Repensar a socialização sob uma perspectiva transgênera

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Repensar a socialização/construção social sob uma perspectiva transgênera.
Davi Miranda
Suelen Moraes
Colaboração: Ms. Gabriela Felten da Maia

A partir de 1949 era lançado um dos livros mais importantes para as teóricas de gênero, o famoso "Segundo Sexo", da autora Simone de Beauvoir, no qual ela apresenta uma discussão importante para o feminismo. A principal proposta da autora era a de repensar o "ser mulher" e resignifica-lo. Ao desnaturaliza-lo com a famosa frase "Não se nasce mulher, torna-se" Beauvoir assinala o ser mulher como um processo social e cultural, que é aprendido a partir de estereótipos impostos através de valores historicamente construídos, indicando que a biologia não seria o destino de gênero. O movimento feminista da segunda onda (dos anos 60 e 70), influenciado pela discussão de Beauvoir, procurou compreender as raízes da dominação masculina, afirmando então que: a socialização é diferenciada de acordo com o sexo/gênero da pessoa. Essa reflexão foi importante para se contrapor a uma visão determinista que entende gênero como sendo determinado através do sexo. Assim, a discussão pautava-se na diferença entre homens e mulheres, não se trabalhando sobre diferenças intragênero, de modo que não se pautou as identidades de gênero. Conforme o debate que se iniciava no âmbito das discussões feministas de gênero, os seres inteligíveis são inicialmente assinalados como macho e fêmea, sendo reconhecidos como homem ou mulher apenas a partir de do processo de socialização. Isto significa que a socialização seria o fator que atribuiria aos seres características masculinas ou femininas e que dentro deste conjunto de características estariam também um conjunto de comportamentos normatizados que garantem a dominação de um grupo sobre o outro. Segundo as ciências sociais, socialização é um processo em que os indivíduos aprendem, em diferentes instâncias da vida social (piadas, escola, igreja, música, cinema, televisão, família, etc.) um conjunto de padrões culturais e sociais da sociedade ou grupo que vivemos. Essa discussão tem sido trabalhada por diferentes vertentes do feminismo, a partir de diferentes perspectivas, mas compreendendo que gênero é algo construído e não algo inato do indivíduo. Algumas cisativistas radicais, consideram que este conceito é instransponível e homogêneo descartando todas as subjetividades e recortes a que o sujeito esteja submetido ao longo de sua existência. Mas será que entender que nascer macho e ser socializado como homem indica um caráter determinista como tem sido colocado em alguns debates? Será que ele é homogêneo? Será que não apresenta falhas? Ao usarmos como exemplo um homem trans, que tendo nascido sob designação feminina e recebido socialização feminina, contrariando as expectativas da sociedade, não se torna uma mulher, ou seja, ele foge à regra dessa perspectiva de socialização apresentada pelas cisativistas, pois os saberes sociais a ele repassados não agiram de forma que o tornassem uma figura feminina, já que ao assumir uma transmasculinidade ele desconstrói o gênero que lhe foi atribuído ao nascimento e constrói uma identidade social masculina. Uma mulher trans, que nasceu sob designação masculina, também foge a esta regra, pois mesmo sem ter sido ensinada a "ser mulher" construiu uma identidade feminina, passando com isso a sofrer as consequências de reivindicar a sua mulheridade em uma sociedade patriarcalista e misógina. Há alguns dias, lemos o relato de uma mulher trans que narra que aos seis anos de idade foi flagrada usando uma calcinha e por este motivo foi surrada até ficar inconsciente. Relatos como estes não são incomuns, muitas mulheres trans tiveram suas infâncias marcadas pela violência de gênero. Pois ao contrário do que diz a visão cisexista radical, esta não é uma opressão pautada somente pelo sexo de nascimento, mas ao gênero ao qual a pessoa se enquadra e reivindica socialmente. Relatos como estes, desconstroem o mito de que mulheres trans são privilegiadas por não terem sofrido misoginia, pois receberam socialização masculina, desse modo, teriam sido ensinadas a dominar e oprimir. Pessoas trans, portanto representam a exceção da regra da socialização imposta pelas militâncias cisexistas e demonstram que esta acepção é equivocada e ultrapassada pois desconsiderar o fator indentitário, os recortes, as vivências, e as construções individuais. Mas de que forma, pessoas trans fogem à regra da socialização, defendidas por radicais? Durante a infância e adolescência, a pessoa trans já reconhece em si o não pertencimento ao gênero que lhe foi imposto ao nascimento. Inicia-se aí um processo diferenciado de se experimentar a socialização, pois devido ao seu não enquadramento neste gênero, observa-se um movimento contrário a esta socialização, uma "contrasocialização", ou seja todos os padrões sociais impostos ao gênero oposto ao que me identifico serão descartados e ao negar essas imposições, eu nego também a socialização. O ato de contestar estes padrões e descarta-los, representa uma ruptura com a idéia defendida por essas cisativistas, representa a ruptura com a normatização dos gêneros, representa o descer da casta, renunciar aos privilégios, sofrer marginalização e violência. Beauvoir não fala sobre pessoas trans por não termos visibilidade em sua época, mas a partir da sua desnaturalização do gênero se problematiza o cissexismo e várias outras questões de gênero. Sua leitura social se deu em outra época e contexto, por isso um ativismo que se utiliza de uma perspectiva que entendemos ser essencialista para deslegitimar pessoas trans, não é apenas deslegitimar pessoas trans, mas outras mulheridades e masculinidades construídas de diversas formas. O ato falho está aí, nossas experiências e vivencias são diferentes, nossas construções são diferentes, a socialização homogênea não existe, há de se fazer recortes diversos, inclusive em contexto de época, raça e posição econômica. Ao proferir a frase "a socialização não falha" com o objetivo de deslegitimar a vivência de pessoas trans, estas cisativistas estão deslegitimando o feminismo, pois se algo não é falho, logo não pode ser combatido, os sujeitos do feminismo seriam obedientes e não contestariam a tal socialização, então porque existir feminismo? Somos seres construídos e desconstruídos constantemente, apontar que algo não é falho é pura desonestidade intelectual ou falta de empatia. Afinal, o que pensam essas cisativistas? Pessoas trans não colocam suas vidas em risco ao transicionarem por mero capricho ou porque querem sofrer as mais diversas violências sociais. Transicionamos para termos nossos gêneros respeitados e nossos corpos inteligíveis.

FONTES:
Maia, G. F.; Romcy, D. Estudos de gênero, material didático para a disciplina estudos de gênero do custo de Sociologia licenciatura da ufsm, 2012.





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