Relações entre Portugal e a União Sul Africana - 1914-1918

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PORTUGAL E A UNIÃO SUL AFRICANA NO CONTEXTO DA GRANDE GUERRA (1914/1918) Marco Fortunato Arrifes

INTRODUÇÃO

Não obstante a ideia dominante nas chancelarias europeias de que os assuntos africanos, no quadro da grande guerra, se resolviam nos teatros de operações europeus, a verdade é que em terras de África entre 1914 e 1918 os conflitos alastraram do Togo ao Tanganika, dos Camarões à África do Sul, de Angola a Moçambique. Travaram-se então violentos combates nas selvas, nos desertos e nas montanhas africanas, que afetaram muitos recursos materiais e humanos, os quais foram assim desviados das frentes europeias, onde poderiam ter desempenhado missões operacionais relevantes. Em Portugal os grandes objetivos políticos, no que a África diz respeito, passavam essencialmente pelo assegurar da integridade das fronteiras, as quais, apesar de diplomaticamente determinadas, não se encontravam ainda plenamente consolidadas1 Tal como na generalidade dos países com interesses ultramarinos também aqui a perspetiva dominante, se bem que não unânime, era a de que o desfecho do conflito na Europa iria determinar o futuro dos territórios ultramarinos. Este modo de percecionar o enquadramento estratégico, assentava na visão de que o único inimigo externo a temer era a Alemanha, que desde finais do século XIX não escondia as suas ambições sobre os territórios do sul de Angola. Contudo, algumas vozes coloniais tentavam transmitir um discurso diferenciado, chamando a atenção para o que consideravam ser o perigo sul-africano. Este discurso, veiculado por africanistas experimentados e por alguns quadros da administração colonial, sustentava-se na crença de que os perigos para a prossecução plena dos grandes objetivos nacionais poderiam não vir apenas de Berlim, mas também das ambições expansionistas dessa nova entidade política regional emergente; a União Sul Africana. 1

Para uma análise detalhada da participação portuguesa na grande guerra em África ver Marco Fortunato Arrifes, A Primeira Grande Guerra na África Portuguesa. Angola e Moçambique (1914-1918), Lisboa, 2004. O melhor e mais recente estudo sobre as motivações para a participação de Portugal nos teatros de operações africanos pode ser consultado em Maria Fernanda Rollo, Soldado de África! Quantas medalhas te puseram no peito? Portugal e África numa Guerra Global in «Ler História nº66» pp.79 a 97 Lisboa 2014

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Com efeito apesar do seu estatuto de domínio, a União não escondia o seu desejo de afirmação regional. É certo que essa afirmação se encontrava condicionada pelos objetivos da política imperial britânica, mas as aspirações de carácter expansionista dos sectores políticos defensores da permanência no Império, e o desejo de rutura mais profunda por parte dos republicanos nacionalistas, impeliam a uma prática de não seguidismo absoluto face a esses mesmos objetivos. Por outro lado, os contactos diplomáticos de Angola e Moçambique com o espaço sulafricano, como a inevitabilidade da geografia exige, não eram recentes. Moçambique desde há muito que tinha relações privilegiadas com o Transval2, sendo que a despeito das transformações políticas que foram ocorrendo desde finais do século XIX, algumas grandes questões permaneceram de forma permanente no relacionamento entre esses dois territórios. Nessas questões cumpre incluir as problemáticas relativas ao recrutamento de indígenas moçambicanos, para trabalharem nas regiões mineiras transvalianas, e as querelas referentes ao controlo do caminho-de-ferro de Lourenço Marques3. Já no caso Angolano a rápida conquista do Sudoeste alemão, concretizada pelas tropas sulafricanas no contexto das operações militares da grande guerra, implicou uma mudança de protagonista, a União substituiu a Alemanha imperial, mas não de enredo, pois o que vai continuar a estar em causa é a demarcação da fronteira e a disputa pelos recursos hídricos. Por todas estas razões é entendível que o relacionamento entre Portugal e a União, no período que medeia entre o surgimento desta, 1910, e o fim da grande guerra, é um objeto de estudo relevante, para se entender o posicionamento nacional na região no quadro mais amplo da grande estratégia. Deste modo o que se pretende com este artigo é contribuir para o aprofundamento do estudo do relacionamento entre Portugal e a União Sul Africana entre 1914 e 1918, no sentido de verificar a adequação ou inadequação da estratégia nacional, face aos objetivos políticos que se pretendiam alcançar. Para tal identificam-se e analisam-se como questões fundamentais o enquadramento histórico da emergência da União Sul Africana, e as suas modalidades de relacionamento com a África Austral Portuguesa, no contexto da Grande Guerra.

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Para uma análise das relações entre Moçambique e o Transval até 1901 ver Fernando Costa, Portugal e a guerra Anglo-Boer, Lisboa, 1995. 3

Para os antecedentes desta questão ver António José Telo, Lourenço Marques na Política Externa Portuguesa (1875-1900), Lisboa, 1991

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Metodologia e Fontes.

Sendo este trabalho uma primeira etapa de um projeto mais ambicioso, o registo metodológico que aqui se privilegia assenta num discurso essencialmente descritivo, valorizando uma perspetiva de história política diplomática, que nunca abdicando da abertura de vias contextualizantes e problematizadoras, deixa para outro momento uma tentativa mais ampla de análise, para a qual se pretende que a factologia aqui levantada sirva como matériaprima. A impossibilidade conjuntural de acesso a fontes arquivísticas internacionais implicou uma óbvia limitação à concretização deste estudo, que assim se baseia fundamentalmente nos acervos do Arquivo Histórico do Ministério dos Negócios Estrangeiros (AHMNE)4 e do Arquivo Histórico Militar (AHM)5, complementados com bibliografia diversificada de autores nacionais, mas também ingleses, alemães e sul-africanos.

1. A União Sul Africana.

Quando em 1914 o assassinato do arquiduque Francisco Fernando da Áustria-Hungria colocou em marcha o mecanismo das alianças, dando origem à Grande Guerra, a União da África do Sul, nascida em 31 de Maio de 1910, enfrentava dois graves problemas internos: a questão rácica e a tensão entre unionistas e a ala dos nacionalistas africâneres, que defendiam uma rutura total com a Grã-Bretanha. Em 1908 o primeiro ministro do Cabo, Merrimam, veiculara a ideia de que a união da sua colónia com o Orange, o Transval e o Natal era, em simultâneo, o caminho mais indicado para o futuro desta região e a melhor forma para ultrapassar a depressão económica causada pela guerra anglo-bóer6. Logo aí a questão dos direitos cívicos a conceder às populações não brancas começou a assumir foros de alguma centralidade no discurso político, sendo desta afirmação comprovativo suficiente o facto de na primeira convenção nacional, realizada entre os representantes das quatro colónias, a questão rácica ter assumido preponderância no agendamento das questões em debate. Para além de toda a envolvente cultural, social e económica que enformava esta problemática, e que assim lhe concedia a substância ontológica, a questão que ao nível das

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Fundo MNE. Secção Política. Legações. Embaixadas- Londres-Processos. Novas incorporações. Fundo 39. 6 Fransjohan Pretorius, Life On Commando During The Anglo-Boer War 1899-1902, Cape Town, 1999. 5

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estruturas formais se alpendorava a plano de visibilidade era, desde logo, a grande diversidade das disposições legislativas, que nesta matéria regiam os vários estados. Sublinhe-se, a título de exemplo, que no Cabo, onde a influência britânica era mais marcante, o direito ao voto era conferido a qualquer indivíduo, independentemente da cor, que soubesse ler, escrever, e possuísse rendimentos anuais superiores a 50 libras ou propriedades no valor de 75 libras. Ao invés, nos restantes estados, não só as populações negras não eram detentoras de qualquer direito de cidadania como sobretudo não existia qualquer vontade política ou social para alterar esse estatuto, o que por aqui inviabilizava qualquer consenso para uma futura constituição sul-africana, a qual no entanto todos ambicionavam. Num primeiro momento as tentativas de compromisso, que nesta matéria se procuraram, fracassaram como consequência da irredutibilidade bóer. Todavia, a preponderância do desejo de construir a União acabou por falar mais alto, levando os liberais do Cabo a abandonarem as suas pretensões de alargamento dos direitos de cidadania a um mais amplo universo de sulafricanos. Esta postura de compromisso e cedência será recebida com agrado pela própria Inglaterra, para quem a necessidade de pacificação política interna se afirmou de tal modo primordial, que a desvalorização da questão racial7 não implicou grande comoção. Por seu turno a comunidade negra, sobretudo nos grandes centros urbanos, não desistiu de tentar fazer valer os seus discursos reivindicativos construindo para isso mecanismos associativos e partidários, dos quais o melhor exemplo é o «South African Native National Congress» (SANNC). A marginalização formal e funcional a que estas estruturas negras foram votadas pelo poder branco em consolidação, implicará amiúde a radicalização do discurso negro. No entanto, o eclodir da grande guerra originará, nalguns setores da burguesia não branca, uma pacificação discursiva, a qual assentou na esperança de que a exortação de unidade nacional que subscrevem os pudesse aproximar do poder. Na verdade, os primeiros ecos do deflagrar do conflito na europa foram acompanhados pela afirmação da lealdade ao rei e ao império por parte do SANNC, o qual, em simultâneo, apela aos seus membros para terminarem com todas as ações de protesto em relação ao governo da União, e a alistarem-se para combater no velho continente.

Esta postura, se bem que sociologicamente determinada, na medida em que emana das burguesias urbanas negras e não das comunidades rurais, mais numerosas mas 7

M. Ballinger, From Union to Apartheid, Cape Town, 1969.

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politicamente pouco ativas, parte de um desígnio pragmático de tentar obter proveitos imediatos para uma intelectualidade negra emergente. Sem que isto implique o descurar da construção de um discurso mais alargado, visando a afirmação de reivindicações para o todo das comunidades não brancas. É verdade que este apelo à participação ativa na guerra, ao lado das tropas britânicas, não é bem recebido pelas comunidades brancas, que inclusivamente recusam a utilização de negros em combate na europa, nem é unânime entre os negros8. Entre estes últimos muitos preferem a neutralidade, e não são poucos os que manifestam o desejo pela vitória da Alemanha, em virtude de considerarem que a Grã-Bretanha os tinha abandonado face ao racismo africâner. A realidade é que terminado o conflito mundial o estatuto cívico e político das populações negras se manteve inalterável. Mas também não é menos verdade que toda esta dinâmica conflitual não mais deixará de condicionar, a sublinhado, as grandes opções estratégicas que agora se começam a construir. No que ao segundo problema supra referenciado diz respeito, um dos sinais sintomáticos que desde logo se pode convocar, para confirmar a profunda divisão entre ingleses e africâneres, é a necessidade que se impôs de constituir o gabinete ministerial saído das primeiras eleições legislativas da União, realizadas em 1910, com igual número de ministros de ambas as comunidades. Esta preocupação de distribuir as pastas ministeriais de forma equitativa revela uma evidente procura de construção de equilíbrios nos patamares políticos, mesmo que essa distribuição não encontrasse uma necessária correspondência com a realidade sócio demográfica do território em análise. De todo o modo será bem evidente na práxis desse primeiro gabinete, que os representantes Bóeres (Botha, que é o chefe do governo, Smuts, Herzog, Sauer, Fischer e F.S. Malan) acabaram por assumir um papel de muito maior relevo, em particular nas matérias a que por comodidade, embora de conceptualização terminológica pouco precisa, poderíamos chamar de política externa. Mas mais determinante do que esta divisão acabará por ser a oposição marcada entre aqueles que defendem a lógica unionista e aqueles outros, como Herzog, que manifestam a preferência pela construção de uma República sob hegemonia Africâner.9

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Albert Grundlingh, Fighting Their Own War, pp 67 a 79, Johannesburg, 1987.

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T.H.R. Davenport, The Afrikaner Bond, Londres, 1966.

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Esta dicotomia tem expressão relevante na postura face à guerra. Com efeito se 95% da população Africâner defende a neutralidade10, o governo controlado pelos unionistas, mesmo que Bóeres, acaba por afirmar a sua lealdade ao Império, entrando na guerra ao lado da Inglaterra. Esta opção acaba por ter consequências internas relevantes, como seria de esperar numa sociedade onde as feridas da contenda anglo bóer ainda estavam bem abertas, e por isso não só as forças nacionalistas, capitalizando a insatisfação Bóer, atingem resultados eleitorais muito significativos nas eleições de 1915, como se verifica uma tentativa de rebelião armada com o intuito de derrubar o governo, proclamar a república e construir vias diplomáticas de aproximação à Alemanha. Apesar de esta intentona ter sido derrotada, as tensões entre unionistas e nacionalistas não são minimamente apaziguadas, pelo que desde cedo se percebe a intenção, por parte do poder político, em transformar a participação na guerra num projeto de construção nacional e não meramente num sintoma de subalternidade face aos interesses britânicos. Ou seja, se para Botha e Smuts a participação na guerra é uma afirmação de pertença ao Império, também é um processo de sustentação de aspirações regionais as quais, em simultâneo, poderão contribuir para a construção de mecanismos de pacificação interna. As campanhas militares sul-africanas no contexto da grande guerra irão então travar-se em dois teatros de operações fundamentais. O Sudoeste Africano e a África Oriental. No primeiro caso as operações foram rápidas e sem grandes baixas, já no segundo foram demoradas e penosas11.

2. As relações diplomáticas entre Portugal e a União Sul Africana.

Para estudarmos as relações da União Sul Africana com Portugal, temos que começar por entender que o estatuto de domínio não conferia à União autonomia em termos de política externa. Essa era uma matéria de competência do governo imperial e do Governador-geral, que era o representante da coroa na África do Sul e desempenhava as funções de chefe de estado12.

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Frank Welsh, A History of South Africa, p. 379, Londres, 1998. Para análise detalhada destas campanhas ver Byron Farwell, The Great War in Africa, New York, 1989 e Albert Grundlingh, Fighting Their Own War, Johannesburg, 1987. 12 Marcelo Caetano, A internacionalização dos problemas africanos, p. 160, Lisboa, 1971. 11

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Contudo, a pressão exercida pelos sectores africâneres e o estatuto que a União consegue adquirir no contexto da grande guerra, acabará por lhe conceder um poder negocial de facto, no que diz respeito à condução das suas relações de vizinhança. Tal realidade não será muito facilmente entendida pela diplomacia portuguesa, a qual, até à década de vinte, irá insistir nas negociações diretas com a Grã-Bretanha, como forma de resolução dos assuntos respeitantes às relações da União com as colónias portuguesas. A recusa do diálogo com as autoridades sul-africanas, não só implicou que estas, muitas vezes, se tenham visto na necessidade de utilizar os mecanismos diplomáticos formais ingleses como intermediários, como levará Londres a chamar a atenção à diplomacia portuguesa para a urgência de se entabularem contactos bilaterais entre Lisboa e Pretória. De todo o modo é de realçar que se da parte das estruturas políticas metropolitanas é evidente a incapacidade de adaptação ao novo quadro geoestratégico e politico que se está a construir na África austral, já alguns setores da administração colonial, nomeadamente em Moçambique, revelam consciência dos potenciais perigos que poderiam advir dos desejos expansionistas sul-africanos. Desta tomada de consciência emana a compreensão da necessidade de participação de Portugal nas ações militares no teatro de guerra africano. Ou seja, se a perspetiva diplomática oficial assenta na crença de que o destino das colónias se decide na Europa, aqui entende-se que a conjuntura interna da União e o seu processo de consolidação, numa rota de afastamento da Grã-Bretanha, e de afirmação dos seus próprios interesses estratégicos se poderia assumir como um risco potencial para os objetivos territoriais nacionais. Nesta medida a participação na guerra em África não era entendida apenas como um conjunto de ações defensivas face às pretensões alemãs, esperando depois que o resultado do conflito na Europa resolvesse em definitivo as questões africanas, mas também como uma estratégia de afirmação da posição nacional face à emergência de uma novel realidade geopolítica. No terreno os grandes problemas bilaterais que se assumiam como centrais no relacionamento de Portugal com a União eram: em Moçambique o controlo do caminho-deferro e do porto de Lourenço Marques13 e também o recrutamento de indígenas para as minas do Rand, em Angola a demarcação da fronteira sul e os direitos de exploração das águas do rio Cunene. Observemos mais detalhadamente estas problemáticas.

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Ver nota 3.

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2.1 Moçambique As relações entre Moçambique e o Transval eram próximas e de grande importância.14 Na perspetiva transvaliana o recrutamento de trabalhadores em Moçambique era fundamental para o funcionamento do seu sistema mineiro; para a colónia portuguesa o fluxo comercial com aquele território era vital para a sustentabilidade do caminho-de-ferro e do porto de Lourenço Marques, estruturas estas que, ao mesmo tempo, eram cruciais para a economia do Transval, que por ali escoava a maior parte das suas exportações. Já no século XX e antes do eclodir da grande guerra os dois momentos marcantes do relacionamento formal entre estes dois territórios foram a assinatura do chamado «Modus Vivendi» de 1901, e a sua posterior revisão sete anos depois. Nas negociações de 1908 o que se assumiu como objetivo prioritário foi a elaboração de uma convenção que permitisse regular as grandes problemáticas supra referidas, no contexto que se esboçava de construção da União. No decorrer do processo negocial ficou claro, desde muito cedo, que ao contrário do que se tinha verificado em 1901, as autoridades coloniais moçambicanas pretendiam agora obter algumas vantagens económicas da utilização de mão-de-obra moçambicana nas minas do Rand. Neste sentido exigem que o repatriamento dos indígenas para Moçambique fosse obrigatório, logo que cessassem os contratos de trabalho nas minas sul-africanas e tentam impor o chamado princípio do pagamento deferido. Com a primeira exigência tentava-se evitar a falta de trabalhadores agrícolas, que periodicamente assolava as zonas fronteiriças desta colónia portuguesa da costa oriental de áfrica. No segundo caso o que se pretendia é que a maior parte dos salários fossem pagos apenas quando os nativos retornassem a Moçambique, permitindo assim uma significativa entrada de capitais para a tão débil economia moçambicana. Por pressão dos interesses da burguesia comercial do Rand este último ponto será inviabilizado, o que contribuiu para um agudizar do relacionamento entre as partes, que a partir de então não mais deixará de ser marcado pela desconfiança e tensão. No que diz respeito ao caminho-de-ferro de Lourenço Marques o governo do Transval propôs que os caminhos-de-ferro de ambos os territórios constituíssem um sistema único, administrado por uma comissão mista com representantes de ambas as partes, sem qualquer perda de soberania para Portugal. Em contrapartida garantiam que um 1/3 do total do seu comércio passaria pelo porto de Lourenço Marques.

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Ver nota 2.

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Se aquilo que aqui estava em causa era um mero acordo comercial, que à partida não teria grandes implicações quanto à autoridade territorial, levantava-se um problema que no futuro poderia causar embaraços diplomáticos. As administrações dos caminhos-de-ferro do Transval e de Moçambique eram, em grande parte, controladas pelos governos nacionais e, nessa medida, qualquer desentendimento na futura comissão mista poderia originar uma questão internacional. Por isto e pelos receios que apesar de tudo se verificavam de uma eventual perda de soberania, Portugal não aceita esta proposta, defendendo pelo contrário a existência de uma comissão mista, sim, mas com poderes meramente consultivos e funções de intermediação entre os governos. Para além destas duas questões permanentes no relacionamento entre Moçambique e o Transval, pretendia-se também, através da assinatura da convenção, estabelecer algumas normas para regular as relações comerciais. Tal desiderato já estivera presente no «Modus Vivendi» mas agora o contexto é bem diferente. O Transval, já em negociações para entrar na União não podia descurar os interesses económicos dos seus parceiros e para estes, sobretudo o Natal, a concessão de facilidades económicas a Moçambique não era vista com bons olhos. A convenção acabará por ser assinada em 1909, compreendendo quatro partes. A parte I regulava os assuntos respeitantes aos indígenas e se não consignava a pretensão moçambicana do pagamento deferido, definia quais as zonas onde o recrutamento poderia ser realizado e centralizava a concessão de autorizações no governo provincial. O primeiro ponto permitia não exaurir a mão-de-obra das regiões moçambicanas mais próximas da fronteira, enquanto o segundo obrigava os patrões sul-africanos ou os angariadores intermediários a pagar às autoridades distritais e ao governo da província, licenças várias e o emolumento respeitante à autorização de saída, que todos os nativos tinham de possuir para poderem abandonar o território moçambicano. Na parte II surgiam então os assuntos relativos ao caminho-de-ferro, triunfando a visão portuguesa de constituir uma comissão mista consultiva, dependente dos dois governos, afirmando-se no entanto que quando a comissão tomasse decisões por unanimidade, não seria necessária a aprovação governamental. Ao mesmo tempo definem-se tarifas mais baixas no sentido de facilitar as exportações do Transval. Na parte III regulam-se as relações comerciais e alfandegárias, estipulando a ausência de taxas aduaneiras para os produtos agrícolas de Moçambique e do Transval. Ao mesmo tempo afirma-se que no caso de se vir a constituir a projetada União das colónias inglesas do sul de África, ela assumiria a responsabilidade de respeitar o que aqui era determinado.

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Este último ponto em particular é causador de acesa repulsa no Natal, nomeadamente entre os seus produtores de açúcar que temem a concorrência moçambicana nas suas exportações para o Transval. No essencial pode-se considerar que para Moçambique esta convenção representou o alcançar de grande parte dos propósitos que então se tinham definido como prioritários, ou seja: retirar vantagens económicas do trabalho migrante indígena, não perder o controlo do caminho-de-ferro de Lourenço Marques e reforçar os laços comerciais com o Transval, apesar de o açúcar da costa oriental portuguesa ser produzido e comercializado por companhias de capitais maioritariamente britânicos. De acordo com o estipulado no texto da convenção, a formação da União da África do Sul em 1910 não implica qualquer revogação do articulado, mas a verdade é que as tensões acumuladas no processo negocial, e sobretudo os interesses divergentes do Orange e sobretudo do Natal, vão colocar no relacionamento com Moçambique uma grande pressão, que por não se conseguir encontrar com facilidade sistemas compensatórios de escape, não parará de crescer. Assim, quando se inicia a grande guerra e apesar de aquele texto continuar em vigor, as queixas Sul-africanas em relação a Moçambique são frequentes, sobretudo como consequência do funcionamento e administração do caminho-de-ferro e do porto de Lourenço Marques, duas infraestruturas que no contexto da guerra se tornam absolutamente fundamentais para a economia da União Sul Africana. Pretória considera então que Portugal não dispõe de meios, nem apresenta capacidades, para garantir o bom funcionamento daquelas infraestruturas, pelo que equaciona a possibilidade de aproveitar o desenvolver do conflito militar para inflacionar a sua influência política sobre o território de Moçambique. Em 1914 o General Smuts num memorandum ultra secreto para o War Gabinet defende mesmo a incorporação na União, do sul de Moçambique, da Rodésia, do Sudoeste Africano e de parte do sul de Angola, até às regiões atravessadas pelo caminho-de-ferro de Benguela 15. Para atingir tal desiderato Smuts apela à negociação, admitindo mesmo algumas formas de soberania partilhada e apontando como compensações a dar ao governo português, o perdão da dívida para com a Inglaterra e a cedência das colónias alemãs do Togo e dos Camarões, tendo chegado mesmo a defender a troca de Moçambique pelo Sudoeste Africano. É assim evidente que nesta data Smuts ainda não advogava a ocupação militar, como irá defender mais tarde, mas a verdade é que como consequência destas pretensões a União 15

Memorandum unsigned and undated in «Smuts papers», vol 256, nº 4 e 5, Privat papers box G. citado por Katzenellenbogen, South Africa and Southern Mozambique, Manchester, 1982.

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inicia uma forte campanha, nos círculos financeiros internacionais, com o objetivo de inviabilizar a concessão de empréstimos a Moçambique. Em paralelo insiste nas pretensões em relação ao controlo total do caminho-de-ferro e do porto de Lourenço Marques e nesse sentido pressiona Portugal a aceitar uma nova comissão mista, agora com maioria da União, oferecendo como contra partida a aceitação da velha ambição portuguesa do pagamento deferido. Como mesmo assim Portugal recusa, por considerar que a solução proposta era atentatória da soberania nacional, os sul-africanos acabam mesmo por denunciar a convenção de 1908. Estes desenvolvimentos diplomáticos não afetam de sobremaneira as relações económicas entre o sul da colónia portuguesa e a região do Transval. Estas eram importantes de mais, para ambas as partes, para serem suspensas por motivos políticos e por isso vão permanecer intensas. De todo o modo e apesar da manutenção do essencial dos fluxos económicos, a elaboração de uma nova convenção vai estar sempre presente nas intenções de ambas as partes, que a consideram fundamental como instrumento regulador ao nível do relacionamento formal das duas regiões, pelo que em 1923 a parte I da convenção acabará por ser reativada e durante parte da década de vinte irão ser desenvolvidas negociações tendentes à elaboração de uma nova convenção16. Neste novo processo negocial as eternas questões relativas ao controle administrativo do porto e do caminho-de-ferro continuam a ser determinantes mas agora o contexto estrutural voltou a alterar-se. O interlocutor de Portugal já não é o Transval mas sim a União Sul Africana, significando isto, desde logo, a necessidade de atendimento aos interesses do Orange e do Natal, de forma muito mais efetiva do que até então. Todavia é certo também que esses mesmos interesses, por não serem fundamentalmente estratégicos, mas circunstancialmente económicos, não eram imutáveis e tinham-se alterado em relação ao verificado em 1909. Veja-se, a título de exemplo, o caso do Natal. Se em 1909 esta região tinha determinado a sua postura diplomática em função dos interesses açucareiros, neste momento tal questão já não é considerada relevante. Agora os produtores de açúcar do Natal como consequência dos investimentos realizados, de uma melhor apropriação das capacidades tecnológicas, e sobretudo das facilidades de mão-de-obra, têm capacidade para produzir açúcar muito mais barato e de melhor qualidade, pelo que não temem qualquer concorrência regional.

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A propósito destas negociações é importante analisar as propostas portuguesas, apresentadas em 1922 pelo Almirante Ernesto de Vasconcelos e pelo Coronel Sá Carneiro, para a administração do porto e do caminho-de-ferro de Lourenço Marques, e para a constituição de uma nova comissão mista.

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Mas mais determinante na alteração do contexto estrutural em curso, é a transformação verificada no próprio estatuto da União. Com efeito, a participação na grande guerra implicara, de facto, uma diminuição da influência da Grã-Bretanha nos assuntos sul-africanos e será, como já anteriormente apontámos, a dificuldade portuguesa no entendimento desta realidade que mais empecilhos irá colocar num relacionamento que agora se pretendia bilateral, mas que para Portugal continuava a ser percecionado como trilateral.

2.2 Angola

Em relação a Angola os problemas que se colocavam no relacionamento com Pretória eram a demarcação da fronteira sul e os direitos de exploração das águas do Cunene. Nenhum destes problemas é novo, e nenhum se irá resolver até que se entre na década de vinte. No que diz respeito à fronteira sul deve começar por referir-se que em 1886 um tratado luso alemão tinha delimitado a fronteira entre Angola e a colónia do Sudoeste africano alemão determinando que ela «seguirá pelo curso do rio Cunene, desde a sua embocadura até às cataratas que aquele rio forma no sul do Humbe, ao atravessar a Serra Caná. Deste ponto em diante seguirá o paralelo até ao rio Cubango, (seguindo) d´ahi o curso deste rio até ao lugar de Andáara e deste local seguirá a fronteira em linha recta até aos rápidos de Catima no Zambeze»17 . Apesar do articulado neste acordo a verdade é que não se chegou a fazer a demarcação no terreno. Tal facto ficou a dever-se à existência de uma divergência em relação ao entendimento sobre qual a catarata referenciada no texto do tratado. Para o governo português tratar-se-ia da grande cascata de Ruacaná, enquanto os germânicos defendiam que se trataria de uma outra localizada mais a norte, na zona dos rápidos de Iacavala, bem dentro de território reivindicado por Lisboa. Perante esta divergência, a diplomacia portuguesa pouco confiante na eficácia da aliança inglesa, em virtude do impacto que os tratados anglo-germânicos lhe tinham causado, resignase a aceitar uma zona neutra no sul de Angola, englobando os territórios em disputa. O eclodir da grande guerra, e a posterior ocupação do Sudoeste Alemão pelas forças Sulafricanas, dilata a esperança nacional no reconhecimento das suas aspirações. Assim, em 1915 iniciam-se de imediato os contactos diplomáticos junto de Londres, com o intuito de que o governo imperial reconhecesse as Cataratas de Ruacaná, como o limite fronteiriço com o território agora ocupado pelas forças sul-africanas.

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AHMNE, P.2 - M31 - A49 - proc. 34., Convénio Barros Gomes, Schhmitzals, 1886

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Porém, pese embora as movimentações políticas na Europa, a verdade é que em finais de Agosto de 1915, as tropas da União comandadas pelo major Pritchard ocupam a localidade de Namakunda, no coração da zona neutra. Para muitos, em Angola, isto implica a perceção que a mudança de vizinhos não implica mudança de posicionamento geoestratégico, ou seja compreende-se que no essencial os sulafricanos irão manter as reivindicações germânicas, não aceitando as perspetivas portuguesas. O constatar desta realidade leva, de imediato, as autoridades militares portuguesas em Namakunda a estabelecerem um acordo com Pritchard, pelo qual se mantém a zona neutra. É evidente que o que aqui se procurava era o controlo de danos, pois as forças nacionais, empenhadas nas campanhas contra as sublevações Cuanhamas, reconheciam a sua total incapacidade para fazer frente a uma eventual progressão mais ofensiva por parte dos novos vizinhos do sul. De todo o modo as reações na metrópole foram muito violentas. Sustentam então várias vozes que se devia ter empurrado Pritchard para fora da zona neutra, considerando-se que se estava a conceder aos Sul-africanos o que sempre se tinha recusado aos alemães. No governo, Augusto de Vasconcelos escreve para o embaixador em Londres, Manuel Teixeira Gomes, instando-o a relembrar às autoridades britânicas que se Portugal tinha reconhecido a zona neutra com os alemães fora porque se tinha encontrado desapoiado, mas que agora esperava uma reação diferente por parte dos aliados. Perante isto a posição do Foreign Office vai ser marcada pela prudência. Por um lado Londres não pretende desagradar as autoridades sul-africanas, na medida em que uma intervenção em desfavor dos interesses de Pretória potenciaria o desagrado nos sectores mais nacionalistas e republicanos, contribuindo assim para uma rutura com a Inglaterra, mas por outro lado também não havia interesse em entrar em choque com as autoridades portuguesas, percecionadas como um contrapeso relevante na manutenção da estabilidade regional. Por aqui a postura britânica passará então a ser direcionada para o incentivo dos contactos diretos entre as autoridades da União e as portuguesas, ao mesmo tempo que tentam remeter a resolução do problema para o final da guerra, em conjunto com todas as restantes questões africanas. Perante isto a reação portuguesa, embora não escondendo o desagradado foi moderada, sobretudo porque, como diz Augusto Soares18, não valia a pena insistir muito na recusa dessa ideia, quando na prática não existia capacidade de impor a posição nacional.

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AHMNE, P.2-M.31-A.49

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Em 3 de Abril de 1918, Balfour comunica a Teixeira Gomes que as autoridades inglesas aceitam as reivindicações portuguesas, desde que Portugal autorizasse a União da África do Sul a aproveitar a água dos rápidos do Cunene, para fins de irrigação e produção de energia elétrica. As implicações resultantes desta proposta foram várias. A mais importante reside na entrada numa nova etapa desta disputa fronteiriça. Com efeito a diplomacia portuguesa recusa a concessão de tal autorização, nomeadamente porque os sul-africanos continuam a insistir na «visão alemã». Ou seja pretendem retirar aproveitamento hidráulico na zona dos rápidos de Iacavala e Nanguari, que as autoridades portuguesas consideravam ficar bem dentro de território nacional e que os sul-africanos afirmavam ser território sob disputa. Terminada a Grande Guerra e como consequência do estipulado na conferência de Versalhes a União Sul Africana ficou com mandato sobre o Sudoeste Africano o que implicou um reforço dos contactos diretos com Lisboa, que assim a contragosto se afasta da intermediação inglesa. O problema fronteiriço não se irá resolver com brevidade. Portugal continua a querer discutir apenas a delimitação mas as autoridades da União insistem no reconhecimento dos seus direitos de exploração das águas do Cunene. O desacordo leva a questão para a Assembleia da Sociedade das Nações sob o patrocínio de quem se assinará um acordo em 1926. A demarcação no terreno, por seu turno, iniciou-se em 1928 tendo ficado concluída três anos mais tarde.

3. Cooperação Militar no contexto da Grande Guerra.

Para as autoridades coloniais portuguesas a participação nos teatros de operações africanos no quadro da grande guerra, não era vista apenas como uma forma de garantir os interesses estratégicos nacionais, face às ambições germânicas, mas também como um garante contra as pretensões expansionistas sul-africanas. Assim, a compreensão desde muito cedo intuída, nas estruturas coloniais era a de que o melhor posicionamento preventivo, face às aspirações sul-africanas, seria a colaboração ativa com as tropas britânicas. Todavia a falta de preparação humana e logística, que caracteriza a ação portuguesa nestas campanhas africanas, vai inviabilizar a concretização cabal dessa estratégia. Assim, na campanha do Sudoeste, onde a ação concertada poderia ser particularmente relevante, não se registaram quaisquer modalidades evidentes de operações conjuntas19.

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Utiliza-se esta expressão no seu sentido comum e não com a espessura conceitual que atualmente lhe confere a doutrina.

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As tropas portuguesas limitaram-se a desempenhar ações defensivas na zona de fronteira e a combater os levantamentos indígenas, enquanto a campanha de invasão foi totalmente liderada pelos sul-africanos, os quais aliás sempre se mostraram relutantes face às pretensões inglesas de uma maior colaboração com as tropas de Angola. Na frente oriental a ação conjunta foi mais acentuada, em virtude do prolongar dos combates e do facto de muitos deles se terem verificado no interior do território moçambicano, onde foi necessário travar e perseguir as tropas alemãs que lá penetraram. De qualquer dos modos quando nos princípios de 1916, altura em que ainda se considerava que a resistência alemã na sua colónia oriental, não duraria muito tempo, Smuts solicita às tropas portuguesas que passem à ofensiva no Rovuma, Ferreira Gil, confrontado com uma multiplicidade de problemas, que iam desde a falta de alimentos, de medicamentos e de recursos humanos qualificados afirma-se incapaz de avançar. Só passará o Rovuma no final do ano, mas desde essa altura a desconfiança do General sulafricano em relação às tropas e às capacidades portuguesas não pararam de crescer e não deixa de ser significativo que num discurso de agradecimento que faz em Abril de 1917, referencie o governo da Índia, a Companhia da África oriental britânica, a Cruz Vermelha, os South African Gifts Committes, o Maharajah Scindia de Gwalior, Zanzibar e uma série de associações particulares20, mas nunca se refira a Portugal. Mesmo quando a partir de Fevereiro de 1918 o general Van Deventer assume o comando de todas as tropas em território moçambicano, incluindo as portuguesas, o relacionamento será extremamente problemático, conflituoso e muito pouco profícuo em termos operacionais. Em termos logísticos a cooperação também nunca foi particularmente significativa, apesar de ter sido frequente, por parte das autoridades do cabo, a cedência de medicamentos e a venda de armamento às forças nacionais. A primeira situação, originada pelo facto de com alguma regularidade as expedições portuguesas chegarem a África com medicamentos deteriorados ou desadequados, não implica propriamente um reforço empático, na medida em que os soldados lusitanos desconfiavam dos medicamentos sul-africanos, de tal modo que muitos carregamentos de quinino, com origem sul-africana, foram mandados ao mar pelas tropas portuguesas21. Em relação ao armamento o que então se verificou mais não foi do que a permanência de uma prática usual desde finais do século XIX e que se consubstanciava na compra, por parte das

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AHMNE, P.3 - M.21 - A.9, Nota de Augusto Vasconcelos a Teixeira Gomes, Maio de 1917.

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Se a explicação para esta atitude é a origem dos medicamentos é algo que fica por provar. Até porque sabemos, pela análise das fontes, que muitos soldados desconfiavam do quinino em geral por o considerarem causador de impotência.

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autoridades locais de Angola e Moçambique, de armamento sul-africano, normalmente mais moderno do que aquele que equipava as tropas do exército colonial. Para Portugal era essencial ter uma participação ativa no desenrolar do conflito. Ação que deveria estar alicerçada na colaboração com os aliados e na prossecução de ações ofensivas. Por outro lado era fundamental evitar comandos conjuntos e a presença de tropas estrangeiras, mesmo aliadas, em territórios nacionais, e na perspetiva de participação na partilha dos despojos territoriais era importante que quando a guerra terminasse Portugal estivesse numa posição de ocupação militar efetiva dos territórios que ambicionava. Na verdade o que acabou por se verificar foi que terminado o conflito existiam tropas sulafricanas e inglesas no território de Moçambique, e que em Angola os sul-africanos continuavam a apoiar tribos sublevadas, para além de possuírem as capacidades logísticas e humanas para penetrar e controlar as regiões hídricas do Cunene. Parece assim poder apresentar-se afirmar-se duas ideias: primeira; a grande estratégia política, que acreditava que o destino das colónias se decidia em absoluto nos teatros de operações europeus não era unânime entre os colonialistas mais próximos da realidade. Segunda; falhou a visão que pretendia o marcar de uma posição relevante em termos estratégicos e simbólicos, nos teatros de operações africanos, para deste modo inviabilizar as ambições que a União da África do Sul não escondia, face aos territórios portugueses em África.

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CONCLUSÃO

Em jeito de conclusão, se bem que provisória, duas ideias parecem poder ser aqui realçadas: primeiro, para as autoridades coloniais portuguesas a participação da guerra, nos teatros de operações africanos, não era vista apenas como uma forma de garantir os interesses estratégicos nacionais, face às ambições germânicas, mas também como um garante contra as pretensões expansionistas sul-africanas. Por este motivo não parecia ser satisfatória a visão dominante em Lisboa, e que a Historiografia em geral perfilha, de que o desfecho das operações na Europa determinaria o destino dos territórios africanos. Todavia a deficiência logística, o escasso investimento, e a falta de preparação das tropas expedicionárias inviabilizou a concretização de ações conjuntas significativas em África e não permitiu impor uma posição favorável no terreno. Trunfos que poderiam ter sido significativos numa futura conferência de paz. Em termos gerais podemos mesmo considerar que em África os objetivos operacionais não foram atingidos. Ocupou-se o triângulo de Quionga porque os alemães o abandonaram, mas de resto todas as tentativas de lançar ações ofensivas em território alemão resultaram em desastres. Ultrapassou-se o Rovuma mas quando se quis impor a presença nacional em pontos estratégicos do litoral sul da colónia alemã, já os britânicos lá tinham chegado. Ocupou-se Nevala mas passado pouco tempo teve de se fugir de lá, pela calada da noite, perante um contra ataque alemão mais intenso. Mais grave ainda, quando as tropas inimigas entraram em território moçambicano teve de se recorrer à ajuda aliada e alienar o próprio comando das operações. A cooperação com as forças aliadas também não se concretizou; no sudoeste africano a campanha foi concluída sem a participação portuguesa, e na África Oriental a colaboração foi tardia por incapacidade de colocar as tropas em situação de operacionalidade, como consequência das deficiências logísticas, das dificuldades de comunicação e da inadequação dos contingentes e do armamento. Mas a verdade é que a despeito de nenhum dos objetivos operacionais ter sido alcançado, concluída a guerra os grande objetivos nacionais em África, que eram fundamentalmente a manutenção da integridade territorial e o reconhecimento no terreno das fronteiras diplomaticamente acordadas, foram atingidos, pelo que se poderá defender a justeza da estratégia de subvalorização dos teatros africanos em favor da hipervalorização dos europeus. No nosso entendimento isso não corresponde inteiramente à realidade, na medida em que nos parece que a obtenção dos grandes propósitos políticos resultaram sobretudo do espaço

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de rutura provocado pelos novos mecanismos diplomáticos em construção, os quais alicerçados nos princípios Wilsonianos acabaram por colocar as potências vencedoras em campos desconhecidos, inviabilizando muitos dos seus objetivos de guerra. Ou seja, acreditamos poder afirmar que se não fossem as especificidades internas da União da África do Sul e o espaço de rutura provocado pelos novos mecanismos diplomáticos, a estratégia política que presidiu à atuação militar em Angola e Moçambique entre 1914 e 1918, teria levado provavelmente à alienação de algumas das parcelas destes territórios, não para a Alemanha, mas sim para a União da África do Sul, e nem a participação de Portugal na frente ocidental teria obstado a tal facto.

Segundo, por parte da diplomacia nacional a compreensão do estatuto muito particular da União Sul Africana foi tardio, pelo que até muito tarde se vai insistir nas relações com a Inglaterra com o intuito de se resolverem as questões com a União, mesmo quando a própria Grã-Bretanha apelava para o estabelecimento de relações bilaterais com Pretória. Sem querermos pormenorizar demasiado o evoluir das negociações diplomáticas durante a década de 20, na medida em que já se afastam do âmbito cronológico a que nos propusemos, há no entanto um fator que aqui merece ser relevado, que é o facto de só a partir de meados desta década se ter começado a vislumbrar, na diplomacia portuguesa, a necessidade de entabular negociações diretas com a África do Sul, abandonando a intermediação britânica. Com efeito se em 1917 Augusto Soares escrevia para Londres a perguntar a Teixeira Gomes, a propósito das disputas fronteiriças: «Que deliberação caberá ao governo da União em tal matéria, que tem o governo da União com aquela história? O governo inglez sim tem alguma coisa. Se o Sr. Balfour quer documentos sobre a nossa disputa dê-lhos, mas não para serem transmitidos á União que não tem connosco compromisso algum nem goza a reputação de nos prezar muito mais que a Alemanha» 22, em 1925 Afonso Costa, na Assembleia da Sociedade das Nações, declarava que Portugal não se opunha a que a partir de então as negociações se processassem diretamente entre o governo português e o governo da União, o que se é significativo de uma nova forma de relacionamento acabará por não ter uma expressão prática muito cabal, devido às condicionantes que derivam, apesar de tudo, do estatuto muito próprio da África do Sul. Com efeito, até muito tarde Portugal irá recusar a abertura de representações diplomáticas da União em Lisboa e as negociações com os Altos-comissários da União em Londres eram

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AHMNE, P.3- M.21- A.9, Nota de Augusto de Vasconcelos a Teixeira Gomes, 13 Novembro, 1917

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dificultados pelos seus escassos poderes reais e pela preocupação por parte dos agentes diplomáticos nacionais, em não ferir as suscetibilidades dos ingleses. Esta aproximação ao nível dos contactos, que não dos propósitos, é acelerada pela subida ao poder dos nacionalistas de Herzog, pouco dispostos a qualquer tipo de dependência face à Inglaterra, mas também, a nível interno, por uma visão mais pragmática que começa a ganhar algum peso, alicerçada nos próprios posicionamentos de Teixeira Gomes que enquanto ministro de Portugal em Londres já se tinha apercebido da consolidação de um estatuto muito particular por parte da União e daí recomendava insistentemente, desde 1916, o reforço dos contactos diretos e o envio para Pretória ou outras cidades sul-africanas, de personalidades nacionais com o estatuto de observadores. Aliás à atrás citada carta de Augusto Vasconcelos o nosso ministro em Londres respondeu, de forma diplomática mas particularmente consciente: «Pergunta-me V.Exa. que deliberações cabem ao governo da União em tal matéria? Que tem o governo da União com aquela história? Sinto muito não estar habilitado para responder cabalmente a V.Exa. mas parece-me que a circunstância de ter sido a colónia alemã conquistada pela África do Sul, algum direito lhe deve dar. Mas quando mesmo esse direito não assentasse realmente em bases justificáveis bastava que o governo inglez lho reconhecesse para que ele exista.» 23

Marco Fortunato Arrifes Agosto de 2015

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AHMNE, P3- M 21- A.9, Carta de Teixeira Gomes a Augusto de Vasconcelos, 7 Dezembro, 1917.

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