Relatório Antropológico da Comunidade de Remanescentes de Quilombo Barra de Oitis, Diamante-PB

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Descrição do Produto

Relatório Final Relatório de Identificação e Delimitação territorial (RETID) da Comunidade de Remanescentes de Quilombo Barra de Oitis, município de Diamante/ PB

INTERESSADO

IPHAN – Paraíba Contrato CTR/PB/2012

Campinas Março DE 2013

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Equipe DEMACAMP Gilson José Rodrigues Junior de Andrade

Antropólogo Assistente de Pesquisa

Adolfo Daniel Correia da Silva Taciana Kelly da Silva

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SUMÁRIO DE FIGURAS Fig. 1 Fig. 2 Fig. 3 Fig. 4 Fig. 5 Fig. 6 Fig. 7 Fig. 8 Fig. 9 Fig. 10 Fig. 11 Fig. 12 Fig. 13 Fig. 14 Fig. 15 Fig. 16 Fig. 17 Fig. 18 Fig. 19 Fig. 20 Fig. 21 Fig. 22 Fig. 23 Fig. 24 Fig. 25 Fig. 26 Fig. 27 Fig. 28 Fig. 29 Fig. 30 Fig. 31 Fig. 32 Fig. 33 Fig. 34 Fig. 35 Fig. 36 Fig. 37 Fig. 38 Fig. 39 Fig. 40 Fig. 41 Fig. 42 Fig. 43 Fig. 44

Entrada da cidade Mapa de acesso rodoviário da Paraíba Mapa da Paraíba Capa da Revista em comemoração aos 50 anos de Diamante Árvore genealógica dos Barros Capela (foto de foto) Capela Igreja de Nossa Senhora da Conceição (foto de foto) Igreja de Nossa Senhora da Conceição Mapa de Diamante Laurindo (1) Laurindo (2) Pau de arara (Itaporanga-Barra de Oitis) Carro-Pipa Carro-Pipa (2) Estrada de barro Máquina de terraplanagem Cisterna para captação de águas da chuva Caixa d’água de acrílico Festa de João-Pedro (1) Festa de João-Pedro (1) Posto de saúde da Barra de Oitis (1) Posto de saúde da Barra de Oitis (2) Placa na entrada da cidade Maternidade municipal Visão geral da Barra de Oitis Visão geral – sede do município-Centro da Barra Visão do Centro da Barra de Oitis Má e Maria do Socorro (foto de João Batista Delfino) Vista da Barra-Nichos Vista da região dos Alexandres Seu Luizinho (83 anos) Cícera Elias (67 anos) Sátiro Delfino, Expedita Roque e uma de suas filhas Árvore genealógica Sátiro-Expedita Bulgari Seu Roseno (87 anos) e Gal (26 anos) Renda familiar Lata d’água na cabeça Trabalhando na terra Terreno de Cícera Elias sob os efeitos da seca perdida Trazendo água do açude Terreno de Cícera Elias antes da seca Exemplo de porco criado solto pela comunidade

23 24 25 26 27 30 30 32 33 36 37 38 40 42 42 43 44 44 45 49 49 51 52 53 53 58 59 59 61 70 70 73 75 77 77 80 81 84 86 86 87 87 89 90

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Fig. 45 Fig. 46 Fig. 47 Fig. 48 Fig. 49 Fig. 50 Fig. 51 Fig. 52 Fig. 53 Fig. 54 Fig. 55 Fig. 56 Fig. 57 Fig. 58 Fig. 59 Fig. 60 Fig. 61 Fig. 62 Fig. 63 Fig. 64 Fig. 65 Fig. 66 Fig. 67 Fig. 68 Fig. 69 Fig. 70 Fig. 71 Fig. 72 Fig. 73 Fig. 74 FIg. 75 Fig. 76 Fig. 77 Fig. 78 Fig. 79 Fig. 80 Fig. 81 Fig. 82 Fig. 83 Fig. 84 Fig. 85 Fig. 86 Fig. 87 Fig. 88 Fig. 89

Conduzindo o gado Famílias que recebem benefícios Grau de instrução Micro-ônibus escolar Pick-up para transporte escolar Escola (1) Escola (2) Ensino Fundamental Creche Adolescente em moto Motos Reunião da Associação – 23/07/2012 Cor de pele declarada Reunião da Associação: 08/04/2012 Reunião 24/07/2012 Seu Roseno Árvore genealógica-Seu Roseno Árvore genealógica Bulgari-Maura Bulgari, Gal e Maura Tempo que reside na comunidade Enchendo os baldes Equilibrando o balde Carregando os baldes Abastecimento Cisterna Abastecendo na cisterna (1) Abastecendo na cisterna (2) Açude dentro da Comunidade Abastecidos Abastecidos (2) Açude Banhando-se no açude Mapa do Abastecimento de água; Escala: 1:2000 Homem tomando banho no rio Lavagem de Roupa Visão panorâmica do Rio Piancó Passagem Molhada (1) Passagem molhada (2) Moradia Casa de taipa sendo coberta (1) Casa de taipa sendo coberta (2) Casa de taipa (1) Casa de taipa (1) Cruz na estrada (1) Igreja Evangélica (1)

90 91 93 95 96 97 97 98 98 100 101 102 103 104 105 110 111 113 114 114 116 116 117 117 118 119 119 120 121 121 122 122 124 125 126 127 128 129 130 131 131 133 133 135 136

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Fig. 90 Fig. 91 Fig. 92 Fig. 93 Fig. 94 Fig. 95 Fig. 96 Fig. 97 Fig. 98 Fig. 99 Fig. 100 Fig. 101 Fig. 102 Fig. 103 Fig. 104 Fig. 105 Fig. 106 Fig. 107 Fig. 108 Fig. 109 Fig. 110 Fig. 111 Fig. 112 Fig. 113 Fig. 114 Fig. 115 Fig. 116 Fig. 117 Fig. 118 Fig. 119 Fig. 120 Fig. 121 Fig. 122 Fig. 123 Fig. 124 Fig. 125 Fig. 126 Fig. 127

Igreja Evangélica (2) Gráfico Religião Árvore Genealógica Bulgari-Maura Dona Luizanita Nicca (93 anos) Visita da JOCUM (1) Visita da JOCUM (2) Visita da JOCUM (3) Visita da JOCUM (4) Árvore Genealógica-Luizanita Nicaca Malhação do Judas (Mata de Oitis) – 1 Malhação do Judas (Mata de Oitis) – 2 Malhação do Judas – Barra de Oitis – 1 Malhação do Judas – Barra de Oitis – 2 Malhação do Judas – Barra de Oitis – 3 São João da Escola Ensaio do São João Bozó Fazenda Pai do Céu (1) Fazenda Pai do Céu (2) Fazenda Pai do Céu (3) Dona Luisa (57 anos) Arvore Genealógica Roseno-Luiza Cerca elétrica Cerca elétrica (2) Cerca elétrica (3) Fachada da prefeitura de Diamante Nome de rua (1) Nome de rua (2) Cemitério Jardim da Saudade, fundado por Hermes Mangueira Diniz Jazigo da família Barros Fronteiras com as terras da Barra de oitis Laurindos Patuscada Roça Nova Terra Nova Proprietários/hectares Gráfico de proprietários Localização do espólio de Josè Roque da Silva

136 137 139 142 144 144 145 145 147 151 151 152 153 153 154 155 157 158 159 159 162 163 164 165 166 171 171 172 172 173 177 177 178 178 179 180 181 184

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ÍNDICE

“NASCIDOS E CRIADOS”: LUTA POR RECONHECIMENTO E REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DOS MORADORES DA BARRA DE OITIS. Barra De Oitis, Diamante/PB 1.

APRESENTAÇÃO

8

2.

QUILOMBO, QUILOMBOLAS, COMUNIDADES DE REMANESCENTES DE QUILOMBO: UMA BREVE INTRODUÇÃO Á CONSTRUÇÃO DO CONCEITO

10

3.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

21

4.

O MUNICÍPIO DE DIAMANTE

23

4.1

A origem do povoado

27

4.2

A origem do nome “Diamante”

28

4.3

De Povoado a Distrito

33

4.4

Emancipação Política

34

4.5

A atualidade de Diamante

36

5.

58

A BARRA DE OITIS

5.1

Do oral ao escrito, um povo que escreve a sua história

68

5.2

Duas versões sobre a vinda dos Lucas e dos Nicacas

71

5.3

As narrativas da fome

72

5.4

Hoje estamos no céu

82

5.5

A atualidade da Barra de Oitis

83

a) Trabalho e renda

84

b) “Daqui a pouco o pessoal vai tá saindo da faculdade e indo pro corte”

92

c) “Agora todo mundo quer ser negro”

102

d) “Nascidos e criados aqui”

108

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e) “Abastecimento de água”

115

f) “O acesso a Barra”

127

g) Moradia

130

h) A religiosidade na Barra

134

i) Comemorações, festividades entre as diferentes gerações

146

6.

LAZER NO COTIDIANO DA BARRA

155

7.

ENTRE “HERDEIROS” E “QUILOMBOS”

157

8.

DIMENSÕES DO TERRITÓRIO DA BARRA DE OITIS

176

9.

GUISA DE CONCLUSÃO

183

10.

REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO

188

11.

ANEXOS

192

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1.

APRESENTAÇÃO

O trabalho aqui apresentado é parte integrante do Relatório de Identificação e Delimitação Territorial (RTID) da Comunidade de Remanescentes de Quilombo Barra de Oitis (PB), localizada há cerca de sete quilômetros do município de Diamante (PB). Como exigência do contrato CTR/PB05/2012, iniciado em fevereiro de 2012. O material aqui exposto tem seu foco nos métodos e técnicas de investigação antropológicas, sendo estes concernentes à formação do pesquisador responsável e de seus assistentes. No entanto, a formação específica dos integrantes da equipe não impede a construção de um diálogo profícuo com outras áreas de conhecimento. Neste sentido, ganha destaque o pensamento de Geertz (2001) ao propor o aprofundamento de diálogos entre áreas distintas, múltiplas correntes teóricas e perspectivas, sem que signifique que uma se funda a outra, e sim que as fronteiras, ainda que mantidas, sejam aproximadas, produzindo com isso avanços que o cerrar de fileiras impede. Propõe-se neste trabalho um importante diálogo entre a antropologia e o direito, tendo em vista que servirá de peça administrativa, e porventura jurídica, na construção de uma base argumentativa que visa expor os motivos para que as terras referentes à Barra de Oitis sejam reconhecidas legalmente como de direito da população rural de remanescentes de quilombo que residem no local há aproximadamente três séculos, de acordo com os dados aqui apresentados, obtidos a partir da observação participante, entrevistas semiestruturadas, levantamentos documentais, assim como de dados quantitativos, obtidos tanto a partir de um levantamento panorâmico referente à quantidade de famílias e pessoas por residência, quanto da organização de dados obtidos a partir do preenchimento de cadastros a serem enviados ao INCRA. A relação entre dados qualitativos e quantitativos visa apresentar uma análise pormenorizada das configurações sociais que envolvem e entrecruzam os moradores da Barra de Oitis, assim como outros sujeitos que com estes vêm se relacionando ao longo de suas trajetórias , o que inclui autoridades públicas municipais, antigos proprietários de terra, dentre outros que serão apresentados ao longo do texto. A elaboração de um relatório antropológico torna-se um desafio por diversos fatores. Destacando-se a necessidade de se articular bibliografias e métodos, assimilados no âmbito acadêmico, para a elaboração de um material que não é propriamente acadêmico. Tratando-se de algo que deverá servir aos interesses diretos da comunidade, desenvolvido a partir do pressuposto da construção de diálogos entre diferentes esferas do Estado, principalmente membros do INCRA

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– maior órgão responsável pela mediação entre os interesses dos quilombolas na relação com outras esferas institucionais, sejam elas estatais ou não, como é o caso do dialogo que vêm sendo estabelecido com ONGs e outras organizações da sociedade civil organizada, e, em especial, promotores e magistrados. Pretende-se observar as representações compartilhadas e naturalizadas no contexto analisado, buscando compreender que efeitos decorreram dai. Isto não implica que se negue a perpetuação de desigualdades tradicionalmente aceitas, e seus efeitos perversos para as populações hoje denominadas quilombolas, mas que se compreenda como isto ocorreu, ou seja, que elementos proporcionaram tal legitimação. Vale salientar que o universo de pesquisa se mostrou complexo tanto pelos conflitos inerentes a pesquisas que envolvam a posse de territórios, quanto pela riqueza etnográfica percebida ao longo do trabalho de campo. Neste relatório buscou-se apresentar pormenorizadamente as questões que nos parecem relevantes na compreensão da importância do território em questão para a Comunidade de Remanescentes de Quilombo da Barra de Oitis – composta por aproximadamente 157 famílias distribuídas ao longo de seu vasto território. Se por um lado não foi possível estabelecer as dimensões exatas do território, por outro pudemos apreender os limites deste a partir do conhecimento do saber local dos moradores da Barra, como de outros interlocutores, o que somado aos documentos cedidos pelo cartório, permite que seja vislumbrada a extensão de terras – que ultrapassa 8.000 hectares – colaborando com a compreensão dos motivos pelos quais este território deve ser entregue aos seus antigos moradores. Considerou-se a relevância de dados acerca da trajetória histórica da população, sua relação socioeconômica e cultural com a terra – incluindo ai suas construções identitárias, coletivas e subjetivas; conflitos territoriais que atravessam toda a história da Barra de Oitis até o presente momento; manifestações religiosas, expressões de lazer; questões geracionais, para citar apenas alguns fatores. A elaboração de um relatório antropológico não deve ser compreendida enquanto uma maneira de “dar voz” aos sujeitos que compõem a comunidade. Trata-se aqui de um dispositivo que é fruto das exigências estatais – para a legalidade de um direito tradicionalmente construído –, e uma demanda da própria comunidade, que habita a categoria quilombola na luta por reconhecimento, rompendo assim com um processo de invisibilização social que a um só tempo as deixava a mercê de estigmas (GOFFMAN, 1988) e era usado pelos próprios quilombolas co-

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mo estratégias de proteção e de autopreservação. Dessa forma, partindo do pressuposto que os interlocutores estão envolvidos em relações assimétricas, desiguais, mas que também são dotados de agencia, estabelecendo assim negociações com as diferentes esferas institucionais e demais atores envolvidos com o seu processo de reconhecimento. Dessa forma, no contexto específico da Comunidade Remanescente de Quilombo da Barra de Oitis, buscou-se compreender as redes de solidariedade e relações familiares a partir do contexto socioeconômico e cultural vivenciado por seus integrantes. Objetivando identificar, dentro dos limites permitidos à pesquisa, as estratégias de ação e disposições (BOURDIEU, 2008; 2009), não reconhecidas dentro de uma dinâmica hegemônica, através das quais estabeleciam negociações com outras esferas da sociedade. Isto aponta não para uma ineficácia das instituições sociais e seus mecanismos de controle, e sim para a existência de microrresistências fundadoras de microliberdades (CERTEAU, 2011) que permeiam o cotidiano dos grupos tidos como dominados. A presença e a circulação de uma representação (ensinada como o código da promoção socioeconômica por pregadores, por educadores ou por vulgarizadores) não indicam de modo algum o que ela é para seus usuários. É ainda necessário analisar a sua manipulação pelos praticantes que não fabricam. Só então é que se pode apreciar a diferença ou a semelhança entre a produção da imagem e a produção secundária que se esconde nos processos de sua utilização. (CERTE AU, 2011, p. 39)

2.

Quilombo, quilombolas, comunidades de remanescentes de quilombo: uma breve introdução à construção do conceito. Umas das primeiras questões com a qual nos deparamos ao construirmos uma pesquisa acerca de comunidades negras rurais é, sem dúvida, a categoria "quilombola”, através da qual seus integrantes respondem as exigências do Estado, ao mesmo tempo em que exigem deste reconhecimento – fazendo uso estratégico da categoria por eles habitada. Não pretendemos apresentar uma análise detalhada das várias fases, construções e ressemantizações (ARRUTI, 2006) pelas quais esta categoria já passou. Nesta sessão, além de um panorama geral acerca dessas questões, busca-se apresentar a urgência de se garantir mais visibilidade para as questões relacionadas aos conflitos territoriais brasileiros e, aproximando-se mais da intenção da elaboração dos laudos, a pensar como as

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referidas questões se relacionam diretamente com a construção identitária, os referenciais culturais e as lutas por reconhecimento de grupos historicamente estigmatizados. Acerca disso Ilka Boa Ventura Leite (2012, p. 18) ressalta: “A invisibilidade dos grupos rurais negros é a expressão máxima da ordem jurídica hegemônica e também expõe uma forma de violência simbólica. Sua característica principal é a criminalização daqueles que lutam para permanecer em suas terras”. Além do processo de invisibilização e de criminalização demonstrados pela autora, é também indispensável pensar acerca dos dispositivos de precarização apontados por Arruti (2012) na discussão sobre a situação dos moradores da comunidade quilombola da Marambaia, no Rio de Janeiro. Resguardando-se as devidas especificidades de cada caso, é importante ressaltar que tais dispositivos podem ser percebidos a partir das contradições do Estado, que no caso relatado pelo pesquisador, findam por apontar para uma potencial expropriação dos integrantes dessa comunidade, baseados em justificativas de que o território em que residem serve aos “interesses estratégicos militares”. Seja com base em interesses deste tipo, na proteção ambiental ou mesmo numa insistente justificativa em defesa da propriedade rural privada, as comunidades negras rurais têm sido submetidas a um processo de rebaixamento social que se percebe no descaso planejado (SCOTT, 2009), que se mostra na negação de direitos básicos garantidos constitucionalmente, o que inclui sua construção identitária e manifestações culturais. Ainda acerca do conceito de identidade, destaca-se a noção de identidade social, compreendida não como um estado fixo, imutável, ou algo construído unilateralmente, e sim como algo dinâmico, construído de forma relacional. Nesse sentido, o processo de autorreconhecimento dos grupos enquanto quilombolas é dado a partir de “[...] noções de pertenças construídas e legitimadas no interior dos próprios grupos embora decorrentes de dinâmicas e forças sociais em movimento”. O direito intitulado “quilombola” emerge no cenário de redemocratização do país como um dos vetores representativos de grupos até então invisíveis no cenário político nacional. Emerge como reivindicação de grupos até então com reduzido grau de mobilização, mas esta era a situação de todos os demais, após duas décadas de regime militar. O que não quer dizer falsificados, ou ancorados em premissas infundadas. Se assim fosse estaríamos desconsiderando todos os fundamentos que instituem o social, e os próprios Estados-Nação não teriam qualquer base de sustentação como organizações humanas criadas com autênticos propósitos políticos e sociais (LEITE, 2010, p. 20).

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Diante disto, não se pode ignorar que a construção dos Estados-Nação deve ser compreendida a partir da interação de campos e subcampos de disputa, onde se instauram lutas pela construção de narrativas hegemônicas. [...] aquelas ideias que são tão difundidas, tão aceitas, que prescindem de qualquer questionamento. Apesar de raramente serem explicitadas, perpassam os enunciados mais banais da conversa cotidiana – constatando como obviedades tão evidentes quanto a chuva que cai. A noção, tal como é usada aqui, não implica em “falsa consciência”, mas antes num determinado filtro que as pessoas usam “naturalmente” para apreender a realidade. Não há verdade única a ser descortinada, mas certamente há forças políticas, com pesos diferenciados, que rivalizam para imprimir sua versão de realidade (FONSECA, ALLENBRANDT, AHLERT, 2009, p. 43).

Importantes princípios modernos como democracia, cidadania e direitos humanos fazem parte de um processo civilizador que, como destaca Elias (1994), não se dá de forma homogênea sobre todos os sujeitos e grupos. Enquanto alguns serão construídos como mais civilizados, tendo incorporado controle das emoções em suas práticas, outros serão considerados civilizados ou mesmo descivilizados. Seguindo tal raciocínio podemos compreender que esse processo legitima determinadas construções culturais em detrimento de outras. Tais conceitos, em diálogos com outros, servem aqui como chave interpretativa para a compreensão da perpetuação de diferentes formas de desigualdade que atingem de maneira perversa as comunidades de remanescentes de quilombos, as quais, a exemplo de outros grupos foram alvo de um recuo do Estado nas instâncias municipais, estaduais e federais. Por vezes as diferenças socioeconômicas e culturais entre os mais diversos grupos têm fomentado conflitos (ELIAS; ESCOTTSON, 2000), seja em esferas menores, como os conflitos geracionais em contextos familiares (SCOTT, 2009; DEBERT, 1999), ou em contextos macrossociais, como é o caso dos conflitos entre Estados-Nação (ELIAS, 2006). No entanto é importante reconhecer que os conflitos, ao contrário da compreensão muitas vezes percebida no senso comum, não devem ser compreendidos como algo essencialmente negativo, tendo em vista que é através destes que também se constroem as identidades dos grupos e, consequentemente dos sujeitos que os compõe (BARTH, 1969). Isto também não deve dar vazão a uma compreensão romanesca das relações entre os grupos, o que poderia levar a uma invisibilização das relações desiguais, frequentemente naturalizadas que existem entre eles.

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Para o sociólogo Norbert Elias os conflitos entre os grupos – sejam os que o autor chama de estabelecidos ou os denominados outsiders – são gerados não apenas por demandas econômicas, mas também por uma preocupação em proteger seus valores, vistos comumente como melhores e superiores. O grupo estabelecido irá valer-se de diversas justificativas e estratégias para afirmar, defender e legitimar sua suposta superioridade, o que, dentre outras, infligirá em um rebaixamento social dos demais, quando estes não se encaixarem nos seus padrões. Ainda de acordo com o referido autor, há possibilidades de mudança nesses cenários, mas estas dependem pelo menos de dois fatores, que precisam invariavelmente estar combinados: 1) um senso crítico acerca das configurações sociais por parte dos outsiders, que possibilite a desconstrução de padrões e estigmas muitas vezes reproduzidos por eles mesmos; 2) um sentimento de pertença que una os sujeitos ao redor de uma causa comum. Isto pode ser facilmente percebido, por exemplo, nas demandas de diversos grupos: mulheres, homossexuais, negros, dentre outros. Cada um destes grupos constrói suas agendas de lutas e reivindicações, não sem conflitos e dissensos, em busca de reconhecimento e por relações mais igualitárias, seja diante do Estado como de toda a sociedade na qual estão inseridos. Neste sentido, Axel Honneth afirma que: São lutas moralmente motivadas de grupos sociais, sua tentativa de estabelecer institucional e culturalmente ampliadas de reconhecimento recíproco, aquilo por meio do qual vem a se realizar a transformação normativamente gerida das sociedades (HONNETH 2003, p. 156)

Ainda segundo o autor, as relações jurídicas geram autorrespeito: “consciência de poder se respeitar a si próprio, porque ele merece o respeito de todos os outros” (HONNETH, 2003, p. 195). Seguindo suas reflexões é possível compreender que a noção de autorrespeito, seja nas relações intersubjetivas ou dos grupos, se dá a partir de três diferentes princípios integradores: as ligações emotivas, a adjudicação de direitos e a orientação por valores. Para que tais questões se efetivem na realidade dos sujeitos e grupos é necessário que se desconstrua diferentes formas de desrespeito, dentre estas o autor destaca: as que afetam a integridade corporal dos sujeitos e, assim sua autoconfiança; a denegação de direitos, que destrói a possibilidade de autorrespeito, infligindo ao sujeito a percepção de não possuir status de igualdade; e a referência negativa ao valor de certos indivíduos e grupos, o que finda por afetar sua autoestima.

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No entanto, ao mesmo tempo em que essas formas de desrespeito e humilhação ameaçam as identidades, elas se tornam também a base das lutas por reconhecimento. O desrespeito pode se converter em mola propulsora para as lutas sociais, na hora que determinados grupos passam a perceber que outros atores sociais se tornam empecilhos para o que entendem pelo seu bem-viver, o que no caso de comunidades quilombolas passa por diversos fatores, inclusive o reconhecimento legal ao território ocupado tradicionalmente por seus integrantes ao longo de séculos. Desta forma, a presente proposta busca viabilizar a continuidade da pesquisa, resultando em uma versão “final” 1, que servirá como peça no processo de reconhecimento do direito, constitucionalmente garantido, da Comunidade de Remanescentes de Quilombo Barra de Oitis – no Município de Diamante (PB), de ter acesso pleno às terras tradicionalmente ocupadas por seus moradores. A atribuição da identidade quilombola a determinado grupo e os direitos fundiários que daí decorrem levam ao redimensionamento do conceito de quilombo, e também dos conceitos de identidade, etnicidade e territorialidade. No momento em que o Estado reconhece um grupo como remanescente fixa identidade política, administrativa e legal, e ainda identidade social, que remete à identificação étnica, como veículo de obtenção de direitos. O Artigo 68 institui sujeito social, etnicamente diferenciado a partir dos direitos instituídos, criado no contexto de lutas sociais que fazem da lei o seu instrumento, tendo a conversão simbólica do conceito de quilombo, que é metamorfoseado e adquire funções políticas. A categoria jurídica remanescente de quilombo institui a coletividade enquanto sujeito de direitos fundiários (ARRUTI, 2003). Tal disposição do Estado em institucionalizar a categoria pode ser tomada na perspectiva de uma tentativa de reconhecimento formal de uma transformação social considerada incompleta, que revela distorções sociais de um processo de abolição da escravatura parcial e limitado (ALMEIDA, 1997). Com isso vem à tona a necessidade de redimensionar o conceito de quilombo, de modo a abranger a variedade de situações de ocupação de terras, para além da noção de fuga e resistência. Na medida em que novas figuras legais penetram, pelo preceito, o direito positivo, “através dessas rachaduras hermenêuticas que são os direitos difusos” (ARRUTI, 1997: 01) faz-se preciso discernir critérios de identificação das comunidades remanescentes, no plano conceitual e 1

O uso das aspas aqui tem a ver com o fato de que apesar do relatório ter uma finalização, dentro das exigências do INCRA, este nunca estará de fato finalizado, tendo em vista que se volta para uma realidade social que, como se sabe, é dinâmica e imutável a priori.

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normativo; em universos distintos: o da análise científica e da intervenção jurídica. A ressemantização do termo afirma sua contemporaneidade, na linha da existência de uma identidade coletiva, com referência histórica comum e valores compartilhados. Os remanescentes de quilombo passam a ser tomados em sua dimensão política, entre as quais perpassa a noção de etnicidade e territorialidade. Etnicidade tomada no sentido de forma de organização social pautada na atribuição categorial classificatória de indivíduos em função de sua origem suposta, esta que se valida na interação social pela ativação de signos culturais socialmente diferenciadores (POUTIGNAT & STREIFF-FENART, 1997). Toma-se o conceito de grupo étnico que se associa a ideia de identidade quilombola, sintetizada pela noção de autoatribuição 2, e vai-se a critérios organizativos que apontam tendências de identificação, reconhecimento e inclusão, fazendo disso instrumento político para reivindicações. Assume-se a teorização de Barth (1969), ao focar aspectos generativos e processuais de grupos étnicos, tomando-os como modos de organização pautados na consignação e autoatribuição dos indivíduos a determinadas categorias de etnicidade. Uma noção dinâmica, relacionada à interação de grupos sociais por meio de processos de exclusão e de inclusão que estabelecem limites entre os referidos grupos. A terra não significa apenas uma dimensão física, “mas antes de tudo é um espaço comum, ancestral de todos que tem o registro na história, da experiência pessoal e coletiva de seu povo, enfim, uma instância do trabalho concreto e das vivências do passado e do presente” (ANJOS, p. 49. 2005). Aqui, o conceito de memória e a tradição oral fazem-se relevantes na interpretação dos processos identitários da comunidade: “O trabalho da memória e o filtro por ela escolhido – a história da ocupação das terras – para desembocar na discussão sobre identidade. Nessa discussão, o território assume dimensões sociopolíticas e quase cosmológicas importantes na construção da identidade distintiva do grupo – a memória mundo inscrita no solo do lugar” (PIETRAFESA DE GODOI, p.17, 1999).

2

Os princípios da auto-identificação por parte dos grupos são regulamentados pelos Artigos 1 e 2 da Convenção nº 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, aprovada pela Organização Internacional do Trabalho em 1989. Vê então que o ato cabe ao grupo, fato este que mostra que não há classificador da sociedade que possa se impor; os direitos das minorias, em especial minorias étnicas, têm particularidade de aplicação, tendo em vista que nesses casos o princípio democrático da maioria não pode prevalecer, pois não cabe a esta maioria determinar quais direitos assistem à minoria (ALMEIDA & PEREIRA, 2003).

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A posse das terras é então tomada como repertório de expressões que se distinguem das disposições jurídicas formais de propriedade. Territórios específicos, “dos pretos”, neste caso, se interpenetram simbolicamente, sendo construídos historicamente e legitimados por um sistema de relações sociais intrínsecas a cada comunidade, o que extrapola o reconhecimento oficial, escapa à judicialização e resiste à homogeneização posta por procedimentos administrativos do Estado. A aplicação do Artigo 68 gera demandas específicas frente à comunidade que dele fará uso e vê-se uma série de questões de interesse político e econômico que impactam no modo pelo qual a comunidade se reconhece e se reproduz, remetendo à regulamentação jurídica da identidade. Assim, a emergência dos remanescentes pode ser tomada no sentido dos rearranjos classificatórios, segundo a lógica da produção de unidades genéricas de intervenção e controle social, ao custo de uma redução da alteridade das populações submetidas à categorização (ARRUTI, 1997). O sujeito do direito é o grupo, tomado como a somatória de vários indivíduos dentro do todo, como bloco categorizado em remanescente de quilombo, ideal e abstratamente uno. Indivíduos que compartilham espaços e crenças, mas não necessariamente modos unívocos de pensar: são tendências, não são unanimidades. Vale ressaltar que os grupos devam ser tomados no plural, como remanescentes, tendo em vista que são vários grupos étnicos, cada qual possuidor de singularidades que os distingue, o que não têm espaço na universalidade do Direito. Acrescenta-se o que fora posto por Arruti (2006), no tocante a incorporar à teoria da etnicidade a formulação nativa a ser objetivada. De volta à autoatribuição, ao caráter organizacional e as maneiras pelas quais constroem fronteiras e modos de manutenção, remete-se a Barth (1969), na definição fundamentalmente política e relacional, em perspectiva de análise generativa para análise de grupos autodefinidos com base em atributos de formação e origem. Segue-se o que Arruti (2006) propõe, de acordo com a problemática apontada por Pacheco de Oliveira (1999), no que tange às limitações das propostas de Barth no tocante à impossibilidade de se lidar com a passagem entre a descrição étnica do grupo, esta que é local, e sua adesão à categoria genérica quilombola, que possui, por sua vez, caráter administrativo e legal. O reconhecimento é parte de processo mais amplo de produção de nova rede de relações, novos sujeitos políticos, revisão histórica e sociológica, somando-se ainda a ampliação da hermenêutica jurídica (ARRUTI, 2003). Devem-se levar em conta os efeitos da objetivação político administrativa do grupo, por meio da fixação categórica e espacial de suas fronteiras.

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Todo este processo de revindicação converte-se em luta por direitos, dentre eles: à identidade cultural e à autodeterminação política, no intuito de legitimar novos espaços de significação. A transformação política é acompanhada pela transformação simbólica, sendo assim, não só o conceito de quilombo é ressemantizado, como também o são os conceitos de história e memória. É a redescoberta de um passado escravo e sua valorização; em um processo mais amplo de conscientização, quando o passado escondido ganha novos valores, para desenhar um futuro de expectativas, com alicerces em uma cultura 3 e ancestralidade. Assim, a reconstituição da memória coletiva e da tradição oral se faz procedimento importante na interpretação dos processos identitários das comunidades em questão (PIETRAFESA DE GODOI, 1999). As categorias raça, etnicidade e cultura vão então oscilar entre usos políticos, nativos e analíticos, representando força social no que diz respeito à luta por demandas territoriais, e outros direitos decorrentes, em desdobramentos no campo das ações afirmativas e projetos específicos. Tudo isso é permeado por pressões e embates políticos e econômicos, em formulações e reformulações jurídicas e administrativas. A emergência do quilombo surge como metáfora política socialmente produtiva, e se vê a recaptura da categoria jurídica pela lógica política, na associação a um novo paradigma. A alteridade que não mais se expressa somente nos termos da diferença, mas também através das identidades; das alteridades dadas se passa a dela ser feito um fato, ou seja, torna-se um dado, construída através dos discursos. A partir dessa negociação de significados, chega-se à apropriação, por parte dos movimentos quilombolas e dos agentes envolvidos, dos termos e categorias das Ciências Sociais, estes que são agenciados tal como o próprio laudo de reconhecimento 4 (ARRUTI, 2006). Vale de Almeida (2009, p.01) desenvolve a ideia de essencialismo estratégico, no que se refere aos movimentos sociais de caráter identitário, “por um lado recusarem os próprios termos da categorização de que são alvo e, por outro, necessitarem de identificação com as categorias, de modo a poderem movimentar-se no espaço público”. 3

Deve-se considerar que o Art. 68 do ADCT é, na aplicação, combinado ao Art. 215 e Art. 216, do corpo permanente da CF/88, a Seção da Cultura. A Carta Magna adotara medidas de reparação histórica e cultural dirigidas à população negra. Os artigos 215 e 216 garantem a proteção às manifestações das culturas populares, indígenas e afrobrasileiras, e definem como patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referências à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. No campo infraconstitucional, é o Decreto n° 4.887, de 2003, que regulamenta o processo administrativo de delimitação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades de quilombos. 4 Dá-se ênfase à narrativa e aos modos pelos quais os agentes reorganizam sua história, considerando a relação entre sistemas normativos, a conjuntura e opções estratégicas (ARRUTI, 2006). Pois é nesse processo que atores posicionamse, constroem suas versões, e fazem uso da objetivação jurídica e política; refletem, ressignificam e se colocam.

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A noção de essencialismo estratégico apresentada por José Maurício Arruti pode ser aqui aproximada da reflexão epistemológica proposta por Manuela Carneiro da Cunha (2009)5. A autora constrói uma necessária distinção entre “cultura” e cultura, em que a última diz respeito à lógica interna construída pelos grupos, enquanto “cultura” aponta para as negociações que tais grupos estabelecem com outros (grupos vizinhos, gestores governamentais, empresas, dentre outros). O que não implica em uma passividade, ou total subserviência, no caso aqui pesquisado, de negras rurais às exigências do Estado. Pelo contrário, perceber a relação entre “cultura” e cultura permite fugir de vitimizações dessas comunidades, compreendendo-as dotadas de reflexividade e, portanto, capazes de construir negociações. Um jogo de forças, em que a categoria territórios negros dos meios acadêmicos transfigura-se na categoria jurídica comunidades remanescentes de quilombos, para permitir que grupos sejam politicamente pensáveis. Verdadeira alquimia, que transforma uma matéria acadêmica em substância política e para cuja formatação todo um conjunto de agentes se engaja, as lutas em torno da questão das comunidades remanescentes coloca em exercício local as mais delicadas questões da relação entre as ciências sociais e o mundo político (ANJOS 2005, p. 98).

No processo de reconhecimento, a comunidade enquanto sujeito coletivo institui-se como sujeito de direito, diante de instituições e procedimentos, e como sujeito público. Há intervenções e mediações, chega-se à semântica coletiva, na qual se figuram dois planos de intervenção: um voltado a agentes que politizam conflitos e os reenquadram categoricamente, e outro referente à intervenção de um discurso autorizado e especializado, de modo que tenha eficácia jurídica (ARRUTI, 2006). Diante disto, o processo de mediação que reconhece esses agrupamentos enquanto quilombolas necessita encontrar neles condições pré-existentes em suas práticas cotidianas – individual e coletivamente. Segundo Sansone (2007, p. 257), a etnicidade passa a ser remetida ao multiculturalismo. Antes, a integração cultural era a palavra de ordem às minorias étnicas. Passa-se então ao reco-

5

Como é do conhecimento da maior parte da comunidade antropológica a autora parte de diversas reflexões e atuações suas a partir do contato entre nações indígenas e outros grupos, como os gestores estatais ou representantes de empresas. No entanto, sua reflexão não está limitada a estas questões, podendo dialogar com diversos outros contextos, como é o caso do que fazemos com a questão dos quilombolas.

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nhecimento oficial da diferença 6, e nova problemática é apontada: “nova supersimplificação e reificação da ideia de cultura, mediante a qual a manutenção da diferença é sine qua non da mobilidade ascendente”, que estaria na base de teorias multiculturalistas correntes, e nesse aspecto “as várias minorias étnicas comumente representam o grupo ideal”. Na política da identidade, sua afirmação tem poder. Toma-se então o termo etnicização (FRIGERIO, 2000), uma vez que se tem uma dinâmica, “Se a identidade étnica não é entendida como essencial, é preciso concebê-la como um processo, afetado pela história, pelas circunstâncias contemporâneas e pela dinâmica local quanto pela global” (SANSONE, 2007: 13). Merece ser posto o modelo descritivo das etnogêneses, processo pelo qual se dá a formação quilombola, modelo processual quatripartido: processos de nominação, identificação, reconhecimento e territorialização, empiricamente imbricados uns aos outros 7 (ARRUTI, 2006). O contexto é mais amplo do que a própria redefinição da identidade, em um movimento que oscila entre instâncias marcadas pelo genérico, por um lado, pelo singular por outro. Há uma luta travada dentro do Estado, e outra empenhada fora dele, nas comunidades. Considerando ser no âmbito das relações cotidianas que padrões identitários são negociados e apropriados, o que se tem são identidades construídas no âmbito local (COSTA, 2006). O Estado é esta totalidade que transcende e integra os elementos concretos da realidade social, ele delimita o quadro da construção da identidade. É através de uma relação política que se constitui a identidade: se estrutura no jogo da interação, tendo como suporte real a sociedade global (ORTIZ, 2006, p.138-139).

A atenção aqui se volta à orientação política da etnicidade, tendo que a função e tendências políticas da identidade são contextuais e variáveis. Contudo, “a variabilidade política vai de encontro a muitas das generalizações postuladas pelas teorias multiculturalistas no que concerne às culturas e identidades negras” (SANSONE, 2007: 256). 6

Vale ser mencionada essa transformação a partir das convenções internacionais que dizem respeito aos direitos de minorias. A Convenção nº 107 da OIT, de 1957, já tratava especificamente de populações indígenas e tribais, representou uma primeira tentativa de codificar em um instrumento legal de âmbito internacional, os direitos fundamentais desses povos. Passou a ser criticada por suas tendências integracionistas e paternalistas, e em 1986 foi considerada obsoleta pelo Comitê e sua aplicação tida enquanto “não compatível com o mundo moderno”. 7 Em suma, segundo o autor, o processo de nominação volta-se à instituição de um grupo heterogêneo como sujeito de direitos coletivos e objeto de ação do Estado. O processo de identificação diz respeito à passagem do desconhecimento à constatação de desrespeito, que institui por sua vez a coletividade como fonte de pertencimento identitário e sujeito de direitos. Já o processo de reconhecimento é referente ao momento de constatação pública da situação de desrespeito, que já atinge a coletividade, esta que é admitida na esfera pública enquanto sujeito político, e ainda se tem a noção de que o desrespeito deve ser reparado. Por último, quanto ao processo de territorialização, considera o movimento de reorganização social, política e cultural, da coletividade, já no momento de fixação e demarcação física, por meio da objetificação jurídico administrativa (ARRUTI, 2006).

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Mais a frente – quando adentrarmos, de fato, nas questões diretamente relacionadas à Barra de Oitis – retomar-se-á a discussão acerca da habitação da categoria “quilombola”, assim como da autoatribuição dos membros da comunidade enquanto negros, quilombolas e descendentes de escravos. No entanto é importante, ainda, ressaltar que estas categorias, tais como a de indígena, que por um lado valorizam o status simbólico desses grupos, por outro se corre o risco de tratá-lo como “nossos”, tal fórmula condensaria a ambiguidade própria da condição dos diferentes grupos indígenas (CUNHA, 2009, p. 332) ou quilombolas. Neste sentido, torna-se imperativo compreender que tal ambiguidade deve ser pensada como circunscrita cultural e historicamente no próprio projeto de Estado-Nação. Viveiros de Castro (2012, p. 178-179) chama atenção para compreendermos que as categorizações dos grupos obedecem a diferentes lógicas, apontando para todo o processo de construção de Estados-nação. Desta maneira, deve-se compreender que o reconhecimento das comunidades negras rurais como remanescentes quilombolas passa diretamente por este projeto. Se por um lado o Estado as reconhece, oferecendo-lhes diversas ferramentas para exercerem seus direitos – como é o caso do Programa Brasil Quilombola – ele espera que os sujeitos que as compõem, agora considerados cidadãos, de fato e de direito, se incorporem ao que Elias (2006) chamou de habitus nacional. Isto diz respeito à forma como cada nação apresenta uma identidade para a comunidade internacional, o que no Brasil passa pela construção de um país multicultural. Percebe-se nesta lógica a construção de negociações que chamam a atenção para uma troca estabelecida entre diversas esferas da sociedade e entre sociedades. No caso dos grupos étnicos – indígenas, quilombolas, entre outros – isto se dá a partir da exigência da adesão a categorias que lhe eram externas, em troca de um reconhecimento jurídico e administrativo que lhes possibilite certo empoderamento. Pode-se então resgatar aqui a noção de dádiva (MAUSS, 2003), no sentido de que pode se pensar as negociações entre as comunidades negras rurais e o Estado brasileiro enquanto um dar, receber e retribuir. Infelizmente o atual cenário – local, nacional e internacional – não permitem o otimismo do autor, no entanto ao apontar para a construção de negociações, a partir das relações de troca, ele indica uma capacidade de todos os grupos estabelecerem negociações entre si. Isto não implica na negação de relações desiguais, assimétricas, entre as diferentes esferas, grupos, sujeitos, envolvidos nos sistemas de dádivas em questão, sejam relacionados com o Kula, a previdên-

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cia social – fazendo uso dos exemplos de Mauss – ou do processo de reconhecimento das comunidades negras rurais enquanto quilombolas. Seus sujeitos resolvem, ou não, habitar esta categoria – incorporando a “cultura” à cultura – a partir do que lhes seja oferecido, material e simbolicamente. As questões até agora elencadas serão, direta ou indiretamente retomadas mais a frente quando os dados etnográficos sobre a Barra de Oitis forem apresentados mais pormenorizadamente.

3.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS O trabalho antropológico não deve ser reduzido ao método etnográfico, no en-

tanto este tem um papel central no trabalho aqui apresentado, incluindo ai a análise de documentos Nesse sentido, desenvolvi uma descrição densa, buscando ver a cultura como um documento de atuação, semelhante a “[...] um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado”. (GEERTZ, 1989, p. 7). Seja ao estabelecer interlocuções com os diferentes grupos e sujeitos da pesquisa, ao transcrever ou analisar suas falas ou os documentos que porventura se pôde ter acesso, exercitou-se uma antropologia reflexiva como forma de não se fazer refém das práticas cotidianas. Importante tanto para que não se subestime as formas de agir, como também para não perder de vista o perigo das relações desiguais, estruturadas em nossa sociedade. Estas já trazem em si uma assimetria situacional (DUARTE & GOMES, 2008), evidenciada nas relações de classe, gênero e geração, dentre outras. Não se quer com isso alimentar qualquer ilusão de se estabelecer uma relação totalmente simétrica na interação entre pesquisador e pesquisados tendo em vista que as disposições culturais que motivam o encontro entre pesquisador e pesquisados são diferentes. Reconhecer isto não significa assumir qualquer tipo de proeminência ontológica sobre os interlocutores, mas a inevitabilidade da desigualdade nessa relação. Tanto a metodologia escolhida como os “[...] aspectos dos trabalhos que extravasam uma definição convencional do método [...]” (BERREMAN, 1980, p.123) são cruciais para a pesquisa

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e seus resultados, sendo capazes de alterar as expectativas e perspectivas que o pesquisador imagina que terá antes de iniciar sua pesquisa. Nesse sentido, cabe ainda destacar que ao propor uma análise que compare as diferentes práticas que enchem de cor o universo dos quilombolas, não se pretendeu elaborar verdades, ou eleger este ou aquele discurso como correto. Não se trata de ignorar as realidades individuais, as características subjetivas e as idiossincrasias de cada interlocutor, e sim, levando tudo isso em consideração, estar atento ao que suas representações, discursos e práticas indicam, objetivamente, sobre a sociedade em que estão inseridos. O que está relacionado com o que é dito e revelado, seja verbalmente ou através dos “não ditos”, isto é, as formas em que as diversas relações – familiares, institucionais, afetivas, etc. – aparecem quando se observa, participando, do cotidiano dos pesquisados. Para isto, foram realizadas entrevistas semiestruturadas, em geral gravadas e transcritas, de modo que puderam ser analisadas pormenorizadamente 8. No contexto da Barra de Oitis, percebeu-se importantes mudanças na disposição dos interlocutores em colaborar com o acúmulo de informações. Se durante as primeiras incursões havia um clima de desconfiança quanto a nossa presença, aos poucos isto foi dando espaço, por exemplo, a atender verdadeiras exigências de se entrevistar determinados interlocutores. Não foi difícil perceber que as mesmas pessoas que antes se mostravam contrárias a nossa presença na Barra, passaram a fazer convites – quase exigências – para que as entrevistássemos, ou a alguém de suas famílias. No entanto, cabe ressaltar, que, se por um lado, tivemos a chance de gravar conversas com muitos interlocutores, tal permissão não existia em determinados casos, especialmente se tratando de alguns dos tradicionais proprietários das terras. O que não se mostra obrigatoriamente um problema, tendo em vista que a própria recusa é para um trabalho antropológico um importante dado. Como se espera de uma pesquisa antropológica de caráter etnográfico, também foi indispensável estabelecer conversas informais, tendo em vista que existem drásticas mudanças nas posturas – corporais e em suas disposições para abordar determinados assuntos, silêncios – que tornam esses momentos de singular riqueza. Foram realizadas reuniões com a comunidade, uma exigência constante de seus membros, através das quais eles buscavam obter esclarecimentos acerca 8

Vários trechos destas estão apresentados ao longo do texto.

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do nosso trabalho; os possíveis efeitos deste; os riscos que poderiam, ou não, correr; direitos e deveres e, dentre outras questões que lhes eram pertinentes. Tais momentos foram de grande importância, pois reuniam um número bastante representativo de pessoas, que falavam sobre si, suas famílias, seus nomes 9.

4.O MUNICÍPIO DE DIAMANTE

Fig. 1 – Entrada da cidade 10

O município de Diamante está localizado na região Oeste do Estado da Paraíba, limitando-se ao Sul com Santana de Mangueira e Curral Velho, a Oeste com Ibiará e Conceição, a norte São José de Caiana, a Nordeste faz fronteira com Itaporanga, e a Leste com Boa Ventura. Ocupa uma área de 211 km², inserida nas folhas Itaporanga (SB.24-Z-C-II) e Serra Talhada (SB.24-Z-CV), escala 1:100.000, editadas pelo MINTER/SUDENE em 1972. Os limites do município podem ser observados no Mapa de Recursos Minerais do Estado da Paraíba, logo abaixo.

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A referência aqui é aos sobrenomes considerados os das primeiras famílias da Barra de Oitis. As fotografias sem fonte especificada as são de autoria do antropólogo responsável, estando todas registradas com os devidos direitos autorais. As demais, possuem especificações dos autores. 10

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A sede municipal apresenta uma altitude de 310 m e coordenadas geográficas de 38º 09’ 03’’ longitude oeste e 07º 18’ 14’’ de latitude sul. O acesso a partir de João Pessoa é feito através da BR-230 até a cidade de Patos, onde se toma a BR-361 até Itaporanga. A partir desta, segue-se por mais 16 km, entrando-se em via pavimentada a esquerda percorrendo-se cerca de 8 km até a sede municipal, a qual dista 448,6 km da capital, como pode ser observado no mapa abaixo (PRODEMA, 2005, p.2)

Fig.2: Mapa de acesso rodoviário da Paraíba 11

O mapa, gerado a partir das ferramentas do Google maps, permite-nos ver o trajeto e a distância entre a capital paraibana e o município de Diamante. Além disto, pode-se perceber sua localização em relação a cidades de outros estados.

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Fonte, CPRM/CDRM, publicado em 2002; escala: 1:500.000

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Fig 3.: Mapa da Paraíba; Fonte: Google Maps; Escala: 1:50.000 12

Tivemos grandes dificuldades em recolher os relatos históricos acerca do município de Diamante, de forma que as informações que serão apresentadas aqui têm por base o material reunido por José Geraldo Ferreira Mendes – então secretário de cultura da cidade – em uma revista: “Diamante (PB): sua linha do tempo em 50 anos”.

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Legenda: A (vermelho): Paraíba; A (verde): Diamante; B (verde): João Pessoa.

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Fig. 4. Capa da Revista em comemoração aos 50 anos de Diamante Neste documento também encontramos uma sessão intitulada “Biografia das Raízes”, que reúne os nomes das “principais famílias”, isto é, as famílias mais antigas da cidade, dentro de uma perspectiva hegemônica. José Mendes escreve acerca disso, antes de apresentar os grupos familiares: É com muito orgulho que divulgo o nome das famílias que construíram essa bela cidade chamada Diamante. Foi u trabalho de pesquisa, mas muito prazeroso. Dessas trinta e quatro famílias, hoje formam a população do Município, que construíram e continuam construindo, dando exemplo e mostrando ao Vale do Piancó, a importância dessa pedra preciosa, que esteve algum tempo, apagada, mas hoje brilha no cenário do Piancó, mostrando a capacidade, honestidade e interesse dos seus admiradores de vê sua terra natal crescer (MENDES, 2011, p. 10).

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Dentre os grupos familiares elencados pelo autor, destacamos aqui a família Barros, relacionada, diretamente, a maior parte das questões concernentes aos conflitos fundiários ao redor das terras da Barra de Oitis, como se evidenciará mais a frente. De acordo com as informações oferecidas por Mendes (2011), os Barros vinham da cidade de Panelas D’água (PE). Inicialmente chegaram os patriarcas da família – João Antônio Barros e Maria Francisca – e seu filho José Antonio Barros, que casou-se com Joaquina Leite, com os quais teve sete filhos. João A ntonio Barros

Maria Franc is c a

Jos é A ntonio Barros

Serapião Barros da Silv a Barros

Franc is c o Barros

A ntonio Barros

Olinto Barros

João Barros

Manoel Barros da Silv a Barros

Joaquina Barros

Jos enildo Barros

Is abel Barros

Regina Barros

Joaquina Barros

Luis Carlos da Silv a

João A ntonio Barros (Neto)

Marinha Barros da Silv a

Franc is c a Barros da Silv a

Olindrina Barros da Silv a

Chindra Barros

Suz ana Mangueira Barros

Joaquina Barros

Fig. 5: árvore genealógica dos Barros

4.1 A origem do Povoado De acordo com Mendes (2011) não há como dissociar a origem do povoado, hoje Diamante, da história do município de Misericórdia, atual Itaporanga, do qual foi povoado distrito até ser elevado à condição de município. Antes disso, teve o nome de Paulo Mendes (entre os anos de 1856 e 1904), foi rebatizado de São Paulo (entre 1905 e 1943), até que em 1944 a cidade recebeu finalmente o nome que se mantém até hoje.

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4.2 A origem do nome “Diamante” O material organizado pelo geógrafo José Geraldo Ferreira Mendes 13 (2011) ao explicar a origem do nome da cidade aponta para o que se pode compreender por um mito de origem, que remete tanto a aspectos geofísicos da região, assim como políticos, especialmente no que diz respeito à cidade de Itaporanga, que ainda hoje é tida como uma cidade polo, da qual dependem burocrática e economicamente diversos municípios circunvizinhos, mantendo também fortes relações políticas com estes últimos. De acordo com o referido autor, conta-se que no final do século XVIII, na região onde hoje se localiza o município de Diamante, não existiam estradas, mas apenas trilhas, sendo, dessa forma, o tráfego não de carros, motos, caminhões e ônibus, como na atualidade, mas de cavalos, burros e jumentos. Era uma região considerada “esquisita” por ser pouco habitada, sendo encontradas algumas casas que ladeavam o rio Piancó, que se distribuíam por: Conceição, Santa Maria (atual Ibiara), São Boa Ventura, Misericórdia (hoje, Itaporanga). Nesse período Piancó já havia sido reconhecido como povoado. Esta região é limítrofe com o estado do Ceará, dessa forma, quem vinha de lá, geralmente em direção a Campina Grande ou a capital paraibana, utilizava-se frequentemente destas trilhas. É a partir daí que se explica a origem do nome do município. Contam que um tropeiro que vinha do vizinho estado de Ceará, com destino a Campina Grande, ao passar precisamente no serrote da Ema, a margem esquerda do rio Piancó, avistou um pedrinha diferente das outras, e transparente, e logo pegou, olhou, admirou e pensou: “Vou levar comigo, o meu amigo que mora em Campina Grande, conhece esse tipo de pedra, pois é ourives.” O tropeiro seguiu sua viagem, mas sempre olhava a pedrinha que tanto lhe chamou a atenção. Três semanas depois chega a Campina Grande, e logo foi à casa do amigo que era ourives, para mostrar a pedrinha, o mesmo examinou e disse que “esta pedrinha era igual a qualquer outra, é sem validade”. O tropeiro ficou triste, mas logo se conformou, pois acreditou no amigo (MENDES, 2011, p.03).

A narrativa do autor ainda conta que após alguns meses o protagonista da história supracitada voltou a Campina Grande e no lugar onde morava o amigo ourives, encontrou as portas e janelas fechadas, e soube que ele havia se mudado para o Rio de Janeiro com toda a família,

13

O material por ele recolhido foi organizado tanto através de documentos que remetem a história da cidade, assim como relatos orais por ele organizados.

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após ter enriquecido. O tropeiro não teve dúvidas: o amigo havia enriquecido à custa da pedrinha que ele havia achado – um diamante. Na volta, parando no local onde achara a pedrinha, se arranchando em uma casa ali perto, contou o ocorrido ao dono da residência, que contou a outras pessoas, dando a posteriori a origem do nome da cidade: Diamante. O referido topônimo [...] remonta desde 1752, sendo assim chamado o sítio e a Serra que faziam limite com as três léguas de “terras devolutas” da Casa da Torre, cujo centro da data de terras se localizava no Poço Pombinho no Rio Piancó. Estas terras foram concedidas pelo governo da Capitania, Antônio Borges da Fonseca, ao sertanista Manoel de Souza Olival. Em 1768, no governo de Jeronimo José de Mello e Castro, o sertanista José Felix de Sá, adquire por concessão, uma légua e meia de quadra de terras “devolutas” centralizadas no Olho D’água do Diamante. Em 1816, o capitão Domingos João Dantas, pede Concessão de terras nesta região ao governador interino da Província da Paraíba, André Alves Pereira e Ribeiro. Aceito o pedido, a chefia do governo estadual confia-lhe um bom pedaço de terras que ao norte extremava-se com a fazenda Jenipapo, ao sul com os sítios Antas e Bruscas, ao leste com a fazenda São Boa Ventura e ao oeste com os sítios Milho D’Angola e Santana. Desse modo, no centro desses limites teve origem a povoação. No ano de 1821, chega o primeiro a povoar essas terras, o vaqueiro José Veríssimo, que veio a convite do Capitão Domingos João Dantas, na responsabilidade de explorar suas terras e aumentar o seu rebanho de gado (Mendes, 2011, p.04).

Conta-se ainda que o referido vaqueiro construiu uma “latada”, em 1836, onde abrigou um oratório com a imagem de São Paulo. Ali se reuniam alguns moradores da região. Dez anos depois o local de orações foi ampliando, tendo sua estrutura coberta de palha de carnaúba. Em 1856, junto com a construção da capela, deu-se o inicio da povoação da região, percebendo-se a construção de casas ao redor do oratório. O crédito disso é dado a Luiz Antônio, José Maria Franco, Antônio Vicente Tomaz Ferreira e Manoel da Costa, que fundaram o povoado que recebeu o nome de Paulo Mendes. É também dos três primeiramente citados a responsabilidade pela construção e acabamento da capela, a qual recebeu, como doação do capitão Domingo João Dantas, uma imagem da Nossa Senhora da Conceição talhada em madeira.

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Fig. 6. Capela 14 (foto de foto)

Fig. 7. Capela

14

Apesar de não ter podido precisar o período da foto, sabe-se que a capela ainda estava em pleno funcionamento. Só com a construção da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, por volta dos anos 196, a pequena capela deixou de funcionar, encontrando-se hoje abandonada e seu prédio se deteriorando pela ação do tempo.

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Em 1903, o major Possidônio José da Costa, filho de Manoel Costa, um dos fundadores do povoado, vendo a necessidade de ampliação da capela, empreendeu uma ampla reforma em sua estrutura, preservando, no entanto, a parte principal da antiga capela. Como resultado dessa obra, deu-lhe maior segurança, tornando-a, finalmente, num espaço mais agradável para os fiéis. Ainda na perspectiva de melhorar cada vez mais a ambientação daquela casa de oração, em 1916, Abílio Sérvulo de Souza e seu filho João Abílio de Souza, constrói a torre e a outra parte direita da capela, dedicada a São Sebastião. O trabalho foi concluído no ano de 1917 (MENDES, 2011, s/p).

Com o passar do tempo, junto ao desenvolvimento da cidade, surgiu uma inquietação de que a capela do então distrito fosse elevada a Paróquia, tendo, desta maneira, maior autonomia, o que se tornou possível em 1963, com a instalação da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição. A comunidade católica de Diamante sentia desde cedo a necessidade de uma igreja ampla e moderna, haja vista o aumento crescente dos moradores do lugar. Em 1953, Abraão de Souza Diniz começa a organizar junto com um grupo de pessoas de Diamante, com a responsabilidade de colher recursos financeiros para a construção da igreja. Na época quem respondia pela capela do distrito era o Pe. José Sifrônio e o Pe. Cipriano Calvarro Martins, ambos da Paróquia de Itaporanga. Abraão de Souza Diniz foi o grande responsável pela obra, que hoje serve de encanto para todos os fiéis católicos diamantenses (MENDES, 2011, p. 05).

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Fig. 8. Igreja de Nossa Senhora da Conceição (foto de foto)

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Fig.9 Igreja de Nossa Senhora da Conceição

4.3 De Povoado a Distrito No dia 15 de novembro de 1938, o povoado de São Paulo passou à categoria de Distrito, e dessa forma, de acordo com o Decreto de lei nº 530, não poderia permanecer com este nome, tendo em vista que era proibido que duas localidades tivessem nomes idênticos. [...] o líder político e deputado estadual, Praxedes da Silva Pitanga, conhecedor profundo da história da região, incentivou as lideranças locais para trocar o nome de São Paulo para Diamante. Prontamente acordado, seu nome foi mudado no dia 04 de janeiro de 1944, voltando seu nome às origens iniciais. No mesmo ano em que a pequena vila é elevada a condição de Distrito, começam a chegar novas benfeitorias, como: agên-

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cias de Correios e Telégrafos, que teve como primeira funcionária Rita Leite, o Cartório do Registro Civil 15, cuja escrivã foi Maria Sales Neves (MENDES, 2011, p. 05).

4.4 Emancipação política A elevação do Distrito de Diamante a Município se deu a partir do Decreto de lei estadual n° 2.655, de 21 de dezembro de 1961. Sua emancipação foi executada logo em seguida, nove dias após a promulgação do decreto, assinado pelo governador Pedro Moreno Gondim (MENDES, 2011). Definitivamente a partir daquela data, Diamante estava desmembrado do Município de Itaporanga, passando a ter vida própria e com a capacidade peculiar que sempre teve de conduzir seu destino. Depois do ato da assinatura em que Diamante ganhava autonomia político-administrativa, os grandes responsáveis por essa conquista eram aguardados em clima de festa na cidade de Itaporanga, quando do regresso da comitiva da capital do estado. Desse modo, Arsênio Mangueira, Argemiro Abílio de Souza, Dionizio Mangueira Diniz, João Franco da Costa e Praxedes da Silva Pitanga chegaram na cidade, saíram em caravana até o município recém-criado, onde precisamente às 10 horas, foram recepcionados em plena praça pública, ao som da banda de pífanos, tiros de bacamartes e fogos. Além dos chefes políticos acima citados, e de uma grande multidão que acompanhava a comitiva, que acabava de chegar a cidade de Diamante, podemos declinar outros personalidades ilustres no cenário político estadual, regional e local que se fizeram presentes nesta grande festa (...). Após um ano de sua emancipação política, o novo município ganha o distrito Vazante, sua elevação se deu pelo Decreto de lei estadual n.º 2.770 de 18 de janeiro de 1962. Além da sede e de um distrito, o município conta ainda com um grande povoado, o de Barra de Oitis, que já clama por sua elevação a distrito (MENDES, 2011, p. 5-6).

Longe de negar a importância do material que tivemos acesso – o qual serviu de principal referência – para esta parte do relatório, não se deixou de perceber o processo de invisibilização das comunidades quilombolas ligadas ao município, as quais em momento algum são mencionadas no documento, o qual dá destaque à história dos “vitoriosos” – grupos tradicionalmente tidos como dominantes na região. O que causa incômodo em parte dos membros da Barra de Oitis, que pôde ser evidenciado de diversas formas. João Batista, por exemplo, ao narrar uma rápida conversa que teve com a secretária da secretaria de educação do Município, explicou que 15

É importante destacar que, até hoje, como pôde ser observado em campo, assim como foi destacado pelo atual secretário de assistência social, a cidade não possui um cartório de Notas, sendo esta uma das inúmeras dependências que perduram entre Diamante em relação a Itaporanga.

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pegou o material que contava a história de Diamante e questionou: “Engraçado, um material inteirinho sobre a história de Diamante e não tem uma linha sequer falando da Barra?”. O questionamento de João Batista aponta para diversas questões, dentre elas destacam-se: 1) o processo de invisibilização das comunidades negras rurais, enquanto integrantes de um município, estado e da nação; 2) a naturalização de preconceitos que explicam as ações e discursos de muitos atores, como foi o caso do documento criticado por João Batista. Além disto, sua fala aponta para uma mudança na postura, não só dele, mas de tantos outros sujeitos que compõem a Barra de Oitis. Eles têm, ainda que gradativamente, assumido categorias como “negro” e “quilombola”, e desconstruído formas de subserviência naturalizadas. Cabe ainda acrescentar um último ponto acerca do questionamento levantado pelo referido interlocutor: Até onde as pessoas que moram na sede do município de Diamante – perímetro urbano –, incluindo os políticos locais, reconhecem os moradores da Barra de Oitis como parte da cidade? Acrescenta-se a isso outro questionamento: Até que ponto os moradores da Barra de Oitis se sentem parte de Diamante? Estas questões serão revisitadas mais a frente, quando abordarmos mais especificamente as tensões e conflitos que têm sido suscitados na história da Barra de Oitis, seja enquanto comunidade ou a partir trajetória dos interlocutores contatados. Entretanto, podemos retornar ao questionamento de João Batista, supracitado.

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4.5 A atualidade de Diamante

Fig 10.: Mapa de Diamante; Fonte: Google Maps; Escala: 1:5.000

O município ocupa uma área de aproximadamente 269.109 Km², tendo uma população de 6.616 habitantes. Diamante está inserida na bacia hidrográfica do rio Piranhas, sub-bacia do rio Piancó, e tem como principais tributários o rio Piancó, os riachos do Logradouro, do Meio, da Chatinha, Carnaúba, Olho D’água, do Saco, dos Oitis, e os Córregos da Onça, do Romão, Umburamba e dos Bois, todos de regime intermitente. Isto pode ser percebido quando andamos ao longo da extensão do terreno apontado como sendo da Barra de Oitis: é possível ver diversos córregos secos, os quais em períodos de chuva chegam a transbordar. Sobre isto é importante ressaltar que a seca de 2012 tem sido considerada a pior, em muitas décadas, nas mais diversas regiões do Brasil. Na Paraíba, de acordo com os portais de noticias, em maio a seca já afetava 170 municípios, nos quais o governador decretou “situação

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de emergência 16”, dentre eles encontravam-se Itaporanga e Diamante. A situação se agrava quando se constata que este período de estiagem tem sido considerado o pior em pelo menos 30 anos 17. Seus efeitos se tornaram ainda mais evidentes durante esta pesquisa, tendo em vista o contraste percebido na paisagem em diferentes momentos do trabalho de campo. O que pode ser comprovado a partir de alguns registros imagéticos, especialmente ao comparamos determinados lugares que foram visitados em diferentes períodos da pesquisa, conforme vemos abaixo: 18

Fig. 11: Laurindo (1) 19

16

http://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2012/05/governador-decreta-emergencia-em-170-municipios-da-pbdevido-seca.html 17 Sobre isto ver: http://expressopb.com/2012/05/seca-ja-e-a-maior-dos-ultimos-30-anos-no-nordeste-e-na-paraiba/ 18 Como se evidenciará quando tratarmos das questões concernentes aos limites das terras da Barra de Oitis, segundo seus moradores e/ou tradicionais proprietários de terras, Laurindos é a denominação de uma dessas fronteiras. 19

Nome dado uma das propriedades que faz fronteira com a Barra.

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Fig. 12. Laurindo (2)

Josué de Castro (2011) em seu clássico estudo acerca da fome nas diferentes regiões do Brasil nos apresenta uma excelente descrição acerca dos efeitos da seca no sertão nordestino: Com as secas desorganiza-se completamente a economia regional e instala-se a fome no sertão. Os seus efeitos sempre desastrosos são de amplitude variada, conforme se trate da seca parcial, limitada a pequena área, ou uma grande seca, abrangendo considerável extensão, ou, finalmente, de uma seca excepcional, das que atingem de vez em quando todo o sertão em bloco. (...) Pelo que acabamos de ver, as crises no Nordeste estão sujeitas a intervalos diferentes: a seca parcial que obedece a um período da ordem de 4 a 5 anos. A seca generalizada, cujo período parece ser de 10 ou 11 anos, e a seca excepcional, que parece obedecer ao ciclo de 50 anos. Esclarecemos, porém, que esses números nada têm de precisos, pois não foi ainda descoberta a lei que rege a frequência das secas. Essas crises têm surgido sempre de forma imprevista, surpreendendo não só os pobres e heroicos habitantes do Nordeste, como também os próprios governantes que nunca souberam aproveitar as épocas de bonança para acumular reservas capazes de enfrentar a iminência de crises futuras (CASTRO, 2011, p.199200).

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Pensando acerca da não fixidez dos marcos temporais dos três diferentes tipos de estiagem ocorridas no Nordeste, pode-se considerar, tanto pelas características, quanto pelos seus efeitos, que a situação atual se assemelha a ideia de seca excepcional apresentada pelo autor. A posteriori abordaremos com maior propriedade os efeitos da seca na vida das pessoas, mais especificamente quando nalisarmos a forma como os moradores da Barra de Oitis lideram com os períodos de seca que enfrentaram em sua trajetória, principalmente no que tange à fome e aos êxodos para outras regiões. No entanto, no trecho destacado na citação acima se percebe a lastimável atualidade da crítica que o autor dirige aos governantes. É grave perceber que passados 66 anos do lançamento da primeira edição do referido livro, sua observação continua tendo a mesma, ou talvez mais, pertinência. Se levarmos em conta os grandes avanços feitos nos estudos meteorológicos na atualidade, somados aos programas governamentais, principalmente advindos da esfera federal, compreende-se que os agentes estatais poderiam e deveriam estar melhores preparados para lidar com as adversidades climáticas. Além disso, percebe-se uma falta de investimentos na perfuração de poços artesianos em áreas não privativas, ao contrário do que ainda hoje pode ser percebido quando andamos por entre as propriedades rurais do município. Nestas são vistos açudes, poços artesianos e, em alguns casos, sistemas de irrigação que mantêm tudo com um verde vivo, contrastando com o cenário cada vez mais acinzentado, predominante por ali. Viajando de ônibus, saindo da capital alagoana, passando por Recife, João Pessoa, chegando a Barra de Oitis, percebem-se diversas mudanças climáticas, geográficas, enfim, veem-se cenários esteticamente díspares. Trata-se de um contraste, por exemplo, cruzar a Zona da Mata pernambucana, com suas plantações de cana-de-açúcar e no dia seguinte chegar a Barra de Oitis. Não só pelo verde das plantações, mas também pelo céu visto de cada lugar, principalmente durante o dia. No primeiro vemos um céu com nuvens, que em certos momentos nos dão certa certeza de que vai chover. Já em Diamante, especialmente nos dias acordando e dormindo na Barra de Oitis vê-se um céu sem nuvens, e mesmo quando as têm, não significava que viria chuva. Ao contrário dos meus interlocutores – já bastante acostumados aos “alarmes falsos” do céu – eu ficava cheio de esperanças, achando que naquele dia haveria chuva, mas em dozes dias por lá isso não aconteceu 20. As roupas, o nariz, a pele, a poeira levantada pelo vento e passagem de carros e motos ou até pelas crianças correndo pelas ruas, eram testemunhas da sequidão. (DC, RODRIGUES, JR, 29/07/2012).

20

Um mês depois também não havia chovido em toda a região.

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Fig. 13. Pau de arara (Itaporanga-Barra de Oitis) O fenômeno social da “indústria da seca” já não tem mais a mesma visibilidade de outros tempos, na grande mídia já não é assunto corrente, assim como nos trabalhos acadêmicos. No entanto, ainda que não apresentemos aqui dados pormenorizados acerca dos investimentos das diferentes instâncias do governo – municipal, estadual e federal – não é dificil perceber certas ações emergenciais do Estado – ainda que necessárias – vêm tradicionalmente priorizando demandas de mercado, em detrimento de práticas sustentáveis e duradouras. Diante disto, é necessário levar em consideração a implementação de princípios neoliberais que vêm sendo sutilmente implantados, e as regiões brasileiras castigadas periodicamente pelas secas não estão imunes a esse processo. Neste sentido cabe lembrar a provocação feita pelo sociólogo Pierre Bourdieu a partir da metáfora do “braço esquerdo” e do “braço direito” do Estado. Para o autor, esta seria uma das características da forte implementação do neoliberalismo na atualidade, isto é, o fortalecimento dos interesses econômicos – o “braço direito” – em detrimento de uma diminuição nos investimentos nas áreas sociais – “braço esquerdo”. A isto pode-se ainda acrescentar o fato de que se constrói na atualidade uma dependência das políticas públicas em relação ao setor

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privado. Como isto pode ser percebido no sertão paraibano? Como isto vem sendo percebido em Diamante, e mais especificadamente, na Barra de Oitis? Não se pretende responder a tais questionamentos com a profundidade que o tema exige, tendo em vista que não é o foco deste trabalho, de forma que apenas se pontuará algumas questões diretamente relacionadas com os efeitos mais evidentes da seca. Dentre estas, destacamos a contratação de empresas para realizarem a distribuição de água em caminhões pipas. Ainda que o governo as denomine concessões, tendo como justiticativa legal que nesses casos – ao contrário do que aconteceria com as privatizações – o Poder Público não está perdendo o poder sobre o planejamento, tendo em vista que as empresas contratadas estariam prestando um serviço e não o assumindo. A atual situação dos Estados-Nação apontam para uma preocupação em manter seus membros, ditos cidadãos, em uma relação de heteronomia, enquanto promove a autonomia de empresas. É isto que chamamos de ação seletiva do Estado. No atual período é bastante comum, ao andar pela estrada entre Diamante e a Barra, cruzar com caminhões pipa se dirigindo para lá ou para os povoados adjacentes. Outra questão que ilustra bastante o que se pretende apontar aqui é o estado das estradas que conduzem à zona rural de Diamante: ao contrário das antigas promessas dos prefeitos e vereadores que já passaram pela cidade, não parece haver qualquer pretensão em pavimentá-las e iluminá-las. As estradas continuam estreitas, totalmente sem iluminação e de difícil acesso, piorando em épocas sem chuvas, quando as estradas ficam mais arenosas e fofas. Em época de eleições municipais a situação das estradas proporciona aos candidatos um filão para “mostrarem serviço”, principalmente aqueles que buscam reeleição, contratando máquinas para aplainarem os caminhos de areia.

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Fig. 14. Carro pipa

Fig. 15. Carro-Pipa (2)

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Por último, andando pelas referidas estradas de areia, percebe-se que muitas famílias tiveram cisternas construídas nos quintais de suas casas, o que é feito com a participação da população local, ao contrário do que acontece com a instalação das cisternas de plástico 21. No entanto, a instalação destas últimas tem sido mantida e incentivada, inclusive pelo governo federal, que tem seu foco nos interesses privados, mesmo quando trata-se de proporcionar melhorias para a população. Nas regiões mais pauperizadas, destacando-se aqui o sertão nordestino, a situação se torna mais evidente. Após diversas promessas, denúncias de desvios de verba, desvio de materiais para outras comunidades em troca de favores políticos, só agora os moradores da Barra de Oitis estão vendo, aos poucos, uma de suas principais reinvidicações se concretizar: água encanada. Não por coincidência, no período eleitoral.

Fig. 16. Estrada de barro

21

Para mais detalhes sobre as questões acima comentadas: http://www.brasildefato.com.br/node/8662

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Fig. 17: Máquina de terraplanagem

Fig. 18: Cisterna para captação de águas da chuva

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Fig.19: Caixa d’água de acrílico

Durante as conversas com Má 22 e Ana Maria Ferreira Gomes 23, outra importante interlocutora, apontou-se a perpetuação da dependência de Diamante da cidade de Itaporanga. Esta última é considerada como uma cidade polo, servindo de apoio para cerca de dezoito municípios circunvizinhos. Especificamente no caso de Diamante, a dependência se torna política e econômica, em primeiro plano, tendo em vista que historicamente isto beneficia os políticos e o comércio de Itaporanga e, como foi destacado na entrevista realizada com Má, não há grandes interesses em mudar esse quadro. Em Diamante não encontramos Agências de Bancos Públicos 24, apenas um posto de atendimento situado na agência dos Correios, recém-instalado. Até pouco tempo atrás, com exceção de quem fizesse uso do banco privado, a única possibilidade de se efetuar saques era uma residência, onde funcionava uma lan house. 22

Secretário municipal de Assistência Social. Além de secretária de uma escola pública da cidade, é alguém, como se evidenciará a posteriori, bastante envolvida com a busca pelo reconhecimento das Comunidades da Vaca Morta (da qual seu esposo, o vereador Paulo Brito, faz parte) e da Barra de Oitis, tendo, neste caso, se tornado uma parceira de Má e de Bugari, atual presidente da associação da Barra de Oitis. 24 Existe apenas um ponto de autoatendimento de um banco privado com dois caixas disponíveis. 23

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Tive uma desagradável surpresa ao me dar conta que a cidade não tinha uma agência bancária, um caixa automático que fosse. Apesar de ter morado em capitais por toda a minha vida, conhecia muitas cidades do interior, principalmente no Rio Grande do Norte e algumas em Alagoas, lugares onde já havia realizado trabalhos de campo. No entanto, mesmo em cidades demograficamente menores não havia me deparado com isto. Só havia, no meu caso, duas soluções pra sacar algum dinheiro: ter dinheiro disponível na casa de uma senhora que tinha uma lan house – o que nem sempre acontecia como me alertaram – ou pegar um transporte e ir para Itaporanga, onde havia uma agência (DC, RODRIGUES JR, 08/04/2012).

Semelhante ao narrado acima, existem diversas outras demandas que exigem que os moradores de Diamante se dirijam a Itaporanga, de modo que não se faz necessário muito esforço para perceber o fluxo quase ininterrupto entre as duas cidades; são carros de passeio, geralmente fretados, ônibus, moto-táxis, que durante boa parte do dia vão e vêm entre as duas localidades. Desde o acesso a feiras livres, mercados públicos, previdência, hospitais, a maior parte de clínicas médicas e odontológicas, Fórum de Justiça e até Cartórios 25, dentre outras situações, tornam o município de Diamante dependente, burocrática, política e culturalmente 26, de Itaporanga. As informações até agora apresentadas não podem ser analisadas sem que se leve em consideração que o cenário encontrado em Diamante, em especial aquele que evidencia uma ação seletiva do Estado, não é um caso isolado, sendo uma situação presente na maior parte do território nacional. Isto ressalta a forma como os direitos do cidadão – civis, políticos e sociais – garantidos pela Constituição de 1988 são negados a boa parte da população brasileira (CARVALHO, 2008). Especificamente na cidade de Diamante, o referido descaso se agrava ao percebermos tanto a falta de autonomia do município em relação à cidade polo vizinha – o que vai de encontro à ideia de uma emancipação de fato, e não apenas de direito –, quanto na falta de acesso a direitos básicos como acesso a saúde e moradia de qualidade. Tais questões, como se buscará demonstrar, são potencializadas ao observamos a situação das Comunidades de Remanescentes de Quilombo, como é o caso da Comunidade da Barra de Oitis, que apresentarei pormenorizadamente a partir de agora.

25

Existe um cartório de notas e ofícios em Diamante, mas que não atende a demanda da cidade. Além disso, questões relacionadas a compra e venda de imóveis e posse de terras só são resolvidas em Itaporanga. 26 Faz-se alusão aqui a um tipo de dependência que tem sua base não apenas em questões socioeconômicas e burocráticas, mas que parece estar naturalizada na base cultural da relação entre as duas cidades.

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Ainda atualmente, a principal atividade do município é a agricultura, a qual enfrenta, historicamente, grandes dificuldades, tendo em vista que se trata de uma atividade que, neste caso específico, é exercida em uma região de clima semiárido, que tem a caatinga como vegetação predominante, com grandes períodos de estiagem das chuvas, tendo – geralmente – como período mais seco, o período entre os meses de setembro e dezembro. Além disto, buscou-se aprofundar interlocuções com pessoas não moradoras da Barra de Oitis, mas que mantinham – atualmente e/ou historicamente – alguma relação com a comunidade. Isto proporcionou um melhor conhecimento tanto acerca das condições básicas para o exercício da cidadania dos moradores do município, quanto às relações políticas que figuram na atual conjuntura do município. Tradicionalmente há grande expectativa acerca do período eleitoral nas diferentes cidades brasileiras. Não é diferente no caso de Diamanteç Exemplo disto pôde ser observado durante o ano de 2012, referente as eleições municipais. Se os conflitos políticos da cidade sempre existem de forma velada, durante este período as animosidades a eles relacionadas tornam-se mais explícitas. Se nas primeiras vezes que fomos a Diamante a cidade não se encontrava aparentemente em polvorosa quanto às disputas pelos cargos eletivos, não se pode considerar que estes inexistiam, mas que a aparente calmaria tratava-se de um período de preparação para o cenário que encontramos no mês julho. Diferentes carros, de todos os tipos e marcas, adesivados com rostos, frases e cores de seus candidatos, o que também pôde ser percebido nas pinturas das casas (geralmente patrocinadas pelos candidatos), nas camisas distribuídas entre cada grupo de partidários 27. As ruas também não escapavam do colorido típico desse período, em especial nas cidades do interior do Nordeste. Víamos bandeirolas nas casas e nos carros, fitas amarradas nos braços e/ou nos guidons das motos e bicicletas.

Diante da proibição dos showmícios pelo TSE, nos últimos anos os candidatos achavam brechas para se autopromoverem em festas tradicionais da cidade, assim como em shows que eram por eles patrocinados (não oficialmente). Não foi difícil perceber, por exemplo, que nos agradecimentos que eram feitos durante as festas, seja por cantores ou por políticos eleitos na eleição passada, a citação de alguns candidatos. Um exemplo bastante ilustrativo disso foi o que se deu durante a festa de São João da Escola Estadual na Barra de Oitis: enquanto a quadri27

Faz-se uso aqui de um sentido mais amplo do conceito de partido, como proposto por Weber (2004) apesar de, neste caso, haver convergência com as legendas e coligações partidárias.

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lha organizada por professores e alunos da escola se apresentava, o marcador da quadrilha ia recebendo instruções da diretora da escola de quem deveria ser chamado para compor a quadrilha improvisada. Com exceção de alguns casais selecionados da quadrilha (pela própria diretora) todos os que participaram eram políticos da cidade (prefeito, vereadores, assessores e secretários) ou membros de famílias “tradicionais” da cidade 28. Habituado a participar de festas juninas e bastante afeito as tão populares “quadrilhas improvisadas” questionei a diretora sobre o fato de estranhar a pré-seleção de determinadas pessoas. Sua resposta – demonstrando o incômodo da minha inoportuna pergunta – foi que ela não sabia o nome de todo mundo, mas que quem quisesse poderia ir “se chegando”. No entanto, nenhum morador da Barra se aproximou, ficando evidente o uso político da quadrilha, assim como me soou como uma boa ilustração ao que a população da Barra era submetida: um tipo de isolamento simbólico que não se mostra em muros de concreto, mas em estratégias de invisibilização. Cheguei a ouvir comentários de alguns moradores da Barra que reclamavam do fato de estarem misturando a política com a brincadeira e que aquela era uma festa da Barra e não dos políticos 29.

Tanto nesta festa como em outras se fez uso de jingles tocados e cantados pelos músicos contratados, em geral – como é de se esperar – tratavam-se de paródias de músicas e ritmos bastante conhecidos pela população.

28

O uso das aspas aqui serve para ressaltar a ironia de, com exceção dos casais que já compunham a quadrilha da escola, nenhum morador da Barra de Oitis foi selecionado. 29 Diário de Campo (DC), Rodrigues Jr, 28/07/2012.

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Fig. 20. Festa de João-Pedro (1)

Fig. 21. Festa de João Pedro (2)

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“A política de Diamante é sebosa”. Essa foi uma frase recorrentemente, ouvida seja em entrevistas formalizadas ou mesmo em conversas informais. Inicialmente considerou-se que tal assertiva tinha a ver com as tradicionais reclamações acerca da política profissional. No entanto, quando se buscou compreender o que nossos interlocutores queriam dizer com isso, percebeu-se que tinha a ver tanto com as confusões advindas das disputas, quanto com suas consequências, dentre elas surpreendeu-nos a quantidade de pessoas que falavam de supostos assassinatos encomendados, frutos de rixas políticas. Se por um lado a posição de outsider possibilita ao pesquisador permear espaços muitas vezes não acessíveis a alguns de seus interlocutores em campo, como bem destaca Heloisa Buarque de Almeida (2002) ao pensar acerca da relação entre trabalho de campo e gênero, por outro lado, que é também ponto pacífico, ele só compreenderá determinados códigos, e o que estes representam para os sujeitos que fazem parte da sua pesquisa, a partir de informações oferecidas pelos interlocutores, especialmente em situações em que a observação participante se torna imperativa. Evidência disso é que até nos depararmos com o “colorido-eleitoreiro” não tínhamos atentado para as cores dos órgãos públicos: todos com o fundo branco e uma faixa, ou mais, em vermelho, representavam a então atual gestão. Em mais uma das várias idas e vindas entre Diamante e Barra de Oitis, depois de observar por diversas vezes que dentro de uma das propriedades rurais que passávamos ao longo da estrada de barro que conduzia à Barra, percebi um pequeno prédio branco e vermelho. Já havia passado por eles outras tantas vezes, mas só agora, vindo de Diamante, vendo tantas cores, principalmente azul, amarelo e vermelho (muito vermelho!) é que atentei que as cores do referido prédio teriam alguma ligação com a disputa política. Dito e feito! Perguntei a João Batista, quem mais guiou motos comigo por aqueles areais, e ele confirmou que aquele prédio já tinha sido uma creche – agora desativada – e que as cores eram as do atual prefeito 30.

Não há dúvidas de que a política toma conta da vida das pessoas em Diamante, e que o período eleitoral torna tudo mais evidente, mais pulsante. É importante não apenas a constatação disto, mas a compreensão de quais os seus motivos. Os fatores são múltiplos e bastante complexos, portanto não poderão ser esgotados aqui. A partir de algumas conversas com pessoas que ocupavam cargos públicos não concursados, percebeu-se que uma das questões relacionadas era para alguns a garantia de permanência no cargo em que estavam – estes eram os “vermelhos” – tendo em vista que “sua candidata” era 30

(DC, RODRIGUES, jr, 20/07/2012)

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apoiada pelo atual prefeito, portanto se ela fosse eleita “tava tudo em casa”. Para outros, ligados a outros candidatos, havia a esperança de serem postos em cargos de confiança – assessores, secretários, etc – ou de serem contratados para prestarem serviços, como por exemplo, o de motorista, seja do ônibus escolar ou de carros alocados para o transporte de doentes. As disputas políticas afetam a vida de todas as pessoas, interferem, inclusive, no acesso a serviços públicos de melhor qualidade. Este é o cenário, por exemplo, que se pode perceber na situação da saúde pública de Diamante. Isto se evidencia desde a entrada da cidade, onde fulgura uma grande placa sobre uma reforma na maternidade da cidade. No entanto, ao conversar com Má, descobre-se que o hospital existe, mas que se encontra fechado há mais de 12 anos. “Não era bem um hospital, mas era uma unidade mista”, ressaltou Má. O local funcionava como maternidade, mas também realizava o trabalho de ambulatório, internações, observação, coisas mais emergenciais. De acordo com o referido interlocutor, a situação hoje se tornou ainda mais grave, já que a cidade toda conta com apenas três unidades de PSF – duas na sede do município e uma na zona rural, no distrito de Vazante – e um posto de saúde, localizado na Barra de Oitis, que atende não apenas a população da comunidade, como de outras circunvizinhas.

Fig 22. Posto de saúde da Barra de Oitis (1)

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Fig 23. Posto de saúde da Barra de Oitis (2)

Ainda sobre a maternidade desativada permaneceu uma inquietação: Como pode haver uma placa na entrada da cidade falando de uma suposta reforma no valor de R$ 190.858,38 em um prédio desativado há tanto tempo? A resposta não poderia ser mais inusitada – mas também ilustrativa, tanto da situação do município como do próprio país. A famigerada reforma, que já havia virado piada entre algumas pessoas da cidade, tinha a ver apenas com a pintura do prédio feita com a verba do governo estadual, que por sinal, como evidenciado nas fotos abaixo, não havia sido pintado com nenhuma das cores que coloriam a cidade, encontrava-se todo branco.

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Fig. 24: Placa na entrada da cidade

Fig. 25: Maternidade municipal

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Outra evidência de como os interesses políticos afetam os direitos básicos da população foi o fato de que existem apenas três unidades do Programa de Saúde da Família – duas na sede do município e uma no distrito Vazante. Além desses, há um posto de saúde que funciona duas vezes por semana na Barra de Oitis. O que chama a atenção é que este atende a uma demanda maior de usuários que o PSF em Vazante. Acerca destas questões, e de outras, relacionadas à realidade Diamante. Má, como ele mesmo afirma, é “filho de Diamante”, “nascido e criado” na cidade. Tratase de uma pessoa bastante conhecida no município, tanto por morar lá desde que nasceu quanto pelo cargo que exerce – o que lhe possibilita conversar e conhecer inúmeras pessoas em Diamante –, como também por ter participado ativamente da organização dos dados para que as comunidades da Barra de Oitis e da Vaca Morta dessem entrada no pedido de autorreconhecimento junto à Fundação Palmares – assunto que será retomado mais a frente. Ao explicar um pouco da situação atual de Diamante, ele disse: Eu acho que o município teve alguns avanços, tanto na área de saúde, como na área de educação, quanto na área social, muito embora a gente tenha muito que caminhar, porque, tipo assim, os governos anteriores não tinham essas preocupações, muito embora eu ache que precise de muitas coisas. Saúde é uma coisa que tem que ser mais trabalhada, educação também. Área social também tem de ser melhor trabalhada. Mas mesmo assim... A gente começou a organizar tudo isso a partir de oito anos, dez anos atrás, quando começaram os programa sociais do Governo. Com as verbas federais, né?! Que são as Unidades Básicas, PSFs 31, o SUAS também que começa a se organizar. E ai existe certo direcionamento dos programas do Governo, que antes o município fazia, mas era de forma aleatória, mas como qualquer município da Paraíba e do Brasil, a gente também tem muitas dificuldades, em implementar programas e dá mais qualidade. Eu acho que ainda é preciso de muita coisa, ainda.

Má, além de exercer o cargo acima mencionado, já esteve envolvido, em outros períodos, mais diretamente com a área da saúde no município. Colocando-se como alguém que conhece um pouco desta área, apontou que os maiores problemas de saúde que acometem a população de Diamante são: hipertensão e diabetes. Existem também casos de tuberculose e hanseníase. Na época em que eu trabalhei na saúde, no governo da gente na gestão passada. Quando a gente começou a organizar essa questão de atendimentos, SUS, a gente começou a descobrir alguns casos que a gente achou que não tinha. Principalmente de tuberculose, hanseníase. E, agora hipertensão, problema de saúde mental também, aqui, tem bastante.

31

Programas de Saúde da Família.

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Conhecer quais os problemas de saúde mais recorrentes entre a população de Diamante, o que inclui a Comunidade da Barra de Oitis, é algo indispensável, tendo em vista que existem doenças no Brasil que apontam para um descaso do Estado com certas parcelas da população, o que podemos chamar de um descaso planejado (SCOTT, 2010), o que reproduz um preconceito de classe. Doenças como tuberculose e hanseníase, ao longo de mais de quarenta anos, não experimentam avanços científicos. Esta seria uma das características presentes no que a Organização Mundial da Saúde define como doenças negligenciadas. No site da Fiocruz encontra-se uma definição bastante elucidativa deste conceito: Doenças negligenciadas são doenças que não só prevalecem em condições de pobreza, mas também contribuem para a manutenção do quadro de desigualdade, já que representam forte entrave ao desenvolvimento dos países. O emprego do termo “doenças negligenciadas” é relativamente recente e polêmico. Foi originalmente proposto na década de 1970, por um programa da Fundação Rockefeller como “the Great Neglected Diseases”, coordenado por Kenneth Warren.(...) Este termo tem sido desde então utilizado para se referir a um conjunto de doenças causadas por agentes infecciosos e parasitários (vírus, bactérias, protozoários e helmintos) que são endêmicas em populações de baixa renda. Hoje o combate a essas enfermidades, que atingem particularmente as populações marginalizadas, é essencial para o cumprimento dos objetivos de desenvolvimento da Organização das Nações Unidas (ONU) para o milênio 32.

Ainda de acordo com as informações da Fiocruz, compreende-se que há uma extensa lista de doenças negligenciadas, dentre as quais sete se fazem fortemente presentes na realidade brasileira: dengue, tuberculose, malária, hanseníase, esquistossomose, doença de chagas e leishmaniose. Como exposto acima, algumas dessas doenças aparecem como sendo as de maior incidência em Diamante. Além destas, a hipertensão e “problemas mentais” aparecem como estando cada vez mais presentes entre a população do município. Sobre estes últimos explicou-se que estavam mais relacionadas à esquizofrenia e à depressão 33. “A questão depressiva é bastante aqui”, afirma Má. Sobre isso, Maria do Socorro faz uma importante observação: E fazendo uma complementação aqui, existem muitos idosos, e a maioria moram sozinhos, se não moram sozinhos, dormem sozinhos. Então a questão da depressão é bem grande aqui no município. Não que eles se identifiquem como depressivos, mas no conversar, no decorrer da conversa a gente vai percebendo essa questão.

32

Fonte: http://www.cdts.fiocruz.br/inctidn/index.php?option=com_k2&view=item&layout=item&id=112&Itemid=61 Apesar de ambas as doenças aparecerem na fala de Má como sendo “doenças mentais” hoje aceita-se – dentro do discurso médico – a primeira como sendo uma doença de fundo neurológico, enquanto a segunda estaria relacionada a outros fatores, em especial emocionais. 33

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Retomando as questões acerca das doenças negligenciadas, outros fatores devem ser observados para sua permanência. O tratamento continua sendo o mesmo ao longo de décadas. Não coincidentemente, são doenças que atingem majoritariamente as parcelas mais pauperizadas da população, que dependem diretamente do serviço público. Isto é, são doenças que trazem ônus ao Estado, não oferecem grande lucratividade para a indústria farmacêutica – uma das atividades mais lucrativas do mundo moderno (LUNA, 2009) – o que, consequentemente, não possibilita o investimento em pesquisas científicas – que, em muitos casos, dependem do capital privado – na melhoria e diminuição do tempo de tratamento, como é o caso, por exemplo, da tuberculose. Tomando a referida doença como exemplo vale citar Lara Luna (2009): A tuberculose é quantificada em 75 mil novos casos no Brasil. A favela da Rocinha, na cidade do Rio de Janeiro, é um foco exemplar da doença, contando cerca de 50 novos casos todo mês. Em entrevista ao Fantástico, o coordenador da Campanha de Acesso a Medicamentos explica que essas doenças são “doenças da pobreza, literalmente. Então elas dependem de fatores como saneamento, boa alimentação ou acesso a informação.” São justamente doenças típicas de periferias das grandes cidades e também das regiões mais remotas do Brasil, atendendo grupos desfavorecidos material e culturalmente 34. Além disso, segundo o secretário nacional da Parceria Brasileira contra a Tuberculose, Carlos Basília, a maioria das drogas que combatem a tuberculose data das décadas de 1940 e 1950, não havendo depois dessa época o desenvolvimento de grandes inovações medicamentais contra a doença. O esclarecimento para esse dado nos é dado pelo epidemiologista Eduardo Costa, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz): “Não vale a pena investir em produzir medicamentos para esses grupos. Então é uma doença que é negligenciada, e a grande indústria não se interessa em desenvolver produtos para ela.(LUNA, 2009, s/p)

Tais informações apenas reforçam que a realidade presente em Diamante é reflexo da situação nacional, na qual grandes contingentes populacionais são apartados de intervenções médicas e da saúde pública, tornando, dessa maneira, a população mais pauperizada um alvo de doenças que poderiam ter sido erradicadas – caso houvesse interesse nisso. Hipertensão e depressão não estão na lista das doenças negligenciadas, o que não implica que devam receber menor atenção do Estado, uma vez que vêm se tornando cada vez mais frequentes. É necessário o aumento de investimentos na contratação de psicólogos, psiquiatras, nutricionistas, assim como de médicos especialistas em áreas como endocrinologia, neurologia, dentre outras áreas bastante procuradas nas redes pública e privada. 34

Aqui é necessário uma observação: não há concordância com a ideia de que existam populações com carência cultural, e sim grupos de sujeitos que foram socioeconômica e culturalmente isolados, quando não geograficamente, de maneira simbólica, como nos parece ser o casos dos moradores de favelas e de populações negras rurais.

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Retomada a conversa com Má e Maria do Socorro sobre o PSF de Vazante, compreendeu-se que o mesmo havia sido inaugurado por volta do ano 2000, e que devido a sua localização findava por ser subutilizado. A distância do referido distrito para os povoados adjacentes era maior do que destes até a Barra de Oitis, que atendia a diversos outros povoados, como Mata de Oitis e Capim Grosso, o que sobrecarrega um posto de saúde já com dificuldade em atender os moradores da Barra. Má esclareceu que a localização do PSF na Vazante se deu por diversos fatores. Ele afirma: Olhe, eu não sei explicar assim diretamente como foi feita essa escolha, mas eu suponho o seguinte: é que em Vazante por ser Distrito, né?! E ter certo poder político maior. E lá também o prédio é bem maior, a estrutura é melhor. E eu acho que uma das escolhas foi essa, certo?! A outra escolha, é que quando vão fazer um PSF já vão pegando os prédios que já estão feito, alugando... e eu acho que isso influenciou na escolha. Muito embora eu ache que a escolha foi de certa forma errada, porque a Barra fica muito mais central.

Além de questões referentes à saúde pública em Diamante, Maria do Socorro ressaltou outros problemas por ela percebidos. Destacando-se os critérios de acesso ao Programa Bolsa Família (PBF). Aqui a questão predominante, é a questão do benefício do Bolsa Escola. Porque tem muita gente na Barra que tem o ‘’perfil’’ e ainda não tem o benefício. Então assim, é algo predominante e que eu me preocupo muito, e que no município existem pessoas que não estão no perfil desse programa, mas estão. Então assim, eu cheguei aqui em 2008 e 3 meses seguidos que eu estava trabalhando, chegou a CGU – Controladoria geral da União- que fiscaliza tudo. E assim, e a gente teve uma semana com auditor – o nome dele é até Pedro – e ele fez essa pergunta a mim: qual era a minha maior inquietação enquanto assistente social, por mais recém-chegada que eu estava . Porque assim que eu cheguei, eram sempre as pessoas vindas, porque Diamante estava com um ano e pouco que não estava chegando cartão do Bolsa Família. E a gente ligava e aquela coisa... e quando a gente ligava , sempre diziam:’’ olhe, em Diamante existe um número alto de beneficiários do programa Bolsa Família’’. E que a gente sabe, e eu, enquanto assistente social, sei que muitos deles não se enquadram no perfil de ser beneficiado do programa. Enquanto por exemplo, na Barra de Oitis a gente sabe que a dificuldade é grande, que as pessoas são realmente pobres, que vivem muitas em áreas vulneráveis e que não tem esse beneficio ainda. Então a minha inquietação, o maior problema a meu ver, eu acho que é esse. E já complementando, a dificuldade é maior de ir de encontro. Quando a CGU veio falou: ‘’olhe Maria do Socorro, mas a gente tem que se aproximar do real, do que realmente tem que ser feito. “Então tem que chamar algumas pessoas, que estão com o benefício bloqueado”. Porque tem benefícios que são bloqueados e cancelados automaticamente.

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5.A BARRA DE OITIS

Fig. 26. Visão geral da Barra de Oitis (Google earth) 35 A comunidade da Barra de Oitis localiza-se a aproximadamente sete quilômetros da sede do município de Diamante, tendo sido administrativamente reconhecida como Povoado da cidade, estando situada após o rio Piancó. Atualmente conta com aproximadamente 157 famílias, distribuídas ao longo de um vasto território, ao que tudo indica, há quase dois séculos. Isso se evidencia a partir dos relatos que serão aqui apresentados, obtidos diretamente, por meio de entrevistas gravadas, conversas informais e documentos disponibilizados. Estabeleceu-se interlocução não apenas com moradores da comunidade – como já explicitado – mas outros, geralmente apontados por integrantes da comunidade como sendo de grande importância para a atualidade, assim como para a luta por reconhecimento do povoado, enquanto remanescente de quilombo.

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Mais a frente será exibida uma imagem semelhante a esta, mas focada nos limites das terras, a partir das narrativas tanto dos quilombolas quanto de seus tradicionais proprietários, aqui chamados de “herdeiros”.

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Fig.27. Visão geral – sede do município-Centro da Barra

Fig.28. Visão do Centro da Barra de Oitis

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Muito já se falou sobre a apropriação das comunidades negras rurais da categoria quilombola, isto é, da necessidade de seus integrantes habitarem esta categoria. Como, em três anos, apenas uma comunidade negra – residente no sertão paraibano – vem se apropriando e lidando com ideia de auto-atribuição enquanto quilombolas? A apropriação destas questões vem trazendo que mudanças aos sujeitos que compõem a Barra de Oitis? Estas e outras questões serão revisitadas, mas pretende-se contextualizar o leitor acerca do início do processo e de como ele vem sendo construído subjetiva e coletivamente pelos que compõem a Barra de Oitis, assim como as parcerias que vêm sendo estabelecidas para que isso se efetive. Neste sentido, é interessante observar que alguns nomes apareceram recorrentemente como tendo sido “peças-chaves” para a organização e envio da “papelada” para a Fundação Palmares. Isto é o que se dá com Bugari, Má, Ana, Maria do Socorro, Gal, João Batista, Francimar, dentre outros, que serão mais bem apresentados mais adiante. Alguns deles não foram encontrados na Barra de Oitis durante o trabalho de campo desenvolvido, no entanto sempre eram citados quando outros interlocutores falavam acerca do processo de reconhecimento junto a Fundação Palmares, como é o caso de Maria do Socorro, Ana e Má. Este último era frequentemente citado como alguém que teve a chance de conhecer bastante da história da Barra de Oitis, sendo considerado “um parceiro”, ou como ele mesmo se autodenominou: “um simpatizante da causa”. Sobre como se deu o interesse pela questão dos “quilombolas” Má explicou: Eu já fui militante, quando estudava em João Pessoa. O que era de movimentos sociais eu sempre estava engajado, na época. E aqui também, eu tinha trabalhos de base, com a Ana. Certo?! Alguns trabalhos de base, comunitários, esse negócio. E eu conheço algumas pessoas da Barra... Eu conheço a Barra de muito tempo. Eu andava por lá, tinha amigos por lá, e ainda tenho amigos. Bugari mesmo eu conheço de muito tempo, desde criança que eu conheço ele (...). Bugari era de lá, na época eu tinha alguns amigos que eram de lá, eu era muito ligado a esse pessoal, que já não existem mais, sumiram, morreram... E como eu já tinha uma experiência com trabalhos comunitários ai Bugari me procurou, porque ele tinha a intenção de criar uma associação. Porque lá existia uma associação, mas que era concentrado o poder na mão de um senhor só, que era o Cabo Adalton. E que ele queria organizar essa associação. E ai eu comecei a conversar com ele.

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Fig. 29 Entrevista com Má e Maria do Socorro (Por João Batista Delfino)

Não só na conversa com Má, como em outras, destaca-se que existia por parte de Bugari, juntamente com outras pessoas da Barra, o interesse em retirar a presidência da associação rural já existente ali das mãos do Cabo Adalton, alguém representado como exercendo um poder de coerção sobre a maior parte dos moradores da Comunidade, que, segundo consta, votavam nele mais por medo de alguma represália do que por qualquer tipo de representatividade, de fato. Como eu já tinha algum conhecimento de programas sociais, Brasil Quilombola, esse negócio todo... Eu também tinha o conhecimento de que lá era uma comunidade de remanescentes. Então vamos começar por ai. Ai a gente começou a fazer reuniões, começou a convidar as pessoas. A gente fez a fundação da associação, e ai eu encaminhei pra Brasília pedindo o laudo de reconhecimento. Ai as coisas começaram a se encaixar, né?! Mas ai a gente estava no vazio porque a gente não tinha apoio nem muito contato. E ai conheci uma menina, que se chama Didia, lá de Vaca Morta. Os processos (das comunidades) aconteceram quase que ao mesmo tempo. Ao mesmo tempo, mas cada um fazendo o seu, né?!

A partir daí, segundo narrou Má, deram-se viagens até João Pessoa, onde se encontraram com representantes do movimento negro, ligados à Fundação Palmares. Com isso,

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não só ele, como Bugari e outras pessoas em comitiva, tiveram acesso a reuniões com representantes de órgãos governamentais, como INCRA, FUNASA, dentre outros. Todo esse processo se deu no começo de 2008, mas devido ao período de eleições foi preferível freá-lo, pois no começo o grupo que se pretendia fundar sofria forte oposição dos políticos locais. Com o passar do tempo, os próprios políticos locais começaram a perceber que a movimentação “ganhava corpo” e resolveram se aproximar da “causa”. “Foi um trabalho difícil, mas alguns sonhos já estão sendo realizados, né?!”. Maria do Socorro, que desde as primeiras incursões do trabalho de campo se mostrou bastante disposta a colaborar, detalha um pouco mais sobre como se deu este processo inicial e seu interesse em envolver-se com as questões ligadas a Barra de Oitis e a Vaca Morta. Maria do Socorro: Porque assim: quem é mais, quem está mais à frente, até por questão de tempo, é Má e Ana. Né...porque quando eu cheguei aqui no município, o Má já estava e Ana também, entendeu? Mas, até então eles já tinham conversado e tudo mais ainda, mas a questão de ir à João Pessoa em busca de alguma coisa, do autorreconhecimento das comunidades quilombolas no município de Diamante ainda não tinha acontecido. Embora eu já tivesse conversado... enfim. Aí um certo dia nos convidou , aí disse tudo direitinho, explicou. E eu e Má tratamos de ir. A gente pediu o carro, o prefeito deu o carro, o carro foi único e exclusivamente com a gente. Antes da gente ir, a gente ligou, né?! Pra Francimar, por que Ana já tinha um contato direto com Francimar, antes da gente saber e ir lá. Aí a gente marcou, que no caso ela é membro da comissão estadual, né?! Dos Quilombolas da Paraíba, e aí nós fomos. Ela deu o endereço e nós fomos. (...) Gilson: Me tira uma dúvida: a primeira vez que vocês falaram que foram ter contato direto com eles e tal, quem é que foi? Maria do Socorro: Eu, Ana e Má. Só os três, e o motorista. O primeiro contato aqui, direto com eles- porque antes já tido por telefone- de conhecer pessoalmente, fomos nós três. Gilson: Certo. Então a primeira vez não foi ninguém da Barra, nem da Vaca Morta. Só vocês três? Maria do Socorro: Não, só nós três. Porque também a gente não sabia de que forma buscar. A gente ia procurar saber de que forma, né?! Má já tinha mandado, mas Má não sabia que já estava tudo certo, entendeu?! Aí eles nos orientaram super bem. Até hoje a gente tem aquele contato com eles . Tanto faz eu, quanto Má... liga pra Má, liga pra mim , a gente repassa. Então assim, foi muito bom essa questão do encontro com eles. E até hoje a gente está caminhando. A passos lentos ...porque assim, eu sou assistente social do município de Diamante, de todos. Do município todo.

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Ana 36, outra pessoa frequentemente apontada pelos quilombolas 37, ao ser questionada acerca de como e o porquê de seu interesse pela questão quilombola disse: Na verdade eu estava brincando na internet, né?! E comecei navegando, e vi a questão dos quilombolas. Ai comecei a achar que aquela história dos negros, da África. Então comecei a ver que no Brasil já existiam os quilombolas, e comecei a achar a história muito parecida com a da Vaca Morta. De início, né?! Quando eu conversei com Má... Comecei a mostrar a Má, e começamos os dois juntos a debater essa questão dos quilombolas. E pesquisamos mais, e fomos cada vez achando mais interessante, ai fomos ver que a Barra também estaria no mesmo padrão.

Se ao iniciar os levantamentos preliminares em Vaca Morta, Ana aponta que teve facilidades, em especial por ser casada com alguém da comunidade, o mesmo não se deu na Barra. Na perspectiva dela, parecia que os moradores da Barra, em especial os mais antigos, detentores de um amplo conhecimento da história oral local, haviam sido criados como que proibidos de falar sobre sua história.

Tá entendendo como é?! É como se tivesse alguma coisa que os impedisse de falar sobre aquele assunto, é como se fosse um medo. Só que depois de tentar conversar, eu e Mar e tal, ai veio Maria do Socorro, fomos conquistando a confiança deles. Falei inclusive com o senhor lá (Arcênio Roque), que faleceu, não foi?! Foi ele quem mais nos forneceu informações. Ai com isso a gente encaminhou pra fundação Palmares... A documentação pra Fundação Palmares. Saiu junto Vaca Morta e saiu junto Barra, no mesmo mês. A gente conversou com Bugari e com uma pessoa da Vaca Morta. Na Vaca Morta tinha uma Associação Rural. Na Barra, Bugari toda vida gostou de trabalhar com as comunidades rurais, mas existia lá uma divisão, tinha um grupo, de cabo Adalton, que Bugari nunca ganhava dele, mas Bugari era quem mais trabalhava lá. Dai teve a ideia de Bugari criar essa outra comunidade, né?! Que seria comunidade Quilombola. No caso da Vaca Morta, como foi feito um acordo, diferente da Barra, nós aproveitamos tudo, o CNPJ... só mudamos a razão social, que era rural e passou a ser quilombola. Na Barra foi preciso organizar toda a documentação, criar uma comunidade mesmo. Vimos qual seria o trabalho. Fomos a João Pessoa, eu, Má e Maria do Socorro. Falamos com Francimar, Francimar passou todas as informações necessárias pra gente. Com isso, a gente veio e iniciamos, né?! Criamos as duas comunidades, dai, depois a gente criou essas comunidades, criou primeiro a Barra porque a documentação da Vaca Morta, por algum motivo não chegou lá... A gente teve de enviar novamente toda a documentação.

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Ana Maria Ferreira Gomes, como já referido, secretária de uma escola estadual da cidade, companheira de Paulo Brito, vereador em Diamante, e membro da Comunidade de Remanescentes da Vaca Morta. 37 A interlocução estabelecida com Ana e com Má se deram a pedido dos moradores da comunidade, tanto individualmente, como em uma reunião por eles organizadas para alguns esclarecimentos sobre a minha atuação.

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Ana continuou explicando que a partir da formação das comunidades, passaram a buscar trabalhos sociais, assim como a compreender as questões sobre o direito coletivo à terra, para as populações da Barra e da Vaca Morta. Segundo seu relato, descobriu que um dos então proprietários da terra da Vaca Morta, já havia dado entrada no processo junto ao INCRA, mas que faltou alguns documentos. No entanto, ela ressaltou que este início do processo se deu ainda nos anos 90, enfatizando, com este exemplo, como a questão quilombola caminha lentamente. Enfatizou também, por diversas vezes, que por terem se envolvido com as questões quilombolas viraram motivo de piada e chacota para muitos da cidade: “As pessoas diziam: É quilombola, é quilombola, é carambola. Hoje como o processo, do governo de Lula pra o Governo de Dilma evoluiu muito”, ela explica que a situação mudou, até atraindo interesses de políticos locais, antes contrários a demanda quilombola 38. Ainda sobre o inicio de todo o processo, explica que partir das primeiras incursões a João Pessoa, apesar de não terem ido em companhia de nenhum dos membros da duas referidas comunidades, havia o compromisso de repassar todas as informações, e, principalmente, de que eles próprios, tendo acesso as informações tomassem a frente do processo, o que percebe-se também na atualidade. Maria do Socorro ressaltou também que, além da sua formação de assistente social (que lhe dava um interesse “pelo social”), o fato de estar diretamente responsável por questões relacionadas ao Programa Bolsa Família, proporcionava um contato, ainda que superficial, com uma parcela consideravelmente grande de Diamante, assim como um conhecimento mais específico acerca das questões “quilombolas”, tendo em vista que as famílias assim identificadas gozam de certa prioridade. Maria do Socorro: Eu sou responsável pelo cadastro do Bolsa Família, com assinaturas de doações para pessoas carentes do município, analisar e tudo... essas questões. Só que assim, como essas duas comunidades são bem importantes , são comunidades remanescente de quilombo... e você sabe... Hoje em dia são quantas na Paraíba Má, só?! Má: Trinta e cinco já certificadas. Maria do Socorro: Autorreconhecidas, né?! Então assim, a gente se interessou muito. Assim que me convidaram eu fiquei naquela animação: ah, então beleza... então, tudo que tem a gente tá sempre querendo participar . Tem vezes que 38

Na primeira reunião, durante o mês de fevereiro, quando fui apresentado a comunidade, havia um político local, que se diz filho da Barra e “vereador pela Barra”, e outro pessoa, um rapaz que se apresentou enquanto representante dos movimentos sociais. Quando, em março de 2012, em mais um período de trabalho de campo, descubro que o referido rapaz seria candidato a vereador.

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assim... Houve reuniões, acho que ou duas parece, que não pude ir . Assim como também Má, assim como também Ana. Mas assim, a gente tinha sempre aquela interação, até hoje tem. Mas, não como antes. Porque era aquela luta pra ser autorreconhecida, e tudo. Pra explicar as pessoas o que é realmente serem quilombolas. Então a gente já fez o trabalho... Gilson: Então vocês foram explicar nas próprias comunidades? Int1: Isso! Então a gente já fez esse trabalho na Barra, a gente já foi explicar a eles. Sempre quando a gente vinha dessas reuniões, tudo escrito, tudo organizado. A gente sempre ia pras comunidades repassar tudo que a gente tinha ouvido lá em João Pessoa. Teve uma vez que foram 14 homens e eu, mas mesmo assim a gente foi pra comunidade, a gente relatou o que tinha passado lá, a gente falou da importância quilombola de autorreconhecer-se como tal. Gilson: Isso foi em que ano? Int1: Isso foi em 2009, começo de 2010... Int1: A gente começou a andar em João pessoa, pra buscar isso, em 2009. E a Barra já tava esperando o registro de autorreconhecimento. Gilson: E nesse começo, é... é que até hoje, eu conversando com o pessoal da Barra , tem gente que fala: ‘’ah, fulano não quer ser quilombola não’’. Como é que era no começo, essa questão? Como é que era a receptividade disso lá no começo, em 2009? Int1: Olhe, foi complicado. Teve até uma pessoa que chegou pra mim... só que assim, a gente chamava todo mundo, conversava, dizia.. só que você sabe, é aquela coisa, muitas informações chegando. Então, para essas pessoas, tem pessoas leigas, né?! A maioria na realidade. Então, pra gente explicar, e elas entenderem no momento, é bem complicado. Tem que ser aos poucos, eles mesmos ... a gente pediu ajuda a seu Bugari, que a gente sempre teve contato direto com ele. Seu Bugari orienta, fala a eles da importância. Gal também foi uma pessoa fundamental, a gente sempre dizia a Gal pra orientar... eu achei um pouco complicado. Porque teve uma pessoa que chegou pra mim em uma reunião, em um determinado dia que eu fui lá, e disse: ‘’eu não tô entendendo nada em relação a quilombola. Esse negócio, como é? Funciona pra todo mundo, ou é pra uns e outros não? Porque tu sabe aqui como é. E essas terras vai dar certo? Esse povo vai querer dar a nós as terras? ‘’ Aí assim, nós já tinhamos explicado. Eu expliquei, Má falou, Francimar nesse dia falou, o ‘’padre’’, né?! Mas assim, não é que eles entederam de primeira não. Hoje eles já têm mais uma consciência do que é ser quilombola, mas antes foi bem mais complicado. Gilson: E eu te pergunto também, se vocês perceberam alguma resistência ao se reconhecerem como descendentes de escravos, como quilombolas. Vocês sentiram isso? Maria do Socorro: Eu senti, particularmente. Eu não sei se Má sentiu a mesma coisa que eu, mas eu senti. Por exemplo, veio uma mulher fazer o cadastro. Ela veio e disse logo: ‘’olhe, eu sou da Barra, mas, por favor, não me coloque nesse negócio que vai ter aí de quilombola, que é tudo dos negros’’. Aí eu fui falar com ela, e disse: olhe, não é assim. Você tava nas reuniões? ‘’Não, só fui uma’’. Aí eu fui explicar direitinho, como era e como não era. Aí foi quando ela começou a entender, mas também não foi de imediato. Foi da segunda vez que eu falei com ela , que ela disse: ‘’ eu já soube, eu sou descendente. Eu estou feliz, na boa. Tá tudo certo já’’. Então, eu achei bem complicado enquanto não se reconheciam como remanescentes. Gilson: E assim, qual motivo você se motivou a se envolver com isso? Maria do Socorro: Olhe, não foi à tôa que eu escolhi o Serviço Social. Eu gosto muito do social, eu gosto muito de conversar, de interação. Eu gosto muito de saber como o outro vive, que perspectiva de vida aquela pessoa tem. E princi-

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palmente na Zona Rural, e principalmente por essa questão de serem descendentes de escravos. Então assim, me instigou demais. Até porque eu já fiz um ano de história , antes de fazer Serviço Social, eu tinha feito um ano de História. Então assim, foi um convite que eu nem pensei muito em aceitar, já fui e aceitei de primeira. Só que assim, você sabe que tem muitos entraves. Algumas questões como algumas pessoas não se reconhecerem como quilombolas, então fica mais difícil de trabalhar com essas pessoas. Porque por mais que você explique, por mais que você diga a realidade, por mais que você mostre como era antigamente. Então assim, pra gente é bem complicado. Porque você se prepara em um final de semana todinho pra ir dar uma reunião lá com tudo que você viu em João Pessoa. Que não é novo,é tudo antigo. Que a gente já sabe das lutas, de tudo...né?! Então você chega, faz um relato de tudo, e é bem difícil porque eles não são todos que entendem, não são todos que falam: ah, eu estou de acordo. Isso realmente é verdade, eu me enquadro nesse perfil’’. Não, não tem. Até hoje você sabe que não tem. Até hoje tem aquelas pessoas com preconceito que falam: não, porque são negros... foram escravos e já passou, já era...’’ E aí a gente explica, e tudo mais como é, mas ainda existe esse entrave. Então, há a dificuldade de se trabalhar nesse sentido, entendeu?!

A figura de seu Aceno Roque era sempre mencionada como uma das pessoas que melhor conhecia a história da Barra, principalmente no que dizia respeito ao passado ligado a escravidão. O silêncio – esta “alguma coisa que os impedia de falar” – diz respeito diretamente às relações de poder em que os moradores da Barra de Oitis estavam histórica e socioculturalmente envolvidos, principalmente no que diz respeito à relação com os “herdeiros” da terra, isto é, com os descendentes dos antigos proprietários, desde o período da escravidão. Algo que torna bastante evidente em uma conversa que contou com a participação de Má e Maria do Socorro: Má: Ele era daqueles antigos da Barra, né?! Ensinava ler, escrever. Ah, ele era

uma pessoa muito interessada, muito educado. E que tinha uma certa visão do mundo que ele vivia. As pessoas sempre procuravam ele. Era muito respeitado por toda a comunidade. Como ele era mais velho, as pessoas chamavam ele de tio , tio Aseno. Porque praticamente ali é uma família só, né?! Então quase todos chamavam ele assim. E ele era uma pessoa que sabia conversar com as pessoas. Muito embora, ele era muito malandro... Gilson: Malandro? Má: Sim. Gilson: Como assim? Má: Ele não abria a boca, assim... Maria do Socorro: 100% não. Má: Apesar que ele me conhecia, ele era muito amigo de meu irmão. Quando eu chegava lá ele me recebia bem, mas ele não gostava de de falar muito sobre os assuntos antigos, porque que existem pessoas hoje, que se acham importantes, se acham os donos e que não querem se misturar com os negros, né?! E ele achou que dessa forma, iria honrar, não ia constranger as pessoas, né?!

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A pessoa de Bugari aparece na fala dos interlocutores supracitados, e também na fala de diversos moradores da comunidade da Barra, como sendo central para a organização do povo enquanto remanescentes de quilombo. Evidentemente, enquanto antropólogo, há o cuidado em não nos tornarmos reféns dos discursos dos nossos interlocutores, tendo em vista que estes, tanto quanto o pesquisador, interagem a partir de certo “jogo de esconde e mostra”. Neste, selecionam os sinais diacríticos que pretendem apresentar. É importante ressaltar que tal seleção não pode ser vista de forma unilateral, uma vez que se dá a partir de exigências e negociações ocorridas entre a realidade socioeconômica, cultural, a memória coletiva do grupo em questão, assim como de seu cotidiano em interação com as exigências estatais para dar prosseguimento ao reconhecimento. A construção identitária desses grupos, que antes estavam homogeneizados sob a categoria de “comunidades rurais”- o que enfatizava apenas sua relação com a terra - para uma identidade quilombola, que acrescenta ai demandas étnico-raciais, pode ser vista a partir do que Manuela Carneiro da Cunha chama de “cultura 39”, que tem a ver, por exemplo, com a ideia institucional que se faz de como determinados grupos devem aparecer. A partir disto, pode-se compreender como se tornou mais importante para a população da Barra de Oitis organizar e conhecer a sua história. Exemplo disto, como será apresentado em seguida, foi a organização de um material escrito, que contasse um pouco da história local, relacionando-a também com dados sobre a cidade de Diamante. Os dados apresentados daqui por diante partirão deste material, em diálogo com os dados etnográficos conseguidos durante os dois períodos de trabalho de campo até agora realizados (entre fevereiro e julho de 2012). É importante destacar, também, que este material foi realizado com a participação de diversas pessoas da Barra, e de outros lugares – como Má e Ana –, mas o responsável por juntar e organizar os dados foi Aluizio Delfino de Lima, conhecido como Gal, hoje primeiro secretário da Associação. Ele tem servido de apoio para estabelecer interlocuções com outras pessoas na Barra, assim como na sede do município. Nesse sentido, é importante ressaltar que o material supracitado vem dando o norte para a organização dos dados aqui apresentados.

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Todas as vezes que o termo cultura aparecer entre aspas no texto estará se remetendo a esta perspectiva.

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5.1 Do oral ao escrito, um povo que escreve a sua história40 Por volta do ano de 1842 chegavam às proximidades do Riacho dos Oitis um grupo de escravos fugindo de uma fazenda no estado de Pernambuco, esse grupo de negros eram denominados de Querubins receberam essa denominação por usarem roupas longas e muito brancas as quais eram produzidas por eles mesmos. Os Querubins acharam conveniente ficar nesta terra, porque havia terras férteis e água no Riacho dos Oitis. Viviam da prática da agricultura, algo que eles aprenderam desde cedo, e cultivavam frutas. Não criavam animais para o consumo, pois uma vez que fosse preciso fugir dos capitães do mato, isso facilitava a retirada do mesmo. O fumo era outra cultura branda, e aqui nascia naturalmente, possuía como religião a Umbanda e essa era posta em prática por eles (BARRA, p.4).

A partir do relato acima se pode perceber que a população da Barra vem lutando por seu reconhecimento, remetendo a pouco antes da metade do século XIX, quando se deu a chegada dos Querubins. Ao contrário do que ocorre com os nomes de outros grupos fundadores – Nicacas e Lucas – atualmente não pode ser encontrado nenhum habitante da barra com o sobrenome Querubim. Entretanto, foi interessante observar a existência de pessoas batizadas com o nome “Querubim” ou “Querubina”, o que pode remeter a herança deste primeiro grupo marcada na cultura local. Ainda sobre os Querubins, indica-se que viveram durante algum tempo, nas terras que hoje são conhecidas como a Barra de Oitis, sem a presença dos brancos, até 1858, quando a família Barros chegou à região. Os Querubins viveram sem a presença dos “brancos” durante 16 anos. Porém no ano de 1858, chegaram às demarcações do território, vindo de Portugal para o Estado de Pernambuco, na cidade de Olinda, a família Barros. Esses mesmos fugindo de uma guerra entre Portugueses e Holandeses vindo a se instalar em uma fazenda em Olinda. Chegando lá teve contato com outros conhecidos os quais os submeteram a um juramento de não voltar mais para Portugal e, em troca deste juramento ganhariam dois grupos de escravos os quais trabalhariam para elevar a situação financeira da família. Eram os grupos: Luca e Nicaca que passou a pertencer ao Coronel José Antônio de Barros e sua Irmã D. Francisca de Barros, essa mãe de 12 filhas. Feito este acordo saíram de Olinda para uma fazenda localizada em Piancó- PB, denominada de’ Xendengo’. A procura de terras para tomar posse dirigia-se para terras, hoje Barra de oitis. Os Querubins mantinham táticas de espionagem que na maioria das vezes 40

Este tópico se constrói a partir do material organizado pelos próprios interlocutores – “A História de Luta de Um Povo Guerreiro” – motivo pelo qual ao citá-lo escolheu-se fazer pelo nome BARRA.

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eram infalíveis, e logo ficaram sabendo da vinda dos Barros para as terras já habitadas e, resolveram fugir sem lutar, abandonando plantações e levando apenas o necessário. Suas moradias eram feitas de palha e não tão resistente. Foi então que no dia 16 de março do ano de 1858, chegavam às proximidades do Riacho dos Oitis a família Barros, trazendo junto com eles os dois grupos de escravos, Nicaca e Luca. Ao terem o primeiro contato com as terras, perceberam que o lugar havia sido habitado e até recentemente, pois havia vestígios concretos e a mais evidente era as plantações de milho e fumo. Eles tomaram posse das terras e da plantação e com seus escravos deram inicio a primeira construção em tijolo: Uma casa grande, porém não tão bem luxuosa (BARRA, p. 4-5).

A chegada da família Barros, junto com os dois grupos de negros escravizados, parece marcar profundamente a memória coletiva da comunidade, suas referências ao passado, assim como as relações atuais. O nome Querubim deixou de existir, sendo este grupo absorvido a partir dos laços de parentesco com os outros dois 41. Apesar de existirem famílias com outros sobrenomes, o discurso corrente na comunidade é de que todos são ramificações dos Luca e dos Nicaca. Exemplo disso seria o nome Mariano, sobrenome comum entre o povo da Barra, e que é considerado outra forma de chamar os Nicacas, fazendo menção ao culto católico à Maria. A relação entre as famílias de negros mencionadas acima e a família Barros é, sem duvida, algo que marca tanto os relatos sobre o passado como as relações presentes, tendo em vista que os Barros continuam sendo identificados como proprietários da maior parte das terras da Barra, inclusive impedindo que construções sejam erigidas em determinados lugares. Além disso, o discurso corrente é de que as terras atualmente estão sob posse de outros proprietários foram vendidas ou doadas pelos Barros no passado. Apesar de todos se considerarem uma só família, os moradores da Barra se orgulham em afirmar a família-tronco específica a que pertencem. Exemplo disto foi perceber, durante a reunião realizada em abril – a pedido da comunidade –, certo orgulho de alguns quando eram mencionados os nomes Nicaca (ou Marianos), Lucas e Delfino (outro sobrenome comum, geralmente ligado aos Nicacas), ressaltando que eram desta ou daquela família. Outra evidência das relações de parentesco vinculadas também à identidade com a terra é o fato de que algumas partes do território são habitadas, predominantemente, por sujeitos diretamente ligados ao que tenho chamado de famílias-tronco, como ilustrado no mapa abaixo. Apesar de todos terem um discurso

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Outra explicação que me foi oferecida para a inexistência de pessoas com o referido sobrenome foi a de que eles, sendo escravos fugidos, preferiam carregar outros nomes, como estratégia de permanecerem no anonimato.

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de que são uma família só, em algumas partes do território da Barra, percebe-se uma concentração de determinados troncos.

Fig 30: Vista da Barra-Nichos (Google Earth)

Fig. 31: Vista da região dos Alexandres

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5.2 Duas versões sobre a vinda dos Lucas e dos Nicacas Ao conversar com diferentes interlocutores acerca da história dos moradores da Barra de Oitis, deparamo-nos com diferentes versões. Uma delas diz respeito, como já apresentado, a existência de um grupo de escravos fugidos que habitou essas terras antes da chegada dos Barros, os Querubins, que com a chegada da família portuguesa se afastaram temporariamente, vindo a se integrar posteriormente aos Lucas e Nicacas. Esta primeira versão é defendida também por representantes da família Barros, “herdeiros”. Isto pôde ser notado, por exemplo, ao conversarmos com Maria Consuelo Barros, que se mostra bastante contrariada com o processo de reconhecimento da Comunidade da Barra de Oitis afirmou: “Eu não entendo, esses negros foram trazidos para cá pra não serem mal tratados, vieram com a minha família, e agora isso?”. No entanto, dona Maria Consuelo nada comenta sobre a presença de outros escravos, os Querubins, sempre mencionados pelos moradores da Barra como os primeiros moradores da Barra de Oitis. Uma segunda versão, proposta por Ana, mas que não goza da aceitação da comunidade é de que os moradores da Vaca Morta e da Barra de Oitis teriam uma origem comum, o Ceará, tendo se dividido em grupos que tomaram rumos diferentes. O que é interessante, como eu digo aos meninos, que quando a pessoa começa a estudar a história da Vaca Morta e a história da Barra. Os negros da Vaca Morta e os negros da Barra... Lá no fim, se for feito um estudo bem feito vai ver que elas se encontraram. Na Vaca Morta, as pessoas da Vaca Morta que a gente escutava na época, a história sempre chega no Ceará. Da Barra, chega também no Ceará também. Eles fugiram do Ceará, uns pra Pernambuco, outros para Cajazeiras. Se você for estudar bem direitinho vai perceber que é como se fosse uma fuga em massa de escravos. Eles fugiram, e saíram se espalhando, uns pra lá, outros pra Cajazeiras, tá entendendo.

A polifonia de narrativas acima apresentadas, discordante em diversos momentos, converge em um ponto específico: antes da chegada dos Barros já havia moradores, os Querubins, e que só saíram das terras que habitavam devido à chegada dos portugueses. Ao narrar isto, os interlocutores constroem argumentos visando legitimar ainda mais o seu direito sobre a terra, assim como o fato de que têm uma relação de ancestralidade com o território por eles habitado.

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5.3 As narrativas da fome A verdade é que, com chuvas regulares, com as águas transbordando das margens dos seus rios e fecundando as suas terras trabalhadas, o sertanejo vive mesmo uma época de abundância e fartura. Época em geral curta, a deste sertão florido e acolhedor (...).O esforço que o sertanejo desenvolve para obter os frutos desta fartura transitória é titânico e como que o absorve inteiramente, não lhe deixando tempo nem energia para cuidar de outros aspectos fundamentais da vida. Esta é uma das hércules, capaz de esgotar as reservas e energias de qualquer povo, este de retirar de um solo semiárido recursos alimentares suficientes e variados para a vida do homem economicamente segregado em tais confins. Se à custa deste constante labor que as quadras chuvosas fornecem, toda e qualquer anomalia que surja no regime razões da estagnação em que permanece o sertão, apesar do espírito empreendedor do sertanejo. Causa da falta do conforto de suas habitações, da rusticidade do vestuário, do atraso mental em que vivem atolados. É que constitui um trabalho de pode o sertanejo manter o equilíbrio da sua economia alimentar à base da produção, das precipitações — um simples retardamento no início das chuvas, sua interrupção antecipada ou sua inopinada ausência — vem a desencadear tremenda crise de alimentos na região (CASTRO, 2011, p. 197, 199).

Uma das máximas do “fazer antropológico” é que as experiências proporcionadas pelo trabalho de campo definem as trajetórias percorridas e os temas abordados na pesquisa. A escolha feita em abrir este tópico citando Josué de Castro se dá exatamente porque o tema que guiou a vida acadêmica do autor se impôs a este laudo. Passar por longos períodos de fome, comer alimentos “brabos 42” e migrar temporariamente para outras regiões do Brasil fazem parte da história de muitos moradores da Barra de Oitis, e todas tem direta relação com as grandes secas enfrentadas e, consequentemente, com a fome. Como demonstra a fala de Luzianita Nicaca: .

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Ahh meu filho... a gente passava muita dificuldade... Aqui o povo sofria... num era brincadeira... nós passavam fome, mas nós nunca passou um dia sem botar comida na boca. Minha mãe era alfaiate... O povo da Mata de Oitis mandava buscar ela... ela passava de quinze dias lá costurando. Eu num parava... quando chegava em casa quinta... e sexta... e sábado... eu ia trabalha pra fazer de comer pra vender... pro povo que vinha de Serra Grande, pra ir pra Itaporanga... pra vender pra trazer dinheiro da feira... eu nunca fui mulher de ficar num canto olhando pros filho não...!

Como são chamados os alimentos retirados do mato, geralmente bastante duros.

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Mesmo diante da seca e da fome percebe-se que os sujeitos e seus grupos familiares construíam formas diferentes de lidar com os longos períodos de seca. Alguns não chegavam a migrar para outras regiões, elaborando outras estratégias. Em muitos casos, a mulher se tornava a provedora da casa, uma vez que com a violência das secas os homens – que em geral só trabalhavam na agricultura – não tinham muito o quê fazer, a não ser tentar obter alimentos “brabos” ou trabalhar nas frentes de emergência. A mendicância também foi mencionada como estratégia de sobrevivência nos tempos da fome. Seu Luizinho explica – em uma conversa acompanhada por Gal – que nesses períodos algumas pessoas chegaram a pedir comida aos fazendeiros, recebendo deles soro, caldo de feijão, nunca uma alimentação minimamente digna e com reais efeitos nutricionais.

Fig. 32: Seu Luizinho (83 anos)

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Gal: Era um trabalho, se divertindo. E a comida que vocês tinham, seu Luiz, satisfazia? Seu Luizinho: Rapaz, tinha que satisfazer. O cara com fome! Se gostasse bem, se não gostasse ia trabalhar com fome. Gal: E qual era a comida? Seu Luizinho: Angu... Gilson: Só com água e sal? Seu Luizinho: Só. Agora quando tinha uma galinha, repartia um ovo pra cinco, seis... Gilson: E a história do soro do queijo? Seu Luizinho: Quando eles faziam aquele negócio (soro), e a gente pedia, tinha deles que dizia: ‘’não, é pro meu cachorro’’. Outros já dizia: ‘’ venha buscar’’. Olhe, e feijao, eu cansei de ver, aqui mesmo no meio dos Barros...eu digo aqui o que eu vi, o que eu sinto. O feijão as vezes ele criava uma chiadeira, não era ? Que dá uma coceira, não dá?! Aquilo alí, quando bota no fogo, aquele gorgulho ficava na tampa. Aí quando era depois eles pegavam com uma concha, passava por cima (tirando os gorgulhos) e ai eles gritavam: ‘’ô fulano, venha buscar o caldo’’. Mas, tinha deles que não dava não, era pra dar aos cachorros. Gilson: O caldo do feijão? Seu Luizinho: Sim. Limpo como se fosse coado. Gilson: Então, eles davam pra vocês, ou dava pros cachorros? Gal: Eram duas opções, eles ou os cachorros... eles faziam uma analogia com os cachorros. Seu Luizinho: É, tinha deles que dava, e tinha deles que não. Eles diziam que era para os cachorros, os para os porcos. A ‘’bondade’’ que eu digo que ainda alcancei, foi essa aí. Mas, homem! A bondade era: se comeu, bem. Se não comeu era, pra dar o serviço, não era pra se ‘’encostar’’ não. Quando se encostava, eu vi muitos que quando se encostava, falavam: ‘’trabalha, macho. Tu ganha meu dinheiro, mas tu deixa o couro macho’’. E montado num cavalo, passeando no meio da roça. Gilson: Quem eram esses? Gal: Os Barros...Eles pisavam muito. Aí seu Luíz, o senhor trabalha quantas horas por dia? Começava que horas? Seu Luizinho: Hoje tá bom, que o povo começa sete horas. A gente acordava às 3h, e com um caçuá embaixo do braço. Começava de 5horas e só parava ás 5 ou 6 horas da tarde. Gal: Tinha descanso, do primeiro pro segundo turno? Seu Luizinho: Qual é o descanso? Gal: Almoçava e voltava pra roça. Seu Luizinho: Comia na roça, homem.

Não foi incomum conversar com mulheres que quando eram jovens ficaram viúvas, tendo de dar conta de seus filhos, em alguns casos cuidando também de seus irmãos mais novos. Assim como exposto no texto de Josué de Castro, só ouvimos falar sobre os períodos de fome ocorridos durante os longos períodos de estiagem. Raras vezes ouviu-se falar sobre as pessoas terem morrido de fome, em geral fala-se de ter passado grandes privações. Os interlocutores apresentam certa resistência em assumirem ter passado fome, geralmente quando o fazem é de maneira a-

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pressada, mudando o foco das conversas para as soluções que buscaram para cuidar de suas famílias. Cícera Elias: Eu cheguei. a passar fome! Uma vez com os meninos tudo criança. Eu nunca passei fome, mas precisão... só Deus mermo, só Deus foi quem me ajudou eles tavam tudo novo. Gilson: Seu marido morreu faz quanto tempo? Cícera Batista: Tá com vinte e cinco anos. Os menino tava tudo novinho. Gilson: – Ecomo foi que a senhora criou? Cícera Batista: Criei comprando fiado, que sou pobre, mas tenho confiança. Nessa época as mulé quando ficava viúva tinha a pensão, mas só que só saia com seis meses. Ainda hoje eu paro pra pensar como foi que eu passei... como foi que eu passei com meus filho... ainda hoje eu paro pra pensar... Agora sofrer nós sofremo muito, porque a famia tudo pobre num podia ajudar, num podia pagar um dia de serviço... Meus filho foro pra roça quando completava cinco ano tinha que trabalhar... só que nunca tirei eles da escola, eles trabalhava de manhã até meio-dia e ia pra escola...Mas assim nós nunca faltou... faltou o tempero por que nós num podia comprar. Eu quero contar mermo ninguém daqui quer ouvir, mas foi Deus que me ajudou, eu agradeço muito a Deus... Só Deus mesmo meu fio que hoje eu não converso com ninguém, só Deus... só Deus... Político? Eu num gosto de politico! Num vem nem na minha casa, dou meu voto mermo sem dinheiro sem me dá nada... Mas eu voto neles... Meu voto é livre. Posso passar toda a precisão... Peço a Deus pra num passar lá na porta deles... eu prefiro pedir a outra pessoa.

Fig. 33: Cícera Elias (67 anos)

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As narrativas acerca dos períodos de fome expõem percepções diferentes entre as diversas gerações. Percebe-se isso ao conversar com dona Expedita Roque, seu Sátiro e as filhas.

Expedita Roque: Sofremo muito... ói teve um dia que eu desmaiei de fome nos braços de mãe... por que os menino tinha ido trabalhar me Piancó e num tinha chegado ainda com o mantimento né... aí faltou alimento em casa, e eu pequena num aguentei... pois é...

Gilson: Na época de fome o seu Roseno dizia que comia isso aqui (mostrando uma semente de mucunã que usava em um colar).

Sátiro Delfino:Isso aí... a gente comia pão de mucunã! Pão de mucunã eu comi!! No tempo de seca meu pai saia cinco da manhã... chegava cinco, seis horas da noite... minha pegava e fazia fubá... nós comia um pouquinho depois botava de molho pra comer no outro dia.

Gilson: Os tios da senhora quando saiam pra Piancó, pra trazer comida, eles passavam quanto tempo fora?

Sátiro Delfino: passava quinze dias e vinha... a gente também fazia passar quinze dia economizando pra num faltar... mas nessa vez que ela desmaiou foi a primeira vez que eles saiu... tinha vez que a madrinha dela mandava farinha, mandou carne...

Gilson: E quem era a madrinha dela? Expedita Roque: Mariinha Barros (Maria Barros). Gilson: Era irmão de quem ela? Expedita Roque: João Antônio Barros... ói nenhum dos meus filho passou o que eu passei!

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Fig. 34: Sátiro Delfino, Expedita Roque e uma de suas filhas

Jos é Roque da Silv a

Sátiro Delf ino d de Lima

Ex pedita Roque da Silv a

Camila A line da Conc eiç ão

A rs ênio Roque

Pedro Roque

Fig. 35: Árvore genealógica Sátiro-Expedita

A fome é sempre apontada como a maior dificuldade enfrentada. Algumas interlocutoras chegaram a apontar a necessidade do matrimônio como uma estratégia para escapar da fome.

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Isto pode ser percebido, por exemplo, na fala de Maria Preá, que também vai expor a relação sazonal que as secas impõem aos sertanejos com a terra onde “nasceram e se criaram 43” Maria Preá: A maior dificuldade foi a fome. Por causa da seca, né?! E quando

não aparecia nada, era pra sofrer. E como é que sobrevivia? Por um milagre de Deus. Tinha dia que aparecia meio quilo de arroz, nós fazia aquilo. No outro dia quando não aparecia. A gente comia carne de xerém de milho, era angú só com água, as vezes nem sal não tinha, era um bejú seco, era um punhado de fubá feito de milho seco. Agora quando eu saí da Paraíba, que entrei no Maranhão, acabou-se o tempo ruim. Esse negócio de fome não tinha não. Aí depois que eu fui pro Pará, aí foi que foi bom. Mas olhe, falar a verdade é preciso. Eu passei 18 anos dentro do Pará e não me acostumei. Enquanto eu não vim embora, eu não sosseguei. Quando eu cheguei aqui tava seco. Aí o homem chegou aqui e me deixou, voltou pra trás da vender a casa, e uma terra que nós deixamos lá. Até hoje esse homem tá lá. Nem ligar pra nós ele liga. Eu sei noiticia pelos os outros. Que diz que ele tá rico, comprou uma fazenda com as porteiras fechada, o senhor entende? A porteira fechada é quando compra a fazenda com tudo dentro. E dizem que ele tá transportando leite pra Cajazeiras. Mas nem pra pegar num celular pra ligar pra mim, ele não liga. Aí foi que o tempo foi ruim pra mim. Só não pedi esmola, porque não tinha um saco. Mas só Deus sabe! Meu serviço aqui, sabe o que era? Era botar um meio de água por dez reais, pra comprar material da escola, fazer feira e comprar roupa pra ela. Dez reais...eu passava uma semana na casa do meu cunhado alí, pra ganhar um quilo de arroz. Que lá onde ela (a filha) nasceu, onde ela quase se criou, ninguém sabe o que comer de milho não. Tem casa que nem as galinhas come milho. (Ela nasceu) lá no Pará. Nesse tempo eu sofri, menino. Eu sofri que não foi brincadeira. Mas eu venci, venci em nome de Jesus.

Deuziléia, filha de Maria Preá, que participava da conversa, junto com sua mãe e seu marido acrescenta: Deuziléia: Eu sinto assim, porque eu só não cheguei a passar o que ela passou quando era solteira, quando ela era moça ainda que ela vivia aqui. Mas eu acho que passei pelo o mesmo sofrimento, porque quando eu cheguei aqui, eu fui trabalhar quando eu completei 12 anos. Eu trabalhava numa casa dois, três meses pra receber 15 reais, pra poder comprar meus cadernos. Por que eu estudava em Diamante. Comida, nós morava numa casa que quando nós arrumava o que comer, era a panela no fogo e nós do lado de fora, porque não podia tá dentro de casa com as telhas caindo. Dormia por as casas. Eu não ia numa missa porque não tinha um chinelo, não ia numa festa porque não tinha um chinelo, não tinha uma roupa. Se eu vestisse uma calcinha era as usadas que o povo dava usada. Aí mãe botava dois, três dias de molho no sabão pra poder vestir. Se ela sofreu quando era jovem, eu só não sofri do mesmo jeito porque ela trabalhava, e eu nunca trabalhei de roça quando era pequena. Hoje eu vivo doente, mas eu posso dizer que eu tenho outra vida. Não tenho mais a que eu tive .

43

Expressão bastante comum entre os moradores da Barra de Oitis, especialmente quando defendem sua relação com a região. Isto será melhor aprofundado mais a frente.

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Maria Preá: É. Era o dia todinho na roça, ela também ganhava dinheiro. Cantando algodão com nós. Aí quando acabou o algodão, nós foi quebrar milho.

Os saques, também conhecidos como “quebradeiras”, são eventos que compõem as narrativas de diversos interlocutores da Barra. Momentos em que a população da Barra se organizava em períodos de muita seca e fome, para ir à sede do município e pegar alimentos. Alguns contam isso com orgulho, principalmente os homens, como demonstrando sua impetuosidade, outros afirmam saber da existência, mas que não se envolveram por achar errado – como é o caso de seu Sátiro. Há também os que, mesmo negando a participação, apresentam uma percepção relativa diante das situações enfrentadas. Cícera Batista: Era assim, ajunta um grupinho de gente aqui da Barra aí ia pra

Diamante, quando chegava lá... naquela época não tinha mercado... era mercearia, aí eles quebrava e carregava mermo... isso aí aconteceu muito, só que eu nunca fui não! Eu tive corage de fazer isso não. Gilson: Mas e seu Marido era vivo nesta época? Cícera Batista: Era vivo mas ele nunca foi não! Eu nuca fui,, mas se eu fosse eu dizia... Gilson: E a senhora achava errado? Cícera Batista: Achava nada! E agente ia morrer de fome?! Depois que o governo liberou mais com essa bolsa família... é pouquinho, mas todo mundo é conformado com esse pouquinho! Quem foi quebrar mais? Gilson: A senhora lembra a ultima que teve? Cícera Batista: Noventa e oito pra traz isso aí acontecia, mas até dois mil aconteceu! Ta com doze ano, mas nós quebrava mesmo é interessante...

Bugari, que participou ativamente das “quebradeiras”, explica como eram organizadas, expondo uma periodicidade que coincidia com os períodos de seca. É interessante também notar que no relato de todos os interlocutores é dito que a partir da implantação de benefícios do Governo Federal, como o Bolsa Família, os saques cessaram. Bugari: Os saques foi em 66, 70, 76, 98 e 99. Gilson: Então, foi só 13 anos do último saque? E como é que se organizava isso, Buga?

Bugari:O quê? Gilson: O saque. Porque se organizava...eu imagino que não podia chegar as-

sim, né?! Bugari: Os saques começaram assim: o primeiro dia na casa do prefeito, lá quando ele dizia que não tinha, aí eles sabiam onde eram os armazém da merenda escolar, aí ia e quebrava tudo ... Bugari: É...trazia coisa do governo. Onde tinha armazém eles quebravam. Gilson: E era coisa do governo, só?

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Bugari: Era. Maura: Era só público mesmo. Gilson: E uma vez, não sei quem foi que contou, que tinha um vereador, acho que foi no último saque. Que chegou a disponibilizar o carro, não foi?

Bugari: Foi... Gilson: Como é que foi isso? Ele avisou? Porque eu soube que o próprio carro

dele ajudou nisso. Bugari: Foi. Foi pra trazer o alimento. Gilson: Então, o vereador ajudou com o saque, então? Bugari:Foi... Gilson:E isso foi em que ano? Bugari: 98. Gilson:E assim, quando vocês olham pra trás, vocês acham que foi errado fazer isso? Bugari: Não acho não, que o povo tava com fome.

Fig. 36: Bulgari As “quebradeiras”, em alguma medida uniram diferentes gerações, sendo, por exemplo, uma experiência comum à Gal e João Batista e para seu Roseno e Bugari. Gal explica, Gal: Os saques foram até 98. Eu lembro que eu já tava estudando em Diamante, e aí a gente já conhecia mais a escola e falou onde era para o povo ir pegar. Gilson: E seu Roseno, quando o senhor era mais novo, o senhor participou alguma vez? Roseno: Fui. Tinha que ir...

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Fig. 37: Seu Roseno (87 anos) e Gal (26 anos)

Os saques aparecem tanto como uma estratégia de sobrevivência desenvolvida pelos moradores da Barra, quanto como uma reação destes a uma ação seletiva do Estado. Como afirma Scott (2009), o descaso planejado estatal, que prioriza, aqueles que elege como dignos de cuidados e de “benefícios”, em detrimento de outros. As “quebradeiras” continuaram existindo enquanto o Governo Federal não se voltou para atender as demandas mínimas dos moradores da Barra, com o direito a alimentação – um dos direitos fundamentais ao exercício da cidadania. É bastante significativo perceber que com a extensão dos programas assistenciais as “quebradeiras” cessaram.

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5.4 “Hoje nós estamos no céu” A expressão-título deste tópico, ouvida diversas vezes ao longo do trabalho de campo, aponta para uma constante comparação realizada pelos interlocutores entre os períodos em que passaram fome, não apenas em decorrência das secas, mas da falta de programas sociais permanentes. Os relatos, em geral, coincidem com a implantação de programas como o BolsaEscola (governo FHC) e o Bolsa Família, implantado no Governo Lula, que permanece até hoje. Dona Maura, esposa de Bugari, enquanto serve um jantar farto, começa a explicar o quanto é grata a Deus e aos últimos governos federais, porque hoje pode oferecer uma comida boa para qualquer pessoa que fique hospedada em sua casa, o que não seria possível antes. “Os meninos eram menores, a gente não morava nessa casa não. A gente morava numa casa de barro, mais afastada do centro 44. Eu limpava a terra alheia e recebia como pagamento banana verde. Levava pra casa, cozinhava, era assim que alimentei os meninos”. A mesma história foi contada por João Batista, um de seus filhos, enquanto me conduzia na garupa de sua moto. “É, Gilson, a gente já passou muita dificuldade nessa vida”. A relação estabelecida com a alimentação está longe de se reduzir à satisfação fisiológica, tendo em vista que os diferentes grupos humanos formam-se a partir de relações simbólicas com tudo que os rodeia e entrecruza. Dessa forma, desde o oferecer comida, à variedade dos alimentos e frequência com que se come, por exemplo, são símbolos de status. A relação que o sertanejo tem com a alimentação é bastante significativa, além de passar pelas necessidades básicas para a sua sobrevivência, também é símbolo de status, tendo em vista que mesmo que as atividades agrícolas não sejam mais vistas com a mesma frequência que em outros períodos, a relação com os alimentos, como a mesa farta, continua sendo característica marcante desses grupos. Seu Bugari explica que não viveu os tempos mais difíceis, apesar de ter passado fome em períodos de seca. Sua afirmação tem como referencial a história que seus pais contavam: “Meu pai dizia que nas casas não tinha nem mais assento. Tudo era feito de couro de boi, de bode. Ai quando não tinha mais o que comer, eles pegavam o couro seco, misturavam com farinha, faziam alguma coisa lá, e comiam”.

44

É a maneira como os moradores da Barra se referem a parte do território por eles ocupada onde se localizam a maior parte das casas, assim como os poucos pontos comerciais.

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5.5 A atualidade da Barra de Oitis Os dados estatísticos aqui apresentados foram construídos a partir de análises etnográficas – metodologia principal, como já se destacou – mas também a partir de levantamentos quantitativos. A equipe de pesquisadores percorreu todas as casas da Barra em busca de saber quantas pessoas moravam em cada uma delas; outra forma através da qual buscamos reunir estes dados foi a partir dos cadastros familiares 45 preenchidos pelos moradores da Barra. No entanto, é importante salientar que o uso destes dados nem de longe contempla a complexidade das relações da Barra. Portanto, estes dados evidenciam apenas o contorno das configurações, mas como destaca o sociólogo Norbert Elias (2000) as estatísticas não dão conta do papel exato das configurações sociais. Acrescenta-se a isto o fato de que tanto o levantamento populacional realizado pela equipe, como os referidos cadastros, não são tomados aqui por fidedignos, tendo em vista que se apresentam consideravelmente frágeis do ponto de vista quantitativo, mas apontam questões que fizeram parte da análise etnográfica.

45

Estes são os cadastros oficiais do INCRA, no qual constam diversas informações acerca da situação das famílias autoreconhecidas como quilombolas. Esta não era uma atribuição da equipe de pesquisadores contratada, mas dos antropólogos do INCRA, no entanto decidimos realizar tal tarefa tanto por compreender a urgência disto para as famílias da comunidade, como também para que pudéssemos acessar mais rapidamente estes dados.

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a) Trabalho e renda

Renda Familiar 50,00 a 300,00 reais

301,00 a 500,00 reais

Acima de 500,00 reais

24%

8% 68%

TOTAL= 98 FAMILIAS

Fig. 38: Renda familiar

O gráfico acima nos permite observar, ainda que panoramicamente, a situação em que se encontra a população da Barra de Oitis no que diz respeito a distribuição de renda, possibilitando uma reflexão acerca do acesso ao trabalho. Os efeitos das relações de dominação se perpetuam, possibilitando um cenário de desemprego crônico, compartilhado pela maior parte da população. O que, a partir das entrevistas e da observação participante, pode ter aqui alguns dos seus motivos apontados. Primeiro, faz-se necessário observar – como já apontado – o caráter histórico da desigualdade, que se naturaliza nas práticas cotidianas dos sujeitos, surgindo com uma aparência de falta de força de vontade, aptidão, dentre outras questões, que podem ser observadas enquanto naturalização de uma meritocracia que aponta os sujeitos como únicos responsáveis por seus fracassos ou sucessos ,ignorando os contextos, as configurações sociais nas quais eles estão inseridos. Dessa forma, é importante compreender como as populações negras rurais – como fica evidente quando observamos as falas dos interlocutores ao longo desse trabalho – enfrentam os efeitos de preconceitos raciais, os quais certamente têm efeitos – pré-reflexivos – na inserção no

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mercado de trabalho. O estigma que carregam por serem “os negos da Barra” reverbera inclusive nas oportunidades que têm, ou deixam de ter, no que diz respeito ao trabalho 46. Outra questão que fica evidenciada em todas as entrevistas com moradores da Barra de Oitis, aqui transcritas, é a íntima e intensa relação com a agricultura. Não foi incomum encontrar pequenas plantações junto a algumas casas, em geral perdidas com os efeitos da seca. Tanto homens quanto mulheres apresentam envolvimento com o trabalho agrícola. No entanto, se nos relatos não se percebe uma divisão rigída de gênero quanto ao “trabalho na enxada” – como costumam falar -, a segregação de gênero é percebida quando observamos o ambiente doméstico. Cabe exclusivamente às mulheres os afazeres domésticos como cozinhar, lavar e passar roupas, arrumar as casas, etc. Como ainda não há água encanada na comunidde, a única “obrigação” masculina com o ambiente doméstico é encher os tonéis de água, principalmente quando não há água nas cisternas para captação de água da chuva. No entanto, como é comum – como será evidenciado no próximo tópico – que muitos homens fiquem meses trabalhando no corte de cana em lugares distantes (ou outras atividades que os deixem periodicamente longe de casa por meses), essa tarefa também cabe às mulheres. Dessa forma, é comum ver muitas mulheres carregando latas d’água na cabeça ou mesmo levando duas penduradas, prática mais masculina, ensinada aos filhos, enquanto que as filhas aprendem a equilibriar as latas na cabeça desde pequenas.

46

Faço essa interpretação a partir das falas dos próprios interlocutores acerca dos preconceitos históricos e cotidianos enfrentados pelos moradores da Barra de Oitis.

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Fig.39: Lata d’água na cabeça

Fig. 40: Trabalhando na terra

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Fig. 41: Terreno de Cícera Elias sob os efeitos da seca perdida

Fig. 42: Trazendo água do açude

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Se a maior parte da população se identifica enquanto agricultores e agricultoras, poucos são os que trabalham na terra, e menos ainda os que produzem para si – desejo generalizado dos moradores, que vêm na regulamentação das terras essa possibilidade. Na foto acima, vemos Pedro, genro de dona Maria – rezadeira – e marido de Edileuza, carregando água para sua casa – entre os Alexandres – com parte da roupa que costuma usar para “arrancar toco” na plantação de um dos proprietários tradicionais da região. Quando está plantando nessas terras – a exemplo do que ocorre com todos os demais que também plantam – trabalha em sistema de “terça”: após preparar toda a terra, plantar e colher, deve entregar ao suposto proprietário das terras uma terça parte do que foi colhido. O que pode mudar de acordo com as exigências do proprietário. O desejo de não estar mais subjugado a estes mandos aparece ilustrado na fala abaixo. É que nem eu digo, se já tinha dono de terra aqui na Barra, agora é que vai ter. Mas eu pra mim que terra, Deus não vendeu terra pra ninguém. Ele deixou a terra pra todo mundo fazer o que comer em cima da terra (Pedro, genro de Maria Preá) 47.

Outro motivo para que grande parcela da população não trabalhe na terra é o fato de muitos não poderem trabalhar na região, mesmo em prol de sua subsistência, por conviverem cotidianamente com ameaças de verem suas plantações derrubadas, assim como suas casas, como será exposto mais a frente. Dessa forma as opções para o trabalho se tornam poucas. Algumas pessoas trabalham em Itaporanga, onde existem fábricas de tecidos, mas a maioria dos moradores da Barra parece não se encaixar no perfil de escolaridade exigido. Além disso, se torna difícil competirem com moradores de Itaporanga, que significam menos gastos para os donos das fábricas.

47

Esta fala será reproduzida novamente quando abordarmos as questões concernentes ao conflitos fundiários.

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Fig. 43: Terreno de Cícera Elias antes da seca

Algumas mulheres trabalham como empregadas domésticas tanto em Diamante quanto em Itaporanga, mas a maioria das que residem na Barra desenvolvem suas atividades em casa ou na lavoura, quando podem. Além das tarefas domésticas já elencadas, é também tarefa delas cuidar dos animais – em geral, porcos, bodes e galinhas – que compõem as pequenas criações domésticas.

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Fig. 44: Exemplo de porco criado solto pela comunidade

Fig.45: Conduzindo o gado

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Outras atividades são desenvolvidas dentro da comunidade, em geral vinculadas ao comércio. Existem três bares, duas pequenas “vendinhas” (onde são fornecidos produtos como carne, cereais, biscoitos e refrigerantes), uma pequena oficina mecânica e um pequeno salão onde se joga sinuca. Há também um fluxo, entre as mulheres, de serviços mútuos prestados em troca de pequenos pagamentos: lavar louças e/ou roupas, arrumar a casa, ou cozinhar, esporadicamente. Há ainda algumas que são vendoras itinerantes de produtos cosméticos. No entanto, se no gráfico com o qual abrimos este subtópico apresentamos ilustrativamente a questão da renda, abaixo chamamos a atenção para o percentual – dentre as famílias cadastradas pelo INCRA – que recebem algum benefício do Governo Federal.

Famílias que recebem benefício do Governo Federal Previdência

Bolsa Família

Outro, qual?

0% 19%

81%

Total de famílias: 96 Fig. 46: Famílias que recebem benefícios

De acordo com o levantamento feito a partir das famílias da Barra de Oitis cadastradas no INCRA, mais de 80% delas depende do Bolsa-Família fazendo parte da parcela da população considerada vivendo abaixo da linha da pobreza. Este dado aponta para a situação em que essa população se encontra, seja no que diz respeito à, já discutida, questão da empregabilidade atual, como aos efeitos históricos, culturalmente naturalizados, que proporcionaram tal cenário. Em geral são as mulheres que recebem o benefício, cabendo aos homens, poucos, os trabalhos já relatados, ou, como abordaremos agora, o trabalho sazonal no corte de cana ou colheita de laranja, principalmente no sudeste do país.

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b)

“Daqui a pouco o pessoal vai tá saindo da faculdade e indo pro corte”

O trabalho no corte da cana-de-açúcar parece ser algo comum a diferentes gerações. A frase que serve de título a esta subseção foi ouvida em uma conversa com Gal, ainda em março do presente ano, quando ela explicou após uma festa que algumas pessoas que estavam lá estavam de viagem marcada para São Paulo, onde trabalhariam no corte de cana, ou apenas “no corte”, como é comum de se ouvir. Ser hospedado na casa de Maura e Bugari possibilitou que acompanhasse alguns dramas vivenciados pelas famílias dos que estão cortando cana. Evidentemente, tal possibilidade nos serve de ilustração, mas não dá conta de toda a diversidade contida no cenário. Neste caso, um dos filhos, Rafael (22 anos), todos os anos, geralmente entre março e novembro, como tantos outros jovens da Barra de Oitis, vai para o corte. Quase que diariamente ele falava com sua família, principalmente com a mãe. Maura se demonstrava ao mesmo tempo orgulhosa, ressaltando o bom caráter do seu filho e, principalmente, o fato dele ser “muito trabalhador”, mas também preocupada com as situações a que o filho era exposto no trabalho: cobras, algumas peçonhentas, a exigência do trabalho, especialmente o constante perigo de se ferir no manuseio dos facões ou ao lidar com as forrageiras, máquinas que auxiliam no corte, dentre outros perigos. Foi bastante comum notar a falta de dedos, principalmente entre os homens, que foram perdidos durante o corte de cana ou de outros trabalhos agrícolas. Dentre as cento e uma residências que visitamos perguntando quantas pessoas residiam, quarenta delas tinham pelo menos um dos seus habitantes trabalhando no corte, o que equivale a quase 40% do total. Além de revelar uma das possibilidades de trabalho tradicionalmente desempenhadas pelos homens 48, este dado também indica a relação sazonal que muitos moradores da Barra estabelecem com o local. Todas as vezes que perguntávamos quantas pessoas moravam na casa, primeiramente falavam o número das pessoas residentes no momento, mas em seguida acrescentavam o número daqueles que estavam no corte. Se para os mais antigos o corte de cana era uma alternativa ao período de estiagens mais violentas, visto como uma maneira de fugir da fome, ele é resignificado no contexto atual. Tendo em vista que no município de Diamante há uma situação de desemprego, são poucas as possibi48

Apesar de termos conhecido mulheres que já trabalharam no corte, esta parece ser na atualidade uma atribuição masculina.

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lidades de trabalho que não tiram as pessoas do município. Muitos vão morar em Itaporanga, onde podem trabalhar nas diversas fábricas de tecelagem, principal atividade econômica da cidade, outros conseguem algum trabalho com políticos locais, conforme comentado anteriormente. No entanto, alguns fatores sugerem o porquê do corte de cana ser uma atividade ainda tão procurada: as poucas possibilidades de emprego, o relativo baixo grau de instrução formal dos moradores da Barra, somado ao desejo e/ou necessidade de adquirir certos bens de consumo, fazem da atividade canavieira um trabalho rentável – tornando-a importante para o sustento da família –, principalmente para os homens casados (de quem, nesse contexto, ainda se espera que sejam os provedores).

Grau de instrução formal Ensino Médio 18% Ens. Fundamental do 5° ao 8° ano 17%

Ens. Fundamental do 1° ao 4° ano 65%

TOTAL= 128 pessoas

49

Fig. 47: grau de instrução O Projeto Brasil Quilombola (PBQ) reconhece que houve consideráveis avanços na qualidade de vida das comunidades, o qual surge a partir do reconhecimento dos direitos das comunidades tradicionais negras, em sua maioria apontando para a urgente melhoria dos índices de desenvolvimento humanos dessas populações. Uma das principais metas do PBQ é a melhoria da educação nestas regiões, para as quais o Governo Federal, a partir do Fundo Nacional para o

49

Como já explicitado, os gráficos representam uma pequena amostragem da realidade da Barra, no entanto, no que diz respeito ao grau de instrução não parece ser muito diferente do aqui exposto.

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Desenvolvimento da Educação (FNDE) e do Ministério Educação e Educação (MEC), vem destinando verbas específicas. O fortalecimento do ensino e aprendizagem de crianças, jovens e adultos quilombolas é a principal meta de educação. Serão distribuídos 280 mil exemplares de materiais didáticos com conteúdos relacionados à história e à cultura africana e afro-brasileira, como determina a Lei nº 10.639/ 2003. Ainda como estratégia de implementação deste instrumento legal, haverá a capacitação de 5.400 professores da rede pública de ensino fundamental. A melhoria das instalações escolares é outra meta da Agenda Social Quilombola para a educação. Serão construídas, a partir da elaboração de propostas de convênios com governos municipais e estaduais, cerca de 950 salas de aula para suprir a demanda dos estudantes quilombolas (BRASIL, 2003, p. 6, grifo nosso). Em coerência com o trecho acima destacado fomos informados, ao conversar com profissionais da educação municipal de Diamante e com o coordenador da Diretoria Regional de Educação (DIRED), em Itaporanga, que haviam tomado conhecimento da existência de verba para construção de mais uma escola na Barra, ou pelo menos que a estrutura da escola atual fosse ampliada. Para isso, seria necessário que fosse cedido um terreno para a construção, no entanto, até o fim de 2012 – quando encerramos as incursões ao campo - não foi possível, pois não havia quem doasse as terras. De acordo com o citado coordenador, se isto acontecesse no ano atual, 2012, em no máximo cinco anos a escola estaria em funcionamento. Ele também reconhece as dificuldades impostas aos membros da comunidade para o ingresso no ensino médio, o deslocamento até Diamante ou Itaporanga e os preconceitos que têm de enfrentar por serem “os negos da Barra”. Além disso, o interlocutor explicou que a situação da escola na Barra era bastante delicada e quanto mais rápido o município pudesse providenciar o terreno para a construção de uma nova, melhor, tendo em vista que a situação anterior – quando havia uma sala ocupada pelo município, também de ensino fundamental – era, segundo ele, inaceitável. O coordenador elencou diversos problemas, com destaque para o alto número de salas multisseriadas, isto é, com alunos de diferentes séries letivas assistindo aulas juntos. Isto se agravava ainda mais pelo fato da comunidade atender – como acontece com o posto de saúde – a outros diversos povoados – e que não consegue atender a demandas dos alunos, muito menos teria a possibilidade de atender a um público de ensino médio, o qual tem de ir para Diamante

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ou Itaporanga, uma parte em micro-ônibus – algo bastante recente – e outra na carroceria de pequenos caminhões cobertos – paus-de-arara - na caçamba de caminhonetes.

Fig. 48. Micro-ônibus escolar

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Fig. 49: Pick-up para transporte escolar

Em oposição ao que foi dito pelo coordenador, a diretora da Escola Estadual José Antônio Barros, Maria Consuelo Barros – uma das “herdeiras” das terras – afirmou com veemência que não era necessária a construção de novas salas, muito menos de uma nova escola, pois a estrutura atual oferecia plenas condições de atender ao alunado. Segundo ela, a escola contava com nove salas disponíveis, que poderiam ter seu uso otimizado, principalmente se o turno da noite fosse utilizado.

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Fig. 50: Escola (1)

Fig. 51: Escola (2)

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Fig. 52. Ensino Fundamental I

Fig. 53. Creche

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O posicionamento de dona Consuelo deve ser compreendido também a partir da ótica de que ela é tradicionalmente apontada como uma das pessoas que poderiam ter cedido terras para a construção da escola, mas não o teria feito por pelo menos dois motivos, além do já apontado antes: apesar de constar como proprietária ela não pôde oferecer documentos comprobatórios disto, o que tornava a doação do terreno inviável; e porque não vê com bons olhos o processo de regularização fundiária das terras da Barra e seu reconhecimento enquanto território quilombola. A primeira questão faz coro com o documento – em anexo – que nos foi apresentado pelo Cartório responsável pelas questões fundiárias, em Itaporanga. Nele, consta apenas o nome de José Mangueira Barros, marido de Consuelo, como possuindo escritura pública de terras na Barra, enquanto o dela consta apenas como detentora de escritura particular 50. Outro fator que explica a não permanência de muitos moradores da Barra nas escolas, é que com o trabalho no corte muitos conseguem comprar suas motos, “as substitutas dos burros”, principal meio de transporte do município e um dos mais evidentes marcadores de distinção entre os moradores da Barra. Neste sentido, cabe lembrar que o consumo, como afirmam Mary Douglas e Baron Isherwood (2004), visto a partir de uma perspectiva não estereotipada e demonizada, possibilita diferentes formas de visibilidade, abre círculos de informação para uns, em detrimento de outros. No caso específico da Barra, quem possui motocicletas, além de gozar de certa autonomia em termos de sua locomoção, ascende em status no contexto local. Facilmente se ouve de planos para comprar motos ou trocá-las por mais novas, mais potentes. Em conversas informais com alguns interlocutores, alguns dos quais já tinham ido pro corte, outra questão surgiu: muitos não trabalhavam todos os anos nos canaviais não apenas pelos fatores elencados, mas por terem se envolvido com drogas ilícitas, e como o tráfico de drogas não parece ser algo forte no município, eles findam não podendo manter o vício, precisando voltar aos grandes centros, como São Paulo, onde a maioria “vai pro corte”. Retomando a questão do uso de motocicletas enquanto veículos que substituíram os burros, é interessante ver como isso é presente no cotidiano da Barra. As motos cruzam as ruas, levantam muita poeira, são pilotadas por mulheres e homens das idades mais variadas. O limite de

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Estas questões serão retomadas quando abordarmos mais propriamente as tensões entre “herdeiros” e “quilombolas”.

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idade instituído pela lei para que se pilote, assim como a exigência da habilitação, não parecem valer muito no povoado.

Fig. 54. Adolescente em moto

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Fig. 55: Motos Durante as festas ocorridas na comunidade, em povoados circunvizinhos ou na sede do município, fica mais evidente os desfiles das motos, de todos os tamanhos, marcas e potências. Quando esses eventos se encerram é comum se ouvir os motores roncando alto, principalmente de motocicletas pilotadas por homens. Parece haver certa afirmação da virilidade vinculada a altura do motor, assim como à velocidade com que se pilota pelas estradas de barro, o que demonstra maior ou menor destreza, já que as estradas geralmente são bastante acidentadas e sem qualquer iluminação a noite.

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c)

“Agora todo mundo quer ser negro”

Fig. 56: Reunião da Associação – 23/07/2012 A cada incursão a campo, foram realizadas reuniões com os moradores da Barra de Oitis, convocadas pela diretoria da Associação, mas que apontavam para uma exigência consensual na comunidade. Sabendo disso, resolvemos que ao término da reunião ocorrida no final de julho de 2012, pediríamos que as pessoas que ainda não tivessem realizado os cadastros do INCRA, de família quilombola 51, o fizessem. No final das contas, respeitando o fato de que o cadastro já era feito pela associação, tanto os membros da equipe de pesquisadores, quanto outras pessoas que participaram da reunião, com Francimar, ficaram responsáveis por efetuar o preenchimento dos cadastros mediante as respostas dos nossos interlocutores. Tal situação nos proporcionou observar algumas questões bastante importantes, uma delas, chave para este laudo, se deu quando as pessoas eram perguntadas sobre sua cor. Muitas pessoas paravam por alguns instantes, olhavam para sua pele, olhavam para alguém que as acompanhavam, quando era o caso, e, por vezes, perguntavam : “Oxi, qual é a minha cor?”, ao que lhe era respondido que era ela mesma que tinha que dizer, e se mostrava as opções do cadastro. Após isso a maioria dizia que era “nêgo”, “nego preto”, como mostra o gráfico abaixo.

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Ver anexos.

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N° de Pessoas/Percentual Outro. Qual? (Moreno) 30%

Preto 54%

Amarelo 1% Branco 2%

Pardo 13%

TOTAL= 123

Fig. 57: Cor de pele declarada No entanto, podemos observar a partir do gráfico acima, somado ao trabalho etnográfico, é que essas categorias, ainda que juridicamente legitimadas, são interpretadas de formas distintas por diferentes sujeitos. Outras pessoas apenas respondiam: “Eu sou preto, pretinho, pretinho”, e não poucas vezes pode-se ouvir alguém dizer: “É, agora todo mundo quer ser preto”. Tal frase merece a nossa atenção. Bourdieu (2004) ao pensar sobre os diferentes usos do “povo”, isto é, acerca da positivação dos estigmas como forma de resistência, vai provocar:

Quando a busca dominada de distinção leva os dominados a afirmarem o que os distingue, isto é, aquilo que mesmo em nome do que eles são dominados e constituídos como vulgares, deve-se falar em resistência? Em outros termos, se para resistir, não tenho outro recurso a não ser reivindicar aquilo em nome do qual sou dominado, isso é resistência? Segunda questão: quando, ao contrário, os dominados se esforçam por perder aquilo que os marca como “vulgares” e por isso se apropriar daquilo em relação a que eles aparecem como vulgares (por exemplo, na França, o sotaque parisiense), isso é submissão? (...) A resistência pode ser alienante e a submissão pode ser libertadora (BOURDIEU, 2004, p. 186-187).

Não se pretende oferecer respostas definitivas – não havendo espaço para isso, nem crença em suas existências – no entanto, podem-se trazer os questionamentos do autor – tão distante do cenário aqui apresentado – para a realidade da Barra de Oitis e, consequentemente, das co-

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munidades negras rurais. Como já apontado, as identidades subjetivas e coletivas são construídas a partir da relação com outros grupos, nisto se baseia a noção de fricção interétinica. Dessa forma, compreende-se que “ser negro” na realidade aqui apresentada, recortada, foi tradicional e culturalmente legitimado enquanto estigma. Ao contrário do sotaque, que pode ser modificado, a cor da pele usualmente não goza da mesma possibilidade, o que numa relação de estabelecidos e outsiders, onde estes últimos são os pretos prefere-se não ser identificado desta maneira.

Fig.58: Reunião da Associação: 08/04/2012

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Fig 59. Reunião 24/07/2012

Nesse sentido, foram diversos os interlocutores que demonstraram seu conhecimento acerca do rebaixamento social a que os moradores da Barra de Oitis são submetidos. Sobre isso, Dona Cícera Elias, moradora da Barra desde que se casou (há 23 anos) explica:

Aqui a gente é muito discriminado. Por que podem aprontar o que for, mas jogam a culpa em nois... só joga nos nego da Barra. Todo mundo pode aprontar, mas se tiver um da Barra só joga nos nego da Barra. Somo discriminado! Isso aí nós somo. E assim... aqui tá melhor, agora mas aqui foi lugar mais pobre que já. Agora de uns dez ano pra cá é que tá melhorando todo mundo tem televisão. Mas aqui foi o lugar mais pobre de passar muita fome... muita fome aqui!

Uma de suas sobrinhas, filha de seu Antônio Elias, afirmou que “Tudo que num presta tá dentro da Barra... o povo diz: Óia lá vai os nego da Barra! até hoje! O povo diz: Óia os acanalhado da Barra vem chegando”. Deuziléia, filha de dona Maria – uma das rezadeiras da comunidade – fala, demonstrando-se revoltada, dos tipos de preconceito a que são submetidos os moradores da Barra de Oitis:

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Até hoje. Se tiver uma festa em Diamante e matarem um, o povo fala: foram os negros da Barra. Se vai um carro cheio de gente, fala: ‘’olhe a mundiça da Barra’’. Eu, grávida do meu menino, fui fazer o pré-natal, senti foi vergonha. Na entrada da rua, iam umas três mulheres tudo grávidas, os homens olharam e falam: ‘’Eita, lá vem um bocado de puta da Barra!’’ Isso não é preconceito? Isso é preconceito. Aí eu virei e disse: ‘’ meu filho, na Barra não só tem puta não’’. A gente saía a pé pra fazer o pré-natal em Diamante. Eu fui até com oito meses, porque não aguentei mais ir a pé pra Diamante.

Para Maura, esposa de Bugari, “nascida e crescida na Barra”, como é comum se dizer por lá, o preconceito ainda presente no cotidiano dos moradores da comunidade se dá por diversos fatores que se relacionam entre si. Ela afirma:

Eu acho que vem por causa da cor preta da gente. Desde o início, sei lá do começo da história. Porque assim, por exemplo, o saque que aconteceu lá em Diamante, as pessoas ficaram dizendo: ‘’ah, isso foi coisa dos negro da Barra’’. E tem muita gente ainda que trata a gente assim: ‘’é os negros da Barra’’. É isso, é aquilo outro... ‘’só sendo da Barra. Só sendo negro mesmo’’. Então, essa discriminação ainda hoje existe.

A assistente social do município, Maria do Socorro, explica que não foram poucas as vezes que se deparou com discursos semelhantes aos narrados acima:

E assim, quando eu cheguei aqui – tá com quatro anos – eu não fui logo pra Barra não, mas foi incrível porque o primeiro local que eu tive curiosidade de conhecer, foi a Barra. Porque tudo que acontecia, alguma briga alguma coisa -até em festa de cidades vizinhas- as pessoas falavam: “Ah, foi o povo de Diamante, mas foi lá do sítio”. Os negros da Barra’’.

Isto explicaria, ao menos em parte, o porquê de muitos preferirem se afirmar pardos ou morenos do que negros. Quando os dominados, os outsiders, não gozam de mecanismos para resistir, desconstruindo com as estratégias de rebaixamento a que são submetidos, a estratégia mais adotada finda sendo se esconder na ação invisibilizadora que já lhes é infligida. Assim, as calúnias que acionam os sentimentos de vergonha ou culpa do próprio grupo socialmente inferior, diante de símbolos de inferioridade e sinais do caráter

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imprestável que lhes é atribuído, bem como a paralisia da capacidade de revide que costuma acompanha-los, fazem parte do aparato social com que os grupos socialmente dominantes e superiores mantém sua dominação e superioridade em relação aos socialmente inferiores. Há sempre uma suposição de que cada membro do grupo inferior está marcado pela mesma mácula. Eles não conseguem escapar individualmente da estigmatização grupal, assim como não conseguem escapar individualmente do status inferior do seu grupo (ELIAS; SCOTSON, 2009, p. 131).

Tais questões não apontam para a não percepção acerca dos estigmas – ainda que sejam reproduzidos a partir da naturalização de consensos de dominação – pelos grupos socialmente dominados. Os sujeitos que os compõem percebem, basta que o leitor veja as falas anteriormente sobre o preconceito e discriminação. Em compensação, ao acessarem certos mecanismos, fazendo jus ao que Norbert Elias (2000) provoca, afirmando-se subjetiva e coletivamente como um grupo, construindo estratégias e lutas por reconhecimento, como já se discutiu em diálogo com os diversos autores aqui apresentados. Pode-se considerar que a constatação de alguns interlocutores ao afirmarem que “agora todo mundo quer ser negro” deve ser compreendida de forma mais ampla, como um componente das configurações sociais que se estabelecem a partir de diferentes campos de disputa, os quais por não serem naturais, apesar de naturalizados, podem, dessa forma, ser questionados e desconstruídos. De alguma forma, tanto o se reconhecer como negro, assim como quilombolas, faz parte dessa reação, possibilitando que paulatinamente percebam-se as rupturas. Se a razão material do surgimento e do desenvolvimento da atitude racista é o contato material, a convivência não procurada, e até mesmo forçada, ou a temida concorrência no mercado de trabalho a predisposição mental da qual nasce o racismo é o chamado etnocentrismo, que defino, a partir do admirável livro de Tzvetan Todorov, Nós e os outros, como aquela atitude de “nós” contra os “outros” que consiste em transformar de modo indevido, em valores universais, os valores característicos da sociedade a que pertencemos, ainda quando esses valores nasçam de costumes locais, particularísticos, com bases nos quais é incorreto, para não dizer insensato e até mesmo ridículo, falar em nossa superioridade com respeito aos que pertencem a um grupo étnico de costumes diversos, igualmente particularísticos (BOBBIO, 2002, p. 124).

Compreendendo o racismo, a partir da perspectiva acima apresentada, pode-se perceber que mesmo o não reconhecimento dos sujeitos enquanto negros não implica em “falta de consci-

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ência”, o que negaria sua agência e reflexividade, mas em um tipo de estratégia sub-reptícia que ganha visibilidade quando a estrutura, o status quo, é questionado, proporcionando um novo leque de possibilidades e de estratégias de ação. Além do questionamento que serve de título ao presente subtópico, outra situação foi repetidamente percebida: muitas pessoas se afirmaram negras, algumas sem pestanejar, outras após nos perguntarem, e ainda havia quem se demonstrasse dividido sobre como se declarar, mas diante de comentários de outros ao seu lado, assumiam-se “negras”. Isto aponta para outro dado: o reconhecimento é construído a partir, sem duvidas, da autoidentificação, que não pode ser pensada fora de um reconhecimento coletivo. Isto é, reconhecer-se como negro, quilombola, ou qualquer outro tipo de autoatribuição está vinculado totalmente a estes dois fatores, ressaltando que a construção dos sujeitos estará sempre atrelada a balança nós-eu, como chama a atenção Nobert Elias (1994).. Não se pretende com isso reproduzir essencialismos, presentes, por exemplo, na imagem acima, muito menos uma naturalização de categorias. No entanto, a referida imagem aponta para o uso político da categoria negro, que ao mesmo tempo em que homogeneíza diferentes grupos, culturalmente diversos, também aponta para a construção de sentimentos de pertença que unam diferentes grupos em prol de uma problemática, neste caso o racismo, que atinge, como já foi exposto, a população da Barra de Oitis, tanto pela cor da pele da maioria de seus integrantes, como pelo lugar onde moram. d.) “Nascidos e criados aqui” Informações acerca da trajetória genealógica de algumas famílias da Barra de Oitis são sem dúvida dados importantes, componentes indispensáveis para a elaboração do presente laudo. Os moradores da Barra já se apropriaram disto a partir das suas especificidades culturais: frequentemente se afirmam “nascidos e criados” na Barra. Quando não é este o caso, isto é, quando não são “filhos da Barra”, se apressam em ressaltar o tempo que moram ali, principalmente quando o motivo para morarem na comunidade foi ter se casado com alguém “nascido e criado” lá. Dessa maneira, podemos considerar que esta expressão vem sendo utilizada como estratégia de legitimação da identidade dos integrantes da comunidade com o território no qual residem. Consequentemente, trata-se também de uma estratégia de luta em prol dos seus direitos

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enquanto quilombolas. Durante uma conversa com Dona Lusianita Nicaca, uma das senhoras mais antigas dentre os moradores da Barra, estas questões se tornam bastante evidentes:

Lusianita Nicaca: Eu nasci e me criei aqui. Nunca sai daqui pra fora... só saí uma vez m’ode uma seca que houve em quarenta e sete. Fui pra Crato, Ceará. Quando eu cheguei lá meu marido adoeceu... Quase morre... Aí depressa mandei uma carta pra minha mãe, aí mamãe depressa mandou o dinheiro e eu vim m’embora. Gilson: E depois voltou pra Barra? Lusianita Nicaca: Vim m’embora por causa que o homem tava morre mas num morre... E eu ia ficar pelo meio do mundo... Gilson: E a senhora tem quantos filhos? Lusianita Nicaca: Eu sou mãe de quatorze. Nunca fui em hospital! Meus filho nasceu tudo em casa mais a minha sogra.

Além da contundente afirmação que denota a ligação da interlocutora com a Barra, notase também, quando dona Luzianita afirma que teve todos os seus filhos em casa, uma explicitação da hereditariedade de sua família com a Barra. O que neste caso se potencializa pelo sobrenome pelo qual ela é conhecida, “Nicaca”. É interessante notar que ao ser questionada sobre seu nome completo ela responde “Lusianita Ferreira Campos”. O uso do sobrenome “Nicaca” se explica quando ficamos sabendo que os nomes de seus pais: Jovintina Maria da Conceição e João Mariano de Souza. Como já foi explicado, o sobrenome Mariano está relacionado a uma possível devoção a Maria, um culto mariano, assim como uma estratégia de invisibilização do nome Nicaca, que seria uma maneira de chamar a atenção, tendo em vista que remete a uma ancestralidade africana, o que poderia denunciar que eram descendentes de escravos fugidos. Outra questão acerca dos sobrenomes surgiu quando se conversou com seu Roseno Mariano e Dona Luísa, mãe de Gal, ao explicarem que mesmo após o desligamento da cerca elétrica – que como se mostrou, ocorreu junto com tentativas de expulsão deles do pedaço de terreno no qual moravam – não tinham a liberdade de plantar, ao contrário dos Alexandres, outra família cujo sobrenome tem grande visibilidade na Barra. Segundo nos foi explicado, isto se dava porque os “herdeiros”, os descendentes dos antigos proprietários de terra da região, enxergavam nos grupos familiares que tinham sobrenomes

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que remetiam as primeiras famílias de negros chegados à Barra uma ameaça a “sua” herança. Esta questão fica ainda mais evidente quando conversamos com seu Roseno Mariano.

Fig. 60: Seu Roseno

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A ntonio Juc a de Souz a

A ntonia Figueiroa de Souz a

Manoel Nic ac a

Manoel Mariano da Silv a

Querubina Eugênia da Conc eiç ão

Ros eno Mariano da Silv a

: Maria de Lourdes Bez erra

Luis Delf ino de Lima

Rita Mariano da Silv a

Jos é Mariano da Silv a

Es merina Bez erra da Silv a

Maria Bez erra da Silv a (A lex andre)

Luiz a

Is aac

Fig. 61: Árvore genealógica-Seu Roseno

Gilson: Qual seu nome completo? Roseno: Roseno Mariano da Silva. Gilson: E, o senhor lembra o nome do pai do senhor, da mãe do senhor? Roseno: Manoel Mariano da Silva. Gilson:: E da mãe do senhor? Roseno: Querubina Eugênia da Conceição. Gilson:Gilson Rodrigues: E por um acaso, o senhor lembra o nome dos seus avós?

Gal: Manoel Nicaca, e o nome do pai dele também era Manoel Nicaca.

A genealogia de seu Roseno torna-se emblemática quando observarmos não apenas seu sobrenome e de seus predecessores, mas o nome de sua mãe, Querubina, que remete ao mito de origem da comunidade, o primeiro grupo de negros que residiam na Barra, os Querubins.

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Ao entrevistarmos Bugari e Maura, a questão dos sobrenomes mais uma vez aparece como sendo muita relevante. Apesar do nome “Delfino” não fulgurar entre os primeiros grupos de negros da Barra, também é de grande importância, principalmente porque os Delfinos são estreitamente ligados aos Lucas. Isto remete a outra questão bastante recorrente na Barra: todos falam que apesar dos sobrenomes diferentes são “tudo uma família só”. Ainda com relação a isto, é importante observarmos a árvore genealógica obtida a partir das narrativas de Antonio Delfino de Lima (Bulgari) e dona Maura. Especialmente no que diz respeito à linhagem da família Delfino, chega-se a uma mulher, Delfina, que segundo narraram os interlocutores, possuía terras naquela região. Não se sabe o nome de seu marido, mas, de acordo com os relatos, o tronco Delfino começa com esta mulher.

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Delf ina

Manoel Delf ino de Lima

Luis Teotonio de Oliv eira

Ev elina Maria da Conc eiç ão

Quintino Delf ino de Lima

João Franc is c o da Silv a

Maria Piauí da Silv a

Maria Noêmia da Conc eiç ão

Sebas tião Bez erra da Silv a

João Batis ta Delf ino

Dav i Delf ino

Raf ael Delf ino

Ednalv a Maria da Conc eiç ão

Maura Maria da Silv a Delf ino

Manoel Jos é Xav ier (do Nas c imento)

A s s is Luc as

A gemiro Delf ino

Louriv al Delf ino

Rita Maria da Conc eiç ão

Manoel Franc is c o

A ntonio Delf ino de Lima

Laura Maria da Silv a

Laura Maria da Silv a

Franc is c o da Silv a

Manoel Franc is c o Filho

Maria da Guia da Silv a

Maria do Soc orro da Silv a

Edileuz a Delf ino

V itoria Dalila Delf ino (do Nas c imento)

Fig. 62: Árvore genealógica Bulgari-Maura

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Jos é de Souz a Lima

Edmils on Delf ino

Fig. 63: Bulgari, Gal e Maura. Durante as reuniões realizadas junto à comunidade, a questão dos “nascidos e criados”, assim como dos sobrenomes, era sempre abordada. Ao ouvirem os sobrenomes de suas famílias sempre havia manifestações, alguns gritavam “Eu sou dos Nicaca”, outros “Sou das famílias dos Luca”, mas essas diferenciações, demarcações, eram sempre acompanhadas da declaração de que todos na Barra eram parentes, “todo mundo aqui é primo, tio, parente de alguém”.

Tempo que reside na comunidade 7% 50%

12%

1 a 10 anos 11 a 20 anos

31%

21 a 30 anos Acima de 31 anos

Total: 181

Fig. 64: Tempo que reside na comunidade

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Tomando o gráfico acima, podemos apontar para outra questão observada durante o preenchimento dos cadastros: na maior parte dos casos, o tempo de residência das pessoas na Barra equivalia a sua idade, quando não, já viviam ali há bastante tempo. Mesmo famílias que não tinha diretamente uma ancestralidade negra, ou de escravos fugidos, como nos explicavam, moravam ali há muito tempo. Ainda que fossem diferenciados como não sendo quilombolas, tinham o consentimento da população para realizar o cadastro. O fato aponta para uma flexibilidade na autoidentificação formal, de acordo com as exigências do INCRA, que remete diretamente a forma como as relações sociais se configuram na Barra. Neste sentido, pode-se afirmar que apesar da categoria quilombola ser burocraticamente universal, ela é ressignificada a partir do “chão da cultura”, o saber local, como afirma Geertz. e) Abastecimento de água Na subseção anterior, destacou-se a construção de narrativas acerca da ligação dos nossos interlocutores com o território da Barra de Oitis. Esta é, sem dúvidas, uma das maiores preocupações demonstradas por eles. Soma-se a isto a demanda que diz respeito ao abastecimento de água na Barra de Oitis, assunto recorrente entre os moradores da comunidade, tendo em vista que é uma das promessas mais antigas na relação da Barra de Oitis com os políticos municipais. Todos os dias de trabalho de campo vimos homens, mulheres e crianças carregando de diferentes maneiras baldes de água, o que ocorre duas vezes por dia, no começo da manhã – entre as seis e as nove horas – e no fim da tarde por volta das 17 horas. O trajeto é bem conhecido: as pessoas saem de suas casas com os baldes vazios, geralmente carregam dois pendurados em uma vara de madeira, caminham até a bomba de abastecimento (de onde sai água bombeada de um poço artesiano) que fica em frente à escola, enchem seus baldes, voltam para casa e despejam a água em tonéis, panelas enormes e outros reservatórios. Dentre todos os problemas enfrentados pelos moradores da Barra é a questão do abastecimento de água que eles apresentam em primeiro lugar. Não é incomum a bomba quebrar e demorar dias para vir alguém de Diamante para consertá-la. Tornando a situação ainda mais degradante, tendo em vista que é com essa água que são lavadas as louças, as casas, assim como é com ela que normalmente se toma banho.

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Fig. 65: Enchendo os baldes

Fig. 66: Equilibrando o balde

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Fig. 67: Carregando os baldes

Fig. 68: Abastecimento

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Conforme já se apresentou anteriormente, não é difícil ver nos quintais de muitas casas, cisternas para captação da água da chuva, as quais em períodos de estiagem são abastecidas por caminhões pipa. No entanto, a água oferecida pela prefeitura não consegue dar conta de todas as cisternas, ficando algumas pessoas sem água. Tal situação nos permite observar como se dão as estratégias de solidariedade entre diferentes famílias da comunidade.

Fig. 69. Cisterna

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Fig. 70 Abastecendo na cisterna (1)

Fig. 71 Abastecendo na cisterna (2)

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Além das cisternas e da água que é bombeada para o centro da Barra, algumas pessoas, que em geral moram mais distantes, vão pegar água nos açudes. Tivemos a oportunidade de conhecer três pequenos açudes que são utilizados para estes fins, no entanto, um deles encontrava-se completamente seco no mês de julho. É importante ressaltar que este é o único que não fica dentro das propriedades privadas, fazendas que estão dentro do território da Barra. Em abril do presente ano presenciei pessoas abastecendo seus baldes nesse açude, mulheres lavavam roupas e voltavam para casa com as trouxas equilibradas na cabe e baldes carregados nas duas mãos. Atrás delas, em geral, vinham seus filhos, cada um carregava varas com reservatórios de água compatíveis com seu tamanho. Nesses casos, não via os homens. Depois entendi que alguns estavam no corte em São Paulo ou plantando nas terras de algum fazendeiro. Passados alguns meses voltei ao mesmo açude, mas já não havia água ali, pelo menos não que pudesse abastecer os baldes ou que servisse para se lavar roupas. Vi apenas um enorme charco de lama lodosa, onde cachorros, porcos e diferentes tipos de pássaros ficavam. Andei pelo meio do açude. Aquilo me serviu de metáfora para a força da seca (DC, RODRIGUES JR, 14/07/2012).

Fig. 72: Açude dentro da Comunidade

A partir da situação acima exposta, os outros açudes – geralmente evitados, pois ficavam dentro das propriedades, portanto cercados – se tornavam uma das poucas alternativas que a população tinha, principalmente quando o motor quebrava e/ou morava-se mais distante do centro.

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Fig. 73: Abastecidos

Fig. 74: Abastecidos (2)

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Fig. 75: Açude

Fig. 76: Banhando-se no açude

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Ver as pessoas passarem por baixo de cercas de arame, pulando outras cercas feitas de varas de madeira entrameladas – “varas de pau” –, buscando água em antigos açudes que ficam em propriedades privadas serve também de metáfora, evidencia o tipo de exclusão histórica a que a população da Barra vem sendo submetida. Os açudes com maior potencial para captação de água, aqueles que ainda não tinham secado, são os mesmos de outros tempos, provavelmente construídos com verba pública, tendo em vista que muitos dos tradicionais proprietários de terra na Barra, os “herdeiros”, compuseram o quadro político-administrativo de Diamante, assim como ocuparam, e ainda ocupam, lugares que lhe dão um status socialmente superior, atribuindo-lhes certo capital cultural que por fim lhes beneficie. Neste sentido, podemos retomar a questão dos “herdeiros” e “quilombolas”, a partir do contato Maria Consuelo Barros Mangueira, Zé Mangueira Barros. Ao conversarmos com eles, também estavámos diante de uma de suas filhas e uma neta. Estavámos diante de três gerações de sujeitos que foram construídos enquanto estabelecidos, isto é tendo acesso a determinadas disposições, formas de se ver e agir no mundo, que contrastavam com aquela dos moradores da Barra, inclusive na relação com a água. Enquanto em julho de 2012 boa parte da vegetação local era de um verde acinzentado, na casa de Zé Mangueira tudo era de um verde vivo, um pequena piscina estava cheia para que sua neta, filha de Heloisa Barros Mangueira, pudesse brincar quando quisesse. Uma mangueira jorrando água que regava as árvores na frente da casa, acompanhando todo o alpendre. Além disso, como se buscou saber, havia ali água encanada, o que aponta para a permanência de certos privilégios que estas famílias ainda gozam, mesmo que sem a ostentação de outrora. Aquilo que para os moradores da Barra de Oitis era uma promessa em vias de se cumprir, para os Barros era uma realidade antiga: água encanada em suas casas. Na fazenda do referido casal foi perfurado um poço de onde é bombeada a água que abastece a casa e as poucas plantações que ainda mantêm. Tal situação nos remete mais uma vez a relação de interesses entre os moradores da Barra e os políticos municipais. Se anteriormente, como explicou Má, houve uma resistência para que se apoiasse a fundação da Associação Quilombola – tendo em vista que isto signficava um posicionamento político contrário ao Cabo Adalto, outro dono de terras na região – com o passar dos anos a presença de políticos se aproximando da Barra, se dizendo, por exemplo, “vereadores da Barra”, vem aumentando.

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Exemplo disso é o projeto COOPERAR, que visa tanto o aumento da construção de cisternas nas casas, como o acesso a água encanada. Trata-se de uma iniciativa do estado da Paraíba, mas os políticos de Diamante já têm feito uso político dela, tendo em vista que dá concretude as antigas promessas de trazer água encanada para Barrra. O mapa abaixo faz parte exatamente de uma fase deste projeto: o mapeamento das casas e o reconhecimento das famílias que serão contempladas pelo projeto, aproximadamente 70 famías, o que equivale a um pouco menos da metade de grupos familiares da Barra.

Fig.77: Mapa do Abastecimento de água; Escala: 1:2000

Sobre o projeto COOPERAR, existe uma questão sempre mencionada por muitas pessoas da Barra – da qual não pudemos nos aprofundar: houve um desvio de verba e de material para a Mata de Oitis, onde já existe água encanada. A partir de conversas com moradores da Barra, e com outros interlocutores, alguns dos quais exercem cargos comissionados na prefeitura, soubemos que a verba havia sido direcionada para a Barra de Oitis, mas que devido a compadrios políticos fora desviada, e parte do dinheiro usado na Mata de Oitis. Em duas reuniões da Associação vimos esta questão voltar à tona na fala de diversos moradores da Barra, enquanto que se viu políticos tentando dar explicações que pareceram pouco satisfatórias para muitos dos presentes.

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Fig. 78: Homem tomando banho no rio Outro espaço frequentemente utilizado tanto para os banhos como, e principalmente, para lavar roupas e veículos é o rio Apiancó, um rio perene que cruza toda a região do Vale do Apiancó, que abarca também Itaporanga e Diamante. Dessa forma, por mais que suas águas fiquem rasas em alguns períodos, não chega a secar, servindo tanto a proprietários de terras que colocam motores que puxam água do rio para suas terras 52, como para famílias da Barra de Oitis ou de povoados vizinhos.

52

Uma das vezes que cruzamos o rio, vimos um motor ligado com canos que iam até o rio, enquanto que um rapaz ficava por perto, como se vigiasse. Logo soubemos que a água ia dali para as terras do atual prefeito, regava o pasto para os seus gados.

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Fig 79: Lavagem de Roupa

A partir da imagem abaixo se pode observar a localização do rio Piancó tanto em relação ao perímetro urbano de Diamante, quanto com relação à estrada de areia que leva à Barra de Oitis e a outros povoados. Além disso, como será discutido em seguida, possibilita-se a percepção de outra dificuldade que a população da Barra de Oitis enfrenta: as dificuldades de acesso à região, dentre outros motivos, pela inexistência de uma ponte – ou “passagem molhada” sobre o rio.

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Fig 80. Visão panorâmica do Rio Piancó

f)

O acesso à Barra

Apesar de a Barra distar aproximadamente seis quilômetros da sede do município, o tempo médio que se leva de carro até lá é de meia hora, o que equivale a uma velocidade média de 20 Km/h, algo que se agrava à noite, tendo em vista que somado ao fato das estradas serem de terra e estreitas, a falta de iluminação torna o trajeto ainda mais arriscado, o que exige uma destreza, ao volante do carro ou pilotando uma moto, além de um amplo conhecimento do caminho. Vale salientar que dentre as várias promessas não cumpridas apontadas pelos moradores da Barra, o alargamento, iluminação e terraplanagem da pista que vai da sede do município até lá, é uma das principais. Junto com esta há a promessa de se construir uma “passagem molhada”, uma espécie de travessia de concreto, semelhante a uma ponte, porém mais baixa. No entanto, mesmo esta promessa – não cumprida – é vista pelos moradores da Barra apenas como

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um atenuante, pois como foi dito por algumas pessoas durante uma reunião, nos períodos de cheia do rio, uma passagem molhada não resolveria, pois o nível do rio Piancó a ultrapassaria, sendo até mesmo capaz de levá-la. Gal explicou-me que tal observação se baseia no fato de, em outra parte do território da Barra, existir uma passagem molhada que, apesar de não ter sido levada pela força do rio, não serve de nada quando este está cheio, tendo em vista que fica bastante submersa.

Fig. 81. Passagem Molhada 53 (1)

53

Caminho que leva a fronteira com a Patuscada.

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Fig. 82. Passagem molhada (2) Outro problema enfrentado pelos moradores da Barra, com exceção dos que possuem antenas particulares para seus celulares, é a quase impossibilidade do uso de aparelhos celulares na região. Se em Diamante só há sinal de uma operadora de celular, a Barra fica quase que completamente isolada, uma vez que não há um sinal qualquer. Quando não se tem a possibilidade de usar a antena de vizinhos para se comunicar com outros, só existem duas possibilidades: ir até Diamante, onde há sinal de operadora, ou mandar um recado por quem estiver indo até lá. Tais situações reforçam o isolamento geográfico, simbólico e comunicacional que por vezes é imposto aos moradores da Barra de Oitis, o que inevitavelmente afeta direitos básicos de cidadãos, como o de ir e vir.

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g)

Moradia

A questão da moradia tem se mostrado outro desafio presente no cotidiano da maior parte dos moradores da Barra de Oitis. Como indicado no gráfico abaixo, a maior parte da população continua morando em casas de taipa.

Moradia Casa de Taipa

Casa de Tijolo Rebocada

Casa de Alvenaria

Casa de Madeira

1% 8% 51%

40%

Total de casas: 127 Fig. 83. Moradia

Mais de 50 % das casas habitadas são de taipa – ou de pau a pique. A predominância deste tipo de moradia pode ser compreendida a partir de diversas questões. Do ponto de vista local, em especial no que diz respeito aos conflitos, que aqui chamamos, entre os quilombolas e os herdeiros. Observou-se em muitas falas que as pessoas eram impedidas de levantar casas de alvenaria, em alguns casos por falta de renda para isto, porém a maior barreira que encontram são as ameaças que muitos dos tradicionais proprietários das terras fazem de derrubar as casas que forem feitas de concreto, enquanto parece haver alguma tolerância com relação as construções de taipa – mais frágeis e suscetíveis a doenças, como o “doença de chagas”. Na tentativa de deixar suas casas de taipa mais seguras, alguns moradores da região passam cimento – misturado com água e barro – na parte de fora, que é, dentre outras, uma maneira de fecharem as brechas nas paredes, o que protegeria minimamente contra insetos e algumas intempéries climáticas, em especial os fortes ventos e do frio que costumam ocorrer nesta região durante a noite, em certas épocas do ano.

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Fig. 84: Casa de taipa sendo coberta (1)

Fig. 85: Casa de taipa sendo coberta (2)

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No caso das casas de madeira, consideradas dos moradores mais pobres da região, não podem receber esta cobertura de cimento, ficando as pessoas ainda mais vulneráveis a diversos dos problemas elencados. Se por um lado os conflitos 54 por terra na região influenciam, em parte, na impossibilidade de melhores moradias para os moradores da Barra, outro fator recorrente entre os moradores é a falta de verba para construir suas casas. Há um consenso na comunidade de que as melhores casas são as de alvenaria, no entanto, de acordo com os relatos dos próprios moradores, a maior parte dessas construções foi feita com o apoio do governo federal. É bastante comum vermos no mesmo terreno onde estas casas foram construídas, outras, em geral, de taipa. Tais situações, bastante comuns na Barra de Oitis, eram explicadas pelos moradores, como retratando a intervenção do Estado que facilitou financiamentos para a construção de casas. No entanto, como esta foi uma ação pontual, outras famílias iam se formando a partir das novas gerações. Estas, não contempladas por programas federais, têm, em geral, duas opções: morar nas mesmas casas que seus pais ou avós, ou construir outras casas nos mesmos terrenos, na maioria de taipa, tendo em vista os fatores já comentados.

54

A relação entre o que chamamos de “herdeiros” e “quilombolas” será mais aprofundada mais a frente.

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Fig. 86: Casa de taipa (1)

Figura.87: Casa de taipa (2)

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h)

A religiosidade na Barra

Apesar da inexistência de terreiros e pessoas que se declarem participar de religiões de matriz africana – como se evidencia no gráfico abaixo – há, como se apresentará, fortes indícios de que estas fazem parte da história da Barra, mantendo-se presentes, ainda que de maneira indireta. Atualmente não foi encontrado nenhum terreiro, ou qualquer outro lugar de culto afrobrasileiro. Isto não impediu que fossem percebidas expressões de fé e crença que fugissem ao discurso religioso vigente ali, predominantemente evangélico e pentecostal 55, contando também com a tradicional influência católica. Segundo a narrativa de Má, até a década de 1970 existiam terreiros de Umbanda na Barra e em Diamante, mas que atualmente ele só ouviu falar da permanência destes em Itaporanga. Não foi difícil ouvir relatos de rituais de cura dentro da comunidade, os quais não parecem remeter a qualquer sacralização das figuras que se tornaram famosas por realizá-los. Além dos rituais de cura, há relatos nos quais se fala em pessoas que eram consultadas como tendo a capacidade de prever o futuro ou mesmo de fazer com que determinadas coisas acontecessem, como por exemplo, que algo furtado aparecesse. De acordo com Gal, sua avó paterna – uma Nicaca – era alguém com esses poderes dentro da comunidade. Tanto quando preenchíamos os cadastros, como nas conversas no dia a dia da Barra, percebemos que ao falarem das suas crenças, os interlocutores variavam apenas entre católicos e protestantes 56. No cadastro do INCRA existiam cinco opções: católico, protestante, candomblé, umbanda e outros, porém só foi ouvido nas declarações as duas primeiras opções.

55

Existem três igrejas evangélicas na Barra. Tomamos como base as categorias do cadastro do INCRA, portanto protestante deve ser compreendido maneira bastante ampla, incluindo diferentes correntes teológicas e os mais diversos grupos evangélicos. 56

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Fig. 88: Cruz na estrada (1)

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Fig. 89: Igreja Evangélica (1)

Fig. 90: Igreja Evangélica (2)

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Religião Protestante 16%

Católica 84%

Total: 118 Fig. 91: Gráfico-religião

Não nos restam dúvidas de que se o cadastro contemplasse todas as pessoas residentes na Barra, o resultado dos dados não seria tão distinto do observado no gráfico acima. Portanto, se o tomássemos isoladamente, sem nos determos às especificidades locais, apresentaríamos ao leitor uma perspectiva bastante limitada acerca das manifestações religiosas nesse contexto. // A partir da conversa com Gal, ficamos interessados em saber mais sobre rezadeiras e rezadores da Barra, alguns dos quais também eram tidos por feiticeiros, capazes até de matar pessoas. Seguindo algumas pistas, fomos até a casa de Maria, também conhecida como Maria Preá, sobrinha de Ana Preá, avó de Gal e tia de dona Maria, que herdou da tia tanto a reza como o apelido. João Batista nos levou até a casa onde Maria Préa – 65 anos - mora com seu genro, Pedro, e sua filha, Deuziléia. Havia um cuidado da nossa parte para adentrarmos os assuntos sobre as rezas, seguindo o conselho de João Batista, que achava que ela poderia se sentir acuada pra falar do assunto. Foi bem mais simples do que imaginávamos. Inicialmente perguntamos o que sabia sobre sua tia. Sem que perguntássemos sobre a religião de Ana Préa, ela logo se adiantou: Maria Preá: Bom, se era macumbeira eu não sei não. Mas sei que rezar ela rezava muito. Dizem que macumbeiro era o meu avô, mas eu não conheci ele não. Ouvi falar pela a boca dos outros, né?! Gilson: E qual era o nome dele? Pedro: Chamava Aluízio.

Explicamos a todos na casa que sempre que ouvíamos falar em rezadores na Barra, o

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nome de dona Maria aparecia, e que era considerada uma rezadeira famosa na região. Dessa vez, Deuziléia explicou: Deuziléa: Ela reza de olhado, dor de cabeça, ferida de boca...menino, o povo vem aqui com as motos e os meninos no braço.

Gilson: E o povo fica bom? Deuziléa: Fica. Ela rezava até nos meus, quando era pequeno. Quer dizer, muita

gente. Porque muita gente vem aqui com os meninos, e quando chega em casa diz que os meninos estão bons. Teve outro dia que veio um menino que estava com fastio, e dizem que ficou bom. Só ver o povo: ‘’Maria, reze aqui!’’

Como se evidencia nas falas acima, a prática das rezas é algo que vem sendo passado de geração em geração. Maria Préa nos explica que aprendeu com outros, mais antigos que ela: Maria Preá: Um tio meu, que já era velhinho, com a minha mãe, com uma tia

minha que mora alí. Essa tia Ana Preá mesmo... Essa Maria Preá é irmã do meu pai. É porque minha vó disse que eram gêmeos, aí botaram o nome dela de Maria do Carmo, aí apelidaram ela de Maria Preá, porque era pequeninha, aí ela morreu com esse nome de Preá. Gilson: E me diz uma coisa, sua filha falou mas eu queria ouvir da senhora. Maria Preá: Diga... Gilson: A senhora começou a rezar com que idade? A rezar no povo com que idade? Maria Preá: Com dez anos a doze. Gilson: Eita, começou cedo! E até hoje? Maria Preá: Até hoje. Gilson: E a senhora gosta? Maria Preá: Eu acho bom a reza. Agora que não é quem eu vou rezar, né? Tem que ter fé na reza. Gilson: E a senhora tem fé em quê? Maria Preá: Em Deus. Gilson: E assim, que tipo de coisa que a senhora rezando, o povo diz que ficou bom? Maria Preá: Porque é assim: as vezes vem pra rezar ferida de boca, e não é ferida de boca. Aí a reza não cura, eu não sou culpada. As vezes vem mandar rezar de olhado, e não é olhado, aí aquele menino não fica bom, eu não sou culpada, porque a reza é uma e a doença é outra. Olhe, a Heloisa filha de Maria Consuelo, esses dias eu fui bater lá porque ela mandou, pra rezar nela e na filha dela. Toda vez que ela vem, ela vem bater aqui pra eu rezar nela, se ela não vier, ela manda o recado pra eu ir.

O trecho da conversa acima revela diversas questões acerca das manifestações religiosas não verbalmente declaradas pelos moradores da Barra, além de expor as redes de solidariedade entre eles e não moradores da Barra. Ao observarmos a trajetória apresentada por Maria Preá, percebemos uma genealogia no aprendizado da reza. Dentre as pessoas com as quais ela aprendeu,

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ela destaca a figura do seu avô, considerado “macumbeiro”. Além dele, sua tia, Ana Preá, era assim identificada por outros interlocutores da Barra, que também a consideravam “feiticeira”, o que também falavam de Maria Preá. Delf ina

Manoel Delf ino de Lima

Ev elina Maria da Conc eiç ão

Luis Teotonio de Oliv eira

Quintino Delf ino de Lima

João Franc is c o da Silv a

Maria Piauí da Silv a

A ntonio Delf ino de Lima

Ednalv a Maria da Conc eiç ão

A s s is Luc as

Sebas tião Bez erra da Silv a

Laura Maria da Silv a

A gemiro Delf ino

Louriv al Delf ino

Jos é de Souz a Lima

Edmils on Delf ino

Rita Maria da Conc eiç ão

Manoel Franc is c o

Maura Maria da Silv a Delf ino

Maria Noêmia da Conc eiç ão

Laura Maria da Silv a

Franc is c o da Silv a

A lex andrina Maria da Conc eiç ão

Manoel Franc is c o Filho

Maria da Guia da Silv a

Maria Figueira Bez erra

Maria do Soc orro da Silv a

Pedro

João Batis ta Delf ino

Dav i Delf ino

Raf ael Delf ino

Manoel Jos é Xav ier (do Nas c imento)

Laura Maria da Conc eiç ão

Sebas tião Bez erra

Luis A s f ére

Pedro Figueira

Cíc ero Bez erra da Silv a

Deuz iléia

Edileuz a Delf ino

V itoria Dalila Delf ino (do Nas c imento)

Fig. 92: Árvore Genealógica Bulgari-Maura

Sentado na frente da casa de Bugari, após ter entrevistado Maria Preá, como normalmente vinha acontecendo, algumas pessoas foram se chegando, faziam perguntas sobre o andamento da pesquisa, exercendo, à sua maneira, um con-

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Maria do Carmo

trole sobre os passos do pesquisador, assim como expressando uma curiosidade, já que por vezes diziam que estavam descobrindo coisas sobre a Barra que antes não sabiam. Nesse dia, quando voltei da casa de Maria Preá, comentei com uma interlocutora que tinha ido “na casa da rezadeira”. Ela disse: “Tu foi lá em Maria Preá?”. Quando disse que sim, ela falou “Mas ela não é só rezadeira, ela faz outras coisas... Ela é feiticeira” (RODRIGUES, JR, DC, 26/07/2012).

Tem sido ponto pacífico entre os antropólogos da religião que o termo “macumbeiro” quando usado por sujeitos que professam outras religiões - principalmente as cristãs – é uma estratégia de deslegitimação moral que tanto rebaixa as religiões de matriz afro, quanto as homogeneíza. No entanto, muitos grupos de movimentos sociais ligados a estes segmentos religiosos vêm fazendo outro uso do termo. “Macumbeiro” é ressignificado pelo “povo do santo”, usado como bandeira da sua afirmação religiosa, o que acontece em contextos onde se abre um leque de possibilidades para que esta reafirmação se dê. Não é este o caso da Barra. Muitas vezes quando perguntados sobre sua religião vários interlocutores gaguejavam, parecendo indecisos, e em tom de brincadeira falavam que eram macumbeiros, mas quando íamos preencher o cadastro diziam que “era brincadeira”. Em outros momentos, alguns chegaram a afirmar que “tinham o corpo fechado” ou que tinham “um guia” para logo em seguida dizerem que era brincadeira, “Deus o livre, sou católica graças a Deus”. Afirmações como estas ocorriam em geral em conversas informais, na presença de outras pessoas, e geralmente se seguiam a uma indicação de alguém que fosse “catimbozeiro”, outro termo usado no mesmo sentido de “macumbeiro”. Quando um estigma é compartilhado hegemonicamente por um grupo, aqueles que têm um comportamento que foge a normatividade tida como socialmente correta e/ou melhor, constroem outras estratégias. Neste caso a ação invisibilizadora, apesar de ser imposta pela perspectiva dominante, é usada pelos outsiders como estratégia de manter suas atividades sem certos incômodos. Este parece ser bem o caso de Maria Preá, quando afirma veementemente que não é “macumbeira”, ao mesmo tempo em que se defende daqueles que questionam a eficácia de suas rezas.

Maria Preá: Eu soube pelos os outros. Disseram que eu tô só me enganando, que eu não sei rezar. Que ninguém aqui nunca ficou bom. Mas eu não sou culpada, se vem rezar de olhado, de dente doendo e não passa, eu não tenho mais o que fazer. As vezes não é olhado, é outra doença. Se vem com uma dor nos

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peitos, pra fechar os peitos, aí vem com gastrite, uma úlcera, é úlcera... aí como a reza vai curar, né?! Deuziléa: Teve uma mulher que chegou aqui com as mãos na cabeça com dor de dente, mãe rezou nela, e no outro dia eu ela ia passando pra Diamante e eu perguntei: ‘’passou mulher o dente?’’ Aí ela: ‘’Passou sim’’. Aí também depende da fé, né?! Maria Preá: Quando eu morava no Maranhão (em 1974) eu ganhava muita coisa com reza. As vezes eu ia (para o terreiro) pra não ficar só em casa, mas eu juro como eu não sei de nada disso. Eu sei rezar. Agora eu ia passar a noite todinha fazendo café para os macumbeiros, pra não ficar só dentro da mata. Porque eu era medrosa. E o nosso barraco era dentro do mato. Mas eu, graças a Deus não sou não. E tenho raiva de quem é, tenho. Não venha com história de macumba pra mim não.

Muito mais do que expressão da naturalização de um preconceito – ao mesmo tempo em que não se nega esta possibilidade – os relatos de Maria Preá apontam para uma reflexividade. Para usar, mais uma vez, os termos de Goffman, Maria Preá se apresenta de formas diferentes para plateias diferentes. Ainda que ela fosse “macumbeira” e fizesse parte de rituais afro brasileiros em sua estadia no Maranhão – o que nega – constrói sua narrativa de maneira adequada as “regras” locais seu envolvimento com terreiros, mas o circunscreve a um serviço, um favor que prestava em troca de segurança e companhia, enquanto seu marido estava no corte. Ao mesmo tempo ela fala que “tem é raiva” de quem for macumbeiro. Além das rezas, fala-se, como já apontado, nos feiticeiros, como era o caso de Ana Preá. Se o exercício da reza concede um status e é bem quisto por muitos dos moradores da Barra, o mesmo não acontece – se acontece não é explicitamente assumido – com os feiticeiros, pessoas capazes até mesmo de tirar a vida de outras. Dona Luizanita explica isso ao falar que a morte de seu marido foi “butada”, isto é, se deu por meio de feitiços.

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Fig. 93: Dona Luizanita Nicca (93 anos)

Ahh... mas isso foi há muito tempo... eu digo que tem! Por que mataram meu marido de feitiço... José doente sem eu saber do que era! Passamo a noite todinha com ele com os pés em cima de um tamburete... com o estômago em cima do joelho... e mermo assim ia trabalhar, pegava a inchada e ia pra roça trabalha. Aí foi no ano que eu fui pro Cariri... aí chegou uma veia lá e olhou pra ele... aí foi quando ela disse: minha fia a doença do teu marido foi botada! Procure quem sabe! Ela me ensinou... você faça esse remédio assim... assim. Quando foi bem cedo na sexta. E quando for sábado bem cedo você procure um rezador. Aí assim eu fiz... o remédio que ela mandou fazer... Pegar o café cru, botava um litro d’agua pra ferver... pegava três banda de café e botar dentro de uma tigela branca a água fervendo e abafava. A chamei o pai dele e disse que ia tratar dele, mas ele já tava muito esmorecido... aí quando chegou lá a muié descobriu tudinho... disse o nome dos patrão dele, disse o nome da muié que fez o negoço, o nome dos filho da muié... disse agora num tem mais jeito dele ficar bom... ela já morreu quem botou já tinha morrido... e num tinha como voltar porque ela já tinha morrido. Doença botada, feitiço, é assim! Esse povo que dizia que sabia botar... e que sabia tirar aqui tinha, mas morrero tudinho!

Apesar de dona Luizanita afirmar que os feitiços eram coisas de antigamente, suas netas afirmaram categoricamente que isso ainda existia, mas que não iam falar os nomes, diziam ter medo do que poderia lhes acontecer. No entanto, a afirmação de Luizanita faz coro com o la-

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mento de Maria Preá quando explica que tinham muitos rezadores, mas alguns já morreram, outros “viraram crentes e disseram que não rezam mais”, somado a isso ela explicou que os mais jovens não tem interesse. Dessa forma, pode-se concluir que o processo de negação das religiões afro não implica em negação de rituais advindos destas, a despeito dos termos que se use para isso. Além disso, percebe-se uma adesão cada vez maior a religiões cristãs. Segundo informações dos moradores há muito tempo não ocorrem missas na comunidade, apesar de existirem pelo menos três pequenas capelas na região. A força simbólica do catolicismo é expressa nas imagens nas casas, nos escapulários e também nas cruzes pelas estradas, geralmente acompanhadas de santos – na maioria das vezes, Nossa Senhora e o Padre Cícero – que marcam o lugar de alguma morte. Ao contrário do que se dá com a falta de cultos católicos, ocorrem cultos evangélicos pelo menos três vezes por semana, entre as três denominações atuantes na Barra. Além disso, anualmente, a comunidade é visitada por missionários da JOCUM 57, que geralmente passam pelo menos um dia na comunidade, realizam atividades com as crianças – como pintar seus rostos, distribuir presentes e narrar histórias bíblicas com fantoches -, organizam cultos e distribuem mantimentos e roupas.

57

Jovens com uma Missão, organização evangélica, missionária e para-eclesística

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Fig. 94: Visita da JOCUM (1)

Fig. 95: Visita da JOCUM (2)

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Fig. 96: visita da JOCUM (3)

Fig. 97: visita da JOCUM (4)

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i)

Comemorações, festividades entre as diferentes gerações

Além das manifestações religiosas, ao entrevistar seu Luís, um senhor de 82 anos, vigoroso e envaidecido pela convicção de não transparecer a idade que tem, descobriu-se que ocorriam festas, comemorações e, principalmente, dançava-se coco e maracatu. Gal, que também participou da entrevista, explica que antigamente quando alguém ia levantar uma casa – na época todas eram de taipa – chamava outras pessoas da Barra, que após levantar a parede passavam a noite dançando Coco, que era tanto uma forma de diversão, como uma maneira de aplainar o chão da casa. Dona Luizanita, junto com suas netas, que acompanhavam toda a conversa, demonstrando seu conhecimento sobre a história da Barra, contada por sua avó, falam também acerca das festividades antigas: Lusianita Nicaca: O que? coco pra nóis dançar? No dia que chegou um povo de Garanhuns que vieram s’imbora pra aqui o coco que nóis pisava num era brincadeira... Neta: Mãe dizia que no dia das roda de coco as muié num tinha salto alto aí botava amarrado de baixo das sandálias as quenga de coco e saia andando fazendo barulho... Lusianita Nicaca: Menino! Aqui a dança era coco. Aqui no tempo do dono dessas terra do finado João Antônio só fazia festa de ano em ano... Gilson: Fora isso num podia fazer festa? Lusianita Nicaca: De ano em ano ele fazia a festa. Todo ano o povo fazia festa de São João, mas assim num é como hoje que todo sábado tem festa... Gilson: Me disseram até que pra apilar o chão da casa o povo usava o coco pra isso! Lusianita Nicaca – Ahh... mas foi pra fazer, num tinha come é... fole não aqui não! Aqui quando agente viu uma sanfona tava com um ano que depois de chegar no centro aqui. Gilson: Tinha maracatu aqui? Lusianita Nicaca: Maracatu? Pra dançar? Oxe nós dançava que a páia avuava! Quando dizia: hoje vai ter coco... maracatu! Oxe as moça ficava tudo alegre. E tinha mais outra: se o pai deixasse, se num deixasse podia cair o cabelo... mas num deixava não! As moça num andava mais todo mundo não! Mas hoje que as moça sai boca da noite e chega bem cedo e os pai num diz nada! Ta muito diferente meu filho!

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Des c onhec ido

Des c onhec ida

João Campo de Souz a

Querubino

Maria Querubina

Jov enita Maria da Conc eiç ão

Luiz anita Ferreira Campos

Franc is c o Mariano Campos

Jos é Mariano da Silv a

Damião Mariano Campos

Manoel Mariano Campos

Geraldo Maria de MarianoLourdes Mariano Campos (Campos )

Geralda Mariano Campo

Filomena Maria da Joana D'A rc Mariano Penha Mariano Mariano (Campos ) (Campos ) Campos

Fig. 98: Árvore Genealógica-Luizanita Nicaca Maria Preá ao falar sobre o coco e o maracatu, explica o último não se trata do maracatu que se fala hoje em dia – tal como os que se tornaram famosos no Recife, mas que se tratava do xote. Ela fala com muito saudosismo acerca daqueles tempos e assim como dona Luzianita faz críticas às festas “de hoje em dia”, isto é que as novas gerações participam. Gilson: Não sei se a senhora chegou pegar o povo que dançava coco, as coisas assim. A senhora pegou esse tempo ainda?

Maria Preá: Já, e dancei muito, viu?! Gilson: Dançou? Maria Preá: Dancei... quando fazia uma casa, o nossos pés que apilava. Gilson: Apilava o chão no coco? Maria Preá: Era.. dancei muito. Nós dava graças a Deus quando fazia um casa

que era pra aterrar, e nós passava a noite todinha dançando e no outro dia tava bem aterradinho. Era... era o divertimento aqui dos rapazes e das moças, era o coco. E não vá pensando que era sanfona, nem radiola, não. Gilson: Era como? Maria Preá: Uma lata velha, um rádio, outra hora era o povo cantando, era assim...nós só queria saber que tava se entretendo. Às vezes, o instrumento que

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aparecia pra tocar era um tal de banjo. Vinha lá do riacho da onça. Oxe! Nós começava a dançar quatro hora e no outro dia o sol caindo, e nós enrolados dançando. Ninguém via ninguém bêbado, não via ninguém com palavrão. Não passava ambulância com ninguém. No outro dia saía todo mundo com a cara limpa, cada um pra suas casas. Gilson: Não tinha violência? Maria Preá: Não tinha em canto nenhum. Não tinha não, não senhor. Gilson: Então hoje em dia a senhora acha que tá melhor, ou tá pior? Maria Preá: Tá é pior. Porque não pode ter uma diversão aqui, que quando pensa que não, tá o monte de bêbado. Porque tem uns que sabe beber, tem outros que não sabe, né? Já anda com palavrão, com isso, com aquilo. Procurando briga com os outros. Aí é onde começa. Eu duvido não ter uma festa aqui, pra não ter uma ambulância. Eu duvido. No tempo atrás, no tempo que eu era moça não tinha isso não. Nós ia no samba, em cima da Serra Grande, nós começava a dançar quatro hora, quando dava oito horas, nós ainda tava enrolado dançando. E não via ninguém com a cara feia, dizer palavrão com ninguém. Tava tudo bêbado, mas era de sono. Mas hoje em dia... hoje em dia não vale a pena sair da sua casa pra ir pra uma festa não. Gilson: E tem muito bêbado? Maria Preá: Tem. Tem um bocado que bebe cachaça quando vão. Gilson: Mas assim, nessa época que a senhora ia pro coco, os seus pais eram vivos? Maria Preá: Era... Gilson: E eles deixavam ir? Maria Preá: Deixava, eu era mocinha nesse tempo. Eu só não fui festa em Vazante. Mas nos Laurindo, na Serra... eu era acostumada ir, que eles deixava.

Para os mais velhos as festas que as novas gerações participam, apesar de todo o aparato musical, não são melhores que as suas, tendo em visto, que dentro das suas perspectivas, antes não havia desrespeito, violência nem confusão. “Hoje, não tem uma festa que no final não tenha briga”, explica dona Luzianita. Alguns dos mais jovens demonstram total ignorância quanto ao que possa ser o coco, e por sua vez defendem as suas festas, ainda que concordando com os mais velhos, sobre o problema das brigas, “É que o povo não sabe brincar, fica bêbado e já quer logo arrumar confusão”, explica Aninha, neta de dona Luzianita. Ao conversarmos com Maura e Bugari, representantes de outra geração, percebe-se que eles não chegaram a dançar coco ou maracatu, “Era só o forró, o xote,”, afirmou Bugari. Maura: Era uma sanfona, uma zabumba, um triângulo... Gilson: E como era antes de vocês casarem? Os pais liberavam? Maura: Não. Meu pai sempre criou a gente com muita rigidez, ele não era um

pai que deixava nós ficar na mão de todo mundo, de ficar com qualquer pessoa. Ele só liberava com a minha mãe, ou um tio nosso que já morreu há muitos anos. Ele pedia ao meu pai pra gente ir, porque meu pai confiava nele. Aí ele reunia a gente, e a gente ia pro baile. Quando não era com ele, era com a minha mãe. E eu criei meus filhos do mesmo jeito. Minha filha só ia pra algum lugar comigo, ou com uma tia dela, que já morreu também. Gilson:Mas você e Buga iam para os forrós, depois de casados?

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Maura: Ia, ia sim.

Se ao longo das gerações, as danças, os ritmos, os instrumentos usados, foram se modificando, agradando a uns em detrimento de outros, há também festas tradicionais quem unem as gerações. Este é o caso, por exemplo, da malhação do judas. Acompanhamos este evento durante a segunda incursão a campo, em abril. Desta vez cheguei a Diamante na noite do dia 07 e abril, tendo sido recebido por Bugari, que me esperava para atravessarmos o rio Piancó a pé, tendo em visto que ele estava um pouco cheio, e como estava escuro, ele foi ao meu encontro, enquanto seu filho, João Batista, nos esperava, no carro, na outra margem do rio. No caminho já fui sendo informado da malhação do Judas que ia ocorrer em Mata de Oitis, um povoado vizinho com o qual a Barra mantém forte relação. Cheguei, descarreguei a bagagem, tomei um banho e fui até a Mata com João Batista, em sua moto. Tinha em mente como se davam as malhações de Judas, mas a partir de um referencial de quem tinha vivido a infância na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, e adolescência em Natal-RN. Ao observar a forma como se dava a tradição tanto na Mata de Oitis, quanto na Barra, percebi-me com certo estranhamento inicial, pois nunca havia visto aquela forma de malhação do Judas. Antes mesmo de chegar à Mata, cruzamos com diversas outras pessoas, advindas da sede do Município, como também de outros povoados circunvizinhos, a maioria de moto (RODRIGUES JR, DC, 08/04/2012).

Na Mata de Oitis via-se de longe uma multidão concentrada, uma parte ao redor de carros, motos emparelhadas no canto direito da rua, e logo depois o local onde se daria a malhação do Judas. Tinham armado algo que lembrava um curral, um cercado feito de cordas amarradas em pedaços de madeira fincados no chão, demarcando um quadrado. Isto tomava quase todo o espaço da rua, deixando espaço apenas para pedestres e pessoas em motos passassem. Dentro deste quadrado armava-se um cenário: um pau central com o boneco simbolizando o Judas no alto, vários pedaços de palha de coqueiro grandes, pés de milho, alguns dos quais eram postos presos ao pau central, também eram postos no chão e entre as folhas, quantias de dinheiro que eram dadas pelos que participavam do evento, alimentos e garrafas de plástico, que representavam garrafas de vidro, de vinho e cachaça (uma forma de evitar acidentes), e latas de cachaça. Dentro do quadrado ficavam apenas os “caretas”: quatro homens com chicotes de corda, que deveriam bater no “burro”, a pessoa que entrava no “curral” para pegar alguma das coisas ali exibidas. Uma das regras é que os caretas deveriam tomar cuidado para não bater nos olhos

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do “burro”, pois podia cegar, mas enquanto a pessoa estivesse ali dentro, eles poderiam bater. Poucos são os que entram ali, a maioria apenas fica assistindo, ameaçando entrar, mas não efetivando isto. Tanto na Mata, quanto na Barra, o número dos que se atreviam a entrar ali era de cinco ou seis, no máximo, e todos do sexo masculino. Algumas garotas também ameaçavam entrar, mas tudo fazia parte da composição do cenário do evento. Dentre os que entravam no curral, existiam aqueles que se negavam a “apanhar por bebida”, dizendo que entrariam apenas pra pegar dinheiro e comida. O mais comum era que estes faziam uso de grossos casacos, assim como de diversas camisas, como forma de amortecer as chicotadas, o que não impedia de se machucarem, expondo as marcas de suas conquistas. A multidão ao redor vibrava a cada tentativa, e incentivava aqueles que geralmente entravam no curral. A malhação do Judas ocorreu na sexta-feira da Paixão na Mata, e no sábado de Aleluia na Barra. Explicaram-me que antes ambas ocorriam na sexta-feira, como rege a tradição católica, mas essa havia sido a forma encontrada para que pessoas de um povoado participassem do evento no outro. Alguns dos “burros” eram acompanhados por suas famílias – geralmente pela mãe e irmãos – que ficavam com um saco recebendo os mantimentos. Também não foi difícil perceber que aqueles que entravam no curral, na maioria dos casos, eram os mesmos que tinham fama de viver bêbados nas duas comunidades. Ainda assim, se – como se deu na Mata – aqueles que pegassem mais prêmios fossem do outro povoado, isto seria usado como forma de enaltecer um grupo em detrimento de outro.

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Fig. 99: Malhação do Judas (Mata de Oitis) – 1

Fig. 100: Malhação do Judas (Mata de Oitis) - 2

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Chamou-me a atenção perceber que apesar de confeccionarem o boneco, símbolo do Judas, não há uma preocupação em destruí-lo como havia em outros lugares, e como eu mesmo tinha brincado. Terminada a “brincadeira” – como se costuma fazer referência a momentos como este – o boneco era baixado do mastro central do curral, deixado em um canto da rua, servindo, às vezes, de brincadeira para crianças. O Judas malhado era mesmo o “burro” chicoteado, assunto que circulava ao longo de dias após a “brincadeira”.

Fig. 101: Malhação do Judas – Barra de Oitis - 1

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Fig. 102: Malhação do Judas – Barra de Oitis – 2

Fig. 103: Malhação do Judas – Barra de Oitis - 3

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Além da malhação de Judas, existem outras festividades que também fazem parte do calendário anual da comunidade – o São João da Barra e o São João da Escola, que geralmente ocorrem na quadra esportiva da comunidade. Além dessas, ocorrem festas em espaços particulares na Barra, pertencentes a moradores da Barra.

Fig. 104 . São João da Escola

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Fig. 105: Ensaio do São joão

6. LAZER NO COTIDIANO DA BARRA Além dos períodos de festividades tradicionais no calendário da comunidade, apresentados acima, há na Barra de Oitis uma carência de espaços de sociabilidade e lazer – outro direito garantido constitucionalmente, porém deveras negligenciado. Exemplo disso é o fato da quadra de esportes – já bastante sucateada – que não possui iluminação fixa, o quê, consequentemente, impossibilita seu uso, tendo em vista que tanto ali, como na maior parte do território da Barra de Oitis, não se conta com iluminação pública. Como exibimos em algumas imagens acima, a quadra só é iluminada em decorrência de algumas festas, seja a de São João, ou mesmo promovidas por políticos locais ou pela própria comunidade. Uma das principais formas de lazer, que possibilita um sentimento de coesão entre a comunidade, de relação e de competitividade entre a Barra e as demais comunidades, são os torneios de futebol. Cada comunidade/povoados organiza um ou mais times – masculinos e femininos –, cada integrante paga uma determinada quantia em dinheiro para compor parte do prêmio. Além do dinheiro (que será repartido entre os integrantes do time vencedor), a premiação

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também conta com a entrega de um animal – costumeiramente um bode – geralmente oferecido em um churrasco em comemoração a vitória do torneio. Os diferentes jogos com baralhos são uma constante no cotidiano da comunidade. É bastante comum percebermos grupos de diferentes faixas etárias juntos nas calçadas para jogar cartas. Tão frequente quanto o carteado é o “Bozó”, que ao contrário do primeiro sempre ocorre com a presença de pequenas apostas. Sempre que há uma festa, um evento, ou apenas bares abertos, certamente alguém estará com uma mesinha do jogo, ou apenas com um tapete, ao redor dos quais jogadores e observadores se juntam para a partida. Assim como os bares, os espaços onde ocorrem os jogos são, em geral, frequentados pelos homens. As mulheres, apesar de beberem, não o fazem com a mesma frequência, ou, pelo menos, com a mesma visibilidade. O mesmo serve para o público que frequenta diariamente o pequeno salão, onde há uma mesa de sinuca. Tais atividades, além de exporem certas práticas histórica e culturalmente marcadas, indicam também para uma ação seletiva por parte do Estado – em suas diferentes instâncias – que parece ignorar que qualquer grupo humano necessita de lazer para o fortalecimento dos seus laços de pertença e empoderamento de sua agência, o que, por fim, faz parte dos direitos previstos para o exercício pleno da cidadania. O cenário da Barra de Oitis aponta para uma ociosidade institucionalmente legitimada, em especial quando nos deparamos com a falta de iluminação pública – que resulta em barreiras simbólicas para que as pessoas se reúnam 58 –, que somada a já referida falta de espaços públicos de sociabilidade – praças, quadras, etc – só reforça situações de ociosidade.

58

Em algumas ruas do centro da Barra há iluminação pública, mas ainda ali não é o suficiente. A noite é possível ver algumas pessoas reunidas na frente de determinadas casas, com iluminação própria mais forte, mas isto não se configura em uma prática comunitária.

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Fig. 106: Bozó

Muito já se falou acerca do uso de motos e sua importância – até como “substituta” do jegue – inclusive sobre elas serem símbolo de status entre quem as possui. No entanto, as motocicletas também se transformaram em uma das poucas formas de lazer, diante da precariedade generalizada vivenciada pelos moradores da Barra de Oitis, que, como já se destacou, tem mais uma evidência na falta de lazer.

7. ENTRE “HERDEIROS” E “QUILOMBOLAS” O processo de autorreconhecimento das comunidades negras rurais enquanto quilombolas torna explícitos conflitos e tensões já existentes entre os diferentes grupos e sujeitos que compõem o cenário pesquisado. No entanto, o que antes parecia mais velado, com o processo e luta por reconhecimento por parte dessas comunidades, se tornou mais explícito. As duas falas abaixo expressam a atual tônica da questão na Barra de Oitis:

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É que nem eu digo, se já tinha dono de terra aqui na Barra, agora é que vai ter. Mas eu pra mim que terra, Deus não vendeu terra pra ninguém. Ele deixou a terra pra todo mundo fazer o que comer em cima da terra (Pedro, genro de Maria Preá).

Eu não acredito que o governo vai fazer isso não... Faz 70 anos que eu tenho essas terras, 70 anos que eu sou propietário, sem falar nos meus antepassados. Eu não acredito nisso não, que o governo vai tirar a minha terra e entregar pra esse povo não (Zé Mangueira Barros)

Fig. 107: Fazenda Pai do Céu (1)

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Fig. 108. Fazenda Pai do Céu (2)

Fig. 109. Fazenda Pai do Céu (3)

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Longe de construir uma dicotomia, a partir da reprodução das falas acima objetiva-se apresentar duas questões iniciais: a fala do Zé Mangueira pode indicar como as relações de poder se constroem e se naturalizam. Ao se remeter a sua idade e a sua ligação com a terra a partir dos seus antepassados, ele aponta para uma trajetória genealógica, utilizada para legitimar o seu direito. O que ajuda a compreender o porquê da sua aparente incredulidade quanto ao Governo, por meio do INCRA, entregar todo o território da Barra de Oitis aos negros, como ele dizia. Sua descrença tem a ver com o fato de que sua família e os grupos com os quais esta estabeleceu alianças, historicamente eram detentores de um capital simbólico hegemônico. Dessa forma, Estado, Governos, instituições, lhes beneficiavam. O que aponta para a relação entre campo social e poder simbólico. De acordo com Bourdieu:

A verdade do mundo social está em jogo nas lutas entre os agentes que estão equipados de modo desigual para alcançar uma visão absoluta, isto é, autoverificável. A legalização do capital simbólico confere a uma perspectiva um valor absoluto, universal, livrando-a assim da relatividade que é inerente, por definição, a qualquer ponto de vista, a qualquer ponto de vista, como visão tomada a partir de um ponto particular do espaço social (BOURDIEU, 2004, p. 164).

Ainda que o jogo referido pelo autor se dê de maneira assimétrica entre os agentes nele envolvidos, tal assimetria pode ser questionada. Grupos que estiveram ocupando situações subalternas neste cenário, a partir de outra construção podem questionar o jogo, medir forças, o que certamente não se dá de maneira instantânea, tendo em vista que as relações de dominação se dão a partir de uma base cultural. A fala de Pedro remete a isso. Quando o interlocutor afirma que “agora é que vai ter” dono, ao falar sobre as terras da Barra. Dessa maneira ele questiona o discurso hegemônico, pois não reconhece nem mesmo seus atuais patrões como donos das terras que habita e trabalha 59. Sua postura contraria, em alguma medida, aquela que seu Aceno Roque tinha, que segundo Má, “não gostava de falar muito sobre os assuntos antigos, porque que existem pessoas hoje, que se acham importantes, se acham os donos e que não querem se misturar com os negros, né?!”. A observação de Má aponta para uma percepção que leva em consideração o processo de reconhecimento das comunidades negras rurais enquanto quilombolas, e consequentemente 59

Quando chegamos a sua casa, Pedro terminava de almoçar, e antes de sairmos ele já tinha ido limpar as terras de um tradicional fazendeiro da região.

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tendo direito sobre as terras, assim como destaca a tradicional relação de poder concentrado nas mãos de determinados grupos, como os Barros. Seu Zé Mangueira, afirmou por diversas vezes sua indisposição a deixar de ser proprietário das terras que herdou, mesmo com a indenização, pois, como disse “Sempre fui dono, agora, aos anos eu vou deixar de ser? Eu só digo uma coisa, enquanto eu não receber pelas minhas terras (do INCRA), se inventarem de construir casa nas minhas terras, eu venho e boto abaixo”. Pôr casas abaixo; cercar terrenos anteriormente utilizados por moradores da Barra; soltar o gado em plantações são algumas das práticas tradicionalmente presentes no cotidiano histórico da Barra de Oitis. A relação entre os negros da Barra e a família Barros permanece tensa na atualidade. É deles que os quilombolas esperam os maiores conflitos no que diz respeito ao seu direito às terras da Barra. Símbolo disso é a história que eles contam sobre a cerca elétrica que foi passada em parte do território da Barra. O “caso da cerca” serve como ilustração para a pergunta que este subtópico apresenta. Nele, os Marianos – antigos Nicacas – são atualmente impedidos de plantar na terra de que tradicionalmente alegam ter cuidado, não apenas pelas cercas postas, mas pelos “capangas”, os empregados que tomam conta das terras e que, armados, impendem qualquer possibilidade de plantio na região. Ao conversar com o senhor Roseno Mariano da Silva, 84 anos, filho de Manoel Nicaca, percebe-se certa revolta quando explica tanto o “caso da cerca”, que envolve inclusive a casa em que morava, quanto outras situações em que seus pais e irmãos foram submetidos. Ele explica que mora naquela região desde criança, junto com seu pai – Manoel Mariano da Silva – e sua Mãe – Querubina Mariano da Silva – e mais dez irmãos, dos quais apenas quatro continuam vivos. Antes de morarem na Barra de Oitis eles residiram em Terra Nova, outro povoado também considerado propriedade dos Barros. De acordo com seu Roseno, eles trabalham naquelas terras desde 1941. Conta que nesse período os filhos mais novos trabalhavam na roça todos nus, tendo em vista que não tinham roupas o bastante para que pudessem “estragar” na lida. Ele explicou que ao longo de muitos anos havia sido o seu pai quem pagou o “INCRA da terra 60”: “Ai eles (os Barros) tomaram o INCRA, não fizeram nada com ele. Ai quando o finado Joaquim Nica-

60

É assim que os moradores da Barra costumam chamar o imposto pago ao Estado pelo uso da terra.

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ca morreu, ai tomaram as terras. Hoje ninguém trabalha com a terra porque eles não deixam”. Segundo Dona Francisca:

A Maria de Lourdes, essa de que ele tá falando... O pai dele criou essa Maria de Lourdes, carregava pra todo canto aqui ó, no espinhaço, nas costas. Ai depois eles tomaram tudo, num sabe?! Quando nós plantemos pro ano, ai ela veio e mandou quebrar o milho (em 2003). E o resto foi devorado, ela botou os gado. Ele não podia plantar mais, mas tinha os filhos, tinha eu. Mas ela não deixou plantar não. O açude 61 ai não serve pra gente não, porque o gerente que ela botou lá não deixa.

Fig. 110: Dona Luisa (57 anos)

Além dos impedimentos para o uso da terra – seja para o plantio ou para o uso da água –, também foi cercada parte do território com uma cerca elétrica. Dona Luisa explica:

61

O açude fica próximo a casa de seu Roseno.

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Primeiro eles vieram aqui assustar nós, mas nós não nos assustamos não. Eles vieram, sentaram aqui, chamaram ele (Roseno) e disseram que se nós não quisesse ficar encurralado, nós ia ter que sair daqui, porque ia fazer uma cerca elétrica aqui. Ai ele com a sua idade bem alta, já é uma pessoa de idade com poucas palavras... Mas eu disse: Olha doutor Orlando, uma coisa eu vou dizer pro senhor... O senhor quer tirar o meu marido daqui já com essa idade todinha... Ai eu disse, olha doutor Orlando, mas o senhor não vai tirar não. Sabe por que? Porque eu sei de tudo aqui. Eu sei que ele chegou aqui pequeno. E essa história, quando ele não tava nessa idade, que tinha a mente boa, ele uma vez me contou. Ele chegou aqui pequeno, então o pai dele serviu de escravo pra sua sogra, e tá aqui, esse INCRA aqui quem pagava era o pai dele. Tudo aqui quem comandava era o pai dele, tudo, tudo. Aqui vocês não vinham pra nada, tudo aqui quem fazia era o pai dele... E agora você vem querer por ele pra fora, pois num vai não! Ai ele era tão infernizador que disse assim: “Não?! Apois então vocês vão ter que aguentar”. Não vai fazer nos nosso espinhaços, pode fazer. Ainda pegou os documentos dele (Roseno), levou pra Itaporanga. Eu sei que eles bem que escavocaram... Ai, pra saber se nós ficava ou não, eles fizeram a cerca (elétrica). Botaram a cerca nessa terra todinha, daqui até lá no são Joaquim.

Manoel Nic ac a

Querubina Eugênia da Conc eiç ão

Manoel Mariano da Silv a

Luiz a

Es merina Bez erra da Silv a

Ros eno Mariano da Silv a

: Maria de Lourdes Bez erra

A ntonia Figueiroa de Souz a

A ntonio Juc a de Souz a

Rita Mariano da Silv a

Jos é Mariano da Silv a

Maria Bez erra da Silv a (A lex andre)

Is aac

Fig. 111: Arvore Genealógica Roseno-Luiza

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Luis Delf ino de Lima

Fig. 112: Cerca elétrica Ao andar de moto pelas terras da Barra, pude observar a extensão da referida cerca. De fato, ela passa pelos fundos da casa do seu Roseno Mariano, indo até os limites de outra propriedade, a fazenda São Joaquim. Ainda sobre isso, foi significativo saber que próximo à casa do seu Roseno, ficava um cemitério. Onde hoje se vê apenas um pedaço de madeira fincado no chão havia um cruzeiro, marcando a entrada do cemitério, que também teve seu território incluído no cercado. “Tem muita criança e muito velho enterrado ali”, falou Má, ao explicar que com a fundação do cemitério municipal de Diamante, por volta dos anos 1950, a população da Barra foi obrigada a desativar o cemitério.

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Fig. 113. Cerca elétrica (2) Em outra conversa com seu Roseno Mariano, Gal e dona Luiza, algumas questões acerca dos conflitos com a terra, o “caso da cerca” e outros assuntos foram retomados:

Roseno: Todo ano botava uma roça. A gente tudo nú na roça. Ele cavando e nós plantando, porque não tinha roupa. Ia nú. Não tinha roupa não. Se tivesse dez filhos, era tudo nú. Nuzinho, despido. Pra cima e pra baixo. Gilson: E me diga uma coisa: o senhor me disse uma vez, que seu pai se criou junto com gente dos Barros, e tal ... quem era dos Barros, que cresceu junto do seu de vocês? Roseno: Era o pai do fiado Zé Antonio alí, Sula Barros, João Antonio Barros, Nezinho Barros... Gilson: Era tudo perto? Roseno: Era. Nós foi criado tudo que nem irmão. Gal: Esses três grupos, né?! Os Nicacas, os Querumbins e os Barros, praticamente cresceram juntos. Gilson: As famílias: os Luca, os Nicacas, os Querubins que se misturam. E os Alexandres, vieram de onde? Roseno: Da Barra. Gilson: Mas dona Luisa me falou uma vez, que vocês hoje em dia não podem plantar, e os Alexandres podem. Gal: Mas assim, é pelo o fato dos Nicacas por exemplo, terem nascido e se criado aqui... Luisa: Agora o pai dele era quem pagava o Incra dessa terra. Gal: Aí assim, pra não dar os direitos, eles vetaram. Só tem o direito de plantar. Luisa: Tá com cinco

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anos que Maria de Lurdes criou isso aí. Já com medo deles criarem outra lei, e eles terem direito na propriedade, mas quem pagava o Incra era o pai dele? Essas prpriedades aqui, era tudo por conta do pai dele. Fazia moagem, era o pai dele que criava gado, carneiro e tudo. E no tempo da moagem, ele enfretava essa luta. Aí depois nós plantamos, aí falaram a Maria de Lurdes, que ia chegar um tempo, que se a pessoa cuidasse de uma propriedade e tivesse 60, ou era 65 anos, não tinha quem tirasse mais. Ai ela veio com o genro dela, e mandou nós quebrar o milho. O milho ainda tava verde. Que até perdemos. Nós não lucramos nada. Porque ela mandou quebrar o milho, e não era pra plantar mais de jeito nenhum. Aí ele (Roseno) disse: ‘’mas se eu for pra justiça, eu tenho direito’’. ‘’Aí o Zé Neto, que é o capanga dela falou: pode ir pra justiça, podem ir’’. Aí nós foi pra justiça. Mas é como a história: ‘’o rico é um peixe grande, e os pobres um peixe pequeno’’. E nós como era o peixe pequeno, quem teve o direito foi ela. Mas ela não teve direito de arrancar nós daqui. Ele conta que quando chegou aqui, era pequeninho. O pai dele (Roseno), disse que criou essa Maria de Lurdes, que andava com ela nas costas. E agora depois, olhe o que foi que ela fez.

Fig. 114. Cerca elétrica (3)

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Outra característica muito presente na relação entre os Barros e alguns sujeitos que moram na Barra de Oitis é o fato de que alguns destes foram adotados por “herdeiros”. Este é o caso de Chico Preto e esposa de Antônio Elias. Maria Ester: Meus pais verdadeiros eu num posso dizer, porque eu não alcancei eles... Meu pai se chamava Vital e minha mãe se chamava Francisca. Gilson: E a senhora foi criada por quem? Maria Ester: Luís Antônio da Silva Barros. Gilson:Ah! a senhora foi criada por um dos Barros? Antônio Luís da Silva: Foi... ela foi criada por um dos Barros...

A adoção nesse contexto remete a práticas tradicionais, que no caso de dona Maria Ester se deu a partir da morte de seus progenitores, mas que se faz presente no cenário da Barra de Oitis a partir de outros fatores, os quais devem ser analisados cuidadosamente. Em todos os casos observados, nenhuma das pessoas adotadas sob condições semelhantes – pais mortos ou advindos de famílias miseráveis socioeconomicamente, por exemplo – receberam por parte de suas famílias o mesmo tratamento que os filhos consanguíneos. Uma das filhas de dona Maria Ester, afirma que “eles cresceram juntos, mas assim, ela era como uma empregada, né...”. No entanto, mesmo apresentando uma dicotomia assimétrica na relação entre os filhos consanguíneos e os adotados, a relação estabelecida é apresentada como sendo boa, sem distinções e preconceitos. O que não se coaduna, por exemplo, ao observarmos que dona Maria Ester não foi alfabetizada, enquanto que suas irmãs, em geral, cursaram faculdade. Os relatos abaixo nos remetem também aos conflitos vinculados à posse das terras, assim como a uma preocupação dos interlocutores em não perderem o direito de plantar na terra que Maria Ester recebeu de sua mãe.

Gilson: Certo. Eu tava falando com sua irmã dona Cícera Elias e ela me contou que no tempo ruim o pessoal saia daqui pra outro lugar pra trabalhar. O senhor já saiu daqui pra outro lugar pra trabalhar? Antônio Luís: Saí... eu sempre fui à Juazeiro... foi em oitenta e três. Taciana Lelly: E o senhor saia pra trabalhar de que lá? Antônio Luís: Eu ia trabalhar de servente. Passei um ano e oito mês. Gilson: E todo este tempo que o senhor trabalha com a terra, vocês tem liberdade de plantar? Os “dono da terra” não implicam não? Antônio Luís: Não. Porque agente planta nessa terrinha aí que foi dado a minha mulher... Filha 1: Foi a minha vó que deu pra ela.

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Antônio Luís: Logo quando eu cheguei, agente podia plantar até daqui pra’li. Gilson: Mas aí... depois ela a Zilda disse que vocês não podiam mais plantar ali.

Hoje em dia vocês não podem plantar mais aí não... Filha 1: Hoje mais não... aí agora tem quem plante. Gilson: São os empregados de Zilda ou... Maria Ester: são os empregados dela Filha 1: Teve até uma época que meu pai plantou e deu bastante fava... aí o outro dono que era Zezinho Barros veio e nem deixou agente tirar as fava e botou o gado dentro. Gilson:Você já tava criada já? Filha 1: Já... já entendia de gente já. Meu pai já me botava pra trabalhar.

Azilda Barros 62, apontada na fala acima, demonstra todo o seu incômodo com os usos de “suas” terras na Barra, defendendo a necessidade urgente de cercar diversos lugares, inclusive o que é utilizado como campo de futebol, o que foi explicado durante uma entrevista realizada ao mesmo tempo com ela e Bugari.

Azilda: Quando a propriedade estava no nome de um aí a escritura era tomada de partida... aí minha mãe teve a partida dela, e os outros também tiveram parte da herança da mãe dela. Aí depois foi as compra que ela fez aquelas terra toda, todas... que até hoje tenho uma raiva... tenho que cercar... eu vou cercar ali. Ali num tem um campo de pelada, dizem que é o maior campo de pelada do município... num tem pra que campo de pelada! Era pro prefeito comprar né?! Bugari: Me diga uma coisa... ali lá de fora, tem documento aquela terra? Azilda: E num era a terra de seu Zé que vendeu a minha mãe. Bugari: Por que aí é o seguinte... por que ninguém e nem pode só se a senhora quiser passar uma escritura pra mim e vender, mas só se tiver documento né?! Azilda: Sim... se for escritura cívica minha, aí eu posso passar. Agora eu num posso passar por que sou herdeira.

O campo de futebol fica ao lado da casa de dona Cícera Elias, que cercou um pedaço de terra ao lado da sua residência. Todos na Barra de Oitis sabem do conflito entre dona Cícera e Azilda, e que esta última ameaçou derrubar qualquer outra construção que Cícera fizesse no terreno. Cícera Batista: Assim, se agente tivesse a liberdade de fazer, assim uma comparação como eu moro aqui nessa casa né? Essa casa eu não posso fazer de tijolo porque os dono não deixa... Gilson: A senhora fala dos donos, que donos? Cícera Batista: A Zilda... isso que pertence a ela... Até um filho meu já casou... Gilson: Casou?

62

O nome completo desta interlocutora é Azilda Leite Messias, mas é conhecida como Azilda Barros. Durante a conversa ela lamentou não ter o nome na sua certidão. O uso do nome Barros entre os “herdeiros” tem uma importância semelhante.

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Cícera Batista: casou ontem e queria ficar até aqui, mas... por causa que foi um casamento rapidinho né? Gilson: Nas pressas. Cícera Batista: É nas pressa... e a vontade é de fazer uma casinha aqui... derrubar e fazer aqui pegada com a minha e tou sem... nem posso comprar o chão porque sou pobre. Aí se acontecesse pelo menos... se nós tivesse a liberdade... Se eu fizesse isso, não queria o terreno pra mim não... só queria a moradia. Num queria a terra não... só queria pr’o onde ter onde morar... vocês veja que esse quintal que eu fiz aí... isso foi... foi tanta questão por causo que era até essa bola de mato... Aí eles judia de galinha com a peteca.. eles matava galinha... eles botava arapuca pra pegar a galinha. Aí eles tinha umas festa p’raí... aí tinha uns maus encontro... que eu via coisas estranhas aí... gente usando droga...

Há um discurso comum entre os moradores da Barra de Oitis de que não existem documentos comprobatórios, escrituras públicas, das terras. Apesar disso não se confirmar totalmente quando observamos os documentos – em anexo – entregues pelos funcionários do cartório, não deixa de ter algum fundamento. Estes documentos apresentam o nome dos proprietários das terras, seus herdeiros ou compradores das terras da Barra. Dentre os proprietários originais das terras foi interessante ouvir que seu Aceno Roque aparece como um dos proprietários originais das terras, ainda que com um território bem menor que outros proprietários. Na referida conversa também foram expostas pelos interlocutores as estratégias de legitimação e deslegitimação que marcam profundamente os jogos de poder neste cenário, podendo ser vista, inclusive, como metáfora do que se percebe no cotidiano da Barra 63.

Gilson: A terra de vocês lá na Barra qual é o tamanho hoje em dia? Porque é de herança né?

Azilda: Foi de herança e dividido as parte! Gilson: Eu sei... aí foram juntando. Azilda: – Foi...é por que ali era propriedade da minha vó. Bugari: Por que hoje ali nos Romeu, no INCRA lá em João Pessoa é da Barra de

Oitis. Ali chama Romeu por causa de um véio que morou lá né... que chamava Romeu. Aí depois que o veio morreu, que era as historia que meu avô dizia, aí ficou o apelido por Romeu... por que esses terreno que eles tem, foi comprado mas num tem escritura... Lembra do seu... Piancó? O Veio Piancó era o dono daquela propriedade n’era? Aí... Quando meu tio-avô vendeu... Azilda: Eu ainda me lembro que o povo falava da Raquel... Bugari: Era a Raquel! Que era a viúva de Manoel Piancó. Gilson: A senhora cresceu aqui? Azilda: Não. 63

O trecho é longo, mas preferimos retratá-lo dessa maneira, tendo em vista que contém importantes elementos acercada dinâmicas genealógicas que dão forma às tensões presentes na cotidiano da Barra de Oitis.

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Gilson: Então a senhora quando foi crescendo não teve muito contato com a Barra não? Azilda: Não... Gilson: Me diga uma coisa... a senhora lembra de alguma historia assim... por que... quando agente ouve, por exemplo, nessa vinda do pessoal com os escravos que a senhora falou que sua bisavó trouxe né...? Azilda: A minha mãe me falava... se é verdade eu não sei...! Gilson: Não... mas aí faz parte das historias que eu estou colhendo aqui pra juntar. Mas depois disso, lá pra uns cinquenta, sessenta anos atrás, o povo da Barra trabalhava pra sua família? Pro seu pai, seu avô...? Gilson: Eu acho que ali todo mundo! Bugari: Morreu inclusive um véio que trabalhava com seu João Antônio... ele nunca trabalhou um dia a ninguém – a não ser a ele, o patrão atual. Foi libertado os escravo e ele ainda ficou como escravo trabalhando pra ele! Gilson: Como era o nome dele? Bugari: Era Baião Luca, fio de Pedro Luca. Azilda: Eu não sei quem é a família Luca... Bugari: Foi sua Bisavó que trouxe! Gilson: Me tire uma dúvida. Uma coisa eu estou tentando entender é a partir de o seguinte: Teve alguém da família Barro que se casou com alguém da Barra. Não tem? Que chamam de ‘os Barro preto’. Bugari: Sim. Pedro e Alfredo era da família da minha mãe certo? Aí veio os Barro branco que é esses que a avó dela trouxe de Portugal que vieram pra Olinda... Azilda: E tinha outros escravo na Barra? Bugari: Tinha. Antes de seus bisavô chegar eles já existia sabe? Azilda: Esse meu bisavó ele lutava muito, ele era tipo... líder. Era uma liderança né. Aí mamãe conta que ele morreu por que foi defender um desses pessoal dele. Gilson: Aí ele morreu nessa história? Azilda: morreu. Agora não sei se ele morreu em Princesa Isabel ou na Barra. Bugari: E história que eu sei décor... ele foi defender... um cara matou o tio de minha mãe certo? Aí correu pra casa dele do bisavô dela (João Antônio Barros)... Azilda: Naquela época eram os Coronéis. Bugari: Era os coronéis do município. Ele chegava e dizia, se a pessoa fizesse alguma coisa, só podia chegar “por que foi que aconteceu?”, se dissesse assim: ‘foi assim, assim...’; “apanhou ou não?”, “pois se num apanhou passe pra dentro! Que aqui eu resolvo o caso... com a policia eu resolvo o caso!”. Nesse caso, não tinha cartório... num tinha coisa por aqui. Aí todo mundo resolvia as coisa na Princesa. Aí quando foi fundado Itaporanga foi que nossa comarca foi passada pr’aqui né? Ele foi resolver essa causa pra lá e terminou morrendo lá. Gilson: Lá em Princesa Isabel? Bugari: sim lá em Princesa. Depois da morte dele... veio um filho dele... Gilson: Qual era o nome? Bugari: Que era... assim... bem querido pelo pessoal... o nome dele era Zefinho Barros. Azilda:– Ahhh... Zefinho era vice-prefeito daqui (Itaporanga)!

O capital social da família Barros – ou grupos ligados diretamente a eles – pode ser notado até mesmo ao se andar pelas cidades de Diamante e Itaporanga, seja pelos nomes das ruas, dos prédios públicos ou dos políticos da cidade.

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Fig. 115: Fachada da prefeitura de Diamante.

Fig.116: Nome de rua (1)

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Fig. 117: Nome de rua (2)

Fig. 118: Cemitério Jardim da Saudade, fundado por Hermes Mangueira Diniz

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Fig.119: Jazigo da família Barros

Como já foi apresentado, até o nome da escola na Barra de Oitis é uma homenagem aos Barros. Isto indica a posição deste grupo enquanto estabelecido, o que tradicionalmente proporciona que tal família imponha seu modus operandi aos demais. Explicando assim a postura, por exemplo, apresentada na fala de Zé Mangueira, trazida no começo da sessão. Postura semelhante pôde ser percebida na fala de uma de suas filhas, Heloisa Mangueira Barros: “Quer dizer que essas terras serão entregue pra esse povo da Barra? Vixi, não vai dá certo não, é um monte de gente preguiçosa!”. Sobre tal visão, Maria do Socorro – assistente social – oferece sua percepção, a partir de uma análise sobre a forma como as pessoas na cidade compreendem a questão do processo de reconhecimento da comunidade da Barra com quilombola e “futura dona das terras”. Eu já ouvi o seguinte: dos dois lados. Já ouvi pessoas dizerem que são a favor, até por conta dos antepassados. Por exemplo, tem alguém na família, dos antepassados que já trabalhou muito e em troca tiveram muito pouco.Também já ouvi pessoas falarem – foi menos – que não, que eram contras, que os donos das terras eles tinham o direito de não dar essas terras pra o povo que não quer traba-

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lhar. Então, eu já ouvi dos dois lados, mas a primeira opção é sempre a mais falada, de que eles têm o direito porque já sofreram muito, foi um povo muito massacrado, foi um povo muito maltratado até hoje pelos os donos das terras, que não tinham direito a nada, que muitos morreram com fulano de tal trabalhando, e outro dia o fulano de tal nem com os familiares aquelas pessoas falam mais, essas coisas todas. Têm esses discursos. Só que a gente fica assim um pouco sem querer interferir muito, né?!

Ao apontarem para sua história e para o presente, é comum a ênfase, por parte dos moradores da Barra, tanto na disposição para o trabalho, quanto no fato de que muitos venderam suas terras durante os períodos de fome.

O senhor num ouviu eu dizer que minha mãe deu uma casinha no tempo da seca... aí o povo tava tudinho indo embora pra Campina Grande... minha mãe pegou a casinha que nós morava e deu por uma cunha de milho ao finado Luís Pereira Barros... essas terra aqui era dele. Aí minha mãe deu a casa... se você quiser eu vou lá mostrar é o canto... aí quando mamãe chegou no carro disse: Deus me defenda! Eu ir matar meus filhos me Padrinho Padre Cícero! Nossa senhora me livre! Aí botou o povo e minha mãe disse vão com Deus que eu fico com meus filhos. E num morremo nenhum de fome (Dona Luizanita Nicaca).

Se a ideia de que o povo da Barra de Oitis é preguiçoso é algo presente em discursos que visam deslegitima-los, por outro lado é a relação intensa com o trabalho que é ressaltado por muitos, de maneira orgulhosa. O trecho da conversa abaixo, tanto retrata esta questão quanto aponta para as tentativas de se tomar os pequenos lotes de terras herdados por alguns moradores da Barra.

Sátiro Delfino: Meu emprego era o cabo de uma inchada... no pesado... nunca tive outro emprego... hoje não tou com a vida mais pesada... o governo me deu aposentadoria... trabalho mais é pouco... eu acho bom... trabalho, mas é bem pouquinho porque não posso trabalhar mais. Sátiro Delfino: eles queriam tomar... Gilson: Eles (os Barros) queriam tomar aqui? Sátiro Delfino: Conseguiram não né?! Num podia deixar! Isso aqui foi um bem adquirido desde o pai dela que comprou isso aqui... casou-se. Aqui é assim... o caba já num tem e os outro quer cutucar... tem cuidar do que é da gente, que se num cuidar quem vai né?! Gilson: Foi os Barros que queria tomar essa parte aqui? Sátiro Delfino: Foi! Queria tomar... os Barros... Gilson: Qual dos Barros? Sátiro Delfino: João Antônio Barros!

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As terras descritas por seu Sátiro foram uma herança que sua mulher, Expedita Roque da Silva, e seu cunhado, Aceno Roque da Silva, receberam do pai, José Roque da Silva, único quilombola entre os proprietários listados pelo cartório. O referido lote de terra tem apenas 22 hectares, ficando 11 para cada um dos filhos de José Roque. Entretanto, é importante sinalizar que os herdeiros desse pedaço de terra, após esclarecimentos e discussões durante as reuniões realizadas pela Associação, se mostram favoráveis a terem sua propriedade incluída no território requerido pela comunidade, compreendendo que não haverá desvantagens pessoal e coletiva nesta decisão. Alguns conflitos relacionados ao processo de regularização fundiária que envolve o território da Barra de Oitis parecem ter se dado a partir da intensificação do trabalho de campo. Como dito anteriormente, em todas as incursões realizadas a Barra de Oitis foram reivindicadas reuniões junto à comunidade, geralmente acompanhadas por um fazendeiro da região, que havia adquirido suas terras por meio de compras. Quando este ouviu algumas questões relacionadas ao processo de reconhecimento da posse coletiva das terras, afirmou, para que todos ouvissem: “Vixi, mas isso ainda vai dá muita morte”. Esta frase reverberou ao longo de meses, intimidando alguns moradores. Eu acho assim... por que vai mudar a vida de quem não tem (terra) né?! Porque aqui agente já tem. Essa terra aqui é da gente... e mesmo que agente não tivesse nós não ia fazer questão. questão assim... com os donos de terra, por que a maioria é violenta né? Aí eles fica com raiva do povo... isso vai dar muita morte.

A fala acima foi dita por uma das filhas de seu Antônio Elias, que também explicou que sua preocupação se deu depois da frase ouvida durante a reunião, e também por meio de boatos. Outros rumores correram na comunidade enquanto realizávamos o trabalho de campo. Quando se visitou a casa de seu Sátiro, tanto ele quanto sua família não foram inicialmente receptivos, o que ao longo da conversa se explicou: falaram-lhes que eles perderiam a terra na qual moram há várias décadas. Os discursos que buscam legitimação a partir da genealogia do nome e utilizam de boatos, apontam para uma preocupação por parte dos grupos tradicionalmente dominantes em perder um dos símbolos de poder, a terra. Enquanto que os moradores da Barra, de uma forma geral, expõem outras preocupações com a regularização fundiária, que em geral se relacionam ao trabalho que poderão desenvolver, estabelecendo negociações entre si, sem precisar do aprove

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de grupos externos, também tendo, a partir disso a possibilidade de construir novas casas, dessa vez, de tijolo ou alvenaria.

8.

DIMENSÕES DO TERRITÓRIO DA BARRA DE OITIS

Como se destacou no começo do texto, não se apresentará aqui dados topográficos acerca das dimensões e limites do território da Barra de Oitis, no entanto, buscou-se oferecer um panorama geral baseado na percepção histórica e socioculturalmente construída, individual e coletivamente, por moradores da Barra de Oitis, antigos proprietários e outros interlocutores, conhecedores da questão fundiária, conflitos, e outras questões relacionadas. Além disso, acessouse documentos cedidos pelo INCRA-PB e pelo 2º Cartório de Itaporanga, responsável pelas questões fundiárias da região do Vale do Piancó. São aproximadamente vinte quilômetros de estradas que demarcam os limites das terras da Barra de Oitis. Tomando como referencial o centro da Barra, marcou-se em média três quilômetros de cada fronteira até o centro da Barra 64. As terras da Barra de Oitis são bastante povoadas, havendo uma concentração maior no que os moradores chamam “centro” da Comunidade, mas por toda a sua grande extensão podese encontrar residências. Tive a oportunidade de conhecer os limites das terras, indo aos quatro cantos, percebendo, tanto a quantidade de residências habitadas ao longo de todo o trajeto, como também a quantidade de cercas ao longo de toda a extensão do território.

64

Medidos a partir do velocímetro de motos. Cada um dos pesquisadores foi levado em motos até as fronteiras que os interlocutores consideravam como sendo os limites da Barra de Oitis.

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Fig. 120: Fronteiras com as terras da Barra de oitis

Entre os moradores da Barra de Oitis parece haver uma noção muito clara de quais são os limites da terra: Patuscada, Laurindos, Roça Nova, Terra Nova. Cada um desses nomes remete a propriedades comumente apontadas como não fazendo parte do território da Barra.

Fig. 121: Laurindos

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Fig. 122: Patuscada

Fig. 123: Roça Nova

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Fig. 124: Terra Nova

Como não houve uma medição dessas terras, o que existe são dados incertos oferecidos pelos documentos disponibilizados pelo INCRA e pelo cartório. Há uma disparidade enorme entre os dois grupos de documentos, o que se explica pelo fato de que nem um, nem o outro órgão, possuem todas as informações acerca dos proprietários das terras. De acordo com o primeiro lote de documentos existem 788 hectares de terra dividida entre diversos proprietários. O gráfico abaixo foi confeccionado a partir desses dados.

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Hectáres/Nº de proprietários 1,0000 a 5,0000 há.

23%

31%

6,0000 a 10,0000 há. 11,0000 a 20,0000 há. 15%

8%

21,0000 a 30,0000 há. 31,0000 a 40,0000 há.

8%

15%

41,0000 a 50,0000 há. Acima de 51,0000 há.

Total: 788,2

0%

65

Fig.125: Proprietários/hectares

Quando se analisam os dados obtidos a partir dos documentos do cartório, no qual estão listados os proprietários de terras na Barra de Oitis que possuem escritura pública, vê-se 1288 hectares de terra, divididos entre o que chamamos de proprietários antigos, herdeiros e compradores 66.

65

Convém lembrar que três proprietários, entre os listados nos referidos documentos, não foram encontrados o tamanho de suas propriedades. 66 Essas categorias servem apenas para se diferenciar a relação que se estabelece com as propriedades da Barra de Oitis. Compradores, neste caso, são apenas aqueles que compraram terras dos proprietários antigos, não tendo ai qualquer relação genealógica.

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Tipo de proprietários Proprietários antigos

Herdeiros

Compradores

Total

10%

50% 38%

2%

Fig.126: Gráfico de proprietários 67

Os aproximadamente 1.788 hectares acima apresentados estão relacionados a pessoas físicas, no entanto quando se observa atentamente os documentos cedidos pelo cartório, percebese que há grandes faixas do território da Barra de Oitis pertencentes à União. De acordo com estes documentos – nos anexos – há pelo menos três terrenos pertencentes ao Estado da Paraíba, um deles adquirido por meio de desapropriação – muito provavelmente por dívidas de algum proprietário – e os demais sob os cuidados do Instituto de Terras e Planejamento Agrícola da Paraíba 68 (INTERPA-PB): o primeiro medindo 6.042 hectares e um segundo medindo mais de 3.000 hectares 69. Diante disto, considera-se que o território da Barra de Oitis ultrapassa os 10.000 hectares. Ao longo do trabalho de campo foram realizadas inúmeras reuniões com os moradores da Barra de Oitis, nas quais as maiores preocupações era compreender a extensão das terras que poderiam vir a ter direitos; como se daria a divisão e/ou uso dessa terra entre eles; e se 67

Fonte: documentos cedidos pelo cartório de Itaporanga (ver anexos). http://www.interpa.pb.gov.br/historia.html 69 O número deste segundo terreno sob os cuidados do INTERPA-PB não ficou claro no documento cedido pelo cartório devido a algum erro de digitação. 68

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atrairiam algum risco de morte para si e suas famílias. Esta ultima questão tornou-se central, tendo em vista o medo de represálias, que tem relação tanto com os conflitos historicamente marcados – como se demonstrou anteriormente – como com situações suscitadas pelo atual processo de autoidentificação. Isto pode ser ilustrado a partir de uma situação vivenciada durante umas das reuniões: um dos atuais proprietários, oportunamente participando de uma das reuniões, ao compreender como se daria que o processo de autoidentificação da comunidade poderia culminar na entrega das terras – que inclui sua propriedade –afirmou: “Vixi, mas isso ainda vai dar muita morte!”. Esta frase reverberou bastante entre os quilombolas da Barra, sendo repetidas inúmeras vezes, e sendo relacionada com situações vivenciadas ao longo da história da população, como a derrubada de casas, a proibição de plantios em áreas onde eram tradicionalmente realizados, assim como a tentativa de expulsar alguns antigos moradores de suas casas, como foi o caso de seu Rozeno Mariano, situação já narrado. A preocupação dos moradores da Barra de Oitis acerca de como ficaria o uso das terras quando eles fossem coletivamente seus proprietários se explica, ao menos em parte, tanto pelo fato de não terem estabelecido uma relação de proprietários da terra – a despeito da indubitável presença de seus antepassados há aproximadamente três séculos – como pela quantidade de pessoas residentes no território. Esta ultima questão vem servindo como um dos principais motivos para que a comunidade requeira todo o território, incluindo as propriedades sob a posse de antigos e/ou novos proprietários das terras – com escritura pública registrada em cartório – e também aquelas sob os cuidados do estado paraibano e do INTERPA-PB. Os próprios moradores da Barra de Oitis explicam que todo o território – salvo alguns lugares de solo mais pedregoso – quando há água, é apropriado para o plantio, e que tendo acesso a todo o território da Barra de Oitis haveria espaço para todos. Nesse sentido, destaca-se novamente a importância do reconhecimento legal de todo esse território como de posse coletiva dos moradores da Barra de Oitis, enquanto território de remanescentes de quilombo, tendo em vista que há possibilidade de verbas direcionadas – a partir do Programa Brasil Quilombola – para diferentes atividades, destacando-se ai a agricultura. Não são poucos os moradores da Barra de Oitis que, sendo agricultores, já não podem desenvolver tal atividade – importante socioeconômica e culturalmente -, dependendo quase que totalmente de programas do Governo Federal, em especial do Bolsa-Família, ou, como já foi

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apresentado, de trabalhos sazonais, principalmente do corte da cana-de-açúcar ou colheita de laranjas no interior paulista.

9. GUISA DE CONCLUSÃO Ao longo de todo o presente relatório buscou-se apresentar os pormenores da trajetória de um povo que, subjetiva e coletivamente, habita a região da Barra de Oitis há pelo menos dois séculos. As formas de dominação se naturalizam, mantendo os sujeitos subservientes, muitas vezes compactuando inclusive com a permanência de estigmas que lhes são infligidos. No entanto, o caráter não natural dos jogos de poder tornam eles possíveis de serem questionados e até mesmo contrariados. O processo de invisibilização social imposto aos moradores da Barra de Oitis torna-se evidente ao observarmos diferentes fatores das configurações sociais. Dentre estes, apresentamos alguns dos relatos históricos, documentados por Mendes, nos quais não encontramos quaisquer relatos sobre as diferentes comunidades quilombolas que fazem parte do município. Ainda sobre isso, explicitou-se que o documento fala de diversos grupos familiares, dentre eles os Barros. Curiosamente, tanto ao ouvir os relatos dos moradores, quando dos próprios “herdeiros”, nota-se que a chegada de, pelo menos, dois grupos de negros – então escravos – os Nicacas e os Lucas, havia se dado juntamente com este, mas nada se fala sobre isto. Acerca do referido processo, buscou-se destacar como sua aceitação, legitimação e perpetuação apresentam fortes e perversos efeitos na atualidade, e que por isso ganham uma aparência de natureza, de algo que não pode ser modificado. No entanto, o processo de autorreconhecimento dessas comunidades, enquanto remanescentes de quilombo, possibilita certos rompimentos com tal situação, tendo em vista que a posse da terra, neste caso, não aponta para um território pretendido, e sim para uma área a ser recuperada. Falar em área a ser recuperada nos remete diretamente a ideia de que os moradores da Barra já teriam sido proprietários, ao contrário do que se percebe nas falas dos “herdeiros”, os quais negam totalmente a possibilidade de um dos “negros da Barra”, em algum momento terem sido proprietários de terras. Inversamente a isto, quando analisamos os documentos cedidos pelo

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cartório, encontramos o nome de José Roque da Silva, pai de Expedita Roque e de Arsênio Roque, falecido.

Fig. 127: Localização do espólio de Josè Roque da Silva

Seja na conversa com seu Sátiro Delfino – esposo de Expedita Roque – ou nas reuniões com os moradores da Barra de Oitis, é possível perceber os efeitos dos conflitos que envolvem o território tradicionalmente por eles ocupados. Se no caso do espólio dos Roques havia toda uma preocupação em não terem suas terras tomadas pelos “herdeiros”, no caso dos moradores o anseio pelo reconhecimento do seu direito a fazerem um uso livre do território era sempre patente. Se por um lado, como se explicitou, não podiam plantar, ou mesmo construir casas, em virtude das constantes ameaças de terem gados postos propositadamente para destruir plantações ou tratores para derrubar suas casas, por outro lado alimentam a esperança de não mais precisarem viver dessa maneira. Tal desejo tornava-se evidente no sempre crescente número de pessoas

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que participavam das reuniões; das buscas por afirmarem sua ligação tanto entre si – “é tudo uma família só” – como com a terra que habitam, não apenas materialmente, mas simbolicamente. Os estigmas sofridos ao longo de séculos aparece, dentre outras formas, como medo de falar sobre os conflitos, ou mesmo de assumir uma postura de enfrentamento. Nesse aspecto, o que se observou ao longo de todo o período de trabalho de campo que deu forma ao presente documento, é que a população da Barra de Oitis vem se empoderando, a partir da gradativa descoberta de seus direitos (individuais e coletivos), afirmando-se enquanto quilombolas, e, por consequência, fortalecendo uma imagem positiva de sua história, e, porque não dizer, de sua autoestima. Se nos primeiros contatos os moradores da Barra se mostraram bastante desconfiados, sem disposição para expor seus relatos acerca da história oral – em geral detida pelos mais velhos – e do que haviam vivido mesmo recentemente, aos poucos – com o estabelecimento de uma relação de confiança – foram expondo inquietações, que em muitos casos tomavam a forma de denúncias. Exemplo disto foram os vários relatos – já expostos – acerca das ameaças, das “compras” de grandes pedaços de terra em troca de um quilo de cereal, por exemplo, ou mesmo do caso que se tornou emblemático – bastante recente – da cerca elétrica que foi passada em parte do território a mando de Maria de Lourdes Vieira Barros. Muitos dos antigos moradores da Barra de Oitis estiveram em silêncio, o que na verdade funcionava como uma estratégia para lidarem com as formas de dominação sem que sofressem mais do que já haviam sofrido. Tal postura se percebeu ainda hoje, tendo em vista que as dinâmicas de poder ali instauradas – que incluem derrubadas de moradias de maneira totalmente arbitrária, por exemplo. No entanto, o silêncio e aparente subserviência se dão também pela falta de meios materiais e simbólicos para que os grupos tidos como outsiders questionem a situação. Isto é o que parece acontecer quando as comunidades negras rurais se autoidentificam como quilombolas. Se por um lado estão respondendo a uma exigência do Estado, por outro se posicionam, expondo e positivando sua história. Seja por meio dos documentos apresentados – todo nos anexos – ou pelos relatos e observações aqui expostos, não resta dúvidas de que é imperativo que o processo de regulação fundiária que visa entregar a posse coletiva das terras em questão ao povo que hoje habita a Barra de Oitis, considerando que o exercício da justiça restaurativa contribua, neste caso, para

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que a população da barra possa exercer cada vez mais plenamente sua cidadania. O que pode ser vislumbrado a partir dos diversos fatores já expostos. Dentre estes, destaca-se o desejo de – no caso de alguns – poderem plantar sem ter de entregar parte da colheita para os “herdeiros” – e no caso da maioria, de voltarem a plantar, tendo em vista o isolamento simbólico por estes vivenciados, que os vem impedindo de dar continuidade a atividades tão tradicionalmente constitutivas de suas identidades, coletiva e subjetivas. O acesso a financiamentos que a Comunidade da Barra de Oitis poderá ter – por meio do Projeto Brasil Quilombola – tem na recuperação de suas terras seu alicerce. O que deve ser interpretado não apenas como necessidade material, mas simbólica, afetiva, já que há uma relação de pertença com a terra, uma apropriação simbólica do mundo material – comum aos humanos –, que nunca se explica apenas pela mera sobrevivência material, uma vez que as práticas humanas são culturalmente marcadas. Como afirmava Franz Boas ‘o olho que vê é o da tradição’. A atual ausência na Barra de Oitis de instituições educacionais voltadas para a realidade de uma comunidade quilombola– em parte porque suas terras ainda não serem suas por direito – contribui para o afrouxamento dos laços entre os moradores, em especial porque sua história (parcialmente reunida aqui) torna-se privilégio de alguns – em geral mais velhos – e que sem um investimento educacional pode se perder, ser esquecida junto com o falecimento dos mais antigos. Ao exporem os sofrimentos que passaram, longe de uma postura de autocomiseração, os moradores da Barra, ressaltam que, apesar de tudo, ou permaneceram sempre na região, ou quando – obrigados pelas secas e pelos longos períodos de fome – saíam, depois regressavam ao “seu lugar”. O que pode ser visto mesmo na atualidade, sejam no caso dos mais jovens que, em geral, buscam trabalho fora – principalmente no corte de cana de açúcar – ou daqueles que tendo deixado de morar na região, nunca perdem os laços que os ligam à Barra. Ainda que os processos de dominação se tornem naturalizados, muitas vezes não questionados, o processo de autoidentificação das comunidades negras rurais enquanto quilombolas vem proporcionando uma ruptura com o status quo, que encontra na possibilidade de tornar aqueles que um dia foram escravos, depois empregados – muitas vezes em situação de semiescravidão – coletivamente proprietários das terras que há séculos habitam, construindo-se identitariamente.

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Desde Locke – o teórico clássico contratualista que tinha seu foco na defesa da propriedade privada – que propriedade está vinculada ao trabalho humano transformando o ambiente, sendo, por exemplo, uma das justificativas legais para a posse de uma propriedade por meio de usucapião. Seguindo tal raciocínio, não há dúvidas tanto da presença de moradores no território da Barra de Oitis há bastante tempo – igual ou maior, como defendem os quilombolas, que os dos supostos proprietários – desenvolvendo atividades agropecuárias - trabalhando – nessa região, mas estando expostos a todo tipo de exploração e abusos de poder. A presença desta situação nas memórias coletivas e individuais dos moradores da Barra fortalece a decisão destes em requerer toda a extensão do território acima mencionada. Se por um lado se ouve de alguns fazendeiros coisas como “Esses pretos nunca tiveram nada, agora tão querendo as nossas terras”, por outro se ouve por parte de muitos quilombolas coisas como “Nós é que trabalhávamos na terra. A gente era explorado”. Além disto, há fortes indícios de que mesmo antes de proprietários, como é caso já explicitado da família Roque – já havia negros proprietários de terra. No entanto, a maioria “vendeu” suas terras – nos períodos de grandes estiagens e fome – em muitos casos por um quilo de alimento, o que apenas reforça a importância de que esta terra seja legalmente entregue a essa população, configurando-se uma devolução. Os moradores da Barra têm, de um modo geral, noção de sua importância política, que se potencializa com seu reconhecimento enquanto “quilombolas”, e buscam construir, ainda que fragilmente, estratégias de barganha. No entanto, a despeito de sua importância dentro do jogo político local, a ação invisibilizadora a qual os moradores da Barra são submetidos pode ser percebida tanto nos descasos já preliminarmente apontados – que atropelam os direitos fundamentais da população, negando-lhe o exercício da cidadania – como na falta de referências a ela em sites sobre a cidade, com exceção de quando fazem menção ao dia Nacional da Consciência Negra. Além disso, outro fator que contribui com a naturalização da segregação do grupo são os estigmas que lhes são infligidos: “bêbados”, “baderneiros”, “analfabetos”, dentre outros. A necessidade de se reconhecer a população da Barra de Oitis enquanto donos coletivamente das terras que habitam ultrapassa as demandas socioeconômicas, atingido demandas culturais, simbólicas, estruturais e psicológicas, podendo, inclusive, ter forte influência sobre a autoimagem e autoestima que esses sujeitos poderão passar a ter de si, rompendo assim com a perpetuação e legitimação de desigualdades a que vêm sendo historicamente submetidos.

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10. REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: 1988. BRASIL. PROJETO BRASIL QUILOMBOLA. Brasília, 2004. Convenção no. 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes. Organização Internacional do Trabalho, 1989. Disponível em http://www.oitbrasil.org.br/info/downloadfile.php?fileId=131, último acesso em 05/08/2011. ALMEIDA, Alfredo Wagner B. Terras de Preto, Terras de Santo, Terras de índio – uso comum e conflito. In Habette& Castro (org.) Na trilha dos grandes projetos. Belém: NAEA/UFPA, 1989. ALMEIDA, Alfredo Wagner & PEREIRA, Deborah Duprat. As Populações Remanescentes de Quilombos – Direitos do Passado ou Garantia para o Futuro? Seminário Internacional As minorias e o Direito, 2003. ANJOS, José Carlos Gomes dos. Remanescentes de quilombos: reflexões epistemológicas.In Leite, I.B. (org.) Laudos Periciais Antropológicos em Debate. Florianópolis: NUER/ABA, 2005. ____________. Quilombos: sematologia face a novas identidades. In Frechal Terra de Preto: Quilombo reconhecido como Reserva Extrativista. São Luís: SMDDH/CCN-PVN, 1997. ALMEIDA, Alfredo Wagner & PEREIRA, Deborah Duprat. As Populações Remanescentes de Quilombos – Direitos do Passado ou Garantia para o Futuro? Seminário Internacional As minorias e o Direito, 2003. ANJOS, José Carlos Gomes dos. Remanescentes de quilombos: reflexões epistemológicas. In Leite, I.B. (org.) Laudos Periciais Antropológicos em Debate. Florianópolis: NUER/ABA, 2005. ARRUTI, José Maurício. A Emergência dos ‘Remanescentes’: notas para o dialogo entre indígenas e quilombolas. In: MANA 3(2), 1997. ____________. O quilombo conceitual: para uma sociologia do artigo 68 do ADCT. Texto para discussão: Projeto Egbé – Territórios negros (KOINONIA), 2003.

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Universitária da UFPE. 2009 a. p. 117-132. _____. Negociações e resistências persistentes: agricultores e a barragem de Itaparica num contexto de descaso planejado. Recife: Ed. Universitária UFPE. 2009 b. STUCCHI, Deborah. Percursos em dupla jornada: o papel da perícia antropológica e dos antropólogos nas políticas de reconhecimento de direitos. Tese de doutorado. Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, São Paulo, 2005. VALE DE ALMEIDA, Miguel. Ser mas não ser, eis a questão. O problema persistente do essencialismo estratégico. Paper apresentado na Sessão Lógicas do Poder, Congresso da Associação Portuguesa de Antropologia, Lisboa, 2009. Viveiros de Castro, E. . A inconstância da alma selvagem (e outros ensaios de antropologia). São Paulo: Cosac & Naify, 2011

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11. ANEXOS

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Colunas1 PROPRIETÁRIOS I

Colunas2 PROPRIETÁRIO II

Colunas3 PROPRIETÁRIO III

Azilda Barros Leite Francisco Alves Julia Luiza da Silva Raimunda Luiza da Silva Pedro Messias Leite Francisco Soares da Silva Manoel Marleno Barros José Mangueira Barros Adalto Vieira Dias Djanira Carssiano Vieira Dias Adalberto Vieira Dias Mariana Vieira de Barros Manuel Marleno Barros Geova Barros da Silva Alberto Barros da Silva José Antonio da Silva Francisco de Assis Luca da Silva Maria Isterro da Silva Pedro Antonio da Silva Pedro Messias Leite Luiz Barros Sobrinho Regos Mngueira Cabral Maria Leite Messias Manoel Ventura da Silva Total

Colunas4 HECTARES 90,0000 há. 50,0000 há. 3,0000 há. 3,0000 há. 12,0000 há. 37,0000 há. 100,0000 há. 127,0000 há. 148,0000 há. 37,0000 há. 3,0000 há. 8,0000 há. 8,2000 há. 6,0000 há. 2,0000 há. 37,0000 há. 50,0000 há. 12,0000 há. 70,0000 há. 788,2

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TABELA- CARTÓRIO 70

Tabela feita a partir dos documentos do INCRA, cedidos pela Associação da Barra.

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PROPRIETÁRIOS ANTIGOS

HERDEIROS

PROPRIETÁRIOS POR COMPRA

HECTARES

Espolio de Antonio Barros

Maria Plácida Barros José Willames Barros Maria Jaira Barros

Antonio Vicente de Araújo/ 35,0000 há. 35,0000 há.

Espolio de José Roque da Silva Camila Alves de Sousa

Arcênio Roque da Silva

22,0000 há.

Espolio de Maria Ernestina de Souza Anatilde Lacerda Perfeito Adalia de Souza Lacerda Alaide de Souza Leite José de Souza Nitão Anália de Souza Medeiros

60,0000 há.

José Mangueira Barros

220,0000 há.

Espolio de Luiz Pereira Barros

Irene Maria da Silva Manoel Ventura da Silva

Manoel Ventura da Silva

9,0000 há.

Adalto Vieira Dias Maria Vieira Queiroz Luzenira Vieira Queiroz Irene Vieira Barros de Melo

225,0000 há.

José Corcino dos Santos

250,0000 há.

Alberto Barros da Silva

37,0000 há.

Manoel Marleno Barros

70,0000 há.

Espolio de Manoel Francisco do NascManoel Messias Leite Maria Nair Leite Maria Leite Messias Benedito Messias Leite Hilda Messias Leite Francisca Leandro Leite Pedro Messias Leite Raquel Leite Soares Maria Messias Leite Francisco de Manoel do Nascimento Francisco Soares da Silva

8,0000 há.

Espolio de José de Barros Sobrinho Alberto Barros da Silva Manoel Marleno Barros Geová Barros da Silva Luiz Barros Sobrinho Marina Vieira Barros

296,0000 há.

Francisco Alves

50,0000 há.

Espolio de Antonio Roça Nova

Anaiza Luiza da Silva Manoel Antonio José Antonio da Silva Raimunda Luiza Julia Luzia Francisco de Assis Silva José Antonio Sobrinho Maria Luiza da Silva

Antonio da Silva / 3,0000 há.

6,0000 há.

Espolio de Antonio Tiburtino Pedro Antonio da Silva José Antonio da Silva Total

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ANEXO II DOCUMENTOS

DOCUMENTOS-CARTÓRIO

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DOCUMENTOS – INCRA

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OS NOMES DAS FAMÍLIAS DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE BARRA DE OITIS. Marido e esposa: Jocelio Pereira Da Silva – Ailma Hermano Campos Pereira Adailton Bezerra – Adileuza Juca Bezerra Marcio Greik Delfino Da Silva – Angela Cristina Delfino Da Silva Antonio Luis Da Silva – Aluizio Delfino De LimaAdemir Carlos Leite – Francisca Bido Leite Adina Juvino Da SilvaAntonio Alexandre – Josefa Alexandre Figueira Benedito Francisco Da Silva – Anaiza Luiza Da Silva Damião Delfino Dos Santos – Aluziana Alexandre Da Silva Antonia Luca Da Silva Antonia Mariano Da Silva Antonio Luis Filho Alecsandro Juvino Da Silva Pedro Delfino De Lima – Auzeni Santana Antonio Bezerra – Maria Luca Bezerra Antonio Delfino De Lima- Maura Maria Da Silva Delfino Satilio Delfino De Lima Moacir Nãn Da Silva – Terezinha Nicolau Da Silva Eloia Delfino Dos Santos Geralda Tomaz De Aquino Eliana Maria Da Silva Taislane Pereira Da Silva

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Terezinha Maria Da Conceição Tarciano Ventura Bido Dias – Josefa Fabia Mariano Velmar Euflausino Valdeci Delfino – Lendinalva Valdeci Alves Jose Antonio Da Silva – Irene Maria Da Silva Adriano Juvino Da Silva – Geani Piaui Da Silva Francisco Vitorio – Gerlandia Mariano Da Silva Simone Maria Da Silva Olivia Alexandre Da Silva Edson Alexandre Ferreira – Lucia Tomaz De Aquino Evandro Alves De Sousa – Francisca Mriano Da Silva Francisco Santana – Erivanilda Campos De Sousa Cicera Virgulino Da Silva Edcleidia Pereira Da Silva Antonio Ferreira Galdino – Cicera Nicolau Da Silva Galdino Cicero Bezerra Dos Santos – Cleonice Delfino De Lima Cicero Alexandre Da Silva – Maria De Lourdes Silva Alexandre Carlos Roberto Ferreira – Iracema Lucas Ferreira Cicero Satilo De Lima – Maria Das Dores Caetano De Lima Carlinda Ferreira Camila Ana Delfino Virgulino Damião Mariano Campos - Calina Ligia Ferreira Campos Damião Lucas Da Silva Djanira Corcino Lemos Vieira Damião Campos De Sousa – Jacira Santana De França

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Damião Antonio Da Silva Manoel Jose Xavier Do Nascimento – Damiana Paula D. Do Nascimento Daybia Dayane De Santana Manoel Francisco Da Silva – Damiana Nicolau Da Silva Djaci Antonio – Cilene Bendito Da Silva Francisco Nicolau Da Silva – Francineide Pedro Do Nascimento Jacleildo Delfino Bento – Francilene Elias Da Silva Francisco Alves Jose Bido Da Silva – Francisca Carlos Leite Felisberto Alezandre Dos Santos – Damiana Luca Da Silva Francisco Virgulino – Maria De Lourdes Virgulino Francisco Lairton Ferreira Da Silva – Francisca Lucas Ferreira Francisco Neves Batista De Sousa – Francisca Alexandre Da Silva Francisca Pereira Dos Santos Francisca Elias Da Silva Francisco Alexandre Francisco Delfino Dos Santos Flavio Jose Delfino De Lima – Janaina Mariano Francisco Pereira Da Silva Francisca Lucas Da Silva Francisco Mariano Da Silva Francisco De Assis Da Silva Filho Francisco Delfino De Lima – Maria De Fatima Missiano Delfino Claudenes Lucas – Francisca Lucas Da Silva Pereira Francisco Manoel Da Silva – Ivani Lucas Da Silva

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Cicero Missiano – Francisca Nicolauda Silva Francisca Ventura Bido Francisca Bezerra Da Silva Mendes Francisco Alves De Sousa – Francisca Mariano Da Silva Inaldo Clementino Miguel – Francisca Pedro Da Silva Miguel Rita Maria Da Conceição Cassio Pereira – Raimunda De Paula Bezerra Dos Santos Rita Delfino De Lima Rivando Ventura Bido – Maria De Lourdes Alexandre Luis Mariano – Rita Maria Da Silva Jose Lucas Da Silva – Francisca Antonia Da Silva Maciel Benedito Da Silva – Josefa Meire Campos Julia Luiza Da Silva Jose Francisco Caetano – Maria De Fatima Anatacio Ferreira Da Silva – Julia Luiza Da Silva Jose De Sousa Lima – Carmelita Miguel Clementino Jose Alexandre Dos Santos – Maria Jose Bezerra Dos Santos Jose Ausino Dias De Santana Jailson Bento Da Silva Jose Alves De Sousa – Ivonete Silvsa Mateus Jose Lucas Da Silva Francisco Alexandre Pereira – Jaira Lucas Dos Santos Janaina Santana De França João Delfino Pereira Rita Maria Jose Luca De Sousa – Neide Arcanjo

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Josimar Tiburtino João B. Delfino Jose Mariano Da Silva – Josivania Jose Virgulino Da Silva – Iara Maria Alexandre Bezerra Jose Delfino Juca – Claudinete Ferreira Delfino Jose Adalberto Alexandre Da Silva Francisco Lucas De Sousa – Josefa Lucas Da Silva João Bosco Bezerra Dos Santos – Jalclene Bezerra Santana Pedro Bezerra – Maria Da Penha Silva Bezerra Pedro Messias Leite – Maria Barbosa Leite Pedro Alexandre Ferreira – Deusileia Alaexandre Bezerra Patricia Nãn Da Silva Luciano Ferreira Delfino – Leila Maria Da Silva Delfino Francisco Diassis Juca – Laura Maria Da Silva Juca Luciano Alexandre Ferreira – Aldenoura Ferreira Alexandre Rosendo Mariano Da Silva – Luiza Juca De Lima Luiza Neta Da Silva Luis Neves Feitosa – Luciana Alexandre Da Silva Luis Tiburtino Da Silva –Maria Das Graças Tiburtino Luciene Luca Ferreira Luis Bernadino Dos Santos – Maria Daguiada Silva Santos Rivando Bido Ventura – Maria De Lourdes Silva Alexandre Francinaldo Santana – Marilene Tomas De Aquino Manoel Messias Roque – Maria De Lourdes Cirilo Getulio Alves Dos Santos – Maria Jose Campos Dos Santos Manoel Caetano Sobrinho - Josefa Campos Caetano

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Antonio Elias Da Silva – Maria Isterro Da Silva Everaldo Martins – Maria Ermano Da Silva Maria Sabino De Sousa Maria Aparecida Da Silva Gildivan Mariano Pereira – Maria Aparecida Nicolau Da Silva Maria Das Graças Barbosa Josenildo Santana – Maria Solidade Delfino Santana Ildivan Mariano Pereira – Maria Aparecida Missiano Pereira Maria Das Graças Mariano Da Silva Jose Wilson Caetano Campos – Maria Jose Bido Caetano Campos Maria Zelma Santana Juliano Ferreira Campos Maria Leonice Bido Maria Desterro Campos Alves Maria Luca Da Silva Jose Neto Corsino – Maria Das Dores Nicolau Marcos Francisco Da Silva – Maria Madalena Delfino Juca Djalma Antonio Da Silva – Margarida Pereira Missiano Maria Mariano Santana Maria Figueira Bezerra.

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CERTIDÃO DA ASSOCIAÇÃO

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MAPA DE DIAMANTE

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