Com o aumento da complexidade de se gerenciar um estado, surgiu a idéia de democracia representativa, o que possibilitaria a união dos preceitos do liberalismo político com a idéia de democracia e de participação popular, sendo esta última a responsável por garantir o bem comum por meio da vontade geral expressa pelas eleições. Já no século XX, a democracia se torna um mecanismo para se formar um governo legítimo. A idéia de democracia como um meio para se chegar a um governo escolhido dentre aqueles que se ofereceram no mercado político é mais visível em Schumpeter com seu elitismo democrático, e tal idéia foi aproveitada, em parte, por Dahl. No entanto, esse último autor tem uma visão mais “amena” da função da democracia na sociedade moderna: ela não é apenas uma ferramenta para se formar um governo, mas sim um mecanismo que possibilita aos indivíduos expressarem seus pontos de vista, suas idéias e seus anseios, os quais, por sua vez, serão – ou não – satisfeitos pelo governo democraticamente eleito. A importância das eleições e da competição entre partidos políticos é especialmente destacada por Dahl. (...) O controle pode ser mantido se o escopo de ação dos políticos for restrito por dois mecanismos fundamentais: eleições regulares e competição política entre partidos, grupos e indivíduos. Ele [Dahl] enfatizou o fato de que, enquanto eleições e competição política não criam maiorias para o governo de maneira significativa, “elas aumentam drasticamente o tamanho, o número e a variedade de minorias cujas preferências devem ser levadas em consideração pelos líderes ao fazerem escolhas políticas” (Dahl, citado em Held 1987, 192, grifo no original). Essa seria a confirmação, para Dahl, da existência de um processo democrático: a possibilidade das minorias serem ouvidas e quiçá participarem do governo, tendo suas demandas satisfeitas da mesma forma que as demandas da maioria. Entretanto, para além da defesa da democracia – ainda que formal – feita pelos pluralistas, o ponto é os mesmos não analisam nem estudam o estado. O estado é visto como um sistema fechado, onde não há preocupação em saber o que se passa dentro do mesmo; ao contrário, analisa-se principalmente as relações existentes entre o sistema em estudo (no caso, o político) e os demais sistemas que o rodeiam. Outra forma de se ver o estado para o paradigma dominante é por meio do institucionalismo, onde a transação entre indivíduos dentro dos limites das instituições é a unidade básica de análise dessa teoria. Às instituições é atribuído o papel principal da vida política, sendo elas as moldadoras das preferências dos indivíduos e quem determina a extensão das transações entre os próprios indivíduos e entre estes e o estado. Há, por

fim, a teoria da escolha racional: “A essência da teoria da escolha racional é que ‘quando diante de vários possíveis caminhos de ação, as pessoas usualmente escolhem aquele que elas acreditam que trará o melhor resultado geral para si próprias’.” (Elster, citado em Ward 2002, 65). A teoria da escolha racional tem como metodologia básica aspectos econômicos aplicados à ciência política. Como é possível perceber pela leitura dos resumos dos artigos disponíveis no Capítulo Dois, o estado não é o ponto central da análise do paradigma dominante. Tal paradigma se preocupa, em primeiro lugar, com a liberdade individual frente ao estado, e em segundo lugar, de maneira obscura, com a igualdade dos indivíduos em participar do sistema político. Quais são as funções do estado? Como o estado organiza a sociedade? O estado é realmente um ator político neutro, que tem por função apenas gerenciar ou administrar a sociedade? Ao invés de trazer o estado para o centro da análise política, o paradigma dominante faz exatamente o contrário: afasta-o dizendo que um estado democrático se limita às áreas em que existe um acordo voluntário na sociedade quanto à necessidade e a forma em que esta atuação se realizará. A necessidade de uma defesa nacional, por exemplo, é amplamente reconhecida como parte das atribuições do estado. Quanto maior o impacto da interferência estatal sobre a liberdade dos indivíduos (proibindo ou demandando certos comportamentos) menor será o consenso quanto à validade destas políticas. (...) A democracia de mercado permite aflorar uma pluralidade de interesses que serão realizados individualmente, na esfera privada de atuação de cada um, ou coletivamente, quando a pessoa puder influenciar no conteúdo da atuação do estado (diretamente, ou escolhendo representantes que se laborem por seus interesses) (Araújo M 2005, 7, grifos nossos). O estado, portanto, nada mais é do que a entidade que irá garantir a ordem e a estabilidade do sistema, oficialmente interferindo o mínimo possível na sociedade e no mercado para que a liberdade individual seja garantida. Por outro lado, é essa liberdade individual que levará a sociedade como um todo à prosperidade, pois os indivíduos passarão a realizar trocas econômicas com o objetivo de satisfazer suas necessidades e/ou desejos e, sendo que tais trocas não são influenciadas pelo estado, o resultado é o melhor possível. Nessa visão, o estado é uma instituição neutra e invisível, que não beneficia nenhum grupo ou indivíduo específico da sociedade. A democracia liberal é definida, caracterizada, estudada, analisada, aplicada, refutada, etc., mas não se leva em consideração qual o papel do estado, quais suas funções e até mesmo seus objetivos dentro desse sistema democrático, da mesma forma que são

ignoradas as ações estatais contra ou a favor da democracia. Já o paradigma alternativo vê o estado como central em suas análises. Para esse paradigma, antes de se definir a democracia, o tipo de democracia, antes de se decidirem quais serão as “regras do jogo”, é necessário definir, decidir, analisar qual o papel e função do estado na sociedade. O estado é visto, pelo paradigma alternativo, como o primeiro e principal ator político, já que é o estado, em última análise, que irá gerenciar ou administrar a sociedade; é o estado que irá criar e impor as leis, sanções e privilégios aos cidadãos; é o estado que detém o monopólio do uso legítimo da força física em determinado território (segundo a famosa definição de Weber), e é por isso que, para o paradigma alternativo, antes de se definir a democracia, seus meios e métodos de aplicação, antes de se decidir sistema político, sistema eleitoral-partidário, e antes até mesmo de se definir o sistema econômico e suas influências na política, se deve definir o que é o estado. A conseqüência dessa diferença de enfoque entre os paradigmas dominante e alternativo é a formalidade marcante existente nas análises feitas pelo primeiro paradigma. Como podemos ver pelos artigos disponíveis no Capítulo Dois, as soluções propostas por esse paradigma concentram-se freqüentemente na melhoria da maneira de se escolher os governantes e de fazer com que os indivíduos possam exprimir suas demandas de maneira mais clara, defendendo mais inclusividade dos indivíduos por meio de outros mecanismos de participação que não os já constitucionalmente estabelecidos, mas sem levar em consideração a influência que a esfera econômica tem na política. Há textos específicos sobre os processos de redemocratização ocorridos na América Latina, como os de O’Donnell (1979a, 1979b, 1982, 1989a, 1989b, 1992, 1993) e de Reis F (1988) que tomam a idéia de poliarquia de Dahl como a base de seus trabalhos, considerando como democráticos os países que possuem eleições e “regras do jogo” bem definidas e aceitas por todos os atores políticos. Tais trabalhos, sem dúvida, foram importantes para se poder contrastar as novas democracias com os antigos regimes militares, mas se prendem a análises formais da democracia. Já outros textos mais recentes, como o de Oliveira (2000) e de Panizza (2000), fazem análise sobre a situação da democracia na América Latina atual e chegam a propor algumas mudanças na própria forma de se analisar tais países, mas ainda assim deixam o estado em segundo plano. Textos mais críticos da democracia liberal, como os de Guildry & Sawyer (2003) e de Inoguchi & Bacon (2003), ou textos que pretendem analisar o quão forte é o apoio à democracia em países saídos recentemente de processos de transição democrática, como os de Inglehart (2003) e de Linde & Ekman (2003), também ignoram a influência que o estado, como ator político, possui em definir os próprios rumos do processo de transição (ou consolidação) da democracia nesses países.

O reconhecimento de que não há análise sobre o estado é assumido pelos próprios liberal- democratas, e também por aqueles que buscam melhorias no sistema atual sem, contudo, sair do padrão já pré-estabelecido. Gill (2000), por exemplo, defende a idéia de que as transições para a democracia na América Latina não foram feitas tendo como ponto central uma negociação entre elites – militares e civis – que garantisse o retorno à democracia. Para esse autor, a sociedade civil, por meio dos movimentos sociais contestatórios ocorridos de maneira generalizada nos países dessa região, teve papel fundamental e insubstituível no processo de transição para a democracia. Entretanto, o próprio Gill, ao comentar as idéias de Huntington (1994) sobre o que esse autor chama de “ondas de democratização”, afirma que “a primeira onda durou por um século, a partir de 1828, e viu por volta de 33 países estabelecerem ‘ao menos as mínimas instituições democráticas nacionais’.”, (2000, 1) sendo esta última citação vinda do próprio Huntington. No entanto, na nota de referência, Gill (2000, 243) afirma que “isto [as mínimas instituições democráticas nacionais] é representativo da noção minimalista de democratização geralmente usada em estudos desse processo, incluindo esse livro, visando estudar a mudança de um regime que tem como base princípios não-democráticos para outro baseado em princípios democráticos”. Gill afirma ainda que tal problema – o que significa democracia – será abordado na conclusão de seu livro, e ao nos reportarmos a tal conclusão a informação que o autor nos dá é que “para se ter uma concepção mais satisfatória de democracia, nosso foco deve ser significantemente mais amplo que um foco estreito em instituições políticas e nas elites que as habitam” (2000, 238). O foco mais amplo dado pelo autor é o que Linz & Stepan (1996) dão à noção de democracia consolidada, cujos pré-requisitos é avaliada em três áreas: a área do comportamento, ou seja, como os atores políticos se comportam em relação à democracia recentemente instalada; a área da atitude, ou seja, como os atores políticos agem dentro da nova configuração estatal, agora democrática; e a área constitucional, que significa que o país só estará consolidado se um verdadeiro estado de direito for implantado e, além disso, for respeitado, ou seja, se as leis e regras estabelecidas forem efetivamente cumpridas. Em outras palavras, analisa-se o sistema formal da democracia, e não são analisadas as funções do estado como criador e mantenedor da democracia: se há certas regras estabelecidas e aceitas por todos, o país é democrático. Ao enfatizar a democracia e, dentro dessa, o conceito de liberdade, em detrimento de uma análise do estado com ênfase na igualdade, o paradigma dominante ignora o papel do estado na garantia não apenas da igualdade, mas também da própria liberdade individual. Ora, a liberdade defendida pelos liberal-democratas é o que Isaiah Berlin chamou de “liberdade negativa”, ou seja, a ausência da coerção estatal e de intrusividade na vida dos cidadãos por parte do estado (Borón 2003, 138). Ao mesmo tempo, a este conceito soma-se a idéia econômica de que liberdade é a “(...) capacidade de cada agente social (indivíduo [ou grupo]) aplicar os recursos à sua

disposição (seu capital, trabalho, seu tempo, prestígio, influência) para realizar suas preferências nos vários campos da vida social (política, economia, etc.)” (Araújo M 2005, 1). Assim, a ausência de coerção ou de intrusão estatal – garantindo que os indivíduos sejam livres para seguirem o rumo que quiserem, ou ainda sem direcionálos a determinado rumo – somada à idéia de se poder fazer o que se achar mais viável para concretizar suas preferências individuais – desde que respeitados os direitos dos outros indivíduos – formaria o mundo ideal para os liberal-democratas. Mas tal associação entre a ausência de coerção e a liberdade para se atingir seus próprios objetivos, se destacada da promoção da igualdade social, leva à negação da liberdade em termos políticos e também em termos econômicos. Como isso acontece? A separação entre as esferas econômica e política, para os liberais, é a resposta a essa pergunta. Ao se separar a política da economia, passa-se a lidar com duas esferas de atuação do indivíduo. A primeira esfera com a qual o indivíduo irá se relacionar, obviamente, é a esfera econômica, até mesmo porque é por meio dessa esfera que ele consegue sobreviver e manter sua família. Qual a situação na esfera econômica? Uma situação de desigualdade, com alguns indivíduos possuindo mais recursos à sua disposição do que outros, situação resultante do decorrer dos séculos e considerada como dada. É claro que o indivíduo em situação desfavorável na esfera econômica irá se submeter àqueles que detêm mais recursos, pois ele precisa mesmo sobreviver. A partir desse ponto, básico em nossa visão, a liberdade individual defendida pelos liberal-democratas já deixa de existir: o indivíduo não é livre para seguir o que quer, em termos de trabalho, e sim livre para buscar emprego dentre as opções disponíveis, ou seja, sua liberdade não é tão ampla como propagada pelo paradigma dominante. Dessa forma, a liberdade defendida pelo paradigma dominante não é garantida pelo próprio paradigma, já que a liberdade individual na esfera da economia é negada de duas maneiras – primeiro pelo indivíduo precisar se submeter a outrem, o que necessariamente acarretará o cerceamento de sua liberdade, e segundo pelo indivíduo escolher dentre as opções disponíveis, e não exatamente aquela que ele deseja. Esse último item relaciona-se não apenas com a obtenção de um emprego, como dissemos no exemplo anterior, mas também à obtenção de produtos e serviços fundamentais à própria sobrevivência do indivíduo: onde está a liberdade econômica do indivíduo quando ele vai ao supermercado querendo comprar a margarina de marca X, mas encontra apenas as margarinas de marcas A e B? Não há liberdade para o indivíduo escolher o que deseja e fazer o que quer com seus recursos, a não ser que o indivíduo seja detentor de uma grande quantidade desses recursos e possa trocá-los por outros que sirvam ao seu bem-estar imediato. Há a liberdade de se escolher uma dentre as opções disponíveis, apresentadas, e não a opção desejada pelo indivíduo. A segunda esfera é a política: a liberdade do indivíduo também é cerceada mesmo que

se considere a liberdade como o valor fundamental das democracias liberais atuais. O argumento de cerceamento das liberdades econômicas é o mesmo aqui: o indivíduo se vê restringido em suas liberdades devido aos recursos que possui e às opções disponíveis. Acreditamos que ênfase maior deva ser dada à questão dos recursos disponíveis: como já citado anteriormente, diferenças nos recursos fazem com que os indivíduos tomem decisões baseadas em seu conhecimento, o qual pode ser restrito, e/ou com que aqueles que detêm mais recursos influenciem os que detêm menos recursos a agir da maneira que desejam. A liberdade política, assim como a liberdade econômica, não é garantida no estado liberal-democrata; ao contrário, devido à própria estrutura e à lógica de funcionamento desse estado liberal-democrata, as liberdades individuais se restringem às opções disponíveis, devido à submissão das esferas social e política à esfera econômica. A liberdade política é restringida também – talvez principalmente – pela liberdade econômica: indivíduos que possuem mais recursos econômicos podem ser considerados mais livres que os que possuem menos recursos econômicos, já que tais recursos ampliam a esfera possível de ação desse indivíduo, com os primeiros restringindo as liberdades dos segundos tanto no âmbito econômico quanto no político, objetivando a manutenção e ampliação desses recursos. As pessoas são livres para fazer o que quiserem – dentro de limites estabelecidos pelo estado, é claro –, e essa liberdade individual leva à criação e/ou aprofundamento das desigualdades econômicas, políticas e sociais entre os indivíduos. Por outro lado, o paradigma alternativo, ao enfatizar o estudo do estado e, dentro desse, a igualdade entre os indivíduos, se torna uma opção ao pensamento político atual por trazer novos conceitos e idéias que podem ser utilizados na análise política contemporânea. Ao transferir o foco da análise para o estado, o paradigma alternativo pretende verificar primeiramente quais as relações do indivíduo em relação ao mesmo, bem como as dinâmicas internas a esse mesmo estado e que são refletidas em suas relações com a sociedade. A democracia é vista em segundo plano não por não ser importante, mas sim porque primeiramente é necessário definir a estrutura do estado – e da própria sociedade – para apenas depois se definir a forma como tal democracia existirá e será colocada em prática. Segundo Borón (2003, 82), Marx – o precursor do paradigma alternativo – reconheceu antes que outros a “(...) impossibilidade de compreender a política à margem de uma concepção totalizadora da vida social, em que se conjugaram e articularam economia, sociedade, cultura, ideologia e política”. Tais itens em conjunto compõem um todo a ser analisado e estudado, dentro do qual a democracia se insere no paradigma alternativo. O paradigma alternativo considera primeiro o estado como item a ser analisado. Como conseqüência, a democracia vai depender das relações entre os indivíduos nesse mesmo estado e entre o estado e a sociedade. É aqui que a questão da igualdade ganha ênfase no paradigma alternativo, pois sem essa igualdade real é impossível

haver uma verdadeira liberdade política e econômica por parte dos indivíduos. O estado não é igualitário: ele não é, como afirmam os teóricos do paradigma dominante, um mero ente que gerencia e administra a sociedade. Para além da clássica definição de Marx de que o estado é o comitê Executivo da burguesia, o estado democrático e liberal – no formato defendido pelos pluralistas e, mais recentemente, pelos neoliberais – é a entidade que, em última instância, administra, gerencia e reproduz a desigualdade entre os cidadãos justamente por enfatizar a idéia de que todos são livres, ao invés de buscar garantir a igualdade real e substantiva dos indivíduos por meio de mudanças nas relações econômicas entre os indivíduos (Stamatis 2001, 392). É apenas pela garantia da igualdade econômica entre os cidadãos que a liberdade almejada pelos pluralistas seria alcançada. Isso significa dizer que a igualdade social não deveria ser buscada apenas por questões éticas ou morais, por preocupação com o nível de vida ou com o bem-estar dos cidadãos, e sim porque é ela que, em última instância, irá fazer com que os indivíduos sejam efetivamente livres e possam exercitar tal liberdade em grau máximo – coisa que, como vimos, não acontece em um modelo de democracia liberal. Ao garantir a igualdade real, esse estado alternativo” faria com que o principal problema citado anteriormente – a desigualdade na distribuição dos recursos – acabasse – ou ao menos diminuísse –, contribuindo para a verdadeira efetivação da liberdade individual. Voltar-se-ia à concepção original da democracia, que tem a igualdade, e não a liberdade, como base das relações sociais. Acreditamos que seja claro o papel da esfera econômica nesse processo de diminuição da desigualdade entre os membros de determinada sociedade. Apenas com uma verdadeira distribuição de renda é possível fazer com que os indivíduos sejam livres e exerçam suas capacidades de maneira plena dentro da sociedade e concretizando a própria idéia de Adam Smith – qual seja, a de se todos os indivíduos buscam o seu bem-estar individual dentro da sociedade, e se todos conseguem melhorar de vida, então a sociedade como um todo também irá melhorar. A prática atual, no entanto, mostra que a concretização de tal ideal é impossível, visto que a gritante desigualdade de acesso aos recursos disponíveis impede com que todos os indivíduos melhorem de vida na sociedade atual. O crescimento de apenas uns poucos em detrimento da maioria faz com que a desigualdade inicial na distribuição dos recursos aumente e se expande para outras áreas, ou seja, alguém com bastantes recursos econômicos no momento X terá mais recursos econômicos no momento X + 1, além de ver seus recursos políticos, sociais, ideológicos e culturais também aumentados no momento X + 1 como conseqüência do aumento dos recursos econômicos. E esse aumento dos recursos não se dá exclusivamente pelo “sucesso pessoal” ou pela “iniciativa individual” do indivíduo: o estado capitalista moderno contribui para a concentração dos recursos ao não distribuí-los, ao acreditar que basta “crescer o bolo” para que

todos saiam ganhando. Ora, se assim o fosse, se bastasse o desenvolvimento econômico contínuo e constante para gerar mais riquezas em determinado país, não teríamos mais pobres no mundo, e essa, claramente, não é a situação mundial da atualidade. Ao contrário, a concentração de renda, se não aumenta, continua a mesma: o bolo cresce, mas sua divisão continua sendo proporcional à renda existente anteriormente. Para ser mais claro: no momento X, o indivíduo A ganhava quinhentos reais e o indivíduo B ganhava cinqüenta mil reais. No momento X + 1, o PIB cresceu 10%, e esse crescimento foi distribuído proporcionalmente à renda anterior, fazendo com que o indivíduo A passasse a ganhar quinhentos e cinqüenta reais, e o indivíduo B cinqüenta e cinco mil reais. Esse é um exemplo hipotético, e talvez pudéssemos até afirmar que o indivíduo A teve um aumento de 20% em sua renda, enquanto o indivíduo B teve sua renda aumentada em 5%, mas em seu absurdo esse exemplo serve para mostrar que não basta apenas fazer o bolo crescer; é necessário que a distribuição de renda seja realizada de maneira efetiva e eficaz, e apenas o estado, com seu aparato legal e coercitivo, é capaz de fazer tal distribuição. E a mesma é necessária: (...) A exploração do homem pelo homem e a decomposição das diversas formas de sociabilidade chegaram a extremos sem precedentes na história da humanidade. Diante disso, não faltará quem recorra ao desgastado argumento de que “sempre existiram pobres”. É verdade, mas seria imperdoável esquecer que: a) estes nunca foram tantos nem tão pobres como agora, e b) que antes nunca houve um punhado de ricos tão ricos como os de hoje (Borón 2003, 12). Como fazer a distribuição de renda? Para os liberais, a distribuição é feita de forma automática, como sugerimos anteriormente. O estado não deve utilizar seus meios legais e coercitivos para fazer tal distribuição, pois o estado [ao intervir na economia para garantir a distribuição de renda] restringe a liberdade de cada indivíduo fazer uso de seus ativos e estabelecer contratos mutuamente vantajosos para as partes, por meio de políticas de salário mínimo, regulações à atividade empresarial e aumentando o escopo da atuação estatal direta na economia (coletar recursos dos indivíduos por meio de impostos para efetuar gastos públicos) (Araújo M 2005, 4). Os liberais acreditam também que o “super-estado” protetor e intervencionista seria incapaz de realizar a distribuição de renda de forma tão eficiente quanto o mercado, já

que ele (o estado) “(...) se torna o responsável pela alocação de recursos para a produção e investimento, que não são guiados pela demanda privada (cada indivíduo escolhendo como aplicar seus ativos), mas por outras considerações (políticas, de estratégia militar, ideológicas)” (Araújo M 2005, 5). Ao intervir na economia, e tal intervenção é sempre negativa, segundo a visão liberal, o estado estaria entrando na esfera individual e coagindo os indivíduos a realizarem ações que não são de seu interesse, restringindo, portanto, a liberdade dos mesmos: o indivíduo deve agir livremente no mercado e igualitariamente na política. É dessa forma que a democracia é vista para o paradigma dominante: como a arena onde os indivíduos podem exprimir, politicamente, suas vontades de maneira livre e igualitária. Os pluralistas, e mais recentemente os neoliberais, aceitam e defendem a idéia de que as funções de distribuição de renda e de garantia de um nível mínimas de vida não são funções do estado, e sim do mercado. O estado não é capaz de solucionar esses problemas, já que tenta fazê-lo por meio de coerção. Já o mercado permitiria a distribuição “natural” da renda, pois cada indivíduo receberia de acordo com seu trabalho – se uma pessoa resolvesse trabalhar pouco, conseqüentemente ganharia pouco, mas a escolha foi dela própria. Friedman (1984, 52) afirma que os mecanismos distributivos adotados pelo estado de bem-estar social – que ele critica em seu livro – não são éticos, já que o estado tiraria de uns, que trabalharam por aquilo que receberam, para dar a outros, que não mereciam porque não trabalharam. Essas teorizações acerca da economia se refletem na política: ao limitar a expansão governamental, o mercado impediria a concentração do poder político em poucas mãos. De acordo com os neoliberais, isso favoreceria a democracia de modo indireto, porém eficaz, já que o mercado estimularia a criação de vários núcleos de poder, sem haver a predominância de um único poder coercitivo, o que acontece se o estado for demasiado grande e controlar a economia das sociedades. Fica claro que, para os teóricos do paradigma dominante, o modelo ideal de democracia é o modelo formal, ou seja, aquele modelo onde o voto é o ponto central da discussão sobre a igualdade entre os cidadãos. A única igualdade, portanto, é a igualdade política formal, que permite que todos os cidadãos votem e tenham a possibilidade de serem votados. O estado torna-se o responsável por garantir a igualdade política, enquanto a igualdade econômica e a igualdade social são conseguidas por meio do mercado. No entanto, já vimos que tal liberdade e igualdade não são realmente existentes na democracia liberal. Vimos também que só o estado é capaz de realizar uma verdadeira distribuição de renda, com o intuito de garantir a igualdade substantiva que, por sua vez, leva à liberdade. É aqui que o paradigma alternativo pode dar uma contribuição a esse impasse: considerando-se primeiramente o estado como ator a ser analisado (e

não a democracia como método a ser aplicado), é possível se criar uma melhor distribuição de renda por meio do aparato legal e coercitivo do estado; essa distribuição, contudo, não seria feita de maneira violenta ou cerceadora dos direitos civis, políticos e sociais dos indivíduos, e sim por meio da participação popular na definição dos rumos do estado. A democracia, portanto, dependerá das relações entre os indivíduos na sociedade, relações essas definidas e garantidas pelo estado que, por sua vez, deverá agir com o objetivo de buscar a igualdade – primordialmente econômica, já que a esfera econômica influencia as demais esferas sociais – entre os cidadãos. Segundo Dunleavy & O’Leary (1987, 236), o marxismo não oferece nenhuma descrição exata de o que é o estado, já que este, para o marxismo-leninismo ortodoxo, nada mais é do que um comitê em benefício da burguesia. Uma mudança nessa postura ideológica surgiu com os chamados neomarxistas, no período pós-Segunda Guerra Mundial, quando passaram a se utilizar da teoria marxista para analisar o estado liberal, capitalista e democrático. Os marxistas tiveram de se deparar com um estado que planejava cada vez mais todas as suas tarefas, inclusive no âmbito econômico, e com um capitalismo que “cuidava” da população – ambos itens formando a base do estado de bem- estar social nas democracias liberais ocidentais. O estado de bem-estar social seria uma tentativa, ainda que incompleta, de se realizar tal distribuição de renda. “Apesar de achar-se acossado por uma crise fiscal sem precedentes, [o estado de bem-estar social] não deixou de garantir a prestação de toda uma notável gama de serviços sociais que hoje são inerentes à democracia burguesa e (...) [que são] quase completamente irreversíveis” (Borón 1994, 201). No entanto, a democracia substantiva ainda é incompleta no estado de bem-estar social, já que esse modelo estatal não procura alterar as relações entre os indivíduos, entre o capital e o trabalho, entre os membros da sociedade; o modelo busca melhorar as condições gerais de vida da população e pode ser visto, sob a ótica marxista, como uma maneira encontrada pelos detentores do capital de garantir a reprodução da exploração por meio da melhoria das condições de vida dos trabalhadores. Além disso, nos estados de bem-estar social a ênfase é direcionada à liberdade individual, e não à igualdade. Em termos políticos, vemos a atenção dada aos mecanismos de votação desses próprios estados: na sua maioria, a participação popular se restringe a eleições, quando os cidadãos efetivamente participam politicamente. Pouca ou nenhuma atenção é dada à qualidade do voto, ou seja, mesmo os estados de bem-estar social não se preocuparam em garantir uma nova estrutura social, sem exploração, de forma a garantir uma participação política mais ética e mais consciente, pois são estruturas estatais que buscam garantir a liberdade e não a igualdade. Além disso, o estado de bem-estar social se insere no contexto do paradigma dominante, por não dar a devida atenção às relações entre o estado e a sociedade.

O que nos interessa observar como ponto de partida é algo que qualquer estudante de teoria política descobre desde suas primeiras lições: a existência de uma brecha insuperável entre as atuais teorias liberais sobre a democracia e as formulações mais antigas. Pareceria haver um grau de evidência mais que razoável para afirmar que o conteúdo essencial da democracia – essa medula igualitária que encontramos nos escritos de Aristóteles e Rousseau, por exemplo – foi abandonada e substituída por uma argumentação formalista que privilegia os aspectos de procedimento do processo e da maquinaria governamentais contra os atributos substantivos da cidadania. Chega-se assim a um ponto em que a medula igualitária e revolucionária da democracia se dissolve em uma deslavada proposta doutrinária merecidamente chamada de “democracia elitista” (Borón 1994, 93, grifos no original). A democracia, no mundo moderno, deixa de ser uma das condições básicas da cidadania para se tornar um acessório do homem. Ela é utilizada apenas como um método político por meio do qual os homens escolhem quem será ou não o seu governante (Schumpeter 1942, 284-5). É dessa forma que a democracia substantiva, defendida na teoria clássica, transforma-se em democracia formal. (...) Nesse prolongado processo – pelo qual a ideologia democrática foi se acomodando às demandas liberais de uma burguesia em ascensão e atarefada na construção de sua própria hegemonia – a democracia foi lentamente perdendo sua medula igualitária e degenerando em um puro mecanismo formal de constituição e organização do poder político. Dessa maneira, a ideologia burguesa podia dar-se ao luxo de qualificar de democráticos regimes como o da Inglaterra vitoriana, em que apenas dez por cento dos homens gozavam de direitos políticos! (Borón 1994, 94). Ocorreu, desta forma, a separação entre democracia política (um homem, um voto) e democracia social (igualdade ou nivelação de classes). O ideal igualitário da democracia foi substituído pelo ideal de liberdade do liberalismo político e econômico, devido à crença de que a democracia formal deve ser melhorada; nessa visão o estado é ignorado, esquecido, visto como um “não-ator” político. Ao mesmo tempo, a associação entre a democracia e o capitalismo se dá com a transformação da primeira em simples procedimento, enquanto o segundo difunde a idéia de ser um sistema econômico que garante a liberdade de iniciativa de seus cidadãos. E a igualdade é conseguida em termos políticos com a democracia formal, onde todos votam e onde, pelo menos em teoria, o voto de um pobre é igual ao voto de um rico, fechando-se assim o círculo na relação entre democracia e capitalismo, já que o estado encontra-se obscurecido e ignorado nessa relação.

Na medida em que [uma definição meramente processual] da democracia deixa completamente de lado os aspectos substanciais desta para ressaltar exclusivamente os temas de caráter técnico e/ou procedimentais (existência de eleições, substituição das elites dirigentes etc.), na verdade se está elevando um modelo particular de democracia, o “capitalismo democrático”, à categoria de modelo único e necessário. (...) Pode-se dizer o mesmo das [teorizações] relacionadas à eficácia das políticas de ajuste praticadas pelas novas democracias, nas quais não se vê o tema da justiça social nem sequer mencionado em uma nota de rodapé. A única conclusão possível de tal esquecimento – em autores que, por outro lado, ostentam uma extraordinária minúcia no momento de reunir evidências estatísticas em favor de suas teses – é que a questão da justiça social é um problema que merece ser ignorado, seja porque não há injustiça no capitalismo ou porque, se há, esta faz parte da “ordem natural” das coisas e como tal é incorrigível (Borón 2003, 18). Borón nos fala sobre o fim da filosofia política como atividade teórico-prática reflexiva, que busca a criação de melhores sociedades, e sua substituição por postulados comportamentalistas a partir da década de 1950. Para ele, a filosofia política deve ser entendida como uma “(...) tradição de discurso: uma tradição muito especial, cujo propósito não é só conhecer, mas também transformar a realidade em função de algum ideal capaz de guiar a nave do Estado ao porto seguro da ‘boa sociedade’” (2003, 37, grifos no original), uma tradição que se caracterizou por sua atenção aos problemas fundamentais da ordem social estabelecida. No entanto, tal tradição está em crise por ter sido descartada em prol de análises estatísticas e comportamentalistas que surgiram em meados do século XX, levando a filosofia política a ser “(...) pouco menos que uma pálida especialização nos departamentos de ciência política, totalmente possuídos, então, pela febre comportamentalistas” (2003, 40). Ainda segundo o autor, há um renascimento nos dias atuais da filosofia política, mas esse renascimento não retoma a tradição citada anteriormente; ao contrário, a filosofia política contemporânea teria perdido o seu “fio crítico” como conseqüência da “colonização” da ciência política pela aplicação do ferramental da economia neoclássica àquela disciplina, como por exemplo a utilização das teorias de escolha racional para interpretar acontecimentos políticos. Nem na sociologia nem na antropologia ou na história, os paradigmas da “escolha racional” e do “individualismo metodológico” alcançaram o grau formidável de hegemonia que detêm na ciência política em suas mais diversas especialidades, com as conseqüências que todos conhecem: perda de relevância da reflexão teórica, crescente distanciamento da realidade política, esterilidade propositiva. O resultado: uma ciência política que

muito pouco tem a dizer sobre os problemas que realmente importam, e que se declara incapaz de iluminar o caminho na busca da boa sociedade (Borón 2003, 48). Essa crítica de Borón à filosofia política atual pode ser associada ao argumento apresentado até agora, qual seja, de que as análises formais predominantes na ciência política contemporânea não levam à criação da “boa sociedade” por enfatizarem aspectos formais da participação política e ignorarem a real situação dos indivíduos durante a tomada de suas decisões. A maneira puramente econômica de ver a relação entre indivíduos na sociedade, e entre esses indivíduos e o estado, levou à criação de construtos teóricos que prezam a liberdade acima de tudo, pois só com liberdade os indivíduos poderiam agir no mercado. A liberdade econômica, entretanto, não garante, como vimos, a continuidade da própria liberdade econômica nem a liberdade política, além de ignorar – ou ao menos colocar em segundo ou terceiro plano – a igualdade social entre os indivíduos, igualdade essa que é fundamental na construção de uma sociedade mais justa e igualitária e que a atual filosofia política ignora: A modesta e fragmentária missão da filosofia política seria elaborar discursos e cunhar vocabulários que nos permitam “argumentar” em torno da liberdade, da igualdade e da justiça. No entanto, isto sim, trata-se apenas de “argumentar”: nem propor uma crítica à ordem social existente nem, menos ainda, propor vias de superação para sair do lamentável estado de coisas em que nos debatemos. E, além disso, tais argumentações só serão bem-vindas se forem inteiramente indiferentes diante de qualquer noção de “boa sociedade” e se abstiverem de incorrer em questionamentos à “antiutopia” realmente existente. Ou seja, se tão oportunos raciocínios sobre a liberdade, igualdade e justiça forem discursos triviais ou belas palavras que adocem as condições imperantes no capitalismo de fim de século. Argumentações ou divagações? (Borón 2003, 55-6). A argumentação em torno da busca da igualdade deve, portanto, passar pela visão marxista de totalidade dos processos sociais, bem como pela análise dos processos históricos que formam a sociedade e, por fim, a passagem da definição desses dois itens anteriores da teoria à prática. O novo instrumental desenvolvido por Marx à sua época mostrou a “(...) impossibilidade de compreender a política à margem de uma concepção totalizadora da vida social, em que se conjugaram e articularam economia, sociedade, cultura, ideologia e política” (Borón 2003, 82). E, ao transferirmos o foco da análise da democracia e da liberdade para o estado e para a igualdade, é possível fazer com que essa “concepção totalizadora” entre em cena e possibilite a análise de todas as facetas que envolvem o indivíduo e que o influenciam em sua tomada de decisão, seja qual for a arena em que tal decisão é tomada.

Especificamente no que diz respeito aos processos de redemocratização, suas nuances poderiam ser mais bem avaliadas caso a metodologia do paradigma alternativo fosse utilizada. Para o paradigma dominante, a democratização acontece com a criação de novas “regras do jogo” e com a interiorização dessas mesmas regras nas mentes dos cidadãos que compõem e das elites que governam o país. A utilização das teorias existentes no paradigma alternativo permitiriam ver o processo de redemocratização de outra maneira: retirando-se a ênfase da democracia e passando-se ao estado, poderia ser possível mostrar, como o faz Groth (2003), que o que houve foi uma redemocratização do regime, mas não do estado, já que este manteve a mesma estrutura social de acumulação e concentração de renda nas mãos de poucos, não realizando a necessária distribuição de renda que garantiria a igualdade entre os indivíduos. Claro que existem críticas à maneira como o paradigma alternativo seria aplicado aos processos de redemocratização. De acordo com Dunleavy & O’Leary (1987, 223), dois problemas principais surgem quando se tenta fazer uma análise marxista das democracias liberais ocidentais. O primeiro problema diz respeito ao princípio básico do marxismo, que é a luta entre as classes: nas democracias ocidentais, os principais problemas políticos não são causados por essa clivagem entre classes com origem na base econômica, o que tiraria a legitimidade e a credibilidade do marxismo. O segundo problema refere-se à idéia marxista de que o sistema capitalista caminha necessariamente para sua derrocada: as estabilidades política e econômica se mantêm já há um certo tempo na maioria (se não em todas) das democracias ocidentais. O primeiro ponto é destacado por Dunleavy & O’Leary (1987, 224) porque, segundo eles, poucos são os conflitos atuais que têm como base conflitos entre classes sociais distintas de acordo com critérios econômicos. Disputas de salário, horas de trabalho e desemprego, dentre outros, têm como base conflitos entre os que têm e os que não têm; mas outros conflitos importantes surgem tendo como base outras questões que não as econômicas, como por exemplo conflitos religiosos, étnicos, territoriais, de gênero e até mesmo conflitos econômicos entre pessoas da mesma classe. O próprio conceito de classe, segundo Dunleavy & O’Leary (1987, 225), é confuso: Marx e Engels definiram duas classes principais, mas o próprio Marx assumiu a possibilidade de se surgir uma terceira classe intermediária; e, como mostra o desenvolvimento histórico do capitalismo no século XX, ao invés de se aprofundarem cada vez mais as diferenças entre as duas classes principais definidas por Marx, ocorreu o contrário – surgiram diversos outros estratos sociais que acabaram por “misturar” proletários e burgueses, como por exemplo um diretor de uma empresa transnacional que é um proletário, pois vende sua força de trabalho, mas trabalha em prol e pela manutenção da burguesia como classe dominante.

Os marxistas respondem a esta crítica de cinco maneiras diferentes. A primeira delas é com o alargamento do conceito de classe: (...) Todos os assalariados que executam instruções de outras pessoas sem supervisionarem outros assalariados ou trabalho organizado contam como proletários. (...) Grupos com poucas funções deste tipo (como técnicos, cientistas, professores e muitos outros profissionais) são considerados como aliados em potencial da classe trabalhadora para promover o socialismo. (...) Em contraste, diretores, burocratas e administradores são identificados com a ‘antiga’ pequena burguesia como aliados prováveis da burguesia corporativa nas lutas contemporâneas (Dunleavy & O’Leary 1987, 225-6). A segunda maneira é por meio da luta de dois ní veis. A idéia é que a luta de classes tem duas fases distintas: em um primeiro momento, é necessário que a classe trabalhadora se configure e se comporte como tal, acabando com sua fragmentação interna; após haver esta conscientização de classe é que, em um segundo momento, ocorrem os choques entre proletariado e burguesia. Assim, pode-se afirmar que nas democracias liberais a revolução proletária não aconteceu porque a classe trabalhadora não conseguiu ainda acabar com sua própria fragmentação interna, a despeito de tentativas de se acabar com divisões étnicas ou de gênero (Dunleavy & O’Leary 1987, 226-7). Em terceiro lugar, os marxistas criaram a idéia de conflito intraclasse. Todas as classes sociais são divididas em outras três subclasses: a) fração, que é “(...) onde interesses materiais incompatíveis aparecem em organizações políticas diferentes”, e um exemplo são os interesses entre o pequeno e o grande capital; b) estrato, onde “(...) linhas de divisão mais fracas, mas também importantes, baseados em conflitos de interesse econômico mais temporários que não produzem organizações políticas separadas”, tendo como exemplo as diferenças entre trabalhadores manuais com e sem formação técnica, mas que no final trabalham politicamente em conjunto; e por fim c) subcategorias, “(...) com interesses corporativos distintos que podem ser críticos em circunstâncias particulares”, cujo exemplo pode ser o exército e a burocracia, que se comportam de maneira independente em momentos excepcionais (Dunleavy & O’Leary 1987, 227). A quarta maneira de responder à crítica anterior é por meio das linhas transversais de divisão social. Nesta visão, pode haver diferenças importantes entre membros de uma mesma classe mas que, diferentemente do item anterior, não se restringem apenas a uma classe social, ou seja, são refletidas em outras classes sociais. Como exemplo citam-se as diferenças entre pequenas firmas capitalistas e grandes corporações. A diferença não se restringe à direção destas empresas: refletem- se também em suas

respectivas forças de trabalho. “A força de trabalho nas pequenas firmas são geralmente não sindicalizadas, recebem menos e são mais vulneráveis ao desemprego, enquanto que os trabalhadores em grandes corporações são altamente sindicalizados, melhor pagos e menos vulneráveis às perdas de emprego” (Dunleavy & O’Leary 1987, 228). A quinta solução proposta pelos marxistas é a transferência do esquema marxista de análise do nível estatal para o nível supra-estatal, deduzindo que os proletários mais depauperados se encontram nos países menos desenvolvidos. A relação de exploração entre burguesia e proletariado é transferida para a exploração dos países menos desenvolvidos pelos países mais desenvolvidos. Os trabalhadores manuais dos países desenvolvidos são cooptados pelo sistema para trabalharem em prol das empresas que irão explorar os trabalhadores dos países menos desenvolvidos. “A política interna das democracias liberais não são explicadas pelas categorias marxistas, mas refletem apenas a fragmentação parcial de interesses entre os capitalistas e seus funcionários associados” (Dunleavy & O’Leary 1987, 229). Em resumo: utilizando-se do ferramental teórico disponibilizado pelo paradigma alternativo, é possível enxergar não só os processos de redemocratização, mas também os próprios conceitos de estado e de democracia, de maneira diferente, por outros prismas, que nos permitem trabalhar em busca da “boa sociedade”. É um exemplo desse tipo de estudo que iremos mostrar agora.

A redemocratização do Brasil vista como uma crise hegemônica em termos gramscianos Ainda que os textos apresentados na segunda parte do Capítulo Dois sirvam para mostrar que a análise sobre a democracia e sobre o estado feita pelo paradigma dominante é incompleta, nenhum daqueles textos apresentou uma análise prática. Aqueles textos mantiveram-se no âmbito teórico, ou seja, trabalharam sobre teorias e não tiveram como objeto central de suas análises um processo específico de estudo do estado e/ou da democracia. É possível, então, que surja o questionamento: como aplicar “na prática” as idéias do paradigma alternativo? Um exemplo dessa aplicação prática das teorias do paradigma alternativo aplicadas à idéia de redemocratização e de reforma do estado é dada por Groth em dois textos, O impacto da reforma do estado nas teorias do estado e da democracia, de 2000, e Democratic transition and consolidation as hegemonic crisis, de 2003. Nestes textos, o autor trabalha com uma perspectiva alternativa para a temática da reforma do estado associada à temática da democratização, em termos teóricos, e aplica esta mesma

perspectiva à análise dos processos de abertura e de reforma do estado pelos quais o Brasil passou nos últimos vinte anos. Em seu primeiro texto (Groth 2000), o autor tem como objetivo levantar questões teóricas sobre o relacionamento das teorias de redemocratização com as teorias de reforma do estado. Groth acredita que esta relação se baseia em uma seqüência temporal lógica, como se segue: 1. O fim do regime militar caracteriza a necessidade de redemocratização do estado. Conseqüentemente, levanta-se a questão de reforma das estruturas do estado, já que este, agora em sua nova forma democrática, não pode mais continuar existindo com as mesmas estruturas que havia antes no período militar. 2. A reforma do estado, então, é levada a cabo, e tal reforma se pauta principalmente pela busca de uma maior eficiência econômica e administrativa do estado. O antigo estado ditatorial é visto como ineficiente e corrupto, e tal ideologia contribui para buscar o apoio da sociedade em direção à reforma do estado. Tendo estes dois pontos em mente, o autor questiona: quais seriam os impactos do processo de reforma do estado na nova democracia então estabelecida? A resposta pode ser encontrada na literatura disponível. Groth divide a literatura em duas áreas. A primeira reflete as idéias do paradigma dominante, no qual “o tratamento percorrendo a literatura sobre reforma segue a formulação liberal na qual o estado aparece em sua forma ideal como um instrumento neutro da comunidade política e, na prática, como a soma de pressões grupais emanando da sociedade organizada” (2000, 5). O autor define este tipo de relação social como “estado como artefato”, ou seja, o estado é visto como “(...) um objeto ou uma coleção de instituições políticas visíveis separadas da sociedade civil” (2000, 5). A segunda área que estuda a reforma do estado e a redemocratização corresponde ao paradigma alternativo, no qual “(...) os mercados são sujeitos ao estado que reflete a constelação de forças de classes na sociedade”, com “as alterações na relação estado-sociedade [sendo] estruturadas pelo princípio da eficácia (entendida como a afinidade com interesses sociais mais amplos na perseguição da democracia e da justiça social)” (2000, 6). Groth chama este tipo de relação social de “estado como relação”, pois aqui o estado é entendido “(...) em função da estrutura de classes e coloca a discussão da reforma do estado no campo da contestação da dominação sócio-política” (2000, 6). Segundo o autor, a literatura dominante, que trata o estado como um “artefato”, é acrítica: o mercado é considerado superior ao estado, além de ser também visto como sendo o principal mecanismo de organização social e econômica. A reforma do estado

– na qual o processo de democratização se insere – não é feito de maneira aleatória ou caótica: busca-se a eficiência do sistema, e o mercado se torna a instituição por meio da qual tal eficiência poderá ser atingida. Groth afirma que, na situação de “estado como artefato”, a eficiência é vista como “(...) a afinidade com o capital e interesses privados organizados”, e que por isso associa-se fortemente a reforma do estado à reforma administrativa do mesmo, sendo o estado “(...) entendido como as instituições visíveis de governo e tipos de regimes” (2000, 6). Na ciência política alternativa, ou seja, na situação de “estado como relação”, a eficiência também é buscada no momento da reforma do estado. No entanto, aqui as alterações das relações sociedade- estado baseiam-se não na eficiência entendida em termos administrativos, mas de forma a satisfazer os interesses democráticos e a justiça social, sendo esses interesses socialmente definidos. A reforma, no caso do “estado como relação”, baseia-se em um estado que é reflexo de interesses de classes antagônicas, interesses esses que serão, portanto, conflitivos entre si. Como conseqüência, o “estado como artefato” confunde o conceito de estado com o conceito de regime, sendo este último a forma mais mutável. Supõe-se que, se o regime for democratizado, também o será o estado. A democratização pára em um campo técnico cujo objetivo é satisfazer o mercado. Já a reforma do “estado como relação” analisa a questão de estrutura de classes e como estas se relacionam entre si, além do conseqüente reflexo dessa relação na estrutura do próprio estado, e não apenas do regime. A separação entre dois tipos de estado – “estado como artefato” e “estado como relação” – que são analisados no processo de reforma do estado também se reflete nos tipos de democracia que são implantadas de acordo com essas duas visões. No primeiro caso, Groth chama a democracia de “democracia como processo”, composta por uma “(...) coleção de regras governando o relacionamento entre líderes políticos e cidadãos governados” (2000, 7). Já a democracia no “estado como relação” é chamada pelo autor de “democracia como resultado”, com tal termo englobando “condições substantivas da igualdade” além dos pré-requisitos legais já definidos na “democracia como processo”. Assim, a teoria liberal da reforma do estado tem como ponto de partida a democracia pluralista, e acredita que este tipo de democracia deve voltar a existir nos países que eram anteriormente autoritários. Já a democracia “alternativa” baseia-se em idéias e ideais marxistas, mesmo que na prática tenha seguido um rumo diferente. No entanto, em teoria, defende não apenas a igualdade política, mas também a igualdade substantiva entre os cidadãos. A democracia atual corresponderia à noção de “democracia como processo”. Baseiase em participação indireta, por meio de representação, além da existência de meios

pelos quais os cidadãos exercem controle sobre seus governantes, ou seja, por meio de eleições. A participação política restringe-se basicamente às eleições. Autores como Schumpeter, Dahl e Lipset defendem este sistema, incluindo como benéfica a apatia dos cidadãos, o papel das elites políticas na democracia e a competição entre estas elites como algo bom contra a formação de oligarquias. Por meio do estado de bem-estar social, as elites políticas – baseando-se na “democracia como processo” – realizaram uma “tímida” reforma do estado, em termos de participação política, permitindo plebiscitos, experiências democráticas no local de trabalho, etc. Mas aqui, mais uma vez, considera-se que houve apenas uma mudança do regime, já que as relações entre as classes sociais continuam as mesmas, o que implica na aceitação do modo de produção capitalista em seus moldes mais gerais. A distribuição do poder político entre as classes sociais não é alterada com a instituição do estado de bem-estar social (Groth 2000, 8). Na visão de “estado como artefato”, juntamente com a visão de “democracia como processo”, a reforma do estado deve ser levada adiante pelo próprio estado, ou antes, pelas elites políticas que o compõem, evitando-se qualquer tipo de participação popular direta. Apenas aqueles atores populares que forem “convidados” podem participar deste processo de reforma. Os modelos formais de democratização e de reforma do estado baseiam-se na manutenção da estabilidade, não no conflito e na mudança. Buscam controlar as clivagens sociais, sem dar ênfase à qualidade ou às tendências das relações de poder durante o processo de democratização. O enfoque principal desses modelos recai sobre os atores oficiais e sobre suas ações. O exemplo típico de tais modelos é o estado burocrático-autoritário de O’Donnell. Tais modelos levam à redução do estado à sua expressão mais restrita, mais institucional, ou seja, reduz-se o estado à idéia de regime, além de aceitarem como único modelo possível de democracia o pluralista, no qual as regras já estão pré- estabelecidas para todos e no qual a possibilidade de participação social é “(...) pontualmente complementada pela participação do ‘terceiro setor’” (Groth 2000, 8). Já na visão alternativa, uma reforma do estado que levasse a um modelo de “estado como relação” e de “democracia como resultado” implicaria em maior participação de atores frequentemente excluídos do poder político no próprio processo de reforma do estado e, posteriormente, na definição, formulação, implementação e avaliação das políticas públicas. Temas tais como luta de classes, desigualdade, exploração e injustiça passam a ser estudados por meio da análise alternativa da reforma do estado e da democracia, agregando maior conhecimento e maior entendimento sobre os próprios processos de reforma do estado e de transição democrática nos países da

América Latina. Se em seu primeiro texto Groth faz uma discussão mais teórica sobre os relacionamentos das teorias de reforma do estado e de democracia vistos pelos paradigmas dominante e alternativo da ciência política contemporânea, em seu segundo texto (Groth 2003) o autor traz seus estudos para um âmbito mais prático. O objetivo é mostrar como o processo de redemocratização pode ser entendido em termos gramscianos de perda de hegemonia por parte da fração da classe dominante que se mantinha no poder. A idéia é utilizar as visões de Gramsci e de Poulantzas sobre o relacionamento da burguesia nacional com a burguesia internacional para mostrar que a transição de um regime autoritário para um regime democrático no Brasil, na verdade, não corresponde a uma verdadeira reforma do estado, e sim a uma reforma do regime, com uma fração da classe dominante – os militares – perdendo o poder político em benefício de outra fração da classe dominante – os civis –, sem, contudo, alterar a própria estrutura do estado. Na primeira parte de seu trabalho, Groth traz para o leitor conceitos teóricos que serão aplicados no decorrer do texto. Sendo assim, ele começa afirmando que os estudos sobre a redemocratização da América Latina têm como foco principal as peculiaridades de cada caso, levando-se em consideração a estrutura de interesses e as “regras do jogo” democráticas em cada país, a formação de coalizões democráticas e a escolha racional, dentre as alternativas pós-autoritárias. Tudo isso levou ao surgimento de pesquisas que, na verdade, deram continuidade ao modelo de estado burocrático-autoritário existente anteriormente, por não buscarem explicações estruturais e/ou sociais para o motivo da transição (Groth 2003, 1). Os estudos de redemocratização, por se basearem nos princípios da democracia pluralista e, portanto, visualizarem apenas conceitos como criação e/ou manutenção das “regras do jogo”, criação de partidos políticos, garantias de eleições, controle das clivagens sociais, dentre outros, ignoram assuntos tais como lutas de classes, desigualdade social, exploração e pobreza, fazendo com que esses temas se tornem secundários. Além disso, este paradigma dominante serviu não apenas para analisar o processo de redemocratização em si, mas também serviu para analisar o processo de consolidação da democracia – considerando agora os países como democráticos justamente por terem e manterem tais “regras do jogo” (Groth 2003, 2). É possível visualizar duas possibilidades para as “transições democráticas”. A primeira, chamada pelo autor de liberal, tem raízes pluralistas, baseando-se na transição negociada entre militares e civis, trazendo de volta liberdades civis, promulgando uma nova constituição, permitindo que mais partidos políticos surjam – e que haja competição política entre eles – e que eleições livres e regulares

aconteçam. Isto significa dizer que tal possibilidade objetiva a formulação de um novo consenso em relação às “regras do jogo”, isto é, à nova “democracia parlamentar”. A segunda possibilidade, chamada pelo autor de “popular”, baseia-se em uma “(...) visão sócio-econômica na qual resultados concretos para a maioria necessitada da população sejam produzidos. (...) [Aqui,] a verdadeira ‘democratização’ é concebida não como uma transição entre formas do regime, mas como uma transformação do estado e do esquema de propriedade e de produção” (Groth 2003, 4). O autor afirma que, se considerarmos o estado como um conjunto permanente de instituições que exercem coerção sobre a sociedade, será possível verificar que o mesmo está intimamente ligado a interesses que, historicamente, buscam cada vez mais por propriedade privada e por riqueza, interesses esses que necessitam desta ajuda estatal para consegui-la. Assim, o estado se torna “(...) uma coleção de instituições e práticas associadas às relações de classe (...)”, enquanto o regime é a “(...) forma de governo que pode mudar de acordo com os interesses específicos daqueles que são responsáveis pelo processo de tomada de decisão” (Groth 2003, 4). Assim, na América Latina, o processo de democratização refere-se ao regime, e não ao estado, já que regimes eleitos com o apoio de partidos liberais continuam prisioneiros das mesmas crises econômicas e sociais que afligiam o antigo estado autoritário. Ao falar sobre as formas estatais e sobre as lutas de classe na América Latina, Groth (2003, 5) afirma que o estado na América Latina é a expressão política de uma estrutura específica de classes, e não uma “coletividade harmônica” ou como um “árbitro neutro” das disputas sociais. Porém, mesmo trabalhando em benefício de uma classe específica, o estado não está imune à pressão das outras classes, já que ele deve intervir nas lutas de classe para manter a subordinação e a distribuição atual de poder e de privilégios na sociedade. A função deste estado, no entanto, não deixa de ser repressiva, regulando as diferenças de classe e mantendo os antagonismos das classes sob controle. Para o autor, se deixarmos de lado a dicotomia do paradigma dominante, que coloca o estado burocrático-autoritário versus o estado democrático, e se considerarmos, a priori, que cabe ao estado, como funções intrínsecas, as de manutenção da exploração de uma classe sobre a outra e a de manutenção da desigualdade social, dentre outras, será possível enxergar o processo de democratização de outra maneira. Novas formas de se entender a “(...) falência das ditaduras e a reorganização das formas e das estratégias da hegemonia podem ser possíveis” (Groth 2003, 6). Uma dessas novas formas é delineada pelo autor. Ele se baseia nos escritos de

Poulantzas e de Gramsci sobre a questão da hegemonia. Groth relembra a diferença entre os conceitos de estado “normal” e estado “excepcional” para Poulantzas. No primeiro caso, a hegemonia burguesa é estável, aplica-se o consenso para obter o apoio das demais classes, há a existência de instituições políticas democráticas liberais, eleições e competição eleitoral, aparatos estatais ideológicos e o estado de direito. Já o estado “excepcional” é aquele caracterizado por uma crise de hegemonia, o surgimento de opressão física contra as classes dominadas, a suspensão de eleições e de pluralismo partidário, a predominância dos meios de legitimação repressivos, ao invés dos meios ideológicos, e a centralização do poder nas mãos do poder dominante do aparelho estatal (Groth 2003, 6). Outro autor que Groth relembra é Gramsci, especialmente seus conceitos de hegemonia e sociedade civil. Para Gramsci, a sociedade seria dividida em duas áreas: a primeira seria a chamada “sociedade política”, que corresponderia ao próprio aparato político que se caracteriza pelo uso da força e da coerção física, enquanto a segunda, chamada de “sociedade civil”, corresponderia às instituições tais como as escolas, as igrejas, as instituições culturais, dentre outras, nas quais a dominação se daria por meio da ideologia propagada por estas instituições. A hegemonia, por sua vez, seria um consenso que molda a consciência das classes dominadas por meio de ideologias. Para Gramsci, era a sociedade civil o primeiro lugar a ser conquistado pelos revolucionários, e tal conquista se daria sem o uso da violência: aconteceria a chamada “guerra de posições”, onde o avanço seria lento, porém contínuo. Partindo-se dessa construção teórica, é possível dizer que o processo de democratização de um país corresponderia à perda do consenso pré-estabelecido pela fração da classe dominante que tem em suas mãos o aparelho estatal naquele momento. O estado e os aparelhos civis de hegemonia podem, às vezes, entrar em conflito entre si, resultando na perda da hegemonia sobre toda a sociedade. A organização das classes populares, ao mesmo tempo, pode potencialmente tomar o controle de todas as instituições da sociedade civil, resultando em uma perda de hegemonia por parte da classe dominante. Essas mudanças podem acontecer devido a ações abusivas da classe dominante, devido a mobilizações da classe popular ou ainda por meio de uma crise econômica, que pode abrir as portas para uma crise de hegemonia (Groth 2003, 7-8). Utilizando-se dos conceitos de Gramsci e de Poulantzas expostos anteriormente, Groth (2003, 8) acredita ser possível analisar o processo de redemocratização não como uma “(...) comparação entre governos militares e civis (ou, de outra maneira,

entre regimes autoritários versus regimes democráticos), [pois esta oposição] se torna relativamente insignificante”. O que importa, em uma análise alternativa, são as relações sociais e as relações de força entre as classes que compõem a sociedade, relações essas refletidas pelo estado capitalista. “Torna-se possível falar de mudança (ou estabilidade) política em termos de crises de hegemonia”. O autor busca mostrar como o relacionamento entre as burguesias nacionais e internacionais, bem com a entrada das classes populares na luta democrática, aprofundam ou agravam a crise hegemônica, que por sua vez é refletida no aparelho estatal com a perda de hegemonia e com a transformação do regime. Em um primeiro momento, ambas as burguesias (nacional e internacional) estão associadas, já que a burguesia local necessita da tecnologia e dos mercados oferecidos pela burguesia internacional, e esta necessita da burguesia local também pelo mercado interno, que ela controla, e para garantir a exploração capitalista naquele determinado país. Porém, em longo prazo, este regime de dependência e de subordinação da burguesia nacional em relação à burguesia internacional traz desvantagens à primeira, o que pode levar a um “retorno à democracia”. Tal retorno, no entanto, “(...) resulta de uma convergência conjuntural de interesses tanto das classes dominantes quanto das classes populares” (Groth 2003, 9). A burguesia doméstica consegue obter certa autonomia frente à burguesia internacional, mas esta autonomia tem de ter o apoio das demais classes populares para poder ter sucesso, Assim, a “democratização” (...) é uma luta política e ideológica limitada, com o objetivo de reorganizar a hegemonia burguesa. Esta reorganização e a crise geral de hegemonia são limitadas – limitadas pelo poder relativo da burguesia doméstica dentro do bloco de poder e pelo papel que uma determinada nação e seu estado desempenham na internacionalização do capital (Groth 2003, 9). Com a possibilidade de participação das classes populares no espaço aberto pela burguesia doméstica, conforme indicado acima, a “guerra de posições” de Gramsci pode ser levada adiante. É claro que as classes populares sofrem muito mais que a burguesia doméstica com as bruscas mudanças econômicas do desenvolvimento capitalista mundial, e tais classes passam a reivindicar benefícios para si devido a estas perdas causadas pelo movimento do capitalismo mundial. Assim, se antes tais reivindicações eram feitas nos meios legais definidos pela ditadura, neste momento de crise e de democratização as classes populares podem se aproveitar desta relativa ausência de controle e de consenso para redefinir os termos deste processo – o que pode ser considerado como um ataque indireto ao estado na “guerra de posições”. O papel das classes populares pode não ser o principal na derrubada da ditadura, mas ele é decisivo neste processo (Groth 2003, 10).

Ao entrar no processo de democratização, as classes populares passam a sentir a influência do estado neste processo de reorganização e de lutas entre as classes sociais. O estado ditatorial, assim como os demais tipos de estado, não é uma estrutura que pode se manter como tal apenas pelo uso da força: é necessário algum tipo de hegemonia ideológica para se manter intacto. Porém, o estado ditatorial, em alguns momentos, torna-se também sujeito aos “humores” dos ciclos de acumulação de capital e de rearticulação nacional dentro do sistema produtivo internacional. Ao passar por estes momentos de reestruturação, o estado ditatorial e militar se situa entre as demandas populares e entre a burguesia doméstica enfraquecida. Com a continuidade do processo, o estado mostra sua incapacidade de se auto-reformar, e também sua fragilidade em manter suas estruturas intactas com o objetivo de manter a dominação de uma classe sobre a outra. “(...) Qualquer alteração no balanço de forças dentro do bloco de poder estatal, ou relaxamento da repressão ou da justificação ideológica, ameaça os interesses autônomos das classes e frações que dão apoio ao regime e, por conseqüência, ameaça também a sobrevivência do estado excepcional [definido por Poulantzas]” (Groth 2003, 11). Segundo Groth, esse argumento pode ser aplicado também aos militares. Em uma ditadura militar, o poder real está nas mãos do aparelho dominante (no caso, nas mãos dos militares), enquanto o poder formal está investido em governos burocráticos que se apresentam à população com o objetivo de legitimar o poder real (por exemplo, em um parlamento). Os conflitos entre as diferentes frações da burguesia aconteceriam sob os olhares atentos dos militares, mas podem acontecer também conflitos entre os próprios militares, sendo estes repassados para a estrutura do estado, o que levaria ao surgimento de crises hegemônicas. As crises causadas, então, pela pressão das classes populares, influencia os militares, fazendo estes perderem a coesão e abrirem brechas para a “guerra de posições” por parte das classes populares. Além disso, a divisão em frações da própria classe dos militares pode levar membros destas frações a desejarem o próprio fim do regime militar, objetivando preservar a continuidade do estado burguês e também a ordem nacional. Esta divisão dos militares em frações – com o conseqüente enfraquecimento dos militares como um todo – pode ocorrer caso não se consiga encontrar uma ideologia que justifique a existência do estado burguês e que o legitime perante as demais classes da sociedade (Groth 2003, 11-12). Para terminar a exposição teórica, Groth afirma que a natureza incompleta deste processo de democratização é mostrada pela permanência de pessoas e instituições, oriundas do período ditatorial, no novo estado “democrático”. No entanto, este novo estado é ainda um estado burguês, condicionado pela hegemonia burguesa e por objetivos burgueses. Nas palavras de Poulantzas, citado em Groth (2003, 13), ocorre a formação de uma “rede estatal paralela”, que trabalha em estreita ligação com o “novo” estado no sentido de garantir os benefícios da burguesia nacional.

A aplicação prática de todo esse desenvolvimento teórico é feito por Groth no caso do Brasil. O autor se propõe a explicar os governos de Geisel (1974-1979) e parte do de Figueiredo (1979-1982) por meio desse aparato teórico desenvolvido anteriormente. O autor chama o período de Geisel de “A crise do regime”, e o período de Figueiredo é chamado de “O regime de crise”. Segundo o autor, a crise do regime militar no Brasil pode ser situada no governo Geisel, e tal crise é definida pelos seguintes itens: “1) Crise orgânica dos partidos políticos; 2) Evidência de luta hegemônica na sociedade civil; 3) A “criseinterrupção” do capitalismo brasileiro; 4) Contradições emergentes no bloco de poder” (Groth 2003, 13). Nesse período, o estado mostrou-se cada vez mais frágil, ao mesmo tempo em que iniciou-se uma mudança na consciência da sociedade civil. A primeira evidência da crise orgânica dos partidos políticos foi o resultado das eleições entre 1974 e 1978. Por mais que o governo fizesse manobras eleitorais para tentar garantir a vitória (como o Pacote de Abril de 1977), a “oposição” conseguiu expor a insatisfação geral com o regime. Ao mesmo tempo, movimentos liderados pela Igreja Católica, movimentos estudantis e profissionais da área da ideologia (comunicações e mídia) mostravam uma lenta, porém progressiva, mudança na hegemonia ideológica da sociedade. Além disso, o período do governo Geisel foi o período da chamada “crise do petróleo”, quando em curto período de tempo a dívida externa brasileira aumentou exponencialmente devido aos juros variáveis dos empréstimos tomados pelo governo brasileiro no período anterior à crise e que financiaram o “milagre brasileiro”. Tal condição econômica, altamente desfavorável, permitiu a contestação à hegemonia dominante. Por fim, é possível afirmar, segundo Groth, que a perda de importância dos partidos políticos e das eleições como instrumento de manutenção da hegemonia, com a conseqüente possibilidade de participação das classes populares, foi ocasionada pela perda de coesão entre as frações que compunham o bloco de poder naquele período (Groth 2003, 13-15). “Os anos parciais do governo de Figueiredo fornecem um exemplo de uma crise de legitimação, um ‘regime de crise’, que era o resultado das contradições acumuladas durante o regime de Geisel, o qual tentou dirigir um projeto hegemônico sobre o qual o estado não exercia mais controle primário” (Groth 2003, 15). Inicia-se nesse período a “guerra de posições” pelas classes populares. As contradições do regime tornaram-se mais evidentes pelas manifestações mais fortes da sociedade. O estado tornou-se incapaz de reorganizar a sociedade com o objetivo de beneficiar as classes dominantes, e as classes populares passaram a definir o grau de abertura muito mais do que a vontade das classes dominantes permitia. O autor afirma que os eventos desse período giraram ao redor de três principais pontos:

“1) A ‘guerra de posições’ e a redefinição da ‘abertura’; 2) A convergência e a democratização; e 3) A hegemonia contestada e o anacronismo eleitoral” da época (Groth 2003, 15). A “guerra de posições” já estava em curso quando Figueiredo assumiu seu mandato, e se aprofundou ainda mais com o surgimento de novas associações civis e com o movimento organizado dos trabalhadores, especialmente dos metalúrgicos. A convergência em torno do objetivo final – a democratização – se deu tanto pelo lado das classes populares quanto pelo lado das classes burguesas, ainda que essas últimas almejassem com a democratização fazer o estado retornar à sua forma “normal”, como Poulantzas definiu. O maior exemplo dessa convergência foi o projeto de Anistia, de 1979, que foi desejado tanto pelas classes populares quanto pelas classes burguesas, que se uniram e se aproveitaram de um momento de incapacidade do estado “excepcional” de controlar as contradições entre as classes. A partir de 1982, como resultado da reforma de 1979, o regime de Figueiredo passou a ter um papel reativo, e não mais ativo, em relação à oposição e ao descontentamento. (...) toda a estratégia de manipulação eleitoral como o meio principal de democratização hegemônica se tornou também anacrônica ao final deste período. Os principais aspectos da mudança naquele momentum político para longe do controle exclusivo do estado requereriam um exame mais cuidadoso sobre as reformas eleitorais de 1979, a criação de novos partidos políticos (mais notavelmente o Partido dos Trabalhadores), o “Pacote de Novembro”, de 1981 (e as mudanças subseqüentes em março e junho de 1982) e os resultados das eleições de 1982 (Groth 2003, 16). Groth conclui seu texto afirmando que é mais útil e importante considerar os métodos de dominação e as formas do estado capitalista em um processo de transição democrática do que resumir tais métodos e tais formas na dicotomia “ditadurademocracia”, pois tal dicotomia é estática. Com esse ferramental, é possível enxergar uma nova forma de se fazer uma análise política sobre um determinado processo de redemocratização, lançando novas idéias para além da noção de pacto que define as transições democráticas, especialmente na América Latina. Com tal análise alternativa, “é dado um significado teórico mais profundo à dominação e à democratização usando-se os conceitos de Gramsci de hegemonia e de sociedade civil. (...) Uma análise radical de crise hegemônica, ao invés de ‘democratização’, provaria ser mais penetrante” e útil do que a contraposição “ditadura versus democracia” (Groth 2003, 17).

O modelo teórico alternativo que surge aqui descreve um processo de democratização que é, todavia, hegemônico; um estado burguês e um jogo político que são tanto frágeis quanto persistentes, uma luta de classe que é ao mesmo tempo controlável e incontrolável; e uma democracia consolidada que representa a reorganização e a renovação das formas de dominação (Groth 2003, 17).

Conclusão O objetivo dessa dissertação foi considerado ambicioso desde seu início. Essa ambição pode ser avaliada não apenas durante a montagem do projeto, quando encontramos grandes dificuldades para delimitar o escopo do estudo que seria realizado, mas também pelas críticas pensadas pela banca e recebidas durante a defesa do projeto. A ambição do trabalho também pode ser vista no longo período gasto na elaboração do trabalho, indo além das expectativas iniciais constantes no projeto de pesquisa. Por um lado, acreditamos ter conseguido focalizar nosso objetivo e trabalhar os dois itens principais da pesquisa – a relação entre os conceitos de democracia e estado entre si e a forma como tais conceitos são estudados pelos dois paradigmas da ciência política contemporânea. Por outro lado, vemos que ainda há muita coisa a se fazer nessa área e que essa dissertação cobre apenas a “ponta do iceberg”, pois há muito mais coisa escrita e publicada sobre o tema do que fomos capazes de encontrar. Três conclusões principais podem ser tiradas como resultado desta pesquisa. A primeira tem caráter empírico e corresponde à comprovação de que a ciência política se divide em dois ramos, o que dá validade à proposta de Chilcote (1978, 1997). A segunda, também empírica, nos mostra que as teorias pluralistas e a teoria da escolha racional são o padrão para estudos sobre democracia e sobre estado. A terceira, de caráter mais filosófico, é a necessidade, que acreditamos ser premente, de um retorno à filosofia política como forma de analisar os acontecimentos políticos contemporâneos. Apesar de termos certeza de haver mais fontes do que fomos capazes de encontrar, o trabalho serviu para mostrar que a idéia de Chilcote é verdadeira, ou seja, que realmente existem dois paradigmas na ciência política contemporânea. Nota-se uma clara divisão entre aqueles que trabalham a teoria política contemporânea com o objetivo de manter o status quo criado, principalmente, com o fim do “socialismo real” no Leste Europeu, e aqueles que buscam, nas palavras de Borón (2003), a melhoria das condições sociais dos cidadãos que compõem determinada sociedade. Verificamos que poucos são os autores que se utilizam de outras teorias para além do pluralismo de Robert Dahl e para além da escolha racional. Como mostramos no capítulo dois, há textos que objetivam fazer uma defesa teórica do pluralismo, mostrando que o mesmo continua sendo útil para analisar as mudanças políticas atuais. Outros buscam avaliar o grau de aceitação da democracia pelos países redemocratizados nos anos 1980 e 1990, mas partem do princípio que a democracia se iguala a eleições, ou seja, ao método que é utilizado para a eleição dos representantes. E, mesmo quando há alguma crítica a tais conceitos, como também foi mostrado no

capítulo dois, tais críticas, ainda assim, se inserem no paradigma dominante e acabam se tornando críticas muito sutis, por ignorarem o que acreditamos ser fundamental em uma análise política – as relações de dominação que existem na sociedade e que se baseiam em aspectos econômicos dos indivíduos envolvidos em tais relações. É assim que a teoria de O’Donnell, por exemplo, continua, grosso modo, sendo aceita por aqueles que se dedicam a estudar os processos de redemocratização da América Latina. Mais que isso, tal teoria foi aplicada também a outras regiões do globo, notadamente aos países do Leste Europeu e da ex-União Soviética, como é o caso do livro de Linz & Stepan (1996). Tais análises feitas por esses autores mostram que a teoria pluralista e a teoria da escolha racional se cruzam para explicar os processos da maneira mais formal possível, ignorando-se detalhes – como o já citado, de desigualdades entre os indivíduos – que têm impacto relevante no resultado destes mesmos processos. É de se louvar as idéias de Guildry & Sawyer (2003) ou de Gill (2000), que afirmam que a população pode pressionar e ter suas demandas satisfeitas quando se unem e fazem pressão sobre os governos, e é de conhecimento comum o fato de que a sociedade civil organizada, principalmente nos últimos quinze anos, conseguiu atingir objetivos e satisfazer demandas de maneira nunca antes feita. O fortalecimento da sociedade civil organizada, nos últimos quinze anos, comprovaria a eficácia dessas teorias pluralistas e de escolha racional. É possível, entretanto, fazermos a seguinte pergunta: e a sociedade civil “desorganizada”? E aqueles que não têm condições de participar de um movimento social qualquer? E aqueles que, antes de buscar a garantia de seus direitos – que dirá a satisfação de suas demandas –, preferem – ou melhor, precisam – buscar a garantia do seu almoço? Análises racionais ignoram tais pessoas, mesmo sabendo da existência das mesmas e mesmo sabendo que elas correspondem a uma parcela razoável da sociedade dos países recém-saídos de processos de redemocratização. À pergunta “o que fazer com tais pessoas?” as teorias pluralista e de escolha racional não têm respostas. Entretanto, para além da comprovação de dois paradigmas, notou-se que a grande maioria dos autores acredita que o modelo de democracia liberal é o único possível para o mundo contemporâneo, e que o atual sistema econômico baseado em exploração da maioria pela minoria é a maneira padrão de organização social. Como vimos, poucos são os autores que se preocupam com questões como justiça social, igualdade e garantia dos direitos sociais básicos aos cidadãos. A justificativa para tal postura é simples: caberia à ciência política a análise dos fatos como eles são, já que cabe à ciência o estudo da situação atual por meio de métodos, regras e lógicas que justamente caracterizam a ciência como tal. Como diz Castro (2004, 17), “a ciência fundamenta-se na observação sensorial sistemática, emprega metodologia adequada, utiliza dados comprovados, passos dados anteriormente e

ainda contribuições paralelas, tendendo à universalização dos fenômenos comprovados, desde que em configuração igual ou estrutura semelhante”. Ou seja, à ciência política restaria a função de analisar o que realmente existe e fazer, se possível, previsões tendo como base essa mesma realidade. Já a busca por algo melhor – a busca pelo ideal – ficaria restrita à filosofia política: “a Filosofia Política caracteriza-se por apresentar idéias e oferecer prescrições. A Ciência Política considera os fatos, a base ideológica, analisando os fatos e as tendências, sem excluir prescrições. Em síntese, a Filosofia estuda a realidade como valor, enquanto a Ciência estuda o valor como realidade” (Castro 2004, 18). Outro fator associado a esta função estritamente “empírica” da ciência política é a própria mentalidade dos analistas políticos. Sabemos que entrar no “psicológico” de um analista é perigoso, e não pretendemos aqui nos aprofundar neste tema. No entanto, acreditamos ser importante sublinhar o fato de que os estudos políticos geralmente têm como foco a “grande política”, ou seja, estudam-se as elites, as relações intra-elites, o poder do governo, o poder do estado – enfim, estuda- se a cúpula política de maneira geral. Aqueles que não fazem parte da elite são vistos como os consumidores no mercado político, que não têm mais nada a fazer a não ser votar durante as eleições (raramente ser votado, já que isso é muito mais difícil) e se juntar a outras pessoas que tenham interesses semelhantes para criarem grupos de pressão – lembrando que juntam-se apenas aqueles que têm condições econômicas e sociais de se juntarem. Nos últimos anos, nos entregamos à integração mundial, ingressamos na globalização sem proteger nossa soberania, sem manter os valores fundamentais de nossa identidade. Com isso, construímos uma integração mundial para poucos, que a cada dia se sentem menos brasileiros, e deixamos de lado os muitos, que a cada dia se sentem menos gente, como se uma cortina de ouro separasse nossa população, dentro do país, enquanto uma parte dela se integra com o resto do mundo (...) (Buarque 1999, 14). Outro trecho do livro de Buarque é ainda mais claro para o que pretendemos mostrar: O aumento dos salários não consegue ser uma maneira de reduzir a pobreza pela simples razão de que o aumento de salários só ocorre para quem já tem emprego. E quem já tem um emprego regular, formal, já saiu do grau mais intenso de pobreza – porque dispõe de salário, vale-alimentação, valetransporte, seguro-saúde – ou não sairá dela com o salário, porque lhe faltará bens e serviços essenciais, que não são comprados (Buarque 1999, 41).

É com essa mesma visão que falamos aqui da mentalidade dos analistas políticos. Estes procuram estudar as “altas rodas”, ao invés de incluir também em suas análises aqueles que são os maiores prejudicados (ou, quem sabe, beneficiados) em um processo de redemocratização, que traz em seu bojo um processo de reforma do estado (ou deveria trazer, já que o que se reforma é o regime, e não o estado propriamente dito). Os analistas políticos se preocupam em estudar o que o governo, os empresários, os sindicatos de trabalhadores ou as ONG’s fazem ou deixam de fazer, mas se esquecem de que as decisões tomadas por estes que formam a elite política e cultural de um país irão afetar não apenas eles mesmos, mas outros que estão incluídos neste sistema apenas nos cálculos daqueles que se utilizam de teorias de escolhas racionais. No entanto, como já mostrado anteriormente, essa não é a visão de alguns autores, os quais compõem a minoria acadêmica e intelectual na contemporaneidade e que fazem parte do paradigma alternativo. Esses autores acreditam que a ciência política pode, enquanto ao mesmo tempo em que estuda as estruturas políticas, sociais e econômicas atuais, propor algo novo, algo que melhore essa situação atual; para eles, é função da ciência política (bem como da filosofia, do direito, da sociologia, da antropologia, da história, dentre outras disciplinas) buscar não apenas descrever “os fatos e tendências”, como citado anteriormente, mas tentar enxergar para onde é possível ir no meio desses fatos e tendências que existem na atualidade. É necessário que “algo mais” seja buscado pela ciência política, já que sua origem é a filosofia de maneira geral. A palavra “filosofia” traz à mente a idéia de algo inútil, de perda de tempo. No entanto, o que significa filosofia? É a decisão de não aceitar como óbvias e evidentes as coisas, as idéias, os fatos, as situações, os valores, os comportamentos de nossa existência cotidiana; jamais aceitá-los sem antes havê-los investigado e compreendido. A primeira característica da atitude filosófica é a negação: negar préconceitos, pré-juízos, valores, negar “o que todo mundo pensa”; essa é a chamada atitude crítica. A segunda característica da atitude filosófica é a positivação: perguntar positivamente o que são as coisas, as idéias, os fatos, as situações, os comportamentos, os valores, nós mesmos. É uma interrogação do por quê disso tudo e de nós mesmos: “Por que é assim e não de outra maneira?”, e forma o chamado pensamento crítico. Para que serve a filosofia? O senso comum afirma que a filosofia “não serve pra nada”, pois não se relaciona com a ciência e a técnica. No entanto, todo cientista sabe que seu trabalho depende fundamentalmente da filosofia, já que é esta que irá perguntar o por quê das coisas serem assim e não de outra forma, incentivando o “gênio criativo” do cientista e corrigindo e aumentando os conhecimentos existentes tendo como base as chamadas “perguntas filosóficas” – o que, por que e como. A filosofia é o pensamento interrogando-se a si mesmo, e

trabalha por meio da reflexão. A reflexão filosófica é radical porque é um movimento de volta do pensamento sobre si mesmo para conhecer-se a si mesmo, para indagar como é possível o próprio pensamento. A reflexão filosófica também se volta para as relações que mantemos com a realidade circundante (Chauí 1998, 13-20). Aprendestes que a filosofia é a possibilidade. Porque se refletir sobre o mundo fosse tentar entender como ele é, mas para não poder transformá-lo, diria então que a filosofia é uma espécie de sadismo intelectual. Se a filosofia for para fazermos exegeses de textos apenas, aprenderíamos só uma técnica filosófica, mas não toda a filosofia. A filosofia é tomar partido, no mais alto sentido político da palavra filosofia, que começou com Sócrates e paradoxalmente também com Platão. Deixai os louvores com os homens da ordem, com os conservadores, com os religiosos que gostam mais da letra de suas páginas sagradas do que de seus irmãos, ou então com os juristas que gostam mais das leis do que do justo. Sabei que refletir sobre o direito é ver a injustiça, e ver a injustiça é procurar a justiça” (Mascaro 2003, 20). Segundo Borón (2003, 15), que se baseia em Marx, essa é a função básica, fundamental, do estudo da política, tanto em sentido científico quanto em sentido filosófico. (...) O fato é que, com o eclipse da tradição clássica e o advento da filosofia política moderna, a problemática ética se desloca. (...) O que antes se encontrava no centro da preocupação e do debate intelectual de autores tão variados como Platão e Aristóteles, Agostinho, Marsílio e Tomás de Aquino, Morus, Erasmo e Lutero surge hoje como uma petição de princípios indiscutida e indiscutível: que a sociedade atual, ou seja, o capitalismo, é a boa sociedade. Não há como ignorar, portanto, o fato de que a ciência política contemporânea deve buscar a melhoria das condições sociais dos cidadãos. Por outro lado, a melhoria real de tais condições só poderá acontecer quando a desigualdade econômica existente em nossas sociedades atuais tiverem acabado, ou ao menos diminuído drasticamente; é nesse contexto que a idéia da utilização da filosofia política marxista entra em jogo novamente, na teoria política contemporânea, por meio do paradigma alternativo. Nos diz Borón (2003, 61) a respeito da vitalidade que o marxismo pode dar à moderna filosofia política: Vitalidade derivada do compromisso que tal filosofia tinha com a criação de uma boa sociedade ou um bom regime político. Para além das críticas que

possam merecer as diversas concepções teóricas que encontramos no seio da grande tradição da filosofia política, o certo é que todas elas tinham como permanente pano de fundo a preocupação em desenhar os contornos da boa sociedade e do bom Estado, e de encontrar novos caminhos para a felicidade e a justiça na terra. Que a proposta fosse a república perfeita de Platão, o assombroso equilíbrio do “justo meio” aristotélico, a submissão da Igreja aos poderes temporais como em Marsílio, a intrigante utopia de Morus, a construção da unidade nacional e do Estado na Itália como em Maquiavel, a supressão despótica do terror como em Hobbes, a comunidade democrática de Rousseau ou a sociedade comunista de Marx e Engels, não invalida em nada o fato de que todos esses autores, ao longo de quase vinte e cinco séculos, sempre conceberam sua reflexão como uma atividade teórico-prática e não como um exercício onanístico que se regozija na manipulação abstrata de categorias e conceitos completamente desvinculados do mundo real. No entanto, para além da utilização dos princípios marxistas como norteador da busca da boa sociedade, o fato é que a justiça deve ser a base das sociedades contemporâneas. Não há como garantir boas relações entre estado e sociedade, não há como aperfeiçoar modelos democráticos, não há como garantir a liberdade individual se a busca da igualdade –social, política, econômica – não for a base do pensamento político de qualquer partido, de qualquer governo. Não adianta buscar melhorias dentro do sistema atual se o próprio sistema capitalista atual, como sabemos, se autoreproduz, se perpetua, com a conseqüente perpetuação das desigualdades. “De que valerá poderem os africanos contar cada qual um voto, sendo que as grandes decisões do mundo se fazem nos gabinetes refrigerados das grandes multinacionais que não perguntam sobre vontade dos votos ou democracia?” (Mascaro 2003, 18-9). Claro que buscar um mundo melhor não é tarefa fácil nem simples, quanto mais atingi-lo, e há quem possa dizer que “o mundo é assim” e que, portanto, não há nada a fazer. Mas algo deve ser feito quando vivemos em uma sociedade extremamente desigual, como é o caso do Brasil, onde 4,7% da população (8 milhões de pessoas) vive com menos de um dólar por dia; onde 11,6% da população (20 milhões de pessoas) vive na indigência, com menos de um quarto de salário mínimo por mês; onde 30,6% da população (52,3 milhões de pessoas) é considerada pobre, vivendo com menos de meio salário mínimo por mês; e onde os 20% mais pobres (34,2 milhões de pessoas) possuem 4,2% da renda nacional, enquanto que os 20% mais ricos se apropriam de 56,8% da renda nacional (IPEA 2004, 14-6). Vale destacar que tais números são otimistas: de acordo com dados da Cepal, disponíveis no mesmo relatório, a porcentagem de pessoas que vive abaixo da linha de indigência é de 13,2%, ou aproximadamente 22,6 milhões de pessoas. Face a tal situação, perguntamos: será que os 20 milhões de brasileiros considerados indigentes pelo IPEA têm condições de se

organizar em movimentos sociais e buscar uma melhor participação política, como sugerem Guildry & Sawyer (2003)? Será que os 52,3 milhões de brasileiros que vivem com menos de R$ 150,00 (cento e cinqüenta reais, meio salário mínimo) por mês têm condições de exercer suas vozes em organizações não-governamentais com o objetivo de melhorar suas vidas, como defende Gill (2000)? A “nova economia” de Panizza (2000) trouxe algum benefício para os indigentes e pobres? A resposta é óbvia para todos aqueles que tenham o mínimo de bom senso. A justiça social é a única maneira de conseguir acabar com essa situação. Por outro lado, a obtenção dessa justiça social só é possível com o controle estatal dos rumos a serem tomados para a obtenção de tal justiça. Os últimos três séculos presenciaram o capitalismo em diversas formas e, ao contrário do que é pregado pelos seus defensores, a igualdade social não foi atingida; ao contrário, o capitalismo, ao priorizar a liberdade e acreditar que ao estado não cabem outras funções que as de defesa do território, segurança interna e garantia do direito de propriedade, criou mais e mais desigualdade entre os países, além de desigualdades entre os habitantes do planeta de maneira geral e entre os habitantes dos próprios países de maneira específica. Ainda hoje há famintos, ainda hoje há doentes sem tratamento, ainda hoje há crianças sem brinquedos e sem alegrias, velhos sem apoio para seus últimos momentos, pais de família sem o suficiente para o sustento dos seus. Mas há tudo isso não porque o mundo seja incapaz de dar a todos o suficiente. (...) Há crianças encasteladas, usufruindo de uma abundância sem fim de atenções, e que têm, já bebês, contas bancárias que famílias inteiras nunca terão em sua vida. Há opulência nas classes dominantes, esbanjamento, divertimento a ouro, mesa farta, gozos sem fim, jóias caras, roupas de valor, desperdício sem par, ao lado de tanta miséria e dor. Isto tudo, meus senhores, só pode ser resumido em uma palavra: injustiça (Mascaro 2003, 14-5). Por outro lado, a alternativa socialista, da forma como foi implantada, diminuiu a desigualdade em alguns setores, como educação, saúde e transporte, dentre outros, mas aumentou a desigualdade no âmbito político e manteve a desigualdade econômica entre a elite governante e os demais da sociedade, ao mesmo tempo em que sufocou a liberdade individual. Ao invés de garantir a igualdade entre os cidadãos e também a liberdade individual, o sistema socialista soviético (tomado aqui como exemplo por ter sido o primeiro e, portanto, o padrão para os demais) engessou a sociedade, transformando o período passageiro da ditadura do proletariado em sistema político permanente. Esse engessamento foi um dos motivos que levou Gorbachev a implantar, em 1985, suas reformas na ex-União Soviética, onde um dos pontos era a

“(...) ampla democratização de todos os aspectos da sociedade” (Gorbachev 1987, 32). Era essa democratização que iria garantir o funcionamento do socialismo, pois seria a intensa participação dos indivíduos nos processos de sua própria sociedade que garantiria a sustentação do sistema. É um “círculo vicioso”: a sociedade teria a oportunidade de participar mais e contribuir, com sua criatividade, para o processo produtivo. Isso ocorreria por meio da democratização. Com essa participação, aumentaria a responsabilidade do indivíduo frente aos resultados de sua empresa, por exemplo, que por sua vez é financiada por um sistema socialista. Sendo responsável pelo futuro da empresa, o operário iria trabalhar mais e melhor, para garantir o sucesso de sua empresa. Por outro lado, para poder trabalhar melhor, o indivíduo precisaria da liberdade, exercida por processos democráticos, e assim o círculo se fecha. Resta-nos, portanto, buscar saídas para a atual situação de caos em que vivemos, onde poucos têm muito e muitos têm pouco, como vimos anteriormente nas estatísticas do IPEA. E a saída não parece estar contida nas teorias do paradigma dominante: essas teorias não conseguem solucionar os problemas da desigualdade e da injustiça, que são cada vez maiores. De nada adianta buscar melhorias no próprio paradigma dominante, já que o máximo que se conseguirá fazer serão reformas que não resolvem o problema, como a história e os textos discutidos nos mostram. Apenas com a busca de novas idéias no paradigma alternativo é que seremos capazes de buscar e propor melhorias para nossas sociedades. Mascaro diz que devemos sempre fazer uma “vigília pela justiça”, e que a única maneira de levar a cabo uma luta por tal justiça é a revolução. Somente com uma verdadeira mudança nas estruturas sociais será possível buscar a justiça social e a igualdade entre os cidadãos. Não há outro nome [que não seja revolução] para a necessidade de modificar as estruturas injustas de nossas sociedades. Aprendeis nos livros que as reformas são aquelas que alteram pequenas circunstâncias, e as revoluções alteram as grandes estruturas; se assim for, a justiça, então carecerá é de revolução, porque não se exprime somente em pequenas circunstâncias injustas, mas em toda a estrutura social injusta (Mascaro 2003, 15). Falar de revolução nos dias atuais é considerado loucura. Falar de socialismo nos dias atuais, idem. Afinal, a revolução socialista falhou, como mostra o fim da União Soviética e a transformação da China em “socialismo de mercado”. No entanto, acreditamos que a única forma de conseguirmos mudar a atual situação de extrema desigualdade entre pessoas, entre regiões e entre países, é por meio de uma verdadeira alteração na estrutura social atual. Apenas com uma real transformação nas relações econômicas será possível lutar por uma sociedade mais justa, igualitária e fraterna,

onde o ideal igualitário de Rousseau – que não haja pessoas tão pobres a ponto de venderem sua força de trabalho, e que não haja pessoas tão ricas a ponto de poderem comprar a força de trabalho de outrem – seja realizado. Talvez tal aspiração soe utópica nos dias atuais, de domínio da democracia capitalista – ou será capitalismo democrático? – como a única opção disponível. No entanto, como já mostramos anteriormente, devemos sempre buscar melhorar a situação das sociedades e dos indivíduos, tentando garantir a igualdade primordialmente em termos econômicos, por serem estes que influenciam as demais esferas da sociedade. A construção de um novo Estado e de uma nova sociedade no Brasil [ou em qualquer outra parte do mundo] deve comportar reflexões que vão muito além da mera disciplina econômica e da democracia poliárquica. É claro que nos últimos vinte anos a consolidação de uma democracia e o ajustamento econômico foram, e continuam sendo, objetivos vitais para o nosso país; contudo, é [necessário] observar que tanto a poliarquia como as reformas de cunho liberal não são capazes de lidar com os novos problemas das sociedades contemporâneas, onde as demandas por acesso a bens materiais são acompanhadas por reivindicações de cunho não rentista como cidadania, direitos humanos, reconhecimento cultural etc. (Silva Júnior 1998, 69). Em outras palavras: se mudanças radicais não forem feitas na base da sociedade, nada será mudado, a igualdade não será atingida e a liberdade continuará a ser restrita, e as teorizações do paradigma dominante não passarão de retoques cosméticos que tentarão amenizar a injustiça e mostrá-la como algo longínquo de nossas realidades, o que, todos sabemos, não é verdade. Essas reformas devem dar ao estado a primazia na distribuição de renda, objetivando a igualdade econômica, bem como deverá ser função do estado garantir a necessária liberdade aos indivíduos que compõem determinada sociedade; apenas dessa maneira será possível criar sociedades mais justas, igualitárias, libertárias e, conseqüentemente, democráticas. “Não nos contentemos com os direitos civis e políticos apenas; queiramos estes direitos e os direitos sociais. Não nos contentemos com uma nação juridicamente cidadã; queiramos um país socialmente cidadão e justo. Queiramos, mais ainda, um mundo justo” (Mascaro 2003, 19).

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