Religiosidade romano-bretã e os textos medievais nas Ilhas Britânicas: Diálogos, problemas e desafios

October 3, 2017 | Autor: Brunno Araujo | Categoria: Medieval Literature, Celtic Studies
Share Embed


Descrição do Produto

VERSÃO PARA DIVULGAÇÃO. FORMATAÇÃO DIFERENTE DA PUBLICAÇÃO IMPRESSA In: ZIERER, A; VIEIRA, A.L.B; ABRANTES, E.S. (Org.). Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média. São Luís, Editora UEMA, 2014, pp. 107-112

Religiosidade romano-bretã e os textos medievais nas Ilhas Britânicas: Diálogos, problemas e desafios Brunno Oliveira Araujo1 Mestrando em História – PPGH-UFF Desde sua origem no séc. XVIII entre a linguística e uma comunidade acadêmica que ainda procurava encaixar o surgimento dos povos antigos no esquema bíblico, passando pelos trabalhos linguísticos de Edward Lhuyd, as contribuições da arqueologia e literatura até os questionamentos e debates atuais atuais sobre a validade ou não dos usos do termo “celta” para as populações européias da Idade do Ferro, a disciplina de Estudos Célticos tem como marca fundamental o diálogo entre antiguidade e contemporaneidade. Mais do que o puro interesse acadêmico pelo passado, sua força motriz de justificação social passa pela grande “comunidade imaginada” que é “ser celta” no mundo atual, que passa por uma identidade linguística, geográfica ou cultural, expressa através da arte, poesia, literatura, atos políticos e religiões que se inspiram em projeções no passado para construir seus sistemas de crenças e ritos. Neste contexto, não é surpresa que a produção literária irlandesa e galesa no período medieval recebam grande atenção acadêmica e leiga como possíveis representantes de um passado celta. A imagem construída ao longo dos anos pela literatura romântica, pelas lutas políticas e tantas outras manifestações é a de que existiu uma cultura própria destas populações da Idade do Ferro européias que possuidoras de um caráter de resiliência inerente, resistindo ao domínio romano, anglo-saxão, escandinavo, normando, e principalmente ao cristianismo. A prova deste caráter resistivo para alguns estaria nas línguas, em festivais como o Eisteddfod, na literatura, folclore e costumes das regiões que hoje reinvidicam a ligação com este passado: Irlanda, Escócia, País de Gales, Galícia e Bretanha Francesa. Seguindo tal lógica, a produção vernacular medieval configuraria para alguns o primeiro exemplo de registro da cultura oral celta. Para estudos recentes2, por outro lado, há um exagero por parte daqueles que advogam continuidades, devendo ser tais textos esmiuçados baseado em seu próprio

1

Trabalho desenvolvido durante Mestrado em História Social na Universidade Federal Fluminense sob orientação da prof. Adriene Baron Tacla, com apoio de bolsa do CNPq. 2 O debate sobre as construções contemporâneas sobre a identidade e nomenclatura das populações da Idade do Ferro e uma possível etnogênese celta é extenso e ainda está em aberto. Para uma visão geral sobre o atual estado do debate, ver James (1999), Collis (2003), Megaw (2005) e Cunliffe & Koch (2012).

107

VERSÃO PARA DIVULGAÇÃO. FORMATAÇÃO DIFERENTE DA PUBLICAÇÃO IMPRESSA In: ZIERER, A; VIEIRA, A.L.B; ABRANTES, E.S. (Org.). Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média. São Luís, Editora UEMA, 2014, pp. 107-112

contexto, e uma visão de continuidade seria uma invenção da contemporaneidade. De fato, nos últimos anos diversos paradigmas dentro da área tornaram-se alvo de críticas e debates, onde a associação clássica entre cultura material, língua e identidade celta são questionadas por diversos autores, chegando-se ao ponto de negar a existência de “celtas” nas Ilhas Britânicas. A tradição clássica de uma continuidade, entretanto, não desapareceu. Pelo contrário, esta ainda encontra defensores entre historiadores, arqueólogos e linguistas que, partindo de argumentações diversas (como é próprio de um momento onde o debate encontra-se em aberto), advogam não só que o termo “celta” é aplicável as populações da Idade do Ferro como identificam um caráter celta (celticidade) na literatura vernacular medieval das Ilhas Britânicas. As abordagens clássicas sobre o assunto estão normalmente ligadas ao ramo da literatura e da linguística. Podemos destacar nesta uma tradição que entende diversos personagens e temas presentes nos manuscritos medievais irlandeses e galeses como sobrevivências de uma cultura céltica anterior ao cristianismo. Autores de referência presentes em estudos diversos os nomes como os de Proninsas MacCanna (1990) e James MacKillop (2005). Estes autores concordam com análises intratextuais semelhante às de Kenney (1929) que atestariam a existência de versões mais antigas das histórias presentes nos manuscritos medievais, das quais só teríamos acesso a versões copiadas, e que teriam se proliferado à partir do séc. XVII na Irlanda e em Gales. Para ambos, existiria uma única “cultura” ou “mitologia” celta, que mesmo possuindo variações locais, respeita a temas gerais provenientes de uma suposta cultura indo-europeia, preservadas através da oralidade e da qual heróis, temas, objetos, práticas e leis teriam sobrevivido na literatura medieval. A introdução do Cristianismo nas Ilhas Britânicas, por volta do ano 400, representaria para estes a mudança fundamental do lugar que a “cultura celta” teria nestas sociedades. Ela perderia seu caráter central, sendo reinterpretada e perdendo em especial seu caráter religioso. Tais características levam ao aparecimento nos textos dos autores a equivalência entre “cultura céltica” e “cultura pré-cristã”. (MACCANA 1970, p. 17; MACKILLOP 2005, p. XI). Autores como Keneth Jackson (1964) foram além em suas interpretações. Em seu trabalho intitulado “The oldest Irish tradition: a window on the Iron Age” sobre o Ciclo de Ulster irlandês, o autor advoga que as histórias dos heróis irlandeses seriam descrições fiéis dos celtas antigos preservadas pela oralidade, de modo que os textos medievais 108

VERSÃO PARA DIVULGAÇÃO. FORMATAÇÃO DIFERENTE DA PUBLICAÇÃO IMPRESSA In: ZIERER, A; VIEIRA, A.L.B; ABRANTES, E.S. (Org.). Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média. São Luís, Editora UEMA, 2014, pp. 107-112

fossem verdadeiras “janelas” para o mundo céltico da Idade do Ferro. Esta teoria ao longo dos anos foi duramente criticada no meio acadêmico. Cunliffe (1997), por exemplo, aponta as disparidades entre a documentação arqueológica (em especial no que toca ao estilo e materiais utilizados na fabricação de carruagens e joias) da Irlanda da Idade do Ferro e as descrições do Ciclo de Ulster (CUNLIFFE 1997, p. 26). Ainda que o trabalho de Jackson tenha perdido espaço no meio acadêmico, sua visão ainda é parte importante nos discursos leigos sobre um passado celta. Alguns arqueólogos, por outro lado, procuraram fazer a via inversa: utilizar-se dos textos medievais como fonte comparativa à cultura material a fim de procura informações que pudessem ser úteis para entender as populações da Idade do Ferro. Um dos pesquisadores que trabalham nesta perspectiva é Raimund Karl (2008), que em um trabalho sobre os hillforts de Wessex (sul da Inglaterra), analisa o modelo proposto por JD. Hill (1995) para o estilo de vida das populações das Ilhas Britânicas da Idade do Ferro e PRIA3 de Wessex. Para Hill, três características seriam fundamentais: (1) A deliberada construção das casas redondas com suas entradas viradas para leste, e com uma separação entre norte/sul bem definida, motivada pela cosmovisão destas populações; (2) a demarcação bem definida e ritualizada das propriedades individuais e (3) o papel central da casa enquanto local de produção econômica (agricultura, metalurgia), procurando ao máximo torná-la autossuficiente e autogestora. Karl aponta então nos textos medievais irlandeses e galeses, a ocorrência de características identificadas por Hill, como: o mau agouro causado pelo fato de CuChulainn chegar a um forte com a face esquerda de sua carruagem voltada para a entrada, ou a atribuição dos significados “leste” e “frente, à frente” à palavra airther (em Irlandês Antigo). Outros exemplos são dados, como a relação entre a demarcação da propriedade individual e a nawadd, proteção legal que poderia ser dada pelo dono de uma propriedade a um estrangeiro por um período de tempo (qualquer ato contra o protegido, seria um ato contra o dono da propriedade); seu poder de árbitro de disputas, entre outros. Já no caso da produção econômica, um dos exemplos apontados é a existência da comar (na Irlanda) e cyfar (em Gales), prática atestada no medievo onde casas uniam-se, em tempos de necessidade, para agricultura coletiva. A especificidade do ato indicaria, para 3

Pre-Roman Iron Age – Termo que faz parte da periodização da cultura material das Ilhas Britânicas (Hill 1995, p. 47-48), e que designa o período que se estende de 800 a.C-100 d.C.

109

VERSÃO PARA DIVULGAÇÃO. FORMATAÇÃO DIFERENTE DA PUBLICAÇÃO IMPRESSA In: ZIERER, A; VIEIRA, A.L.B; ABRANTES, E.S. (Org.). Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média. São Luís, Editora UEMA, 2014, pp. 107-112

Karl, que a prática comum seria justamente a oposta: o foco da produção seria doméstico. (Karl 2008, p. 71-73) Para Karl, estas similaridades não seriam coincidências randômicas, dadas pelo acaso e probabilidade. Para ele, a sociedade medieval ainda é, de forma geral, celta. Ele recorre à teoria do caos para exemplificar seu ponto. A previsão do tempo, por exemplo (que não por acaso é a “mãe” da teoria do caos) não é uma ciência que segue o estilo próprio do método científico (ou seja, reproduzível). Para prever o tempo, os meteorologistas utilizam-se de dados históricos, comparando as variáveis de eventos passados anteriores a um dia ensolarado, ou de chuva, com os de hoje. Quanto mais próxima a data que se deseja calcular, mais assertiva é a previsão, pois utiliza-se de dados mais recentes. Para estes teóricos, dois sistemas complexos que compartilhem variáveis semelhantes, tendem a produzir sistemas semelhantes. Karl utiliza-se desta lógica para advogar que, vista a semelhança de variáveis sociais entre o modelo de Idade do Ferro de Hill e o sistema social apresentado nas fontes medievais, é possível esperar resultados semelhantes, tornando os textos medievais não uma “janela para a Idade do Ferro”, mas uma ferramenta útil para análises comparativas, que podem ser utilizadas inclusive para preencher lacunas resultantes da falta de fontes escritas no passado proto-histórico. Neste trabalho, por exemplo, Karl defende que as relações de parentesco, que tem lugar de destaque nas sociedades medievais irlandesa e galesa, tem grande probabilidade de serem também aplicáveis ao modelo de Hill. Não é apenas a semelhança de situações, mas a sequência cronológica, que aumentaria as probabilidades desta semelhança. Importante salientar que Karl reconhece que sua proposta, baseada na modelização, atende a uma proposta generalizante, e que os dois contextos, a PRIA e o medievo galês, devem ser analisados com base em sua dinâmica histórica, sem esquecer de suas especificidades políticas e históricas (KARL 2008, p. 76). Não me prolongarei aqui em uma discussão sobre a extensão e peso entre uma ligação (ou sua ausência) de uma cultura proto-histórica e a literatura medieval irlandesa e galesa. Basta dizer que aqui que alguns elementos dessas sociedades, como a grande importância da cultura popular oral e a existência de uma classe de prestígio social como a dos bardos e a relação de ressignificação entre essas populações e a paisagem monumentalizada construída no passado possa preservar um certo repertório simbólico compartilhado e a construção de uma memória sobre o passado. É importante frisar 110

VERSÃO PARA DIVULGAÇÃO. FORMATAÇÃO DIFERENTE DA PUBLICAÇÃO IMPRESSA In: ZIERER, A; VIEIRA, A.L.B; ABRANTES, E.S. (Org.). Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média. São Luís, Editora UEMA, 2014, pp. 107-112

entretanto que esta sociedade medieval não possui a mesma cultura da Idade do Ferro. Não só as mudanças políticas provenientes das ocupações anglo-saxãs, vikings e normandas, o caráter de mutabilidade próprio da oralidade e a existência de uma forte cultura eclesiástica diferenciam as interpretações dadas pelos homens medievais aos temas presentes na Idade do Ferro. O foco deste trabalho é outro. Caso reconheçamos que os temas presentes na literatura medieval são ressignificações de um passado, podemos considerar estes elementos como oriundos de uma cultura compartilhada por todas as populações que identificamos como celtas? É realmente o cristianismo o ponto de ruptura entre este passado proto-histórico e a sociedade medieval? Aqui, encontramos alguns problemas. O conceito de continuidade é aplicado por estes autores sem levar em consideração o universo de contatos e mudanças próprias destas populações: suas redes de contato econômico, mudanças políticas, sus contatos com o mundo grego, o projeto de romanização no período da conquista, entre outros. As populações da Idade do Ferro que identificamos hoje como Celtas estendiam-se por grande parte da costa atlântica da Europa e de seu interior, englobando regiões que hoje comportam países como Portugal, Espanha, Bélgica, França, Alemanha, para citar apenas algumas. Ainda que uma etnogênse céltica seja hoje ponto de debate acalorado no mundo acadêmico, caso consideremos apenas o tronco linguístico como ponto de coesão como faz Cunliffe (2012), tais propostas sugeririam que em um espaço de milhares de anos essas sociedades de chefia, de uma cultura oral e sem centralização política teriam vivido com poucas mudanças significativas. Quando adicionamos ao problema a questão dos contatos com o mediterrâneo o a conquista romana, a questão se torna mais complicada ainda. Como bem definem Haeussler & King: Uma visão popular sobre os Celtas vê nestes heroicos guerreiros gloriosamente derrotados por Roma mas possuidores de uma forte cultura que nunca foi subjulgada pelos romanos e foi capaz de reorganizar-se no período pós-romano. Em grande medida, autores sobre mitologia e religião Celtas seguiram o mesmo caminho. Uma sofisticada e complexa religião teria sido atacada por Roma mas sobrevivido a sua ocupação; sobrevivendo também a submersão ao Cristianismo, fazendo assim que elementos dessa religião possam ainda ser encontrados nos costumes e folclore atuais (...). Acadêmicos sobre a religião Celta são mais cautelosos, mas ainda é possível detectar uma 111

VERSÃO PARA DIVULGAÇÃO. FORMATAÇÃO DIFERENTE DA PUBLICAÇÃO IMPRESSA In: ZIERER, A; VIEIRA, A.L.B; ABRANTES, E.S. (Org.). Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média. São Luís, Editora UEMA, 2014, pp. 107-112 agenda em que espera extirpar as camadas do mundo romano à fim de revelar abaixo uma religião dos Celtas antigos. A maioria usa as evidências [do período] romano como como o pilar de suas interpretações (mesmo porque não há muito mais ao que se recorrer); no âmago de seus textos existem reconhecimentos da contribuição romana para o entendimento da religião céltica. (HAEUSSLER & KING 2007, p. 7 – tradução livre)

Um caso no qual venho trabalhando que acredito exemplificar o problema das generalizações sobre uma “cultura celta” homogênea é a noção da tradição literária do Outro Mundo céltico. Em histórias como “A viagem de Bran” ou o Mabinogi, encontramos referências a histórias de homens que viajam para terras onde o tempo passaria devagar e de forma aprazível, onde não se envelhece. Nessas regiões há sempre abundância de alimentos, com banquetes faustosos e o divertimento através de músicas, jogos e histórias. Segundo Patrick Sims-Willians (1990), por ser um fenômeno manifesto em contexto teológico cristão, com a ideia de “este” e do “outro” mundos bem definidos, o Outro Mundo aparece nos textos não como um mundo em separado, mas como uma região no plano terrestre governada por outras leis. A lógica seria mais próxima da ideia de reinos ou regiões invisíveis ou longínquas, em especial ilhas, cujo acesso só seria possível através de lugares/pontos específicos e em alguns casos apenas em algumas épocas do ano. Existem duas denominações principais na literatura irlandesa, extensíveis à do País de Gales: os Echtrai, aventuras em regiões distantes no Outro Mundo, focados nas aventuras de heróis, e os Imramma, que relatam geralmente viagens pelo mar a uma ou mais ilhas, geralmente além dos limites do mundo conhecido (MACKILLOP 2005, p.109) Utilizemos os Echtrai como exemplo. Certas passagens presentes no conjunto de histórias galesas do séc. XIV-XV conhecidas como “Os Quatro Ramos do Mabinogi” são identificadas como pertencentes a essa tradição. Em uma destas passagens, por exemplo, o personagem Pwyll encontra-se em caça de um cervo em uma floresta. Quando este alcança o cervo, vê que outros cães, brancos de orelhas vermelhas (uma característica ligada ao sobrenatural) haviam dominado a presa. Ele se enxota os cães a fim de dar espaço para os seus, mas logo o dono dos cães brancos, Annwfn, senhor de Arawn, (Outro 112

VERSÃO PARA DIVULGAÇÃO. FORMATAÇÃO DIFERENTE DA PUBLICAÇÃO IMPRESSA In: ZIERER, A; VIEIRA, A.L.B; ABRANTES, E.S. (Org.). Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média. São Luís, Editora UEMA, 2014, pp. 107-112

Mundo) aparece, e informa Pwyll que este adentrou os seus domínios e lhe roubou a caça, ofendendo-o. Pwyll desculpa-se com Annwfn, e os dois fazem um trato: Pwyll trocaria de lugar e aparência com Annwfn por um ano, e deveria desafiar para o rei de Arawn um de seus inimigos, Hafgan. Na estadia de Pwyll no reino de Arawn, este é descrito com uma terra de belezas, abundância e divertimento sem igual (FORD 2008, p. 37-38). Aqui enconramos diversos temas recorrentes nos echtrai: os animais sobrenaturais brancos de orelha vermelhas, o econtro do herói com o Outro Mundo através da caça ou viagem, com a transição feita através das brumas, água, subterrâneo ou florestas; o encontro de uma terra de abundância e prazerer, onde o tempo parece não passar entre música e banquetes. Ford (2008) e MacKillop (2005) argumentam que estes elementos seriam parte da cultura “pré-cristã” da Idade do Ferro. Não conseguem, entretanto, traçar claros paralelos entre a cultura material e os textos medievais. As comparações são feitas de forma generalizante, onde os argumentos são construídos em cima de suposições sobre um material “original” preservado pela oralidade. Há entretanto um caso no oeste da província da Bretanha Romana, entre os séc. IIIV, a qual me dediquei em trabalhos anteriores (ARAUJO 2011) que possui um sistema simbólico semelhante. Na região mineradora próxima ao o estuário do Rio Severn, neste período funcionava um templo monumentalizado ao estilo romano, onde uma divindade local de caráter curativo identificada como Nodens era cultuada. Alguns pontos sobre o culto são interessantes. Em primeiro lugar, não existem representações antropomórficas da divindade. Entretanto, tabletes votivos e estatuetas de cães de caça nativos (wolfhounds) foram encontrados pelo sítio, alguns deles associados ao nome de Nodens. Este nome aliás, é interpretado por Tolkien (1932) como associado ao sentido de “caça” e “abundância”. Outros fatores que destaco sobre o templo é sua relação com a paisagem local: construído no topo de uma colina, sua localização fica entre a Floresta de Dean e próximo ao mar, que parece ter grande importância no culto devido a recorrência de representações de animais, criaturas e cenas marinhas (BATHURST 1879; WHEELER & WHEELER 1932; CASEY & HOFFMANN 1999).

113

VERSÃO PARA DIVULGAÇÃO. FORMATAÇÃO DIFERENTE DA PUBLICAÇÃO IMPRESSA In: ZIERER, A; VIEIRA, A.L.B; ABRANTES, E.S. (Org.). Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média. São Luís, Editora UEMA, 2014, pp. 107-112

Figura 1: Exemplo de mosaico encontrado no templo de Nodens, em Lydney Park, Gloucestershire. Neste mosaico, encontramos animais híbridos de peixe, com um rabo serpenteante que termina na cabeça de um cão de caça da família dos wolfhounds. (WHEELER & WHEELER 1932, plate XIX)

114

VERSÃO PARA DIVULGAÇÃO. FORMATAÇÃO DIFERENTE DA PUBLICAÇÃO IMPRESSA In: ZIERER, A; VIEIRA, A.L.B; ABRANTES, E.S. (Org.). Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média. São Luís, Editora UEMA, 2014, pp. 107-112

Figura 2: Estátua de bronze encontrada no templo de Nodens, em Lydney Park, Gloucestershire. Representa um cão da raça wolfhound, largamente utilizado para a caça. Encontramos no culto de Nodens diversas estatuetas representando cães, algumas delas associadas ao nome de Nodens, o que sugere para Wheeler que esta seria a representação local da divindade. (WHEELER & WHEELER 1932, p. 88, plate XXV)

115

VERSÃO PARA DIVULGAÇÃO. FORMATAÇÃO DIFERENTE DA PUBLICAÇÃO IMPRESSA In: ZIERER, A; VIEIRA, A.L.B; ABRANTES, E.S. (Org.). Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média. São Luís, Editora UEMA, 2014, pp. 107-112

Figura 3Mapa da região de Gloucestershire. Podemos identificar a região da Floresta de Dean e o estuário do rio Severn (área negra no mapa), onde as suas margens o templo de Nodens foi construído no topo de uma pequena colina na atual região de Lydney Park. É interessante notar como a paisagem consagrada para a construção do templo se assemelha a visão literária do Outro Mundo. (YEATES 2008, p. 10)

O exemplo é didático em demonstrar que o rótulo de “cultura pré-cristã” encobre uma gama de experiências culturais e inovações ao longo do tempo, Ao mesmo tempo, não significa que o Outro Mundo é uma “janela” para o passado. Podemos concordar com Karl que sua recorrência não é acidental, mas é necessária certa cautela ao comparar tais signos sem considerar seus contextos. Um bom exemplo é a relação com o sagrado: No caso romano-bretão, os cães de caça existem enquanto símbolo de uma divindade politeísta, enquanto no Mabinogi, compilado no seio da cristandade, os cães sobrenaturais estão associados a uma figura que mesmo portadora de um caráter mágico, é apresentada como um ser mundano. Talvez o caminho mais viável para expandir as pesquisas sobre esta relação seja o de considerar que ambas compartilham um repertório de elementos surgidos na Bretanha Romana e que são compartilhados e ressignificados no medievo. Encontramos os elementos característicos do Outro Mundo apresentados de forma esparça na iconografia e cultura material de diversos sítios da idade do Ferro, entretanto 116

VERSÃO PARA DIVULGAÇÃO. FORMATAÇÃO DIFERENTE DA PUBLICAÇÃO IMPRESSA In: ZIERER, A; VIEIRA, A.L.B; ABRANTES, E.S. (Org.). Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média. São Luís, Editora UEMA, 2014, pp. 107-112

é só com o surgimento da sociedade romano-bretã, fruto de contatos por séculos entre a cultura nativa e o projeto de romanização, que um sistema integrado de símbolos aparece. Não podemos dizer que este é um passado simplesmente “celta”, e que seus elementos são compartilhados por uma cultura pan-céltica. A cultura romano-bretã não é celta ou romana, mas uma nova sociedade repleta de ressignificações e inovações, que produz uma série de elementos inovadores. O desafio que se apresenta é o do diálogo entre essas sociedades tão diferentes, e entender quais processos sociais criam no medievo essas projeções e ressignificações do passado.

Documentação Textual FORD, Patrick K. The Mabinogi and Other Medieval Welsh Tales. University of California Press, Los Angeles, 2008.

Documentação Arqueológica BATHURST, W.H. Roman Antiquities at Lydney Park. London: Longmans, Green and co, 1879. CASEY, P.J. & HOFFMAN, B. Excavations at the roman temple in Lydney Park, Gloucestershire in 1980 and 1981. Antiquaries Journal vol 79, 1999. WHEELER, R. E. M. & WHEELER, T. V, Report on the Excavation of the Prehistoric, Roman, and Post Roman Site in Lydney Park, Gloucestershire. Reports of the Research Committee of the Society of Antiquaries of London No. IX. Oxford, 1932.

Bibliografia ARAUJO, B.O. Discurso e Imagem na Religiosidade Celta: novas visões sobre o universo simbólico ao redor do culto de Nodens na Bretanha Romana – Séc. IVV d.C. Trabalho de Conclusão de Curso. Niterói: Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, 2011. COLLIS, J. Celts: Origins, Myths and Inventions. Stroud: Tempus, 2003 CUNLIFFE, B. The Ancient Celts. London: Penguim Books, 1997. CUNLIFFE, B.; KOCH, J. (eds.). Celtic from the West. Alternative Perspectives from Archaeology, Genetics, Language and Literature. Oxford: Oxbow Books, 2010. 117

VERSÃO PARA DIVULGAÇÃO. FORMATAÇÃO DIFERENTE DA PUBLICAÇÃO IMPRESSA In: ZIERER, A; VIEIRA, A.L.B; ABRANTES, E.S. (Org.). Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média. São Luís, Editora UEMA, 2014, pp. 107-112

HAEUSSLER, R.; KING, A. The formation of Romano-Celtic Religion(s). In HAEUSSLER, R. and KING, A. C.(ed.), Journal Of Roman Archaeology, Supplementary series 67,v.1: Continuity and Innovation in Religion in the Roman West, Volume 1,2007, pp. 7-10 HILL, J. D. Pre-Roman Iron Age in Britain and Ireland (ca. 800 B.C. to A.D. 100): An Overview. In: Journal of World Prehistory Vol. 9, no 1, Plenum Publishing Corporation, 1995 JACKSON, K.H. The oldest Irish tradition: a window on the Iron Age. 1964. JAMES,S. The Atlantic Celts: Ancient People or Modern Invention?, London, British Museum Press, 1999. KARL, R. Random Coincidences, or: the return of the Celtic to Iron Age Britain. In: Proceedings of the Prehistoric Society, No 74, jan. 2008. Cambridge: Cambridge University Press, pp 69-78. KENNEY, J. F. The Sources for the Early History of Ireland: an introduction and guide. New York: Octagon Books,1929. MACCANA, P. Celtic Mythology. London: Hamlyn Publishing Group Limited. 1970. MACKILLOP, J. Myths and Legends of the Celts. London: Penguin Books, 2005. MEGAW, J. The European Iron Age with – and without – Celts: a Bibliographical essay. European Journal of Archaeology Vol. 8(1), 2005, p. 65–78. SIMS-WILLIANS, P. Some Celtic otherworldly terms. In: MATONIS, A.T.E., MELIA, D. F.(ed.), Celtic Language, Celtic Literature: A Ferschrift for Eric P. Hamp, Van Nuys, CA: Ford & Baillie, XVIII,1990, pp.345-415. TOLKIEN, J.R.R. Appendix I: The name “Nodens”. In: WHEELER, R. E. M. & WHEELER, T. V, Report on the Excavation of the Prehistoric, Roman, and Post Roman Site in Lydney Park, Gloucestershire. Oxford: Reports of the Research Committee of the Society of Antiquaries of London No. IX,, 1932. Pp. 132-137. YEATES, S. J. The Tribe of the Witches: The Religion of the Dobunni and Hwicce. Oxford: Oxbow Books, 2008.

118

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.