REPRESENTAÇÃO IDENTITÁRIA EM TIMOR-LESTE: CULTURAS E OS MEDIA

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO ANGLÍSTICO

REPRESENTAÇÃO IDENTITÁRIA EM TIMOR-LESTE CULTURAS E OS MEDIA

VICENTE PAULINO

___________________________________________________ Doutoramento em Ciências da Cultura Especialidade Comunicação e Cultura

http://repositorio.ul.pt/handle/10451/7402

2012

UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO ANGLÍSTICO

REPRESENTAÇÃO IDENTITÁRIA EM TIMOR-LESTE CULTURAS E OS MEDIA

VICENTE PAULINO

Tese orientada por Professor Doutor Ernesto Rodrigues ___________________________________________________ Doutoramento em Ciências da Cultura Especialidade Comunicação e Cultura

2012

A presente tese teve o apoio financeiro da Fundação Calouste Gulbenkian

À memória dos meus avós Miguel Barreto, Alarico Leso e Regina Soi dos Santos e duma forma muito especial à memória da minha avó Boe-Mau.

Agradecimentos

Elaborar um trabalho académico é uma aventura única na vida de um „ser‟ aprendente. Este aprendente rema o seu barco no mar azul, viajando para „além‟ do horizonte com nevoeiro plasticizado e desconhecido. Este „além‟ é o horizonte ilimitado que o aprendente procurará conquistar através do seu „sonho desafiador‟, com o fim de encontrar o „sonho de progresso‟ que, de certo modo, é um processo realizado através do esforço físico e psicológico. Sentidamente, queremos agradecer a todos quantos deram o seu melhor contributo, fosse de que forma fosse, na construção deste „sonho de progresso‟, levando-o no barco de „esperança‟ a bom porto.

Ao Professor Doutor Ernesto Rodrigues que me orientou com paciência e sabedoria, pela sugestão e crítica que se impunham e pela disponibilidade e amizade que sempre me dispensou, um muito obrigado.

À Fundação Calouste Gulbenkian pela bolsa concedida e à UCCLA pela disponibilização do alojamento.

Ao Professor Doutor David Kennet Jackson, da Universidade Yale, e ao responsável da Biblioteca da Universidade Yale, pela disponibilização do precioso material jornalístico (cópia do microfilme A Voz de Timor), sem o qual este trabalho ficaria incompleto.

Aos professores do Departamento Anglístico da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, especialmente o Professor Doutor Manuel Frias Martins, a Professora Doutora Teresa Malafaia, a Professora Doutora Angélica Varanda, o Professor Doutor Carlos Gouveia, o Professor Doutor Ernesto Rodrigues, pelos valiosos percursos das suas disciplinas.

Aos amigos: Filomena da Imaculada Conceição Pinto, Manuel Caldas e família, André Faria e família, Higino Faria e família, Malaquias e família, pela amizade de longos anos que sempre dispensaram, um muito obrigado.

iv

Ao amigo Lúcio Sousa, pela amizade e troca de ideias; à amiga Sabina da Fonseca, pelas dicas sobres os termos do Fataluku e pela revisão dos textos; à Cláudia Castelo, pela disponibilização da „Lista do espólio documental de Ruy Cinatti do Museu Nacional de Etnologia‟, sem a qual não poderia justificar a existência dos “Vocabulários timorenses”.

Aos colegas da equipa do Projecto As ciências da classificação antropológica em Timor Português, financiado pela FCT (Ref.ª HC/0089/2009): Ricardo Roque, Gonçalo Antunes, Frederico Delgado Rosa, Lúcio Sousa, Cláudia Castelo, pela amizade e partilha de conhecimentos.

Aos meus pais Manuel e Agostinha, ao meu irmão Mateus, ao meu irmão Salomão e família, pelo vosso incondicional apoio e carinho.

v

Epígrafe

Deus quis, o homem sonha, a obra nasce (Fernando Pessoa)

Repito a corrida na memória quando estou parado […] Sei que estou em viagem na palavra que se move (Faria)

Recordo a corrida da minha infância quando estou adormecido, sei que estou em viagem na memória que se move; Quando estou acordado, sei que estou em tudo do nada. (Paulino)

Porém, “sei que nada sei” (Sócrates)

vi

Resumo

Este trabalho de investigação incide na análise dos traços culturais timorenses como fundamento da construção da sua identidade. Timor-Leste é constituído por um conjunto de crenças, costumes, ideias e valores, bem como de artefactos, objectos e instrumentos materiais que devem ser valorizados e desenvolvidos através de estudos mais pormenorizados, como destacaremos, sobretudo, na análise dos dois jornais – Seara e A Voz de Timor. A concepção de traços culturais como instrumento para legitimar discursos e acções da construção de uma representação identitária dá-se também em Timor, em que a comunicação e a cultura se intersectam na vivência colectiva. Por isso, a comunicação é muito importante para uma compreensão mútua entre diferentes culturas em busca de uma unidade para o bemestar comum. É necessário salientar que o povo de Timor, em virtude do seu legado cultural, construiu a própria habitação, ou knua, que passou a ser considerada a representação simbólica da identidade pessoal e colectiva. Importa sublinhar, também, que a legitimação da soberania de Timor-Leste como Estado-nação é resultado do contributo dado pelos media, desde 1975 até 1999. Timor-Leste é um país multilingue e multicultural, um país „mestiço na língua e na cultura‟. Assim, a língua não é em si mesma uma afirmação estática, mas está ligada à dinamização do sentimento de pertença, muitas vezes partilhada com outras ideias de etnicidade, religião e história comum. Desta forma, o campo da comunicação e o universo da cultura constituem âmbitos de vasto alcance para os investigadores, pois respeitam a actividades humanas que se foram desenvolvendo à medida do homem e das sociedades, levando-nos a clamar ao mundo que a “minha pátria é a minha cultura” (Paulino, 2012a). Pretendemos desta forma caracterizar, reconhecer e identificar os elementos essenciais que configuram e formulam a identidade timorense, recorrendo a uma recensão de conteúdos literários e mediáticos que se encontram por trabalhar, o que permite o desenvolvimento de uma pesquisa inovadora no contexto dos estudos culturais e dos media sobre Timor-Leste.

Palavra-chave: Cultura e Comunicação, Língua e Línguas Timorenses, Seara e A Voz de Timor, Identidade Timorense, Casas Sagradas, Agenda dos Media.

vii

Abstract

This research focuses primarily on the analysis of Timorese cultural traits as the basis for the construction of their identity. East Timor is constituted of a set the beliefs, customs, ideas, values and the artifacts, objects and materials instruments that should be valued and developed through more detailed studies, such as highlight, especially in the analysis of two newspapers - Seara and A Voz de Timor. The concept of cultural traits as a tool for legitimizing discourses and the actions building a collective identity representation, which also occurs in Timor, in which communication and culture intersect in the collective experience of the Timorese people. Therefore, communication is very important for mutual understanding between different cultures in search of a unit for collective well-being commonplace. It should be noted that the people of Timor, by virtue of their cultural heritage, built his house, so knua building, which has been considered the symbolic representation of their personal and collective identity. It should be noted also that the legitimacy of the sovereignty of East Timor as a nation-state is the result of the contribution of media, from 1975 until 1999. East Timor is a multilingual and multicultural country, so should characterize it as a country „mixed in language and culture‟. Thus, the language is not in itself a static statement, but rather, is linked to stimulation of the sense of belonging, often shared with other ideas to share as ethnicity, religion and common history. Thus, the field of communication and the world of culture are areas of broad scope for researchers, because of course relate to human activities that have been developed depending on the evolution of man and society, that even one day, one of us will exclaim to world that “my motherland is my culture” (Paulino, 2012a). The aim is thus to characterize, recognize and identify the essential elements that shape and formulate Timorese identity, using a recension of literary content and media that are to work, allowing the development of an innovative research in the context of cultural studies and the media about East Timor.

Key-words: Culture and Communication, Language and Timorese Language, Seara and A Voz de Timor, Timorese Identity, Sacred Houses, Media Agenda

viii

Índice Geral

Agradecimentos

iv

Resumo

vii

Abstract

viii

Índice das figuras, gráficos, tabelas

xiv

Introdução

1

1. Objectivos e metodologia

3

2. Explicitações e fundamentações teóricas

8

2.1. As dimensões da cultura

8

2.2. Identidade

13

2.3. Dimensões da representação

16

2.4. Comunicação e cultura

19

2.5. Língua e cultura

21

Primeira Parte – Os traços culturais como fundamento da construção de uma

25

identidade timorense Capítulo 1 – Diversidade identitária cultural e representação estrutural da

29

sociedade timorense 1. Consideração prévia

29

2.Povos e territórios

31

2.1. Os mitos e as crenças do povo de Timor

31

2.2. A génese dos timorenses

34

2.3. Estrutura organizacional dos reinos e suas fronteiras

38

2.4. A identidade territorial timorense

44

2.5. A vida social vista na sua tradição

47

3. A palavra Lisan como análogo de cultura

52

4. Nahe biti boot como matriz da democracia e da justiça social dos timorenses

57

5. Considerações finais

60

ix

Capítulo 2 – Linguagem artística e simbólica da Uma (casa) e Uma-Lúlik

63

(casa sagrada) 1. Consideração prévia

63

2. Linguagem artística, simbólica e arquitectónica de Uma e Uma-Lúlik

65

3. A função de uma e uma-lúlik na vida social, política e económica timorense

69

4. Dos seus significados como metáfora da nação

72

4.1. Do Bunak

78

4.2. Do Makasae

81

4.3. Do Mambae

84

4.4. Do Tétum

87

4.5. Do Quemak

90

5. Considerações finais

92

Capítulo 3 – As línguas de Timor-Leste

95

1. Consideração prévia

95

2. Língua materna de cada grupo étnico

96

3. O Tétum: Tétum-Térik e Tétum-Praça

102

3.1. A contribuição da Igreja Católica no desenvolvimento do Tétum

104

3.2. A nacionalização do Tétum

105

4. A Língua Portuguesa em Timor

107

4.1. Como veículo da administração

108

4.2. Como veículo de instrução

110

4.3. A proibição da língua portuguesa e a imposição da bahasa indonésia

113

4.4. Língua Portuguesa e Resistência Timorense

115

4.5. Reintrodução do Português como símbolo de reafirmação

116

da identidade nacional 5. Considerações finais

121

Segunda Parte – Imprensa católica e imprensa do governo colonial

123

Capítulo 4 – Seara – Boletim Eclesiástico da Diocese de Díli

127

1. Consideração prévia

127

2. Seara: jornalismo católico em Timor

129

x

2.1. Os objectivos na perspectiva editorial e a vida da publicação

130

2.2. Seara: a aproximação possível entre o jornalismo e fé

136

2.3. Seara como jornalismo de catequese e pedagogia

139

2.4. A moral cristã e religiosa são temas principais da Seara

141

2.5. Relação entre redactores, leitores e assinantes

146

2.6. O total artigos publicados pela Seara

150

3. O conteúdo do jornal, redactores e colaboradores

152

3.1. Formato

152

3.2. Aspecto da capa, sumário e ficha técnica

153

3.3. Preço

156

3.4. Redactores e colaboradores

157

4. A propaganda e a relação entre a Igreja e o poder colonial

157

5. Artigos de opinião mais representativos

161

6. A Igreja Católica, educação e nacionalismo timorenses

164

6.1. Educação

165

6.2. Seara e nacionalismo timorense

171

7. Lendas e tradições timorenses na Seara

173

7.1. Lendas e contos timorenses na Seara

174

7.1.1. Lendas mitológicas

176

7.1.2. Lendas totémicas

183

7.1.3. Contos mestiços

186

7.2. Tradições e costumes abordados na Seara

191

7.2.1. Visões sobre Díli e Tutuala

192

7.2.2. Visões sobre Barlaque

194

7.2.3. A invenção da alma timorense

197

8. Considerações finais

204

Capítulo 5 – O semanário A Voz de Timor

205

1. Consideração prévia

205

2. A Voz de Timor: um jornalismo colonial

205

2.1. Os objectivos na perspectiva editorial e a vida da publicação

209

2.2. O conteúdo do jornal, redactores e colaboradores

213

xi

2.2.1. Formato/estilo

213

2.2.2. Aspecto da primeira página

214

2.2.3. Secções gerais e específicas

216

2.2.4. Título do jornal e o título de informação

217

2.2.5. Ficha técnica

219

2.2.6. Tiragem, preço e circulação de publicação

219

2.2.7. Redactores e colaboradores

220

3. Género jornalístico

222

3.1. A divulgação de notícias

223

3.1.1. A divulgação de notícias da metrópole, internacionais e das

224

restantes colónias 3.1.2. A divulgação de notícias locais

227

3.2. Apelos ou anúncios aos leitores ou assinantes

230

3.3. A interacção entre leitores-redactores

230

4. A propaganda política da metrópole sobre as suas colónias

234

5. Artigos de opinião mais representativos

238

6. As autoridades coloniais: discurso e as suas acções

241

6.1. Educação

244

6.2. Saúde

247

6.3. Transportes, telecomunicações e serviços postais

249

6.4. Economia

251

6.5. Turismo

254

7. Os traços culturais timorenses n‟A Voz de Timor

255

7.1. Lendas

257

7.2. As artes timorenses

258

7.3. Barlaque

261

8. Considerações finais

267

Terceira Parte – A formação da identidade nacional e a agenda dos media

269

de 1975 a 1999 Capítulo 6 – Para clarificação do conceito da identidade timorense 1. Consideração prévia

271 271

xii

2. O colonialismo português e o discurso da definição do conceito

272

de identidade timorense 3. Memória e nacionalismo timorense na construção da identidade nacional

279

4. Unidade e etnicidade imaginada no Timor Pós-colonial e da

283

Resistência: Questão do Firaku e Kaladis 5. A importância da unidade e etnicidade na construção do Estado-aação

287

timorense 6. O paradigma Mauberiano e etnicidade como símbolo da identidade nacional

291

7. Considerações finais

294

Capítulo 7 – A agenda dos media em Timor-Leste de 1975-1999

297

1. Consideração prévia

297

2. Controlo dos media e as armas silenciosas

298

2.1. Máscara do silêncio: a morte de cinco jornalistas estrangeiros

303

2.2. Timor-Leste nos jornais australianos e indonésios (1975-1988) 3. Período de despertar, de explosão e de consolidação (1989-1996)

307 316

3.1. A visita do Papa

318

3.2. O Massacre de Santa Cruz: o silêncio quebrado

320

3.3. Nobel da Paz

329

4. A dimensão de ética e política da opinião pública

329

4.1. O jornalista e a prova da Resistência

335

4.2. Timor-Leste nas páginas do Diário de Notícias e do Expresso

340

4.2.1. Diário de Notícias

341

4.2.2. Semanário Expresso

344

5. Fase de consagração

348

6. Considerações finais

353

Conclusão

355

Bibliografias

361

Anexos

383

xiii

Índice das figuras, gráficos e tabelas

Figuras: Figura 1 – Mapa de Timor-Leste

28

Figura 2 – Exemplo organização social tradicional dos timorenses

41

Figura 3 – Danças timorenses tebe e bidu do grupo de Bei Gua

49

Figura 4 – Adat enquanto centro de vida comunitária

53

Figura 5 – Cartaz junto à Biblioteca Xanana Gusmão de Díli e cartaz na rua de

61

arredor de Díli Figura 6 – Arquitectura e tipologia da casa timorense

66

Figura 7 – A função da casa sagrada

71

Figura 8 – A representação simbólica da casa

76

Figura 9 – Mapa das línguas locais faladas em Timor-Leste

97

Figura 10 – A posição da Seara na época colonial e pós-colonial

131

Figura 11 – O espaço genérico da acção do jornalismo católico

131

Figura 12 – Capa da SEARA do ano 5, nº 3 de 1953

153

Figura 13 – Capa da SEARA do ano 8, nº 1 de 1956

153

Figura 14 – Capa da SEARA do ano 8, nº 2 de 1956

154

Figura 15 – Capa da SEARA do ano 10, nº 2 de 1958

154

Figura 16 – Capa e resumo das notícias do ano 1, nº 1 de 1949

155

Figura 17 – Resumo de notícias na segunda página, ano 5, nº 3 de 1953

155

Figura 18 – O título do jornal A Voz de Timor

215

Figura 19 – Logótipo d‟A Voz de Timor

216

Figura 20 – Título do jornal A Voz de Timor e respectivos elementos que constituem

218

a ficha técnica Figura 21 – Título do jornal A Voz de Timor e respectivos preços na página 4 e 6

220

Figura 22 – Apelos da direcção do jornal aos seus leitores e assinantes

230

Figura 23 - O triângulo da comunicação política no esquema da Resistência timorense 338

xiv

Gráficos: Gráfico 1 – Evolução das principais línguas timorenses, 1961-2001

96

Gráfico 2 – Cobertura noticiosa local pela SEARA de 1949 até 1973 segundo a

135

proveniência geográfica da informação Gráfico 3 – Artigos publicados pela SEARA segundo o ano

151

de publicação (1949 até 1973) Gráfico 4 – Artigos publicados pela SEARA de 1949 até 1973 segundo a

151

caracterização do tema Gráfico 5 – Percentagem dos alunos matriculados 1953 a 1961

169

Gráfico 6 – Artigos publicados pel‟A Voz de Timor segundo a caracterização do tema

210

Gráfico 7 – Artigos publicados pel‟A Voz de Timor segundo o género jornalístico

223

Gráfico 8 – Cobertura noticiosa d‟A Voz de Timor segundo a proveniência

226

geográfica da informação Gráfico 9 – Cobertura noticiosa local pel‟A Voz de Timor segundo a proveniência

228

geográfica da informação Gráfico 10 – Os alunos matriculados no ensino primário em 1965 segundo a

244

caracterização das regiões Gráfioco 11 – Artigos publicados pela imprensa australiana e outra imprensa

208

estrangeira, entre 11 de Agosto e 1 de Outubro de 1975 Gráfico 12 – O volume de notícias publicadas pela imprensa australiana e outra

309

imprensa estrangeira sobre a invasão iminente, Outubro e Novembro de 1975 Gráfico 13 – A cobertura dos jornais australianos sobre os acontecimentos

314

em Timor, 1975-1993 Gráfico 14 – Timor-Leste nas páginas do Diário de Notícias, 1975-1982

342

Gráfico 15 – Artigos sobre Timor-Leste publicados pelo Expresso segundo o

344

ano de publicação

Tabelas: Tabela 1 – O exemplo de classificação da casa sagrada da população de Vemasse

83

Tabela 2 – As casas sagradas do Kemak de Ritabou Atas, Maliana

92

Tabela 3 – Exemplo do pronome pessoal e da preposição da frase em língua Bunak

98

Tabela 4 – Exemplo do pronome pessoal em língua Makasae

99

xv

Tabela 5 – Registo demográfico da Igreja Católica de Timor

132

Tabela 6 - Artigos de opinião mais representativos na SEARA

162

Tabela 7 – Alunas matriculadas no Colégio Imaculada Conceição de Soibada

168

em 1958/1959 Tabela 8 – Lendas e contos timorenses publicados na Seara

175

Tabela 9 – Artigos de opinião mais representativos publicados pel‟A Voz de Timor,

238

carácter narratológico literário e jornalístico Tabela 10 – Artigos de opinião que integram a categoria da crónica desportiva

239

Tabela 11 – O movimentos dos alunos no ensino primário e liceal

245

na década de 1959 até 1969 Tabela 12 - Dados das Alfândegas de Timor relativos aos anos de 1970 a 1974

253

Tabela 13 - Estrutura da informação na categoria Ásia

330

xvi

Introdução

Os debates teóricos em torno das questões associadas à identidade cultural e nacional timorense ocupam hoje um lugar extremamente significativo nos discursos dos mais variados campos do conhecimento – da sociologia, da política e das relações internacionais, da antropologia, da linguística e literatura, entre outros. Nas últimas décadas, a preocupação com este tipo de problemáticas não pode ser dissociada dos desenvolvimentos verificados no âmbito da diversidade cultural e linguística em Timor-Leste, patentes nos estudos póscoloniais. Estes estudos, face à observação da sociedade timorense cada vez mais diversificada e unida, têm-se ocupado com a compreensão dos mecanismos de adaptação individual e colectiva a esta diversidade de culturas, línguas, etnias, religiões. Os movimentos culturais radicados em Timor-Leste e ainda a entrada das novas culturas de outras regiões, trocas culturais geradas pela colonização portuguesa e afirmação identitária de matriz étnica para a matriz nacional, são exemplos que apontam para a possibilidade de uma assimilação cultural, evidenciando que o sujeito ‘Eu’ – indivíduo, cultura ou povo – se constrói sempre no confronto com o ‘Outro’. Não será preciso reforçar o argumento do enfoque disciplinar do estudo, dado que o exercício da concepção ontológica dos valores históricos e culturais que dão forma à ideia de nação pode aplicar-se ao sentimento de identidade nacional, na medida em que “há mais de duzentos anos a nação foi olhada como a própria, sem dúvida, a única legítima regra de unidade política. […] Assim, a ideia de ‘nação’ foi usada como uma via para estabelecer uma base não-arbitrária para as fronteiras do estado” (Heywood, 2004:97); enquanto a formação do Estado-nação tem a ver com os aparatos, tais como a distinção da estrutura política, economia, divisão do trabalho e o sistema educacional, cultura, língua e costumes (Pecora, 2001:2). A esta luz, o Estado-nação surge como o mais alto elemento de soberania, já que é sustentada pela legitimidade das normas de unidade política, inerente à ideia de nação, e pela força que caracteriza o Estado. Timor-Leste é um país jovem do século XXI, acabado de nascer. Um país que esteve sob domínio colonial português durante cerca de quatro séculos e sofreu os efeitos da ocupação japonesa durante a Segunda Guerra Mundial. Mas respirou a sua nova esperança quando a ‘revolução dos cravos’, em Portugal, pôs fim ao regime salazarista, abrindo novo espaço para que os timorenses decidissem o seu futuro, à semelhança do que aconteceu com 1

as restantes colónias portuguesas em África. Mesmo assim, o sonho dos timorenses – ser um país independente – foi interrompido pela invasão e ocupação da vizinha Indonésia. Timor-Leste é um país de pluralismo cultural, constituído por diversos grupos etnolinguísticos que, todavia, parecem decididos a convergir numa única plataforma a que poderíamos chamar ‘consciência nacional’, na medida em que alia o sentimento profundo do povo timorense com uma crescente percepção racionalizada de que existe uma identidade nacional única, acrescida da vontade de formar um Estado independente e soberano, capaz de escolher livremente o seu próprio destino. Tudo se passa como se a singularidade no nosso ‘eu pessoal’ e ‘colectivo’ e a percepção da nossa história comum impelissem os cidadãos timorenses a cumprirem o desígnio de fazer da sua nação um Estado. Deste delicado compromisso entre a ‘identidade pessoal’ e ‘colectiva’ na construção da ‘identidade nacional’ fala-nos Maria Regina Marchueta (2002a:31): “O sentimento da identidade nacional terá emergido ao tempo da própria consciência social, na medida em que a identidade, inerente ao pensamento humano, releva da interiorização e consciencialização de elementos de singularização do eu pessoal e colectivo”. Em Timor-Leste é muito vulgar a afirmação de uma identidade cultural e religiosa, desde que os portugueses aí desembarcaram. Eles encontraram um povo que já não era caçador nem pastor, mas um povo agricultor com um estado político bem definido como nação. Apesar de nenhuma civilização ocidental ter penetrado em Timor, “O homem tinha abandonado os bosques, a vida errante e nómada, e havia-se fixado nas terras cultiváveis. A tribo tinha-se transformado em aldeia, e a aldeia havia estabelecido relações com outras aldeias vizinhas formando estado. Pequenos e miseráveis estados, mas com todos os elementos que constituem nação” (Castro, 1867:17). O processo de construção da identidade nacional do povo de Timor-Leste terá começado, justamente, a partir da constituição arbitrária das fronteiras terrestres do actual território, há cerca de 500 anos. É bem provável que, pela primeira vez, uma imensa diversidade de pequenos povos tenha começado a partilhar, primeiro, a estranheza, depois o incómodo e, finalmente, a revolta contra o invasor comum. Todavia, cada reino, ou grupo étnico, procurava reagir isoladamente e, de algum modo, a identidade do povo de Timor-Leste começou por ser, nesse tempo, uma pequena semente contendo já inscrito, qual código genético, o desígnio que fará dela uma planta frondosa sob a qual se acolhem hoje todos os timorenses. É necessário salientar também que existe uma forte relação entre o diferenciado e o colectivo na construção da identidade nacional do EstadoNação Timor-Leste, como demonstra Matoso (2001:6): “Por um lado, é inevitável admitir que 2

o fenómeno da identidade nacional tem sempre de se revelar de forma diferenciada […]. Por outro lado, a proclamação da independência é ela própria um momento muito importante do processo de conscientização colectiva da identidade, embora não seja suficiente para lhe garantir a sua clareza”. A identidade cultural que Timor-Leste tem hoje, do ponto de vista histórico, é composta por incontáveis influências e aculturações; acreditamos, assim, que a cultura timorense está em posição privilegiada para reagir afirmativamente, mercê de uma situação do seu legado histórico de partilha da ‘memória colectiva’, ou seja, o resultado de afirmação da diferença veio da realidade vivida num período de cerca de cinco séculos em relação aos outros povos/nações asiáticos, das ilhas pacíficas e europeias. É uma consagração dos discursos orais que, mais tarde, os portugueses efectivaram como uma construção textual, seguindo de perto a matriz histórica, lendária e cultural do povo timorense, com o fim de afirmar a ‘naturalidade’ da existência da ilha de Timor, que hoje se encontra como país independente no quadro da Ásia-Pacífico.

1. Objectivos e metodologia

O objectivo central da investigação aqui desenvolvida é procurar compreender os contornos e as especificidades da representação identitária em Timor-Leste: culturas e os media, seja nos modos como a representação identitária é considerada e tratada pelos seus agentes culturais directos e agentes dos media, seja nos modos como a representação identitária é construída, afirmada e introduzida por todo o timorense, que está inscrita na sua história nacional e com que converge mutuamente. A este respeito, citaremos as palavras de Gadamer acerca da formulação dos objectivos de investigação por ele destacados no prefácio da segunda edição de Verdade e Método (1975:19): Objectivo da minha investigação não é o de expor uma teoria geral da interpretação e uma hipótese diferente dos seus métodos (que E. Betti desenvolveu brilhantemente), mas descobrir o que há de comum a todas as formas de compreensão e demonstrar que a compreensão não é nunca um comportamento subjectivo em relação a um determinado ‘objecto’, mas em relação à sua história real e a história da sua influência; por outras palavras, a compreensão pertence à essência daquilo que é compreendido.

Interpretar e analisar os objectos de estudo é procurar compreendê-los numa forma específica e abordá-los com a observação analítica a partir da expressão ‘compreender’. 3

Heidegger (1962:188), em Ser e Tempo, defende que a interpretação “radica existencialmente na compreensão” e “Quando interpretamos não atiramos, se assim se pode dizer, com uma ‘significação’ para cima de algo que se encontra descoberto ou desnudado ao alcance da nossa mão, não lhe colamos um valor; mas quando algo integrado no universo é confrontando enquanto tal, esse algo possui já um envolvimento que é revelado na nossa compreensão do mundo, e esse envolvimento torna-se explicito na interpretação” (Idem:190-191) Noutro sentido, interpretar é problematizar o objecto em estudo, podendo ainda significar uma necessidade de “definir as condições nas quais o ser humano ‘questiona’ aquilo que é, aquilo que faz e o mundo onde vive”, e ainda, “analisar, não só comportamentos nem as ideias, não as sociedades nem as suas ‘ideologias’, mas as problematizações através das quais o ser se dá como podendo e devendo ser pensado e as práticas a partir das quais elas se formam” (Foucault, 1984:16). A propósito, José A. Bragança Miranda (1998) argumenta que a experiência é a estruturação de certos problemas e das respostas históricas que mereceram. Problematizar significa, portanto, reabrir problemas aparentemente solucionados, que se inscreveram no ‘real’, ganhando efectividade1. Contudo, os pressupostos desta investigação são, mais uma vez, fundamentalmente os traços culturais timorenses como fundamento da construção de sua identidade, que foi sendo não só o que o povo de Timor quer ou pode ser, mas também o resultado de Resistência e a formação do sentimento de pertença que cria a ideia da nação, reconhecendo assim “os traços essenciais do processo de construção da identidade e da representação cultural dos timorenses, enquanto elementos indispensáveis na recuperação e preservação da identidade histórica e cultural, qual fraternidade mitológica que se estabelece entre os filhos da pátria timorense e que é decisiva para a formação de uma consciência nacional” (Paulino, 2009:3). Como tal, a importância do estudo académico de conhecer a diversidade e a identidade cultural, histórica, religiosa e linguística de Timor-Leste constitui uma tarefa que requer responsabilidade, experiência e estudo prolongado. De um modo geral, este estudo tem por objectivos científicos de investigação: desenvolver a pesquisa no ramo das ciências da comunicação e da cultura, bem como na perspectiva antropológica e sociológica; identificar novas ideias e sugestões práticas para a configuração de sistemas de tradições na construção da identidade timorense; proporcionar um contributo académico para a promoção de um debate mais amplo, tendo em vista a reconstrução de uma nova visão específica e das respectivas necessidades timorenses; motivar

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Fonte: http://rae.com.pt/jbm_cultura.htm#_ftnref2 (consulta a 13/12/2011).

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as autoridades para o conhecimento e funcionamento das organizações públicas locais numa perspectiva comparativa; providenciar o conhecimento de académicos timorenses nesta área, em especial na língua oficial portuguesa, de forma a aproveitar e potenciar o acervo científico acumulado pela longa presença portuguesa em Timor; descrever e compreender a cultura timorense; analisar a forma como os agentes coloniais portugueses (governadores, investigadores, missionários, funcionários públicos e militares) interpretaram e transmitiram a vida social do povo de Timor e respectivas práticas culturais; desenvolver e fazer a análise descritiva de dois jornais, Seara – Boletim Eclesiástico da Diocese de Dili e A Voz de Timor, fundados no tempo colonial, como produto de uma determinada época e de um determinado espaço; analisar a forma como os media portugueses e outras agências noticiosas internacionais têm transmitido notícias sobre Timor-Leste, desde 1974 (com a revolução em Portugal), o conflito civil e a invasão Indonésia de 1975, a ocupação e o referendo sobre a independência em 1999. Os objectivos traçados são elementos que irão acompanhar a nossa compreensão acerca da realidade social de um povo que partilha a mesma ou diferente experiência num espaço comum, pois, segundo Dilthey (1958:156 ss) citado por Quentin Skinner (1992:36), “Toda e qualquer expressão humana singular constitui algo comum a muito e, por conseguinte, faz parte do domínio do espírito objectivo. Toda a palavra ou frase, todo o gesto ou fórmula de cortesia, toda a obra de arte e todo o evento histórico, só são compreensíveis porque o indivíduo que se exprime e aquele que o compreende estão ligados por algo que têm em comum; o indivíduo experimenta, pensa, age e compreende também e sempre nesta esfera comum”. Para alcançar os objectivos propostos, colocamos as seguintes questões: A que zona pertence Timor-Leste? Qual é a estrutura social e política? Qual é o conceito da lisan? E qual é a sua função na sociedade timorense? Qual é a função das práticas culturais timorenses nahe biti boot e as casas sagradas no contexto da afirmação identitária timorense? E porque é que as casas sagradas assumem um papel importante para os timorenses na afirmação da sua identidade nacional? Quais são as línguas timorenses? Quais são as razões da escolha do Português como língua oficial de Timor-Leste? Será que a identidade timorense é relatada ou narrada na literatura? Porque é que A Voz de Timor é considerado como jornalismo colonial? Porque é que a Seara é classificada como jornalismo católico? Quais são os interesses dos missionários ao utilizarem a revista Seara para promover e divulgar o Evangelho? Quais são os interesses dos missionários ao publicarem as lendas e contos timorenses na Seara?Quem são os autores das notícias e artigos de opinião publicados na Seara e n’A Voz de Timor? Qual 5

é o género de notícias transmitidas pela Seara e pel’A Voz de Timor? Quem são os leitores? Será que os dois jornais contribuíam para a formação da identidade timorense? Qual era a agenda dos media em Timor-Leste desde 1975 a 1999? Postas estas questões, desenvolvemos a nossa pesquisa em diversas modalidades que poderão ser úteis para uma reflexão contínua sobre a relação das temáticas de representação identitária timorense, culturas e os media a serem abordadas ao longo deste trabalho. Face à extensão da pesquisa e ao tempo exigido para a redacção deste trabalho, vimonos constrangidos, segundo as problemáticas em reflexão, a optar pela selecção de informações obtidas que, tendo em conta o elevado grau de representatividade, pensamos traduzirem bem a realidade do território e da gente de Timor-Leste. A investigação compreende o levantamento bibliográfico sobre arquivos dos media durante a administração portuguesa, nomeadamente A Voz de Timor e a Seara – Boletim Eclesiástica da Diocese de Díli (até 1973, e 1999 ed. especial 50 anos), bem como os do Diário de Notícias, Expresso e Publico, que nas suas páginas, deram especial destaque à questão chamada ‘Timor-Leste’. Fizemos também o levantamento bibliográfico de outros documentos necessários que falam das questões principais sobre culturas, usos e costumes timorenses. Na primeira parte, procurámos caracterizar, reconhecer e identificar os elementos essenciais que, de algum modo, configuram e reformulam a identidade timorense, sobretudo, a evolução e aplicabilidade dos mitos e a linguagem artística e simbólica da Uma (casa) e Uma-lúlk (casa sagrada) na construção da representação identitária do povo de Timor. Porém, antes de tudo, ocorre-nos perguntar se será lícito falar-se de uma cultura de Timor. É natural que quem pela primeira vez visita Timor ou ouve pronunciar este encantado nome da ilha fique surpreendido pela sua diversidade cultural. A Uma e Uma-Lúlik são elementos particulares que os timorenses consideram como berço da sua identidade nacional, luzes de memória colectiva e tomadas como referência típica e simbólica. Isto é, a casa enquanto espaço familiar e espaço social está quase todos ligados por laços de diversos graus de parentesco. Procurámos desenvolver também as principais vias a partir das quais se tornou possível a construção da identidade nacional timorense, a saber: a composição etnolinguística dos timorenses através das descrições de línguas de cada grupo étnico, tétum-térik e tétum-praça. A descrição da composição plurilinguística foi justificada por Mendes Correia (1944:117), segundo o qual, “em Timor os grupos étnicos estão numa pulverização máxima e irregular, de

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que as diversidades linguísticas dão a medida”, podendo esta heterogeneidade linguística de um território tão pequeno sustentar o contacto entre vizinhos de diferentes culturas. O contributo da Igreja Católica no desenvolvimento do Tétum foi muito importante do ponto de vista de valorização da identidade linguística timorense. Quanto à nacionalização do Tétum a par do Português, é um modo de reforçar a cultura linguística timorense para promover os valores identitários timorenses, reconhecendo-o como um elemento fundamental de uma nação plurilinguística; iremos abordar a questão do Português em Timor enquanto língua de resistência em oposição à cultura indonésia, o problema da sua reintrodução, a sua contribuição para uma abordagem da identidade nacional. Na segunda parte, a nossa observação centrar-se-á na área do jornalismo, nomeadamente, a Seara – Boletim Eclesiástico da diocese de Dili e A voz de Timor. Iremos focalizar a nossa abordagem descritiva nos dois jornais referidos numa perspectiva interdisciplinar, pois entendemos que, segundo Charaudeau (1997:9), os media devem ser analisados numa perspectiva interdisciplinar focalizada e deve-se entendê-los num enquadramento das diversas disciplinas (como a do jornalismo, a de ciências da comunicação em geral, semiótica, retórica e a da antropologia da comunicação e/ou da sociologia da comunicação), que têm como objectivo o estudo do sentido e dos sistemas simbólicos. Com efeito, consideramos os dois tipos de imprensa, a Seara e A Voz de Timor, como elementos de divulgação do conhecimento social, porque desempenham um papel importante na sociedade timorense naquela época, pois os media constituem um poderoso instrumento de cognição social na legitimação e na reprodução de grupos e crenças dominantes Van Dijk (1994). Na terceira e última parte, teremos sob análise a fase da formação da identidade nacional e do Estado-nação timorense, identificando como horizonte o olhar crítico sobre o colonialismo português e o discurso da definição do conceito de identidade timorense; memória e nacionalismo timorenses na construção da sua identidade nacional como Estadonação; unidade e etnicidade imaginadas no Timor pós-colonial e da Resistência: Questão de Firaku e Kaladis; a importância da unidade e etnicidade na construção do Estado-Nação timorense, o paradigma ‘Mauberiano’ e etnicidade como símbolo da identidade. Abordaremos, de seguida, “o contributo dado pelos media, quer para a construção da identidade nacional timorense, quer para o seu reconhecimento decisivo por parte da comunidade internacional” (Paulino, 2009:3) para a legitimação da soberania de Timor-Leste como Estado-nação.

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2. Explicitações e fundamentações teóricas

Ao longo da vida, a nossa identidade individual vai-se alargando para o universal. Mas todo o universal tem o seu chão (Almeida, 1995). Desse chão vazio, dessa mancha original é que o homem constrói a sua identidade. Fazemo-lo num momento em que a emergência de uma cultura à escala global se vai apresentando como um facto irreversível cada vez mais consolidado, potenciado pelo contacto intenso e incontornável entre culturas diferentes, mais ou menos distantes entre si. É nesta perspectiva que a identidade cultural passa a ser evidente, sobretudo, como resultado da influência de interpretação em torno das temáticas como identidade e cultura nacional, raça, etnia, género, globalização, pós-independência, entre as mais importantes, no aspecto dos estudos culturais. Importa sabermos, entretanto, que neste trabalho são realizadas pesquisas sobre diversas modalidades de relações que empreendem e envolvem todos os elementos necessários para uma clara abordagem sobre a noção de comunicação, cultura, língua, incluindo a noção de representação e identidade, que servirão para uma abordagem global ao estudo de “Representação Identitária em Timor-Leste: Culturas e os Media” de acordo com o título do trabalho.

2.1. As dimensões da cultura Se com uma palavra expressamos tantas e tantas coisas diferentes é porque existe entre elas um traço de união comum. Descobrir esse traço de união ou o sentido autêntico subterrâneo, raiz de todas as árvores simbólicas, é missão do poeta ou do homem que de uma vez para sempre se colocou perante si e a Natureza naquele estado puro com que nasceu (Ruy Cinatti, apud Stilwell 1995:45).

Esta asserção de Ruy Cinatti é uma clara afirmação que nos ajuda a aproximar-nos da condição humana relativamente ao mundo e apreciá-la, ou, noutros termos, procura, por um lado, introduzir uma nova visão sobre a existência do ser humano e, por outro, mais rigor no seu modo de agir quanto à socialização e humanização do espaço ambiental. Quer dizer que é próprio da condição humana só atingir a plenitude através da cultura, que engloba trabalho e acção, pois “a condição humana compreende algo mais que as condições nas quais a vida foi dada ao homem. Os homens são seres condicionados: tudo aquilo com o qual entram em contacto torna-se imediatamente uma condição da sua existência” (Arendt, 2001:19-21). À luz 8

desta asserção, Hannah Arendt faz-nos perceber que é na interacção do Homem (no sentido plural do termo) com “o mundo ao qual viemos” que ele “cria, produz e estabelece” o seu próprio “Ambiente”. Todavia, neste processo de transformação do mundo à medida das suas necessidades, o Homem respeitar-se-á tanto mais quanto mais respeitar a Natureza de que também ele é parte. Denys Cuche (2004:29), por seu turno, sustenta que as palavras têm uma história e, em certa medida, elas também fazem a história. Isto, que é verdade para todas as palavras, tornase particularmente verificável no caso do termo ‘cultura’. Para este investigador, as palavras surgem para designar as interrogações a certos problemas que se impõem em períodos históricos de determinados processos de vida social da humanidade. A invenção da noção de cultura é, em si própria, reveladora de um aspecto fundamental na história da humanidade, da qual essa invenção só terá sentido quando compartilhada com outros membros da sociedade que não tenham a mesma cultura. Isto é, com a palavra o homem inventa o nome das coisas, pois a palavra tem um princípio e um fim. O peso da palavra revela-se na interacção humana e nos discursos diários do homem, revela-se na sua essência relacional com a história, com a história que as fez e com a história que as palavras contribuem para fazer. A cultura, na perspectiva colectiva, é uma cultura da humanidade, isto é, uma unidade em que prevalece a consciência da diversidade. No entanto, a definição de cultura é comummente relacionada com a etimologia da palavra colere, no sentido de cultivar a terra, que, no caso concreto de Timor, melhor se adequa a um contexto cultural, a ‘lisan’, a ser abordado. A cultura é constituída por um conjunto de conhecimento, de crenças, da arte, do ético, do direito, dos usos e costumes e de outras capacidades adquiridas pelo homem enquanto membro da sociedade. A cultura é um elemento constitutivo da vida social do homem e caracteriza-se pela sua dimensão colectiva, isto é, na perspectiva antropológicadescritiva, a cultura é entendida como uma noção humanista, vinculada ao desenvolvimento das faculdades humanas e às manifestações literárias e artísticas. Findo no século XIX, a cultura começa a ser entendida como inventariação de práticas e artefactos: duma maneira geral, estudar a cultura significa procurar compreender objectivamente “o conjunto de crenças, costumes, ideias e valores, bem como dos artefactos, objectos e instrumentos materiais, que são adquiridos pelos indivíduos enquanto membros de um grupo ou sociedade” (Thompson, 1998:173). Timor-Leste também constitui um repertório do conjunto destes elementos que devem ser valorizados e desenvolvidos através de estudos mais detelhados, como destacaremos, sobretudo, na análise dos dois jornais – Seara e A Voz de Timor. 9

Terry Eagleton reconhece a problemática que se encontra na abordagem do conceito de cultura, e apresenta uma definição de cultura como produto humano, em certa medida, oposta à natureza na sua dimensão epistemológica, que é por ele questionada: Culture means the active tending of natural growth, then it suggests a dialectic between the artificial and the natural, what we do to the world and what the world does to us. It is an epistemologically 'realist' notion, since it implies that there is a nature or raw material beyond ourselves; but it also has a 'constructivist' dimension, since this raw material must be worked up into humanly significant shape. So it is less a matter of deconstructing the opposition between culture and nature than of recognizing chat the term 'culture' is already such a deconstruction (Eagleton, 2000:2).

Nesta acepção, o autor levanta um pouco o véu sobre a relação entre cultura e natureza. A Natureza estabelece continuidade entre o Homem e o ambiente. Mas, na perspectiva da cultura, o Homem atribui-lhe um significado diferente, porque realça as diferenças. O Homem, apesar de fazer parte da natureza, distingue-se dela pela capacidade de auto-modelarse, como no caso de tara bandu na lisan de Timor, que significa ‘proibição’, no sentido de manter o respeito do Homem pela Natureza. Por isso, os itens naturais acompanham a cultura: “pleasure, desire, art, language, the media, the body, gender, ethnicity: a single Word to sum all these up would be culture” (Eagleton, 2004:39). Aqui já começa a introduzir-se uma outra versão de cultura que está relacionada com a cultura de Estado. Deste modo, há um caminho que perpassa desde a ordem natural à artificial que os interesses políticos governam e defendem juntamente com a cultura do seu povo, dando assim uma continuidade ao percurso histórico da humanidade. A cultura não só diz respeito ao aspecto social, mas também contempla o aspecto individual. Com efeito, a cultura é uma fonte de aprendizagem e de socialização das ideias de pessoas diferenciadas, dos valores relativos e das formas de ver a vida: a cultura desenvolvese a partir da possibilidade de comunicação oral e da capacidade de fabricação de instrumentos, como a manufactura de têxteis (táis) e artesanato (cestaria, olaria, escultura em madeira e bambu e trabalhos em carcaça de tartaruga) produzidos pelos artistas timorenses. A cultura é um termo geralmente utilizado no singular, o que reflecte o universalismo e o humanismo dos filósofos: a cultura é própria do Homem, para lá de qualquer distinção de povos ou de classes. A palavra ‘cultura’ inscreve-se, pois, plenamente na época das luzes, e é associada às ideias de progresso, de evolução, de educação, de razão, que encontramos no núcleo vivo da história da humanidade (Cuche, 2004:32).

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A cultura não pode ser vista como um conceito inerte e estático, mas, como um conjunto polivalente e dinâmico reformulado e adaptado ao sabor do tempo e à vivência social. Neste sentido, a cultura surge como um conjunto diversificado e frequentemente heterogéneo de representações, códigos, leis, rituais, modelos de comportamento, valores que constituem, em cada situação social específica, um conjunto de recursos, cuja função própria se define consoante as necessidades e as circunstâncias. Em Culture and Society 1780-1950, Raymond Williams (1982), sublinha a necessidade de considerar a cultura e a sociedade como ponto de partida para questionar a análise feita aos conceitos de identidade e de representação.Noutra obra, afirma que a natureza das relações estabelece sempre uma ligação directa e de aproximação entre o sujeito individual e o sujeito comum, uma vez que tem de ter em conta as relações mutáveis que se aplicam e praticam entre pessoas (Williams, 1997). À luz do que foi dito, ganha pertinência a crítica de Hegel à noção solipsista de sujeito. Na “Dialéctica do Senhor e do Escravo” (s/d), Hegel faz-nos notar quão importante e decisivo é o reconhecimento do ‘Outro’ como pessoa, isto é, a importância da alteridade para a nossa própria completude. Na sua teoria, Raymond Williams (1982) elabora uma nova concepção de cultura que designa como “a whole way of life”. Inequivocamente, a proposta de Williams leva-nos a pensar a noção de cultura como indissociável da noção de sociedade, porque, sociologicamente, a captação da relação de sentido da acção humana é compreendida a partir de certos fenómenos sociais: como por exemplo, o indivíduo ou um grupo social substitui o factor económico pelo factor religioso para estabelecer inequivocamente a mudança na sociedade (Weber, 1996), como no caso da literatura nacional e identidade cultural inglesa, associando-se à religião e à moral do cristianismo anglicano. É certo que este exemplo está bem visto na literatura nacional e identidade cultural timorenses, que entroncam nos costumes morais tradicionais, incluindo também a moral do cristianismo católico transmitida pelos missionários através dos media (Seara – Boletim Eclesiástico da Diocese de Díli), como forma de Evangelização. Com este pressuposto, é necessário entender, desde já, a difusão da cultura através dos media como um “processo de desenvolvimento e enobrecimento das faculdades humanas, um processo facilitado pela assimilação de trabalhos académicos e artísticos e ligados ao carácter progressista da era moderna” (Thompson, 1998:170), não podendo, porém, esquecer-nos de salientar que “a cultura de um indivíduo não pode ser isolada da cultura do grupo e que a cultura do grupo não se pode abstrair da cultura de toda a sociedade” (Eliot, 1996:25).

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Seguindo esta linha de pensamento, é necessário dizer que estamos em presença de noções que, embora não sendo sinónimas, apresentam entre si conexões muito estreitas. De qualquer modo, a cultura não pode existir sem a sociedade e, do mesmo modo, nenhuma sociedade humana pode existir sem cultura, pois a cultura é a alma do ser humano, apesar das variações culturais que diferenciam as comunidades humanas, como explica Robert Clark (1995:28): “em virtude do seu legado cultural, o homem afastou-se do animal, mas tornou-se estritamente dependente dos outros homens. Para que ele se converta realmente num homem, é indispensável que viva a sua existência social no meio dos seus, sob a influência de todos os estímulos que lhe fornecem a sua família e a sua tribo”. A propósito, é necessário salientar que o povo de Timor, em virtude do seu legado cultural, construiu a sua habitação, edificando assim a knua, que passou a ser considerada a representação simbólica da sua identidade pessoal e colectiva, como veremos no capítulo 2. Em The Interpretation of Culture (1973), Clifford Geertz defende que, ao sistematizar os diversos conceitos de cultura, devemos percorrer os diversos sentidos e interpretações, para que se possa compreender que “o homem é um animal suspenso em teias de significado que ele mesmo teceu”. Percebe-se, pois, que a cultura é um eixo estruturante que está contido em diversas representações (arte, arte plástica, práticas culturais como o barlaque timorense, danças populares, bidu, tebedai). O teórico cultural jamaicano Stuart Hall, em Representation: Culture Representation and Signifying Practice (1997) define a cultura como um sistema ou um conjunto de estruturas de significados, ou um processo que tem a ver com a aplicação dos conjuntos de práticas culturais com a sua própria lógica de representação. Enfim, podemos definir a cultura como um código de permuta entre os diversos sistemas e subsistemas sociais que orientam a acção social (Crespi, 1997:90) em contextos e processos historicamente específicos e socialmente estruturados (Thompson, 1998:81), como se nota na estrutura da organização sócio-política timorense relativamente à hierarquização do poder tradicional. A cultura é, sem dúvida, um instrumento ou uma condição humana que engloba o labor, a diversão e todos os demais aspectos da vida, pois o homem, na sua plenitude, serve-se dela para enfrentar o universo e exprimir as suas competências dentro dos grupos sociais a que pertence. Como decorrência destes pressupostos, situa-se o conceito de interculturalidade, que sendo fenómeno de carácter psicossocial da sociedade timorense, envolve, por conseguinte, a interacção: por um lado, envolve o sistema chamado ‘sociocultural’, numa perspectiva de nivelamento cultural fundada (mais ou menos conscientemente) na ideia de um universalismo cultural; por outro lado, manifesta preferência por opção ‘sociocultural’ numa perspectiva de 12

pluralismo cultural, centrada na possibilidade de cada cultura desenvolver a sua visão de homem e da validade de todos os modelos culturais existentes, o que converge para o relativismo cultural (Ferin, 2002:93). Estes processos de interacção intercultural decorrem no momento em que há comunicação entre o Outro e o Mesmo, num espaço em que a tensão vem privilegiar a identificação total da alteridade de convivências entre múltiplas identidades.

2.2. Identidade

Em termos históricos, a identidade surge como questão relevante a partir da Segunda Guerra Mundial, num tempo em que os países, saídos do jugo da colonização, procuravam encontrar os fundamentos legitimadores da sua aspiração a estados soberanos. A partir dos anos 70, os discursos e os novos movimentos sociais dão especial enfoque à defesa de uma sociedade multicultural, onde seja possível a coexistência e a convivência pacíficas entre grupos étnicos diversos. Todavia, nos grandes espaços urbanos assistia-se então à exaltação da diferença e à ideia de preservação ou protecção das identidades de cada um. A problemática do conceito de identidade é um tema muito actual e tem sido discutido por autores das mais diversas áreas do conhecimento, designadamente da psicologia, filosofia, antropologia, sociologia e ciências da comunicação, pois “envolve a dimensão pessoal e a dimensão colectiva” (Ferin, 2002:88). No entanto, para Isabel Ferin, a identidade pessoal é construída a partir da comunicação intra-pessoal que se estabelece de forma interna consciente e inconsciente sobre as experiências vividas e reflectidas, constituintes da imagem que o indivíduo tem de si mesmo; quanto à identidade social, a autora argumenta que é a imagem construída pelo indivíduo para os outros, através das interacções sociais. Embora estes dois conceitos assumam a mesma relevância nas convivências sociais do ser humano, o último é que tem mais contribuído para a compreensão dos fenómenos de comunicação e cultura, na medida em que permite compreender o funcionamento da interacção entre indivíduos e grupos de diferentes culturas. Tais conceitos estão vistos no cerne de uma multidimensionalidade da representação identitária em Timor-Leste. A identidade é definida por Erikson (1976) com, pelo menos, três significados: 1) uma procura inconsciente de uma continuidade nas vivências; 2) um sentimento consciente de unicidade individual; 3) a solidariedade para com as ideias de grupo. A identidade forma-se, assim, por processos sociais em que emergem na dialéctica inter-relacional o indivíduo e a 13

sociedade (Berger e Luckman, 2004). Uma vez cristalizada, é mantida, modificada ou mesmo remodelada pelas relações sociais; a este propósito, Brian, J. O’Neill (1997:81), numa perspectiva dinâmica, afirma que “as identidades […] são mutáveis, manipuláveis, sujeitas a transformação e adaptação ou infinita reconstrução”. Seguindo esta linha de pensamento, Nuno Canas Mendes (2005:48) justifica que, das ‘construções às construções’, estão em causa três elementos definidos por Locke como a memória, a consciência e a continuidade, que, na formação do eu – numa autognose de composição –, fazem o reconhecimento dos outros e de si próprio, salientando ainda que o mesmo é dizer que está em evidência a relação do indivíduo com a sociedade, pelo menos dos indivíduos que partilham algum traço comum de que recolhem uma identidade como membros de um grupo ou vários grupos organizados. É óbvio que esta forma de definição está manifestamente visível na construção da ou das identidades nacionais timorenses. Portanto, no acto relacional entre pessoas que partilham a mesma cultura ou diferentes culturas, “as identidades constituem-se dentro de redes de relações e, neste sentido, são eminentemente relacionais e conjunturais” (Mendes, 2005:49). No âmbito de ciência política e relações internacionais, este autor recorre à tese de Paul Kowert e Jeffrey Legro (1992:397), os quais esclarecem que “as identidades são representações dos próprios actores políticos e da sua relação uns com os outros”, assim reforçando a sua abordagem analítica sobre a multimendisionalidade da construção identitária em Timor-Leste. O teórico cultural jamaicano Stuart Hall interpreta a noção da identidade do seguinte modo: “A identidade emerge como uma espécie de espaço instável, ou como questão não resolvida neste espaço, entre um conjunto de discursos que se intersectam. [até há bem pouco tempo, pensou-se incorrectamente que a identidade é como um ponto fixo do pensamento e do ser, um terreno para a acção [...] na lógica de algo como um ‘verdadeiro eu’ [mas] a identidade é um processo [...] ambivalente” (Hall, 1989:23), e de acordo com Pierre Pellegrino, há uma existência de “modalidades espaciais portadoras de diferença” nos processos de identificação social. Esclarece, porém, que o espaço humano é “a matriz de um campo de determinações pertinente, não só pelas oposições que estrutura, mas também pelos agrupamentos que delimita e pelas relações que organiza” (apud Martins, 1996:22). Contudo, se vinculamos o conceito de identidade – assim como a construção da realidade social (Berger & Luckmann, 2004), de habitus (Boudieu, 1989), de ideologia, de classes e grupos (Marx & Engels, 1975) – ao conceito de representações sociais encontramse, de facto, as formas como os grupos e os indivíduos dentro dos grupos interagem perante os outros e entre si mesmos, ou seja, a identidade “é usada para descrever o modo como os 14

indivíduos e os grupos se definem a si próprios e são definidos pelos outros, com base na raça, na etnicidade, na religião, na língua e na cultura” (Deng, 1995:1). Tais elementos bem marcantes na composição multiétnica timorense sustentada pelo conceito de aproximação genealógica de parentesco (Paulino, 2009 e 2011a). Cada pessoa estabelece ainda ligações com diferentes grupos de pessoas, pois percebese que a identidade é assumida pelas múltiplas dimensões e, assim, ela é perspectivada, vivida e defendida de formas diferentes. A consciência desta noção de pluralidade e de multiplicidade de pertenças é defendida por Amin Malouf como background para uma nova atitude, certamente mais tolerante e menos violenta: Se virmos a nossa identidade como sendo feita de pertenças múltiplas, algumas delas ligadas a uma história étnica e outras não, algumas ligadas a uma tradição religiosa e outras não; a partir do momento em que conseguirmos ver em cada um nós, nas nossas próprias origens, na nossa trajectória, os confluentes diversos, as contribuições diversas, as mestiçagens diversas, as diversas influências subtis e contraditórias; a partir deste momento, cria-se uma relação diferente com os outros, tal como com a nossa própria tribo (Maalouf, 2002:42)

As reflexões de Amin Maalouf sobre a multiplicidade de pertenças que fazem parte da identidade de cada pessoa, podem ajudar-nos a perceber em que medida o termo Maubere representa ou não uma pertença comum de todos os timorenses. Na génese do diferendo gerado pela sua inscrição, representada por um “M”, na sigla do CNRM, esteve certamente “a tendência de reconhecermo-nos na pertença que é mais atacada; por vezes, quando não temos força para defender, dissimulamo-la, refugiando-se ela então no fundo de nós mesmos, acocorada na sombra, à espera da vingança; assumindo-a ou ocultando-a, proclamando-a discretamente ou em voz bem alta, é com ela que nos identificamos”. Ao mesmo tempo, “os que a partilham sentem-se solidários, reúnem-se, mobilizam-se, encorajam-se reciprocamente, colocam-se juntos contra os que estão ‘do outro lado’” (Maalouf, 2002:36). O drama é que, para a questão essencial da identidade timorense, o termo Maubere, por muito que simbolize a luta contra o colonialismo, não é pertença de todos os timorenses, mas consideramo-lo como símbolo colectivo. Anthony Giddens (1997), na linha de Emile Durkheim, identifica os principais indícios que fazem parte da construção dos processos de identificação cultural e a prática identitária nas sociedades contemporâneas, dando particular relevo à emancipação política dos grupos sociais e à discussão de questões relacionadas com o estilo de vida. O autor considera que as questões do sexo, da língua, da etnicidade, da história, da raça e da nacionalidade são

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elementos que intervêm no processo de identificação, dando origem a nova fórmula de identidade. Segundo o autor, a identidade cultural na pós-modernidade deixou de ser sinónimo de identidade nacional. David Hume, em Tratado da Natureza Humana (2001), considera a identidade como uma categoria social definida por regras de participação e comportamentos na sociedade. Todavia, enquanto construção social, a identidade está presente na própria noção de “indivíduo”, como nos faz notar Eduardo Lourenço (1990:9): “o indivíduo não é mero dado, mas construção e invenção de identidade”. Os elementos teóricos apresentados servem de clarificação aos conteúdos temáticos sobre a formação da identidade nacional timorense a ser abordada na terceira parte do trabalho.

2.3. Dimensões da representação A cultura e a identidade devem ser compreendidas como noções dinâmicas que operam na sociedade contemporânea. Propomo-nos, por isso, analisar o conjunto das práticas e das representações culturais produzidas por um povo, no sentido de procurar entender como se afirmam as identidades e compreender a razão pela qual as representações são produzidas por determinado significado. De um modo geral, podemos entender a representação como práticas e sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos e interpretados. A nossa questão é a de saber se é possível falarmos dos universos culturais e ideológicos de um povo através das suas representações. O conceito de representação remete para processos culturais envolvidos na construção das identidades nacionais. Representar é, de algum modo, significar, relatar ou denotar um objecto. A função de ‘representação’ pode ser atribuída a um objecto, a um ser ou a um ideal, na medida em que gera na consciência do sujeito um certo efeito de presença de algo que é para ele um valor. Stuart Hall (1997:28) define a representação nos seguintes termos: Representation is the production of meaning trough language, in representation, constructionists argue, we use signs, organized into language of different kinds, to communicate meaningfully with others. Language can use signs to symbolize, stand for or reference objects, people and events in the so-called ‘real’ world. But they can also reference imaginary things and fantasy world or abstract ideas which are not in any obvious sense part of our material world […] Meaning is produced within language, in and trough various representational system which, for convenience, we call ‘language’. Meaning is produced by the practice, the ‘work’, of representation. It is constructed trough signifying. I.e. meaning producing practices.

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O uso do termo ‘representação’ remonta ao século XIX, altura em que surge associado aos estudos de psicologia, sociologia e antropologia. Todavia, por volta dos anos 80, o conceito de representação suscitou, pela primeira vez, o interesse dos intelectuais comprometidos com o estudo dos processos culturais. Referimo-nos, em particular ao sociólogo Emile Durkheim que, já no entardecer do século XIX, discorre sobre o que ele designa por ‘representações colectivas’, nomeadamente nas suas obras Regras do Método Sociológico (1895) e O Suicídio (1897). Para este autor, as representações são consideradas como fundamento da vida social, que incluem “os valores morais, as crenças, os símbolos e as ideias” construídos e partilhados pelos grupos. As representações são construídas e estabelecidas a partir das possibilidades de comunicação e de interpretação, no quadro de circunstâncias culturais particulares. Por isso, o conceito de representação não pode nunca ser unívoco. A representação colectiva, segundo este autor, não se reduz à soma das representações individuais que são possíveis numa sociedade. Segundo Durkheim, uma representação colectiva produz um conhecimento novo que, além de assegurar os valores dos indivíduos, favorece uma recriação do sentimento colectivo, onde o indivíduo tem um papel activo e autónomo no processo de construção da sociedade, da mesma forma que é criado por ela. No caso de Timor esta representação é revelada através do acto de nahe biti boot e da casa sagrada, esta última como berço do fluxo da vida e centro da constituição do poder político e económico. Os valores tradicionais estão em crise pela modernização da sociedade geradora de uma individualização dos objectos, sendo necessário desenvolver outros valores inerentes à dignidade humana como a justiça social. Segundo Max Weber (1947 e 1949), o homem moderno encontra-se numa situação de desencantamento, o que o leva a afirmar que os valores sociais se definem em face de uma determinada acção social e, por isso, há um enorme poder de transformação social. Assim, a relação social de sujeitos individuais é fundada a partir da compreensão e na apreensão das múltiplas dimensões sociais, históricas e culturais dos envolvidos, sendo também permitido atribuir a todas as formas de comunicação uma responsabilidade individual criadora de sentidos no acto de agir comunicativo e de acção cultural (Ferin, 2002:75). Denise Jodelet (1989) define as representações sociais como modalidades de conhecimento prático orientadas para a comunicação e para a inter-compreensão do contexto social, material e dos ideais partilhados. Para Jodelet, as representações sociais dão-nos um conhecimento aproximado de quais são os valores de vida da sociedade, do grupo ou de um 17

indivíduo, contribuindo, deste modo, para a percepção de uma realidade comum, como no caso da representação social timorense onde as modalidades de representação assentam no sujeito pessoal e colectivo. Estes sujeitos têm sido reforçados por um objecto chamado ‘união e fraternidade’. Estes elementos de representação social são categorizados como modalidade de conhecimento prático para reforçar os processos de comunicação e acção social entre indivíduos do mesmo grupo ou com o grupo da região vizinha. Todavia, como sustenta Moisés L. Martins (1996:25), “a organização durável das representações e das práticas de um grupo só pode ser feita no interior de um espaço simbólico, que constitui um campo de oposições semânticas”. Tudo isto passa-se justamente porque o simbolismo, na sua função de “organizar a identidade”, se encarrega de organizar os grupos humanos e a relação de cada indivíduo com esses mesmos grupos, e por isso mesmo, as representações sociais surgem com o objectivo de analisar os processos através dos quais os indivíduos na sua interacção social constroem teorias sobre os objectos sociais para estes tornarem viável a comunicação e a organização dos comportamentos. Este segundo sentido abre caminho às modernas análises de discurso (Edward & Potter, 1992; Foucault, 1997), onde a ênfase não recai mais na estrutura linguística ou nos conteúdos cognitivos, mas na organização social do discurso. Deixa, assim, de existir qualquer separação entre linguagem e acção, seja pela mediação cognitiva ou pela mediação do contexto social, pois a linguagem é tomada concomitantemente como sendo acto. Importa dizer que a noção de representação não pode dissociar-se da noção de linguagem enquanto sistema simbólico que estabelece o processo de comunicação. A partilha dos mesmos modelos culturais e de significação no seio da sociedade permite pensar a questão de identidade pessoal e, consequentemente, a de identidade colectiva. Na nossa análise aos dois títulos de imprensa (Seara e A Voz de Timor), damos conta que existe uma identidade colectiva que partilha dos mesmos modelos culturais relativamente aos princípios tradicionais e morais cristãos de Portugal em terras de Timor, sob o lema ‘Deus, Pátria e Família’, que não se discute. Segundo Aníbal Alves (1995:3), “não se trata de ver a linguagem como simples meio ou instrumento de comunicação no sentido de transferência de alguma coisa. Trata-se sim, da própria relação humana, trata-se de reconhecer que o apelo e referência ao outro são inerentes à linguagem, ela própria meio-ambiente e meio-instrumento”. A partir daí, a linguagem fica indissociavelmente ligada à representação do mundo que ele molda e transforma num mundo humanizado. As representações, enquanto produtoras de significados, exigem sempre que se tenha em conta a mudança discursiva (Hall, 1997:6). Stuart Hall dá-nos conta da importância 18

do contributo de Michel Foucault para os estudos da temática das representações, na medida em que Foulcault procura transcender o nível semiológico do conceito de representação, inserindo-o em complexas relações de poder. No cerne da história da civilização ocidental de Foucault encontra-se o princípio organizador do poder. Para ele, a cultura deve ser estudada através de tecnologias de poder, isto é, o poder existe como uma rede infinitamente complexa de ‘micropoderes’, de relações de poder que permeiam todos os aspectos da vida social, quer no aspecto político e económico, quer no aspecto de representação social e de realização ritual. Esta complexidade de “micropoderes” encontra-se também na sociedade tradicional timorense, a que se chama “autoridade política e autoridade ritual” (dupla autoridade que se complementam mutuamente).

2.4. Comunicação e cultura

O campo da comunicação e o universo da cultura constituem âmbitos de vasto alcance para os investigadores, pois respeitam às actividades humanas que se foram desenvolvendo consoante a evolução do Homem e das sociedades. A comunicação, numa perspectiva da ‘sociologia da comunicação’, é um meio de interacção de um membro de uma determinada sociedade com um ou mais membros da mesma ou de outra sociedade. Isto é, por um lado, o homem coloca o meio de comunicação social como centro de ‘transmissão’ de informação mediante fenómenos representativos (o emissor) e perceptivos (o receptor); por outro lado, há uma dimensão comunicacional continuada entre as pessoas, qualquer que seja a sua relação inicial, e que resulta de uma convivência positiva ou negativa sem diferenciar a origem dos grupos sociais. Com efeito, “o conceito que o homem detém do mundo é adquirido através da interacção social e da comunicação; estes aspectos adquiridos são os alicerces sobre os quais repousa a futura organização daquilo que o rodeia” (Centeno, 2009: 36). Isto significa que o estudo da interacção diz respeito ao efeito da comunicação sobre o comportamento de duas ou mais pessoas que interagem através de trocas de mensagens trocadas numa relação recíproca. Para tal, é imprescindível considerar o indivíduo no contexto de uma situação social, pois é através dela que as pessoas participam numa comunicação interpessoal. A comunicação do ser humano é regulada por códigos, isto é, o “código com o qual um participante comunica, inclui os sistemas simbólicos de uma determinada cultura e as 19

comunicações acerca da comunicação. Em cada cultura, os participantes comunicam não só um conteúdo, mas também instruções em como interpretar uma determinada mensagem, sobre a ordem e a espécie de não consciência (ou consciência) das mensagens” (Centeno, 2009:38). Importa dizer também que o acto de comunicar é uma característica intrínseca do homem, uma vez que ele só pode transformar-se num ser político e social na medida em que vive em associação com os outros, isto é, o homem na sua convivência social partilha sempre dos bens e valores comuns. Deste modo, a comunicação e a cultura são parceiros naturalmente solidários e indiscutíveis de uma sociedade. Entre os argumentos principais a serem desenvolvidos encontram-se, portanto, a concepção dos traços culturais como um instrumento para legitimar discursos e acções da construção de uma representação identitária colectiva, o que também se dá em Timor, em que a comunicação e a cultura se intersectam na vivência colectiva dos timorenses. Por isso, a comunicação é muito importante para uma compreensão mútua entre diferentes culturas em busca de uma unidade colectiva para o bem-estar-comum, por outras palavras, através da comunicação podem cumprir-se os requisitos funcionais de integração social. Nas instituições de socialização e integração social, porém, persistem vestígios de uma “resistência sociocultural à formalização sistemática e abstracta das práticas sociais” (Pissarra-Esteves, 2003:55) enraizada no universo simbólico, como veremos na análise dos dois jornais – Seara e A Voz de Timor. A cultura é uma modalidade totalizante da experiência humana e caracteriza-se, antes de mais,

pela

assimilação

das

diferentes

dimensões

ontológicas

da

realidade.

As

interdependências entre os estudos de comunicação e de cultura assumem, fundamentalmente, cultura como um meio ambiente envolvente e determinante das interacções humanas realizadas nas três dimensões da comunicação: ‘comunicação interpessoal’, ‘comunicação mediada’ e ‘mediatizada’, esta ultima sustentada, pelos media em que se transmitem informações acerca do que se passa em determinado local. Concretamente veremos a agenda dos media em Timor-Leste de 1975 a 1999. As três dimensões comunicacionais podem ser compreendidas a partir de um dispositivo ligado à maneira de pensar, de sentir e de agir, mais ou menos formalizadas, sendo apreendidas e partilhadas por uma pluralidade de pessoas, de uma maneira simultaneamente objectiva e simbólica para afirmar uma colectividade particular e distinta. Neste sentido, Ferin (2002:48) afirma que a relação entre comunicação e cultura pode ser formalizada através de códigos simbólicos e tecnológicos, simultaneamente individualizadas e partilhadas por grande número de pessoas que estão sujeitas a rituais de aprendizagem inerente a hábitos, costumes, 20

inovações e rupturas. Desta forma idêntica, a investigadora defende que, tanto a comunicação como a cultura constituem o conjunto de elementos, objectos ou entidades que se interrelacionam mutuamente para formar um todo único num sistema altamente complexo e interdependente. Num outro estudo, nomeadamente nas teorias sistémicas, define-se a cultura como um conjunto variado de modos de fazer e proceder a realidade social. Isabel Ferin (2002:45-46) não deixou fugir a tese de Edgar Morin (1975:95), segundo a qual a palavra ‘cultura’ “oscila entre um sentido totalizante e um sentido residual, entre um sentido antropo-sócio-etnográfico e um sentido ético-estético”, cuja abordagem deriva do estruturalismo, fundamentada no plasma existencial das formas culturais. Ferin afirma ainda que, na contemporaneidade, as formas culturais defendidas por Niklas Luhman (1995) estão estruturadas na sociedade, tornando-se referências para as relações quotidianas, embora o acto de interacção esteja condicionado aos processos de transformação mediados por meios de comunicação cada vez mais dominados por elementos como a verdade, o amor, o dinheiro, o direito e o poder. Ao considerar os mecanismos de interacção no paradigma sociológico, Erving Goffman (1993) defende que o indivíduo deve assumir papéis sociais em conformidade com normas estabelecidas na sociedade e em função de padrões culturalmente definidos. É certo que isto transforma os processos de comunicação interpessoal e as práticas culturais em elementos por excelência de legitimação e de manutenção das relações sociais dos grupos humanos inseridos numa sociedade, estabelecendo a conversação e a comunicação em grande medida, apesar de cada actor social assumir “papéis sociais de magnitude diversa” (Goffman, 1991).

2.5. Língua e cultura

O espaço de discussão sobre as relações entre língua e cultura tem sido progressivamente preenchido pelas preocupações dos sociolinguistas no que respeita às questões da variação linguística. A grande importância atribuída à variação das línguas, em interacção com a variação das sociedades, abriu campo para o estudo dos factores intervenientes nesta variação, internos e externos, históricos e resultantes do contacto entre línguas, e para o desenvolvimento das perspectivas teóricas nesta área. Não podemos, entretanto, aceitar as palavras de Gumperz (1971:97), quando afirma:

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comparisons of linguistic and social behavior have been impended by the fact that linguistic and anthropological studies are rarely based upon comparable sets of data. While the anthropologist's description refers to specific communities, the universe of linguistic analysis is a single language or dialect, a body of verbal signs abstracted from the totality of communicative behavior on the basis of certain structural or genetic similarities.

Bilinguismo e multilinguismo, alternância de códigos, línguas mestiças ou línguas crioulas supõem, evidentemente, capacidades cognitivas e programas inatos, mas não estabelecem com estas capacidades e programas uma relação de causa e efeito. Ou seja, a variação das línguas não resulta apenas das capacidades cognitivas do homem, mas da interacção dos factores estritamente linguísticos e dos factores sociológicos. Contudo, no âmbito de comunicação e de afirmação identitária, a língua e a cultura são termos que se associam de um modo quase automático, estabelecendo um paradigma sólido e coeso. A língua é, antes de mais, um processo interlocutivo (Rodrigues, 1999), onde a relação entre o sujeito do “eu” e do “outro” evolui, em primeiro lugar, na dialéctica da língua materna, e depois, se alarga para as mais línguas como novos instrumentos em busca do conhecimento e da comunicação. A língua e a cultura são fundamentalmente inseparáveis. Isto é, no nível mais básico, a língua é um método de expressar ideias e, simultaneamente, um processo interlocutivo. Ou seja, a língua é a comunicação, enquanto linguagem verbal, também pode ser visual (através de sinais e símbolos), ou semiótica (através de gestos com as mãos ou corpo). Cultura, por outro lado, é um conjunto específico de ideias, práticas, costumes e crenças que compõem uma sociedade distinta. A língua é o fundamento por excelência da comunicação humana, indispensável para a constituição de uma sociedade comunicativa e integradora. Como é óbvio, a importância da língua para o homem reveste-se de uma capacidade de produzir o sentido de coisas através de uma série de discursos. O discurso pode então ser visto como dispositivo de constituição de sentido e das relações interlocutivas, visando não só a comunicação de ideias (a capacidade de discursar), pensamentos (a capacidade de pensar na ou pensar em) e sentimentos (a capacidade de exprimir o olhar ou o gesto), mas também a persuasão e o convencimento de interlocutores. Deste modo, a língua desempenha funções de significação, funções expressivas, e está na origem da elaboração do sentido do mundo para o homem, porque o mundo é uma construção e o resultado da própria elaboração linguística do mundo (Rodrigues, 1996:15). E, hoje, as novas redes planetárias de tecnologia de informação e

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comunicação colocam quase instantaneamente a sociedade actual na transformação técnica da experiência. No âmbito da comunicação e da linguagem, Pierre Bourdieu afirma que a análise estrutural seria capaz de analisar a apreensão de cada uma das ‘formas simbólicas’, a partir do isolamento da estrutura inerente a cada produção simbólica. Para legitimar o seu argumento, ele recorre às palavras do linguista Ferdinand Saussure, fundador do conceito de “análise estrutural da linguagem”, e à representação que ele faz da língua é um sistema estruturado, pois “a língua é fundamentalmente tratada como condição de inteligibilidade da palavra, como intermediário estruturado que se deve construir para se explicar a relação constante entre som e sentido” (Bourdieu, 1989:9). Neste sentido, podemos entender que Saussure (1986) estabelece o objecto de estudo, a língua, através da observação que faz da relação entre as línguas e as sociedades e respectivas complexidades de manifestações decorrentes das convenções adoptadas pelo corpo social, definindo, ao mesmo tempo, a linguagem como um complexo conjunto de processos resultantes de uma dada actividade psíquica individual, que está a ser determinada pela constante mutação da vida social. Isto faz da língua uma instituição mutável, é o caso das línguas: inglesa, japonesa, chinesa, portuguesa e o Tétum assumem o estatuto como identificador da ‘cultura’ com a ‘nação’ ou ‘etnicidade’. A língua é um veículo de acção social e como tal, devemos levar em consideração que falar uma língua não se restringe ao vocabulário, é preciso ter domínio também da estrutura da língua e de sua cultura para não só construir adequadamente um enunciado, como também saber comportar-se e compreender o sentido dos diversos actos de linguagem de uma determinada língua. É na e através dela que há o entendimento entre os seres humanos, pois uso da língua na comunicação é uma forma de prática social. Assim, “uma interacção será definida como a totalidade da interacção, seja qual for o seu momento, em que um determinado conjunto de indivíduo se encontra continuamente presentes uns aos outros” (Goffman, 1993:26-54) na experiência da linguagem, visando o entendimento recíproco e mútuo da comunidade dos homens (Rodrigues, 1996:19). A língua e a cultura de uma nação são elementos distintivos nacionais que podem ser descritos como “espelho do povo e da nação” (Paulino, 2011a:80). A lingua é um traço cultural adquirido em função do indivíduo pertencer a determinada sociedade, mesmo que para isso não haja disposição natural. A relação entre língua, cultura e comunicação deve ser compreendida pela sua interdependência, porque não é fácil provar um grupo de línguas que não tem qualquer correspondência necessária com um grupo racial ou uma área cultural. Uma língua pode influenciar a interacção dos grupos sociais, isto é o que se dá com a cultura, dá-se 23

também com a comunicação. As línguas sem qualquer parentesco partilham de uma só cultura significa que estas línguas estão pautadas nas encruzilhadas culturais. Contudo, Ingrid Piller (2007:216-217), em Linguistics and Intercultural Communication, questiona que existam diferenças estruturais linguísticas, quanto à relatividade das diferenças cognitivas da estrutura linguística. Por exemplo, vemos o mundo de forma diferente segundo a posição do verbo nas nossas línguas? Para Ingrid Piller, tudo isto é apenas uma questão de debate. Se a concretização da língua se faz através da produção linguística individual, utilizada de acordo com o dialecto, o sócio-dialecto e o próprio registo do indivíduo, também a identificação cultural é a realização, para cada pessoa, de uma determinada cultura abstractamente considerada. Assim, esta identificação cultural referida no início está intimamente ligada aos hábitos, crenças, actividades artísticas, relações de parentesco e sociais do meio restrito em que o indivíduo está inserido. Podemos entender que a identificação cultural tenha como referentes as variantes linguísticas que assumem estes aspectos culturais em todo o espaço onde se falam as diferentes variedades de uma mesma língua. Temos, neste caso concreto, a língua materna como um factor de identificação cultural por excelência, e, assim sendo, será que a língua materna de cada indivíduo contribui poderosamente para se reconhecer a si próprio e para ser reconhecido pelo outro? Eis a questão a ser estudada e abordada no contexto das línguas timorenses e que continua em aberto como objecto de futuras investigações.

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Primeira Parte Os traços culturais como fundamento da construção de uma identidade timorense

A cultura é a memória de um povo que não morre (Fernando Silvan)

Nesta Primeira Parte iremos falar sobre a natureza, diversidade cultural e o discurso da identidade timorense. É necessário traduzir tradições2 e preservar as culturas orais de todas as comunidades étnicas timorenses. As sociedades tradicionais timorenses são relativamente desconhecidas da comunidade científica e dos próprios timorenses, embora já tenha havido investigadores, como os administradores e os missionários na era portuguesa, que descreveram alguns apontamentos sobre os traços culturais dos timorenses, desde Afonso de Castro (1867), António de Almeida (1994a; 1994b)3, Ruy Cinatti (1956, 1963, 1987 e 1996)4, 2

Paulo Castro Seixas (2006), Desafios à construção da nação em Timor-Leste: Traduzir tradições em situação pós-colonial. Comunicação apresentada em Lisboa, numa mesa-redonda em 20 de Maio de 2006. 3 Outras obras de António de Almeida que consultamos: (1976), “Da origem lendária e mitológica dos povos do Timor Português”, in Memórias da Academia das Ciências de Lisboa (Tomo 19); (1976/77), “Contribuição para o estudo dos nomes ‘lúlik’ (sagrados) no Timor de expressão portuguesa”, in Memórias da Academia das Ciências de Lisboa, pp.121-147; António de Almeida (1964), “Das mutilações étnicas dos indígenas de Timor”, in Boletim Geral da Colónias,nº 251 a 258; (1954), “IV congresso internacional de pré-história do ExtremoOriente”, in Garcia de Orta (ano 2, nº 3), Lisboa, pp.349-357; (1955), Contribuição para o estudo da antropologia serológica dos nativos do Timor Português, de Macau e de S. Tomé, Lisboa: Instituto Superior de Estudos Ultramarinos; (1968), “Os povos actuais do Oriente português”, in Colóquios sobre as províncias do Oriente, vol. 2, Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, pp. 123-146; (1961), “Timor, Goa e outros confrontos etnográficos”, in Estudos sobre a etnologia do Ultramar Português, vol. 2, Lisboa: Centro de Estudos de Etnologia Ultramarina, pp. 337-361; (1958), “O factor Rh na antropologia do Timor Português”, in Boletim da Academia das Ciências de Lisboa, Janeiro/Fevereiro, pp.18-20. Os textos de alguns académicos e investigadores que estudam a vida e os trabalhos de António de Almeida, são seguintes: Maria Emília Castro de Almeida & Maria Cristina Neto (1995), “António de Almeida em Timor‐Díli”, in Garcia da Orta, Série Antropobiologia, 8: 21‐24; Luís Frederico Antunes (2010), “António de Almeida (1900‐1984) – O Homem como património: da biologia à etnografia”, in Viagens e Missões Científicas nos Trópicos 1883‐2010, Lisboa: IICT, pp.78‐83; Lúcio Sousa (2011), “Objectos Lulik, neolítico e casas sagradas – um episódio de antropologia colonial em António de Almeida”, in Marques, Vítor Rosado, Roque, Ana Cristina e Roque, Ricardo (eds.) Atas do Colóquio ‘Timor: Missões Científicas e Antropologia Colonial’. Lisboa: IICT, Electronic edition, published online at http://www.historyanthropologytimor.org (consulta a 12/2/2012); Vicente Paulino (no prelo), “Os documentários de António de Almeida e outros cinemas sobre Timor”, in Actas as VI Jornadas de Cinemas em Português, Covilhã: Universidade Beira Interior; Maria Cristina Neto & Marques, Vítor Rosado Marques (2007), “António de Almeida e a Missão Antropológica de Timor”, in Blogue História Lusófona. Disponível em http://www2.iict.pt/index.php?idc=102&idi=12153 (último acesso em 04/2010). 4 Outros textos de Ruy Cinatti consultados: (1950), Reconhecimento preliminar das formações florestais no Timor Português, Lisboa: Junta de Investigações Coloniais; (1954), “Vocabulário indígena de algumas plantas timorense”, in Garcia de Orta,vol 2, nº 3, Lisboa, pp.359-366; (1950), Esboço histórico do sândalo no Timor Português, Lisboa: Junta de Investigações Coloniais; (1953), “Aspectos de Timor (fotografias e legendas)”, in Garcia de Orta, vol. 1, nº 1, Lisboa, pp.139-143; (1950), Explorações botânicas em Timor, Lisboa: Junta de Investigações Coloniais. Ao longo da nossa pesquisa encontram-se alguns textos académicos que abordam sobre a vida e os trablhos realizados por Ruy Cinatti, os quais: Peter Stilwell (1995), A condição humana em Ruy Cinatti, Lisboa: Editorial Presença; Claúdia Castelo (2011), “Ruy Cinatti – poeta, ‘agrónomo e etnólogo’, instigador de pesquisa em Timor”, in Marques, Vítor Rosado, Roque, Ana Cristina e Roque, Ricardo (eds.) Atas do Colóquio ‘Timor: Missões Científicas e Antropologia Colonial’. Lisboa: IICT, Electronic edition, published online at http://www.historyanthropologytimor.org (consulta a 12/2/2012); Letícia Villela Lima da Costa (2004),

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Felgas (1956), António Augusto Mendes Correia (1944)5, Armando Pinto Correia (1934a e 1934b), Artur Teodoro de Matos (1974) e Luís Filipe Thomaz (1994, 2002), entre outros 6. Entretanto, podemos destacar-se alguns investigadores que realizaram estudos sobre a ilha e a gente de Timor, como o antropólogo David Hicks, conhecido como um grande revelador das práticas culturais etnográficas dos povos do grupo etnolinguístico tétum de Timor Oriental7; Francisco de Azevedo Gomes (1972), Henry Campagnolo (1972) e Andrew McWillian (2007) focalizaram a sua observação mais para lá da região da ponta leste da ilha, sobretudo, na tradição e costumes do povo etnolinguístico Fatuluku8; Brigitte Renard-Clamagirand (1971, 1972, 1980, 1982) observou a realidade vivida pela população da região de Marobo Ruy Cinatti: O Engenheiro das Flores (dissertação de mestrado em Estudos de Literatura), Rio de Janeiro: PUCRJ. 5 Eis outros textos de António Augusto mendes Correia (1934), “Antropologia de Timor”, in Boletim Geral das Colónias, ano 10, nº 108, pp. 205-207; (1945), “Gente de Timor”, in Boletim Geral das Coloniais, vol 19, nº 245, pp.125-127; (1945), “Sobre Um Problema de Biologia Humana em Timor Português”, in Boletim Geral das Colónias, ano 21, nº 235, pp. 13-26; (1916), “Os timorenses de Okussi e Ambeno – notas antropológicas sobre observações de Fonseca Cardoso”, in Anais Científicos da Academia Politécnica do Porto, vol. 11, nº 1; (1994), Timorenses (los) y la posicion sistematica de los indonesios, Madrid; (1964), “Sobre alguns exemplares com fácies Paleolítica de Timor Português”, in Estudos sobre Pré-História do Ultramar Português, Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, pp.13-33. 6 Os outros textos são: Afonso de Castro (1863), “Notícia dos usos e costumes dos povos de Timor”, in: Anais do Conselho Ultramarino, Lisboa; J. A. Pires de Lima & Constâncio de Mascarenhas (1925), “Contribuição para o estudo antropológico de Timor”, in: Arquivo de Anatomia e Antropologia, nº 2/3; J. A. Pires de Lima (1938), Os povos do império português – estudos antropologicos, Porto; José dos Santos Vaquinhas (1883), “Timor – usos, supertições de guerra”, in Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 4ª série; Manuel Ferreira (1950), “A terra e a gente”, in Defesa Nacional, nº 193/194; Viriato L. Mendes do Vale (1953), “Notas etnograficas sobre Timor Português”, in Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, série 70, nº 10 a 12; Alberto Osório de Castro (1943), A ilha verde e vermelha de Timor, Lisboa – publicado também na Seara Nova, em 1928 (nº 123, 125, 127, 130, 137 e 140) e 1929 (nº 144, 147, 149, 154, 161, 169, 170, 173, 177 e 179); António Leite de Magalhães (1918), “A ilha deAtaúro – notícia sobre a ilha e seus habitantes”, in Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, nº 1/3e 4/6; João dos Santos Pereira Jardim (1899/1903), “Notas ethnographicas sobre os povos de Timor”, in Portugália [Tomo 1], Porto Tomo 1; Pe. Jorge Barros Duarte (1984), Timor: Ritos e mitos de Ataúro, Lisboa: Instituto Cultura e Língua Portuguesa; Peregrino de Sunda (12/4/1956), “Aspectos da vida de Timor: Organização social indígena”, in O Clarim de Macau; Maria Emilia de Castro e Almeida (1970), “The ABO system among the Macassai from Portuguese Timor”, in Arquivos do Museu Bocage, vol. 2, nº 14, 2ª Série, Lisboa, pp.181-202; Bento da França (1989), Macau e os seus habitantes: relações com Timor, Lisboa, Imprensa Nacional. 7 Eis as obras de David Hicks (1985), “The conjunctive woman and the disjunctive man in Tetum society (Timor, eastern Indonesia)”, in L’Homme, 25, pp.23-36; (1986), “The relationship terminology of the Ema”, in Sociologus 36, pp.162-171; (1987), “Tetum descent Timor”, in Anthropos, 82(1/3), pp. 47-61; (1988), “Literary masks and metaphysical truths: intimations from Timor”, in American Anthropologist 90, pp.807-817; (1989) “Confirmations and corrections: Tetum terms of relationship from central Timor”, in Sociologus 39, pp.52-60; (1997), “Firebird on Timor: two Mambai myths of avian rivalry”, in Anthropos 92(1/3), pp.198-200; (2007), Community and nation-state in East Timor: a view from the periphery, in Anthropology Today, vol 23, nº1. 8 Vejam-se também outros textos sobre o grupo etnolinguístico Fataluku: Maria Olímpia Lameiras Campagnolo & Henri Campagnolo (1984), “Les modes de cuissan des fataluku de Lórehe à Timor Oriental (contribution à l'étude de la technique de la cuisson)”, in Garcia de Orta, Série de Antropobiologia, vol.3, nº ½, Lisboa, pp.93113; Maria Emilia de Castro e Almeida & Inês Maria Lapa de Passos (1996), “Contribuição para o estudo das impressões palmares dos Fatá Lucos (Timor Leste, Linhas D, C e B)”, in Garcia de Orta, vol. 9, nº 1, Lisboa, pp.39-45; Maria Emilia de Castro e Almeida (1969), “Contribuição para o estudo das impressões digitais dos Dagadá (Timor português): I – Homens”, in Garcia de Orta, vol 17, nº 4, Lisboa, pp.395-406; Maria Emilia de Castro e Almeida (1968), “Contribution a l’etude serologique des Dagada (Timor Portugais) - Systeme ABO”, in Arquivos do Museu Bocage, vol. 2, nº 5 – 2 série, Lisboa, pp.51-59.

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(do distrito de Bobonaro), que se caracteriza a si mesmo como Ema, e a sua estrutura sóciopolitica associada à “casa de origem”. Andreia Katalin Molnar (2005), por seu lado, concentrou a sua observação na zona de Atsabe. No que diz respeito aos costumes e à vida social dos povos de Mambae, estes foram estudados e analisados minuciosamente por António Carmo (1965), Jorge Barros (1975), Elizabeth Traube (1986) e David Hicks (1973, 1976, 1984). A investigadora Laura S. Meitzner-Yoder (2005) realizou estudos sobre a tradição e codificação ritual do povo etnográfico de Oé-Cussi. Sobre o grupo dos Makasae, podem ver-se os resultados no estudo do antropólogo timorense Justino Guterres (2001) e de Toby Fred Lazarowitz (1980). Sobre os Bunak de Timor-Leste, veja-se o estudo de Apolinário Guterres e João Santos (1990) e Lúcio Sousa (2007, 2009 e 2010). Outros autores abordam a dimensão da construção identitária timorense, como Benedict Anderson (1993), Nuno Canas Mendes (2005), o historiador José Mattoso (2001, 2005), Geoffrey Gunn (1999), Barbedo Magalhães (1992, 2007a, 2007b,2007c), Abílio de Araújo (1977), Jollife Jill (1978, 1989) entre outros, incluindo aqueles que desenvolveram o estudo sobre o ensino e a língua de Timor-Leste9. Iremos descobrir não só curiosidades sobre a existência das comunidades étnicas timorenses, mas, sobretudo, procurar sintetizar o modo como as práticas culturais têm sido realizadas; destacaremos também as formas de organização e fronteiras territoriais que nos parecem um dos padrões subjacentes que caracterizam a complexidade das práticas culturais 9

A este respeito, apresentamos algumas dissertações que consultamos: Nuno Carlos Henriques de Almeida (2008), Língua portuguesa em Timor-Leste: Ensino e Cidadania (dissertação de mestrado em Língua e Cultura Portuguesa), Lisboa: FLUL; Laura Fernandes Cravo Branco (2003), Percursos da língua portuguesa em Timor (dissertação de mestrado em Relações Interculturais), Lisboa: Universidade Aberta; Manuel Pedro Godinho Azancot de Menezes (2004), Educação para a cidadania em Timor: um estudo no âmbito da formação de professores (dissertação de mestrado em Educação), Lisboa: FCUL; Maria Carmen Babo de Araújo (2006), Estudos comparados de sistemas de ensino superior: caso de Timor‐Leste (dissertação de mestrado em Políticas e Gestão do Ensino Superior), Aveiro: Universidade de Aveiro; Ana Sofia Rodrigues (2009), O ensino da Língua Portuguesa em Timor-Leste: o método português em Timor e a importância do tétum (L1) na aquisição do português (L2) (dissertação de mestrado em Ensino do Português como L2 e LE), Lisboa: FCSH-UNL; Filomena da Imaculada Conceição Pinto (2010), A percepção da língua portuguesa por estudantes timorenses do ensino superior português (dissertação de mestrado em Ciência da Educação), Lisboa: FCSH; Sabina da Fonseca (2010), Análise dos manuais de língua portuguesa utilizados no ensino primário em Timor-Leste (dissertação de mestrado em Ensino do Português como Língua Segunda e Estrangeira) Lisboa: FCSH; Jessé Silveira Fogaça (2011), Fonética e fonologia da língua makasae (dissertação de mestrado em Linguística), Brasília: Universidade de Brasília; Soraia Valy Mamade Feiteira Lourenço (2008), Um quadro de referência para o ensino do português em Timor-Leste (dissertação de mestrado em Língua e Cultura Portuguesa), Lisboa: FLUL; Ricardo Jorge Ferreira Antunes (2003), A Língua Portuguesa em Timor Lorosa’e – Contributos para a sua Didáctica (dissertação de mestrado em Didáctica das Línguas), Aveiro: Universidade de Aveiro; Francisco Miguel Martins (2010), Autoavaliação institucional da educação superior: uma experiência brasileira e suas implicações para a educação superior de Timor-Leste (dissertação de doutoramento em Educação), SalvadorBahia: UFBA; Eugénia de Jesus da Neves (2011), Instâncias de poder e mudança linguística: um estudo a partir de análise de empréstimo em jornais timorenses (dissertação de mestrado em Letras), São Paulo: Universidade de São Paulo; Duarte Nuno de Castro Meneses (2008), Timor: de colónia a pais nos fins do século XX – um sistema educativo em re-estruturação (um estudo documental) (dissertação de mestrado em Administração e Planificação da Educação), Porto: Universidade Portucalense.

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de uma sociedade específica em determinado espaço. Como destacou José Mattoso, “até este momento, não existem estudos suficientemente sólidos para poder definir os caracteres da identidade nacional de Timor-Leste. Podem-se, quando muito, mencionar umas tantas pistas de investigação” (Mattoso, 2001:6), para poder dar uma definição afirmativa sobre as dimensões identitárias timorenses; por isso, esperamos mais dos académicos no sentido de darem um maior contributo a esta questão. Foi afirmado igualmente, pelo casal de investigadores Henri Campagnolo e Maria Olímpia Lameiras-Campagnolo (1994:153): “não existe presentemente um conjunto coerente de informações comparáveis, sistematizadas e correlatas grupo a grupo, permitindo esboçar uma tipologia dos grupos timorenses, associando tipos de casamentos, filiação, residência, transmissão, valor das prestações no âmbito de uma rigorosa apreensão dos ‘valores locais’”. As acepções destes autores não perderam sentido perante estudos recentes sobre os povos e sistemas de organização social dos timorenses. Figura 1 – Mapa de Timor-Leste

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Capítulo 1 Diversidade identitária cultural e representação estrutural da sociedade timorense

1. Consideração prévia Timor só se compreende quando se conhece um pouco a alma do Oriente, aquela alma de aromas penetrantes, de cores gritantes e de ruídos álacres, feita de mil perfumes suaves, de mil cores veladas e de mil sons indistintos, que pelos séculos fora têm encantado algumas sensibilidades de ocidentais que para lá vão e por lá ficam, ou que, quando regressam, lá deixam, entretanto, uma parte da própria existência (Paulo Braga, 1936)

Os timorenses reconstruíram o seu mundo cultural baseado nas adaptações à natureza, às famílias da mesma linhagem, englobando também outros elementos, por exemplo, a casa sagrada que, ao observador menos precavido, pareceriam meros “acidentes” da sua peregrinação. Deste modo, perguntamo-nos quais seriam os costumes timorenses a serem integrados na sua vida quotidiana. E, ainda, quem iria alimentar e/ou renovar a religiosidade popular na futura identidade cultural sob a plataforma das “diversidades e convergências culturais” (Campagnolo & Campagnolo, 1992). A história de Timor, antes da chegada dos portugueses, foi marcada por sucessivas vagas migratórias, como se vê nos estudos de António de Almeida (1994a, 1994b), António A M. Correia (1944), Esteves Felgas (1956) e Artur Teodoro de Matos (1974). Estes autores consideram os actuais habitantes timorenses resultantes das diferentes tradições culturais predominantemente melanésias e malaias, que lhes conferiram uma grande heterogeneidade cultural, dando origem à existência de vários grupos etnolinguísticos que ainda hoje persistem. A este respeito, Elizabeth Traube (1986:24) explica: This history of diversity is reflected in Timorese oral traditions. Each of the peoples of Timor represent themselves as being descended either from original, autochthonous inhabitants of the land, or from ancestral invaders who are traced back to a mythic homeland overseas. Interethnic relations are represented in terms of a distinction between insiders and outsiders.

Apesar de tudo, não existe um consenso entre os diversos autores quanto ao número exacto dos grupos etnolinguísticos timorenses e às respectivas subdivisões. No entanto, todos parecem concordar com a existência de uma grande variedade destes grupos etnolinguísticos (Fox, 2000; Guterres, 1994; Hull, 1999). 29

A representação social timorense, no contexto ideário prático, é, concomitantemente, produção do objecto socialmente estruturado e pode ser compreendida quando se relaciona com as condições da própria produção e com os núcleos estruturantes da realidade social (Berger & Luckmann, 2004), tendo em vista o seu papel de criação desta realidade e tornando-a guião de vida. Assim, apresentamos o modo de representação social timorense em duas dimensões distintas: a primeira diz respeito ao estatuto de reconhecimento que está em pauta na representação pessoal e colectiva; a segunda diz respeito ao que chamaremos ‘prática comportamental’, que está em pauta na natureza de união e de fraternização. Nesta fase surge uma nova expressão chamada ‘práticas discursivas’, destinadas a potenciar os processos de construção e reconstrução da identidade nacional. É necessário desfrutar de vantagens imediatas que nascem das primeiras civilizações, por exemplo, as civilizações fluviais, como a civilização egípcia, em que tudo estava ligado ao rio Nilo, ou as civilizações talassocráticas, ligadas aos benefícios do mar, como as civilizações fenícia, grega, romana, tão dependentes do Mediterrâneo como a egípcia do Nilo, como a civilização timorense está ligada às uma-lúlik (casas sagradas) e aos cultos dos lúlik (sagrado)10. Nas práticas rituais, as casas sagradas ligam-se normalmente à origem de vida e à relação da vida social do ser humano. Por exemplo, no caso das casas austronésias, James F. Fox (2006:1) destaca: The house itself, and not just the objects and elements within it, can also constitute a ritually ordered structure. As such, this order can be conceived of as a representation of a cosmological order. In some Austronesian societies, the house is regarded as the ancestral ‘embodiment’ of the group it represents. As either representation or embodiment, the house may become a centre — a combination of theatre and temple — for the performance of the ceremonies of social life.

Com esta acepção, importa dizermos que só a nossa memória nos leva a pensar sobre o passado da humanidade. A propósito disto, Lévi-Strauss (1979:39) afirma: “durante centenas de milhões de anos a humanidade não era numerosa na terra e os pequenos povos viviam isolados, de modo que nada espanta que cada um tenha o dever de desenvolver e construir as suas próprias características, tornando-se diferentes uns dos outros. Mas isso não era uma finalidade sentida pelos grupos”. Quer isto dizer que os povos de tempos remotos constituíam a humanidade e desenvolveram os instrumentos técnicos produtivos; fundaram os mitos da 10

Pode dizer-se que a civilização da área em que se insere Timor – a Ásia do Sudeste – tem sido defnida como ‘civilização do vegetal’. Não há dúvida de que, de facto (como aliás em outras zonas tropicais), é ao reino vegetal que o homem vai buscar quase tudo quanto necessita. Não é de admirar que a arquitectura em pedra ou tijolo seja desconhecida entre os povos de Timor. É de matéria vegetal – madeira, hastes e folhas de palmeiras, fibras extraídas de certas plantas – que as habitações são construídas.

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criação que englobam as suas crenças, ritos, línguas e costumes. Os homens das sociedades antigas têm a tendência para viver o mais possível no sagrado ou muito perto dos objectos sagrados. Esta tendência é compreensível, quer para os ‘tradicionais’ quer para as sociedades pós-tradicionais. Quer para uns quer para outros, o sagrado equivale sempre ao poder. A abordagem de Lévi-Strauss encaixa-se bem no processo da evolução civilizacional dos timorenses que está associada às casas sagradas e aos cultos dos lúlik. Este povo, durante centenas ou milhares de anos, desenvolveu as técnicas produtivas e caracterizou-se a si próprio como pertencente a uma civilização pastoril e agrícola completa, com um curioso esboço de monarquia electivo-hereditária e notáveis manifestações artísticas, já que fabricava (quase uma indústria textil) panos de algodão com que se cobriam e já praticava o comércio mediante permuta de cera e de sândalo por certos produtos que macassares, malaios, javaneses e chineses trouxeram à ilha (Castro, 1867; Castro, 1996; Cinatti, 1950). Apesar de os timorenses não possuírem qualquer forma de escrita, conheciam o ferro, utilizando-o nas suas armas de guerra, a espada, a azagaia e a flecha. O conhecimento progressivo do povo de Timor sobre os instrumentos referidos foi inicialmente sustentado pela sua capacidade de gerir o tempo e pela sua vontade de querer fazer mudanças de vida pessoal e colectiva. Parece que a ideia da natureza e do valor único da própria nação surgem daí, e muitas vezes é legitimada pelos requisitos culturais do próprio povo.

2. Povos e territórios 2.1. Os mitos e as crenças do povo de Timor A importância dos mitos e dos símbolos veiculados pela tradição oral na ideia da construção de um imaginário mitológico, designadamente, no que diz respeito à origem da construção da identidade de uma nação, pode ser conduzida pela formulação de um destino histórico. Os mitos são a base de uma auto-renovação étnica e da sua consequente sobrevivência (Smith, 1997:54). No que diz respeito ao mito dos timorenses, Nuno Canas Mendes dá particular ênfase ao lugar do mito e dos símbolos transmitidos pela tradição oral. Segundo o autor, o mito está “na génese de um imaginário colectivo, designadamente, no que diz respeito às origens, bem como na formulação de um destino histórico” (Mendes, 2005: 258). Os timorenses, na sua quase totalidade, acreditam na existência de outra vida para além da morte. A crença em Deus terá sido inspirada na ideia do lúlik (que designa tudo o que é sagrado), presente em todos os momentos da vida dos timorenses. Tudo o que merece a 31

designação de lúlik é supersticiosamente temível e presente nas cerimónias rituais (quaisquer que sejam os seus estilos) para afastar o mal. As crenças dos timorenses que têm o seu centro nas ‘casas sagradas’ e nos ‘objectos sagrados’ são algo que pertence e representa o valor da vida humana. Cada ritual obedece a códigos ancestrais de representação designados por ‘estilos’, cuja origem se perde na memória dos tempos, mas revive com novas invenções e reinterpretações. Ezequiel Enes Pascoal, em A alma de Timor vista na sua fantasia, dá-nos conta de que, em Timor-Leste, há a existência de um imaginário mitológico que preside à memória do aparecimento do homem: Encontra-se em Timor, uma espécie de cosmogonia sui generis que vem, com certeza, de recuadas eras. Nela figuram homens e animais, dotados de recursos e poderes inconcebíveis com os quais dominaram as forças da natureza desencadeadas em proporções ciclópicas [...]. As lendas timorenses em que prevalece o tema das origens admitem a preexistência da terra, isto é, de Timor, mas diferente da actual, em tamanho e forma. Concepções igualmente lendárias relativas ao aparecimento estranho de determinados homens, de que descendem certas dinastias autóctones, são posteriores a tremendos cataclismos que teriam assolado a ilha (Pascoal, 1967:23).

António de Almeida (1994b:266), por seu lado, descreve a lenda fundadora da ilha nestes termos: “um enorme crocodilo petrificado, disposto na direcção NE-SW que, em era sem data, emergiu miraculosamente do fundo do mar, situando-se a cauda e a cabeça, respectivamente, em território Indonésio e [Timor] Português”. É possível, portanto, considerar que a mitologia da ilha de Timor seja uma história e/ou uma lenda revelada e valorizada segundo convenções de cada grupo étnico existente em Timor-Leste. Porém, será que existe relação entre a lenda e a crença dos timorenses que consideram o crocodilo como seu avô? Segundo relatos dos lia-nain (senhores da palavra), em alguns pontos da ilha, existe uma forte ligação de parentesco com este animal, que não se pode matar nem comer, por ser considerado ‘avô lulik – avô sagrado’11, e, em algumas regiões, a população oferecia-lhe comida (Sá, 1961:9; Pascoal, 1967:137). A população da ponta leste (o grupo etnolinguístico Fatuluku) não chama lavei ao crocodilo, mas Poitcholoro (katuas – Senhor). Se alguém de Fatuluku quer tomar banho na lagoa de Ira Lalaro, deve apresentar em primeiro lugar a sua identidade pessoal ao seu 11

Artur Basílio de Sá (1961:229-230) introduziu outros nomes do crocodilo nos vários dialectos de Timor: Lafaek (teto e midique), lahaek (mambai, idate e lacalei), lafá (habo), lulay (galóli), law-wa-há (uaimoa), bey (baiqueno e bunak), tata-bey (tocodé e nògó-nògó), tata-bey-a (mambai de Ermera), yamo (lamaquito), lay-da (macassai), ubo-daot (mambai de Ainaro), iti-ubo-daot (mambai de Same)”. Podem consultar-se também as obras mais recentes sobre as lendas e mitos timorenses, tais como: Halibur Literatura Popular iha Timor-Leste (2008), de Nuno da Silva Gomes, publicado pelo Instituto Nacional de Linguística – UNTL.

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Poitcholoro, dizendo: Ana etchali – Avô hau ita nia bei oan (Avô, sou o seu neto), Ana mau iraunum nutchetche – hau mai haris hodi wé it’oan iha ne’e (Venho tomar banho aqui com esta água). Existe um mito colectivo que diz respeito à existência de uma forte ligação entre timorenses e portugueses, como refere António de Almeida (1961:2): conforme o simbolismo dos nativos, a ilha outra coisa não é do que um gigantesco crocodilo. O jacaré é um animal reverenciado por muitos Timorenses; chamam-no avô, manifestando a sua veneração por meio de estilos ou práticas mágico-religiosas, que consistem em sacrifícios de porcos e de outros animais domésticos. O réptil aparece frequentemente no folclore local; no dorso de um jacaré-voador, dizem os nativos, chegou a Timor o primeiro branco, um malae, ou seja, um Português.

Deste modo, é de salientar que o termo malae designa alguém ‘estrangeiro’ e foi utilizado, pela primeira vez, para se referir aos portugueses, comerciantes, militares ou missionários que passassem na ilha (Jannisa, 1997:274-275). O termo está também associado à mitologia de origem do povo Bunak: Nos tempos idos, Marômak criou Bui Dau (mulher) e Mau Dau (Homem), o primeiro casal saído das mãos de Marômak. Este casal gerou Aça Paran e Mau Paran. Os filhos de Aça Paran e sua mulher Olo Dia Soi Dia foram os seguintes: Kei Kesa, Malae, Sina Mutin, Malakan, Gugo Eivi, Tsie Sina, Kelun Leu, Samolo, Asa Lorok e Fau Funak. Deus entregou ai-su’ak e katana aos dois casais antepassados dos timorenses: Asa Lorok e Fau Funak, Kelun Leu e Samolo. De seguida, Deus entregou súrat (papel) e lápis aos Gugo Eivi e Tsie Sina, Sina Mutin e Malakan, Kei Kesa e Malae – estes três casais são antepassados dos malaes (Guterres, 1992: 237).

As narrativas de Ezequiel Enes Pascoal e António de Almeida falam-nos de uma mitologia que explica as origens e o fundamento da existência do povo de Timor, sem esquecer o contacto cultural e a consequente adaptação recíproca entre as culturas de diversos grupos étnicos, incluindo a introdução da cultura portuguesa no seu quotidiano, que originou o que Pascoal chama “contos mestiços”12. Consideramos que tal designação pode ser visto como a formação de uma memória partilhada. É um conceito que Anthony Smith (1997) utilizou para abordar a questão de contactos culturais das etnias, no sentido mais ou menos comum a todos os grupos que procuram formar a sua particularidade em relação aos outros grupos. Quanto à influência do malae e da sua incorporação na tradição oral e na cosmogonia timorense, estudos recentes apontam que a relação do povo timorense com o exterior terá sido 12

Vide “Segunda Parte, cap. 4 – Seara: Boletim Eclesiástico da Diocese de Díli, sub-tópico – Contos mestiços”.

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reforçada pelas adaptações e fusões culturais e também por via da aliança, como a que ocorreu entre os Mambae, que consideram os portugueses como seus “irmãos mais novos” (Traube, 1986). Esta denominação do termo não se encontra só na mitologia colectiva do povo Mambae, mas também nas narrativas mitológicas dos povos de outras regiões de TimorLeste13. Deste modo, é da maior importância incorporar as lendas e os mitos timorenses na afirmação da identidade cultural e do projecto nacional, podendo algumas delas ser historicamente mais representativas em determinados grupos etnolinguísticos.

2.2. A génese dos timorenses A humanização do mundo é um processo de longa história e cheio de mistérios. Quando abordamos a questão de um povo e/ou de uma nação, somos levados de imediato a uma determinada temática da cultura de um grupo social que pertence a uma sociedade diferenciada. Há um tipo particular de grau social que se alimenta de características distintas e de oposições de estilos de vida dos timorenses, utilizando a honra e o prestígio, segundo o sistema de divisões sociais verticais. Na prática, estas características distintivas só têm eficácia na formação dos grupos étnicos quando induzem a crer que existe, entre os grupos, um parentesco ou uma diferenciação de origem. Em tempos idos existiam pequenas aldeias construídas por pequenos grupos de agricultores em Timor-Leste, havendo já movimentos de navegadores e comerciantes nas ilhas vizinhas do sudeste asiático e ilhas do Pacífico. A maioria das ilhas do sudeste asiático constituía uma das regiões mais desejadas e ocupadas pelos comerciantes indianos e árabes, e alguns comerciantes da Mongólia e da China. Como resultado destes contactos interculturais surgiram interacções étnicas ao longo do arquipélago da Indonésia, incluindo a ilha de Timor. Antes de os portugueses descreverem a existência de Timor, já os chineses mencionavam o nome desta ilha. Alusões mais extensas a Timor são do reinado da dinastia YUAN, no século XIII, mas passou a ser conhecido só a partir do século XIV, destacando apenas uma ilha cheia de sândalo, sem mencionar o nome. Recuemos ao estudo pré-histórico sobre a origem dos timorenses. Nesta abordagem préhistórica, apresentamos duas teorias que se opõem quanto às diferentes origens do povoamento de Timor: por um lado, os habitantes de Timor eram provenientes do exterior em 13

Por exemplo, no mito de origem dos Bunak: os timorenses e portugueses são irmãos nascidos sobre a mesma esteira e os umbigos cortados com o mesmo fafulo. Os outros mais novos (irmãos mais novos) deixaram os seus irmãos mais velhos e viajaram para muito longe, para lá doutro continente, e ninguém mais soube da existência deles, até que “regressaram para ver se Timor continuava bem” (Guterres, 1992:237).

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sucessivas migrações; a outra linha de descoberta datada sobre ossadas Pithecantropus Erectus por antropólogos Eugéne Dubois em Java14, no leito do rio Trinil, mostra que Timor teria sido uma parte daquelas migrações. Porém, a descoberta dá-nos outra razão, pois, segundo Buhler, alguns artefactos de indústria lítica e pedaços de cerâmica encontrados na gruta das cercanias de Baguia, no monte de Mate-Bian, foram já estudados e analisados por Sarasin15, tendo-os classificado como pertencentes ao período mesolítico ou proto-neolítico, e considerados como parte da cultura neolítica da Nova Guiné e das ilhas Pacificas (ilhas de Salomão e de Almirantado). Por outro lado, em 1953, a equipa de trabalho integrada na Missão Antropológica16 descobriu que estes mesmos instrumentos foram encontrados também perto da lagoa de Gasi Liw, na zona do posto de Laga, com diversos tipos de utensílios (Correia et al, 1954:295298). Ainda no mesmo ano, foram descobertas algumas peças do Paleolítico Médio e Inferior em Maliana e em Suai. Estes tipos de instrumentos revelam grandes semelhanças com as das indústrias paleolíticas europeias. Ainda em Outubro de 1957, foi encontrado um objecto catalogado como pertencendo ao Paleolítico Inferior no posto de Laga, entre as ribeiras de Laiuai e de Laga. Outras teorias vieram provar a passagem humana na ponta leste de Timor, nomeadamente, na gruta de Ili Kere-kere, em Tutuala, há cerca de 4.000 anos17. Entre estas descobertas principais a serem apresentadas encontram-se, portanto, de acordo com Breuil18, estes e outros objectos de pedra polida, como jaspe amarelo ou vermelho, calcedónia, ágata, cornalina e sílica, que, pelo menos em parte, vieram do interior do território. Para este arqueólogo francês, é muito provável que a ilha de Timor tivesse sido habitada por alguns dos mais antigos representantes do Paleolítico. A penetração desta vaga humana ter-se-ia realizado na costa nordeste19, posteriormente à Idade da Pedra. Este processo de migração parece ter-se verificado pela sua continuidade de permanência nas diversas partes 14

Eugene Dubois (1894), Pithecanthropus erectus - Eine menschenaehnliche Uebergangsform aus Java, Batavia: Landsdrukkerij; e, em 1896 publicou outro artigo intitulado “On Pithecanthropus erectus, a transitional form between man and the apes” na revista Trans.Royal Dublin Soc., série.2, vol.6, pp. 1-18. 15 Para mais detalhes, consulte-se a obra de António Augusto Mendes Correia (1943), Raças do Império, Porto: Portucalense Editora. 16 Missão patrocinada pelo Centro de Antropobiologia, composta pelos investigadores António de Almeida (chefe desta missão), A. A. Mendes Correia e Ruy Cinatti. 17 Reported by Karen J. Coates in the Archaeology Magazine, September/October 2003 18 Breuil, H (1959), “Contribution á l’Étude de la préhistoire portugaise européenne et d’outre-mer”, in Separata do Boletim da Academia de Ciências de Lisboa, vol. XXXI. 19 Veja-se também: Georges Zbyszewski (1984), “Le Paléolitique de Timor et la Contribution de l’Abbé H. Breuil à son Étude”, in Garcia de Orta, série Antropobiologia, vol. 3, n.°s 1-2, pp. 183-228; e outros, “Note Préliminaire sur le Gisement Paléolitique de Laga (Timor-Dili)”, série Antropobiologia, vol. 4 , n.°s 1-2, 198586, pp. 15-27. Cf, Robert. Gageonnet & Marcel Lemoine (1957), “Note Préliminaire sur la Géologie du Timor Portugais”, in Garcia de Orta, vol 5-nº1, Lisboa: Ministério do Ultramar. Cf. António de Almeida (1960) “Contribuição para o Estudo do Neolítico de Timor Português”, in Memórias da Junta de Investigação do Ultramar, vol. 16, nº 1, Lisboa, pp. 125-139.

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do arquipélago de Sonda, em cujo processo também Timor estava incluído. Por outro lado, alguns arqueólogos apresentam-nos dois tipos de ossadas pertencentes ao período Clactonense de indivíduos que habitavam aquela região, sendo o mesmo que veio a ser descoberto na Austrália e Nova Guiné. Em 1963, António de Almeida e a sua equipa descobriram ainda algumas peças na zona de Léne Hára20. Nesta região conseguiram recolher pelo menos 32 pequenas peças de pedra lascada, classificando-as como pertencentes ao Mesolítico. Este tipo de peças tinha sido dado a conhecer um ano antes por Ruy Cinatti (1963:49-59), através das suas descrições sobre as pinturas rupestres existentes em três estações da parte oriental da ilha: a primeira, na zona de Tutuala; a segunda, na zona de Ili Kére Kére; a terceira, na gruta de Léne Hára. António de Almeida, por sua vez, observou e descreveu uma quarta estação, situada na zona de Suno Taraléu21, também pertencente à região do extremo leste da ilha. Na sua observação, António de Almeida questionou muito a origem dos timorenses, mas não conseguiu abordar tudo quanto lhe parecia mais importante. Foi por isso que, passando logo a sua análise para a questão da cultura deste povo, ele próprio, teoricamente, classificou os antepassados dos actuais timorenses como pertencendo ao ciclo austronesóide ou malaio-polinesóide. A investigação do autor dá-nos conta do seu estudo sobre o aspecto cultural e corporal do timorense numa classificação pessoal e muito taxionómica, quer dizer “demasiado sofisticada e estática, mostrando várias categorias de timorenses e nãotimorenses” (Paulino, 2009:40). No início do seu estudo, António de Almeida, lançou em primeiro lugar a dúvida sobre a origem do povo de Timor, com a seguinte pergunta: “Quem teriam sido e de onde vieram os antepassados remotos ou recentes dos actuais povos de Timor? Do Sueste Asiático – onde ainda vivem núcleos populacionais heterogéneos – Proto-maláios, Deuteromaláios, Negritos, Vedáicos, Dravídicos e Melanésios –, com características morfológicas e culturais análogas ou afins das dos povos que presentemente vivem na Insulíndia?” (Almeida, 1994b:276; cf. Thomaz, 2002:32). Em segundo lugar, o autor não esclareceu perfeitamente a dúvida, saltando logo para a descrição das tradições baseada no carácter mitológico ou semi-lendário, 20

Cf. Ian Glover (1986), “Archaelogy in Eastern Timor 1966-1967”, in Terra Australis, 11, Camberra: The Australian National University. A investigadora da ANU, Susan O’ Conor na sua primeira descoberta em 2002, numa gruta timorense, chamada Lene Hara destacou que as pegadas humanas que ocuparam aquela gruta por volta de 30.000 a 35.000 anos antes. E, na gruta Jerimalai, a arqueóloga descobriu que é a mais antiga da ocupação do Homo-Sapiens, o que, segundo sua análise baseada na detecção de método rádio carvão, demonstra que o sítio de Jerimalai foi habitado desde mais de 42.000 anos. Para informação detalhada, veja-se o artigo de K. Kris Hirst, An american archaeologist: www.pre-lapita.com or www.about.com:archaeology; Deborah Smith, in the Age Magazine, December 22, 2006. See www.theage.com.au 21 Suno Taraléu significa ‘peixe macho’, suno é nome do peixe e Taraléu significa ‘macho’.

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entre as quais a do Jacaré-voador e a da baleia que teria levado no ventre o antepassado timorense à ilha de Timor22, além de existirem ainda outras lendas de origem sobrenatural. Quer dizer que o autor ignorou, no seu estudo, alguns sectores culturais e de ascendência, de pessoas que pertencem simultaneamente a vários grupos. António Augusto Mendes Correia (1944:166), por seu lado, sustenta que o timorense é francamente proto-malaio, um tipo indiferenciado, do qual teriam derivado muitos dos tipos étnicos existentes naquela zona. Aliás, para este autor, o tipo proto-malaio de Timor é o representante de uma velha estirpe humana em evolução e, simultaneamente, diz que não é verdadeiramente europóide, nem mongolóide, nem negróide, nem vedo-australóide23. Ainda assim, a sua observação coloca outra questão muito pertinente na distinção do grupo humano timorense, embora nos apareçam, na actualidade, algumas teorias como uma forma sintética, generalizada, indiferenciada, da paleontologia24. Grosso modo, isto justifica a origem dos timorenses para Mendes Correia (1944:166): “não como um mosaico ou cadinho de misturas geográficas e socialmente inconcebíveis em tão longínquo isolamento, mas como um ‘tipo central’, se não verdadeiramente ‘primordial’, de uma evolução que está em marcha, justificando ainda que a comunidade dos proto-malaios era constituída por 65,4% de homens e 53,7% mulheres; a dos vedo-australóides era constituída por 11,8% de homens e 15,8% mulheres” (Thomaz, 2002:42). 22

Esta lenda tem uma forte influência da evangelização católica pela sua conotação com a história bíblica da baleia no Antigo Testamento, que engoliu Jonas e o vomitou na praia, indo dali para a cidade de Ninive, para onde Deus o tinha chamado. 23 Segundo dados de alguns antropólogos, os habitantes de Vedo-Australoide que habitavam a ilha de Timor, eram provenientes do Norte e do Ocidente entre 40.000 e 20.000 anos antes de Cristo. De maneira geral, Artur Teodoro Matos, na sua análise de dados, entende que o mais antigo dos antepassados timorenses tenha sido do tipo vedo-austrolóide, embora em termos de percentagem seja muito menos e tenha chegado à ilha no tempo paleolítico; que no tempo mesolítico (era por volta do ano 3500 a.C) tenha chegado também o tipo negróide ou melanésio, introduzindo na ilha as língua papuas: fatuluco, makasae e bunak, além do machado oval; que o tipo proto-malaio (um tipo bastardo mais ou menos da raça branca ou amarela), que tenha chegado à ilha por volta de 2500 a.C., colonizou a Insulíndia e tendo estabelecido o machado chato e as línguas malaio-polinésicas; e cerca de 500 a.C., chegou também outra raça deutero-malaio de características mongolóides (veja-se a obra de Alfred Russell Wallace, The Malay Archipelago, p.149). Esta última raça já se relaciona com a introdução e a aplicação dos instrumentos de metal na produção dos campos cultivados (Thomaz, 1994:591-592). 24 A. A. Mendes Correia, em “Um mês em Timor” (1955, vol. 32, nº 10, pp.5-24) – publicado no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa – continuou a defender a mesma caracterização de que Timor é “mais um centro ou uma área de diferenciação racial, antropogenética, do que, como se tem pretendido, uma Babel resultante da convergência das mais variadas estirpes humanas, um cadinho de fusão inextricável de raças” (cf. Felgas, 1956:137). Vejam-se também outros artigos de A. A. Mendes Correia (1916), “Antropologia Timorense”, in Separata da revista dos Liceus, nº 4; (1934), “Timorenses na Exposição”, in Ultramar: Órgão Oficial da I Exposição Colonial, vol. 1, nº 4. Consulta-se também João Gualberto Barros e Cunha, (1936), “A Autenticidade dos Crânios de Timor do Museu da Universidade de Coimbra e o Estado Actual dos Nossos Conhecimentos Sobre o Problema da Composição Étnica da População de Timor”, in Revista da Faculdade de Ciências, vol. 6, nº 3, pp.327-383; e, João Gualberto Barros e Cunha (1943), “Notícias Recentes sobre a População de Timor”, AAVV, Actas do 4o Congresso da Associação Portuguesa para o Progresso das Ciências, Porto: Imprensa Portuguesa, pp. 558-564. Consulta-se também um artigo intitulado “As origens da população da ilha de Timor”, publicado pelo jornal O Século (14/7/1957).

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Relativamente à heterogeneidade singular encontrada no seio da sociedade timorense, na opinião de Felgas, o estudo de Mendes Correia é mais completo do que outros estudos sobre o mesmo assunto, ou seja, de modo muito específico, Felgas (1956:141-142) argumenta que o Professor Mendes Correia começou por designar os Timorenses como numerosos grupos bem diferenciados uns dos outros, embora geográfica, política, social e etnologicamente estejam e continuem a viver lado ao lado. De modo geral, Mendes Correia abordou também a questão da divisão, a excessiva fragmentação em ‘reinos’ independentes, a distinção entre o reino do Servião submetido ao de Sanibay e o território dos Belos (actual Timor-Leste), a questão da existência de Firacos e Caladi, a origem dos povos malasianos e não malasianos, até definir uma ilha com o nome de Timor, que significa ‘leste’. Isto é, a teoria de Mendes Correia sobre a singular heterogeneidade timorense parece bem estabelecida, e é evidente que prevalecerá ainda hoje de que Timor não será um recipiente de fusão ou justaposição de raças, uma área de metamorfismo racial de contacto, mas uma parte de uma área insulíndica de diferenciação antropológica primordial (Felgas, 1956:146).

2.3. Estrutura organizacional dos ‘reinos’ e suas fronteiras Esta questão é pertinente, não só por falta de investigação sobre o assunto, mas porque é preciso lançar a dúvida sobre a maioria dos trabalhos já desenvolvidos por investigadores anteriores. A política organizacional dos reinos ou regulados é, por vezes, compreendida através da demarcação das suas fronteiras tradicionais. É ainda necessário compreender a super-estrutura dos reinos timorenses, um pouco por toda a parte, desde a sua política organizacional à época revolvida do colonialismo; foi a época em que a civilização ocidental se implantou na ilha de Timor. As estruturas tradicionais marcam, evidentemente, a mentalidade timorense, e é preciso, portanto, tê-las em conta, em termos gerais – podem existir algumas semelhantes noutras zonas diferentes igualmente ligadas a costumes tradicionais (Mattoso, 2001:10-11). Isto é, não somente os povos ocidentais têm estrutura organizacional e demarcação de fronteiras, mas todos os povos que habitam a Terra têm este conjunto de características. Os povos de Timor, no tempo e no espaço, também têm cultura, estrutura organizacional e demarcação de fronteiras. A divisão territorial deste povo é delimitada por rios e por línguas e outros dispositivos mais ou menos simbólicos, o que fornece, talvez, ícones identitários da nação timorense. Especificamente, a identidade territorial e cultural enquanto discurso identitário é, 38

sem dúvida, construído com base numa convivência colectiva e harmoniosa entre os diversos grupos étnicos, desde tempos idos. Nota-se isto na aplicação do conjunto de artefactos, do seu modo de viver e na concepção que estes povos têm de si próprios, dos outros e do mundo; acresce o despontar de uma consciência do património legado pelas gerações anteriores e que hoje dá prazer de preservar. O território estava dividido em múltiplos reinos, mais ou menos desenvolvidos e poderosos. A divisão da estrutura organizacional dos reinos tem-se mantido através dos tempos. Estes reinos eram independentes entre si, com uma estrutura em forma piramidal e poder central no vértice, o liurai25 (Cinatti, 1956:307). Eles, muitas vezes, criaram alianças26 mútuas com o fim de resistirem contra as confederações inimigas formadas noutras regiões, e Geoffrey Gunn faz o seguinte comentário à obra de Jamex J. Fox (1980) sobre as particularidades dos significados do fluxo, “the flow”, de mulheres como elemento constitutivo do “flow of life”: “uma apreciação das relações de alianças em Timor, quer sejam místicas, simbólicas ou de outra natureza”, esclarecendo que uma tal apreciação “é decisiva para uma compreensão política desses povos, que foram incorporados nos sistemas administrativos de governo indirecto, próprios da dominação holandesa ou portuguesa” (Gunn, 1999:21). Apesar de tudo, quando os portugueses se estabeleceram na ilha de Timor, perceberam que não havia outra alternativa senão adaptarem as estruturas administrativas e uma organização sócio-política dos reinos timorenses27. Tal política de adaptação e de integração na estrutura local também foi alcançada pelos portugueses noutras regiões asiáticas (Malaca, Macau, Goa, Molucas, Solor, Johor, Celião, etc). Era uma realidade que eles viviam e partilhavam com a comunidade local, como estratégia para dominar as posições-chave nos 25

“O termo [liurai] é composto por Liu, que significa ‘mais’, e Rai que significa ‘terra’. Assim, Liu Rai é aquele que está acima da terra, ou seja, o senhor da terra [...] o protector do povo” (Guterres, 1994:129). 26 As alianças são pautadas pela realização de um ritual chamado pacto de sangue. Este ritual é também utilizado entre indivíduos, ou até de um liurai com o seu povo. Este ritual pacto de sangue é designado por Kora ou mõruk, em tétum, seguida normalmente de um sacrifício animal (um porco ou um cabrito). Este pacto também tem sido visto também no sistema de composição multiétnica timorense. Isto é, reforçar os laços de fraternidade no casamento, na adopção e na comensalidade, e outros tipos de formação das alianças. De maneira geral, o pacto de sangue é uma forma de ‘comunhão com outro’. Veja-se Jorge Barros Duarte (1982), “Timor: Formas de Fraternização”, in separata de Arquivos do Centro Cultural Português, XVII, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 538-584. Pode afirma-se também que o papel que a administração portuguesa exerceu em Timor foi, fundamentalmente, de coordenação entre os diferentes reinos. Numa posição de cimentar as alianças entre aliados inconstantes, conseguiu assim a sua ambição de dominar as gentes de Timor. 27 Portugal reconheceu tal organização social e poderes tradicionais dos timorenses, por meio das elites locais e das missões católicas, construindo-se assim uma textura política eminentemente local, como argumenta Ivo Carneiro de Sousa (2001:190): “The long history of Portuguese colonialism in Timor is based on the recognition of traditional power ando n seeking unification through cross and sword, of the territory’s social culture of elitism” O reconhecimento que Portugal mostrou foi como um processo de converter os nobres a sua linha política, para garantir a sua dominação e sustentação do poder oligárquico colonial.

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litorais e, simultaneamente, para controlar as redes marítimas do Índico Ocidental, mas estavam obrigados, ao mesmo tempo (como todos os outros europeus até à civilização industrial), a acomodar-se às sociedades asiáticas, no sentido de obrigá-los a obedecer às regras asiáticas pré-existentes. Tal facto revela que no caso de Timor, um dos governadores nos meados do século XIX, Afonso de Castro, pensador das doutrinas liberais do direito ultramarino, defendia a necessidade de se administrar Timor segundo os seus “usos e costumes” como forma de obediência à poderosa ordem social timorense, por se ter apercebido de que “não podem convir de modo algum as nossas leis, brandas e suaves, e as nossas instituições, que supõem uma certa civilização” (Castro, 1867:417; cf. Roque, 2011:160). Esta racionalidade de Afonso de Castro teve visibilidade institucional e legalmente consagrada pelo governador Celestino da Silva em finais do século XIX com a implementação da política de incorporação das estruturas organizacionais timorenses ao modo social universalista, civilizatória, europeísta e cristã, mas para isso, dizia o governador: “temos primeiro de nos amoldarmos nós ao modo social deles” (cf. Roque, 2011:160) e se necessário “estudarmos o direito consuetudinário dos povos, o regímem de propriedade, enfim, os usos e costumes, e promulgar para eles leis especiais” (Silva, 1879:38; cf. Roque, 2011:162). Isto é, uma decição de ‘adaptabilidade conjugatória’ para conhecer os diferentes costumes timorenses, por isso, Celestino da Silva apreendeu orgulhosamente a falar várias línguas do povo de Timor e ao abrigo de um programa político de preservação dos costumes e organização social e política dos reinos, assumiu a “administrar a justiça segundo os estilos timores”, que Ricardo Roque classifica como “racionalidade memética de governo”, e como tal “foi reconhecido e legitimado pela metrópole através da aprovação da adaptação do regulamento geral da justiça ultramarina à colónia de Timor” (Roque, 2011:166). As autoridades tradicionais legítimas fizeram valer a sua experiência secular para estabelecer o seu modo a divisão do espaço e do poder. Estabeleceram-se, deste modo, ‘reinos independentes’, cuja estrutura se manteve durante a ocupação colonial, numa estratégia de alianças e cumplicidades. Cada grupo étnico tinha uma soberania relativa sobre o seu território. A marcação das fronteiras destes reinos, herdada pelos seus antepassados, foi ratificada muitos anos depois, através de uma concordata entre os reinos vizinhos, que teve por base fundamental o sistema de relações de parentesco de natureza matrilinear ou patrilinear (Paulino, 2009:11). Portanto, a mais específica é o núcleo familiar, o factor mais marcante e decisivo na definição dos limites territoriais, pois tinha sido estabelecido com ele o espaço sagrado de tipo microcosmo autónomo e reflexo do Universo, com base na 40

“consciência da sua identidade política e social própria” (Guterres, 1994:137), cujo símbolo da solidariedade, e as ligações genealógicas entre os seus membros e a casa sagrada, a árvore, os lugares votivos, tendem a ter em conjunto um efeito estabilizador na estrutura da pequena comunidade. Todavia, na sua obra Timor Português, Hélio Augusto Esteves Felgas dá testemunho, a existência dos reinos em Timor, ainda em meados do século passado, de dois grandes reinos que administravam a ilha de Timor: o Reino de Belos, que reunia 46 reinos e recobria o actual território de Timor-Leste, e o Reino de Servião, composto por 16 reinos, que abrangia o actual território de Timor ocidental, pertença da Indonésia (Felgas, 1956:130)28. Os liurais, recrutados no seio de famílias cultas e eleitos por certos dátos, exerciam o seu poder de modo semelhante ao dos senhores feudais na Europa medieval.

Figura 2 – Exemplo organização social tradicional dos timorenses

Os liurais e os chefes de suco gozavam do estatuto de dátos, isto é, de ‘príncipes da terra’, com poderes quase paternais para proteger, dentro do seu ‘reino’, os que se acolhiam à sua protecção. Os dátos tinham o poder de representar o seu povo nos assuntos externos e de proceder ao recebimento do imposto (rai-ten) que autorizava o cultivo de uma parcela de terra. À semelhança do que acontecia na baixa Idade Média europeia com os senhores feudais, os liurais e os dátos administravam a justiça no seu ‘reino’, aplicando o ‘costume’ como lei. 28

James Fox (2000:15-16), por seu lado, refere que só os portugueses destacados em Timor, nomeadamente, da década de 1777, faziam a distinção entre a parte ocidental da ilha, que era governada pelo grande Servião (Baiquenos e Atoni), e a parte oriental da ilha governada pelos Belos (composta por 46 reinos). Veja-se também: Artur Teodoro de Matos (1974:104); Elizabeth Traube (1986); Jill Jolliffe (1989); Geoffrey Gunn (1999). Cf. Ponciano J. M. de Sousa (1914), Província de Timor - Índice Alfabético cronológico e remissivo, Timor-Díli: Imprensa Nacional, – a Aprovação da lei sobre a distribuição dos reinos de Timor, p.143-146.

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Foi este nível administrativo e de direito consuetudinário que os portugueses encontraram quando chegaram a Timor. Isto é, o liurai, com o poder de vida ou de morte, era a autoridade máxima legítima na organização social de alguns reinos destacados no território. A justiça administrada pelos régulos ou príncipes aos povos é observada por uma forma complexa29, que em nada se assimila com aquela que se funda nos princípios básicos do direito natural e positivo. Aliás, ainda hoje, continua a ser executada na resolução de alguns problemas relacionados com comunidade. Para a sua administração reúne-se em certos casos uma espécie de ‘tribunal’ composto dos príncipes e presidido pelo régulo, e começando por averiguar-se e ouvir as partes conclue sempre em condenar tanto o réu como o queixoso, obrigando-os a pagar certas quantias, búfalos, cavalos, armas. Os parentes do criminoso têm por dever concorrer com certa quantia para ajudarem a pagar a multa que régulo impoz, e é assim que eles satisfazem as pesadas multas que lhes são aplicadas; as partes queixosas que também são multadas, são auxiliadas da mesma forma pelos seus parentes (Vaquinhas, 1883:490). Nem todos os reinos de Timor eram governados pelos liurais e nem todos os reinos tinham a mesma estrutura administrativa e organização sócio-política. Quer dizer que este tipo de indícios da organização administrativa tradicional ou do comportamento colectivo de cada reino deverá ser estudado cuidadosamente, porque as estruturas administrativas tradicionais governadas por liurais não eram suficientes, pois, na verdade, podiam ser alteradas e/ou escolhidas pelos poderes coloniais. Para endireitar a história dos reinados timorenses, deve recorrer-se a documentos necessários e precisos, mas a verdade é que “não dispomos de muitas bases seguras para o fazer, por falta de estudos sociológicos e etnológicos recentes” (Mattoso, 2001:11), tanto da parte dos investigadores estrangeiros como dos investigadores naturais timorenses. 29

É pois muito variável a maneira como procedem em cada um dos reinos na administração da justiça, e para o descrevermos em particular seria necessário muito tempo e trabalho. Cf. Anónimo (1916, 1917), “Relatório Sobre os Usos e Costumes de Motael”, in Boletim Oficial da Colónia de Timor (nº 26, pp.151-152; nº 27, p.194; nº 30, p. 204; nº 31, pp. 218-219; nº 36, pp. 263-264; nº 9, pp.50-51); Anónimo (1916), “Relatório Sobre os Usos e Costumes de Atauro”, in Boletim Oficial da Colónia de Timor (nº 24, pp. 130-131; nº 25, pp. 142-144); Anónimo (1916), “Relatório Sobre os Usos e Costumes de Maubara”, in Boletim Oficial da Colónia de Timor (nº 24, pp.28-30; nº 25, pp.39-42); João José de Andrade (1920), “Em Timor: Usos e Costumes – um Caso de Justiça”, Boletim do Governo Eclesiástico da Diocese de Macau, nº207, pp. 128-130; João dos Santos Pereira Jardim & Santos Rocha (1898), “Notas Etnográficas Sobre os Povos de Timor”, in Portugália, tomo 1, Lisboa: Biblioteca Nacional de Lisboa, pp. 355-359; Bento da França (1897), Macau e os seus Habitantes: Relações com Timor, Lisboa: Imprensa Nacional; A. L de Almada Negreiros (1910), Les organismes politiques indigénes, Paris; José Augusto Rebelo (4/8/1947), “Timor: usos e costumes”, in O Setubalense – reeditado pelo jornal Notícias de Gouveia em 25 de Dezembro de 1949; Luiz da Cunha Gonçalves (1935), “Direito Consuetudinário Dos Indígenas De Timor”, in Memórias da Academia das Ciências de Lisboa, tomo I, pp.203-222; Ricardo Roque (2011), “Etnografias coloniais, tecnologias miméticas: a administração colonial e os usos e costumes em Timor-Leste no final do século XIX”, in Kelly Silva e Lúcio Sousa, Ita maun alian… o livro do irmão mais novo – afinidades antropológicas em torno de Timor-Leste, Lisboa: Edições Colibri, pp.155-168.

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No que diz respeito aos grupos bunak de Holsa, Tapo e Saburai, é bem diferente daquelas estruturas que foram abordadas ao longo dos documentos consultados. Nestes grupos, a estrutura do poder administrativo e organizacional sócio-político é baseada na ordem das Uma-lúlik, de modo a garantir a estabilidade das ‘populações de knuas’ e da ‘comunidade de casa’. Isto é, existem dois modos de organização social que têm função complementar: o primeiro é um sistema político que trata dos assuntos externos assumido por Bei, que ocupa o cargo Dáto, e o outro é uma estrutura hierárquica que trata dos assuntos internos assumido por mátas, que ocupa o cargo hima-gomo (governador da casa sagrada). A comunicação organizacional abrange toda a gama de acções organizacionais e apresenta maior amplitude, aplicando-se a qualquer tipo de organização que abrange todas as funções distribuídas. Este modo de criação de redes administrativas bem definidas é visto como o fluxo de mensagens dentro de uma rede de relações interdependentes, como se vê na estrutura organizacional política tradicional dos reinos timorenses, reforçando-se, assim, a manutenção e preservação desta nobreza e dos seus privilégios até à época recente, com o apoio da administração portuguesa que se aproveitava dela como estratégia de dominação de tipo paternalista. Verificou-se, por meio de dados históricos, de episódios ainda gravados na memória de muita gente, como os laços que ainda hoje unem as ‘famílias alargadas’ ou mais conhecidas no território e a identificação bem conhecida dos seus locais de origem: toda a gente sabe de onde procedem os [apelidos] Guterres, Gusmão, Costa ou outra linhagem mais ou menos notária (Carvalho, 2001:73; Mattoso, 2001:11). Para a defesa desta especificidade estrutural tradicional timorense, embora pareça com frequência inconsciente, o governo, em cooperação com os representantes locais, tem tomado conscientemente algumas medidas destinadas à sua preservação. Parte-se então, em primeiro lugar, da socialização e da inculturação que actuam no sentido da assimilação dos timorenses ao grupo a que pertencem, incutindo-lhes desde a mais tenra idade todo um conjunto de comportamentos e tradições culturais, que se reforçam pela vida fora através das inter-relações sociais. Toda a estrutura social deu origem a hábitos próprios que mais tarde foram reforçados pela administração portuguesa, e eles próprios (reinos timorenses) se deixaram influenciar por costumes portugueses. Deste modo, o conjunto dos factos sociais é uma assimilação de duas culturas que determinou a difusão dos usos e costumes das camadas mais altas em todos os tecidos sociais.

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2.4. A identidade territorial timorense Em termos geográficos e culturais, a ilha de Timor encontra-se na zona de transição entre a Ásia e a Oceânia (França, 1897:216), na confluência de três áreas de colonização: a Ásia do Sueste, de colonização antiga e variada; a Austrália, de povoamento predominantemente branco; e a Melanésia, arcaizante, pouco penetrada pela Europa. Se com a Austrália não tem historicamente grandes relações, ao Sueste Asiático liga-se pela antiguidade da sua colonização, que remonta ao século XVI, e à Oceânia, pelo carácter predominantemente eclesiástico daquela e pela sua marginalidade económica. Com a indicação do mapa, nota-se logo que a posição da ilha de Timor tem enorme importância, pois ocupa um lugar estratégico, um lugar intermediário que liga a Insulíndia e a Australásia, com características próprias que compõem também outros sectores da sua vida. A composição da ilha de Timor alonga-se no sentido Sul-Oeste e Norte-Este, com 470 quilómetros de comprimento e 100 quilómetros de largura máxima. Na sua totalidade, Timor tem uma superfície total de 32.300 quilómetros quadrados, é a maior das ilhas do grupo das pequenas ilhas de Sonda, no arquipélago da Insulíndia (actual território da Indonésia), situa-se entre 9º e 10º de latitude Sul e os meridianos 124º e 127º de longitude a Este de Greenwich (Almeida, 1994b; Matos, 1974; Felgas, 1956). A ilha encontra-se rodeada por três componentes do grande mar: a Norte, é limitada pelo mar de Wetar, que a liga à ilha do mesmo nome; a Sul, é banhada pelo Mar de Timor, que a separa da Austrália30; a Noroeste, pelo mar de Savu, que a põe em contacto com as ilhas de Sumba, Flores e Solor. Goza, manifestamente, de uma posição estratégica. Maria R. Marchueta retoma, de algum modo, a denúncia feita por Michel Foucault em A Ordem do Discurso, onde o autor faz uma severa crítica à cultura ocidental, que ele considera, a partir de Platão, marcada pela polarização, de que são exemplo as oposições entre Espírito/Corpo, Inteligível/Sensível e outras31. Com o fenómeno da globalização, parece darse um processo de contaminação metonímica, expandindo-se estas dualidades a uma escala planetária, para justificar um mundo bipolar, dividido entre um Norte desenvolvido e o Sul empobrecido, entre um mundo da Informação e um mundo dos info-excluídos. Em todo o 30

Com efeito, enquanto Timor, ilha tectónica incluída no designado “Arco Externo” da Insulíndia, deve a sua origem ao enrugamento alpino de que constitui a extremidade, ligando-se assim à Eurásia; Ataúro, de origem vulcânica, faz parte do “Arco Interno”, ligado ao “Anel de Fogo do Pacífico”. Cf. Luís Filipe R. Thomaz (1978), “O caso de Timor”, in Democracia e Liberdade, nº 6, Junho, Lisboa: Instituto da Democracia e Liberdade, p.71. 31 A divisão do nosso mundo está relacionada com a dualidade “entre o bem e o mal, a verdade e mentira, o objectivo e o subjectivo, o real e o utópico, o rico e o pobre, a unidade e a diversidade, o interior e o exterior, o Leste e o Oeste, o Norte e o Sul, etc., assim “a fronteira convencional, por ter criado pelo homem” (Marchueta, 2002b:23).

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caso, é inegável que, na base de todas estas assimetrias, está a questão do diferenciado desenvolvimento sócio-ecónomico e cultural das comunidades (Marchueta, 2002b:23). No sentido mais teórico, podemos dizer que existem múltiplas dimensões, desde a mais tradicional, relacionada ao Estado-nação, até à perspectiva de estruturador de identidade colectiva. Portanto, o mais importante para nós é fazer a distinção dos territórios de acordo com os sujeitos que os constroem. Quer isto dizer que o território, neste sentido, é trabalhado na multiplicidade de suas manifestações, das quais podemos destacar aqui, por exemplo, a dinâmica económica, considerada de grande importância para o desenvolvimento do país e do bem-estar da população. O território de um povo enquanto espaço pertença do universo, o lugar onde todos os homens podem homenagear e perpetuar a memória dos seus antepassados. Por isso, não pode ser esquecido, mas deve ser partilhado simbolicamente. Todavia, o território enquanto ser identitário não é apenas ritual e simbólico, é também o local onde se realizam manifestações culturais com o fim de reafirmar e reviver as identidades sociais. Aí, podemos conceber a definição do ‘território’ enquanto ‘lugar-comum’ a partir da imbrincação de múltiplas relações de poder, do poder mais material das relações sócio-política e sócio-económicas ao poder mais simbólico das relações de ordem mais estritamente cultural. Neste sentido, salientamos que o território timorense não é, pois, constituído só pela dominação do poder simbólico e de relação política-económica, mas pelas relações abstractas como línguas, religiões e tecnologias. O século XVIII foi um século de desordem, até 1851. Houve, no entanto, uma negociação entre os governos português e holandês32 sobre a definição dos limites do território da ilha de Timor, a qual resultou de um processo de acção militar e diplomática, levada a cabo pelas autoridades coloniais destacadas no território, à revelia de qualquer directiva emanada do governo de Lisboa, como aconteceu no caso da ocupação holandesa de uma parcela oriental da Ilha, hoje integrada na Indonésia. Mas só em 1854 o governador de Timor, Lopes de Lima, sem consultar o governo central, tomou uma iniciativa e negociou um

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É necessário salientar também que a delimitação territorial obtida em 1859 entre governo português e holândes deixou “a Holanda reconhecia a soberania de Portugal sobre todos os reinos timorenses [...] situados a leste de uma fronteira que se estendia de norte a sul, correndo pelos limites tradicionais dos reinos indígenas, e sobre os de Oé-Cussi, Ambeno e Naimuti, que constituíam o enclave de Oé-Cussi. Desistia de qualquer pretensão sobre Ataúro. Finalmente, cedia o reino de Maubara, e aqui residia a sua única concessão [...]. Por seu lado, Portugal reconhecia a soberania da Holanda sobre o resto de Timor e cedia-lhe, na ilha das Flores, os reinos de Larantuca, Sica e Paga, com as suas dependências; na ilha de Adonara, o reino de Wouré; na ilha de Solor, o reino de Pamang Kaju. Além disso, desistia de quaisquer pretensões sobre outros reinos ou lugares das citadas ilhas ou das ilhas de Lomblen, Pantar e Alor [...] (Felgas, 1959: 253-254).

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acordo com as forças militares holandeses, situadas na região, sobre a questão dos enclaves de Maukatar (holandês) e Noi-muti (português). Todavia, por imprecisões do acordo e por desentendimento dos governos de Portugal e Holanda, a demarcação das fronteiras passou a ser objecto de grande controvérsia, tendo o acordo luso-holandês sido possível só em 1916, para uma definição consensual das fronteiras de Timor. Com a obtenção do acordo entre as forças coloniais presentes no território, alguns reinos viram-se obrigados a transferir o seu dever de obediência para outra potência colonizadora, perdendo muita da sua soberania e capacidade de controlo dos seus reinos, e abrindo caminho a uma acentuada dominação colonial. Não obstante essa perda de soberania, a estabilização das fronteiras resultante do acordo contribuiu para a definição da identidade do povo de Timor. A consolidação de fronteiras contribuiu também para uma “divisão de esferas de influência coloniais” que terá sido “vital para a compreensão da identidade, ou identidades dos timorenses” (Gunn, 1999:156), e “hoje em dia é claro que o povo de Timor-Leste assume actualmente múltiplas identidades” (Gunn,

2001:24).

Infelizmente, a organização

administrativa territorial nem sempre respeitou a divisão ancestral da ilha em reinos, destruindo “as fronteiras étnicas” (Mattoso, 2005:11) de um sistema organizacional assente em vínculos de natureza política e espiritual que dá a dimensão simbólica e sócio-política, sendo o território definido como o produto da apropriação feita a partir da noção de imaginário e/ou identidade social sobre o espaço propriamente dito. O estabelecimento definitivo das fronteiras pelos agentes coloniais teve a vantagem de proteger o território de uma pilhagem desordenada dos seus recursos, embora não pondo o território a salvo dos efeitos que acompanham uma qualquer colonização. Após a divisão da ilha pelos dois superpotentes colonizadores (Portugal e Holanda), verificou-se que a parte do actual território do Estado-nação timorense, com uma área total de 15 891 Km², corresponde a um quinto da superfície de Portugal continental, com a descrição de 14 925 Km² da parte oriental da ilha; 812 Km² do enclave de Oé-Cussi, pelo menos, a cerca de 70 quilómetros da fronteira territorial portuguesa; 144 Km² da ilha de Ataúro (pulau kambing, em língua indonésia), com 20 quilómetros de comprimento e 10 de largura máxima; e 13 Km² do ilhéu de Jaco. A realidade da nação timorense independente, mais uma vez, é uma realidade constituída por diversas etnias que, do ponto de vista territorial, é dominada pela composição multiétnica, e a demarcação das suas fronteiras é baseada no sistema da unidade políticoadministrativa criada pelos colonizadores, que terá contribuído para uniformizar a pluralidade étnica, recorrendo ao nome geográfico, classificando assim todos os naturais da ilha como 46

timorenses (Mendes, 2005:234-235). É evidente que uma unidade baseada na realidade geográfico-administrativa, que Anthony Smith classifica como um formato de incorporação burocrática, é uma unidade que mantém sempre os seus necessários particularismos, como se nota no conjunto dos grupos etnolinguísticos timorenses. Podemos entrever este reconhecimento nas seguintes palavras de Xanana Gusmão (2002:55): “com as diversas normas e com o direito internacional, a secular dominação portuguesa contribuiu, assim, para definir um espaço territorial, identificado como Timor-Leste, habitado por um Povo que adquiriu uma personalidade própria e se chama Maubere”. Nesta linha de raciocínio, salientamos que a identidade e a solidariedade resultaram inicialmente da incorporação das mudanças introduzidas pelo poder colonial, que, ainda hoje, a nação continua a ser definida no quadro do respeito pelos limites estabelecidos pelo estado colonial (Smith, 1997:134). Isto é, a experiência histórica colonial é um elemento essencial de distinção que justifica o nacionalismo, na medida em que ela conduziu as unidades administrativas que deram origem à demarcação da fronteira pós-colonial. Acresce que as mudanças ocorridas no sistema político internacional desde o fim da Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria suscitaram o inevitável recurso da nação: povo, bandeira, língua e território. Na vertente jurídico-política, o território é um elemento constitutivo do Estado nacional. É por isso que o espaço da nação é o local do exercício do poder de um Estado e reconhecido pela entidade jurídica no fórum internacional. Neste enquadramento e no caso concreto de Timor-Leste, salientamos que a identidade territorial ainda não está totalmente definida, concretamente, a demarcação da fronteira marítima com a Austrália ainda estão por resolver33.

2.5. A vida social vista na sua tradição A arte de viver é a capacidade de nos mantermos numa relação harmoniosa com aquilo que nos escapa (Georgio Agamben, Nudez).

A identidade construída no contexto social não é exclusiva dos indivíduos, mas está presente em grupos e organizações. A vida social, que proporciona trocas afectivas desde o começo da existência da criança constrói-se, a partir daí, através de estruturas culturais como a família, e dos mecanismos que toda a sociedade cria para codificar e controlar o quotidiano 33

O governo australiano quer uma delimitação “metade a metade” com intenção de agrupar alguns recursos do Mar de Timor ao seu território. Mas o governo timorense, durante o governo de Mari Alkatiri, recusou a proposta australiana, mantendo a linha da fronteira marítima traçada por Portugal.

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da vida dos seus membros, como a linguagem. Percebe-se, assim, que a identidade se dá no colectivo e o sujeito do ‘eu’ constrói-se a partir do ‘outro’, no contacto inicial com a família, e depois com as outras famílias e outros membros da sociedade. Este nível de identidade é construído continuamente sem limites. A vida social dos timorenses é bastante intensa, permitindo afirmar que o ser social se sobrepõe ao ser individual. Por isso, não existem famílias isoladas, nenhuma casa se constrói, nenhum campo produz sem a ajuda da oração e dos ritos e cooperação da comunidade, de todos os vizinhos do knua. O timorense encontra, na maioria das ocasiões, boas oportunidades para festejar e celebrar. Estas festas, que, de um modo geral, misturam o sagrado – rituais – com aspectos vivenciais do dia-a-dia, são sempre cuidadosamente organizadas, com muita alegria e entusiasmo. Os timorenses são caracterizados como um povo de símbolos, seja ao irem à missa aos domingos e participarem na eucaristia da partilha da hóstia e do vinho (símbolo do corpo e sangue de Cristo) ou ao cantarem o hino nacional diante da bandeira (símbolo da Pátria), ou recitando os ritos de Bandela Gua (caminho da bandeira) por um lia-na’in. Deste modo, os timorenses são constituídos por estas representações e já incorporadas de tal forma que sempre atentam para o seu relevo na construção das relações sociais. A música, a dança e o tébedai ocupam um espaço e um lugar imprescindível e preponderante nos múltiplos aspectos das actividades sociais da knua ou do reino. Canta-se e dança-se em situações festivas de carácter puramente lúdico, em cerimónias rituais, nupciais e fúnebres; canta-se e dança-se em situações de carácter laboral como ‘sama hare – pisar néli’, ou tei e ipi-lete dos Bunak (festa da colheita do arroz), dada ai (puxar o tronco). De todos os acontecimentos, ocupa lugar de destaque o ‘sama hare’, devido à sua importância na vida social e laboral timorense, pois o ‘sama hare’ não é só uma canção de trabalho. É também pretexto de convívio e de solidariedade, solidariedade dos vizinhos e amigos que se juntam para a debulha do arroz, convívio e trabalho de todos os participantes, durante dias e noites, até acabar a tarefa. De facto, de maneira específica, o ipi-lete ou ipi bala dos Bunak tem a ver com a ordem de vida pessoal e social. No que toca ao aspecto de vida pessoal, este acto festivo puramente lúdico representa simbolicamente o espírito social da família que organiza, faz-se sempre porque há capacidade económica para realizar tal festa popular. Justificamos que a vida social dos timorenses é impossível fora de uma rede simbólica, pois eles percebem que os símbolos mobilizam as acções humanas de maneira afectiva, sem dispensarem o componente essencial (a vida pessoal, familiar e comunitária) muito ligado ao

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aspecto económico, religioso e político, embora não se esgotem todas as experiências sociais, pois em muitos casos eles são regidos por signos. A música tradicional timorense, na sua maioria, é produzida por “instrumentos de percussão, não é rica” (Thomaz, 2008:290), mas tem uma dimensão musical muito apreciada pelos próprios timorenses e pelos visitantes da ilha, de modo a poderem tentar compreender sobre quais os instrumentos utilizados e o modo como se focaliza a voz interior para o exterior. Os instrumentos musicais mais vulgares são os gongos, mais conhecidos em toda a ilha de Timor por tantãs e tambores. Os instrumentos musicais são feitos de discos de metal de diversos tamanhos, normalmente com uma protuberância hemisférica no centro, que se percute com um pequeno pau de madeira. São semelhantes aos que figuram no gamelan ou orquestra javanesa, mas, de facto, existe outro instrumento musical mais típico de Timor que os visitantes precisam de conhecer, que é o lacadou. Este instrumento musical é feito de um troço do bambu, com 25 cm ou 30 cm de comprimento, em que se praticam incisões longitudinais de modo a destacar parcialmente do cerne a casca.

Figura 3 – Danças timorenses tebe e bidu do grupo de Bei Gua34

As danças tradicionais timorenses são muito variadas e, na região mais para lá da fronteira da Indonésia, são mais ricas e interessantes, o que se deve à influência indojavanesa, quer directa, como se nota no caso do folclore da zona do Suai, quer paulatinamente coada através do Timor Indonésio, como se observa na região de Oecussi e de Bobonaro. As danças mais conhecidas em todas as regiões de Timor são a tebe, o bidu e o tébedai35. Na 34

Fonte: Fotografias de Melisa Caldas, 2008. Bei Gua é um grupo de divulgação cultural timorense em Lisboa fundado por João dos Santos, natural de Saburai, suco Bunak. 35 Na tebe, os participantes têm obrigação de cantar, em diálogo com o coro, formando uma grande roda que se move lentamente, mas sem acompanhamento de instrumentos musicais. Este tipo de dança é conhecido por

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região fronteiriça há referência a uma dança designada por sílat, que é uma dança de luta corpo a corpo, e que se parece com o fandango ribatejano; ainda na região fronteiriça, há outra dança, a dança do milhafre de Balibo e de Suai, chamada bidu makikit36. Existe outra dança mais evoluída que pode ser considerada uma dança romântica de matriz europeia, e de tipo de valsa – ou javanesa, denominada dança empat kali, e ainda a dança do suru boek (apanhar o camarão). Outra actividade social que tem a ver com a produção dos ritos é, por exemplo, a realização do rito suru boek em Manututo, e da Pescaria da Bé-Malae em Sanirin (distrito de Bobonaro). No caso do suru boek, encontra-se uma possível significação de sobrevivência de rito totémico ou de magia simpática que imita os gestos dos pescadores de camarão, quando estes mergulham a rede nos recessos aquáticos; no âmbito do rito de pescaria da Bé-Malae, “o esforço sacudido repercute-se, intermitente, na respiração funda, ofegante dos homens, mas logo sucede, embalador, o canto das mulheres. Em redor, as gentes assistem e discutem, saltam e riem” (Cinatti, 1996:41)37. O bazar38 é mais do que um simples espaço comercial consagrado ao processo de trocas. É também um espaço de convivência social entre pessoas do mesmo grupo linguístico ou de outros grupos. É ainda um espaço lúdico em que se incluíam actividades como jogos de azar, jogos do pé e o futu manu (luta de galos)39. As lutas de galo constituem uma atracção cultural timorense, atestado pelo Pe. João José de Andrade (1920a: 257) como um jogo “grandemente bárbarie [...] muito mais do que o dos touros”, mas reconhece ser

maubara, praticada pela população da região de Liquiça, uma dança variada e mais complicada do que a de outras regiões. Quanto ao tébedai, é uma dança de tipo ritmado por gongos e tambores e o ritmo seco dos tambores de guerra (Castro, 1867:43), razão pela qual parece ter algo em comum com o batuque africano e é, entre os europeus, conhecido por ‘batuque’. É uma dança de mulheres que, enquanto tocam, avançam em linha formando círculos, um ou dois homens avançam para o meio do círculo e, virados para as mulheres, ao som dos instrumentos musicais tocados por elas, executam movimentos ritmados, agitando lenços. É uma dança festiva dos jubilosos acontecimentos que marcam a história da sociedade timorense. O bidu é uma dança normalmente considerada pelos timorenses como dança de guerra, onde os homens empunham as surik (espadas) de guerra. 36 É uma dança do pássaro que simboliza a liberdade, uma dança com apenas duas movimentações ritmadas. Com os trajes tradicionais, homens e mulheres representam o voo do milhafre. 37 Deve confrontar-se também com a descrição da lenda de “Bé-Malae”, da autoria de Eurico Lemos (Seara Ano1/nº8/1949) e de Ezequiel Enes Pascoal, em A alma de Timor vista na sua fantasia, Braga: Barbosa & Xavier Lda, 1967, p.132-136. 38 Antigamente, um timorense vai ao bazar para vender e nunca volta ao suco com a mercadoria. Juntou meia dúzia de ovos, ou duas galinhas, ou alguns cates de café – porque precisa de dinheiro para pagar o imposto, para adquirir um pente, uma argola, qualquer peça de vestuário, ou para apostas nas lutas de galo. 39 É um vrdadeiro desporto nacional em que dois galos se defrontam no galódromo, até que um deles cai ou abandona a luta. As lutas de galos são elementos de invulgar relevância na vida dos timorenses, é necessário afirmar que “Timor sem elas seria um pouco como pensar Espanha sem touradas. Assim, como estas constituem um momento fulcral e apoteótico de uma certa mundividência e sensibilidade inerente à tradição espanhola, também os combates de galos instauram um universo com regras próprias, no qual o guerreiro e jogador que vive em cada timorense conhece momentos de rara plenitude” (cf. Carlos M. Ramos de Oliveira (1971), “Lutas de Galos em Timor”, in Geographica: Revista da Sociedade de Geografia de Lisboa, vol 7, nº 28, pp.55-68.

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“extraordinário” e “um frémito de entusiasmo, de admiração, de culto quase, me percorreu as veias. Briosa ave! [...] Cocorococó...!”. Quanto ao jogo do pé, este missionário ‘arrogantemente’ o classificou como um “jogo estúpido” e, reconhecendo a sua culpa, dizia: “Perdão, povos de Timor. Ofendivos sem razão”. A propósito disto, Frederico Rosa Delgado caracterizou o Pe. João José de Andrade como um missionário arrogante que pretende justificar a sua própria sociedade europeia que não tinha jogos tão ou mais rudes? “Pois então, um filho da vetusta Europa, que se preza de ser o berço e arauto da moderna civilização, acoima de bárbaros e estúpidos os vossos divertimentos! Lá, que se está mostrando predileção delirante por jogos não aquém dos vossos em barbaridade...! Os toiros, o boxe, o galo” (Andrade, 1920b: 188). Como português, ele estava realmente numa situação delicada e não podia limitar‐se a condenar essas distrações europeias como se fossem absolutamente alheias ao universo católico. Ainda tentara sugerir desde início que o povo espanhol, em contraste com o português, era dado a “assomos de barbaridade” que justificavam a sua “verdadeira paixão e entusiasmo” por los toros. Mas sabia perfeitamente que a realidade ibérica das touradas permeava as festas católicas em ambos os países com o consentimento da Igreja (Rosa, 2011:1-2). A vida social timorense tem a ver também com a inter-comunicabilidade com o Outro. O Outro, aqui, representa o que consideramos o centro de contacto do ser humano com a divindade e a natureza. A interacção com o Outro é sempre intermediada pela prática adat. Tal interacção abre com o ritual de iniciação no interior da casa, porque a casa, em si, é uma estrutura ritual ordenada que possibilita a preservação da origem do grupo e a sua intercomunicabilidade com a natureza, como “fundamento da sua identidade material e imaterial” reconhecidas e partilhadas pelos “membros da sociedade humana” (Sousa, 2007:200), como explicam Cécile Barraud e Friedberg Claudine acerca dos Kei e dos Bunak: Performing rituals is part of everyday work and necessary in order to be a human social being, to maintain the society through the continuity of the relationships with other beings (human and non-human) and, particularly in the case of these two societies, (but maybe also of other Indonesian societies) with the territory (apud Sousa, 2007:200; Sousa, 2009:114).

Esta dimensão ritual é muitas vezes ligada à tradição e ao folclore, que estão na base económica, religiosa e política de organizações sociais complexas que persistem em comunidades timorenses, mas esquecidas ou ignoradas no dia-a-dia pelos poderes políticos e religiosos, solicitadas somente em momentos de crise ou de celebrações modernas.

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3. A palavra Lisan como análogo de cultura Uma definição de cultura no contexto da tradição timorense chamada lisan, torna-se particularmente difícil, porque a lisan pode ser estudada sob vários pontos de vista e precisaríamos de escolher um deles para poder defini-la. A lisan pode ser definida nestes termos: Liafuan lisan neé mai husi ita nia bei ala kedan; ita nia hahalok, ita nia dadolin, ita nia uma-lúlik, ita nia fo liman-malu, sira neé hotu mak naran ‘lisan’; lisan neé hanesan mos aimoruk ida tamba nia mak ita nia lalenok, tan ne’e husi lisan bele hatene ita nia abut e hodi hateke ba loron aban nian40.

A lisan é um discurso que vale tanto para o presente como para o futuro. Nas conversas do dia-a-dia dos timorenses, notam-se algumas frases, como, por exemplo: “Oan halo-lia ne’e ita nia kultura hori uluk kedan – Filho halo-lia é a nossa cultura desde tempos idos” (Halo-lia é uma expressão de fazer-se ou uma acção de fazer qualquer coisa no sentido formal, por exemplo, koremetan, hakoi-mate e ‘Antchia – atear o capim’). A propósito da prática cultural de An Tchia (simbolicamente traduzida como cultura) dos Bunak, nomeadamente do Bunak de Tapo Tás, o okul gomo da casa sagrada de Dato Pou, em 2003, define a cultura An Tchia em seguintes termos: ami buka hahan ida iha tetuk neeba ami hala’o adat iha neeba, ne’e duni ami hoin mai to hia ne’e. Ami ba buka hahan ida, ami buka hia tetuk neeba, ami lori to iha ne’e ona. Ne’e mak ami, povo Tapo tomak, ami hato’o buat ne’e, han hotu, ami han – nós vamos procurar a comida na planície e fazemos o adat, e assim, hoje, regressamos aqui. Nós vamos buscar comida, na planície, e já a trouxemos até aqui. É por isso que nós, todo o povo de Tapo, cumpre isto, comer tudo, comemos (Sousa, 2010:285)

Por seu lado, o mátas Paul Mota da casa sagrada de Ná-Mau (numa entrevista concedida ao antropólogo Lúcio Sousa, em 2004) define a cultura de An Tchia nos seguintes enunciados: an tchia rau ba’are goet … ete zon gol lika o luma ba’are o en bais o amo na mete zap o en … orel o en, likirau mos sei ema. (a an tchia é assim antes os filhos dos porcos-selvagens lika e luma eram pessoas

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“A palavra lisan existe desde dos tempos dos nossos antepassados; o nosso comportamento, a nossa história, a nossa casa sagrada, o modo da nossa interacção são caracterizados como ‘lisan’; lisan é como um remédio, porque ela é a nossa identidade; por isso, através dela, pode saber a nossa origem e olhar também para o futuro que há-de vir”.

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antes, o cão também era uma pessoa o macaco era uma pessoa, o macaco também era pessoa (Sousa, 2010:285)

Desta forma, a prática cultural de An Tchia associa a cultura ao cultivo a terra. É uma prática cultural realizada ritualmente todos os anos, pelo que, designamos como ‘ritual do ano agrícola’, ou seja, “um ritual que marca, de forma simbólica, tempos e transições: o termo das pequenas chuvas ‘holi’ e a entrada da breve estação seca ‘porat’ na qual se preparam os campos para o novo ano agrícola marcado pela expectativa da chegada atempada das chuvas de monção ‘to’ (Sousa, 2010:285). A lisan e An Tchia são tipicamente de origem timorense e não expressões mistificadas pela ideia ocidental. Dizem respeito ao modo de vivência social do povo de Timor, são expressões de fazer-se, movimentar-se, partilhar e combinar-se. Lisan é uma combinação de crenças, costumes e tradições do povo timorense, variando de comunidade para comunidade; geralmente, é um aspecto importante da vida comunitária nas knuas; na língua indonésia é habitualmente referida como adat (tradição, costume e apresenta-se também como cultura). Devemos compreender a Lisan, ou adat, como o berço de toda a evolução das actividades sociais que engloba o ciclo ecológico, o ciclo económico, as estruturas sociais e ideológicas. De facto, está enraizada na contemporaneidade da sociedade timorense. O respeito pela lisan, ou adat, é um sentimento de orgulho nacional para o povo timorense. Lisan, particularmente, pode expressar-se noutros termos, consoante as línguas dos grupos étnicos timorenses. A primeira acepção de lisan está ligada também ao mundo agrário, tal como a concepção da cultura que provinha da palavra “agricultura” e que se refere muito à cultura do campo. Por outro lado, a palavra lisan parece derivar inicialmente da tradição dos timorenses, porquanto, já no século XII A.C., a ilha de Timor era habitada por pequenos grupos, cuja maioria trabalhava na agricultura.

Figura 4 – Adat enquanto centro de vida comunitária (Sousa, 2009:113)

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Podemos verificar que a expressão lisan é constituída por duas sílabas, lí e san – lí significa ver ou observar, e san tem de origem no verbo substantivado sau, que em português, equivale ao verbo trazer ao colo ou trazer no ventre. É um termo que tem o mesmo significado com a palavra cultura, proveniente do verbo colo, que no Latim significa “eu cultivo”, especificamente, “eu cultivo o solo”. Isto é, tanto a lisan como a cultura seriam, basicamente, o campo a ser cultivado, para quem vai trabalhar a terra. Na lisan ou adat existe uma prática jurídica consuetudinária chamada Tara bandu41. É uma lei e/ou um código de representação simbólica que diz respeito à preservação dos ambientes naturais. A importância deste direito tradicional é que valoriza mais a relação entre o homem e a natureza, isto é, as normas de Tara bandu proíbem o comportamento do ser humano que tenta destruir o seu próprio meio ambiente. O ritual de Tara bandu fora já implementado pelos antepassados timorenses desde há muitos séculos, ritual que refere Traube (1980:91), em relação aos Mambai, “ […] an obligatory service which secures the order of society and cosmos”. O ritual de Tara bandu é, no entanto, um acto de manter a mútua relação entre a natureza envolvente e o homem, ou seja, valorizar simbolicamente os laços que unem a natureza e o homem, como no caso concreto da execução do ritual de An Tchia, que os povos de Bunak executam anualmente, no sentido de procurar manter a união do homem com a natureza. O timorense considera a natureza como ‘berço’ de vida e a consciencialização do direito consuetudinário Tara bandu consiste na maneira de agir, de sentir e de pensar, exteriores ao indivíduo, e que é dotado de um poder natural de coerção em virtude do qual esse dado se impõe à vida da comunidade, em que “Adat is praised as the “soul” of the nation/used in reconciliation processes/ecological benefits (tara bandu) and used as national “folklore”, namely in the reception of foreign dignitaries” (Sousa, 2009:109). O ritual de Tara Bandu é praticado em todo o território de Timor-Leste, mas com maior frequência no interior da costa norte do país (Oé-Cussi, Liquiça e Metinaro e Manatuto) e no interior do território (Bobonaro, Maubessi, Ainaro entre outras regiões) e na costa sul (Suai, Zumalai)42. Os sinais variam de lugar para lugar, e as dimensões e os conteúdos dos símbolos 41

“O termo Tara Bandu em língua bunak chama-se Ukon lai ou gole e gôr, em Mambai é traduzido por guêru ou kéru. Cf. António de Almeida (1976/1977), “Contribuição para o estudo dos nomes ‘lúlik’ (sagrados) no Timor de expressão portuguesa”, in Memória da Academia das Ciêns de lisboa, Tomo XXI, pp. 121-147. 42 Segundo Laura S. Meitzner-Yoder (2005:250): “Government involvement has taken different forms in different regions of East Timor. In Covalima and Lautem districts during 2002-2003, a small number of communities planned localized ceremonies in coordination with the district Forestry officer, in the pattern described below for Oecusse. In Bobonaro district, tara bandu sponsors from a local NGO stated that the government were invited and attended multiple tara bandu ceremonies that covered most of the district’s area (Coimbra, 2002). In October 2003, the national director of Forestry widely distributed data-gathering forms to

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parecem estar correlacionados com cada região. Nas pequenas aldeias, a sinalização é mais comummente erguida perto das knuas (aldeias) ou plantações ao longo das estradas ou caminhos, com alguns objectos específicos (folha de palmeira, ossos do animal sacrificado no ritual) ou com apenas alguns símbolos inscritos. O poste é feito de um pequeno ramo de árvore, e os símbolos são colocados livremente no pólo. O que está colocado no pólo do ramo de árvore é para proteger uma determinada área durante um certo período de tempo. O ritual de Tara bandu é conduzido por um titular de direito, neste caso, o makaer fukun, ou lia-na’in. O ritual solene é dividido em três partes, dependendo também dos costumes de cada região. Começa com uma recitação inicial de orações (lei da conduta), seguindo-se-lhe uma sequência de sacrifícios de animais, e a cerimónia é encerrada com o anúncio das coisas que são proibidas ou que estão a ser protegidas. Esta cerimónia de Tara bandu é conduzida também pelos governadores da casa sagrada. Esta última baseia-se na crença de que aqueles estão encarregados das tarefas de particular importância: guardar as almas dos antepassados, convidando-os a proteger activamente o ambiente. É aqui que se situa a essência de interconectabilidade entre os seres vivos e os espíritos, podendo talvez ser classificada como ‘história natural do homem’, isto é, o encadeamento das representações entre os vivos e os espíritos “se assemelham entre si e se chamam umas às outras na imaginação; que os seres naturais estão numa relação de vizinhança e de semelhança que se correspondem e se encontram de se satisfazer” (Foucault, 1991:252). A justiça tradicional timorense foi adoptada pelo governo colonial da província de Timor Português como parte integrante do seu sistema judicial. Após 1999, foi adoptada também pela Administração da UNTAET e ainda está a ser aplicada pelo governo de TimorLeste. O grau de efectiva aplicação dos rituais segundo lisan e o seu formato variam consoante as comunidades, mas existe uma maior dimensão de práticas igualitárias, em particular, a cerimónia do nahe biti boot, a ser definida no próximo tópico. A administração portuguesa e a administração indonésia só reconheceram a legitimidade dos seus próprios sistemas formais de justiça. Foi por isso que o sector da justiça não estava bem consolidado em todos os aspectos sociais e se centrava apenas na capital Díli e noutros centros urbanos. Desvalorizando a justiça tradicional com base na lisan, todos os procedimentos judiciais que têm de ser solucionados na Assembleia-geral do nahe biti boot foram alterados. Sendo assim, a maioria da população timorense residente nas zonas isoladas

non-governmental institutions soliciting their assistance in gathering and reporting information about tara bandu initiatives that occurred in their areas of work (including location, frequency, results, difficulties, and environmental impact)”.

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continuava com os seus métodos tradicionais de justiça como um meio eficaz e legítimo para a resolução dos problemas que surgiam na sua knua. No tempo da ocupação indonésia, os procedimentos do lisan tornaram-se ainda mais profundos no seio da sociedade timorense, porque, em primeiro lugar, considerava-se o sistema formal de justiça da Indonésia como uma máscara de injustiça: por outras palavras, era um instrumento de opressão selectiva do povo timorense e não um meio de protecção dos direitos da população43. Embora o método moderno da justiça que assenta no tribunal formal seja muito bom para todos os cidadãos timorenses, eles não estão a habituar-se a este sistema de tribunal. No relatório The Asia Foundation - Law and Justice in East Timor Report (2004), os especialistas do Direito afirmam que no novo sistema judicial faz-se notar que os elevados custos do processo judicial formal poderão limitar o acesso a estes serviços. No caso concreto da prática cultural e jurídica de Tara bandu, o documento da Fundação Haburas (2001/2002) defende que “in this early era of freedom, Tara bandu needs to be developed and preserved as a solution to guarantee human survival in the future” e Meitzner-Yoder (2005:252) adianta que “The emphasis is not entirely on some imagined past ‘authenticity’ but has an eye on change and future direction, even “hybridity” with contemporary political circumstances”. Na aplicação da justiça tradicional, os líderes espirituais, revestidos de trajes de cerimónia e transportando buat-lúlik (objectos sagrados), dançam, enquanto cantam e recitam os códigos da lei. E, para dar mais importância ao acto, fazem-no ao som do tambor, cuja finalidade é invocar os espíritos dos lúlik chamando-os a mediar as decisões que irão ser tomadas. Os tambores são tocados pelas senhoras de idade avançada, que formam e dançam em pequenas filas à volta de um centro, como se dos raios de um círculo se tratasse. As mulheres mantêm os seus pequenos tambores sob o braço enquanto tocam em ritmos rápidos e complexos com ambas as mãos. A solenidade da sessão de abertura fomenta o sentimento de que, na justiça tradicional lisan, não se podem aplicar apenas alguns códigos do direito consuetudinário para beneficiar os perpetradores que procuram individualmente a sua readmissão na vida comunitária, mas todas as normas, e, através destas, os líderes tradicionais tomam com todo o cuidado as suas decisões que serão aceites por todos, tendo em vista o bem da comunidade. O respeito do Estado timorense pelos valores costumeiros do seu povo está, desde já, consagrado na Constituição da República Democrática de Timor-Leste (CRDTL) no nº 4 do artigo 2º, segundo o qual “o Estado reconhece e valoriza as normas e os usos costumeiros de Timor-

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Veja o Regulamento do Decreto-Lei da UNTAET, nº 2001/10, artº27-nº2.

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Leste que não contrariem a Constituição e a legislação que trate especialmente do direito costumeiro”. É, portanto, o reconhecimento do direito consuetudinário, sendo uma forma de preservar as raízes dos timorenses.

4. Nahe biti boot como matriz da democracia e da justiça social dos timorenses Nahe biti boot é um termo tradicional que foi e é utilizado pelos timorenses: é uma Assembleia-geral do Conselho dos Anciãos (matas mil), incluindo os dátos, os representantes das knuas e governadores da casa sagrada (dou-gie-hima-gomo). A expressão nahe biti boot é constituída por três palavras: nahe (estender), biti (esteira) e boot (grande). O conceito de nahe biti boot (estender a esteira grande) engloba todo o conjunto das práticas sócio-políticas, sócio-economicas e todo o sistema jurídico da sociedade timorense. A expressão, em si, tem um enorme peso na consciencialização identitária timorense e define-a como tribuna da democracia do povo de Timor. A cerimónia de nahe biti boot tem por função resolver conflitos políticos, conflitos familiares ou conflitos entre timorenses. Um dos grandes conflitos internos entre timorenses surgiu no ano de 1974. Os líderes políticos recorreram, então, ao ritual de nahe biti boot, para harmonizar as diferenças ideológicas e políticas entre independentistas e integracionistas (Soares, 1999; Soares 2004:23). Presentemente, a população local timorense utiliza este parâmetro judicial para poder dar continuidade aos costumes herdados dos seus antepassados. O objectivo é resolver problemas correntes que surgem na vida da sociedade (Hohe & Nixon, 2003; Soares, 2004:15). Normalmente, a cerimónia de nahe biti boot ocorre da seguinte maneira: na tribuna democrática de nahe biti boot, todos os lia-nain vestem os trajes tradicionais, usando pulseiras de pele de cavalo nos tornozelos; as pessoas adornam-se com objectos sagrados, tais como kaibauk (chifres de prata, fixos por uma tira de pele ou de pano que se ata atrás da cabeça) e a belak (medalha de ouro colocada ao peito). A abertura desta cerimónia consiste normalmente numa dança com duas finalidades: chamar os antepassados, para que acompanhem o processo de discussão que irá decorrer, e, ao mesmo tempo, convidar o público a respeitar as regras do acto solene e formal. O acto solene do nahe biti boot é um procedimento democrático tradicional dos timorenses que marca o início da unidade colectiva ou consciência colectiva. Os representantes são designados pelo Conselho dos Anciãos, os dátos, governadores da casa sagrada (dou-gie-hima-gomo) e representantes das knuas e, em plena consciência, concordam em sentar-se juntos para tentar resolver as diferenças entre dois grupos em conflito e partilhar 57

as suas semelhanças. Não se pode enrolar a biti enquanto não acabar a sessão plenária: não se pode enrolar a ‘esteira’ antes de o problema em discussão estar resolvido. A sessão plenária de nahe biti boot é sempre iniciada de manhã. Consoante a gravidade e complexidade do processo em contestação, a sessão pode prolongar-se pela noite adentro. Isto exige, portanto, que todos os timorenses compreendam o valor representativo e simbólico do nahe biti boot, de modo a poderem entender a perspectiva da paz e da justiça, assegurando assim a manutenção dos valores herdados dos antepassados, como uma ponte que liga o presente ao passado, e prever o futuro (Soares, 2004:23). Todo o processo de realização deste evento é formal, no sentido de valorizar a tradição; no entanto, o mais importante é respeitar todos os componentes do ritual para não perturbar o seu processo de realização (Soares, 2004:28). A comissão responsável por este evento prepara os ingredientes contidos num cestinho de palha (mama fatin): nozes de areca, lima, folhas de bétel, tabaco, vinho de palmeira (tua) e outros. Todos estes ingredientes são colocados sobre a ‘esteira grande’, cuja finalidade é procurar manter os costumes e os ritos herdados dos seus queridos antepassados. Este modo de respeitar e de valorizar os costumes e os ritos é uma das componentes que possibilita o entendimento colectivo em busca da verdade. A sessão da abertura do plenário é iniciada com o acto de mascar as nozes (areca), folhas de bétel e lima pelos lia-nain. E, no momento em que ambos os representantes conseguem ultrapassar as diferenças com uma solução bemsucedida sobre o assunto debatido, começam a beber tua (vinho), como símbolo de amizade e de entendimento colectivo entre ambas as partes. É também sinal da consciência colectiva que demonstra publicamente que se resolve o problema através de uma solução definitiva (Hohe & Nixon, 2003:2526) e que se pode continuar a manter uma relação pacífica. Para os timorenses, o entendimento colectivo é atribuído à intervenção dos lulik, porque todo o processo que começa com mama-malus hamutuk (Mascamos juntos a areca), acompanhado pela realização dos ritos sagrados, tem por finalidade solicitar, precisamente, aos lúlik que assinalem o momento democrático. A propósito, pode dizer-se que os lia-nain usam sempre objectos sagrados como um punhal (keris) e um pau (rota), que simbolizam o respeito pela lisan44, assim, todos os processos de discussão na Assembleia-geral da nahe biti boot serão abençoados pelos antepassados. As cerimónias de lisan centram-se nos indivíduos e as de nahe biti boot no sistema de colectividade social. Quer o lisan quer o nahe biti boot envolvem sempre os interesses de 44

Neste sentido, lisan é uma regra que conduz todo o processo de resolução do conflito para encontrar um entendimento colectivo baseado nas convenções pré-definidas pelos costumes e tradições do povo timorense.

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grupos familiares mais alargados. Nesta perspectiva, a relação entre família e comunidade é geralmente o nó da decisão, motivação e reconciliação. Todas as sanções aplicadas são baseadas nas provas apresentadas pelas testemunhas, incluindo o testemunho pessoal dos arguidos. Devido ao seu contexto comunitário alargado, as demonstrações públicas de reconciliação através de rituais e cerimónias usadas na assembleia-geral do nahe biti boot podem manter a estabilidade social de modo a garantir o restabelecimento da imagem das vítimas e a reinserção dos perpetradores na comunidade. Deste modo, o nahe biti boot não deve criar conflitos durante o processo de resolução do problema, mas procurar estabilizar a situação no sentido de haver uma compreensão mútua, dando assim continuidade aos valores da justiça e da paz no seio da comunidade (Soares, 2004:27). Os ritos da lisan e do nahe biti boot são valorizados e legitimados pela maioria da população timorense, de modo a poder garantir a funcionalidade e modalidade da tradição através do espírito de confiança (Relatório The Asia Foundation, 2004:6). Tais práticas variam entre as diversas regiões do país, mas existem certos princípios da lisan que não podem ser alterados nem ignorados por ninguém, tais como: a invocação aos antepassados logo no início para testemunhar e validar o andamento do processo da cerimónia, que pode ser um julgamento, um casamento ou a construção de uma casa sagrada. O segundo é o caso do processo judicial tradicional, a família do perpetrador e a família da vítima. Há uma profunda relação entre o nahe biti boot e o juramento. Por exemplo, se recuarmos ao conflito de 2006, os políticos utilizaram este sistema para resolver o problema de ‘lorosa’e e loromonu’ (Trindade & Castro, 2007). Teriam sido convidados todos os líderes tradicionais dos treze distritos, mas, na realidade, foram convidados apenas alguns. Esta decisão não agradou aos políticos que exerciam ‘kargus’ no governo, pois, na nossa opinião, foi apenas um jogo político para mostrar ao mundo a validade da democracia ancestrais timorenses, por parecer que inclua todos os poderes tradicionais a participarem nas resoluções dos problemas do país. A discussão na assembleia-geral do nahe biti boot dá-se sob o sinal da unidade nacional e termina com um ‘juramento de sangue’, ou seja, ‘hemu ran’. Consiste em beber o sangue do animal sacrificado com vinho branco (tua mutin), que simboliza o reconhecimento total dos erros praticados, levando assim os jurados a reflectir sobre o passado e a construir o futuro. O juramento efectuado no nahe biti boot é importantíssimo, porque a solução do conflito no interior da comunidade, o conflito político ou o conflito partidário (sobre a propriedade da terra), “é um dispositivo fundamental para a defesa da comunidade e para o reforço contínuo da paz” (Hohe, 2003:343). Normalmente, este contributo tem um elevado significado, porque 59

todas as ofertas bua-malus e tua-nú-ben (vinho de coco) com o sacrifício de um animal serão partilhadas no ritual de encerramento da reunião, como sinal de reunificação. É necessário, portanto, um acordo tácito entre todos os intervenientes, o que confere a este fenómeno de comunicação a categoria de rituais, cerimónias que permitem confirmar, como afirma Erving Goffman (1991), não só pela ordem moral, mas também pelas práticas culturais e sociais.

5. Consideração final A gestação e o amadurecimento da identidade nacional do povo timorense foram, como

a história testemunha, um processo longo e difícil, sobretudo por acção de grupos externos empenhados em destruir o sentimento de cumplicidade e de pertença que estão na base da ideia da nação timorense. Portanto, a identidade étnica timorense não é vazia de conteúdos culturais; pelo contrário, as especificidades dos grupos defendem a demarcação de seus territórios, bens e matérias. O que importa ter presente para uma análise dos fenómenos de identidade timorense não é apenas descrever o conteúdo cultural específico deste ou daquele grupo que habita a ilha de Timor, mas o processo de codificação das diferenças culturais que tornam as suas categorias étnicas organizacionalmente pertinentes. Contudo, aplica-se este conceito de identidade étnica para sublinhar que a identidade timorense é formada por diversos grupos étnicos, em que os vários agentes locais (Liurais e Dátos) se apresentam como um poder legítimo, a fim de estabelecer as bases de uma afirmação autêntica da identidade do seu reino. Timor-Leste, com sua a imensa riqueza cultural, onde a valorização destas manifestações é forte nas acções a favor da preservação do seu património, vê-se reflectido em tradições através dos séculos da história, como afirmam os artistas plásticos: “Husi Kultura Ita Hatene Ita Nia Identidade – Através da cultura conhecemos a nossa identidade” ou “Dalen Oi-Oin Povu Ida Deit – Várias línguas, um só povo”. Outra mensagem idêntica é “Timor Oan – Rai ida, Nasaun ida, Futuro ida de’it – Filho de Timor: uma só pátria, uma só nação, um só futuro” (ver figura 5). Esta realidade ocorre com igual expressão ao nível dos vários aspectos elementares que constituem as características timorenses e, simultaneamente, lembram aos timorenses que Timor-Leste é uma nação una e forte, pois, apesar de ser uma nação pequena, quer ser grande no crescimento económico e no combate à probreza, o que nos leva a defender a ideia de que, tão importante como identificar a especificidade deste povo e desta nação, é conhecer e reconhecer os traços culturais característicos segundo a sua produção. 60

Figura 5 – Cartaz junto à Biblioteca Xanana Gusmão de Díli45 e cartaz na rua de arredor de Díli46

No processo de construção, negociação e de afirmação de identidade nacional timorense, o discurso acerca da questão deriva do envolvimento de políticos e intelectuais e outros (autoridades rituais ou kuku na’in), que usam os mitos e as antigas crenças, nomedamente, a mitologia colectiva “o rapaz e o crocodilo”, “contos mestiços” e lendas ‘irmãos mais novos’, como símbolo de unidade nacional. Os timorenses afirmam que os seus mitos de origem e as suas antigas crenças são um poderoso meio de comunicação para chegar à perfeição das coisas, funcionando como história simbólica de particular importância na formação da identidade nacional do seu Estado-nação e, através deste contacto, cada geração sabe afirmar a sua raiz. Os timorenses realizam os ritos junto dos montes sagrados, das pedras sagradas, das árvores sagradas (gondões) e nas casas sagradas. Acreditam na existência de um Maromak (Deus), dono da natureza, o verdadeiro senhor do Universo. Não adoram as pedras, montes e árvores, mas glorificam Maromak, que habita tais espaços. Maromak e a natureza na lisan timorense são inseparáveis, e foi por isso que os missionários católicos, ainda no tempo do governo português, aproveitavam a designação para socializar e divulgar a doutrina cristã junto do povo timorense, de modo a poder justificar que o significado de tal termo é o mesmo do Deus cristão. A lisan opõe-se à natureza e às actividades do homem, isto é, abrange todos aqueles objectos que a natureza não produz, mas que são acrescentados pelo espírito. A interacção é já uma condição de lisan, pois, através dela, os timorenses comunicam entre si. No seu termo plural, a lisan é uma combinação entre crença, costumes e tradição; tem na sua origem uma 45 46

Fonte: Fotografia de Lúcio de Sousa, 2006. A fotografia foi cedida pelo Emanuel Braz em Novembro de 2010 ao autor deste trabalho.

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motivação moral e espiritual que, na tradição timorense, é um caminho que condiciona o contacto do ser com a essência do Universo que o rodeia. Não se pode observar o conteúdo da lisan fora do seu espaço social, e os timorenses não conseguem contemplar simultaneamente o mundo (material e imaterial, ou pessoal e social) em profundidade, se não tiverem seguido ou vivido de acordo com as normas herdadas dos seus antepassados. Após a Restauração da Independência de 2002, a população local retomou a sua prática cultural de Tara bandu, para a preservação do meio ambiente. O Tara bandu é realizado periodicamente, por exemplo, na altura do amadurecimento das frutas: os lia-na’in realizam o ritual de Tara bandu. Deste modo, a implementação do Tara bandu é para apoiar a justiça formal do estado de Timor-Leste, porque esta justiça formal não consegue, só por si, resolver todos os problemas do meio ambiente47. O nahe biti boot é análogo ao conceito moderno de ‘mesa-redonda’, onde se encontram pessoas de diferentes facções que partilham as suas ideias sobre o plano de desenvolvimento familiar ou comunitário, local ou nacional. Nahe biti boot pode ser aplicado também na resolução do problema de demarcação das fronteiras. Recentemente, o problema de demarcação da fronteira entre Timor-Leste e Indonésia – sobretudo, o caso da fronteira da aldeia Naktuka48 – teve de ser solucionado através do diálogo nahe biti boot49.

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A este respeito, temos alguns dados concretos que os leitores precisam de conhecer sobre esta lei tradicional. Em 2010, a autoridade política do suco de Metiaut, em coordenação com a autoridade ritual, realizou o ritual de Tara bandu. 48 Pertence ao suco de Bene-Ufe, sub-distrito de Nitibe no distrito de Oeccuse. 49 Acerca deste assunto, o presidente do Parlamento Nacional de Timor-Leste, Fernando Lassama argumenta: “Hau fiar liu husi dialogu nahe biti bo’ot povu rai rua nebe hela besik malu iha fronteira sei la kria problema, maibe hametin liutan amiza nebe povu rai rua hahu desde tempu uluk too agora” (STL 22/10/2010), ver o texto completo em http://www.suara-timor-lorosae.com/berita-1738--problema-naktuka-tl-indonezia--bele-solusiona-liu--nahe-biti-boot.html (consulta a 15/1/2011).

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Capítulo 2 Linguagem artística e simbólica da Uma (casa) e Uma-Lúlik (casa sagrada)

1. Consideração prévia

Para a população do sudeste asiático, a casa tem uma particularidade na formação da vida familiar e da comunidade, sendo considerada como background da Nação. Segundo algumas referências de James Fox sobre vários grupos sociais da região leste da Indonésia (as regiões Molucas), estes dizem que a origem do seu grupo está associada à fundação da primeira casa: since what they claim to share and to celebrate is some form of common derivation. This derivation is socially constructed and may be variously based on the acknowledgement of a common ancestor, a common cult, a common name or set of names, a common place of derivation, and/or a share in a common collection of sacred artefacts (Fox, 2006a:135).

De facto, ela tem a função reveladora de uma vida, ou seja, da origem de um povo e de uma nação; é uma construção física, sendo ao mesmo tempo uma característica cultural que revela e comunica a presença de grupos sociais que perduram no espaço e no tempo. A casa é tratada como qualquer coisa cosmogónica e significante – em que as coisas estabelecem entre si relações de interioridade e exterioridade – e, por isso, é representável e simbólica, simultaneamente, é passível de sofrer todas as modificações desejadas segundo as leis globalizacionais. Pensamos a casa como qualquer coisa a que devemos dar forma, e as nossas práticas sociais orientam-se neste sentido, querendo isto dizer que, num espaço homogéneo e infinito, pode fazer-se qualquer coisa em qualquer lugar, o importante é respeitar a existência do poder supranatural sobre os seres humanos. As casas são objectos de cultura; quem as constrói já revela em si a sua imagem. Quando as constrói, é como se o homem cultivasse a vida. A casa é referência e origem de relações familiares, de vizinhança e grupos comunitários. É lugar de trocas, de estabilidade e de um auto-reconhecimento que possibilita a construção de um referencial que posiciona o sujeito no tempo e no espaço, como refere Fox (2006:4), “ […] a mnemonic cultural design for the remembrance of the past”, ou “‘theatre of memories” (idem:23) que “ […] for

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centuries represented an iconic marker of social and ethnic identity as well as cultural heritage.” McWilliam (2005:28). A casa é a força de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do passado, do presente e do futuro. Sem ela, o homem seria um ser disperso; ela assegura a vida de um ser no risco e na incerteza. É o primeiro espaço que dá continuidade à vida do homem. É a alma gémea de um ser. A casa é um espaço doméstico, dentro dela estabelecem-se sistemas simbólicos mediadores que permitem a circulação das actividades sociais mais amplas. Deste modo, pode dizer-se que a casa faz declarações tanto públicas quanto privadas, ou seja, a casa tem múltiplas funções, quer no âmbito de colectividade quer no aspecto da vida familiar. Por outras palavras, as casas, na sua dimensão hermética, associam-se sempre à concepção da origem do mundo, dos seres e da humanidade com a sociedade e os indivíduos contemporâneos. Nenhuma casa é um invólucro, porque todas as casas, modestas ou ostentosas, conservam em si o espírito de quem as constróio e a alma de quem nelas habita. Esta relação, aparentemente excessiva, contém em si mesmas uma jornada do ser e da humanidade, que Waterson (1987) classifica como um “tipo especial de imortalidade”. Esta noção de “imortalidade” refere-se à presença dos antepassados, que revela sempre a sua imagem em estruturas igualmente presentes na paisagem e nos lugares desconhecidos por muitos, sobretudo por seres estranhos que compartilham o habitat territorial com os agregados humanos, as casas e o seu interior (cf. Sousa, 2007:199). A casa é o lugar da memória, cenário da vida familiar, é o espaço de origem do grupo, das aprendizagens mais pessoais, local das recordações de infância, é o sítio de uma memória fundamental que o imaginário do ser habita para sempre. Ruy Cinatti, em Arquitectura Timorense, fez um detalhado levantamento etnológico do universo timorense durante da sua estadia em Timor. O autor destaca que, na tradição da sociedade timorense, existe um “simbolismo cósmico do mundo expresso na aldeia e na casa de habitação” (Cinatti, Almeida & Mendes, 1987:38). Tal ideia é partilhada também por James J. Fox (1980), segundo o qual há um conjunto de categorias sociais das diversas etnias da Indonésia oriental que se baseia na representação cosmológica da ‘casa’ e, simultaneamente, considera as mulheres como um elemento constitutivo do “fluxo da vida – the flow of life”.

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2. Linguagem artística, simbólica e arquitectónica de Uma e Uma-Lúlik

As linguagens artísticas e a arquitectónica são símbolos de uma determinada cultura. A arquitectura tradicional é também uma representação simbólica de uma comunidade. Deste modo, pode dizer-se que construir uma casa é um acto de comunicar com o espaço e o tempo, com régua e compasso, com materiais para construir, bem como com o lugar da construção, sendo a arquitectura encarada como um sistema de expressão de um conjunto de símbolos. A apropriação do ‘local’ é um dos componentes mais importantes na definição da cultura de uma comunidade diferenciada. Na cultura timorense, é a partilha da memória colectiva. O “lugar de memória”, assim designado por Pierre Nora (1984), simboliza a consciência social e pessoal da humanidade. Isto dá-nos a visão específica de que a consciência nacional de um povo ou de uma sociedade está ligada a um espaço, ou seja, na história do homem, o ser humano é um ‘animal simbolicum’, porque, ao longo da sua existência, não escapa aos símbolos produzidos. No contexto da comunicação, o homem utiliza os símbolos para descrever a sua existência e, por isso, desenvolve-se mais rapidamente do que os ‘outros seres vivos’. Quer isto dizer que a produção de símbolos está no raciocínio lógico do homem, é uma das competências dos seres humanos a considerarem ‘os lugares de memória’ como sendo depositários de partilha coletiva, porque são documentos e traços vivos, que se constituem no cruzamento histórico-cultural e simbólico que lhes dá origem, coisa que os leva a resistir à aceleração da história, à marcha da colectividade em direcção ao futuro. Podemos dizer que a ideia de casa como um caso específico da organização social dos timorenses, do sudeste asiático e da América Latina, em geral, numa abordagem holística e culturalista da casa, engloba sempre aspectos arquitectónicos, simbólicos e sociais. Daí a casa ser tomada como uma representação simbólica, “locus de densas teias de significado e modelo cognitivo para estruturar, pensar e experimentar o mundo” (Carsten & Jones, 1995:3). Todavia, a compreensão da linguagem simbólica da arquitectura da casa tradicional de Timor-Leste exige muita competência acerca do conhecimento filosófico e arquitectónico dos timorenses. Sem esta competência, é difícil conhecer exactamente a parte artística da sua arquitectura tradicional. É necessário, pois, saber e aprofundar também o conhecimento antropológico para conhecer a linguagem artística e arquitectónica de uma determinada sociedade timorense. A mitologia da origem da identidade dos timorenses é construída a partir da “Uma” (casa) ou knua (aldeia/comunidade) e uma-lulik (casa sagrada). Estes três espaços físicos são 65

fundamentais e representam metaforicamente o mito da fundação da Nação Timorense, ou uma metáfora arquitectural de conotação histórica que produz e estabelece a identidade nacional timorense. Devem aproveitar-se estes espaços consideráveis como uma possibilidade para reivindicar as diferenças, e, ao mesmo tempo, reafirmar a memória colectiva partilhada desde o início, há muitos séculos. É por isso que em Timor-Leste existem as casas que evidenciam contactos culturais entre grupos étnicos diferenciados e sem relação de vizinhança. Esta nova realidade veio justapor-se a um “sistema mais íntimo e rígido que é índice iniludível das relações culturais mantidas com o sudeste asiático” (Cinatti, Almeida & Mendes, 1987:30). Este modo de construção é condicionado pelo material utilizado e a estrutura das casas assenta sobre pilares, seguindo os diversos ritos herdados desde o princípio. Isto dá uma continuidade aos valores sociais da sociedade. Os timorenses construíram vários tipos arquitectónicos para a sua habitação. De uma maneira geral, Ruy Cinatti e os seus companheiros identificaram sete tipos de habitação que correspondem às regiões de Bobonaro, Maubesi, Baucau, Lautem, Viqueque, Suai e Oécusse. No entanto, Molnar (2005) destacou a identidade de Timor-Leste com três estilos de uma-lúlik que representam as culturas da região do oeste, central e oriental do país. Porém, não referiu quais seriam as casas sagradas destas regiões que representam o país.

Figura 6 – Arquitectura e tipologia da casa timorense (Cinatti., Almeida & Mendes, 1987:57) 50

A arquitectura e os ordenamentos das casas e casas sagradas tradicionais que se encontram em Timor-Leste, evidenciam que se está perante uma tradição comum a outros povos circunvizinhos de Timor até às ilhas bastante afastadas dela, como a de Tikopia, da qual diz Raymond Firth (1957:81): “Many house-names are ancestral, used by the family

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Frédéric Durand (s/d), História de Timor-Leste – da pré-historia à actualidade, Lisboa: Lidel

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groups for many generations, perhaps since their founding”; enquanto James F. Fox (2006:1), por seu lado, argumenta: The ‘house’ in this sense is a cultural category of fundamental importance. It defines a social group, which is not necessarily the same as the house’s residential group. The house, as a physical entity and as a cultural category, has the capacity to provide social continuity. The memory of a succession of houses, or of a succession within one house, can be an index of important events in the past. Equally important is the role of the house as a repository of ancestral objects that provide physical evidence of a specific continuity with the past. It is these objects stored within the house that are a particular focus in asserting continuity with the past.

A continuidade é essencial numa sociedade que privilegia a noção de fluxo de vida como fundamental para a sua subsistência (Fox, 1980). A casa é um marcador temporal e geográfico da história tal como é percepcionada localmente (Sousa, 2007:198), uma vez que é um lugar de vida. A casa é muito mais que espaço físico e geográfico e, simultaneamente, muito mais que lugar de abrigo do ser humano, porque, acima de tudo, ela é lugar de constituição da vida, revelando-a em suas múltiplas dimensões. A casa assume o lugar como interjogo entre o social e o particular, ou entre o público e o privado. Ampliando a noção de casa e de knua, alçando-as à condição de categorias sócio-antropológicas e identitárias para a compreensão da sociedade timorense, apontamos que, acima de tudo, casa e knua são entidades morais, esferas da acção social, farol de éticas dotado pela positividade e lugar de domínios culturais institucionalizados. Noutras palavras, podemos considerar a casa e knua como sendo pertencentes à cultura patrimonial, porque a sua representação material e imaterial é altamente centrada nos registos, memórias e documentos produzidos que possam trazer à transformação das condições de vida através da definição das práticas culturais quotidianas. Entretanto, ética e habitação compartilham a mesma raiz. Etimologicamente, ethos refere-se tanto aos costumes como à habitação do ser homem. A casa não é um monumento a ser apreciado de fora. Ela é parte de um mundo próprio, que possibilita ao Homem uma experiência de vida serena e segura, para que o ser humano possa ter livre acesso a todas as condições de vida. É por isso que “os termos referentes ao conceito ‘casa’ apresentam a particularidade de evocar múltiplos lugares, formas, objectos de um universo quotidiano com o qual estamos completamente familiarizados, já que ninguém pode viver sem habitar”. Apesar de “o vocábulo ‘habitar’ pode ter um sentido geográfico ou ecológico”, uma casa construída num determinado espaço é para ser ocupada, “senão permanente, pelo menos com fortes hábitos e regularidade” (Frey, 2003:186). A perplexidade do habitar a ‘casa’ no mundo contemporâneo 67

está sempre em transição, isto é, no seu corpo enquanto espaço de abrigo e domicílio em lugares e não-lugares (estes são à semelhança dos sem abrigo, refazer um espaço privado, que seja seu, como ‘conservar uma abertura às trocas sociais, é construir a última defesa/ muralha do habitar’). Construir a ‘casa’ e habitá-la, é uma forma de reafirmação das identidades nas diversas identificações, e como tal contribuem para a formação de identidade. Todas as construções estão uniformizadas, de acordo com a forma, dimensões e outras particularidades. Todos os tipos de arquitectura da casa correspondem a certas lendas ou mitos que marcam a origem de um grupo, isto é, o modo de construção e de ornamentação deve ser pautado pelas normas herdadas ou partilhadas pelo mesmo grupo, isto embora, com algumas influências europeias, o hábito passe a ser o modelo adaptado. Porém, devem-se respeitar e cumprir as regras e os valores culturais dum povo, isto é, utilizar a linguagem da arquitectura com toda a responsabilidade e, tanto quanto possível, usá-la para todas as pessoas, aproximando-a da poesia. No caso dos timorenses, construir uma casa sagrada significa também uma forma de comunicação com todas as componentes da casa, comunicar com o formato e com os outros elementos artísticos e arquitectónicos com valores simbólicos. A arquitectura não necessita apenas da arte e das técnicas de construção, mas igualmente das convenções culturais de uma determinada comunidade. Cada construção é característica, marca os seus habitantes ou o clã de uma determinada comunidade. Assim, merecem atenção a qualidade, a dignidade e a filosofia como fontes de inspiração ou de expressão da arquitectura. Técnica e materialmente, ambos os tipos de construção usam a madeira e, em alguns aspectos, utilizam a pedra, quer em baques, quer em muros parciais de assentamento51. Contudo, todos os tipos de habitação que se encontram actualmente em Timor-Leste são quase semelhantes aos anteriores e semelhantes também aos de algumas regiões vizinhas, caso de algumas estruturas das casas da população de Nusa Tengarra Timur (Timor Ocidental), Bornéo, Sumatra e mesmo das casas da população de Maori na Nova Zelândia, como nos adverte James F. Fox (2006:2):

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Luís Filipe Thomaz em País dos Belos: achegas para compreensão de Timor-Leste, sublinha que “A casa tradicional timorense, erguida sobre estacas, com o seu tecto de gamute ou de capim, e o seu aspecto rústico e modesto, revela uma inteligente adaptação ao ambiente e uma notável economia de meios: a construção sobre estacas é uma defesa contra a bicharada e (tantas vezes) contra a excessiva humidade do solo; os discos de madeira que frequentemente existem ao cimo dos prumos impedem os ratos (a maior praga de Timor) de entrar nas habitações; o tecto pontiagudo abriga um sótão que serve de celeiro, a bom recato de roedores e ladrões, e o espaço inferior, por baixo da casa, serve de telheiro, onde se pode trabalhar ao ar livre, mas ao abrigo do sol e da chuva, e mesmo recolher os animais domésticos (Thomaz, 2008:37).

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An examination of the diversity of these houses gives some indication of the variety of Austronesian houses through island South-East Asia to Melanesia and the Pacific. The intention is to relate these various examples of domestic design to social activities and ritual practice and thereby to consider both commonalities and differences in the use of domestic space in different regions of the Austronesianspeaking world.

Todo o processo de construção e acabamento de qualquer tipo de casa que existe em Timor é dominado pelas culturas diferenciadas. A casa de Lautém é o símbolo da Nação de Timor, cuja representação se encontra em Samatra, na Indochina, Fidji e outras zonas do grupo proto-malaio, pois, segundo Cinatti (1987), pela técnica e cuidado posto na obra, quer pela leveza, elegância e riqueza ornamental com que surgem, a casa dagadá é a que mais surpreende em todo o Timor. Nestas habitações, o sentido arquitectónico ultrapassa de longe o seu utilitarismo imediato, integrando-o num todo que atinge expressão plenamente amadurecida e estável. Importa destacar também aqui que a casa cónica dos Baiquenos, da região de Oé-Cusse, ou a mais evoluida das gentes de Maubessi, é habitada por povos de substrato melanésio (Cinatti, Almeida & Mendes, 1987:210). A construção de uma casa é o início de uma nova vida, uma luz, fruto de uma reflexão psíquica e do sentimento dos seres humanos sobre o espaço habitacional. Dá também a impressão de que a construção das casas tradicionais (numa referência da casa sagrada) é uma linguagem simbólica da humanidade. Na dimensão da arquitectura é bastante rica, bela, reflexo de quem a constrói. A simplicidade e a naturalidade da construção representam um magnífico pensamento arquitectónico e um atractivo para todos os seres humanos.

3. A função de uma e uma-lúlik na vida social, política e económica timorense

O homem não pensa isoladamente, mas pensa colectivamente e de várias maneiras, geradas pela vida social. A inter-relação entre a identidade e a ideologia é bastante forte para se compreender o vasto sentido do significado de uma e uma-lúlik na vida social, política e económica dos timorenses. A identidade e a ideologia da vida dos timorenses estão associadas aos ‘estilos’ e às casas sagradas. Este processo de interacção influencia normalmente o entendimento do fenómeno da identidade na vida social timorense, pois a mesma tem a ver com a política e a economia.

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A identidade social é uma construção imaginária, quer no aspecto sócio-político quer no âmbito sócio-económico. Nesta condição imaginária, as casas timorenses são erguidas sobre pilares e dimensionadas em três espaços, como nos recorda Ruy Cinatti (1965:5): Assentam o sobrado sobre pilares, em obediência a normas que, segundo informação directa, traduzem preocupações antiquíssimas quanto à economia do espaço habitacional, à defesa contra inimigos e animais daninhos e ao respeito devido a uma concepção religiosa que, estatuindo a divisão do universo em três partes, estabelece para a casa igual divisão. Assim, o corpo do telhado envolve o mundo dos espíritos dos antepassados, a residência propriamente dita, o mundo dos vivos, e a parte abaixo do sobrado, o dos espíritos da Natureza, geralmente atribuído aos animais. Ê a partir destas normas, consubstanciadas em mitos, lendas e até formas específicas de construção e ornato, que se torna possível investigar as origens dos povos que a elas aderem. O estudo cuidadoso de todos estes elementos descobre, para os Timorenses, centros de origem e dispersão, localizados em outras ilhas do arquipélago, e, até, fora dele, Samatra, Bornéu, Celebes e, a distâncias maiores, a Indochina e o Japão, são nomes a fixar.

De acordo com a perspectiva da investigadora Andreia Katalin Molnar (2005), as umalúlik são constituídas pelos grupos sociais cuja adesão é transversal e que as liga ao sistema de descendência, à aliança de casamento e de residência, desde que todos estes factores possam ser usados para reivindicar a personalidade colectiva. Esta perspectiva foi sustentada também por J. G. Taylor (1994:15): “All the basic elements ensuring the reproduction of indigenous society were still firmly in place-kinship systems, ideologies legitimizing traditional rule, a self-regulating political system a self-sustaining subsistence economy and a culture based on notions of hierarchy and exchange”. Tal argumento é uma indicação que caracteriza a função da casa em Timor-Leste como um conceito com dupla função e que confere, não só a unidade familiar, simbólica e patrimonial, mas, sobretudo, engloba também a ordem complementar dualista: uma, sagrada/ritual, e a outra, secular/política (Mendes, 2005:111). Nesta ordem complementar, importa ter presente o conceito de Lévi-Strauss sobre a relação do ser humano com o seu espaço habitacional por ele designado como “sociedade de casa”, isto é, a existência do Homem foi descrita pela linguagem; e primordialmente pertencia à noção de “sociedade de casa”. O Homem, enquanto membro da “sociedade de casa”, é considerado inteiramente como pessoa civilizada e “pessoa moral detentora de um domínio [pelos bens materiais e imateriais], que se perpetua pela transmissão do seu nome, da sua fortuna e dos seus títulos em linha real ou fictícia” (Lévi-Strauss, 1979:190). Isto faz sentido quando a legitimidade da casa como uma entidade que se associa continuadamente pela linhagem real da família a um 70

património (no que diz respeito à propriedade, não só em termos económicos mas também simbólicos) tem também fundamento na base de linguagem de parentesco ou da aliança e outras ordens das classes sociais (Carsten & Hugh-Jones, 1995:10).

Figura 7 – A função da casa sagrada52

Podemos afirmar que a importância da casa sagrada se baseia, por um lado, na pertença a um grupo de parentesco, entidade sagrada-ritual e entidade política-económica; por outro, no reforço da unidade entre família e comunidade. Isto significa, portanto, que a vivência pessoal e social de todas as comunidades se associa sempre à casa sagrada, dando assim importância às múltiplas funções que ela desempenha na sociedade, e “faz a ligação com os antepassados, com o mundo dos espíritos invisíveis e tem um significado muito importante como símbolo da continuidade das gerações e da fertilidade” (Mendes, 2005:111). Noutros aspectos, no seio da casa sagrada projectaram-se os processos de reconciliação pós 1999 (Seixas, 2004). Este último não pode ser feito sem tensão entre dois protagonistas da nova nação: o Estado e a Igreja. Em última análise, a Igreja Católica ocupa cada vez mais os lugares sagrados das comunidades locais, que anteriormente eram lugares onde se fundavam casas sagradas: é o caso da povoação de Malilait em Bobonaro (Sousa, 2007). Deste modo, importa dizer também que a autoridade ritual é muito maior quando se liga ao poder dos antepassados, fundadores da casa sagrada. O poder político tradicional vai52

Este esquema estrutural da função ‘casa sagrada’, já foi apresentado num dos trabalhos nossos, intitulado “Remembering the portuguese presence in Timor and its contribution to the making of Timor’s national and cultural identity” (2012), mas a ideia base que suporta a formulação deste esquema estrutural não foi explicada de forma detalhada. Por isso, desde já, justificamos com clareza que este esquema estrutural da função ‘casa sagrada’ é formulado a partir do esquema estrutural da função do Adat que o antropólogo Lúcio Sousa apresentou no seu artigo intitulado “Denying peripheral status, claiming a role in the nation: sacred words and ritual practices as legitimating identity of a local community in the context of the new nation” (2009:113).

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se mudando com o tempo, mas os objectos dos antepassados e a sua história mantêm-se guardados na casa sagrada, porque são lúlik. The traditional power is the lulik, because according to the stories, the one that holds the rattan and the flag has the power to rule. That is the person named liurai. These two goods are usually stored in the sacred house of the liurai. Every good that is stored in the sacred house contains the lulik, because of that the rattan and the flag are lulik items. If the liurai has died, the power has to be held by people from his House because it is only the liurai that owns the rattan and flag (Liurai de Baucau – Ospina & Hohe, 2001:41).

Todos os grupos étnicos têm casas sagradas e estas têm uma disposição específica, de acordo com a hierarquia definida pela idade. A sua importância é definida de acordo com a ‘data’ de chegada dos grupos propriamente ditos. No que diz respeito ao poder, as casas sagradas são categorizadas por ‘títulos’, pois delas fazem parte a autoridade política e a autoridade ritual, isto é, na ordem de complementaridade do poder, as famílias são a base das micro-sociedades de Timor e são divididas hierarquicamente com diferentes funções. É por isso que cada casa sagrada tem mais do que uma função a desempenhar, por exemplo, a função de segurança do território da comunidade, a responsabilidade pelas danças e tambores em determinadas cerimónias ou para guardarem as bandeiras; outras são apenas “plebeias” (Mendes, 2005:241). Em caso de luta ou em épocas em que a terra não produz o suficiente para alimentar toda a população, a autoridade política, em coordenação com a autoridade ritual, pode tomar uma iniciativa decisiva de se deslocarem para outra terra e fundarem uma nova aldeia, tornando-se assim os primeiros habitantes daquela terra e pioneira da nova casa, continuando, porém, a manter os seus laços com a casa de origem (Casa MãePai).

4. Dos seus significados como metáfora da nação

Na Europa actual, o museu, o palácio, os castelos, os mosteiros e as igrejas são considerados “lugar de memória”, mas, na Ásia, a história é outra, principalmente, na história dos timorenses. A casa ou casa sagrada é o “lugar de memória” dos timorenses, onde se podem arquivar os objectos sacralizados; é veículo privilegiado da memória colectiva, que – apesar de ser um conceito antigo, hoje, se traduzir numa imagem da sua história recente –, por

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ser verdade, consideramos como um índice fundamental da constituição da memória histórica de um povo ou de um grupo social que interagem plenamente num espaço físico. Este conceito verifica-se não somente em Timor, mas em toda a Ásia, mormente a sudeste (MacDonald, 1987), é matriz identitária das suas gentes e é considerada como metáfora do conceito moderno de nação. O significado de casa na perspectiva asiática desempenha um papel decisivo na afirmação da identidade dos povos da região. Por isso, é, e de certa forma, um poder no sentido de ‘impor a sua visão’, “poder sobre o grupo que trata de trazer à existência enquanto grupo, sendo, a um tempo, um poder de fazer o grupo, impondo-lhe princípios de visão e de divisão comuns, portanto, uma visão única da sua identidade e uma visão idêntica da sua unidade” (Bourdieu, 1989:117). A pertinência da casa como metáfora do conceito moderno de nação (ver Sobral, 1999) é muito maior quando se verifica o facto nos discursos nacionalistas que elevam as ideias tradicionais para ilustrar a doutrina revolucionária, numa dada situação que possa ser acessível para a grande maioria dos actores sociais que se preocupam com a estrutura social da identidade de um povo. O discurso plural histórico e o seu significado, para além da divisão de casa ou casa sagrada, convergem para a homogeneidade do poder cósmico, para o poder de vida e para a necessidade de considerar a dimensão deste espaço físico e de qualquer outro: económico, político e cultural. Metaforicamente, uma-Lúlik representa um valor muito elevado: “tal como a cidade ou o santuário, a casa é santificada, em parte ou na totalidade, por um valor simbólico ou um ritual cosmológico” (Eliade, 1983:69), e a base da sua construção liga-se também ao espaço geográfico específico. Por isso, é natural que, ao instalar-se em qualquer parte do mundo, o Homem construa uma knua e uma casa para viver em comunidade com o ‘Outro’. A existência do ser humano fica assim comprometida pela dupla função: a relação com o seu próprio mundo (interna) e a relação com o seu ambiente: os seus semelhantes e a natureza de que ele assume a responsabilidade de manter e de renovar (externa). Disto pode concluir-se que os timorenses não mudam de morada de ânimo leve, porque não é fácil abandonar o seu mundo, pois a ‘habitação’ não é um objecto, mas um ‘lugar para habitar’. É o universo que o Homem constrói para si, imitando a criação exemplar dos deuses. E toda a construção e inauguração de uma nova morada equivalem, de certo modo, a um novo começo, a uma vida, tal como Raymond Firth (1957:81) observa a respeito dos de Tikopia: “Certain other house-names in the community are affiliated with this one ‘nome patronímico inicial’, and examination of the reasons leads to ancestral linkage, family and clan history,

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and stories about the gods”. Isto é como que uma repetição do tempo primordial, enquanto visto do universo do ‘habitat’ como a luz do dia, começa assim o início da nova vida. Simbolicamente, a uma-lúlik é um epicentro para todo o timorense, pois dentro dela surgirá uma nova estrutura familiar dependente da sua ligação funcional (no que se refere a uma-lúlik maun-alin) e relacional com outras uma-lúlik que com ela formam comunidade, numa ligação de aproximação que tem por base a unidade histórica e simbólica (McWilliam, 2005:32) e que determina a apropriação do passado e o exercício de um poder sobre a memória futura. Pode afirmar-se, no entanto, que a representação simbólica de uma e uma-lúlik reforça a imagem de uma nação e identidade de um povo. Isto é, as narrativas sobre a origem da casa não podem dissociar-se da cosmogonia simbólica, e ela associa-se à origem do homem, como nos adverte Ruy Cinatti (1965:5-6): a estrutura da habitação revela o simbolismo cósmico: a casa é a imagem do mundo, a sua cobertura é o céu, o pilar ou poste principal é assimilado ao ‘eixo do mundo’ que sustenta o imenso tecto celeste e desempenha um papel ritual importante. É na sua base que têm lugar os sacrifícios em honra dos ser supremo, Marômak [...] Toda a construção e inauguração de uma moradia equivalem a um começo, a uma nova vida. Para que a obra dure e ‘viva’ deve ser animada, deve receber ao mesmo tempo uma vida e uma alma (cf. Cinatti., Almeida & Mendes, 1987:34).

Nos anos trinta, Paulo Braga veio dizer que “ […] se o tempo, no exercício da sua eterna função destrutiva, não as fosse eliminando, Timor nada mais seria do que uma massa compacta de uma lulik” (Braga, 1936:27). É um escritor de visão egocêntrica ocidental que estava a referir-se preferencialmente à destruição maciça de algumas casas e casas sagradas durante a guerra de 1911-1913. A destruição da maior parte destas casas sagradas e símbolos dos lúlic foi, infelizmente, obra dos missionários, catequistas e alguns régulos assimilados53. No entanto, algumas casas sagradas escaparam à referida destruição maciça, tendo-se tornado, deste modo, um bastião da cultura e da identidade timorenses, dotadas de uma estrutura simbólica. Muitas foram destruídas durante a guerra de invasão da Indonésia e, em 1999, 53

A este último, reportamos o relatório do Pe. Norberto Parada ao Bispo de Macau D. José da Costa Nunes que em Ossú houve a destruição maciça dos objectos lúlik e casas sagradas feita pelo régulo desta terra: “O régulo de Ossú, Joaquim, antigo aluno das nossas escolas e que havia regressado às práticas gentilismo, abriu os olhos à Luz da verdade, e agora, sinceramente arrependido, promete ser bom cristão. A missa assistiu mitíssima gente, mas só comungaram 12 pessoas. À uma hora da tarde, fiz uma prática ao povo, traduzida pelo régulo Joaquim para macassai, dialecto de Ossú. O régulo convidou-os depois a remover os lúliques, abatendo mesmo algumas casas em que se conservam tais objectos sagrados. Todos responderam com entusiamo: Queremos! Queremos! … Da segunda vez, houve o mesmo entusiamo, queimando-se mais lúliques” (cf. Pe. Norberto Parada, “Timor”, in Boletim Eclesiástico da Diocese de Macau, 1936, nº 388, p.593). O modo como o Pe. Norberto Parada relatou este acto de destruição dos objectos lúlik por timorenses assimilados, parecia que ele próprio apoiava estas iniciativas.

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foram objecto de ataque específico como uma fonte de resistência timorense contra invasor comum. Apesar de toda a destruição, a Casa sagrada foi usada pelos indonésios como um símbolo unificador (McWilliam, 2005) e, em última análise, como símbolo da autonomia para reivindicar, mais uma vez, a soberania timorense na República da Indonésia Após o Referendum de 1999, e no período da administração das Nações Unidas (UNTAET), embora se continuasse a utilizar o sistema de administração da Indonésia e de Portugal, foi levado em conta, sobretudo, o poder tradicional local sukus (sucos), como explica o antropólogo David Hicks (2007:14): The resurgence of adat (‘traditions’) in many communities, a revival of local self-esteem, flamboyantly indexed by the rebuilding of adat or ritual houses (uma lulik). Under the Indonesian occupation these structures, which accommodated an array of sacred artifacts associated with the ancestors, were either destroyed by the military or else left to fall apart after their owners were forced from their lands. But with the coming of independence people have begun returning to their sukus and reconstructing the buildings to honour their ancestors.

Porém, só em 2002 houve um grande esforço para a reconstrução das casas sagradas destruídas, pois percebeu-se que foram destruídas apenas as estruturas físicas. Hoje, elas são substituídas por novas edificações com novos recursos que, por vezes, representam simbolicamente os antigos objectos sacralizados. A casa é um elemento da cultura humana que implica a capacidade de as comunidades locais timorenses se reproduzirem, apesar das adversidades, nomeadamente as que resultam da guerra, como refere MacWilliam (2005:28): “It is not without irony that, across the country in present-day post-colonial and post-conflict East Timor, local groups and communities are busy with the task of rebuilding their ritual houses and reinstating the central importance of the sacred house in their lives”. As casas sagradas de cada dinastia ou Kasta espalhadas pelos treze distritos estão carregadas do poder simbólico dos seus ancestrais. Por isso, elas são testemunho de uma identidade étnica e constituem o pano de fundo da própria identidade nacional. A casa sagrada terá sido, do ponto de vista histórico, o berço da identificação cultural dos timorenses, uma vez que foi a partir dela que se fundou o poder inter-étnico e se fez também a aproximação luso-timorense. A casa ou knua constitui, na perspectiva de Anthony Simith, uma superfamília imaginária, espécie de background da nação (Smith, 1997:25). Assim podemos pensar numa tripla dimensão imaginária – ‘Comunidade, Nação/Estado e Mundo’ –, enraizada na noção de casa enquanto representação identitária.

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Figura 8 – A representação simbólica da casa

A comunidade, enquanto membro da superfamília imaginária da casa, assume necessariamente uma função significativa na formação da identidade nacional. A Nação/Estado, enquanto órgão soberano de um país, estabelece todas as relações com a ‘comunidade da casa’ e o ‘mundo’, no sentido de manter a respectiva identidade nacional e conduzir uma política de desenvolvimento que poderá sustentar todas as necessidades da ‘comunidade de casa’. Não é possível construir esta ‘comunidade de casa’, bem como a Nação/Estado, sem o ‘Mundo’, ou seja um ‘Habitat/Território’. Se o mundo não existisse, o Homem não poderia construir a sua comunidade de casa, nem mesmo a própria individualidade humana poderia existir. Por isso, o mundo é o berço da humanidade (Paulino, 2012a:93). Se o mundo é o berço da humanidade, então, a casa, por definição natureza é: O nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do termo. [...] uma das maiores forças de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos dos homens [...] sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém, o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. É corpo e é alma. É o primeiro mundo do ser humano [...]. A vida começa bem, começa fechada, protegida, agasalhada no regaço da casa (Frey, 2003:59).

Neste sentido, o sentido de ‘abrigo’ e de ‘protecção’ é possibilitada pela intimidade do ser humano com a ‘casa’, fazendo dela o símbolo do espaço privado, de igual modo, fazendo dela o berço da formação do Estado-nação. Isto é, se questionarmos a palavra ‘casa’ num sentido genérico, provável que exista para designação não o lugar onde se habita, já que o vocabulário ‘habitar’ pode ter um sentido territorial mais amplo como a ‘nação’. Daí a importância de, ao longo deste estudo, não esquecer a posição geográfica de Timor-Leste54, bem como a sua população multiétnica e os seus lugares de proveniência. Assume-se, portanto, a relevância de uma abordagem que tem ‘sabor da partilha colectiva’, que, na compreensão da organização política tradicional de cada grupo étnico – consoante o poder dos mitos de origem e das metáforas familiares –, é como um elemento especial propulsor de apoio ao nacionalismo. 54

Vide “Capítulo 1, sub-tópico – Identidade territorial timorense”.

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A nação é vista como “casa” na medida em que ela é “uma unidade vivencial da humanidade que circunscreve uma unidade sacralizada, em actos e processos rituais que posicionam e articulam processos de identificação e de pertença” (Guedes, 2002:5). A ‘casa ou knua’ é, neste sentido, elo de relação entre a família e a comunidade. Segundo Anne-Marie Thiesse (2000:229), “a nação foi intelectualmente construída como um organismo imutável, sempre idêntico a si mesmo através das vicissitudes da história”, e os grupos de origem estão associados aos fundadores das aldeias específicas, em que a descendência do grupo vive numa só uma kain/ahimatan (Ospina & Hohe, 2001:19) e no Bunak, visto como ‘tita oto kere, tita deu uen’; isto é, a presença dos antepassados revela-se em estruturas igualmente presentes na paisagem e desconhecidas por muitos, sobretudo por estranhos, e articulam-se entre si relacionando o habitat território com os seus agregados humanos, as casas e o seu interior (Sousa, 2007:199). Este universo da ‘casa sagrada’ representa uma herança étnica e uma memória colectiva. E a presença portuguesa, principalmente, os missionários vieram “sobrepor à complexa lógica de organização vigente uma estruturação de tipo feudal, classificando como reis, os chefes tradicionais e reconhecendo, inclusivamente, um imperador; ao mesmo tempo, o sistema de alianças prevalecente ampliou-se, incluindo o elemento português, de que constitui exemplo o sistema do grupo etnolinguístico Mambae que o classificou de irmão mais novo, como demonstra Elizabeth Traube (1986). A formação do grupo mestiço dos poderosos Topasses não deixou de incorporar a estrutura social e de parentesco vigente, formando novas casas que se inseriram no circuito de trocas existentes” (Mendes, 2005:112113). Como fez notar José Manuel Sobral (1999:73), “os processos de construção da identidade [são] algo indissociável da elaboração das memórias: a identidade depende de um sentido de permanência do semelhante assente na recordação, enquanto esta depende da identidade assumida”. É neste sentido que a Constituição da República Democrática de Timor-Leste reconhece, no seu art.º 2º, n.º 4, a importância das “normas costumeiras de Timor”, não obstante considera que devem estar “sujeitas à Constituição e a qualquer legislação que trate especialmente do direito costumeiro”. Os discursos de índole patriótica utilizam os valores e ideias tradicionais, como os que se relacionam com a casa, para fundamentarem a doutrina revolucionária e a sua estratégia de conquista. De um modo geral, o valor simbólico da casa sagrada continuou a ser respeitado, mesmo quando a guerra de libertação nacional ia destruindo a sua estrutura física. A casa sagrada é, por esta forte razão, a matriz da própria nação, enquanto “casa comum de todos os timorenses” (Mendes, 2005:115). 77

4.1. Do Bunak As populações deste grupo etnolinguístico habitam a parte central e montanhosa da ilha, repartindo-se entre Timor Ocidental e Timor Oriental. Encontram-se rodeadas pelos grupos etnolinguísticos Tétum, Mambáe e Quemak, estendendo-se desde Maliana até à costa sul, contando também com algumas zonas do distrito de Manufahi e Ainaro. Dedicam-se sobretudo à agricultura e à pastorícia. O povoamento do grupo etnolinguístico Bunak é constituído por sucos e knuas, as casas agrupam-se em núcleos familiares e formam-se ao longo dos caminhos, convergindo para o centro social definido pela árvore sagrada. Cada núcleo de habitação é delimitado por muros de pedra solta e assente em plataformas empedradas. Para este tipo de povoamento, “a casa é imaginada pelos seus habitantes como representação de um barco virado; o pilar frontal da casa ainda hoje é conhecido como ‘pilar do mar alto’. […]. Segundo os seus habitantes, a construção sobre pilares deve-se à preocupação de defesa contra inimigos e animais ferozes e a um sentido subsidiário de economia de espaço relacionado com a economia doméstica” (Cinatti, Almeida & Mendes, 1987:211). O povo Bunak não exercia nenhuma actividade relacionada com a navegação nem com a pesca, mas os mitos de origem mencionam longas viagens marítimas. Tanto os Bunak como os Tétum se dizem originários de um lugar para além do mar, conhecido pelo nome de “Sinamutin-Malaka - os antepassados dos chineses e os povos de Malaka” (Berthe, 1964/1965). Por sua vez, Claudine Friedberg (1978) chama a atenção para o importante papel que a própria literatura oral tinha na vida dos Bunak de Lamaknen (Timor Indonésio). Efectivamente, os textos dos ‘Bei Gua – itinerário dos ancestrais’ (Berthe, 1972) eram obrigatoriamente cantados nas festas de reconstrução das casas de linhagem e nas funerárias dos nobres, sob a orientação do lal-gomo (mestre da palavra). Podemos dizer que a transmissão deste legado cultural tinha um carácter pedagógico na preparação das novas gerações (cf. Figueiredo, 2004:99-101). Para os Bunak, a casa é, simultaneamente, uma descrição das memórias dos seus ancestrais, um catálogo de um percurso e das relações de alianças com o espaço e com a linhagem genealógica-familiar, designadamente, no contexto da sua composição multiétnica. A ‘casa sagrada’ é guardada por dois elementos, a irmã e o irmão, legítimos descendentes dos seus ancestrais que edificaram a ‘casa’, e cada ‘casa sagrada’, por uma síntese simbólica, associa-se sempre a outra uma-lulik, quer por cisão da descendência em primeiro ou segundo

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grau, quer por aliança denominada Kau-kaà (irmão mais novo – irmão mais velho) (cf. Sousa, 2007; 2010). As casas estão agrupadas em aldeias (tas) e cada aldeia possui o seu território próprio, na expressão ritual do Bunak ‘tita basa tita leu – juntos na medida certa, juntos no quintal’, e, desta forma, “a unidade do tás é promovida pela ideia de uma comunidade que assenta na partilha de traços comuns” (Sousa, 2010:125). No centro da aldeia existe o local de dança chamado mot e um altar colectivo chamado bosok o op (altar e altura que significa altar da montanha) que representa a ‘força da vida’ dos seus habitantes, noutros termos, o bosok o op é designado por “pana getel mone goron – raízes de mulher, folhas do homem” (Sousa, 2007:206; Sousa, 2010:54). Desta forma, o bosok é metaforicamente caracterizado como pana getel e o op é caracterizado como mone goron, e, num sentido mais específico, a terminologia de pana getel mone goron simboliza o órgão de reprodução feminino e masculino. É certo que para os Bunak, o bosok e o op são lugares sagrados que têm por função de assegurar e consagrar a essência de etel legul (longa vida) e etel huruk (vida fresca). A casa está associada ao primeiro campo cultivado e também ao local por onde, no início, se podia aceder ao céu, onde se encontrava o domínio do Sol e da Lua. Como podemos ver nos seguintes versos rituais associados, a “casa” é-nos apresentada como uma unidade presencial: “tita oto kere, tita deu uen; tita lete bul [nó] tita malas bul [nó] – pertencemos ao primeiro fogo, pertencemos à primeira casa; juntos na base da escada e na base dos degraus” (Sousa, 2007:210). Este sistema é uma forma de construção da identidade genealógica e de parentesco do homem, imitando a cosmogonia, que é a criação exemplar dos deuses. E toda esta construção e inauguração de uma nova morada equivalem, de certo modo, ao começo de uma nova vida (Eliade, 1983:69). Para a comunidade Bunak, a casa sagrada assume uma relevância especial, todas as casas comuns compartilham destes elementos rituais polarizados: as colunas, a lareira e os cestos. De certa forma, cada casa é reproduzida pela lógica de complementaridade, isto é, cada membro de umakain ida compartilha a essência da sua continuidade com a casa ritual. Desta forma, cada ‘casa’ tem também o princípio da cisão, pois o facto de possuir os elementos identitários pode levar à constituição de casas autónomas (Sousa, 2007:219). Há generalização do rito na cultura dos Bunak. Os ritos são (obrigatoriamente) ligados à casa sagrada e ao espaço aberto, considerado também como sagrado. O mot phó (altar + sagrado) dos Bunak é um espaço em que todos os membros de knuas se reúnem para realizar as celebrações rituais formais. Todos os ritos, profundamente interligados com a casa sagrada

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e outras dimensões do espaço sagrado, são realizados, de facto, conforme as ordens do poder político dos ‘mátas’ e precedidos pelas autoridades rituais. As festas tradicionais e as celebrações matrimoniais são acompanhadas de ritos, como a festa do “fogo novo”, que se prolonga por sete dias. A celebração desta festa é dirigida pelos Lúlik-na’in (autoridade ritual, senhores dos sagrados), os quais se juntam à volta do bosok-bul (fatuk-hun em Tétum), espécie de altar circular de pedra solta (de raio e altura variáveis), a cingir um gondão lúlik, plantado por algum antepassado, cujo nome é óbvio dar-se à árvore por ele plantada em torno do bosok-bul do pho-gomo (guardião da casa lúlik) mais velho da aldeia. Em algumas zonas do grupo étnico Bunak esta festa do “fogo novo” assume diferentes formas. Tem enorme relevância porque ajuda o timorense na preparação das sementeiras, ou seja, prepara com cuidado o campo para receber as primeiras chuvas. A estrutura sócio-política do Bunak assenta num sistema matrilinear, cada linhagem é estabelecida no deu-pho (casa sagrada) e no Taz (aldeia de origem)55. Cada deu-pho e Taz têm as suas estruturas organizacionais específicas, e o poder não começa com o dáto, mas sim com o hima: “Hima na tchut e Dáto zhonal, Hima atchi ná Dáto mós atchi, Hima atchi ní Dáto mós atchi ní”56. Quer isto dizer que a organização sócio-política do Bunak preexistente é constituída na base do hima, agrupando conjuntos de famílias cujo chefe é hima-gomo (em Tétum – uma úlun). Cada hima agrupa diferentes poderes, que englobam todas as autoridades: a autoridade política e a autoridade ‘ritual’. Estas autoridades podem cooperar mutuamente para assegurar o domínio do território e a prosperidade da sua comunidade. Outro poder político é assumido por dátos de cada casa sagrada com diferentes funções. Esta distribuição de poderes é chamada poder ‘consensual’, porque partilha de uma ideia colectiva, que resulta de uma interacção dos membros da comunidade cuja função é garantir a segurança e o controlo comunitário. No entanto, o desempenho de cargus político-rituais pelos mátas está associado ao lugar e ao papel da casa de origem e à divisão ritual da carne, como surge expresso nos seguintes dísticos, com parte da população associada à árvore e os detentores de cargos a partes de animais: “mila eto no’ en otel te’, en ikun dele en gug zal – o 55

Taz = povoação, em Bunak. Para a detalhada informação, consulta-se o artigo de Louis Berthe (1961), “Le Mariage par Achat et la Captation des Gendres dans une Société Semi-Féodale: Les Buna' de Timor Central”, in L’Homme 1 (3), p. 3-31. Cf. Friedberg, Claudine (1977), “La Femme et le Féminin Chez les Bunaq du Centre de Timor”, in Archipel, 13, Paris: SECMI, p. 37-52. O chefe de povoação é constituído por um conjunto de casas de linhagem, é designado Dáto Taz (cf. Guterres 1994). Consulta também o artigo de Louis Berthe (1959), “Sur Quelque Distiques Buna' (Timor Central)”, in Bijdragen Tot De Taal-, Land- En Volkenkunde, Deel 115, 'SGravenhage, Martinus Nijhoff, p. 336-371. 56 “Casa é primeira e Dáto é segundo; há Dáto porque existe a casa, não tem casa significa não há Dáto”. O enunciado apresentado aqui é a declaração do mátas Caetano da casa sagrada de Tato-Meta de Tapo Tás. Obtivemos esta informação através do encontro semanal, em 2008, com o antropólogo Lúcio Sousa, da Universidade Aberta de Lisboa.

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povo é a semente, a gente é o ramo, a gente que leva a cauda, a gente que leva a língua” (Sousa, 2010:138). Neste contexto, existem dois cargus: um é assumido por mátas e outro é assumido por Bei. Os bei são descritos como os lale gomo – o lale é um instrumento, feito de cana, para medir o número de fiadas necessárias para cobrir um tecto; desta forma, os bei são considerados como detentores das medidas. Um bei tem obrigação de obedecer ao mátas da sua casa sagrada, tanto na política interna da casa como nas respectivas matérias com ela relacionadas. Um mátas não pode insurgir-se contra um bei em assuntos relacionados com o tás, mesmo que envolvam a sua casa sagrada, a não ser que seja convocado para tal. Este exemplo ilustra a aplicação dos conceitos de precedência e hierarquia: na arena pública, os bei são hierarquicamente superiores aos mátas. No entanto, considera-se que os mátas precedem os bei, e que, no interior da Casa, são seus superiores (Sousa, 2010:139). Como corolário da reflexão aqui desenvolvida, vale a pena reter que este grupo etnolinguístico ostenta a sua preocupação em estabelecer um equilíbrio constante com a natureza que o cerca, mantida graças a uma regulamentação costumeira muito restrita acerca da utilização dos recursos vegetais e animais. Porém, com a mudança do tempo e o crescimento da população, torna-se cada vez mais difícil mantê-la, o que pode causar a perda de uma parte da sua estrutura tradicional face à estrutura moderna.

4.2. Do Makasae Em Baucau, designadamente na povoação de Gari-Uai, encontram-se as casas das knuas, difundidas por entre culturas de milho e os maciços esverdeados de bananeiras e coqueiros. A casa - baseada nos agrupamentos familiares – possui as seguintes funções: um celeiro, um espaço para guardar o excesso das colheitas que as habitações não comportam; um abrigo, um lugar para os artífices, e também um lugar para guardar utensílios, secagem e armazenamento de copra; e ainda um outro espaço - um cercado para animais, feito de pedras e sebes. Dentro desta knua, há um espaço sagrado constituído por três gondões. Estes gondões representam, possivelmente, o altar votivo de Deus/Marômac/Uru-Watu para aqueles que acreditam (Correia, 1934a; 1934b) O espaço de repouso dos makasae é uma construção que inclui alguns instrumentos laborais e também o “piso térreo, por estar envolvido por uma parede contínua de palapa” (Cinatti., Almeida & Mendes, 1987:106). Tecnicamente, a construção da casa habitacional é 81

iniciada apenas com três instrumentos de ferro: taha (taha), citá (a catana) e bahat (o formão). Estes instrumentos são utilizados de forma eficaz e a realização de toda a construção dura até três ou quatro meses57. Todas as peças são configuradas em três tipos de ligações: o entalhe, a união por meio de cavilhas e as ligações de fibra vegetal (Cinatti., Almeida & Mendes, 1987:109). As casas de Makasae são construídas com folhas de palapeira e as paredes são fortalecidas com os pecíolos da palmeira, atados a uma estrutura de madeira. O piso térreo é um lugar fresco onde cada membro da família pode repousar, conversar e fazer o seu trabalho do dia-a-dia. A estrutura interior da casa é composta por uma “cozinha”, o “quarto de dormir” e o sótão. Na tradição dos Makasae, a inauguração da nova casa é muito importante para a manutenção de relações linhagísticas, por isso, quando se conclui uma construção suspensa, o dono da casa, ao raiar da manhã, enche uma panela de água, mete-lhe dentro um cacho de areca e folhas de betel, e é com ela que vai buscar os objectos sagrados (espada e azagaia dos antepassados), que se encontram pendurados do lado do sol, conjuntamente com o lode, na casa antiga onde estavam guardados. O ritual de inauguração realiza-se com a matança de um porco na ata-lia e o sacerdote cuja comparência é solicitada pelo dono da nova casa, vira-se para o oriente e começa a recitar as orações nestes termos: “Rai gutu, uato gutu, du ere hai nocorau; uere gau hau munillo, hai muniguini! Assi dada, assi manu, assi ina, assi baba: goba fúli nau ara. Seu ere, náua! Tinani, náua – Dantes, a casa achava-se em ruina; mas fez se outra nova. Avós nossos, venham todos ver como ela está agora. O bisavô, o avô, a mãe e o pai, são todos chamados a capítulo, para um novo bado de carne e arroz” (cf. Correia, 1934a:107). Em todas as zonas de Makasae, realiza-se um ritual simples, símbolo de respeito para com os antepassados. Neste ritual participam representantes de todos os elementos da mesma linhagem genealógica, que – pode ser presidido por um descendente em linha directa da mulher mais antiga que gerou a família – lança duas ou três contas de cornalina (mutissala) no buraco do lado nascente que se escavou para fixar um dos pilares que hão-de suportar a casa e, terminada a construção, realiza-se uma nova cerimónia formal que conta com a presença de todos os familiares, para efeitos de purificação e “transladação das almas dos antepassados que ficaram na casa antiga para o novo lar” (Cinatti., Almeida & Mendes, 1987:112). O grupo etonolinguístico Makasae considera a ‘casa sagrada’ como “centro das actividades rituais de todos os membros da linhagem [...] e normalmente, um grupo da

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Para permitir que o empedrado inicial seja consolidado pelas chuvas.

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ascendência de que fazem parte todos os homens e mulheres relacionados consanguineamente e é exógamo” (Guterres, 2001:180). No que diz respeito à casa sagrada da população de Vemasse, as investigadoras Sofia Ospina e Tanja Hohe destacam a existência de um povo migratório proveniente de Larantuka (da ilha de Flores), como explicar o actual Liurai de Baucau: My ancestors stem from Larantuka and I am not Lord of the Land here; I became liurai through an oath. My ancestors came to Timor. There were three people; one went to Vemasse, one to Los Palos, one to Lifao. They came for trading and then they took the water from the well in Vemasse. After they met with the liurai there, the people from Larantuka were invited to his house because the liurai saw that these people were literate. He broke the boat that was sent from the liurai of Larantuka. Then he saw that these people were not married yet, so the ancestor brought one woman for marriage. That woman stemmed from the Lor family. They had no descendants and the woman died. They brought another woman from Lor and she also died. Then they brought the child of the liurai Luka Viqueque. After marrying with the child of liurai Luka they had descendants. Because of that, the lord of the land started approaching the liurai from Larantuka, “if you already have taken women from here and I am the liurai here, but I do not know how to write and to read and to read, I hand over to you.” After he had passed his power to him, they conducted an oath for the Lord of the Land. In this agreement, he received power from the original Lord of the Land and it is said that whoever wants to fight with the new liurai, will not become old (apud Ospina & Hohe, 2001:29).

Com base na descrição deste Liurai, as duas investigadoras concluíram que no ritual há duas categorias de ‘casas sagradas’, e a posição de cada uma na estrutura política é ritual. Tabela 1 – O exemplo de classificação da casa sagrada da população de Vemasse (Ospina & Hohe, 2001:30-31) Sacred House

Classification

Lor

Mother-father - Lord of the Land Wife Giver - Executive

Raha

Mother-father - Lord of the Land Wife Giver - Executive

Uma Mametan Uma Maumutin Sasau Gagari

Elder Brother - Appointed as Raja upon arrival Wife Taker (because they had been to school) - Legislative Younger - Appointed as raja upon arrival Brother (because they had been to school) Wife Taker - Legislative People

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Taks

Origem

- Gave land - Appointed liurai - Made decisions about land and liurais - Made decisions for war - Gave land - Appointed liurai - Made decision about land and liurais - Make decisions for war - Conduct rule (through blood oath) - Conducts war - Conduct rule (through blood oath) - Conducts war

Autochthonous

Autochthonous

Immigrant From Flores Immigrant From Flores

Nos planaltos de Laga encontram-se casas com características formais designadas por dagadá. O tipo de casa desta zona tem uma dimensão muito típica e quase semelhante à estrutura da casa da população de Lautém, com a raiz assente em 4 pilares e com as paredes visíveis. As paredes são feitas de bambú espalmado e ligado a prumos, os muros de pedra aparelhada funcionam com suporte de terra enquanto os de menor dimensão servem de divisórias das hortas familiares. A característica da uma-lúlik dos laganenses como sendo uma construção de matriz natural e sobreposição em forma de gôndola, isto é, segundo ele, sobre esteios sustentando a meio uma plataforma de madeira aberta, assenta um andar, coberto por um tecto alto em pirâmide irregular truncado e com a truncatura encimada por uma construção sobrepujante em forma de gôndola com, entre as quilhas, uma câmara quadrangular. Sobe-se à porta, lavrada com ornatos, com a figura de um toque, por escada móvel (Castro, 1996).

4.3. Do Mambae

O grupo étnico de Mambae tem as suas características próprias na configuração do seu espaço habitacional. O processo de construção da casa é iniciado normalmente a partir da época seca, já com todos os materiais necessários preparados. O modelo de casa deste grupo étnico é uma construção em madeira de eucalipto preto, o ‘palavão’ timorense, que se encontra junto das pequenas aldeias erguidas nas estreitas montanhas. De acordo com Rui Cinatti, A estrutura da cobertura da casa do povo mambae assenta em dois conjuntos independentes de pilares, o exterior suportando a extremidade inferior daquela, o interior recebendo o peso da parte superior da armação. A composição estrutural fornece um formato destinado a sustentar os andares que vão estreitamente de baixo para cima, ligados entre si por barrotes. Todas as casas desta população são cobertas de varas e capim, de forma elíptica e/ou quase piramidal e afora a cobertura cónica e a escada, nenhum dos elementos que compõem a habitação é visível do exterior (Cinatti., Almeida & Mendes, 1987:92-93).

No processo de construção da casa/casa sagrada está, em primeiro lugar, a escolha dos materiais de construção; em segundo lugar, o chefe da família, antes de iniciar a obra de construção, oferece ao carpinteiro, parentes e amigos, um banquete formal como parte do ritual de iniciação da obra. Esta prática ritual é concebida com o sacrifício de alguns animais

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(cabrito e porco), como símbolo da formação de uma vida e de uma moradia; após a construção da casa realiza-se outro ritual chamado muera-fada. A casa sagrada da população de Aileu é um dos exemplos arquitectónicos mais interessantes do grupo etnolinguístico de Mambae. Foi destruída pelas máquinas de guerra da Indonésia e só em 2005 foi reconstruída, seguindo a mesma arquitectura antiga e apresentando uma composição arquitectónica rica de simbolismo (ver anexos 1), por isso, deverá ser apresentada também como símbolo nacional. Mais recentemente, Elizabeth Traube estudou as relações entre a classificação simbólica e a vida social deste grupo, tendo concluído que os seus componentes interpretavam as relações sociais em termos de obrigação para com o cosmos: “They see themselves as privileged readers of a cosmo logical text” (Traube, 1986:5). A estrutura sócio-política deste grupo etnolinguístico assenta num sistema patrilinear e o seu modo de viver associa-se aos mitos de origem das casas e ao mito de origem dos irmãos mais velhos e mais novos. A conceptual premise of the house system is that all the house are ultimately derived from a single primordial origin house on the top of the sacred mountain, at the centre of the cosmos, where Mother Earth and Father Heaven are said to have brought the first ancestors of humankind. In this mythology of common origins, human history entails a process of separation and division that begins with the dispersal of the ancestors from the cosmic mountain and continues down to the present. Narratives of house formation describe how house are divided and subdivided by restless, mobile men. In these narratives elder brothers invariably remain behind at the paternal origin house, while their younger brothers ‘go off to the outside’, after having ‘cut a slip’ from the paternal house pillar to ‘plant’ as the foundation for new houses of their own (Traube, 1995:44).

Na sua análise do caso dos Mambae, Traube parte da descrição de subdivisão da casa para compreender o universo da população Mambae e identifica a casa: The term fada, “house” refers to dwellings and to social groups, or more precisely, the image of dwelling together in one place symbolizes ties that unite persons. An additional and socially critical feature of this representation is that the ideal state of coresidential unity is associated with the past. House groups are composed of people who recognize a common source or origin place, to which they return only on specified ritual occasions. The idea of common origins provides the basis for ritual cooperation in the present (Traube, 1986:66).

Jorge Barros, por seu lado, estudou as relações entre a classificação simbólica e a vida social da dinastia de Turi-Sai, cuja origem mais próxima é da povoação Mánu-Sae-Mau-Ili, situada no monte Keo. A referida dinastia espalha-se em pequenos núcleos nas zonas de Hatubuilico e de Manufahi, como se pode notar na arquitectura e ordenamento das casas. 85

Nesta comunidade encontram-se duas casas sagradas de Turi-Sai, como observou o autor. A casa principal e maior é Fad-Culau (casa+casuarina), normalmente considerada como uma casa de Umane (naen-ru-ni fada, isto é, casa dos dois tios ou sogros). A outra casa é FadHulcai (casa+lua), conhecida como uma casa de fetosá (man-heu ni fada, isto é, casa do genro). Os nomes de Culau e Hulcai têm sentidos próprios, respectivamente, no que diz respeito à casa umane (refere-se a um antepassado varão da metade umane) e à casa fetosá (representa um antepassado feminino da metade fetosá) (Barros, 1975:1). Para a população desta zona, a casa Turi-Sai revela o grande mistério da vida, quer na economia quer nas celebrações de ritos e mitos. É um mistério que alimenta a fé daquela gente e, por isso, é como que um fluxo misterioso que perpassa a natureza inteira: o universo, as plantas, os animais, o Homem, como seu compêndio. Na casa Fad-Culau verifica-se alguma semelhança com outros povos, não só de Timor, mas de outras ilhas vizinhas, como o povo de Tikopia referido por Firth (1957:81): “On some of the most ancient sites, though a house still stands there, it is no longer utilized for residence, but is reserved as a temple to gods and ancestors of the group bearing its names”. No que diz respeito à comunidade Mambae de Aileu, há duas posições opostas acerca do poder tradicional: Kuku nain e lia nain. Como explicam Ospina e Hohe: The lia nain’s tasks are to take care of conflict resolution and negotiations about marriage exchange goods. These tasks indicate that he has a rather political and worldly power. The kuku nain is the one who is in contact with the ancestors and the sacred sphere. He conducts ceremonies, is responsible for sacred goods and through his connection with the supernatural sphere he also has the capacity to act as a shaman and heal people. He represents the ritual authority (Ospina & Hohe, 2001:39).

Os títulos (cargo) do poder e posição centrais são assumidos pelos kuku nain e lian nain. Porém, a divisão política e a autoridade ritual estão sempre ligadas à sociedade de ‘casa’ no distrito de Aileu. Os diferentes títulos e posições podem ser revistos a partir da ordem das casas sagradas que ligam a outra uma knua (casa da comunidade). Há outros dados recentes que precisamos de destacar aqui. Em Maubessi, por exemplo, em 4 de Abril de 2008, a população desta zona aproveitou para convidar o bispo de Baucau, D. Basílio do Nascimento, para inaugurar uma casa lisan laku (celeiro) na zona de Mubessi. No acto da consagração da casa lisan laku, D. Basílio sublinhou que a tradição e a religião são elementos inseparáveis da sociedade timorense e são a matriz da unidade nacional. Na consagração da casa lisan laku, o lia nain saudou o bispo nos seguintes versos: “Aman Nai Bispo ohin loron ida ne’e ita bo’ot hi’it an to’o mai iha ami nia le’et, ami nahe biti, nahe 86

bora simu ho kontenti no simu ho haksolok, iha Maubisse Mauloko sidau lakoda, liman ida la tohar, ain ida la naksalak, leno dalan mai ba fo naroman mai ami, ami sarani Maubisse tuku tur harohan hein ita nia bensaun”58. Este ritual é uma acção que produz o sentimento de alegria, de respeito e de estima pelo responsável da Igreja Católica local, num sentido de fomentar o espírito de união entre duas crenças diferenciadas: crença antiga e crença nova, a religião católica. A vida social do grupo etnolinguístico Mambae assenta nas ‘grande casas sagradas’ chamadas fada, que ligam à composição linhagística. As casas sagradas são divididas em diferentes grupos chamados lisa, os quais partilham uma casa sagrada comum conhecida por fad lisa, que serve de local para a realização das actividades rituais. Estas actividades são normalmente organizadas em culto solene (lis tu), na casa de ascendência, ou casa de origem fada ni fun. O altar erigido em frente da grande ‘casa sagrada’ é um lugar para partilhar o sentimento de união. Este altar de pedra redonda no centro representa “three-pronged ritual post” (Traube, 1986). Existem vários termos para descrever a relação de parentesco que, antes de mais, é chamado kak-alin (elder/younger). As grandes casas sagradas são tratadas por “Mãe e Pai” (Inan nor Aman) e as casas de lazer são, maioritariamente, consideradas como anan, isto é, casas recém-nascidas.

4.4. Do Tétum

No que toca ao povo do grupo etnolinguístico tétum, recorreremos aos diversos estudos realizados pelo antropólogo norte-americano David Hicks. Num dos seus estudos, destaca-se o ponto mais importante da estrutura social desta comunidade étnica, na apresentação de todos os elementos considerados essenciais na sua constituição. As investigações sobre este grupo etnolinguístico tiveram início nos anos 70 do século passado, inicialmente, com a publicação do artigo “The Caraubalo Tétum” (1973), no caderno Garcia de Orta, série de Antropologia. Quando este antropólogo começou a estudar o modo de vida da comunidade de língua tétum da região de Caraubalo, do distrito de Viqueque, realizou a sua análise sobre a povoação de Mamulak, que era para ele um exemplo de estudo de caso. A população de 58

“Hoje, o Senhor Bispo vem ao nosso encontro, nós estendemos a esteira “nahe biti”, com alegria recebemos a sua presença, nenhum de nós aqui em Maubessi tem mãos e pernas partidas, dá-nos a luz e ilumina o nosso caminho, nós, fiéis de Maubessi, esperamos a vossa bênção”. Fonte: http://avozdacultura.blogspot.com /2008/05/religiaun-kultura-lao-hamutuk-unidade.html (consulta a 13/2/2011).

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Mamulak está dividida em dois clãs, que se subdividem, respectivamente, em cinco ou três linhagens. Na estrutura familiar e social, “a descendência é patrilinear, a residência patrilocal e o contacto de afinidade não é prescritivo” (Hicks, 1973:13). A população é constituída por ahi matan (fonte do fogo), que, por sua vez, se divide na linhagem dos feto fuan (coração do mulher) e mane fuan (coração do homem), como membros da comunidade que a compõem. O sistema aristocrático dado ao Ema (reino/povo) assenta em duas povoações hierárquicas: Mane-hat e Mamulak, com as vilas de “Vessá, Cabira Oan, Lamaclaran, has-Abut e Sira Oan”. Esta sociedade comunitária é governada por um Macair Fukun, que significa kaer e ukun (controlo e governo), e o título dado ao governador é designado por Ina-Aman, os dátos representam a família aristocrata e ua’in (reinos). A estrutura administrativa e política desta comunidade é a mesma que a da comunidade étnica do Irabin de Viqueque, chefiada por um liurai. Apresentaremos, em seguida, a função simbólica da casa tradicional uma lulik do grupo étnico tétum em Timor-leste. David Hicks caracteriza uma lulik (casa sagrada) como espaço simbólico onde se realizam os rituais públicos: […] a building set aside for the storage of a descent group’s sacred possessions and it is that place more than any other where the interests of ghosts and kin most tangible converge. There material artefacts symbolizing the bonds that unite these two categories of kin are stored and public rituals of reciprocity by which ghosts and the descent group collectively satisfy each other’s needs are carried out” (Hicks, 1976:91).

Para estas comunidades, a casa sagrada é um símbolo da unidade dos seus habitantes, e todos os seus componentes representam a unidade social da comunidade. De facto, a construção da casa sagrada nas comunidades de língua tétum evidencia que as casas sagradas são lugares de bei-feto/bei-mane (os avós). Isto significa que a estrutura social e o poder político são associados não só à estrutura social de cada família e respectivas origens cosmológicas, mas também ao poder de representação simbólica masculina e feminina (Hicks, 1984), que, no caso concreto do povo Caraubalo, David Hicks (1976:56) descreve assim: For the Caraubalo Tétum, besides symbolizing the dually ordered cosmos it also represents the body of buffalo and that of a human being. It combines the worlds of the ancestral ghosts and humans, and embodies the complementary contrast between womem and men”. Although the (secular) abode of family, it is primarily a (sacred) temple in which communication with ghosts is made. Its symbolic association inclide it toward the feminine elements of the cosmos, and, in the home wives are definitely the master.

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A casa sagrada é construída com base em dois principais pilares, designados por beifeto//bei-mane, as quatro colunas são designadas por seki hat//tane hat – os quatro assistentes do bei-feto//bei-mane; assim também as oito colunas curtas, seki walu//tane walu. Todas elas são reforçadas pela posição dos dois avós. Nota-se bem esta importância na ocasião da morte de um mako’an (o sacerdote ritual do grupo étnico tétum), considerada como a queda do kakuluk lor, ou seja, um componente principal da uma lulik partiu para outro mundo, causando certa insegurança à uma lulik. A morte da pessoa é considerada como uma ulun kuak (há alguns furos no telhado da casa), isto é, o afastamento ou inimizade da família. Esta comunidade acredita que o afastamento da família leva muito cedo à morte. Portanto, se houver algum problema entre eles, o melhor caminho é procurar meios para resolvê-lo rapidamente59. No grupo tétum, a uma-lúlik é o núcleo central da realização do sistema ritual religioso e tem a ver com a procissão de cerimónias ritualizadas e culturais, por exemplo, o funeral (hakoi-mate), a celebração da morte depois de um ano (mutun-mate) e a inauguração da própria uma lulik. Estes exemplos lançam luz sobre os aspectos mais importantes da umaLúlik, de modo a poder aprofundar-se o pensamento religioso desta comunidade étnica. A uma-lúlik, enquanto símbolo social, reflecte, normalmente, a posição social dos seus habitantes: por exemplo, a comunidade étnica do tétum de Fohoren tem uma relação genealógica e histórica muito íntima, por ter sido influenciada pelo sistema de governação dos régulos nos séculos passados, que organizavam a comunidade em várias classes sociais. De modo particular, a cerimónia mais conhecida é o ritual tatek meda, celebrada habitualmente na época da inauguração da uma-lúlik. Este ritual tem uma função muito importante, porque favorece a formação de uma coesão social e da legitimação do estatuto social da comunidade. O sistema da organização social no contexto da comunidade étnica de Fohoren consiste em quatro modelos: uma-lúlik Metan, uma-lúlik Kanek, uma-lúlik lia na’in, e uma-lulik ferik katuas, com a definição da sua zona territorial própria designada como Nua dato. Na cerimónia do tatek meda, a comunidade de “uma metan” come a parte da cabeça, porque ela é designada por ukun na’in//badu na’in, baku na’in//dere na’in (o dono do poder e o senhor da ordem). Uma metan é o poder máximo desta comunidade. Uma kanek é designada como funu na’in//ledo na’in (o dono da guerra), sendo este quem tem autoridade para se responsabilizar pela segurança e prosperidade do seu território. Uma ferik katuas é considerada como sasiri na’in//dadula na’in (tem autoridade para nomear o liurai ‘régulo’ do grupo étnico tétum de 59

Fonte: http://manekluan.blogs.sapo.pt/3948.html (consulta a 12/5/2011)

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Fohoren). Uma lia na’in, designada como buik akitou//mauk nowa, desempenha o papel de autoridade ritual da comunidade, ou mako’na, e tem poder para contar os contos relacionados com a história do clã ou a origem de uma determinada comunidade. Outro papel do mako’an é manter a harmonia entre a comunidade e a natureza, a comunidade e o kukun (o ancestral no mundo invisível).

4.5. Do Kemak

As populações que integram este grupo, que se caracteriza a si próprio por Ema, habitam uma região montanhosa, que compreende a povoação de Marobo, o planalto de Maliana, Cailaco, Atabae e uma parte da zona de Ermera (Atsabe, por exemplo), tendo sido constituídas sobretudo por agricultores sedentários. A sua língua, no final do período da colonização portuguesa, seria falada por cerca de 40 a 50 mil pessoas. No que diz respeito a comunidade étnica, a investigadora Brigette Clamagirand (1982) refere que Ema Marobo é uma sociedade da casa, isto é, a linhagem dos Kemak de Marobo é constituída a partir da origem da casa. A autora refere a existência de dois tipos distintos de construção: a ‘uma’ (a casa) e o ‘lako’ (o celeiro); estes tipos de construção apresentam traços de relações sociais existentes na sociedade (Clamagirand, 1982:295). As casas sagradas da Ema Marobo têm um núcleo central para a realização ritual que tem a ver com o fluxo da vida de ka’ar alir – irmãos mais velhos/mais novos –, que não habitam em nenhuma das casas dependentes, mas dependem da relação com o seu núcleo. Como entre os Mambae, os termos “irmãos mais velhos/irmãos mais novos” podem ser também usados para designar a relação entre casas centrais que têm uma dimensão maior e sejam independentes. É que, reivindicada como a casa de origem comum, é muitas vezes marcada por um nome comum (Clamagirand, 1980:136-139). Na tradição dos atsabenses há pequenas variações, e a sua complexidade é ainda maior do que a organização social da comunidade de Ema Marobo. Na opinião de Andrea Katalin Molnar, as suas unidades básicas de organização social são inamovíveis, pois estão no cerne da estrutura social dos atsabenses. Os mesmos padrões de organização social encontram-se também no grupo linguístico-cultural Mambae. Os objectos sagrados do grupo são usados para legitimar a autoridade. O conceito de Lúlik na cultura Kemak de Atsabe refere-se exactamente a certos lugares sagrados, objectos ou mesmo pessoas (ver Hicks, 1976:128; Hull, 2001:236; Renard-Clamagirand, 1982:302; 90

Traube, 1986:142-3). Os mesmos lugares, pessoas, objectos são assumidos pela Igreja Católica, e usados para o culto. De facto, na tradição do Ema Atasabe, o lúlik é legitimado pelo poder e autoridade ritual. Tiar Lelo e bote koronel são designados como objectos sagrados do céu, do antepassado que os fundou. A casa sagrada da comunidade étnica Kemak de Atsabe é constituída pelas seguintes partes: In the eastern part the sacred house stands of tall 2+ meter posts, in the central part the uma lulik is round and has a domed roofing, in the western part the house is more rectangular in shape. In Atsabe both the central and western styles of uma lulik can be found. In Atsabe, uma luli, is usually the founding house of a group, the most senior house, also called the uma pun (source house). Its sacredness is conceptualized as bansa (hot) since it houses the sacred (luli) ancestral heirlooms and objects (siak). Siak can only be taken out of the house in a ritual context where drops of sacrificed animal blood are sprinkled on them (Molnar, 2005).

Pode, pois, afirmar-se que a casa sagrada desta etnia é caracterizada como um centro de intercâmbio das alianças assimétricas pelo casamento. Quer isto dizer que as primeiras casas foram construídas na base de uma aliança altamente complexa que unificou o antigo reino de Atsabe. A autora afirma ainda que as alianças de casamento também forjaram laços interétnicos com os grupos Aileu Mambae, Tétum, Bunak e outros da parte Ocidental da ilha, concretamente em Atambua (Timor indonésio). Estas alianças mantêm-se ainda muito fortes, especialmente entre os mesmos grupos étnicos do antigo reino de Atsabe. Todavia, entre outros espaços sagrados existentes na aldeia dos Kemak de Atsabe encontram-se o celeiro uma lako e uma complexa plataforma de pedra, também chamada Menaka ou atchu boso. Durante os rituais, os anciãos juntam-se à volta da ‘árvore da vida’, que consideram sagrada, por fazer parte do complexo da casa sagrada, a qual é denominada “bugas buci, bugas miak, ou biar lalu”. Segundo a tradição desta comunidade, estes três locais defendem todos os membros do grupo de origem das doenças e da infelicidade. The most significant menaka for Atsabe Kemak is the one for the entire village which is the central menaka and is spatially related to the uma luli; since it represents the unity of the grouping of related houses in the village. At the center of the menaka stands the aitos, carved post with human head (Molnar 2005)

Sofia Ospina e Tanja Hohe (2001:21) apresentaram uma tabela de identificação das casas sagradas do suco de Ritabou Atas, da região de Maliana (distrito de Bobonaro), classificando-as de acordo com a sua posição e função.

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Tabela 2 – As casas sagradas do Kemak de Ritabou Atas, Maliana. 1

Sacred House Bau’ubun

Position Liurai/Bei

Funtion Holder of political/ritual authority

2 3 4

Manepat Manetelu Leka’ubun

Village chief Dato

5 6 7 8 9 10

Guru’lelo Leamatan Orhomane Likomau Beregatal Leaoboi

Cabu Cabu

11 12

Maliubu Learema

Gives tasks to people, village chief Political power Take drums and Portuguese flags to ceremonies in other territories Passes on tasks from dato Passes on tasks from dato Drumming and dancing in ceremonies Drumming and dancing in ceremonies Drumming and dancing in ceremonies Take drums and Portuguese flags to ceremonies in other territories Drumming and dancing in ceremonies Drumming and dancing in ceremonies

Classification First and biggest House/Elder brother Younger Brother

No contexto político familiar comunitário, há uma clara divisão de trabalho. Além das tarefas domésticas, cabiam às mulheres as lides campestres relacionadas com a sementeira e a colheita. Por outro lado, elas exerciam, em exclusivo, a tecelagem (por exemplo, a tecelagem do tais Marobo), actividade artesanal que assumia um papel importante na satisfação das necessidades locais e nas trocas. A cultura do algodão ocupava quase permanentemente esta comunidade (Clamagirand, 1972 e 1982). Apesar de a sua localização ser predominantemente numa região montanhosa do interior, trata-se de uma das comunidades mais abertas às influências do exterior e sujeitas às convulsões políticas ocorridas durante séculos, na zona da fronteira.

5. Considerações finais

A casa é, no seu sentido mais comum, uma estrutura artificial construída pelo ser humano e tem por função constituir um espaço de moradia para um indivíduo ou conjunto de indivíduos, de forma que eles estejam protegidos dos fenómenos naturais exteriores (precipitação, vento, calor e frio), além de servir de refúgio contra ataques de terceiros. Apesar do seu caráter artificial em relação às construções naturais, o homem utilizou originalmente espaços naturais, como as cavernas, para suprimir a falta de uma habitação, e estas estruturas tendem a caracterizar-se mais como um espaço de repouso dos membros da família. Neste sentido, a casa é entendida como a estrutura que, para além de se apresentar como espaço onde se constitui a família, ou espaço de repouso, se define como uma 92

construção cultural de uma dada sociedade. A casa corresponde, pois, ao arquétipo da habitação, é o termo normalmente empregado por antropólogos para se referirem genericamente ao acto de morar dos povos que ainda não estão integrados na civilização ocidental. A ideia de casa está tradicionalmente associada à existência de família, de tal forma que a palavra costuma ser usada com este significado, porque a origem linhagística de certos grupos sociais começa aí, isto é, a família é uma unidade fundamental de uma sociedade, enquanto a casa corresponderia à unidade fundamental de uma cidade (quer tradicional quer pós-tradicional). A casa ou knua, enquanto habitação singular, surge como metáfora da ideia de nação e como matriz da identidade cultural do povo timorense. A ‘casa’ é o principal elemento identitário e o elo mais forte da cadeia de interacções sociais. O espaço de habitação é, para os timorenses, um espaço sagrado, pois, como escreve Mircea Eliade (1983:70), a sacralização do espaço habitacional, designado por ‘casa’ como uma “arquitectura sacra não faz mais portanto do que retomar e desenvolver o simbolismo cosmológico já presente na estrutura das habitações primitivas”. Acrescenta ainda que a ‘casa’ é um “lugar santo provisório, pelo espaço provisoriamente consagrado e cosmisado, isto é, todos os simbolismos e rituais concernentes aos templos, às cidades, e às casas derivam, em última instância, da experiência primária do espaço sagrado”. Daí a pertinência das palavras de Anthony Smith (1997:146): “a nação é concebida como uma pátria territorial, o local do nosso nascimento e da nossa infância, a extensão do coração e do lar. A casa sagrada é, pela sua força agregadora e identitária, um valioso património material e imaterial de Timor-Leste. Por esta razão, as ‘casas sagradas’, enquanto lugares colectivos ritualmente estruturados, continuam a ser espaço de realização de rituais privados e sociais, o mesmo é dizer, de promoção e salvaguarda do fluxo de vida do indivíduo, da família e da comunidade. Hoje ainda, apesar da destruição maciça levada a cabo durante a guerra pela libertação, a ‘casa sagrada’ continua a ser um lugar simbólico de extrema importância, análogo ao de um santuário ou sinagoga nas culturas ocidentais.

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Capítulo 3 As línguas de Timor-Leste

1. Consideração prévia Neste capítulo, propomo-nos sintetizar, de forma clara e subjectiva, as múltiplas identidades linguísticas de Timor-Leste, sabendo que a língua é um dos aspectos mais relevantes na definição de uma identidade nacional, designadamente na análise do respectivo contributo (quer na escrita quer na oral) para estabelecer a comunicação entre os grupos étnicos, daí resultando, posteriormente, a formação de sentimentos nacionais, particularmente na dinamização das línguas locais até às línguas literárias, como no caso do Tétum e do Português. Timor é, na opinião de Luís Costa (2001), um país plurilingue onde coexistem várias línguas locais, de origem austronésia e papua, com o Português durante quatro séculos da administração colonial portuguesa e o bahasa indonésia durante vinte e quatro anos de ocupação indonésia. A descrição de evolução étnica e sociolinguística do povo timorense desde os seus primórdios permite-nos notar que existe um hibridismo cultural (Hall 2002; Traube 1986), que faz parte do resultado de uma miscigenação racial e adicionada por diversas línguas nativas (Thomaz, 2002; Gunn, 1999 e 2001; Hull, 1999 e 2001a). É por isso que designamos Timor como uma manta de retalhos etnolinguística, com importantes cisões políticas e sociais, que pretende dar a mão ao projecto da construção do Estado-nação. Neste sentido, podemos afirmar que “o mais importante símbolo nacional é, sem dúvida, a língua. As dúvidas acerca da língua oficial envolvem também importantes questões acerca da identidade nacional” (Hall, 2002). Assim, a língua não é em si mesma uma afirmação estática, mas, sobretudo, está ligada à dinamização do sentimento de pertença, muitas vezes partilhada com a etnicidade, a religião e a história comum. A língua é reconhecida como um processo histórico e um dos elementos da pertença identitária de um povo. Num mundo pleno de Estados plurilingues, como o de Timor-Leste, antes de avançar, recorremos a uma simples pergunta colocada por Marysia e Cynthia Enloe, a propósito do seu trabalho sobre o país de Gales: “Does a common language define the Welsh when only 20 per cent (approximately) of those living in Wales speak the language?” (apud Mendes 2005:319). E a dúvida é oportuna, evidenciando as dificuldades da estratégia da escolha política de uma língua nacional e de uma língua oficial: porque é que existem múltiplas identidades 95

linguísticas em Timor-Leste? Por que razão a Indonésia proibiu o uso do Português na comunicação diária dos timorenses e nas escolas? Que razão levou a língua portuguesa a ser a língua da Resistência? Qual foi o fundamento da escolha do Português como língua oficial? Qual é o papel das outras línguas nacionais de Timor? Porquê a oficialização do Tétum? A breve reflexão que se segue procura ser uma tentativa de resposta a estas questões.

2. Língua materna de cada grupo étnico Ao aprender determinada língua materna, devem assimilar-se as características pertinentes da região onde essa língua é falada. Aos factores próprios de cada região (tempo e grupo social) chamamos variedades linguísticas, ou seja, a língua possui diferenças internas classificadas em diatópicas (espaço geográfico), diastráticas (camadas socioculturais) e diafásicas (aspecto expressivo). Por exemplo, o conceito do parentesco de feto-sá-umane é muito vulgar e profundo na sociedade timorense (incluindo outras regiões asiáticas e africanas, mas com diferentes designações), mais do que no ocidente. A expressão feto-sáumane ou feto-sau-umane é equivalente à expressão de feto-oan – na’i-hun e deriva destes quatro elementos vocabulares: feto (mulher); sau (ligar-se, aparentar, consagrar; “Uma” (casa), família; mane (homem). A Língua Materna é o primeiro instrumento de comunicação do Homem, utilizada no país de origem do sujeito falante. É por isso que ela é assumida como um importante factor de identidade cultural e nacional de um povo e de uma nação. No contexto sociolinguístico, uma língua define um espaço social, isto é, associa-se a um determinado espaço caracterizado pelo conjunto de relações de um dado grupo, pois cria uma relação de comunicabilidade. A língua pode associar-se também às relações de parentesco e vizinhança, de troca de bens, de inserção no meio físico, como se vê no caso de Timor-Leste, onde a variedade de grupos etnolinguísticos converge e partilha da ideia de colectividade no mesmo espaço. A evolução linguística tem vindo a provocar o desaparecimento de algumas línguas no nosso planeta, absorvidas por outras de maior expressão ou reduzidas a minorias circunscritas. Desde meados do século XX até hoje, as principais línguas timorenses têm mantido uma percentagem de falantes semelhante ou manifestado uma tendência para a diminuição, como é o caso do Tokodede e do Kemak. Entre as línguas de Timor, é o Tétum a que manifesta maior tendência para crescer. É sabido que é uma língua nacional falada por cerca de 80% da população, embora seja língua materna de apenas 23% da população actual.

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Quanto ao número de falantes, segundo dados da Direcção Nacional de Estatística de Timor-Leste o Tétum, o Mambae, o Kemak60, o Tokodede, o Bunak, o Baiqueno, o Aoni, o Galole, o Makassai e o Fataluku, são as línguas de maior relevância no território, como mostra o gráfico 1 sobre a evolução destas línguas, desde 1961 até 2001.

Gráfico 1 – Evolução das principais línguas timorenses, 1961-200161

A estas línguas regionais há que juntar mais três, que tiveram originariamente um papel diferente, mas hoje funcionam, como elas, apenas como instrumento de comunicação em espaços sociais restritos: por exemplo, o dialecto chinês hakka, falado pela minoria chinesa, composta essencialmente por comerciantes de retalho espalhados pelos pequenos centros comerciais do território; o Malaio, falado por uma comunidade muçulmana de quatro centenas de indivíduos enquistados nos arredores de Díli, conhecido por Campo Mouro; e o hoje quase extinto dialecto crioulo conhecido por ‘português de Bidau’ (Castro, 1867; Baxter, 1990; Thomaz, 1994; Paulino, 2011a). O português é a língua materna dos portugueses nascidos e criados no território lusitano, bem como da maior parte dos mestiços falantes desta língua e do grande Brasil. Importa referir alguns grupos etnolinguísticos que nos parecem mais destacados, seguindo o mapa de distribuição das línguas pelo território (ver figura 11), à excepção do Tétum, que se difunde numa área mais vasta mas descontínua, porque outras línguas de Timor-Leste estão bem demarcadas na ilha. No enclave do Oé-Cussi, as principais línguas que sustentam a comunicação diária da população desta região autónoma são o Baiqueno (esta língua é falada também pela maioria da população de Timor Indonésio, nomeadamente do 60

De acordo com Geoffrey Hull (1999), em termos de escrita e da fala, a língua Kemak (Ema) na sua origem foi influenciado por línguas da população das ilhas Malucas do Sul. 61 Fonte: http://www2.ilch.uminho.pt/portaldealunos/LLE/MajorP/1ano/TCH/P1/Brigida/textos/imagens/11.jpg (consulta a 12/12/2011).

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distrito de Timor Tengah Utara, da região de Soe) e o Aoni, prevendo-se a sua continuidade linguística devido ao seu isolamento. Ainda assim, o Tétum já é falado por uma percentagem significativa da população, usando o Dicionário da Língua de Ocussi e Catecismo na língua de Ocussi (s/d), do Manuel Calisto Duarte Neto.

Figura 9 - Mapa das línguas locais faladas em Timor-Leste62

Junto à fronteira de Timor Indonésio, a situação linguística é heterogénea. No sul, em Cova Lima, predominam o Bunak e o Tétum, embora exista um pequeno grupo falante do Kemak; no interior, em Bobonaro, o Kemak e o Bunak misturam-se. A língua Bunak integrase no grupo linguístico papua-melanésio, e é falada por mais de 50 mil pessoas (dados em Etnology.com). Este povo pertencia, predominantemente, ao grupo humano negróide ou melanésio e sua língua tem uma estrutura gramátical morfológica e sintáctica semelhante à outra língua papuanésia como o Fatuluku e Makasae (Berthe, 1963; Cowan, 1963; Capell, 1943/1944 e 1944/1945; Thomaz, 2002). Há divulgação de trabalhos antropológicos e línguas sobre a ‘buna giol’, tais como: os cadernos dactilografados do “Vocabulário bunak” de Ruy Cinatti; o texto de Bei gua: itinéraire des ancêtres mythes des Bunaq de Timor, text Bunaq recueili auprès de Bere Loeq, Luan Tes, Asa Bauq et Asa Beleq (1972) e Morpho-syntaxe du Buna Timor central (1963) de Louis Berthe. Os dados da Direcção Nacional de Estatística de 2004 indicam que 32,4% da população do distrito de Bobonaro e 52,5% da população do distrito de Cova Lima falam Bunak, tendo em conta também os 8,1% da população do distrito de Ainaro e 2,5% da população de

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Fonte: http://www.missaoalem.org.br/pt/images/alememnoticias01_timorleste_mapa.png (consulta a 12/11/2011).

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Manufahi que falam a mesma língua; encontram-se ainda 0,5% da população de Díli, 0,1% da população de Liquiçá e de Manatuto que também falam esta língua63. Tabela 3 – Exemplo do pronome pessoal e da preposição da frase em língua bunak Pronome pessoal Neto (eu) (sing) Eto (tu) (sing) Bai (ele, ela) (sing) Í (nós – inclusivo) (plural) Ne’i (nós – exclusivo) (plural) Bai (plural) Eí (eles, elas), ala’i (eles, ela)

Pronomes possessivos Ni’e (meu ou minha) I’e (teu ou tua) Gi’e (seu ou sua) no singular Í i’e (nosso ou nossa inclusivo) Ne’i ni’e (nosso ou nossa exclusivo) Eí i’e (vosso ou vossa) Ala’i gi’e (deles) – por exemplo: sael barí ala’i gi’e (estes porcos são deles).

Preposição da frase Neto en Holsa (sou de Holsa) Eto nego ho’on? (estás fazer o que?) Bai basal mal (ele vai ao mercado) Í mit ga’al e haní pasil (sentamos todos e não podemos falar); Ne’i báre pasil gi’e, eí unu ga’al (Queremos falar, calem-se) - Eí báre unu ga’al, en mátas Juaun pasil gie (calai-vos todos, o senhor João quer falar) - Ala’i pasil tó pial (eles compreendem-se).

No Bunak há duas formas de dizer “nós”, ou seja, o pronome “nós” funciona de forma ‘dual’: Ili (tu e eu - inclusivo) e neli (eu e ele - exclusivo); de forma plural: Í (nós – inclusivo) e Nei (nós – exclusivo). Por isso, a preposição funcional dos pronomes do Bunak é hegemónico e heterogénico, porque constituída por dois lexemas: lexema absoluto e lexema derivacional. Este último está a ser constituído por infixação e sufixação pelos “lexema personal”, “lexema derivacional complexo” e “lexema simples” (Berthe, 1963:108-110). Em Liquiçá toda a população fala Tokodede e em Díli o Tétum é falado por quase toda a população. No interior da zona central do território é o Mambai que se afirma como língua principal, e as populações pertencentes a este grupo linguístico estão espalhadas pelo concelho de Díli e pelas regiões da Ermera64, Aileu, Ainaro e Manufahi, numa extensa faixa de terreno que se estende da costa norte à costa sul. O Mambae é ainda hoje a língua materna mais falada em todo o território por um maior número de pessoas: mais de 150 mil (Figueiredo, 2004:65), representando variados grupos étnicos. No distrito de Manatuto são quatro idiomas falados, com áreas de difusão claramente demarcadas: no norte fala-se o Galóli, no centro fala-se o Habo e no sul fala-se o Tétum. Apesar de o Galóle ter sido adoptado pela Igreja Católica deste distrito e assumir alguma

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A população que fala a Língua Bunak na capital e nos dois distritos (Liquiçá e Manatuto) é maioritariamente originária do distrito de Bobonaro, Cova Lima. A da “língua bunak” passou a ser falada nestas regiões através de uma aliança de casamento, ou através da missão de trabalho confiada pelo Estado. Daí fundaram uma nova morada e uma nova vida. 64 Neste distrito, 53,4% da população falam o Mambae e 17,8% falam o Kemak. Estas línguas são suas línguas maternas, e o Tétum é a segunda língua (falada por 27,8% da população de Ermera).

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importância em Timor-Leste por se ter fixado em gramáticas e dicionários65, não é dos principais dialectos do país. Nos distritos de Baucau e Viqueque, a população fala predominantemente o Makasae como língua materna. É uma língua de origem papua-melanésia, falada por mais de 70 mil pessoas. Ainda que não corresponda a um grupo étnico único, comunicando-se também em Tétum nos subdistritos mais ocidentais. Tabela 4 – Exemplo do pronome pessoal em língua makasae Pronome pessoal Ani (eu) Ai (tu) Gi (ele), wori (ela) Ini (nós) – exclui o pronome ‘tu’ Pi (nós) – inclui o pronome ‘tu’ I (vós) Era (eles/elas)

Preposição da frase Ani mu’u karaka (eu gosto de banana/s) Ai mu’u karaka (tu gostas de banana) Gi mu’u karaka (ele gosta de banana), wori mu’u karaka (ela gosta banana) Ini mu’u karaka (nós gostamos de banana) Pi mu’u karaka (nós queremos banana) I mu’u karaka (vós quereis banana) Era mu’u karaka (eles gostam de banana)

Geoffrey Hull (2002:10) delimita geograficamente a região falante de Makasae nas seguintes localidades: It is the vernacular of the districts of Baucau (where Waimava i salso spoken) Quilicau, Ossu, Bagia, laga, Laivai and Luro. The Ossu dialect stands apart in its preservation of the consonant p, which became f elsewhere (cf. Ossu pi, Baucau fi ‘we’; Ossu apa, Baucau afa, ‘stone’). The nickname given to be inhabitants of the eastern half of East Timor, Firaku is Makase word.

Luís Filipe Thomaz (2002:163), por seu lado, defende que em todo o conselho de Baucau, à exepção de uma pequena área em que se fala Uaimoa, e ainda na área de Luro, do conselho de Lautém, e nas áreas de Ossu e Uato-Lari, do conselho de Viqueque; há pequenos núcelos também no conselho de Manatuto. Juliette Huber, em First Steps Toward a Grammard of Makassae (2008) justifica que a língua makasae possui características tipológicas predominantemente isoladas, com poucas complexidades morfológicas em suas formulações sintáticas. Apesar de tudo, Jessé Silveira Fogaça (2011) afirma que o trabalho de Juliette Huber apresenta poucos dados sobre a fonologia, léxico, derivações morfológicas, orações nominais e verbais, preposições, negação

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Consultam-se gramáticas e dicionários do Galóle, da autoria do Pe. Manuel Maria Alves da Silva: Dicionário Português-Galoli (1905), Compêndio em Galoli de orações quotidianas (1902), Noções da Gramática Galoli, Dialecto de Timor (1900), Catecismo da Doutrina Cristã em Português e Galóli (1907), Evangelhos das Domingas e Outras Festas do Ano: em Português e Galoli (1904), Homilías dos Domingos em Galóli (1905), Método para Assistir à Missa, em Galóli (1905).

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e sintaxe. E, quando Fogaça esclarece que “não há divulgação de nenhum outro trabalho linguístico sobre a língua makasae”, significa que é uma afirmação precipitada sem fundamento, isto é, tirar uma conclusão sem recorrer a outras fontes de informação. Sabemos que há trabalhos de cariz antropológicos, etnográficos e linguísticos, como o caso da publicação do “Dicionário das línguas Uaimá’a e Macassai” (s/d) do Pe. Manuel Calisto Duarte Neto; as “Notas Sobre Linguística Timorense - Sistema de Representação Fonética” (1952), de Artur Basília de Sá; o caderno de 260 páginas de Ruy Cinatti que fala dos “Vocabulários timorenses” (s/d) de Díli, Suro, Baucau, Oé-Cussi, Ermera, Bobonaro e Viqueque; e, a obra “Peoples and Languages of Timor” (1934/1944, 1944/1945) de A. Capell, publicado pela revista Oceania, que faz uma descriação comparativa dos vocabulários do Makasae, Bunak, Tétum, Tokodede, Mambae, Galole, Ua’ima, Vaikeno. Contudo, o trabalho de Huber e de Fogaça sobre o Makasae ainda estão longe de ser considerados como padrão desta língua, porque precisam de uma revisão em termos de estrutura textual e devem ser mais apurados de acordo com os trabalhos dos autores referidos. A chamada ‘Ponta Leste’ é globalmente dominada pelo Fataluku. Situa-se na extremidade oriental da ilha de Timor, confinando exclusivamente a Oeste (direcção NorteSul) com os grupos etnolinguísticos Nà-Ine, Sà Ani, Macalére e Makasae, e a Norte, Sul e Este com o oceano (Gomes, 1972; Campagnolo, 1972; Hull, 1999; McWilliam, 2007). O grupo etnolinguístico do fatuluku é constituído por uma comunidade relativamente isolada, sendo a sua gente bastante fechada, misturando-se raramente com elementos pertencentes a outros grupos, o que lhe confere uma certa homogeneidade antropo-biológica, mais nítida nos homens do que nas mulheres (Figueiredo, 2004:67; Campagnolo, 1979). É conhecido pelos seus vizinhos como Dàgadá, por ser uma língua sem os sons [b], [d], [g] e [Ʒ]. Isto obriga-nos a expressar essa linguagem de forma rápida: ‘dàgadá! dàgadá! dàgadá’, que o próprio falante de Fatuluku reproduz: ‘tácatá! tácatá! tácatá!’. É também uma língua expressiva e rica de vocabulário, na ordem SOV, com o verbo sempre no fim da frase, como no Latim. Por exemplo: Eru pári máunu (já vem o vento do norte e a penúria), Zal pári máunu (já vem o vento do norte e a fome); Init en sai (tem compaixão de nós); Init en ete (tem misericórdia de nós), Hai rau possaine (já não há compaixão), Hai rau po etene (já não há misericórdia).

No contexto do estudo da literatura, esta expressão é de cariz poético. É muito parecida com as poesias hebraicas, nomeadamente com alguns versos do Cântico dos Cânticos do rei Salomão, ou dos Salmos de David (Rodrigues, 1962), isto é, uma espécie de dísticos 101

emparelhados, porque exprime a mesma ideia em cada verso, ou seja, uma repetição da mesma ideia, mas já noutra expressão igualitária. As composições poéticas referidas são, quase todas, de carácter religioso e recitadas em vários eventos de maior importância, como nas cerimónias de pedir a força para ir à guerra ou uma exclamação de perdão, ou na erecção dum tei (sagrado), na encomendação dum morto e na lónias, para conhecer a causa das doenças. No contexto do folclore da região falante de Fatuluku, a língua é considerada como um “receptáculo de conhececimento” (Engelonhoven, 2010). A palavra “Fatuluku” significa “falar simples, ou falar sem rodeios” e não, “falar correcto” como defende Engelonhoven (2011:145), porque “falar correcto” é “em’masutcha’a”, isto é, falar de acordo com as normas da língua. O Fataluku é introduzido tardiamente na região de Tutuala, na qual cada clã falaria a sua própria língua, como o caso do falante de Lovaia e Makuwa que está em vias de extinção, devido ao desaparecimento de falantes. Ainda assim, sobrevive nos rituais dentro do grupo de fatuluku na região de Tutuala. Todas estas línguas estão a ser substuidas pela única que é “falar simples”, o Fatuluku66.

3. O Tétum: Tétum-Térik e Tétum-Praça O Tétum é uma língua que parece ter chegado a Timor por volta de 2500 anos a.C com as migrações austronésias. Fala-se hoje como língua materna em áreas descontínuas: Díli, uma faixa de costa a costa ao longo da fronteira com Timor Indonésio e uma região a meio da costa sul de Timor-Leste. A variedade do Tétum falada em Timor-Leste foi influenciada pela Língua Portuguesa; a variedade do tétum-belu (Timor Indonésio) foi influenciada pela língua indonésia. O Tétum tem três variedades linguísticas, ou grupos de dialectos: o tétum-térik (é mais erudito e mais rico em vocabulário) e o tétum-lós, variedades clássicas usadas nas regiões onde o tétum é língua de origem, e o tétum-praça falado em Díli (conhecido como tétum Díli) e em todo o território (com possível excepção da Ponta Leste e do enclave de Oécussi-Ambeno) como língua franca (Sá, 1961; Baxter, 1990; Fox, 1997; Hull, 1999; Esperança, 2001:48). O tétum-praça é Tétum misturado com Português, falado pelos timorenses que não tiveram a possibilidade de aprender a Língua Portuguesa na escola ou na tropa. É uma língua,

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Esta informação é dada pela nossa interlocutora Sabina da Fonseca, falante nativa do Fataluku de Tutuala.

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verdadeiramente franca, mas alguns puristas defendem que é o tétum-térik67 que está a ser verdadeiramente uma língua nacional. Nuno Canas Mendes (2005:326) sustenta que “Quanto à escrita, João Paulo Esperança defendeu a adopção de uma ortografia fonológica, em que a cada som corresponde uma só letra, e de um alfabeto formado pelos grafemas necessários para escrever a língua ‘com todos os seus sons pertinentes’”. O tétum-praça é, antes de mais, o “crioulo português de Bidau”68 que deveria ter chegado a Díli quando, em 1769, a capital da colónia portuguesa de Timor foi transferida de Lifau para Díli. A partir daí, a população de Díli começou a falar Português de forma corrompida, ou seja, a falar tétum misturado com palavras portuguesas. Isto deveu-se à interacção das elites locais (soldados, pessoal da administração) e o tétum-praça veio a tornarse língua de comunicação diária da grande parte da população. Esta situação foi extremamente favorável à influência gramatical e lexical do “português de Bidau” (= tétum praça) sobre a variedade do Tétum que está em formação. Por exemplo: José nia kareta foun (O carro novo do José ou o carro do José é novo), Ne’e Miguel nia karau (Esta é a vaca do Miguel), Natalino iha kaneta foun ida (O Natalino tem uma caneta nova) e Belina nia oin bonita los (A cara da Belina é muito bonita), mostram a formação do genitivo no tétum-praça (INL-UNTL , 2003). Outros exemplos são: uma ne’e ó nian (esta casa é tua), ha’u buka ha’u nia karau lakon (Procuro a minha vaca perdida), Ó hetan fali ona ó nia kaneta (Já encontraste a tua caneta), ita hadomi ita nia lawarik sira (nós amamos as nossas crianças)69. Esta forma de utilização é considerada a mais frequente nos dialectos rurais do tétum, embora, nalguns casos, os falantes rurais utilizem o pronome pessoal que funciona como um adjectivo possessivo: buka ha’u nia kuda, buka ha’u nia ai’suak, hadomi ita nia aman sira, considerando simultaneamente tais exemplos como os mais próximos do tétum literário.

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O tétum-térik é uma fonte permanente de palavras para o tétum literário moderno. O desenvolvimento desta língua começou há bastante tempo, desde a presença dos missionários em Timor. 68 De acordo com Baxter (1990:2) e Thomaz (1994 e 2002), o navegador francês François-Etienne Rosily, que esteve em Timor durante três anos (1772 a 1775), testemunhava que, após a transferência da capital de Lifau para Díli e que incluía também a transferência da população (a guarnição, pelo menos de 1200 pessoas, das quais 15 eram brancos. O que foi encontrado pelo navegador francês foi português metropolitano, mas, de facto, tratase do crioulo português a que se chama “português de Bidau”. 69 Para contextualizar claramente os exemplos referidos, apresentamos algumas considerações que dizem respeito à formulação da pergunta e respectiva resposta no tétum padronizado: Arcanjo! ó halo sá ida iha né? (Arcanjo! o que estás a fazer aqui?) – Ha’u buka ha’u nia karau lakon (procuro a minha vaca perdida); Horiseik ó ba nebe? (onde foste ontem? – Horiseik ha’u ba foho Bitau, buka ha’u nia karau lakon (ontem fui à serra de Bitau à procura da minha vaca perdida); Rita! Hetan fali ona ó nia kaneta? (Rita! já encontraste a tua caneta?) – Hau hetan tiha ona (sim, já encontrei), ou dizer apenas: hetan ona; Horiseik lokraik ó halo sá ida ho Margarida? (o que fizeste ontem à tarde com a Margarida? – Ami halo ensaiu musikal ida atu konkorre ba festival artístika 2010 nian (fizemos um ensaio musical para concorrer ao festival artístico de 2010).

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3.1. A contribuição da Igreja Católica no desenvolvimento do Tétum O Tétum foi língua franca durante a administração portuguesa. Após a conversão da rainha de Mena e família (1640), da rainha viúva de Lifau e família (1641) e depois da rainha de Luka (1641), cujos reinos são falantes de tétum, ao catolicismo, as missões religiosas começaram a adoptar o Tétum como língua de missionação, de oração e de catequese. O modo de escrita do Tétum que conhecemos actualmente é o resultado dos trabalhos deixados pelos missionários que deram o seu contributo a esta língua com algumas publicações, desde finais do século XIX até início dos anos 70 do século XX70. Com a proibição do uso do Português nas escolas e nas celebrações religiosas pelas autoridades indonésias, a Igreja Católica, na qualidade de promotora tradicional do Tétum, tornou-se simultaneamente uma infra-estrutura semelhante a um governo paralelo para a defesa da cultura linguística nacional. Em 1980, a Comissão Litúrgica da Diocese de Díli – composta por seguintes membros: Monsenhor Martinho da Costa Lopes (Administrador Apostólico) e os Padres António Maia, Agostinho da Costa, Francisco Tavares dos Reis, Mariano Soares, Alberto Ricardo da Silva (actual Bispo de Díli), Domingos Morato da Cunha, Luís Sarmento da Costa e Leão da Costa – elaborou o texto canónico do Ordinário da Missa: Texto Oficial Tétum (INL-UNTL, 2004; Pinto, 2010; Fonseca, 2010). Deste modo, os textos litúrgicos de língua portuguesa passaram então para o Tétum71. A revisão dos textos traduzidos foi da responsabilidade do Monsenhor Martinho da Costa Lopes e do Pe. António Maia. O texto canónico do Ordinário da Missa: Texto Oficial Tétum foi enviado a Roma a 27 de Março de 1980, através do Núncio em Jacarta, Monsenhor Pablo Puente. A 7 de Abril de 1981, a Santa Sé aprovou a tradução do Missal Romano e o Ordinário da Missa em Tétum e proclamou-o como língua oficial da Igreja de Timor72. Desde

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O Catecismo badak no oração ba loro-loron (1907) e Resumo da História Sagrada em Português e Tétum (1908), da autoria do Pe. Manuel Fernandes Ferreira; Catecismo da Doutrina Cristã em Tétum (1885) e Dicionário Português-Tétum (1889), da autoria do Pe. Sebastião M. Aparício da Silva; Doutrina Bádak (1950) e Catecismo ho Oração Ruma de Manuel Patrício Mendes (1952); Dicionário de Teto-Português de Rafael das Dores (1907); Diálogo na Língua Tétum (s/d), da autoria do Pe. Manuel M. Alves da Silva; Cartilha TetumPortuguês (1916); Algumas regras gramaticais da língua tétum e vocabulário de Julio Garcez de Lencastre (1926); Método Prático para aprender o tétum (1937), da autoria do Pe. Abílio José Fernandes; o Texto em Teto da literatura oral timorense, de Artur Basílio de Sá (1961). 71 O Ordinário da Missa foi traduzido em 1980, segundo Maria José Albarran Carvalho (2001:69): “A Igreja tornou-se a muralha da integridade cultural, que, com a tradução de vários textos sagrados beneficiou o estatuto do tétum-Díli, impregnando-o das variedades tétum-terik e tétum-belu, o que resultou numa variedade literária daquela língua crioulizada”. 72 Como prova disso, a 31 de Outubro de 1981 Monsenhor Ferrano, aquando da sua visita pastoral, fez questão de celebrar a missa em língua timorense (Tétum) junto ao monumento de Nossa Senhora, em Lecidere. Proclamou solenemente a aprovação final dos textos e o uso doTétum como língua oficial dos actos litúrgicos em Timor-Leste (Pinto, 2010).

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aí, a Igreja Católica começou a enfatizar a especificidade cultural, sobretudo através da defesa da língua e da identidade do povo de Timor. É preciso vincar também a extrema importância da estratégia da introdução do Tétum adoptado pela FRETLIN como língua nacional. Deste modo, quer a FRETILIN quer a Igreja Católica, utilizaram tal língua como instrumento de Resistência e civil, por ter uma identidade cultural timorense em paralelo com a referência histórica do contacto e influência da cultura e língua portuguesas. A corroborar este facto, em 2008, o actual líder da FRETILIN e exprimeiro-ministro da RDTL, Mari Alkatiri, afirmou que “a proibição do uso do Português abriu caminho a que a Igreja Católica em Timor-Leste tivesse optado pelo Tétum como língua litúrgica, contribuindo com isso para o início de um processo mais sistematizado de desenvolvimento do tétum-praça. [Assim], no desenvolvimento do Tétum com uso litúrgico, a Língua Portuguesa encontrou uma forma submersa de resistir e de sobreviver no mundo do Tétum” (Notícia Lusa, 10/12/2009)73.

3.2. A nacionalização do Tétum Antes da invasão indonésia, todo o timorense, com a excepção das zonas de Lautém e de Oé-Cussi, além de aprender a falar a sua língua materna, aprendia também o Tétum, para poder entrar em contacto com outros grupos. Deste modo, o Tétum ganhou mais prestígio na sociedade timorense, sendo classificado como língua de intercâmbio comercial e social, sobretudo, como língua veicular, e funcionando como elemento de coesão nacional, como um dos factores de identidade de todos os timorenses. Após a invasão do território pela Indonésia (que trouxe consigo a política de proibição da Língua Portuguesa), o Tétum reforçou a sua condição de língua dominante, uma vez que era falada em todo o território. A interdição do uso do Português nas celebrações religiosas beneficiou o estatuto da língua tétum-praça, uma vez que a Igreja Católica timorense se viu na necessidade de traduzir para a língua autóctone vários “textos sagrados”. E, em Outubro de 1981, o Tétum foi proclamado como língua nacional. A Língua nacional é um conceito ambíguo e difícil de definir, mas podemos defini-la como uma língua unificadora de um povo de determinado espaço territorial. Esta definição não implica que as línguas nacionais terão que ter uma ortografia fixa para manter o seu estatuto. Pretende afirmar-se também que a

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Esta acepção foi afirmada no 2º Congresso Nacional de Educação ocorrido em Díli à 10 a 12 de Dezembro de 2008, subordinado ao tema de “Identidade do povo de Timor-Leste e a língua portuguesa”.

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língua nacional nasce porque há uma vontade de todos os grupos a serem unificados por uma só língua que irá tornar-se parte de um povo e de uma nação. O Tétum já funcionava como ‘língua nacional’ porque os timorenses desejavam construir a nação Timor-Leste una e, simultaneamente, sendo uma “língua falada em determinado território que, plasmando marcas de uma herança específica ou código de afirmação de originalidade étnico-cultural, pode configurar um elemento caracterizador de uma consciência nacional” (Marques, 2005:606-607). Tal como aponta Geoffrey Hull, do Instituto Nacional de Linguística: “reconhece o tétum-praça (o dialecto tétum Díli, agora considerado segunda língua em todo Timor-Leste) como base de língua literária nacional, hoje em dia apelidado tétum nacional” (Hull & Eccles, 2005:16). Aliás, uma vez que, como nos ensina Anne-Marie Thiese (2000:74-75), uma língua nacional tem como função, por um lado, substituir uma miscelânea de modalidades linguísticas que correspondiam a utilizações diversificadas; por outro lado, encarnar a nação: o seu ‘caderno de encargos’ é, por isso, pesado e constrangedor. Tem de assegurar a comunicação horizontal e vertical no seio da nação. Todos os membros devem compreendê-la e utilizá-la, deve possibilitar a expressão de qualquer ideia das mais antigas às mais modernas. A padronização do Tétum74 como língua nacional não parece fácil, dado o estado de incipiência que caracteriza a norma em formação de tal língua (Mendes, 2005:325). Por isso, o linguista australiano Geoffrey Hull apresentou uma proposta em Mai kolia Tétum: A course in Tétum-Praça, publicado em 1993, em Sydney, que deriva de uma necessidade premente de aperfeiçoar as regras e as convenções ortográficas do Tétum. A proposta de Hull teve o apoio dos intelectuais timorenses, com a criação de um grupo de trabalho chefiado pelo Reitor da Universidade Nacional Timor Lorosa’e, Benjamin de Araújo e Corte Real. Surgiu, desta forma, o Instituto Nacional de Linguística de Timor-Leste. A este respeito, a cooperação

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A evolução da ortografia semi-padronizada do Tétum começou com a publicação do Catecismo da doutrina cristã em Tétum (1885) e Diccionario de Portuguêz-Tétum (1889) de Sebastião Maria Aparício da Silva: o Diccionario Teto-Português, de Raphael das Dores (1907); Cartilha Tétum (1917), da autoria do Pe. Manuel Mendes Laranjeira; o Dicionário Tétum-Português de Manuel Patrício Mendes e Manuel Mendes Laranjeira (1935); as Notas sobre linguística timorense: Sistema de representação fonética de Artur Basílio de Sá (1952); o documento do Comité da FRETILIN para a Literacia: Como vamos alfabetizar o nosso povo Mau Bere de Timor Leste (1975); o texto Ordinário da Missa: Texto Oficial Tétum (1980), elaborado pela Comissão Litúrgica da Diocese de Díli; os Princípios de Ortografia Tétum: Sistema Fonémico; Standard Tetum-English Dictionary (1996), elaborados pela Comissão Internacional para o Desenvolvimento de Timor-Leste (IACDETL); o Matadalan Ortográfiku ba Tetun Nasionál; Hakerek Tetun Tuir Banati (2002), elaborado pelo Instituto Nacional de Linguística da Universidade Nacional Timor Lorosa’e (INL-UNTL). E actualmente, a ortografia padronizada do Tétum é também elaborada por membros do INL-UNTL, respeitando as regras emanadas no Decreto Governamental de Timor-Leste (1/2004 de 14 de Abril de 2004), no sentido de fixação do acordo ortográfico do Tétum de carácter nacional.

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portuguesa foi e é fundamental na fixação e normalização das regras do Tétum, pois esta será uma das formas de reforçar o uso do Português no Tétum. Cada língua corresponde a uma reorganização dos dados da experiência que lhe é sempre particular. Existe, por exemplo, uma diferença na nomeação das cores em determinadas línguas, que não são as mesmas para todos os povos, levando-nos a pensar até que ponto a concepção do mundo é condicionada pela língua. É o caso do Tétum, que nomeia basicamente cinco cores: mean (vermelho), modok (verde), kinur (amarelo), mutin (branco) e metan (preto) – as outras denominações são delas expansões, como mean morek (marrom); entretanto, o nome de outras cores é justificado pelas expressões portuguesas, como laranja, rosa, roxo etc. Não possuindo denominações das cores, o Tétum não precisava de ir buscar termos ao Português para designá-las, mas poderia aproveitar o conjunto de denominações de cores de outras línguas nacionais (Mambae, Makasae, Fatuluku, Bunak e Kemak, inclusive o Baikeno), que têm informações mais completas sobre elas. Por exemplo, no Fatuluku: Pitine (branco), lakuváre (preto), karase (amarelo), mimireke (vermelho), laturose (roxo), paiahasa (cor-derosa), u’ureke (verde), morokarasu (laranja), rakasana (castanho), vahuvahu (cinzento). Salientamos também que linguisticamente, no Tétum, não existe a expressão equivalente a ‘por favor’, no entanto, para a construção do tétum padronizado com tal expressão, achamos desnecessário ir buscar termos ao Português, enquanto ela existe nas outras línguas: no Fatuluku, por exemplo, et mokorvan ira’unum aninatinilai, ou, favorunipo et ira’unum aninatinilai (Por favor dê-me um pouco de água); no fatuluku de Fuiloro, é “favor et ira’unum aninatinila”.

4. A Língua Portuguesa em Timor Podemos entender que a Língua Portuguesa tem raízes profundas em Timor-Leste, desde 1516 até 1975. Com a invasão indonésia, esta língua foi utilizada pelos timorenses apenas como “emblema, como bandeira de guerra, como sinal de luta, sinal de oposição” (Thomaz, 2002:131) aos elementos culturais indonésios até 1999, principalmente à língua indonésia. Se alguém colocasse a sua dúvida sobre a influência do Português na afirmação identitária timorense a par do Tétum, ou seja, se alguém vier a dizer que o Português é uma língua estrangeira ou colonizadora, a resposta é a seguinte: por um lado, é verdade, mas, por outro lado, é uma língua que reflecte e preserva a cultura e a identidade linguística timorense. Como se nota no primeiro instante antes da invasão de Timor por parte da Austrália em 1942 107

ou da invasão indonésia em 1975, a Língua Portuguesa já estava enraizada em terras timorenses desde há mais de 400 anos. Significa que os bisavôs timorenses já falavam e entendiam o Português antes de o capitão Cook ter pisado o solo australiano; ou seja, antes de os australianos terem o inglês como a sua língua oficial 75, ou antes de a língua indonésia (bahasa indonésia) ser proclamada oficialmente como língua dita oficial, o Português já havia assentado em Timor-Leste. Neste período histórico, os timorenses defendem a influência cultural portuguesa, que foi ‘proposta e não imposta’, ao contrário do que aconteceu com a influência indonésia, imposta pela língua, presença militar, estratégica, demografia e força económica do país vizinho. Esta particularidade deve-se, em primeiro lugar, ao facto de Portugal contar com mais de 400 anos de presença religiosa e cultural, a qual precedeu em mais de um século a presença política. Por outro lado, Timor não foi conquistado, foi abordado por mercadores privados, sendo o catolicismo aceite independentemente de qualquer relação de domínio.

4.1. Como veículo de administração A introdução da Língua Portuguesa em Timor-Leste teve necessariamente início nos contactos com comerciantes, que foram considerados o primeiro público interessado em aprendê-la, de modo a beneficiar os negócios. Naquela altura, as relações com as populações locais eram baseadas apenas nas trocas comerciais. Presume-se que, no princípio, os comerciantes e as populações locais se entendiam por meio de gestos e, aos poucos – na certeza de poderem fazer escoar os seus produtos, porque o negócio lhes trazia benefícios materiais –, foram-se aperfeiçoando até poderem comunicar com menos embaraço com os portugueses (Matan-Ruak, 2001:40). Para além dos comerciantes, supõe-se que a Igreja Católica também contribuiu para despertar o interesse das populações locais em relação à Língua Portuguesa. Deste modo, é curioso verificar que o início da difusão desta língua no Oriente é tido como uma promoção e divulgação espontânea da cultura portuguesa. E, para tal fenómeno, muitas vezes as decisões tomadas pela autoridade colonial nem sempre foram suficientes, porque não havia uma deliberação política para explicar o modo como a difusão do Português se processava em Timor. 75

Regina Helena Pires de Brito, “O português de Timor-Leste”, http://www.fflch.usp.br/eventos/simelp/new/pdf/mes/03.pdf (consulta a 15/3/2012).

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disponível

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De facto, em 1769, a capital do Timor Português em Lifau foi transferida para Díli. A partir de então, por um lado, a autoridade colonial começou a impor uma nova política administrativa que, logicamente, introduziu o Português como língua administrativa, e, por outro, procedeu-se à estruturação administrativa civil e político-militar no território76, atribuindo aos régulos e chefes locais patentes de oficial do exército português, organizando em companhias de moradores os seus arraiais de tropas77. Compreende-se deste modo que, de acordo com Luís Filipe Thomaz (2002:132), a presença portuguesa teve enorme influência em Timor quando começou a estabelecer a sua efectiva soberania no território, decretando oficialmente o Português como língua de administração. Henry Forbes (1885:417) testemunhou que todos os negócios nos diversos escritórios e lojas eram conduzidos em Português, ao contrário do que se passava nos teritórios holandeses (actual República Indonésia), onde se usava o malaio, a língua de comunicação diária do arquipélago. Algumas pessoas das ilhas de Molucas e Alor referiam ao casal Forbes que em Timor a língua Malaia era estranha e a gente desta terra falava a língua portuguesa, não o Malaio. Assim relatou Anna Forbes (1887:241): It is strange to hear no Malay in Timor, this language is heard otherwise all over the civilised archipelago; but natives here must learn the language of the possessors [Portuguese] if they will have any contact with them. […] Our Amboina servants who had been with us in Timor-Laut [=Yamdena] said they would willingly accompany us to any other island of the archipelago except Timor, [because] where their language was not spoken, and the natives were so different.

William Dampier, por sua vez, testemunhava ser muito difícil distinguir os timorenses aliados como sendo portugueses ou naturais da ilha, porque “Their language is Portuguese; and the religion they have is Romish” (Dampier, 1729). Grosso modo, só com o controlo efectivo de todo o território de Timor nos finais do século XIX e princípios do século XX, a presença da Língua Portuguesa ganhou um novo ritmo e expandiu-se nas zonas mais isoladas fora de Díli. Esta língua passou a ser conhecida naqueles locais através da presença da administração eclesiástica e colonial, que começou a integrar também timorenses ‘assimilados’. 76

De acordo com Teodoro Artur de Matos (1974:118), o estudo sobre a administração de Timor na época portuguesa “torna-se necessário considerar separadamente a autoridade civil e militar, embora o governador reunisse sempre os dois poderes e alguns dos seus funcionários exercessem simultaneamente funções civis e militares”. Importa apontar também que as alterações que vieram ser introduzidas na administração tradicional dos timorenses, integrando-os no novo modelo para servir melhor à soberania portuguesa. 77 De acordo com Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) – Documento avulsos de Timor, caixa 1, “Cópias do treslado das provisões que o governador António Moniz de Macedo passou aos reis e coronéis da ilha de Timor da invenção das fintas reais que eram obrigados a pagar anualmente por terem os reis contribuído com o pardau por cabeça de toda a gente”, Batugadé, 10 de Julhos de 1737, publicado por Afonso de Castro (1867:221-224).

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Na altura em que os régulos de Timor perderam uma parte dos seus poderes de controlo, foram obrigados a obedecer a uma administração burocrática de tipo monárquico colonial ou, após a proclamação da República em Portugal, passou a ser uma administração de tipo liberal democrática colonial, que era a continuidade do sistema administrativo monárquico. Este tipo de administração estabeleceu-se, não só na capital da Província, mas em todo o território de Timor, e daí, “os quadros do funcionalismo começaram a aumentar e neles começaram a penetrar, aos poucos, os timorenses letrados” (Thomaz, 2002:65). Foi um momento importante para os timorenses letrados, porque começaram, dali em diante, a ser falantes do Português, e foi assim que o Português, logicamente oficializado como língua administrativa, se foi difundindo e incrementando (Pinto, 2010:7).

4.2. Como veículo de instrução Pode considerar-se que tenha sido assim desde muito tempo, já que, na década de 1560, os primeiros missionários que chegaram a Timor começaram por desempenhar o seu papel como evangelizadores, ao mesmo tempo que eram divulgadores das ideias civilizacionais europeias, e com muito sacrifício conseguiram promover a Língua Portuguesa através da “alfabetização nas escolas e das preces nas capelas e igrejas católicas” (Matan-Ruak, 2001:40), o que nos leva a crer que a promoção do Português era protagonizada pelas missões religiosas. Este protagonismo da Igreja Católica esteve bem visível quando, de 1885-1897, o Padre António Joaquim de Medeiros foi escolhido Bispo de Macau, da qual dependia a diocese de Timor Português. Em 1877, este bispo enviou mais clero secular e seus auxiliares e “as Irmãs Canossianas para Timor” (Teixeira, 1974:223-299), a fim de reforçar as missões católicas já bem implantadas como uma forma de “reorganização das missões de Timor” (Goulart, 1938). Em 1898, os jesuítas fundaram um colégio em Soibada, destinado à formação de professorescatequistas, à alfabetização e à instrução religiosa das famílias nobres timorenses (Thomaz, 2002; Marcos, 1995; Pinto, 2010; Fonseca, 2010). Neste contexto, percebemos que a principal via de difusão do Português em Timor-Leste foi a da missionação, pois foram os missionários que se ocuparam do ensino e imprimiram o primeiro manual bilingue para ensinar o Português e outras ciências, como a Filosofia, a Arte, a Geografia e outras. Foram eles que fundaram as primeiras Escolas Primárias em Timor, por exemplo, a Escola de Professores Catequistas, a Escola de Artes e Ofícios e o Seminário Menor (primeiro 110

em Soibada, em 1898, e depois em Dare, em 1954). Contudo, a instrução, a certa altura, era tão absorvente que os padres dedicavam mais tempo às suas actividades nas escolas do que à acção de missionação. Os timorenses formados nessas escolas foram nomeados professores e colocados em diversas estações missionárias. Assim, tornaram-se os agentes principais do ensino da Língua Portuguesa nas aldeias e nos sucos. Porém, os professores ali formados não eram em número suficiente, querendo isto dizer que a administração portuguesa em Timor não apostou muito na área da educação e formação dos timorenses, como recorda Luís Costa (2005:614): “A inexistência de um plano adequado à civilização e à situação socioeconómica teve como resultado o atraso da formação de quadros timorenses”, porque “os factores que impediram o processo de instrução foram a deficiência do regime escolar, além disso, os programas educativos eram inadequados e os objectivos indefinidos” (Pinto, 2010:9). Tal situação foi confirmada por José Ângelo Correia, em “Timor parcela nacional” (Seara, 1971, ano 6, nº 202), que “a política educacional em Timor Português era precária”, parecia que por esta razão, nos anos de 1970, a autoridade colonial da província de Timor acentuava a sua política à educação, para que este território alcançasse os surtos de progresso já observados noutras parcelas de Portugal de então. É interessante registar o testemunho de François Etienne Rosely, comandante de um navio francês que em 1772 aportou a Timor. Naquela ocasião visitou as localidades de Lifau e Díli e outras zonas costeiras. De tudo quanto observou, disse: “quase todos os chefes falam Português e nos reinos vizinhos dos portugueses é a língua geral [...]. Conheci alguns muito sensatos, espirituais, engenhosos, sinceros e de boa-fé, entre os quais um, muito versado na história da Europa” (apud Thomaz, 1994:645). É curioso perceber que, 229 anos volvidos, um emérito linguista australiano dá testemunho idêntico nos seguintes termos: “o maior legado civilizacional dos portugueses – e dominicanos – no arquipélago foi, sem dúvida, a criação de numerosas comunidades crioulas, especialmente nas Flores, Solor e em Timor. Como seria de esperar, estas comunidades são católicas, os nomes e apelidos foram aportuguesados e a Língua Portuguesa pode ter sido falada” (Gunn, 2001:17). Compreende-se, deste modo, que a Língua Portuguesa era falada intencionalmente desde 1738 por aqueles que frequentavam as primeiras letras nas escolas dos missionários dominicanos. E foi no tempo do governador Afonso de Castro, em 1863, que se desenvolveram medidas de fomento da agricultura, artesanato e comércio, e ainda uma reorganização administrativa e a fundação de um colégio para os filhos dos liurais, embora não se tivesse completamente chegado aos filhos do povo. A propósito, dizia José dos Santos Vaquinhas (1883:489): “Há em Dilly somente uma escola de instrucção primária sustentada 111

pelo governo, um collegio de irmãs de caridade sustentado pela missão, e uma outra escola dirigida pelos missionários na sua residência de Lahane, e são estas casas de educação que existem em Timor, o que é pouco para um paiz com uma população de 2.000.000 de almas, e entre os quase não haverá mais de 500 individuos que saibam ler e escrever. […], seria necessário, e mesmo indispensável, haver duas escolas em cada reino, uma para o sexo masculino e outra para o feminio[…] seriam portanto necessários noventa e quatro professores de instrução primária para ambos os sexos”. Não é possível precisar com rigor a percentagem dos timorenses que sabiam falar e escrever na época da presença portuguesa, desde 1916 até 1975, visto que a maioria da população era analfabeta e a percentagem rondava entre 90 a 95% de analfabetos, registandose apenas 5 a 10% os que sabiam falar, ler e escrever em Português; no entanto, havia mais pessoas que falavam regularmente, apesar de não terem frequentado a educação formal. Assim, podemos dizer que 15 a 20% da população de Timor entendiam e falavam o Português. A situação alterou-se na década de sessenta, em especial nos primeiros anos da década seguinte, em que houve um aumento significativo da escolaridade, com a criação de escolas por todo o território, na tentativa de alfabetizar toda a população e consolidar a língua camoniana. Mas o programa de escolarização foi bastante lento, o que explica a débil percentagem de 28%, em 1970, de crianças a frequentarem as escolas, número que ascendeu para 51% em 1972 e para 77% em 1973-1974 (Thomaz, 2002)78. É por isso que o Português tem sido falado por uma minoria de assimilados, como língua de escola, da administração, imposta na fase da colonização, mas, e sobretudo, pelos cristãos, como língua da religião. Em última análise, o conceito ‘assimilado’ foi desenvolvido em 1930 pelo Estado Novo, que dividia os habitantes de Timor Português em duas categorias: os “indígenas (nativos não assimilados) e não indígenas, incluindo mestiços (brancos) e assimilados (nativos assimilados). Para adquirir o estatuto de assimilado, e a consequente cidadania portuguesa, um timorense tinha que falar Português” (Taylor, 1993:41). Era a estratégia da autoridade colonial (Pinto, 2010:11) para consolidar o Português em todo o território de Timor que, na maioria das vezes, não foi bem aplicada no terreno com o propósito de evitar a criação de um verdadeiro movimento de libertação nacional.

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No ano lectivo de 1972/1973, o número de escolas primárias em funcionamento ascendera a 393 (com 110 professores e 62.333 alunos), subindo ainda até 1975. Após a invasão indonésia desceu para 47, só no período de 1982-1984 voltou a ultrapassar os níveis de 1972-1973, em que havia em funcionamento 400 escolas; o seu número veio a atingir as 709 no período 1994-1996. Assim, em 1997, a taxa de analfabetismo descera de 93,42% da população total para 60%, correspondendo a diferença, como se poderia escapar, a indivíduos alfabetizados em malaio (Thomaz, 2008:417).

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Releve-se, a importância das missões no que diz respeito aos estudos linguísticos e à divulgação da Língua Portuguesa no seio da sociedade timorense entre a elite local e da relação entre a ‘Coroa Portuguesa’ e a ‘Coroa dos Reinos Timorenses’, designadamente à “habilidade para cimentar […] e […] impor um sentido de aliança partilhada entre aliados inconstantes (Gunn, 2001:21), reforçando uma política de equilíbrio civilizador colonial pelo consenso e pela cooptação, do que resultava uma concessão de alianças subjacentes à formação de uma “identidade lusitana imaginária” em Timor que, na maioria das vezes, estava sempres presente nas declarações e nos discursos dos governadores, militares, funcionários públicos, dos missionários e da equipa da Missão Antropólogica de Timor (Paulino, 2011c; Paulino, 2011e).

4.3. A proibição da língua portuguesa e a imposição da bahasa indonésia A longa duração do convívio timorense com os portugueses foi marcada pela afirmação da sua identidade. Durante 450 anos, estes dois povos estabeleceram uma amizade natural ou intercâmbio de valores culturais e até a aprendizagem dos usos e costumes, sobretudo o uso dos vocábulos da Língua Portuguesa. Porém, em 1975, os timorenses foram surpreendidos por uma invasão pela Indonésia, e tiveram de sobreviver com o que tinham na altura. Foi assim que tudo foi posto à prova, sobretudo as vidas e os valores culturais (Felgueiras, 2001:44). A partir de Dezembro de 1975, as autoridades indonésias submeteram os timorenses à aprendizagem do novo idioma chamado bahasa indonésia e aqueles que fossem apanhados a falar Português teriam sido advertidos e, se infringissem as regras, seriam possivelmente castigados. Sendo assim, os timorenses escolarizados em Língua Portuguesa (durante a administração portuguesa) continuaram a todo o custo a proteger uma parte física desta (os livros). “Os livros eram escondidos, enterrados, à espera de melhores tempos. Em geral o livro não sobrevivia enterrado, mesmo dentro de sacos de plástico. Era com tristeza que se ouvia o timorense a lamentar que os seus livros tinham apodrecido” (Felgueiras, 2001:48). A herança lusitana deixada pelos últimos governadores portugueses foi abolida por completo, sem restrições e com proibição do ensino do Português em todas as escolas, substituindo-o pelo ensino indonésio. A implantação de um novo modelo linguístico consistiu na imposição da língua indonésia (variante do malaio) como língua de escolarização e de administração, diminuindo o uso do Tétum e proibindo o uso do Português ((Matan-Ruak, 113

2001; Hull, 2001b); Brito & Martins, 2004). A ocupação indonésia em Timor-Leste teve um papel dissolvente, isto é, ao substituir o Português (língua de cultura da elite timorense desde o século XVI) no ensino e na administração pela língua indonésia provocou uma ruptura com um passado já secular e criou um fosso entre gerações educadas num e noutro idioma (o que equivale, de certo modo a dizer, numa e noutra cultura (Thomaz, 2008:416). Nos finais de 1979, o governo de Jacarta manifestou a sua intenção de impor gradualmente o uso da bahasa indonésia, que foi declarada língua oficial no território79. Introduziu-a, deste modo, nas escolas e nos outros sectores administrativos até ao fecho do ensino da Língua Portuguesa em 1992, no Externato de S. José, em Balide80. Com o alargamento do indonésio no sistema escolar patrocinado por Jacarta, criou-se uma nova geração de jovens timorenses com grande fluência em língua indonésia, por meio desta, acederam ao mundo para lá do território indonésio. A bahasa indonésia não foi uma língua de comunicação interna entre os timorenses, mas foi uma das línguas importantes para os timorenses que frequentavam a vida académica, embora alguns estudantes desistissem dos seus estudos por não a compreenderem bem81. Existem, pelo menos, uns dois mil estudantes, dos quais muitos desistiram, não tanto por dificuldades da língua, mas mais pelo clima social intolerável (Pinto, 2010:14). Apesar de tudo, bem ou mal, a Indonésia deixou muitos timorenses formados em diversos campos de saber nas universidades indonésias. Em 1976, o ensino primário registava cerca de 13.500 alunos; em 1998, cerca de 165.000 alunos. Nestes mesmos anos, o ensino pré-secundário registou, respectivamente, 315 alunos e 32.000 alunos; e o ensino secundário 64 e 14.600 alunos (The World Bank, 2004:4). Para ganhar a simpatia da população timorense, as autoridades indonésias abriram escolas primárias e secundárias em todo o território. Os professores eram maioritariamente indonésios e a sua colocação foi uma estratégia para acelerar o processo de socialização da língua indonésia e a indonesialização dos Timorenses. O Relatório do Banco Mundial “Timor-Leste Education – The Way Forward”, de Dezembro de 2003, destacou que 20% dos

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Para a consolidação do Bahasa Indonésia, o governo central de Jakarta, através do Ministério de Educação, enviou os professores especializados nesta língua a Timor-Leste. 80 Embora o uso do português tivesse sido proibido ostensivamente pelo regime indonésio nas escolas, logo a seguir à libertação ergue-se fervorosamente no território. “A experiência de ensinar a língua portuguesa no tempo da ocupação era mais discreta [e muito arriscada]. Anos antes do referendo, veio a demonstrar-se vigorosamente que a ‘semente’ da Língua Portuguesa esperava no coração do povo, das crianças e dos jovens o momento para germinar” (Felgueiras, 2001:44). 81 As estatísticas oficiais indonésias indicam que o número de falante da Bahasa Indonésia aumentou significativamente em 1976, quase ninguém falava esta língua, mas quatro anos depois (1980) já se encontravam pelo menos 30% falantes deste idioma, e, em 1990, quase chegava a 50% e a 56% em 1998 (Mendes, 2005:321).

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professores primários e 90% dos professores secundários não eram timorenses; os quadros técnicos, profissionais e administrativos eram ocupados também por indonésios. É preciso recordar que, antes da invasão indonésia, a imagem da FRETILIN teve uma popularidade crescente nas zonas rurais do território com propostas reformistas nas áreas da agricultura e da educação82. Um dos aspectos mais curiosos desta acção foi o lançamento do programa de ‘alfabetização’ dos timorenses como principal sector do desenvolvimento de um Timor-Leste independente, seguindo o método de Paulo Freire, lançando um livro de leitura de língua tétum, sob o título Rai Timur Rai Ita Niang (Timor é a nossa terra). Logo na primeira página destacava-se a ideia de identidade nacional: “Timor é a nossa terra. Há muito tempo que o colonialismo se instalou na nossa terra porque os nossos antepassados lutavam uns contra os outros. Todos os timorenses se vão unir para governar a sua terra” (Hill, 1978:134; Mendes, 2005:300). Entretanto, a ideia de timorização educativa promovida pela FRETILIN era para valorizar a cultura local e reafirmar a identidade timorense como uma Nação. Mas o programa não foi realizado com sucesso devido à invasão da Indonésia. Desde então, o projecto educativo timorense foi promovido pela Igreja Católica como instituição.

4.4. Língua Portuguesa e Resistência Timorense A Língua Portuguesa foi usada pelos líderes da Resistência contra a dominação estratégica e política do regime indonésio. Como argumenta Luís Costa (2001:60): “Os espíritos críticos podem afirmar que o Português é a língua colonial, língua do poder que durante séculos deixou o povo na ignorância, mas foi através da língua de Camões que o mundo teve conhecimento da história da luta, dor e sofrimento da resistência timorense, foi esta mesma língua que fez os corações portugueses sentirem orgulho quando ouviram os jovens no cemitério de Santa Cruz rezarem a Ave-Maria”. Do ponto de vista afectivo, lembramos que o Português foi a língua da resistência e o veículo de comunicação clandestina nos períodos conturbados da guerra pela libertação (Paulino, 2009:52; Paulino, 2011a); era uma das armas para contrapor à língua malaia no âmbito da luta cultural (Matan-Ruak, 2001:41), e que se tornou como uma arma eficiente de defesa e de resistência desde 1975, tendo sido o Português visto deste modo como poderosa arma cultural. Foi escrito e falado por guerrilheiros que lutavam nas montanhas e jovens 82

A este respeito, Ramos-Horta (1994:122) destacava que “a FRETILIN contribuiu mais activamente no processo de reforma do ensino, tendo lançado a sua própria campanha de alfabetização que não era senão parte inseparável da nossa estratégia de mobilização política”.

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estudantes que lutavam nas cidades, e alguns deles nem chegaram a aprender a ‘língua indonésia’. Apesar das constantes deslocações forçadas das populações postas em prática durante algum tempo pelos indonésios, as línguas locais – Mambae, Tokodede, Makassae, Bunak e outras – m mantiveram-se vivas. A luta cultural entre a Resistência Timorense e o regime indonésio foi uma ‘guerra de cultura’, em que, por um lado, os timorenses continuavam a defender os seus valores culturais (história, línguas, religião, crenças e costumes) e, por outro, a Indonésia queria impor e convencer os timorenses “acerca da sua identidade indonésia. Escusado será dizer que a História de Timor foi, sem transição, incorporada na História nacional da Indonésia” (Gunn, 2001:22). Isto reforçou o interesse dos timorenses pela valorização do Português como factor de unidade nacional contra o invasor. A Língua Portuguesa foi, assim, reforçada por um desejo de afirmação identitária timorense e, simultaneamente, “conseguiu-se cultivar o ensino desta língua mesmo nos piores tempos das perseguições da Indonésia” (Pinto, 2010:18), utilizando todos os recursos disponíveis para preservar esta língua e ensinando-a secretamente aos adultos. Neste âmbito, desde o início da luta (segundo o estatuto do CNRT), “a língua oficial de Timor-Leste sempre foi o Português, quer no mato, quer na diáspora, quer na clandestinidade, que ligava as outras duas frentes da resistência (a armada e a diplomática) ” (Corte-Real & Brito, 2007:124). Embora a maioria dos timorenses não domine nem utilize o Português como língua de comunicação, continuam a valoriza-lho como “elemento ancestral e integrado na cultura e identidade nacional” (Hull, 2001:37), porque na situação conturbada da luta pela autodeterminação, os dirigentes da Resistência e até os jovens patriotas agarraram-se ao passado. Esta atitude só veio mostrar que, embora os portugueses tivessem feito poucas coisas em Timor, “houve séculos de vida comum, de seguimento das mesmas leis, da mesma fé e da mesma língua” (Felgueiras, 2001:45), por isso, “A reintegração e a consolidação da Língua Portuguesa constituem um dos pilares fundamentais da nossa existência como povo” (Pinto, 2010:29).

4.5. Reintrodução do Português como símbolo de reafirmação da identidade nacional A oficialização da Língua Portuguesa foi sempre uma decisão política e, deste modo, é considerada uma língua de poder, dado que a sua utilização em Timor-Leste ocupou sempre uma posição dominadora, embora não seja falada pela maioria dos timorenses. Sabemos que

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ela é uma língua do colonizador, mas depois da Restauração da Independência, em 20 de Maio de 2002, foi escolhida pelos representantes do povo de Timor na Assembleia Constituinte, tendo-se-lhe atribuído o estatuto de língua oficial83. Escreve Maria L. Garcia Marques (2005:607): A língua oficial (ou as línguas oficiais), cuja escolha depende de razões políticas, deve ser a língua utilizada em todos os actos do poder público estadual, quer de direito externo (tratados e convenções internacionais), quer de direito interno (Constituição, leis ordinárias, actos políticos, sentenças judiciais, actos administrativos, discursos oficiais, etc.). Já é mais duvidoso se os cidadãos, quando se dirigem aos órgãos do poder público (v. g., através de requerimentos, petições, representações), têm também de usar a língua oficial ou se podem utilizar outra que seja objecto de reconhecimento, como, por exemplo, uma língua nacional.

De facto, o estatuto atribuído pelos representantes do povo timorense na Assembleia Constituinte em 2002 é uma decisão que reforça a necessidade de intercompreensão e de comunicação internacional, de modo a poder levar a imagem de Timor-Leste aos fóruns internacionais. Foi por isso que os políticos decidiram manter o Português pela sua função veicular, a fim de poder ser uma arma do Estado timorense na fundamentação das relações externas com diversos países do mundo. Como tal, a importância do Português, como língua oficial, e pelo seu “valor universal concebido pela dimensão cultural, social, científica e histórica nas confluências de civilizações, constitui reconhecidamente alicerces fundamentais na identificação da vida da nação timorense e do seu Estado” (Pinto, 2010:41); ao mesmo tempo, o papel do Português como língua oficial é justificado pela UNESCO (nas ‘Notes Statistiques’, Julho de 1992) no sentido de utilizá-la no quadro das actividades oficiais – legislativas, executivas e judiciais – de um Estado soberano. É a mesma linguagem jurídica que se vê na Constituição de um país sobre o estatuto que dá à língua oficial por exemplo, quer na Constituição (v. g., o nº 3 do artigo 11º da Constituição da República Portuguesa e o artigo 13º da Constituição de Timor), quer por lei ordinária, quer apenas por via do costume (Marques, 2005:607). Desde a proclamação da independência da República Democrática de Timor-Leste em 1975, o líder carismático da resistência timorense, Nicolau Lobato, afirmou que o Português 83

Uma língua não assume apenas como língua oficial e língua de comunicação quotidiana, mas assume também a funsão como meio de instrução. No caso de Timor-Leste, por exemplo, sendo o Português língua oficial deste país, é-lhe atribuído também outro estatuto – o de Língua de Escolarização ou Língua de Instrução –, a par do Tétum como instrumento de comunicação, de acesso ao conhecimento e exercício da cidadania (Ver a Lei de Bases do Sistema Educativo, Ministério da Educação, Cultura, Juventude e Desporto, Díli, s.d., - alínea a, do nº 2, Artigo 15º). Entende-se, desta forma, como língua de instrução/escolarização a língua veicular de acesso aos conhecimentos das outras disciplinas, ou seja, aquela em que os alunos têm de compreender, reter e aplicar os conceitos das diferentes disciplinas do currículo.

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era a língua nacional de Timor-Leste. Este líder percebeu que a situação linguística da sociedade timorense se caracterizava, grosso modo, pelo pluralismo linguístico, que, aparentemente, é um dos problemas na formação do sentimento nacional, sem se ignorar que o Tétum já foi considerado elemento unificador das diversas línguas timorenses. Não podendo, porém, ignorar também que o Tétum poderá vir a ser um elemento de extermínio das outras línguas. Para que isto não aconteça, é necessário que as crianças tenham contacto regular com as línguas maternas dos seus ascedentes, cabe também aos investigadores da área linguística, nomeadamente, a equipa do INL-UNTL (Instituto Nacional de Linguística da Universidade Nacional Timor Lorosa’e) desenvolver estudos na área destas línguas. A língua é um factor de identidade e um dos instrumentos mais importantes da herança cultural de um povo. Em 2000, numa conferência em Díli, em que se debatia a questão da língua oficial de Timor, Geoffrey Hull (2001b:39) afirmou: Parece-me que o papel central da língua portuguesa na civilização timorense é completamente inquestionável. Em poucas palavras, se Timor-Leste deseja manter uma relação com o seu passado, deve manter o Português. Se escolher outra via, um povo com uma longa memória tornar-se-á numa nação de amnésicos, e Timor-Leste sofrerá o mesmo destino que todos os países que, voltando as costas ao seu passado, têm privado os seus cidadãos do conhecimento das línguas que desempenharam um papel fulcral na génese da cultura.

Nesta transcrição entendemos que a existência da história passada ainda tem relevância no presente, isto é, a história passada, presente, e seguramente reafirmada no futuro pelas gerações vindouras de Timor-Leste, irá claramente reforçar profundos laços entre as culturas timorense e portuguesa (e não só, entre outras) no território. Este vínculo histórico e cultural é reforçado, de uma forma mais profunda e sólida, através da comunhão com a Língua Portuguesa, uma vez que esta comunhão pode dar um contributo significativo para a construção do jovem país, com a visão, para além do aspecto linguístico, sobretudo histórica e cultural84, pois sabemos que um país pode ter maior influência no exterior através destes 84

É reconhecido o papel significativo do Português na génese da identidade cultural e pessoal dos timorenses por se tratar de uma língua falada por 11% da população. Foi, sobretudo, a língua da resistência, a língua de celebração do culto até 1980 e, graças também à Igreja, a língua de toda a escolaridade até 1992. O Português é também a língua dos nomes próprios de 98% dos timorenses e dos apelidos de 70%. (ver Maria José Allbaram Carvalho, 2001). Noutra circunstância, Avelino Coelho, em entrevista à Lusa em Junho de 2007, afirmou que a “Presença portuguesa em Timor-Leste é uma farsa”, porque “os líderes timorenses ‘mentem’ a Portugal sobre a língua oficial” e “não foram sincerso com Portugal e apostaram no cavalo errado”, “Se fossem sinceros e se quisessem mesmo a língua portuguesa em Timor-Leste, cinco anos depois da independência já teríamos todas as escolas primárias com o ensino do português e já teríamos uma lei exigindo que quem investir em Timor fale e escreva em português”. Quanto a contribuição de Portugal para o desenvolvimento de Timor-Leste, Avelino Coelho afirmou ainda que a antiga potência colonial “fez aquilo que podia fazer, os timorenses é que não souberam aproveitar este apoio”, porque os líderes timorenses “vão para Portugal com discursos satisfatórios,

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enlaces fundamentais. Contudo, a escolha de uma língua em função de um património nacional e de uma figura representativa da nação “deve possibilitar a expressão de qualquer ideia, de qualquer realidade: das mais antigas às mais modernas, das mais abstractas às mais concretas. Deve ser um espelho da nação e mostrar que é tão grandiosa como as outras. Deve confundir-se com a nação – enraizar-se nas suas profundezas históricas, possuir as marcas do povo” (Mendes, 2005:320). A Língua Portuguesa é uma das línguas mais faladas nos cinco continentes do nosso planeta, incluindo Timor-Leste. A sua implementação em Timor é como um símbolo de pertença identitária, na qual ela se transforma numa arma eficiente de defesa, de resistência e de coesão nacional, como foi sintetizado pelo líder Nicolau Lobato: “Nós escolhemos como língua nacional de Timor-Leste a Língua Portuguesa”, sobre o qual líder o padre João Felgueiras (2001:46) esclareceu que, “Passados quase 4 anos, Nicolau Lobato tombava heroicamente em luta, como num altar, nas altas montanhas de Timor. Consigo levava sempre o Crucifixo. A cultura, a fé, a comunidade que se criou em quatro séculos explicam muito o mistério da epopeia de Timor Lorosa’e. É necessário que os adultos não o esqueçam e que a verdade seja dita aos novos”. O contacto das culturas e o intercâmbio linguístico entre timorenses e portugueses é inquestionável na afirmação da identidade nacional, pois “o Português é, desde há quase meio milénio, o veículo de uma presença cultural que condicionou profundamente tanto as relações externas do espaço timorense como a sua própria individualidade étnica: não é de presumir que possa vir a ser levianamente alijado por qualquer político autenticamente representativo do povo de Timor” (Thomaz, 1994:665). Pode dizer-se, portanto, que a história colonial portuguesa é um elemento que influiu na especificidade timorense mais do que qualquer outra história da região vizinha. Pode ainda dizer-se que esta especificidade foi reforçada pelo contributo da cultura portuguesa, da qual emergem a religião e a língua como os legados mais importantes na vida quotidiana timorense. São estes elementos que mais a diferenciam da cultura javanesa. Apesar de uma luta que durou vinte e quatro anos, o povo timorense continuou a manter esta identidade significativa. Nesta perspectiva, a razão pela qual os representantes do povo de regressam e não conseguem satisfazer o povo” – fonte: http://www.dnoticias.pt/actualidade/mundo/171308presenca-portuguesa-em-timor-leste-e-uma-farsa (consulta a 15/5/2012). A declaração de Avelino Coelho mostra o facto ainda pertinente para se aplicar a realidade actual de Timor-Leste, que, já passaram dez anos da Restauração da sua independência, os líderes timorenses, nomeadamente, aqueles que assumem o poder, continuam a fazer discursos indefinidos sobre a função do português como língua de escolaridade. É o caso da política de implementação das línguas maternas nas escolas, planeada pela equipa de Kirsty Sword Gusmão e UNESCO com o conhecimento do Ministério da Educação.

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Timor-Leste escolheram o português como língua oficial, foi uma forma de reconhecimento cultural e histórico, percebendo, pois, a presença da religião católica e a língua portuguesa de 450 anos, garantem a Timor a sua especificidade e o seu lugar privilegiado na região e no mundo. Portanto, se não tivesse existido uma forte ligação com Portugal e outros países lusófonos, Timor-Leste seria ‘invadido’ pela ‘cultura anglófona’ e seria relegado para o lugar não muito honroso de um pequeno jardim zoológico artificial construído pelo governo australiano ou manter-se-ia a predominância da língua indonésia, que, seria eternamente uma colónia cultural wayang (Ramos-Horta, 1994:319). Os representantes do povo timorense, na Assembleia Constituinte de Timor-Leste, tornaram claro que a escolha do Português como língua oficial é um elemento essencial e indispensável da sua identidade nacional85, não apenas pelo facto de o Português ter sobrevivido à perseguição das autoridades indonésias, mas, sobretudo, porque foi a língua da resistência, de modo a diferenciar os timorenses dos indonésios. Foi-lhe atribuído o estatuto de língua oficial, tornando-se também parte integrante da cultura nacional do Estado-nação Timor-Leste, ao contrário do holandês, que desapareceu completamente da Indonésia depois da proclamação da sua independência. Por isso, “a perspectiva de escolha da Língua Portuguesa foi uma opção concertada para a perspectiva futura da identidade nacional timorense, com a especial referência à linguagem e à cultura impondo fronteiras e designações” (Gunn, 2001:18). A escolha da Língua Portuguesa como língua oficial permite estender o zelo pela conservação da diversidade linguística, evitando-se que a nação fique mais pobre pela perda de qualquer das suas línguas antigas, igualmente uma importante arma que o torna parceiro indispensável e ponte de ligação entre Timor e as outras nações vizinhas e mesmo entre continentes. É por isso que as autoridades timorenses consideram o português como língua universal de Timor-Leste, caracterizando-o como uma instituição genuinamente ‘nacional’ (Hull, 2001a:88), não apenas em função do grande enraizamento da herança histórico-cultural que liga timorenses e portugueses, e tomam uma decisão político-estratégica, estão a assinalar a identidade nacional timorense diante dos países do Sudeste Asiático e Oceânia, nomeadamente da Indonésia e da Austrália.

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Como prova disso, a Assembleia Constituinte de Timor-Leste “de 88 membros decidiu, por 80 votos a favor, 3 abstenções, e nenhum voto contra (5 deputados estavam ausentes) escolher o português e o tétum como as duas línguas oficiais de Timor-Leste”. Cf. António Barbedo Magalhães (2007), Timor-Leste: interesses internacionais e actores locais, volume III – a difícil construção do Estado democrático, 1999-2007, Porto: Edições Afrontamento, p.657.

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5. Considerações finais A língua pode evoluir sem uma ruptura com a sua originalidade cultural. Certas línguas têm espaço para adaptações transculturais e comunicacionais, e não podem, realmente, ser parte de qualquer cultura. Além disso, muitas línguas são utilizadas por diferentes culturas, isto é, a mesma língua pode ser usada em várias culturas, como é o caso da língua portuguesa, que exerce a função de língua oficial da CPLP (Brasil, Portugal, Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné Bissau e Timor-Leste). Pensar as condições da existência de Timor-Leste enquanto Estado coloca-nos perante um processo que aponta para as múltiplas identidades linguísticas que atestam a capacidade dos políticos timorenses na escolha das línguas oficiais. É, pois, notório que a escolha de uma língua para a ser classificada como língua oficial não é uma tarefa fácil. Mas foi ultrapassada pelos políticos timorenses com a atribuição do estatuto de línguas oficiais de Timor-Leste ao Tétum e ao Português. Assim, “o fenómeno de aculturação de séculos veiculada pela Lingua Portuguesa e pela Religião, plasmada por normas e do Direito da matriz civilista ou continental, pujante de manifestações, de cultura, arte e conhecimentos que remonta séculos de existencia, fez de Timor-Leste a moldura cultural de referência” (Pinto, 2010:41), porque o português era dos “segmentos instruídos nas camadas urbano-cristianizadas do país” (Fonseca, 2010:10). Percebemos que existem profundas diferenças verificadas entre línguas como o Tétum, Bunak, Makasae, Kemak, Mambae, Fatuluku, Baikeno, Tokodede e Galole, donde podemos concluir que cada língua tem um vasto sistema diferente dos outros no qual são ordenadas culturalmente. Assim, cada língua analisa diferentemente as experiências não-linguísticas do mundo circundante: por exemplo, um indivíduo que aprende a língua e a cultura é simultaneamente está inserido num grupo social, conforme a hipótese do relativismo linguístico. Vimos, ainda, que a Língua Portuguesa em Timor-Leste representou o fio condutor da Resistência timorense na luta contra o domínio indonésio no território. Sabemos também que, nos textos oficiais e na imprensa, o Português era conhecido como ‘língua de cultura’, e que desde sempre influenciou as línguas locais. Hoje, o Português é considerado uma manifestação simbólica da identidade nacional timorense, e a sua existência está patente nos ensaios literários de alguns autores timorenses mais conhecidos, como Francisco Borja da Costa, Pe. Jorge Barros Duarte, Xanana Gusmão, Fernando Sylvan, Luís Cardoso. Contudo, lembramos que, seja qual for a ideia expressa poeticamente em Português pelos referidos 121

poetas e escritores, como uma forma de afirmação da identidade cultural timorense, é necessáo salientar que “deverá estar sempre presente no hipotético leitor que ela é, ou será, apenas uma das literaturas possíveis de expressão tétum ou mambae ou macassae ou de qualquer expressão conforme com a do grupo etnolinguístico local sobrevivente à ocupação militar indonésia” (Marcos, 1995:92). É óbvio que Timor-Leste escolha a Língua Portuguesa, tendo em vista a formação de alianças estratégicas, políticas e diplomáticas, inclusive históricas e culturais. Tem-se a percepção de que se trata de um elemento identitário em que os timorenses devem apostar, com vista à preservação desta língua no seu país, uma língua que tem história própria de laços luso-timorenses, desempenhando ao mesmo tempo um papel importantíssimo num Mundo cada vez mais globalizado. Pensamos também que, para o desenvolvimento de Timor-Leste, não é pertinente a criação de um novo sistema, mas deve-se investir no desenvolvimento das competências linguísticas e comunicativas na Língua Portuguesa (com inclusão dos “desvios” aceites a nível geral) e na língua Tétum e outras línguas maternas, reconhecidas pela Constituição do país com o estatuto de línguas nacionais. Numa lógica de ensino de línguas não maternas a qualquer grupo étnico timorense, é necessário conhecer muito bem as necessidades reais dos jovens formandos, explicando-lhes a matéria de forma simples, e porventura intensiva, a fim de se poder oferecer-lhes a língua na medida certa. O governo e, sobretudo, os professores devem explicar adequadamente aos alunos a função da Língua Portuguesa enquanto elemento da identidade nacional timorense, pois ela é o recurso principal da comunicação com o mundo exterior. Devem, ao mesmo tempo, encorajá-los a não se esquecerem da sua língua materna e a preservarem-na, já que faz parte do património linguístico e cultural de Timor-Leste.

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Segunda Parte Imprensa católica e imprensa do governo colonial

A acção desenvolvida no interior do sistema político é regida por um conjunto de regras e leis, sendo o poder político exercido numa ‘ordem’ que integra as relações sociais entre agentes com diferentes recursos e posições. Como conjunto de processos de decisão que dizem respeito à totalidade de uma sociedade global, comporta, à semelhança de qualquer sistema, entradas, ou inputs, e saídas, ou outputs, sendo condicionado o seu funcionamento pela necessidade que o poder político tem de emitir soluções adequadas às necessidades ou exigências que as entradas no sistema evidenciam. Estas podem advir do contexto interno, dos vários subsistemas da sociedade a que respeita, como o económico e o cultural, ou do contexto externo, isto é, de sistemas sociais de outras sociedades. Em termos orgânicos, o sistema político engloba diferentes instâncias interdependentes – centrais e locais –, cuja interrelação depende da circulação de informação (Gouveia, 2009:150). A imprensa periódica, como meio informativo, funciona, em princípio, aos dois níveis: dissemina a informação sobre os actos políticos (os outputs), tornando-os públicos, e colige o feedback que aqueles suscitam na opinião pública (inputs), materializando-o. Efectivamente, desde meados do século XIX, os jornais começaram a desempenhar o papel de transmitir a notícia e a publicidade como “o principal mecanismo de um universo em que os negócios públicos tinham saído do segredo das cortes para a praça pública por onde passava o povo soberano [...], o espaço público em que a sociedade e o Estado existiam” (Ramos, 1994:52:53). Neste contexto, é necessário abordar já o nosso principal tema: a imprensa católica e imprensa do governo colonial de Timor. Como sabemos, só em finais do século XIX (1877), o vigário-geral, Pe. António Joaquim Medeiros (mais tarde bispo de Macau), disponibilizou uma pequena impressora, donde saiu o opúsculo de Raphael das Dores, Como se adquire a fama ou a história de um caluniado. No entanto, até 1900, não há notícia da produção de jornais ou da edição de livros, embora existisse uma pequena delegação da Imprensa Nacional, criada em 1899, incumbida de produzir o Boletim Oficial e alguns impressos necessários aos serviços da administração colonial. No que diz respeito à imprensa periódica em Timor, o primeiro jornal apareceu tardiamente, pois, após a separação de Timor na jurisdição de Macau, em 1896, tornava-se indispensável a publicação de um boletim informativo destinado à divulgação das medidas 123

legislativas governamentais e da administração distrital. Assim, no início do século XX, surgiu o Boletim Oficial do Distrito Autónomo de Timor, cuja primeira edição data de 6 de Janeiro de 1908. Porém, devido ao estatuto político-administrativo colonial, Timor deixou de ser distrito autónomo para passar a denominar-se província. Como consequência disto, o Boletim Oficial também mudou de título, passando a chamar-se Boletim Oficial da Província de Timor. Alguns anos depois, voltou a denominar-se Boletim Oficial da Colónia de Timor. Em boa verdade, a imprensa periódica só apareceu em meados de 1912, com a publicação periódica do Boletim do Comércio, Agricultura e Fomento de Timor (de 1912 até 1920). Todo este défice de imprensa foi, de alguma forma, suprido pelo recurso às oficinas gráficas de Batavia. A simples ideia de capitalismo controlador da imprensa (print capitalism), avançada pela teoria de Benedict Anderson, aparece assim, como uma realidade no mínimo exótica, pois de facto, antes de 1860, não havia nenhuma publicação quer de livros quer de folhetos sobre Timor e, desde então até ao final do século XIX, encontravam-se apenas algumas publicações de menor escala, e os estudos saídos em revistas e artigos nos jornais também não abundavam muito, porque o governo colonial não promoveu nenhuma estratégia para a política de divulgação de informação, como escreveu Carlos Cal Brandão (1953:151): Timor era uma província que Portugal não interessou tanto, uma terra que os portugueses ignoraram com implantação das doutrinas “sou senhor de tudo e você é o meu escravo”. Assim, era a gente de Timor conhecia e assim se vivia na palhaçada política “divide et impera”, onde não havia uma distracção ou estímulo, nem um jornal nem um cinema. Os periódicos portugueses, gastando quarenta e cinco dias na viagem, chegavam atrasados e sem interesse, e as estações nacionais de T.S.F. só eram audíveis às três e quatro horas da madrugada, um pouco tarde para tais devaneios.

As condições precárias de divulgação de conhecimento jornalístico e sobre o conhecimento em diversas áreas do saber que Timor enfrentava naquela época, foi uma falta de iniciativa política do próprio Ministro do Ultramar, porque as sucessivas alterações administrativas e a qualidade dos governos da primeira década do século XX foram muito desiguais, como comenta o capitão José Simões Martinho (1943:84) que “um ou outro governo não esteve à altura da sua missão”, por isso, Justino Teixeira (1935) caraterizava Timor como uma “ilha esquecida”. No que diz respeito aos autores de artigos publicados em revistas e nos jornais, não seremos capazes de dizer que “os melhores valem em função do conteúdo das obras e não tanto pelo brilho da sua escrita. Quase todos eram missionários (os primeiros, dos estudos

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linguísticos) e os outros, militares. Até cerca de 1930, quando os estudos sobre Timor ganharam maior alento, o panorama não melhorou consideravelmente. Só melhoraria na sequência da ocupação japonesa, tão trágica, mas que fez com que Timor finalmente deixasse de ser, no ultramar português, a parcela eternamente esquecida: as monografias históricas e científicas multiplicaram-se, a sua qualidade subiu no mesmo ritmo”86. A imprensa em Timor-Leste, antes da invasão Indonésia em 1975, resumia-se ao seguinte: “em primeiro lugar, os editores dominam a língua de Camões; em segundo lugar, o público leitor/consumidor sabia ler e se interessa pela leitura para a interpretar conveniente e objectivamente; em terceiro lugar, para escrever e publicar são necessárias condições da sua efectiva exequibilidade” (Pires, 2001:136). Se observarmos bem o período da colonização portuguesa em Timor, desde a chegada dos missionários (século XVI) até à década de 50 do século XX, “os ‘letrados’, excepção feita aos missionários católicos e a alguns funcionários da administração colonial em Timor, eram quase nulos” (Pires, 2001:136). Embora existissem alguns homens cultos (Carlos Cal Brandão – autor de Funu: Guerra em Timor, publicado em 1946, pela Porto Editora; e Alberto Osório de Castro – autor do livro A ilha verde e vermelha de Timor, publicado em 1943, pela Agência-Geral das Colónias) que queriam desenvolver a actividade cultural de revelo na área de comunicação, não podiam fazê-lo, porque não havia condições objectivas e materiais para o efeito. Os anos 40 do século XX foram períodos de grande “explosão da comunicação” no mundo (Breton & Proulx, 2000:19-23). Em Timor, foi só após a Segunda Guerra Mundial que a difusão dos meios de comunicação ganhou relevo, designadamente as emissões radiofónicas emitidas em 1950 pela entidade administrativa colonial. As informações difundidas em Português, Chinês e Tétum (principais comunidades ali residentes) tiveram início no ano de 1964, altura em que se terão legalizado cerca de 1229 radio-receptores (Gonçalves, 1968:353). Apesar do reduzido número de ouvintes timorenses que compreendiam o Inglês, esta emissora de radiodifusão transmitia as notícias nesta língua através da captação de ondas curtas em que se acedia à Rádio Austrália (Dunn, 1983:40). Os grandes periódicos surgiram a partir dos anos 50 e 60 do século passado, da Seara, em 1949, pertencente à diocese de Díli; do jornal A Província de Timor, destinado aos militares, cuja publicação teve início em 1964; e de A voz de Timor, a partir 1960, sob controlo do governo colonial.

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Estes dados foram encontrados no catálogo da Biblioteca Nacional de Lisboa, Timor do século XVI ao século XX, Maio de 1980, p.5.

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Capítulo 4 Seara – Boletim Eclesiástico da Diocese de Díli

1. Consideração prévia

A Igreja Católica defende, oficialmente, as formas de diálogos comunicacionais, tanto para o uso dos meios, no seu interior, quanto externamente. Além disso, pensa a evangelização como sua primeira missão, a qual expande a partir do diálogo comunicacional. De facto, a abordagem da comunicação no seio da Igreja Católica está decretada nos seus documentos oficiais, em particular, a partir do Inter Mirifica, do Concílio Vaticano II, nº 14. Há que fomentar, antes de mais, as publicações honestas. Ora bem, para imbuir plenamente de espírito cristão, os leitores deve criar-se e difundir-se uma imprensa genuinamente católica – quer da parte da própria hierarquia católica, quer promovida por homens católicos e dependentes deles – editada com a intenção de formar, afirmar e promover uma opinião pública em consonância com o direito natura e com as doutrinas e preceitos católicos, ao mesmo tempo que divulga e desenvolve adequadamente os acontecimentos relacionados com a vida da Igreja. Devem advertir-se os fiéis da necessidade de ler e difundir a imprensa católica para conseguir um critério cristão sobre todos os acontecimentos (Seara, 1966, ano1, nº1:6)87.

Por conseguinte, a comunicação é chamada social, no sentido em que ela é apta para estabelecer reacções entre grupos sociais e individuais, e isto em dimensões planetárias. A propósito, diz o Decreto “Inter Mirifica”, nº 1 do Concílio Vaticano II: Entre as maravilhosas invenções da técnica que, a santa Igreja acolhe e fomenta aquelas que dizem respeito, antes de mais, ao espírito humano e abriram novos caminhos para comunicar facilmente notícias, ideias e ordens. Entre estes meios, salientam-se aqueles que, por sua natureza, podem atingir e mover não só cada um dos homens mas também as multidões e toda a sociedade humana, como a imprensa, o cinema, a rádio, a televisão e outros que, por isso mesmo, podem chamar-se, com toda a razão meios de comunicação social.

Estes instrumentos de comunicação eram utilizados pelos religiosos, religiosas e leigos para promover a identidade católica de forma efectiva, pois, por meio dos media, aquelas instituições católicas fazem comentários e debates à luz dos princípios cristãos. Competialhes, ainda, comentar e, se necessário, corrigir notícias referentes à fé e à vida da Igreja. 87

O texto deste Decreto Inter Mirífica está disponível também http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/index_po.htm (consulta a 21/3/2012).

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em

Entretanto, já o Papa Pio XII reconheceu uma forte ligação entre a Igreja Católica e os meios de comunicação: “Países há em que se manifesta um zelo ardente pela imprensa católica, noutros está reduzida a bem pouco. Vivem alguns jornais, mas não os amparam. Não se lhes consagra o amor que eles deveriam merecer. Quando nos pedem uma bênção para os jornais damos sempre uma bênção especial para os assinantes que pagam” (Seara, 1966, ano 1, nº 24:8)88. O Papa acrescentava “um grande campo de apostolado é a multiplicação de leitura da boa imprensa em face do grande campo do mal que é a difusão da que nem sempre é boa e às vezes é péssima”, pelo que “Esclarecer, alimentar e elevar os espíritos e os corações é dever e honra da Imprensa e particularmente da Imprensa Católica” (Seara, 1966, ano 1, nº 25:4). A função da imprensa na história do homem “é de transcendente importância para a formação cultural dos povos, e no caso, a chamada imprensa católica tem a sua função específica quanto a imprensa em geral e insuficiente ou não corresponde àquilo que a igreja deseja” (Seara, 1969, ano 4, nº 151:6). O editorial da Seara de 1967 (ano 2, nº 53:1-8) afirmava que a informação noticiosa publicada no jornal católico “deve ser sempre verídica e completa, sem deixar de respeitar a justiça e a caridade, e assenta no primado absoluto da ordem moral sobre a arte e todas as manifestações humanas”. Acrescia que “o público é responsável pela moralidade dos meios de comunicação, em globo, tendo obrigação de encorajar os bons, evitar e reprovar os maus”. A imprensa católica, responsável pela divulgação da Boa Nova, expandiu-se pelos quatro cantos do globo. Naquela altura, fundou-se a “diffusion internationale catolique”, com sede em Genebra e um Bureau de correspondência em Roma. Tratava-se de uma associação de leigos católicos que se propunham difundir por todo o mundo a boa imprensa. A “diffusion internationale catolique” publicava mensalmente o seu ‘serviço de informações’ e organizava a bibliografia internacional católica, mais importante ainda, tinha uma rede internacional de postos difusores da boa imprensa, com o máximo de facilidades para traduções em várias línguas, dos melhores livros, especialmente dos que focavam assuntos missionários. É necessário salientar que, antes da Segunda Guerra Mundial, havia nos países de missões católicas, na Ásia, cerca de 434 periódicos católicos; na África, registaram-se 340 periódicos católicos e, nas missões da Oceânia, apenas 47. Porém, nalguns países de missões católicas, como na China Continental, registaram-se 162 periódicos católicos.

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Cf. Carta Enciclica Miranda Prorsus (1957) do Papa Pio XII, sobre a Cinematografia, a rádio e a televisão. O documento está disponível em http://www.vatican.va/holy_father/pius_xii/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc _08091957_miranda-prorsus_po.html (consulta a 21/3/2012)

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2. Seara: jornalismo católico em Timor A propósito do desenvolvimento da imprensa católica em Portugal e na Beira, Regina Gouveia (2009:52) salienta que a identidade da nação portuguesa em 1900 estava no conflito paradoxal entre a tradição de um país considerado “fervorosamente católico, intolerante e supersticioso, fanático e reaccionário” e um sentimento anti-clerical que dominou Portugal nas últimas três décadas do século XX, segundo qual a luta política entre as novas classes superiores perdurou até à formação do Estado Novo. O liberalismo triunfante havia apontado o clero como um dos seus principais alvos, retirando-lhe privilégios económicos, políticos e sociais que o poder monárquico lhe atribuiu. De acordo com Notícias da Beira, (edição de 31 de Julho de 1910, nº 304), a partir da década de 1850, estabeleceram-se no país algumas dezenas de ordens religiosas; um decreto de 18 de Abril de 1901 (ministério Hintze Ribeiro) praticamente oficializava a de qualquer uma, desde que se dedicasse à instrução e assistência ou à missionação no Ultramar (Gouveia, 2009:55). Importa lembrar que, em finais do século XIX (1877), apenas existia uma tipografia da Igreja Católica sedeada no Timor Português. Até 1900, não havia notícia da produção de jornais ou da edição de livros, embora existisse uma pequena delegação da Imprensa Nacional, criada em 1899, incumbida de produzir o Boletim Oficial e alguns impressos necessários aos serviços da administração colonial. Em 1903, foi criado em Macau, o Boletim Eclesiástico da Diocese de Macau. Era o único periódico católico que existia naquela região e, ao longo dos anos 20 e 30, os missionários de Timor enviavam para lá as suas crónicas e notícias. Porém, a 4 de Setembro de 1940, as Missões Católicas de Timor, que até então pertenciam à jurisdição da Diocese de Macau, foram separadas desta, tendo sido erigida a Diocese de Díli, embora submetida provisoriamente pro tempore à Metrópole de Goa e de Damão (Seara, 1949, ano 1, nº1:3). O futuro primeiro bispo da Diocese de Díli, D. Jaime Garcia Goulart, e colaboradores estavam ansiosos por criar um boletim próprio, mas a iniciativa não foi concretizada por causa da Segunda Guerra Mundial (1942-1945). Só em 1948 foi possível reunir os elementos necessários para que fosse desenvolvido o boletim, cujo primeiro número surgiu, como referido no seu Editorial, “modestamente”, em Janeiro de 1949. O mesmo Editorial afirma: “não resta dúvida de que era esta a altura de aparecer o órgão oficial da Diocese” (Seara, 1949, ano 1, nº1:10). Embora a Diocese de Díli, tivesse muitas dificuldades financeiras, não impediu o ambicioso projecto de alguns sacerdotes, à cabeça dos quais figuravam as 129

personalidades dos padres Ezequiel Enes Pascoal, Jaime Garcia Goulart, Jacinto António de Campos e Jorge Barros Duarte (jovem sacerdote timorense). Foi assim que se lançou a primeira pedra na criação da revista Seara, como refere Paulo Pires: O espírito desta Revista, num aprimeira fase, era o de evitar o isolamento dos missionários que estavam espalhados pelo interior da Ilha. As suas páginas estavam abertas à partilha das experiências pastorais dos missionários. Paulatinamente, as suas páginas iam-se alargando a outros assuntos, de natureza antropológica, área a que os missionários estavam, de certo modo, à vontade, devido à sua preparação filosófica-teológica, e sobretudo, porque viviam permanentemente junto das populações (Pires, 2001:142).

Como já tivemos oportunidade de explicar noutro contexto (Paulino, 2009:30), o periódico Seara era um jornal católico de larga difusão e influência no universo dos leitores timorenses letrados e não-letrados, através da reprodução oral do seu conteúdo. O objectivo da direcção editorial da Seara foi dar a conhecer o trabalho desenvolvido pelos padres e missionários no território, e difundir a cultura religiosa; ao mesmo tempo, propunha-se ser veículo de difusão cultural, tanto da cultura portuguesa como da timorense.

2.1. Os objectivos na perspectiva editorial e a vida da publicação SEARA conta com a benevolência de quantos se dignem assiná-la e com a honra do seu pronto e generoso auxílio (Seara, 1949, ano 1, nº1:12).

A imprensa traz consigo diversos sentidos culturais, pois a “leitura também gera práticas criadoras, podendo produzir concomitantemente práticas sociais” (Barros, 2004:81). O autor exemplifica o seu argumento nestes termos: “As práticas relativas aos mendigos forasteiros geram representações, e as suas representações geram práticas, em um emaranhado de atitudes e gestos no qual não é possível distinguir onde estão os começos (se em determinadas práticas, se em determinadas representações) ” (Barros, 2004:80). Na primeira edição do ano 1 de 1949, o director da Seara, padre Ezequiel Enes Pascoal, apelou ao potencial público-alvo, inclusivamente aos indivíduos letrados e não letrados, ‘ouvintes’ timorenses e não timorenses, para os objectivos da nova publicação:

sem outra aspiração ou outro intuito que não seja o de cooperar, dentro do seu âmbito, na obra civilizadora em que está empenhada a Diocese de Díli que, por ter sido elevada a tal categoria, se pode considerar como a projecção ampliada de quatro séculos de evangelização, ou seja, dum trabalho

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persistente e generoso em prol do indígena, fazendo chegar até ele os frutos da Redenção e todos os mais benefícios que dela irradiam (Seara, 1949, ano 1, nº1:11).

Os responsáveis da Seara procuravam, entre 1949 e 1973, manter-se fiéis ao Estatuto Editorial, pois o jornal católico é um meio de comunicação que olha, cada vez mais intensamente, para o amplo espaço entre zonas recônditas em Timor, entre Timor e outros países do mundo, ainda que com particular e compreensível revelo para as ligações de Timor e Portugal. Assim, a Seara assumiu o estatuto como ‘periódico católico e português’, passando, posteriormente, a ser chamada ‘periódico católico e timorense’, como mostra a figura 10, a seguir.

Figura 10 – A posição da Seara na época colonial e pós-colonial

O jornalismo católico surge para advogar particularmente o interesse da Igreja Católica, da comunidade em geral, no sentido de prestar assistência aos serviços das missões na evangelização e educação, como foi o caso da Seara, entre outros periódicos católicos. Zacarias de Oliveira (1955:15) aborda em profundidade a imprensa católica e define-a como “uma instrução e formação de mentalidade católicas”, e apresenta como “exemplos de vida católica em letra redonda”. Como tal são elementos que se encadeiam no espaço da acção do jornalismo católico (ver figura 11)

Figura 11 – O espaço genérico da acção do jornalismo católico

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O conceito da imprensa católica foi definido pelo director da Seara, Pe. Ezequiel Enes Pascoal: [...] essencialmente missionário, assim que a Seara também terá de ser uma revista de carácter missionário, relato de tudo quanto se vai fazendo, de lés a lés da ilha, na árdua mas divina tarefa de converter almas, de as ir transformando, elevando-as, chamando-as até nós, amoldando-as a uma nova concepção da vida, numa palavra, civilizando-as cristãmente no catecúmeno, na escola, na igreja (Seara, 1949, ano 1, nº1:11).

Entretanto, “por Deus, pela Igreja e pela pátria, eis as grandes coordenadas da sua existência como jornal católico e português ao serviço de todos quantos se honram de pertencer a estas duas grandes comunidades – construtoras da cidade do céu e da terra” (Seara 1972, ano 7, nº 216). Estes objectivos explicam-se porque, até à data da invasão indonésia de 1975, “a liberdade de ensino estava ainda em mau caminho” (Seara 1972, ano 7, nº 229), e, além disso, o número de cristãos timorenses era diminuto, como refere Gunn (1999:40): “Ao longo de 450 anos até à data de 1975, o nível de percentagem do catolicismo nunca aumentou mais de 15 a 20 por cento da população”89, como se pode ver no registo demográfico a seguir: Tabela 5 – Registo demográfico da Igreja Católica de Timor90 Ano 1949 1965 1970 1980 1990 1998 2001

Católicos 38,034 146,035 164,178 213,000 583,079 527,294 504,299

89

Total população 420,430 574,80591 618,530 740,800 714,245 627,166 539,811

A opinião de Gunn é, antes de mais, a conclusão final do discurso sobre propaganda religiosa dirigida por Frei António de São Jacinto, em 1590: “O ser christão significa para o Timor o ser súbdito de Sua majestade o Rei de Portugal; e é este o ponto para a política, as conversões em Timor aproveitavam mais à política do que à religião. Portugal adquiria súbditos, mas a igreja quase não aumentava o número de fiéis, pois a maior parte dos conversos eram cristãos só de nome” (apud Castro, 1867:28-29); pois “não foram decerto os desejos dos povos de Timor em se abraçarem à Fé Cristã nem a vontade dos seus reis em se tornarem súbditos do Rei de Portugal as razões que tornaram possível a penetração colonial para termos em conta a natureza política de todos os actos praticados pelos dominadores e dominados” (Araújo, 1977:82). Além disso, a influência portuguesa era limitada e as transformações notaram-se, sobretudo, nos arredores de Díli e numa minoria de timorenses ‘assimilados’, como confirma o primeiro recenseamento dos católicos, em 1882, regista 23 000 convertidos ao catolicismo, ou seja, 8% da população timorense da época. 90 http://www.catholic-hierarchy.org/diocese/ddili.html (consulta a 25/5/2011). Relativamente aos dados demográficos da Igreja Católica de outras regiões asiáticas, a Seara (edição de 1953) considera que que em 1953, em Bangkok, há pelo menos de 8.000 católicos chineses, em Jakarta 7.000, em Samerang 4.000 convertidos à religião católica, em Singapura de 8 a 10.000 almas baptizadas, em Makasar 700 católicos. Conforme o Directório Católico de 1953, o total dos católicos nos Estados Unidos da América era de 30.425.015. 91 Edição da Seara do ano 1, nº 29 de 1966.

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A continuidade desta linha de missão é advogada ainda em 1966, quando o Editorial alude às palavras do Papa João XXIII para legitimar o espírito de igreja e de evangelização que considera como uma parte integrante da missão educativa emanada na Enciclica Mater et Magistra: “Hoje mais que nunca é indispensável que esta doutrina seja conhecida, assinalada, levada até á realidade social na forma e medida que as circunstâncias permitem ou exigem função árdua, mas nobilíssima. Com ardente apelo convidamos para realizar esta tarefa não só os nossos veneráveis irmãos dispersos pelo mundo, mas ainda todos os homens de boa vontade” (Seara, 1966, ano 1, nº6:4)92. O grande número de jornais e publicações de orientações catolicas é “grande”, e que a imprensa católica se deve “dedicar a tudo o que preocupa o homem” (Oliveira, 1955:17-19) e a humanidade com “os programas de instrução religiosa das paróquias e das associações do apostolado dos leigos; propague-se através dos meios modernos de difusão: imprensa diária e periódica, obras de vulgarizaçâo e de caráter científico, rádio e televisão93”, como tal meios de comunicação são “bênção de Deus” (Seara, 1966, ano 1, nº 9:4-5). Os primeiros números do periódico tiveram tiragens de 500 exemplares, impressos na “Imprensa Nacional de Timor”, em Díli. Entre Janeiro e Outubro de 1949, a sua periocidade foi mensal, mas, o último número daquele ano foi apenas bimensal. A propósito da alteração do formato do periódico, a direcção apresentou um comunicado aos seus leitores, nos seguintes termos: A Imprensa Nacional de Timor tomou a seu cuidado, com a melhor das boas vontades, a impressão da Seara. […] não lhe tem sido possível imprimi-la de modo a ser publicada cada número no respectivo mês. Por este motivo os próximos dois números – Novembro e Dezembro – serão reunidos num só que será […] A revista a ser bimensal durante o próximo ano de 1950” (Seara 1949, Ano 1-nº10:240), [pois] a Seara é imensa e poucos trabalhadores; suplicai, pois, ao Senhor da messe que envie trabalhadores para a sua Seara (Seara, 1949, ano 1, nº8:178).

Esta situação persistiu até 1955, altura em que, na edição do ano 7, o editorial anunciou que a publicação passava a ser quadrimestral. Aos problemas decorrentes das dificuldades técnicas de edição, entretanto a cargo da Imprensa Nacional da Tipografia da Diocese, é reconhecida no ano 8, nº 1 de 1956, a sobrecarga de trabalho decorrente de outros tipos de

92

Cf. Carta Encíclica Mater et Magistra do Papa João XXIII, nº 35. Está disponível em http://www.vatican.va/ holy_father/ john_xxiii/encyclicals/documents/hf_j-xxiii_enc_15051961_mater_po.html (consulta a 21/3/2012). 93 Cf. Carta Encíclica Mater et Magistra do Papa João XXIII, nº 222. Está disponível em http://www.vatican.va/ holy_father/ john_xxiii/encyclicals/documents/hf_j-xxiii_enc_15051961_mater_po.html (consulta a 21/3/2012).

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serviço pastoral. A promessa de retomar a publicação bimensal é feita em Editorial da edição do ano 8, nº 2 de 1956. Numa primeira fase, a Seara durou até 1964; em 1965, foi encerrada por falta de material de impressão. Em 1966, nas Bodas de Prata da Diocese, o Bispo D. Jaime Goulart realçou a importância do Seara e reafirmou que “já chega a hora para reviver deste Boletim Eclesiástico, que é muito importante para a Diocese” (Seara, 1966, ano 1). Foi no mesmo ano que terá sido pensada a sua viabilidade em formato de jornal. Neste contexto, foram reafirmados os critérios da publicação: “ […] critérios que adoptamos ao coligir estas páginas foram os de sobretudo reunir aqui vários depoimentos de homens célebres do nosso tempo, como pensadores ou como escritores, e que simultaneamente se afirmaram católicos em espírito e em verdade” (Seara, 1966, ano 1, nº38:8). Nas duas primeiras décadas, a Seara foi a maior e única revista do jornalismo católico em Timor, com um propósito claro, limitando as referências aos acontecimentos locais de índole política (mas omite, por exemplo, a Revolta de Viqueque). No quinto ano de publicação (1953, ano 5, nº1), o director, Pe. Ezequiel Enes Pascoal, reafirmou o seu interesse em que os leitores (locais e da Metrópole) colaborassem nesta publicação diocesana. A secção de maior interesse para muitos dos leitores locais, e certamente para todos os da Metrópole e países até onde chega este despretensioso boletim, é a de etnografia e etografia. Estas duas ciências ocupam lugar de revelo em todas as publicações missionárias. Temos por isso, convidado pessoas entendidas em assuntos desta natureza a dizerem aos nossos leitores o que sabem a tal respeito, ou serem naturais de Timor, ou porque os costumes e caracteres dos timorenses lhes têm merecido especial atenção. Esperamos que, de futuro, não nos faltará colaboração versando tais assuntos, dentro sempre das normas, evidentemente, desta publicação (Seara, 1953, ano 5, nº1:5).

Assim, a Seara dedica algumas páginas a “transcrição de cartas dos missionários de Timor que são muitíssimo apreciadas pelos leitores da Europa porque nelas transparece, tal qual é, a vida missionária cheia de sacrifícios, eriçada de espinhos, fértil em canseiras mas coroada também de indizíveis consolações espirituais” (Seara, 1/1949, ano 1, nº1:12). A Seara reservou outras páginas para colher informação sobre a população local, ou seja, “uma secção de história local” (Seara, 1/1949, ano 1, nº1:11). A cobertura dos acontecimentos locais foi destacada na secção Por Nossa Casa e Na Safra; normalmente, as notícias reuniam-se a construção de alguma capela ou igreja. Era, portanto, a partir daí que surgia a notícia sobre uma ou mais regiões de Timor, como é o caso da região de Aileu. 134

Gráfico 2

Os dados apresentados foram, na sua maioria, localizados nas secções referidas. No entanto, na nossa pesquisa, foram contabilizados 26% de peças noticiosas sobre a capital eclesiástica Díli; encontram-se 23% de notícias sobre o distrito de Manatuto (o segundo distrito mais informado pela Seara) e 11% de peças noticiosas sobre o distrito de Ainaro. Os restantes distritos, há 7% das notícias sobre Aileu; o distrito de Bobonaro teve com 6% de notícias; Cova-Lima/Suai, 6%; distrito de Baucau, 5%; Manhufahi, 4%; Oé-cusse, Ermera e Los-Palos contêm apenas 3% de peças noticiosas; enquanto o distrito de Viqueque regista 2%, e o distrito de Liquiça só contém 2 peças. Apesar das limitações decorrentes do controlo estatal, nomeadamente da censura, o movimento nacionalista timorense utilizou, de 1970 em diante, o jornal como veículo de divulgação do pensamento político, designadamente através de artigos de opinião, comentários e análises sociais que continham já críticas à colonização portuguesa. Muitos colaboradores timorenses ficaram conhecidos após 1964: Nicolau Lobato, José Ramos Horta, Francisco Xavier do Amaral, Francisco Borja da Costa e Mari Alkatiri (dirigentes da futura FRETILIN); Manuel Carrascalão e Domingos de Oliveira (dirigentes da futura UDT). O jornal conseguiu escapar, durante cerca de três anos, à apertada censura que vigorava no restante território sob administração portuguesa. Todavia, por ordem do governador colonial, o centro da publicação deste jornal foi fechado por agentes da PIDE a 10 de Fevereiro de 1973 (Jolliffe, 1978:56-57; Gunn, 1999:293). Onze anos depois do fecho do jornal, oito anos depois da invasão Indonésia (1975), o novo Administrador Apostólico de Díli, D. Carlos Filipe Ximenes Belo, procurou ressucitar a 135

Seara, criando para o efeito em 1983, uma Comissão Ad-Hoc, cuja função era avaliar as condições necessárias para fazer reviver a Seara. Os membros desta comissão não conseguiram realizar o projecto de reeditar o jornal até 1990: em primeiro lugar, porque não havia entendimento sobre qual era a língua que devia ser utilizada na reedição do jornal; segundo, pela falta de preparação dos profissionais. O boletim só retomou a sua publicação, com carácter quinzenal, em 1991. Mas, não foi possível continuar a publicação com essa periodicidade devido à situação política, parando em 1992. Em 1993, o jornal retomou a publicação com algumas interrupções. Em 1999, na véspera do referendo, foi publicada uma edição especial comemorativa do Cinquentenário da Seara. Nas suas páginas, surgiam artigos em Tétum, Português, Língua Indonésia e Inglês, entre múltiplas felicitações de entidades religiosas, particulares e estatais.

2.2. Seara: a aproximação possível entre o jornalismo e fé Desde a criação do universo, a humanidade busca o transcendente: pinturas rupestres nas rochas e grutas, escrita figurativa e geométrica nas pedras, nas árvores, meios utilizados pelo homem para espalharem religiosidade em todos os lugares onde está. Mas, no fundo, o que significa religião? T.S. Eliot (1996) considera que “uma cultura é sempre enquadrada na religião”, embora não fôssemos criados pela cultura religiosa ou religiosidade. A Seara era, para além de documento noticioso, promotora da missionação e, consequentemente, visava “evangelizar promovendo, promover evangelizando” (XimenesBelo, 1999); enquanto José Augusto Mourão (2002:85-86) argumenta que “a idade da religião como estrutura acabou, a sua função social está a apagar-se. Resta a função subjectiva da experiência religiosa. A ‘primeira’ religião pura era o dinamismo, integrador e organizador do estar-em-comum e do estar-no-mundo em simbiose com a natureza; ela fundava este vivercom numa alteridade invisível, num passado memorial e imutável assegurado através dos seus ritos”. A religião e os valores culturais em geral são a matriz dos factos sociais e os fundamentos da estrutura social, como sublinha Emile Durkheim (1989:456), os limites entre o sagrado e o profano, entre o rito religioso e a festa popular, estão próximos uma da outra. Isto significa, para Luís Filipe Thomaz (1963), que uma religião não é apenas um sistema teológico e uma escala de valores morais: é, ou tende a ser, mais do que isso: um amplo sistema que enforma e unifica, que estrutura e hierarquiza todos os aspectos da vida de um povo. 136

Além de desvendar o mistério que existe em torno da palavra ‘religião’, a Igreja Católica é chamada a enfrentar um outro desafio: rever o conceito sobre comunicação. Segundo a jornalista Joana Puntel (2005), a Igreja em geral adopte o sentido corrente dos media como ‘criadores’ de cultura. Trata-se de um instrumento que pode promover a identidade da Igreja, e, por isso, cabe-lhe o dever de se actualizar, revendo as suas políticas, suas estratégicas e suas prioridades, pois tudo passa pela comunicação. Com efeito, no caso da imprensa católica de Timor, fica-nos a ideia de que, por um lado, era bom que em Timor Português tivesse uma imprensa católica; por outro, há, entre eles (os redactores e os colaboradores), um sentimento de idiopatia na exploração e interpretação simbólica das tradições e dos costumes produzidos e difundidos. É verdade que a Seara publicou várias doutrinas e orações, homilias dos padres, informações litúrgicas, de visitas pastorais e outras actividades religiosas, e pouca informação sobre a condição de vida das populações locais. Isto é, a evangelização em Timor foi reforçada e difundida também pela imprensa. Será, então, possível juntar fé e jornalismo na imprensa católica? Parece que sim, porque, para os católicos, a imprensa católica ensina aos fiéis os valores cristãos contidos no Evangelho e, no caso concreto da Seara, encontram-se informações sobre os princípios morais cristãos, ou seja, este órgão informativo transmitiu a informação que realmente interessa aos fiéis católicos da então província ultramarina de Timor. A Seara, como órgão de divulgação da fé católica, era sustentada pelas coisas reais – caridade, por exemplo – e, segundo o dogma da Igreja Catolica, a catequese também é uma informação e pode ser divulgada através dos jornais católicos. Vimos isto na Seara, porque, em certos casos, os catequistas utilizavam-na para dar aulas de catequese. A Seara, publicou dezenhas descrições sobre o culto mariano. O mais conhecido foi a “Visita de nossa Senhora de Fátima a Timor” (Seara, 1949, ano1, nº3e8). Os timorenses – na sua maioria – têm grande devoção pelo culto mariano. Têm uma fé que ‘move montanhas’. Para edificação, meditação e afervoramento da piedade marial, temos nas páginas centrais da Seara de 1966 (ano 1, nº19:4) um conjunto de orações à Virgem Santissima. A propagação do culto de Nossa Senhora de Fátima em Timor teve início na Missão de Manatuto, em 1933, pela acção do padre Ezequiel Enes Pascoal. Em 1936, o superior da Missão de Soibada, padre Jaime Garcia Goulart, acabava de fundar o Pré-Seminário, destinado à formação de sacerdotes timorenses, sob o nome de Seminário de Nossa Senhora de Fátima. A Igreja de Suro (Ainaro) foi inaugurada em Outubro de 1937 e dedicada a Nossa Senhora de Fátima. A Capela de Fatubessi foi construída em 1939, sob a protecção da Padroeira Nossa Senhora de Fátima. No mesmo ano, foi inaugurada a capela de Nossa 137

Senhora de Fátima de Watolari. Em 1940, a capela de Fatumaca (Wailili) era consagrada também ao culto mariano94. Nas páginas da Seara, encontram-se também pequenas notas soltas e pequenos artigos (com e sem assitanatura do autor) sobre a festa do Natal e da Páscoa: por exemplo, o “Conto do natal” do Pe. Ezequiel Enes Pascoal (Seara, 1950, ano2, nº11e12; 1952, ano 4, nº6; 1953, ano5, nº6; 1954, ano6, nº6; 1955, ano7, nº3); ou “A festa do cristianismo” (Seara, 1966, ano1, nº37). No tempo do advento, a direcção organizava entretenimentos com a distribuição dos cabazes de natal, como prova de boa vontade e de solidariedade para com os necessitados. Outras pequenas descrições sobre festas populares católicas publicadas nas páginas da Seara eram as festas populares dos Santos, como a festa de São José, de Santo António de Lisboa, Santa Teresa do Menino Jesus, Santa Madalena de Canossa, a festa de Nossa Senhora da Conceição, entre outras. “No cristianismo, a festa atinge o máximo da sua significação, porque aí ela tem como ponto de partida a história da Salvação, maravilhosa intervenção de Deus no tempo e na história do homem e porque aí o ‘rito’ não é mero gesto evocativo de criação humana” (Seara, 1966, ano 1, nº37:1). Na imprensa católica, o conhecimento passa a ser predominantemente construído por meio de imagens e de emoções. Os relatos e pregações de novos sacerdotes, especialmente à vontade com as novas linguagens de comunicação, necessitam de ser transmitidas pela imprensa católica. Através deste meio de comunicação a religião parece aumentar a sua presença no meio dos fiéis. A Seara compromete-se a formar e informar a população; aliás, o desejável era uma revista/jornal que associasse informação jornalística e fé. Como defende a jornalista Joana Puntel (2005:15), “A Igreja, que tem por missão evangelizar o homem contemporâneo, deve privilegiar a consideração da cultura midiática em suas mais diversas linguagens, a fim de estabelecer o diálogo entre fé e cultura”, porque a sociedade está cada vez mais submersa numa cibercultura, em que a cultura visual ocupa grande parte desse universo. É um universo de técnicas, de práticas, de atitudes, de modos, de pensamentos e de valores que se desenvolvem e que exercem influência sobre a fé e a vivência da religiosidade da sociedade contemporânea. É por este facto que tanto a imprensa católica como protestantes presta atenção não apenas aos temas da inserção do ‘Evangelho nas culturas’, mas também à questão da inserção das culturas nos princípios doutrinários do Evangelho, para que cada cristão (o leitor da imprensa cristã) possa compreender melhor a reflexão sobre o diálogo interreligioso. 94

Ximenes-Belo, Carlos (2010), “Timor-Leste e a Nossa Senhora de Fátima”, in Jornal de Opnião – http://opiniao.ecclesia.pt/2010/10/timor-leste-e-nossa-senhora-de-fatima.html (consulta a 14/1/2011).

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2.3. A Seara como jornalismo de catequese e pedagogia A Seara – numa perspectiva jornalística – desde 1949 até 1973, foi um meio de instrução pastoral, catequese e pedagogia. Foi a primeira vez que os missionários utilizaram a imprensa, quase que institucionalmente, para construir a nova dimensão de missões e intensificar a audiência planetária; que, por meio do discurso jornalístico, acompanharam e foram informados passo a passo sobre o ritual da igreja católica, caracterizado por “sacramentos”, “mandamentos” e obrigações dos fiéis, que se podem ler detalhadamente em Página Litúrgica (Seara, 1969, ano 4, nº 147 sst) e Prospectos duma catequese adaptada a Timor (Seara, 1971, ano 6, nº 196). Na secção do Correio para o Interior (Seara, 1969, ano 4, nº 147:3), encontrava-se uma justificação que diz respeito às funções litúrgicas, que “educam os fiéis na vida comunitária, dão-lhes um sentido de vida eclesial e instruem-nos na vida espiritual”, mais adiantando que “a liturgia é uma autêntica escola de vida espiritual: o culto de Deus, a vida de fé e a prática da caridade fraterna são exercidas e cultivadas nas assembleias litúrgicas”. Tendo em vista este cenário e o facto de a religião ser um campo legitimado de influência na educação e na cultura, assim como o jornalismo, esta pesquisa tem como propósito estudar o poder simbólico da catequese católica, presente na cobertura jornalística da Seara, que entrou para a história das missões católicas desta terra, como revela a narrativa “Para uma catequese renovada: pedagogia no ensino catequista” (Seara 1969, ano 4, nº 147:3): A missão de salvar almas é sem dúvida uma das mais nobres e das mais elevadas. […] É evidente que a base duma catequese útil está no interesse que as lições inspiram às crianças. […] Hoje é necessário que a pedagogia catequista conduza a criança à prática da vida cristã integral, formando-lhe a inteligência, o coração e a vontade, inteligência para pensar cristãmente; o coração para a fazer amar divinamente; a vontade para fortalecer e incitar na prática do bem.

Visa-se uma catequese renovada que tem por função sensibilizar os cristianizados e assimilados a concentrarem-se nos programas educativos oferecidos pelas missões católicas, como parte da disciplina moral, segundo o artigo “Filosofia e Experiência Espiritual” (Seara 1969, ano 4, nº 151). Em 1968, a Seara publicara vários artigos de opinião sobre a pedagogia cristã e crónicas sobre o curso de catequese, como testemunhou D. José Ribeiro: A diocese de Díli tem estado a viver ao ritmo do movimento Por um Mundo Melhor, desde o dia 12, desde que o Pe. Vitor pôs pés em terras de Timor … Graças ao Senhor o trabalho tem sido abençoado do Céu. São manifestas a abertura e receptibilidade das almas. Não calculam, nem fazem a mínima ideia do entusiasmo e da generosidade com o que o padre Vitor está sendo ouvido por todos, pois, na verdade,

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Timor no aspecto religioso, humano e social é um campo maravilhoso que corresponde cem porcento, a qualquer trabalho apostólico (Seara, 1968, ano 3, nº 110:4).

Além de mobilizar um sistema de pensamento e percepção instigado pela tradição do ensino religioso, as informações dadas pela Seara eram preocupar-se com informar as condições sociais de missões do habitual discurso ritual naquele período. Neste caso, a cobertura jornalística sobre a pedagogia no ensino de catequese concentra o capital simbólico acumulado pelo grupo que lhe conferiu o mandato e do qual ela é, por assim dizer, o procurador (Bourdieu, 2001). Contudo, nos campos do poder, jornalismo e religião souberam conquistar-se um ao outro. Se, por um lado, as missões católicas de Timor, na altura da colonização portuguesa, estavam conscientes da importância do jornal católico como um dos meios para difundir a mensagem cristã, por outro lado, a imprensa católica de Timor reconhece o poder da religião no modo de viver em sociedade. Foi por esta razão que a Seara publicou nas suas páginas assuntos relacionados com a moral cristã, nomeadamente a pedagogia, e “a catequese não só como instrução, mas também educação: a educação religiosa do homem durante os anos da sua infância e juventude, a formação do verdadeiro cristão é do verdadeiro discípulo de Cristo. […] Aceitar ou rejeitar esta palavra é dizer sim ou não acerca da própria alma” (Seara, 1969, ano 4, nº 147:3). Acrescente-se que, como os factos vieram a demonstrar, os missionários dos séculos XIX e XX (ainda na época da colonização) defenderam que “A liturgia [é] o culto da igreja” (Seara, 1969, ano 4, nº 148) que ajuda mais os povos não cristãos a libertarem a sua alma distorcida. Contudo, a liturgia não é propriamente um ponto central da libertação das almas dos homens distorcidos; a liturgia, para a Igreja Católica, é um elemento estrutural necessário que tem um papel duplo: fidelidade e amor à Igreja (Seara, 1969, ano 4, nº 160). Este duplo papel é marcante na história colonial, de que a própria igreja também fazia parte; por exemplo, os católicos consideram que a história do período de colonização é, sobretudo, uma elegia ao triunfo ‘da ideal expansão e propagação’ da cultura cristã aos povos não cristãos através da reforma da “Doutrina social Agrária da igreja” (Seara, 1969, ano 4, nº 151 sst; 1970, ano 5, nº163 sst), cujo propósito é resolver os problemas sociais, dignificando e consagrando a dimensão do trabalho que o próprio ser executa no seu dia-a-dia (Seara, 1970, ano 5, nº 177).

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2.4. A moral cristã e religiosa são temas principais da Seara O interesse dos Padres pelos jornais e a profissionalização, fora da principal actividade sacerdotal, buscava testemunhar as realidades dos povos orientais que se encontravam numa linha de encruzilhadas e ideias culturais, como acontece nesta reveladora narrativa do Pe. Ezequiel Enes Pascoal: “No Oriente onde, por muita parte, corre o sangue a jorros, em lutas de raças e clans ou no entrechoque de ideias que se degladiam furiosamente, vive-se mesmo onde ainda há paz, sobre um vulcão de que, a todo o instante se podem esperar mais desagradáveis surpresas” (Seara, 1949, ano 1, nº. 5:110). Mais adiante, o autor explica que a solução do problema económico dos indígenas colonizados deveria ser solucionado através da ideia “religioso-moral” e a justiça deveria ser reforçada pelo conceito evangélico chamado justiça de Deus. Assim, escreveu o autor: Seria viver inteiramente alheio às realidades negar tanto mal-estar, tanto desarmonia, tamanho deflagrar de ódios devem, incontestavelmente, a motivos de ordem económica. É longe, porém de dúvida que tudo se resolveria dum modo muitíssimo diferente se o conceito de justiça, tal como o concebe o Evangelho, tivesse o seu devido lugar tanto no coração dos indivíduos como no conceito dos povos e se o cristianismo – a prática dos seus preceitos – sobrepondo-se às paixões humanas, que atingem, hoje em dia, as raias da barbárie, informasse a vida de cada homem e de cada nação. Por outras palavras, a solução do problema económico supõe, primeiramente, a solução do problema religioso-moral (Seara, 1949, ano 1, nº 5:110).

Porém, a realidade sócio-económica dos povos não cristãos não estava no problema religioso-moral justificado pelos religiosos europeus, mas, sim, na falta de política de desenvolvimento e de aproveitamento dos recursos naturais do território colonizado para melhorar as suas condições de vida. Todos os problemas económicos e financeiros não estavam a ser resolvidos por uma acção moral e religiosa, porque, em certos casos, tal solução era manipuladora. Inseridas neste contexto, pode dizer-se que a tensão política e a debilidade financeira para o desenvolvimento de uma sociedade mais justa deverão ser solucionadas pela acção de solidariedade social baseada na economia humanística. É particularmente interessante, até para compreender as formas de dominação colonial e missionária, que são impérios políticos que regulam o espaço económico dos colonizados. A moral cristã e religiosa no discurso missionário e pastoral parece ter um valor que expressa o dever puro do ser humano no seu conjunto de actividades, em que está, a priori, a razão. Neste sentido, apresenta o dever puro do ser humano de forma categórica, ou seja, ordena-o categoricamente, e não hipoteticamente, como dizia Kant (2004) – todos os 141

imperativos se ordenam hipotética ou categoricamente. Se a acção for simplesmente boa e apresentada como um meio para alguma outra coisa, então o imperativo é hipotético; mas, se a acção é considerada como boa em si mesma e, portanto, como um princípio necessário para uma vontade que, em si mesma, está em conformidade com a razão, então, o imperativo, é categórico. No entanto, mais precisamente para as ‘ordens da razão’, se o imperativo categórico apresenta o que é racional em si mesmo, logo, a acção moral e religiosa dos cristãos também é racional e, a priori, torna-se uma lei universal, por ser ensinada ou apoiada pelos Aspectos vitais da pastoral litúrgica (Seara 1966, ano 1, nº 4), tais como a organização do espaço litúrgico, a forma de gerir o canto na celebração da missa95. Por outro lado, se o imperativo hipotético revela uma acção que é um meio para obtenção de determinado fim, logo, a acção moral já não é racional a priori, mas, sim, uma acção manipulativa, por ser justificada por um ramo de conhecimento moral, tal como só “o evangelho responde cabalmente” à necessidade dos seres humanos. Na história colonial, imperialista e das missões religiosas, em maior e menor grau, a palavra gloriosa foi uma expressão moral, patriótica e religiosa que estava muito presente nos discursos ou relatos históricos dos agentes colonizadores (missionários, governadores, administradores e chefes de postos, inclusive os nativos aliados ou assimilados), mas que também sinaliza a época de decadência, onde se reúne o heteróclito noticiário sem particular hierarquização, que não seja a excepção de afirmar com orgulho que, por exemplo, quando a revista Seara (edição de 1949, ano 1, nº 2:3) na voz do Pe. Ezequiel Enes Pascoal, em Dezoito anos de intensa actividade 1924-1942, assinalava que “poucas missões como as de Timor terão passado por tão vincadas vicissitudes. Se os seus gloriosos anais nos mostram períodos de grande esplendor, registam, também, épocas de franca decadência”, adiantando que “Não é meu intuito reviver as páginas gloriosas ou apagadas, assás remotas, da história das missões em Timor e apontar as suas lições como caminho a seguir ou evitar às atrocidades” do que háde vir. Na acção de missionação e de evangelização da doutrina cristã, há uma política chamada “movimento por um mundo melhor”, criado em 1952, para levar a Igreja Católica a ser mais presente no mundo, mais fiel ao Evangelho e em permanente renovação, para

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Leia-se também o sugestivo artigo, intitulado “A reforma litúrgica através do mundo” (Seara, 1966, ano 1, nº 3), que fala sobre a introdução das línguas japonesa, dos índios no Brasil e outras línguas dos respectivos países da Ásia, para reforçar as missões.

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construir um mundo melhor segundo o projecto de Deus96. Este movimento foi introduzido e difundido em Timor nos finais dos anos 60 do século XX pelo Pe. Victor Francisco Xavier Feitor Pinto. Este declarou à Emissora de Radiodifusão de Timor que “O movimento por um mundo melhor é uma corrente de ideias que indica uma renovação pessoal e comunitária e dinamiza os filhos de Deus na unidade para construção de um mundo melhor, é um clima de caridade até à unidade circulante da verdade, do bem, do amor” (Seara, 1967, ano 2, nº 90:1), e, nesse contexto, em 1967, o bispo demissionário de Díli, D Jaime Garcia Goulart, admitiu que “se me querem dar um novo lugar, escolho de novo Timor, e vou como simples padre” (Seara 1967, ano 2, nº 67). O movimento por um mundo melhor, difundido nas terras colonizadas, foi também uma acção propagandista missionária para melhorar as condições dos naturais, ao mesmo tempo, uma acção política missionária que procurava contrapor à política colonial liderada pelo governador e seus respectivos funcionários públicos, mas isso não justificou a guerra aberta entre a ‘autoridade colonial’ e as ‘missões católicas’ de Timor, porque, na realidade, estas duas instituições cooperaram mutuamente. Aliás, na actualidade, o movimento por um mundo melhor é identificado como pedagogia da acção pastoral, assim como a organização e as estruturas mais adequadas para a tarefa evangelizadora da Igreja Católica. Em certos casos, como em Timor, ainda na época da colonização portuguesa e hoje, os religiosos consideram o movimento como um lugar de partilha, caracterizando-o como uma parte da resolução do problema económico e social através da formação moral e religiosa. A propósito disso, em Cursos de exercitações do movimento por um mundo melhor (edição da Seara de 1967), o Pe. Manuel André Pinheiro argumentava: Agora é a hora de acção, e embora a luta que nos espera seja árdua e difícil, caminhemos com coragem e valentia para a grande empresa de amor, pois como diz o clássico, o amor deixará de variar se for firme, mas não deixará de tresvariar, se é amor. Estamos certos de que, ao espírito clarividente e dinâmico do nosso Ex.mº prelado, a quem unidamente se devem estas iniciativas de renovação pastoral, se juntará a nossa incondicional adesão e sempre pronta obediência para a grande obra a realizar de um mundo melhor em Timor (Seara, 1967, ano 2, nº 92:7).

A expressão “agora é a hora de acção” é um apelo aos cristãos, para que estes se firmem na fé e na acção pastoral, e se mostrem dispostos a construir um mundo melhor. Todavia, a reflexão sobre o estado de acção missionária e pastoral representa uma dupla função, por um 96

É claro que a expressão do “projecto de Deus” aqui apresentada é o projecto segundo critério do Deus Cristão falado na Bíblia e nos ensinamentos de Cristo, e segundo jornal Diário (edição de 28/8/1961): “O Movimento por um Mundo Melhor não é uma nova organização, mas é a vitalização de todo o conjunto do catolicismo”.

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lado, directamente ligado à moral, aos costumes, ao direito e à história, que têm fundamentação política de evangelização e doutrinação da fé cristã; indirecta e talvez mais profundamente, “agora é a hora de acção” é cristianizar os espaços sagrados dos não cristãos para construir o mundo melhor na perspectiva cristã e europeia. Por outro lado, na medida em que a expressão “agora é a hora de acção” influencia a concepção filosófica do conhecimento e do saber, tal expressão pode conduzir o ser humano, no seu todo, a construir o mundo melhor, “se a paz tem outro nome, ‘desenvolvimento’, a caridade também se chama ‘participação’” (Seara, 1968, ano 3, nº124). Para uma adequada compreensão sociológica, moral e cultural do termo ‘paz’ versus ‘desenvolvimento’ e a ‘caridade’ versus “participação”, é necessário compreender o saber a priori ou puro das leis que regulam a conduta humana para o seu progresso e a construção da paz perpétua teorizada por Kant. Porém, a guerra, o fogo, o frio e a corrida aos armamentos destroem e esgotam as positivas ideias dos grandes amadores da paz e do progresso e, desde já, para uma compreensão adequada sugerimos que se leia o sugestivo artigo intitulado “O maior problema humano”, publicado na Seara (1968, ano 3, nº125:1-8), que identifica “a fome, na sua ímpia dramatização humana e na sua drástica tumefacção social, [que] continua a ser o grande flagelo da humanidade”. Este problema surge porque há uma visão que Agostinho Tibar classifica como “Integração e desintegração” da sociedade (Seara, 1968, ano 3, nº 130), na qual esta última pode gerar a crise identitária e confusão no ser humano. Se o homem quer construir uma sociedade “Para uma ordem nova”, explicitada por M. Santos97, isso significa criar “o equilíbrio das forças do mundo livres e solidários na lei da caridade” (Seara, 1968, ano 3, nº125:8). A propósito, afirma J. M que o dever de cada cristão é compreender e manifestar a sua vocação e caridade em todo o “Estado de Missão (Seara, 1967, ano 2, nº 93), porque “as missões são o imperativo da vocação e da caridade” que fazem parte da dupla modalidade do dinamismo da graça agostiniana (Seara, 1969, ano 4, nº 151 e 152). Desde tempos remotos, a moral sempre existiu, pois todo o ser humano possui consciência moral que o leva a distinguir o bem e o mal. Ética e moral são dois termos que regulam a acção do ser humano, no seu todo, com o fim de respeitar e venerar a vida. Com o seu livre arbítrio, o ser humano pode construir ou destruir o seu próprio meio ambiente, ou apoia a natureza e suas criaturas ou subjuga tudo o que pode ser dominado ou controlado com atitudes de “responsabilidade”.

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Edição da Seara 1968 (ano 3, nº 126, 128, 129, 130, 131 e 132)

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É óbvio que os agentes coloniais e missionários estabelecem uma nova acção moral que pode integrar os não cristãos em “Um novo programa de sempre” (Seara 1968, ano 3, nº 111), que é, sem dúvida, projecto de doutrinação, de evangelização, de catequese e de educação, como indicadores da acção moral cristã. A propósito disto, dizia Pe. Manuel Pereira Reis que, os cristãos, principalmente, “Os jovens precisam da Eucaristia” (Seara 1968, ano 3, nº 109), e, mais tarde, o Papa Paulo VI frisou que “Os jovens têm no seu conjunto uma importante palavra a dizer” (Seara 1968, ano 3, nº 121). Dizendo ainda O. F que “Estes jovens de agora” (Seara 1968, ano 3, nº 126) precisam de “Instrução pastoral” (Seara 1968, ano 3, nº 132) para reforçar o “movimento eclesiástico” (Seara 1968, ano 3, nº 1, 2 e 3). Para isso, os cristãos devem fazer “cinco minutos de espiritualidade sempre em busca” (Seara 1972, ano 7, nº 234) de uma vida melhor, baseada no espírito de “unidade na variedade” (Seara 1968, ano 3, nº 122), e utilizar o catecismo social como um guião de vida pessoal e colectiva (Seara 1971, ano 6, nº 199 e 200); simultaneamente, os cristãos podem transmitir a mensagem cristã e executar o trabalho de acção social (Seara, 1971, ano 6, nº 193). Em Viagem apostólica ao Extremo-Oriente (Seara 1968, ano 3, nº 110), o Pe. Manuel André Pinheiro relatou a viagem do Pe. Victor a Timor, onde se iniciou o seu trabalho pastoral, em 15 a 18 de Setembro de 1968, com a abertura de um “curso para a juventude”, no Colégio de Balide, que contou com a participação de 60 alunos de Liceu, Escola Técnica de Artes e Ofícios e alguns empregados. Como dizia a mesma crónica, realizou também o “curso de exercitação para o clero”, com a participação de 47 sacerdotes diocesanos, jesuítas e salesianos; o “curso de exercitações para religiosas”, que contou com a participação de 38 religiosas canossianas e dominicanas do santíssimo rosário; o “curso para leigos”, que contou com 230 participantes (catequistas, professores, monitores, alunos e alguns seminaristas); e o “curso para os casais”, com a participação de 65 casais. Em todas as vicissitudes da acção educativa, missionária e administrativa, Timor foi sempre uma terra de “Compromisso temporal” (Seara, 1968, ano 3, nº 108), isto é, uma terra de passagem, em que os europeus queriam construir o seu farol cristão e a sua civilização europeia, para que, mais tarde, os timorenses recordessem ciosamente e pudessem afirmar a religião católica, a língua e a cultura portuguesa como símbolos da sua identidade cultural e religiosa.

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2.5. Relação entre redactores, leitores e assinantes Todo o que se escreve, julgamos nós, sentir-se-ia feliz se conseguíssemos esta sintonia e ressonância de uma meia dúzia, de vez em meia dúzia de pessoas. E se bem reparares, veras que são sempre poucas e às vezes por acaso às influências fecundas que mexem a nossa vida. Então a gente lê e pensa: ‘é isto mesmo que eu sentia e não era capaz de exprimir’ (“Carta a Timor”, Seara, 1968, ano 3, nº123:1).

As notícias publicadas pela Seara dependiam, em grande parte, da contribuição dos padres e colaboradores voluntários. A maioria deles não tinha qualquer formação profissional na área do jornalismo. Por seu turno, a maioria dos leitores eram também padres ou colaboradores com funções leigas, nomeadamente educacionais nas várias escolas detidas pela Igreja Católica, que contribuíam igualmente com pequenas notícias locais. Mas a presença de vários depoimentos dos homens literários dessa época pedia recolecção, como recorda um editorial: O critério que adoptamos ao coligir as páginas [da Seara] foi, sobretudo, reunir aqui vários depoimentos de homens célebres do nosso tempo, como pensadores ou escritores, e que simultaneamente se afirmaram católicos em espírito e em verdade. É já lugar-comum dizer-se que a hora é dos leigos. E quando eles são conscientes da sua missão na igreja nunca perdemos em dar-lhes a palavra (Seara, 1966, ano 1-nº38:8).

Obviamente, com esta acepção, não pretendemos abordar os anos de história do jornalismo católico, mas entendemos que a demarcação de continuidades e descontinuidades nas relações igreja e media, neste período, são pistas preciosas para o entendimento do jornal em seu género textual e jornalístico, face ao desafio em manter a sua identidade e missão católicas e, ao mesmo tempo, tornar-se um produto competitivo no mercado de promoção da fé cristã. É por esta razão que, na imprensa católica da diocese de Díli, “o número da Seara foi totalmente organizado neste sentido e, intencionalmente, aparece agora quando o nosso presbitério sacerdotal se enriquece com três novos e esperançosos padres” (Seara, 1966, ano 1, nº 33:1). A interacção entre redactores-leitores e o aproveitamento desta pela direcção da Seara era clara neste exemplo: a exigência moral católica dos novos fiéis timorenses que têm acesso ao Diploma da 4ª classe de escolaridade levou o director do Colégio Nuno Álvares de Soibada, Pe. Custódio Santana Vales, a pedir mais exemplares da Seara: As escolas vão aumentando e o conhecimento da língua portuguesa alastra-se pelos sucos e pelas aldeias, e porque é que o Chefe de Suco ou de povoação, mesmo que desconheça o ABC, não háde encontrar também no seu ambiente familiar um periódico amigo como a SEARA, que pode ser

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traduzido pelo seu filho, já com o Diploma da 4ª classe, conseguido em algum Colégio das missões católicas (Seara, 1966, ano 1, nº6:7).

Ora, uma coisa que impressionara o director do jornal era o interesse dos alunos do Colégio Nuno Álvares de Soibada em pussuirem um exemplar da Seara. Viu-se que o director do jornal respondeu de imediato, aludindo à intenção de reforçar as actividades missionárias e promover as práticas didáctico-pedagógicas entre a população daquela região: Não admira que, logo de entrada, num recanto tão afastado, aparecesse um bom número de assinantes, quantos alunos já com a 4ª classe, por essas vizinhanças, saídos do Colégio Nuno Álvares. O Pe. Custódio Santana Vales, Superior da Missão de Soibada, deu-nos a agradável notícia de que queria 40 números para essa Missão, pois tantos eram já os assinantes dessa região. E que contou nos até que entre eles há um que é analfabeto mas que se tinha apresentado a requisitar um exemplar para a sua família porque a sua mulher sabia ler. Belo exemplo a registar e a ser imitado por Timor [a] fora (Idem:7).

Quer dizer, a direcção do jornal congratulou-se com o trabalho do Pe. Custódio Santana Vales, por ter dado a agradável notícia de que o Colégio Nuno Álvares de Soibada queria mais 40 exemplares do jornal; a direcção sentiu-se igualmente feliz por ter em Soibada um analfabeto interessado em adquirir um exemplar da Seara para a sua família. Noutro contexto, a direcção percebeu que os funcionários do posto administrativo colonial e do centro pastoral de Alas, inclusive, as pessoas letradas daquela região, estavam entusiasmados por acederem a um exemplar do jornal diocesano, tomando a iniciativa de distribuir 50 exemplares para aquela região. Partindo desta iniciativa, a Seara teve 50 assinantes permanentes em Alas (Seara, 1966, ano 1, nº10:6). Em Aqui Maubisse cantinho de Portugal, o leitor ou correspondente A. C, testemunhou assim: […] quando me quis pôr em contacto com os leitores de ‘Seara’, para lhes transmitir a notícia de momento, não era de facto minha intenção descer a estes pormenores que me iam afastando do propósito a que venho. Mas tudo isto explica que uma terra tão singular, dotada pela natureza com tão prestimosos predicados, não podia, de modo algum, ficar à margem das notas elementares do progresso que desejamos ver nos aglomerados populacionais (Seara, 1966, ano 1, nº12:6).

A transcrição acima requer um estudo do auditório a que se dirige o orador e partirá, em seguida, para um exame de algumas técnicas argumentativas de que lança mão para convencer o seu interlocutor. No entanto, o autor daquele artigo pretende persuadir – ou seja, levar a uma acção (à sua participação enquanto colaborador) – e não apenas convencer os seus 147

colegas, que terão de ir até Díli para buscar as notícias, mas as notícias terão de ser construídas a partir da natureza montanhosa de Maubessi e, simultaneamente, explica de forma clara a beleza das aldeias do interior de Timor. Em 1967, um correspondente da Seara assistiu à celebração da bênção da primeira pedra da futura igreja em Viqueque e, na mesma ocasião, entrevistou um sacerdote australiano, Pe. A. Mecham. Mas, por falta de espaço, a entrevista não foi publicada. Face a esta situação, o jornal, em editorial, declarou que, “Por absoluta falta de espaço, não nos podemos referir neste nº da “Seara”, com o devido relevo, às celebrações havidas em Viqueque por ocasião da bênção da primeira pedra da futura igreja local, à inauguração do Postulantado das Canossianas em Timor, nem publicar as sugestivas entrevistas concedidas a este jornal, através dum nosso ilustre colaborador, Pe. Ver. Dr. F. A. Mecham, sacerdote australiano que nos visitou durante uma semana” (Seara, 1967, ano 2, nº85:3). Antes disso, publicada outra nota editorial que antecedeu a publicação do número seguinte, cujo motivo era o aniversário de D. Jaime Garcia Goulart (Seara, 1967, ano 2, nº51:4). Em 1962, a revista publicou apenas um número. Mercê de uma extraordinária e inevitável sobrecarga de serviço, na sede da diocese, contraposta a uma confrangedora escassez de pessoal a ele adstrito, não foi possível, apesar de toda a boa vontade e dedicação, manter a Seara numa regular bimestralidade, nem honrar a anuidade relativa a 1962, de que apenas se publicou um número. Devido a este problema, o editorial informou os seus leitores que “após 14 anos de existência, como revista, primeiro, mensal, depois bimestral, SEARA entra numa nova fase em que passa a ser apenas Suplemento do Boletim Eclesiástico da Diocese de Díli, em regime de assinatura gratuita e, em princípio, bimestral, quanto à sua periodicidade” (Seara, 1963, nº1). Na quadra do Natal, a Seara louvou os seus leitores, assinantes e, simultaneamente, elogiou o governador de Timor e funcionários da Imprensa Nacional de Díli, pelas contribuições dadas ao jornal diocesano. Seara apresenta respeitosos cumprimentos de boas festas do Natal a sua Ex.a o Sr. Governador da Província, a Sua Ex.a Rer.ma o Sr. Bispo, a quantos a honram com a sua colaboração, aos muitos dignos funcionários da Imprensa Nacional de Timor e seus subordinados, a todos os seus assinantes e leitores e à população em geral, e a todos deseja um ano novo repleto de ventura (Seara, 1952, ano 4, nº6:163).

Convidou-os, também, à colaboração (ano 10, nº4 de 1958) e justificou nova periocidade:

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Seara passa a publicar aos sábados. A recente alteração do dia da mala ordinária do correio para o interior da Província e outros motivos de ordem prática, impuseram que, a favor dos nossos assinantes, e sem mais delongas, passássemos a publicar a Seara aos sábados em vez de ser às quartas-feiras. Este nº do nosso jornal não traz o habitual comentário ao Evangelho do Domingo porque o referente a amanhã já saiu na última quarta-feira. O mesmo se diga do calendário litúrgico até ao dia 15 inclusive (Seara, 1967, ano 2, nº57:8).

Como já foi referido, a Seara, nas suas páginas noticiosas, contava sempre com a publicação de artigos de opinião, editoriais e reportagens de carácter local e, mesmo, internacional. Tal aconteceram quando em 1938, um franciscano polonês, Maximiliano Kolbe, se serviu da imprensa escrita como forma de evangelização: “É preciso inundar a terra com um dilúvio de imprensa cristã e mariana, em cada língua e em todos os lugares; é preciso envolver o mundo de papéis escritos com palavras de vida, para reboar ao mundo a alegria de viver” (Lorit, 1966:71. cf. Treece, 1998). A publicação da

Seara

era

irregular,

enfrentava

grandes

dificuldades

na

disponibilização das fontes de informação, o caso da edição de 1967 (ano 2, nº 96:4): “Seara, porque a mala aérea da última terça-feira não nos trouxe as habituais fontes de informação, fomos forçados a interromper neste nº da Seara os tópicos sobre o Sínodo Episcopal e a omitir a prometida Crónica do III Congresso internacional dos Leigos”. O jornal sobrevive com a colaboração activa dos seus assinantes, mas devido mau grado a demora na distribuição e não pagamento da assinatura, o editorial de 1969 (ano 4, nº 151:6) lembrou aos senhores assinantes que “Timor possui condições especiais que dificultam a difusão, melhor dizendo, a expansão do nosso jornal. A principal dificuldade é a deficiência de comunicação, que implica demoras na distribuição, fazendo perder ao nosso jornal aquela actualidade que seria de desejar. Assim, sabemos que no interior o jornal chega tarde e há assinantes que não recebem alguns números”. Adianta a direcção que “vamos tentar modificar um pouco o processo de distribuição e cobrança de assinantes, de modo a procurar uma maior eficiência. Mas é fundamental a colaboração dos nossos estimados assinantes, para que os resultados sejam positivos”. Para ganhar a confiança dos leitores, o redactor interroga-se sobre o seu próprio serviço com uma simples apresentação de quatro frases: Gosto do nosso jornal? Diga a toda gente. Não gosta? Diga-nos a nós (Seara, 1969, ano 4, nº 151:6). Certo é que essa estratégia da interpelação tentava aceder a quaisquer informações em todas as partes do interior de Timor, para além de se corresponder, igualmente, com pessoas deslocadas e viajantes pelos treze distritos administrativos e pelos quatro cantos do mundo conhecido, o que era muito válido 149

para os seus leitores e assinantes, inclusive para a elaboração das redacções, e para a obtenção da sua valiosa ‘biblioteca imaginária’. Esta noção de ‘biblioteca imaginária’ que sugerimos está bem narrada na crónica de P. L, “Carta a Timor”, publicada na Seara (edição de 1968, ano 3, nº 123:7): Olho para as nossas estantes, vergadas como laranjeiras, a impar desta ciência gorda em que nascendo e crescendo, e digamos de nós, para nós: se haverá ali um acto de alma sincero … E ao ver a casa atulhada de revistas, magazines, jornais, nós desesperamos, e qualquer dia vendemos tudo e compramos uma gaiola e um canário”, e mais adianta que “E era então necessário apreender sempre esta arte, que nunca se atinge à perfeição de conhecer suas preferências, cultivá-las no silêncio, aceitar às influências e anunciar nossa mensagem nisto que chamamos ‘espírito’ e se revela na palavra, no gesto, no silêncio.

Neste pressuposto, percebemos que há várias coisas que não podem ser ignoradas, tais como a expressão ‘aprendizagem’ que um ser humano adquire ao longo da sua vida e cultiva no silêncio. Certo é que “Não escrevermos um tratado de bem pensar: estas modestas observações à ‘Seara’ levam uma intenção muito modesta, e que nós exprimimos assim; a atenção à pessoa humana timorense e portuguesa”. Uma observação modesta, que elogia poeticamente os laços entre dois povos: “o teu lindo nome, Timor e Portugal, será um símbolo desta pessoa que é cada homem, cada uma de nós. E talvez, Timor seja uma pista escondida para o verdadeiro diálogo, que encaminhará para o verdadeiro progresso” (Seara 1968, ano 3, nº 123:7).

2.6. Total de artigos publicados pela Seara O total de peças noticiosas, artigos de opinião e editoriais na Seara releve da expansão da cultura católica (história mítica católica, seus mártires, perfil dos religiosos), da história da humanidade e do funcionalismo das missões católicas no mundo. Sobre lendas e tradições timorenses, os colaboradores e/ou correspondentes (na maioria, sacerdotes e professorescatequistas timorenses favorecendo os valores ocidentais) não apresentaram descrições daquelas questões de forma completa porque, para eles, as lendas e tradições timorenses eram invenções dos “primitivos”, pelo que as referidas questões não eram do interesse comum dos colaboradores da direcção do jornal, mas tratava-se apenas de pesquisa de interesse pessoal. Para legitimar a fundamentação da nossa análise crítica, sobre a funcionalidade da direcção editorial na escolha das notícias e da forma da sua publicação, apresentamos alguns

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dados empíricos sobre o total de peças publicadas, artigos de opinião e editoriais na Seara, segundo o ano de publicação (ver gráfico 3). Gráfico 3

Quanto ao conteúdo, a Seara contabiliza 535 artigos relevantes, dos quais 422 (79%) são artigos de opinião sobre a cultura católica (história mítica católica e respectivas actividades de missionação, seus mártires, perfil dos religiosos); 21 (4%) são editoriais e 92 (17%) são artigos sobre as lendas, tradições e costumes timorenses (ver Gráfico 4). Gráfico 4

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3. Conteúdo do jornal, redactores e colaboradores

Fizemos leitura detalhada da Seara na biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. Outros números foram vistos no Espaço Por Timor. Na Sociedade de Geografia de Lisboa, a Seara é organizada em cinco volumes, dispostos por ordem do ano de edição. No primeiro volume, encontram-se os impressos desde o ano de 1949 a 1952; a edição de 1953 a 1957 está reunida no segundo volume; no terceiro volume está disposta a edição de 1958 a 1964; a edição de 1966 a 1968 está agrupada no volume quatro; e a publicação de 1969 a 1973 está reunida no quinto volume.

3.1. Formato Em 1966, a direcção editorial modificou o formato habitual de revista, passando a jornal, com a impressão de oito páginas por edição. Devido à alteração do formato, a ordem da publicação começou de novo com o ano 1, como sublinha o editorial: “o número da Seara foi totalmente organizado neste sentido e, intencionalmente, aparece agora quando o nosso presbitério sacerdotal se enriquece com três novos e esperançosos padres” (Seara, 1966 – ano 1-nº38:1). D. Jaime Garcia Goulart escolheu o Pe. Jacinto António de Campos para assumir a gestão do jornal como director, mas em 1967 resignou por falta de disponibilidade98. A direcção alterou o formato da Seara para coligir as suas páginas, no sentido de reunir os diversos depoimentos dos letrados, como referido no tópico anterior. A alteração do formato foi adaptada à exigência do mercado de imprensa e dos leitores. Porém, na nossa opinião, esta imprensa católica não iria melhor, devido à pobre apresentação gráfica e à falta de leitores99. Muitas vezes, os jornais católicos afirmam que os leitores não possuem “mentalidade e formação católicas” (Oliveira, 1955:21). Assim, haveria uma discrepância entre o que os leitores desejam da imprensa católica e aquilo que os responsáveis editoriais por esta estariam dispostos a dar aos primeiros.

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A este respeito, o redactor da Seara publicou um comunicado aos leitores, dizendo que “No presente número [ano 2-nº56 de 1967] do jornal, desapareceu o nome do Rev.do Sr. Pe. Jacinto António do Campos, que foi até agora, o director da Seara. Os seus muitos afazeres na Chancelaria e na Procuradoria da Diocese, que não lhe permitiam oferecer a este semanário aquela disponibilidade que desejava, levaram-no a pedir a exoneração, e substituí-lo por Prelado José Carlos Vieira Simplícito (Seara, 1967, ano 2, nº55:4). 99 Na realidade timorense na época da colonização portuguesa, o analfabetismo rondava entre 90 a 95%, sendo, natural pronunciarmos a expressão “falta de leitores”.

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3.2. Aspecto da capa, sumário de notícias e ficha técnica A interpretação do aspecto da capa de uma revista e da primeira página de um jornal é relevante para o público e, principalmente, para um profissional de jornalismo. Greimas (1973) aborda não apenas a questão de como os interlocutores compreendem a mensagem apresentada na capa de revista/na primeira página do jornal, como tudo o que envolve a notícia, os oponentes, o adjuvante e até mesmo o destinatário. Um dos factores primordiais nesta análise é o dos recursos não-visuais, pois um recurso que insere os signos icónicos e os signos naturais. Na capa da revista/primeira página do jornal, por exemplo, a substância do plano de expressão abrange desde a selecção da cor até ao tamanho das fontes. A forma diz respeito à maneira como os vários elementos estão combinados, que têm como proposta formar uma mensagem. Já no plano do conteúdo, é mais abrangente, o significado transmitido é toda a mensagem implícita do conjunto da capa de revista/da primeira página do jornal. É importante dizer-se que a capa da Seara sofreu várias alterações quanto à disposição na largura, na apresentação das imagens, e quanto ao tamanho e tipo de letra ao longo da sua publicação. A direcção alterou seis vezes a capa desta periocidade. A capa da primeira edição era muito simples. O nome da revista e o sumário estavam organizados numa coluna de papel A4 e no cabeçalho registava-se o título com a referência do ano, do mês e do número de edição.

Figura 12 – Capa do ano 5, nº 3 de 1953

Figura 13 – Capa do ano 8, nº 1 de 1956

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A capa da edição de 1953 (ano 5, nº3 – ver figura 12) foi igual às anteriores, encontrando-se ao mesmo tempo, uma pequena diferença que mostra a apresentação de alguns desenhos figurativos e geométricos (pequenas estrelas encaixadas na linha baixa, direita e esquerda; quatro placas de cerâmica desenhadas ou montadas aos cantos da linha). Estes elementos simbolizam o cristianismo. Partindo desta análise, podemos dizer que o design gráfico e a imagem que apoiam e intensificam os títulos nas capas são importantes no quadro do género jornalístico, pelo facto de a apresentação gráfica ter um papel essencial na conquista dos leitores, e ser cada vez mais preponderante em qualquer meio impresso que tenha como função primordial a comunicação escrita.

Figura 14 – capa do ano 8, nº 2 de 1956

Figura 15 – capa do ano 10, nº 2 de 1958

A estrutura da capa do Ano 8 – nº 1 de 1956 (ver figura 13) é muito semelhante à da edição anterior, apesar de haver alguma diferença na apresentação do simbolismo cristão, como as 11 placas de cerâmica messiânica, 4 medalhas do universo com quatro crucifixos no seu centro, 14 arcos e 18 linhas. As 11 placas de cerâmica messiânica representam o centro do universo, ou seja, no mundo dos cristãos são considerados como cristocentrismo. Observando bem estas placas, temos a certeza de que podem significar outro nível de representação. De acordo com a doutrina cristã, o percurso de vida no mundo poderia ser bem realizado se o ser humano continuasse fiel ao seu Deus-Supremo; por exemplo, as 4 medalhas representam o comportamento do homem no fortalecimento dos laços de amizade com Deus através do amor de Cristo; os 14 arcos representam o percurso de sofrimento de Jesus; 18 linhas são os elementos que ligam a visão humana com o universo finito e o infinito. Compreendemos, no entanto, que na representação simbólica, o cordeiro pode representar Cristo e a pomba a paz. 154

Na edição do ano 8, nº 2 de 1956, a direcção alterou novamente a composição da capa, sobretudo, o tipo de letra do título com uma representação gráfica simples (ver figura 14). Em diversas capas da Seara, encontramos uma nota que nos parece fundamental e tem uma legitimadade de representação simbólica, é na capa do ano 9 – nº 3 de 1957, em que se afirma a riqueza paradisíaca da ilha de Timor, isto é, a apresentação da imagem e o espaço gráfico visual na capa são também uma forma de género. Significa isso que a padronização atingida pelo uso da planta Kelapa é uma estratégia no processo de fidelização do público-alvo timorense (ver figura 15). A edição do ano 4 a 8 (1969-1973) foi a maior edição na história do jornalismo católico em Timor, porque a composição gráfica da Seara apareceu com o ‘estilo gráfico’ d’A Voz de Timor.

Figura 16 – Capa e resumo das notícias do ano 1, nº 1 de 1949

Figura 17 – Resumo de notícias na segunda página, ano 5, nº 3 de 1953

A capa da Seara apresentada nas figuras 12 a 14 é, do ponto de vista jornalistico, de má qualidade, o que dava impressão defeituosa e pouco agradável esteticamente, mas agradável o conteúdo da mensagem textual e figurativa. Alguns jornais saíam, por vezes, impressos em papel colorido, principalmente quando se tratava de edições comemorativas com a apresentação da composição gráfica de cor (Gouveia, 2009), como se nota na capa da Seara do 10, nº 2 de 1958 e edição especial de 1999. 155

O sumário de notícias costumava ser dividido em diferentes cadernos temáticos, apresentando um ou vários assuntos que, do nosso ponto de vista, não apresentam o essencial, mas misturam tudo o que seja do interesse dos redactores e missionários. Assim, o sumário da edição do Ano 1-nº 1 de 1949 estava já na capa: Bulas de Provisão da Diocese de Díli; Provisões; Seara (editorial); o culto dos lulic; apostolado da oração – intenções para Fevereiro; e Por nossa casa (ver figura 16). Os sumários das edições seguintes surgem na segunda página, mais conhecida pela designação de ‘capa complementar’. Uma pequena empresa jornalística costuma ter uma coluna de apresentação das pessoas que fazem parte da direcção. Mas, na ficha técnica da Seara, não existe nenhuma lista de directores, redactores, correspondentes e colaboradores. Isto fez-nos saber que o órgão directivo não apresentou a identificação dos membros da direcção e respectivos colaboradores ao público-alvo. Notou-se apenas o nome do proprietário do jornal: Boletim Eclesiástico da Diocese de Díli.

3.3. Preço Apesar de a Seara ser um órgão de inspiração católica, não deixa de ser um objecto de negócio. A primeira edição, de 1949, fez uma tiragem de 500 exemplares e já vinha com a fixação dos preços: $ 10,00 para a assinatura anual; $ 5,50 para a assinatura semestral e $ 1,00 para o número avulso. Nas edições seguintes, principalmente, na edição de 1950, houve alteração dos preços: $ 8,00 para a assinatura anual; $ 5,00 para a assinatura semestral e $ 1,00 para o número avulso. Estes preços foram aplicados até ao fecho da edição em 1960. Foram sendo alterados em função das necessidades de melhoria da qualidade do jornal, de maneira que, a partir da edição do nº 3 e 4 de 1957, alterou-se mais uma vez o preço deste Boletim, que se manteve para a assinatura anual e semestral, mas, para o número avulso, de $ 1,00 subiu para $ 1,50, mantendo-se a tiragem de 500 exemplares. No ano de 1953 – ano 5nº3, diminuiu a sua produção para 400 exemplares, até à edição do ano de 1964. Em 1960, o editor do periódico subiu o preço do jornal com os seguintes escalões: $50,00 para a assinatura anual; $30,00 para a assinatura semestral e $10,00 para o número avulso. Este preço continuou a vigorar até 1964. Em 1966, pela adaptação do novo formato, os dirigentes deste órgão informativo decidiram alterar o preço, ficando $ 40,00 para a assinatura anual, $ 4,00 para a assinatura semestral e $ 2,00 para o número avulso. Em 1967, o preço do número avulso baixou para 1$00.

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3.4. Redactores e colaboradores Os redactores da Seara eram padres que, simultaneamente contavam com a ajuda de alguns colaboradores (leigos e interessados). Os padres elaboravam as notícias para o jornal; os colaboradores contribuíam apenas com a apresentação de um ou mais artigos, quer lendas ou contos, quer outro tipo de artigos de opinião. Os redactores da Seara não estavam associados a nenhuma secção na qual se tivessem especializado. Os artigos publicados na Seara eram maioritariamente da autoria do Pe. Ezequiel Enes Pascoal, Pe. Jorge Barros Duarte, Eurico Lemos, Manuel Ferreira, Pe. Quintão, Marisa Volta, Nicolau Lobato, Basílio do Nascimento, Francisco Lemos, Rogério Lobato, Ramos-Horta, Mari Alkatiri, colaboradores permanentes que colaboraram com a publicação numa base regular. Estes colaboradores não entravam nas rotinas da redacção, ao contrário dos redactores. As notícias redigidas pelos correspondentes e colaboradores eram vistas pelos redactores padres, muitas delas presentes na agenda pastoral. Os correspondentes da Seara, a nível internacional, eram representados também pelos padres, visto que as notícias internacionais (sobre a comunidade cristã de Macau, China, Indonésia, Moscovo, Europa, América e África) publicadas na Seara foram – na sua maioria – enviadas por padres das respectivas regiões. Os directores da Seara foram: Pe. Ezequiel Enes Pascoal (1949-1954); Pe. Jorge Barros Duarte (1956-1957); Pe. Leoneto Vieira do Rego (1958-1959); Pe. Jorge Barros Duarte (1959 até 1966); o Pe. Jacinto António de Campos ocupou o cargo de director e o Pe. José Carlos Vieira Simplício exerceu a função de chefe da redacção (1966-1967); Pe. José Carlos Vieira Simplício (1967-1968); Pe. Manuel André Pinheiro (1969-1972) e Pe. Martinho da Costa Lopes (1972-1973).

4. A propaganda e a relação entre a Igreja e o poder colonial Segundo a edição da Seara de 1967 (ano 2, nº53:8), os profissionais e todos os responsáveis pela produção jamais deviam lançar a público, sob pretexto de arte, motivos comerciais ou outras considerações falaciosas, escritos ou espectáculos lesivos da moralidade ou do bem comum. Na Seara encontram-se alguns anúncios de cariz comercial, religioso e até cultural, abrindo-se caminho para a mercantilização e reportagem das notícias de propaganda política da autoridade colonial e das missões católicas no território. Neste sentido, na segunda 157

edição do primeiro ano, no editorial, saiu uma informação que dizia aceitar a publicidade nos seguintes termos: “o primeiro número teve um acolhimento animador o que, de resto, se compreende, pois é a primeira revista que se publica em Timor. A sua apresentação gráfica mereceu o agrado geral [e, portanto], Seara aceita, de futuro, anúncios em condições que serão previamente estabelecidas com os interessados” (Seara, 1949, ano 1, nº2:40). A promoção e divulgação da identidade cristã eram bem perceptíveis nas páginas da Seara, manifestando assim a existência do jornal de forma esperançosa. Como dizia o editorial: “A par de recta intenção de bem servir, não nos falta a consciência das nossas limitações. Que a Seara não corresponde ao ideal que nós próprios formulamos, é um facto. Futuras remodelações lhe trarão a possível melhoria, quando soar a hora propícia” (Seara, 1967, ano 2, nº53:1). Esta visão esperanciosa foi justificada novamente por um colaborador menos conhecido com o nome siglado M. A. P, dizendo que “o nosso jornal possa continuar a ser uma presença de Deus e da igreja em terras de Timor”. Adianta que o 4º aniversário de Seara “ é o seu futuro e sobretudo a sua progressiva valorização de único jornal da Igreja em Timor”, para atingir a plenitude de vida e de frutuosa actividade missionária nas terras timorenses. Por este motivo, M. A. P esclarece: O nosso modesto jornal procurou pugnar por um ideal tanto mais nobre quanto ele se pode resumir no engrandecimento e valorização da já clássica trilogia, como seja, Deus mais amado e servido, através de uma Igreja cada vez mais viva e autêntica, Portugal mais conhecido e compreendido na sua extraordinária missão histórica de país civilizador e missionário, e a família mais enobrecida e dignificada na sua vocação humana e cristã, como célula-base da mesma sociedade […] com um Portugal mais português e mais cristão (Seara, 1970, ano 5, nº 164:1).

Por ocasião da festa do Corpo de Deus, D. José Ribeiro, num “Apelo Pastoral aos católicos”, proferiu que a festa do Corpo de Deus era, para os portugueses, estejam onde estiverem, uma expressão da alma nacional, essencialmente cristã, sendo igualmente um imperativo desde o Minho a Timor (Seara, 1969, ano 4, nº 147:1-4). As notícias publicadas na Seara eram de cariz religioso e tinham uma forte relação com o governo colonial e as suas acções políticas. Para reforçar ou legitimar o nosso argumento, recorremos a uma declaração do director publicada no editorial do ano 7, nº216 de 1972, dizendo que “embora [a Seara] apolítico e independente, não poderá o nosso jornal deixar de integrar-se dentro da linha tradicional da política do país, porquanto é servindo a Pátria e o Governo desta Província de Timor que ele melhor poderá continuar a dar o seu pequeno contributo para o bem-estar e promoção social das gentes a quem procura servir e ajudar

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desinteressadamente” (Seara, 1972, ano 7, nº216:1). Esta forma de discurso é uma declaração de casamento entre a Igreja Católica e o Governo colonial da Província de Timor, de modo a poder controlar o território e as crenças dos povos de Timor. Esta profunda relação foi encontrada também no artigo “Dezóito anos de intensa actividade 1924 a 1942”, assinado pelo Pe. Ezequiel Enes Pascoal. Eis a descrição: […], agitavam a Mãe-Pátria com carácter acentuadamente anti-religioso e, como vendaval devastador, acumulavam ruínas não só na Metropole mas até nas mais afastadas possessões do Ultramar. […] Os portugueses se empenharam em lançar por terra o que compatriotas seus tinham erguido, à custa de muitos suores e sacrifícios, para honra, bem e prestígio da Pátria, sendo crélores, por isso, única e simplesmente, do mais incondicional auxílio e simpatia (Seara, 1949, ano 1, nº2:29).

Mais uma vez, um discurso que efectivamente reconstituía a diferença como identidade, regulava e representava espaços dominados por forças de ocupação, e não por habitantes inactivos (Said, 1994:166); descrevendo o Outro como inimigo, neste caso refere-se à expressão “anti-religioso” aludida na transcrição. Era, portanto, o discurso que “pretende ser, fundamentalmente, um hino de louvor à civilização colonizadora, à metrópole e à nação do colono, cujos actos de heroicidade e de aventureirismo, de humanidade e de estoicismo são, quase sempre, enquadrados por uma visão maniqueísta da vida e do mundo envolvente” (Trigo, 1988:145). No dia 13 de Maio, em Díli, a Seara informava que aquela data fora comemorada pelas populações locais como um sinal de manifestação da fé ao culto mariano e de lealdade à bandeira nacional portuguesa: Aqui e ali, ao longo do percurso, foram construídas algumas “ermidas” improvisadas capelinhas de cujas colunas e paredes, por fora e por dentro, pediam dezenas e dezenas de lamparinas de azeite. Ao centro, entre velas, via-se uma imagem ou estátua de Nossa Senhora de Fátima. Duas delas tinham, no fundo, a fechá-las, enorme bandeira nacional [portuguesa] a devoção a Nossa Senhora e à Pátria unidas, embora em planos diferentes e com significação diversa, na mesma estima, ao clarão das mesmas luzes (Seara, 1953, ano 5, nº3:174).

Não se tratava de comemorar o grande acontecimento, dito histórico da Igreja Católica, mas justificava também a relação institucional entre a Igreja e a autoridade colonial, sabendo que tal cooperação tinha sido afirmada formalmente no editorial da Seara (ano 1, nº1 de 1949) pelo Pe. Ezequiel Enes Pascoal, como se segue: “Sem deixar de ser arauto das glórias de Portugal nesta remota e histórica parcela do seu império, eco das suas alegrias e tristezas, pregão dos seus triunfos, ‘SEARA’ será, sobretudo, mensageira da Cruz cujo clarão desce até 159

ao mais fundo das almas, às suas mais íntimas raízes, até àquelas que são inacessíveis a qualquer outra influência” (Seara, 1949, ano 1, nº1:12). Na sua função de defesa da Igreja e da pátria portuguesa, o jornal católico envolveu-se em assuntos políticos e, simultaneamente, louvava o poder colonial nestes termos: “o nosso jornal deixa de integrar-se na linha tradicional da política do país, porquanto é servindo a Pátria e o Governo desta Província de Timor […]” (Seara, 1972, ano 7, nº216:1). Importa sublinhar, no enatnto, que a própria existência do periódico estava associado ao poder eclesiástico e ao poder político do governo colonial da Província Portuguesa, isto é, um sistema particular de inter-coordenação entre duas instituições integrado nos contextos do mundo político colonial. O poder que o órgão de comunicação diocesana de Díli assumiu no tempo colonial foi um poder cooperante, como parte de um Estado soberano colonial. A propósito, há duas categorias distintas de poder assumido por estas instituições: o poder administrativo ou político e o comunicacional. No poder administrativo e político – no caso do jornalismo colonial –, a Igreja recebia também apoio judicial do governo colonial na aquisição de terrenos indígenas para construir escolas, isto é, por inactividade do sector educacional do governo, o governador de Timor Português depositou total confiança nas missões católicas, pois, conforme previsto no Decreto-Lei do Estatuto Missionário nº 31.207 do governo de Salazar, de 5/4/1941, dizendo que “As missões católicas portuguesas são consideradas instituições de utilidade imperial e sentido eminentemente civilizador” (Barros, 1981: 86). Deste modo, a Igreja Católica, através do seu periódico Seara, publicou informações de cariz político e social da autoridade colonial, inclusive os perfis de alguns governadores que governaram Timor: Desde o dia 27 de Janeiro que a Província Portuguesa de Timor tem Governador na pessoa do distinto Oficial do nosso Exercito, Tenente-coronel Fernando Alves Aldeias. Sua Excelência, em Timor, nem é um desconhecido, nem é um desconhecedor: é perfeitamente integrado nos problemas humano sócioeconómico e religioso do povo timorense. […]. Esta hora é de júbilo para Timor. Tem Governador, a autoridade que convém […] (Seara, 1972, ano 7, nº217:1-6).

A Igreja e a autoridade colonial utilizaram a Seara como fonte de mútua cooperação no sentido de assegurar a soberania portuguesa em Timor. Para terminar a reflexão aqui desenvolvida, torna-se necessário indagar por que razão a Seara não divulgava informações sobre promoção comercial em maior dimensão e porque teria sido apenas uma revista/jornal dirigido às pequenas elites católicas e menos exigente na recolha de notícias. De qualquer forma, segundo Zacarias de Oliveira (1955), a responsabilidade pelo estado da situação em 160

que então vivia a imprensa católica timorense, em particular, e a imprensa católica no mundo, em geral, era “de todo o católico”, sendo necessário unir as vontades “num desejo positivo de mais e melhor” e levar os católicos a perceber que teriam alguma coisa a lucrar “numa vida em comum com as publicações católicas”.

5. Artigos de opinião mais representativos Ao longo da sua existência, a Seara tem uma secção intitulada “Subsídios para um Dicionário Corográfico de Timor”, da autoria de Manuel Ferreira. Aí, deu mostrar de um espírito inteligente e infatigável na investigação das coisas de Timor que considerava mais valiosas para o conhecimento histórico, antropológico, estudos de literatura e até questões filosóficas (Paulino, 2012b:3). Um dicionário bibliográfico que apresentou era como um verdadeiro ‘cabo do Mundo Português’ em Timor. A publicação dos “Subsídios para um Dicionário Corográfico de Timor” foi fruto de criteriosa investigação do Dr. Manuel Ferreira. Em 1958, o autor deu nova forma ao título do seu trabalho, embora o conteúdo das temáticas abordadas fosse, na sua maioria, a continuação do trabalho anteriormente publicado. Aparecem, assim, os “Subsídios para a Bibliografia de Timor”, cuja publicação teve início na edição do ano 10, nº3, de 1958. Nesta edição, limitavase a publicar apenas algumas notas introdutórias. No presente número da ‘Seara’ damos apenas a introdução da obra que vem enriquecer extraordinariamente as páginas do Boletim Oficial da Dioceses de Díli, que, aliás, deve, desde há já bastantes anos, ao espírito inteligente, culto e infatigável de Manuel Ferreira, uma colaboração assídua e dedicada que tem sido das mais honrosas.

Devido a este facto, a Seara, na voz do seu director, Pe. Jorge Barros Duarte, considerou os “Subsídios para a Bibliografia de Timor” como um panorama literário de Timor. Aos que, num comodismo simplista, apregoam aos quatros ventos que nada ou quase nada há escrito sobre Timor o presente dicionário bibliográfico é um desmentido formal, dados por quem entende da poda por quem não hesitou a sacrificar lazeres e até licenças graciosas à dura tarefa de uma compilação bibliografia, através de morosas consultas de bibliotecas, e de paciente manuseamento de revistas, jornais e monografias sobre Timor (Seara, 1958, ano 10, nº3:155).

Os “Subsídios para a Bibliografia de Timor” estão divididos em três secções: na primeira, o autor apresenta a lista alfabética das obras (artigos, revistas e livros); na segunda, 161

fornece notas referentes a algumas das epígrafes da primeira secção; e, na terceira, começa a organizar a respectiva onomástica dos autores em ordem alfabética. Tabela 6 - Artigos de opinião mais representativos Artigos de opinião (art), editorial (edit) O culto dos ‘lulic’ Seara (editorial) Por Terras de Mena Dezoito anos de intensa actividade 1924‐1942 Tutuala: apontamentos etnográficos Coisas do Oriente Paisagens e figuras timorenses, Ainaro Glória ao Engenheiro Canto Um pouco de história O que diz de Timor em 1670: um missionário franciscano O padre Abílio Caldas – um ex-aluno de Soibada Dili – apontamentos etnográficos Subsídio para um Coreográfico de Timor

Dicionário

Matebiám Viajando de Lisboa a Timor Viajando de Lisboa a Timor Díli – Apontamentos etnográficos Uma Visita Uma Página de história Página missiológica – a poligamia Uma Página de história Evocando Memórias de Belchior Vultos de Timor: um português dos melhores Vultos de Timor: um herói de Manufahi Vultos de Timor: O doutor António da Costa Carvalho Vultos de Timor: governador ignorado Um chefe que soube morrer Antigo Missionário de Ataúro Estação Missionária de Ataúro A alma timorense Goa O casamento canónico e o decreto nº 45063 O ‘Lorsán’ Barlaque Validade dos casamentos consuetudinários: Chinês e Timor

Autor e Ano de publicação

Nº de Refª

Ezequiel Enes Pascoal, 1949, ano 1, nº 1 Ezequiel Enes Pascoal, 1949, ano 1, nº 1 Ezequiel Enes Pascoal, 1949, ano 1, nº7 Ezequiel Enes Pascoal, 1949, ano 1, nº 1

1 1 1 1

Manuel Ferreira, 1951 – ano 3, nº 5,6 Natália Maria da Conceição, 1952 – ano 4, nº 5 Emílio Euclides de Oliveira, 1952, ano 4, nº 6 Ezequeil Enes Pascoal, 1952 – ano 4‐nº5. Ezequiel Enes Pascoal, 1953, ano 5, nº 2 Pe. Mateus da Neves, 1953, ano 5, nº 3

2 1 1 1 1 1

1953, ano 5, nº 1

1

Manuel Ferreira, 1953 – ano 5, nº 4,5 Manuel Ferreira, 1953 – ano 5, nº 3,4,5,6; 1954 – ano 6, nº 1,2,3,4,5,6; 1955 – ano 7, nº 1,2,3; 1956 – ano 8, nº 1,2; 1957 – ano 9, nº 1,2,3,4,5; 1958 – ano 10, nº 1,2,3. Ezequiel Enes Pascoal, 1953, ano 5, nº 5, 6; 1954 – ano 6, nº 1,2,3,4,5,6; 1955, ano 7, nº 1 Manuel Ferreira, 1953, ano 5, nº 2; 1957, ano 9, nº 3 Manuel Ferreira, 1953, ano 5, nº 2 Manuel Ferreira, 1953, ano 3, nº 4, 5 Chico, 1953, ano 5‐nº2 Manuel Ferreira, 1954, ano 6, nº1 Ezequiel Enes Pascoal, 1954, ano 6, nº 3 Manuel Ferreira, 1954, ano 6, nº 1 Manuel Ferreira, 1954, ano 6, nº 5 Manuel Ferreira, Julho/Agosto e Novembro/Dezembro de 1954 Manuel Ferreira, 1954, ano6, nº5

2 23

9 1 1 2 1 1 1 1 1 2 1

Manuel Ferreiras, ano 6, nº 6 Manuel Ferreira, 1955, ano 7, nº6

1 1

Manuel Ferreira, 1955, ano 7, nº 3 Joaquim Alves da Gama,1955, ano 7, nº 6 Jorge Barros, 1957, ano 9, nº 2 Jorge Barros, 1957, ano 9, nº 5 Jorge Barros, 1958, ano 10, nº2 Jorge Barros, 1962, ano 9, nº 1 Jorge Barros, 1963 – ano 15, nº 2

1 1 1 1 1 1 1

Jorge Barros, 1963 – ano 15, nº2 Jorge Barros, 1964 – ano 16, nº3-4 Jorge Barros, 1964 – ano 16, nº 1 e 2

1 1 1

162

História verdadeira de Timor: conversão do rei Costume da minha terra Apontamentos sobre o colégio Infante de Sagres Maliana Aqui, Maubesse cantinho de Portugal A Propósito de união Tópicos sobre juventude Meio século da vida de Soibada: 18981950 Crónica de Fahinean Unidade na variedade Para uma ordem nova Viagem apostólica ao extremo oriente O período da pré-evangelização de Timor – os primeiros 50 anos da história das missões de Timor Vamos fazer fotografia A igreja e as culturas O existencialismo de Sarte Os surrealistas – arte do século XX Tentativas de adaptações: o Casamento Nativo Autoridade e liberdade Timor parcela Nacional Liberdade ou igualdade Burocracia Empatocracia Propestos duma catequese adaptada a Timor Viagem por terra da montanha (conversão do Mau Mali) Na hora da juventude Educação Base Educação e vida Família, nação e religião

José Ribeiro, 1966, ano 1, nº 34

1

Basílio de Nascimento, 1966 – ano 1, nº26 Pe. José C. A. Guterres, 1966, ano 1, nº33,34,35

1 3

A. C., 1966, ano 1, nº 12 Nicolau Lobato, 1966, ano 1, nº 33 Nicolau Lobato, 1966, ano 1, nº 28 Egídio Meles Diaz Ximenes, 1967, ano 2, nº 85

1 3 1 1

José Quintão dos Reis, 1968, ano 3, nº 125 M. G., 1968, ano 3, nº 122 M. Santos, 1968 ano 3, nº 126, 127, 128, 129, 130, 131, 132 Pe. Manuel André Pinheiro, 1968, ano 3, nº 109 Lopo Vaz, 1969, ano 4, nº 155

1 1 7

Carlos Lajes, 1969, ano 4, nº 151, 152 1969, ano 4, 148 Pe. André Pinheiro, 1969, ano 4, nº 147, 148, 149, 150, 151, 152 1969, ano 4, 162 Pe. Quintão, 1971, ano 6, 4ª série, nº 213, 214; 1972 – ano 7, nº 216, 217, 218, 219, 220, 224, 226,227,282,229,230, Ângelo Santos, 1971, ano 6, nº 196. Angêlo Correia, 1971, naº 6, nº 202 A. M. Z, 1971, ano 6, nº 203 Lima de Carvalho, 1971, ano 6, nº 205 Pe. José Quintão, 1971, ano 6, nº 196

2 1 6

António Vicente Marques Soares, 1972, ano 7, nº 226 Mário Quartin Graça, 1972, ano 7, nº 220 1972, ano 7, nº 232, 233, 234 1972, ano, nº 243 Rodrigo de Abreu, 1974, ano 8, 245

1 2

1 13 1 1 1 1 1 1 1 3 1 1

Os artigos de opinião ‘mais representativos’ mencionados na tabela acima, foram seleccionados pela sua importância para o estudo etnográfico, antropológico, ético-religioso e ético-filosófico, da história, da política e da economia. Além disso, alguns deles foram caraterizados como “crónica de viagem, crónica literária e crónica de apontamentos etnográfico” (Paulino, 2011d).

163

6. A Igreja Católica, educação e nacionalismo timorenses Em “Dezóito anos de intensa actividade 1924 a 1942”, o Pe. Ezequiel Enes Pascoal faznos saber que poucas missões, como as de Timor, terão passado por tão vincadas vicissitudes gloriosas, registando também épocas de franca decadência (Seara, 1949, ano 1, nº2:29), sobretudo, na consolidação das missões religiosas e do poder administrativo colonial. Neste artigo, o autor sublinhava que não ficou surpreendido quanto à existência da guerra em Timor entre os vários reinos contra a presença portuguesa, onde esta terra se encontrava dividida por duas nações europeias. Acresce ainda que não havia compreensão mútua e indispensável relação harmoniosa entre a suprema autoridade civil e religiosa, pelo que a obra de evangelização se atrasava. De acordo com Sofia Miranda (2003:15), os portugueses foram submetendo os povos com que depararam a uma acção eurocêntrica e cristocêntrica, e a evangelização das populações autóctones actuava principalmente em áreas onde a força das armas se mostrava menos eficaz, de modo que as conversões foram sendo assumidas pelo poder político português como estratégia de “dominação colonial”, que permitia a manipulação dos povos, facilitando assim o controlo militar e económico dos bens e territórios a ocupar. As missões católicas em Timor contaram quase sempre com o apoio do Governo português, desde a chegada do governador António Coelho Guerreiro e seu conselheiro espiritual Frei Manuel de Santo António. Tal apoio foi reforçado com a implantação do regime do Estado Novo, tendo sido publicado em 1929 o Estatuto Orgânico das Missões Católicas Portuguesas de África e Timor, que regulamentava o apoio conferido pelo Estado português às missões: “ [...] As Missões passaram a ser sobretudo vistas como um instrumento de valor inestimável para a acção civilizadora de Portugal e como força aglutinadora da sua presença no Ultramar” (Barros, 1987:29). Às missões competia o seguinte: recrutar o maior número possível dos naturais timorenses para serem ordenados padres e integrá-los regularmente enquanto elementos eclesiásticos e cidadãos100, assim preenchendo as lacunas deixadas pelo monopólio de uma única ordem religiosa sobre a transferência dos bens que administrava no território da gente não-cristã, desde que ela não assegurasse os missionários necessários. O recrutamento dos naturais timorenses serviam inicialmente, para apoiar o pequeno número de missionários estrangeiros destacados no território e foi um acto de reconhecimento dos bispados à falta de

100

Veja-se: o AHU, SEMU/DGU, Saída de Correspondência para Macau e Timor, livro n° 1 (1835-1841), Ofício n.° 1, Paço, 23 de Maio de 1837, “Instruções para o Arcebispo Primaz do Oriente”, pp. 46-47.

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missionários que começou a ser sentida desde os anos de 1770 a 1845. Tudo isto tinha a ver com o abandono das missões por alguns missionários por razões de conflito interno do “estado de religião” em Timor e as revoltas contra a presença portuguesa; sobretudo, parecia relacionar-se com a carência de religiosos101. Por outro lado, apesar de, em Timor, nessa época, não se colocar o problema dos bens, porque não os havia, registavam-se alguns conflitos entre o poder secular e os eclesiásticos102, embora já se tivesse declarado a proibição de possuir escravos em todos os serviços injustificáveis103.

6.1. Educação No contexto da acção educativa, a direcção editorial teve oportunidade de publicar dois artigos referentes à existência de dois colégios, o de Soibada e o de Maliana. “Meio século da vida de Soibada: 1898-1950” (1967, ano 2, nº 85) de Egídio M. Dias Ximenes, “Apontamentos sobre o Colégio Infante Sagres de Maliana” (1966, ano 1, nº33,34,35), de José C. A. Guterres. Ambos tinham sido construídos pelo Pe. Manuel Luís. Depois, de Macau, designada Cidade do Santo Nome de Deus pelos missionários portugueses, Soibada (a região recôndita de Timor) era caracterizada como o Sacro Império Português na Ásia e, simultaneamente, passava a ser considerada a “Coimbra de Timor”. Soibada era e é um sítio mítico em Timor104: Aí, foi construido o primeiro Santuário Nacional 101

Veja-se: HAG, Correspondência de Macau, livro n.° 1.307 (1812-1813), Carta para o vice-rei, Dili, 26 de Abril de 1812, fl. 431v. A descrição desta correspondência era seguinte: “Não ha nesta Ilha mais do que esta Igreja; e outra em Manatuto; visto que a falta dos religiozos fez com que os Reys deixassem cahir as que avia nos seos Reinos, porem ja falei; ao Brigadeiro Rey de Mutael para mandar redefícar a do seu Reino; e elle me prometeo de a fazer na certeza de vir religiozos”. 102 Pode-se ler no Relatório do ministro do Ultramar: “As últimas notícias da Ilha de Timor são do mês de Dezembro de 1834. O Governador, e o Ouvidor, haviam sido presos na Vila de Dilly, capital da ilha, e remetidos para Macau; e o Governo achava-se usurpado por um frade” (cf. Relatório do Ministro do Ultramar, em 1836, p. 6, transcrito in Arquivo das Colónias, vol. I, Julho-Dezembro, 1917, p. 9). 103 Cf. AHU, cartas de Martinho de Melo e Castro para o bispo de Cochim, Salvaterra de Magos, 6 de Março de 1779: n.°232, fis. 174-176v; n.°233, fis. 176v-179; n° 234, fis. 179-181 v; en.0236, fl. 182. É vale a pena, portanto, reter o apelo contido na carta de Martinho de Melo e Castro dirigida ao bispo de Cochim: “ [...] que os Prelados Mayores entrem muito seriamente nesta importante obra, e que V. Ex.a lhes faça ver bem claramente, que a Religioza Piedade da Raynha N. Sr.a, quando determinou [...] que as Ordens Religiozas fossem conservadas nas Missoens, [...], não foi para que ellas ficassem na grande relaxação, em que prezentemente se acham, mas para que os mesmos Prelados concorressem eficazmente com V. Ex.a para tudo aquillo, que possa contribuir a desterrar os vicios, estabelecer as virtudes, e propagar as Santas Doutrinas do Evangelho, não só com a Predica, mas também com a pureza dos costumes, e com os exemplos dos Ministros delle” (idem – nº 233:fl.179; cf. Figuereido, 2004). 104 Porém, o próprio padre Sebastião reconheceu que não teria sido muito feliz a sua escolha. Dificuldade de comunicação com o litoral, excessiva humildade em certas estações do ano, terrenos acidentados e perigosos impróprios para a cultura [de missionação], tudo isto, foram inconveniente cuja importância só o tempo e a experiência tornaram palpável, já tarde de mais para desfazer o que feito estava. Em 1904 havia inaugurado uma igreja de 24 metros de comprimento, 9 metros de largura e 10 de altura, toda de pedra e cal e coberta de zinco como o Colégio dos rapazes, que pela mesma altura entrava a funcionar, mas o colégio para menina, quase

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de Nossa Senhora de Aitara, um lugar de particular importância para os perigrinos devotos ao culto mariano; em segundo lugar, foi nesta região que se fundou o mais importante colégio de Timor, e um dos mais importantes do antigo território português. O colégio do ‘Infante de Sagres’ foi construído no local sagrado dos povos de Kemak, designado por lúgu lúlic, que significa batata sagrada no mato. José C. A. Guterres (Seara, ano 1, nº33:1; ano 1, nº35:4) informe que “[…] O colégio fica nas terras da Maliana, confinado com o posto de Cailaco a leste, um pouco por cima da Missão, e descendo para oeste até à ribeira Bulolo que o separa da imensa planície onde vegetam palavões brancos com extraordinária fecundidade. Em 1953 já funcionava o edifício escolar do colégio ‘Infante de Sagres’, mas os seus dois amplos dormitórios com o seu balneário só seriam estreados em fins de 1956. […] No dia 20 de Outubro de 1960, o colégio viveu horas de intensa alegria e de patriotismo”. Embora, o subdesenvolvimento da educação em Timor fosse enorme, a realidade era ligeiramente diferente, porque só foi em 1924 que o Bispo de Macau em Timor, D. José da Costa Nunes, criou em Lahane, a primeira escolha de professores para o ensino primário, com cursos de três anos, depois da 4ª classe. Estes professores, uma vez formados, desempenharam um papel muito importante na instrução geral e religiosa (BarbedoMagalhães, 2007a:145). Ao homenagear D. José da Costa Nunes, o Pe. Ezequiel Enes Pascoal, em Jornadas pastorais naquele tempo em Timor, sublinhava: antes de Sua Excelência Reverendíssima visitar a ilha pela primeira vez havia lá, no dizer do Padre Abílio, 10 missionários-professores (isto é, dedicavam-se mais à vida de ensino do que ao trabalho missionário), ‘as conversões eram raras, as desobrigas poucas’. Depois da visita do Senhor D. José, acabam os missionários-professores, a eles competirá apenas a tarefa de dirigir as escolas superiormente, pois, conforme escreve Sua Excelência Reverendíssima, num relatório oficial que foi publicado: “o missionário parado com o livro na mão a ensinar indígenas, desde então, essa tarefa competirá a professores e professoras indígenas, para os quais funda dois colégios, cujos estudos vão até ao terceiro do Liceu (Seara, 1960, ano 12, nº3:152-153).

Acrescenta o autor que D. José da Costa Nunes era um homem de ilibada honradez, de prestígio inexcedível, que, por onde quer que passasse, em Macau, em Timor, na Índia, tinha o nome definitivamente vincado no pensamento de cada cristão timorense, como o do grande Bispo Medeiros, pelo serviço prestado às missões de Timor. Alguns timorenses dizem que D. José da Costa Nunes era um religioso que não queria dar educação formal aos filhos dos concluído em 1910, não chegou a acabar-se, pois por motivo de expulsão das religiosas canossianas, no entanto, a escola das irmãs canossianas foi fechado ante 1923 e reabriu em 1924 – veja o relatório de Jaime Garcia Goulart (1938), “Soibada”, in Boletim Eclesiástico da Diocese de Macau, nº 406, p.471.

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“nativos” timorenses de forma continuada. O que ele queria, era dar educação aos timorenses só até à quarta-classe, e dar-lhes alavanca e ai’suak para que pudessem trabalhar na várzea”105, como confirma o relatório sobre escolas e missões católicas de Timor que ele próprio escreveu e publicou no Boletim Eclesiástico da Diocese de Macau, em Janeiro de 1938: Em matéria de letras, queria que se ensinasse o indígena a ler, escrever e falar um pouco de português, a formar uma ideia do que é a nossa Pátria, a fazer as quatro operações e a pouco mais. O resto suprimia-o sem piedade. O que não suprimia era o ensino profissional, particularmente o ensino agrícola, mas sob uma forma prática e mesmo rudimentar para evitar a ideia de patriotismo timorense a independência. Instrumentos, pois, o indígena, obriguemo-lo a trabalhar, aliás ele não trabalha; formemo-lo um pouco à nossa imagem e semelhança, respeitando, porém os seus usos e costumes, desde que não colidam com a moral; façamos dele um civilizado, mas não pensemos que o processo se reduz a uma substituição da sua indumentária e à adopção de hábitos europeus, muitas vezes nefastos para a sua psicologia de primitivo; numa palavra, preparemos o indígena para uma vida superior à que hoje leva, mas que todo este trabalho de formação reverte em favor do preto, e não, propriamente do branco. Obrigar o preto a trabalhar, ensinar-lhe artes e ofícios, aproveitar-lhe a mão-de-obra, mas sem que ‘ele veja, praticamente e pessoalmente, a vantagem do trabalho e do ensino, é criar nele ódio ao trabalho, ódio ao ensino, ódio ao dominador, ódio a empresas e iniciativas públicas ou particulares. E, por isso que defendo uma instrução profissional, que possa ser utilizada no meio indígena e em favor do indígena e foi esta a directriz que tracei a um dos missionários com paixão pela agricultura. Numa escola agrícola [de Ainaro], que se pode considerar ainda como que em estado embrionário, vai o referido missionário agriculturando com os seus rapazes, o vasto terreno de que a Missão dispõe, e fabricando, com os parcos e rudimentares recursos locais, enxadas, relhas, picaretas, alavancas, martelos, etc.

A mesma perspectiva ingénua, depreciativa e inqualificável foi partilhada pelo governador Teófilio Duarte, para quem o melhor ensino em Timor era deixar que os rapazes ‘indígenas’ se dedicassem a trabalhos agrícolas na primeira metade do dia, em vez de estarem horas e horas “magicando sobre o problema complicado da análise gramatical com o seu cortejo, usando das suas próprias palavras”. Este governador explicava ainda que as ideias do governador Filomeno da Câmara sobre a instrução especialmente dirigida aos ‘indígenas’ não tiveram, por motivos vários, a execução necessária, tendo-se dado mais importância à instrução literária em detrimento da instrução geral de carácter agrícola e profissional, que mais útil poderia ser aos ‘indígenas’106. É por isso que “a maior parte das ecolas não tinha sequer o ciclo completo de 4 anos de instrução primária”, porque “até aos finais dos anos 50 105

Esta informação foi dada pelo Sr. André Faria, em Lisboa. Foi a partir desta informação que fizemos uma busca, tendo encontrado no Boletim Eclesiástico da Diocese de Macau, o relatório do D. José Costa Nunes, citado acima. 106 Fonte: Boletim Oficial da colónia de Timor, nº47 de 19 de Novembro de 1938, p.2.

167

do século XX, quando um timorense era aprovado no exame da 4ª, isto é, ao fim de 4 anos de instrução primária, dizia que tinha acabado o curso. E as raras escolas onde o ensino ia até à 4ª classe primária, eram chamadas ‘universidades’” (Araújo, 1977:181; Barbedo-Magalhães, 2007a:145). A Seara, na sua edição do Ano 4-nº5 de 1952, publicou uma pequena biografia de três religiosas Canossianas (Madre Margarida de Leon, Madre Aurora Edralin e Madre Lídia Hyndman), descrevendo simultaneamente os seus contributos na educação das raparigas timorenses de família nobre. Por mais que pese à sua humildade não podemos deixar de engrandecer devidamente, nas páginas da ‘Seara’, o muito bem que fizeram a milhares de meninas, sobretudo em Timor, tendo assim dado o seu concurso precioso e considerável, por meios ostensivos que tenha sido, à obra civilizadora de Portugal nesta Província, obra que nunca é tão eficiente como quando se realiza junto da mulher, acompanhando-a desde os mais tenros anos (Seara, 1952, ano 4, nº5:133).

Cabe-nos questionar a citação acima, no que se refere à educação dada a ‘milhares de meninas’107, considerando que os contributos das três religiosas eram direccionados sobretudo à educação das ‘raparigas timorenses de família nobre’, não atingindo 160 o total de alunas matriculadas. A confirmar isso, apresentamos, o total de alunas matriculadas no ano lectivo de 1958/1959. Tabela 7 – Alunas matriculadas no Colégio Imaculada Conceição de Soibada em 1958/1959108 Classe Alunas matriculadas 4ª Classe 13 3ª Classe 20 2ª Classe 24 3ª Rural 30 2ª Rural 42 1ª Rural 26 Total 155

Alunas apresentadas a exame Alunas aprovadas Alunas reprovadas 9 9 12 12 19 19 27 19 8 29 26 3 18 18 114 103 11

Todavia, desde o início, as três religiosas perceberam que a situação de Timor era mais complexa. Iniciava-se uma guerra aberta entre os senhores da terra (os liurais) e os senhores ocupadores (os portugueses), situação que não beneficiava ninguém para desenvolver o projecto de educação no território. Acresce que, embora na história da instrução feminina timorense, os nomes de três religiosas Canossianas “não ficassem registados em nenhum quadro de honra, sabemos que muitas meninas e muitas mulheres timorenses, que foram suas 107

Para atingir o total referido “milhares”, talvez lhe fossem somados os números dos anos lectivos anteriores e dos seguintes. 108 Fonte: Seara, 1958, ano 10, nº 4, p.209

168

alunas, hão-de lembrar sempre, com veneração e reconhecimento, as três simpáticas velhinhas que, a seu lado, se curvaram durante anos, para as ensinarem a ler, a escrever, a costurar, a bordar, a cozinhar e para lhes darem uma boa formação moral” (Seara, 1952, ano 4, nº5:133). A educação não beneficiou apenas as raparigas. A Seara dá-nos conta de que também os rapazes foram beneficiados, como podemos constatar nos seguintes dados: Alunos matriculados no ano lectivo 1953/1954: 3.770 do sexo masculino e 1.050 do sexo feminino (Seara, 1954, ano 6-nº3:130-131). Em 1954/1955, foram registados cerca de 4.463 alunos do sexo masculino e do sexo feminino registaram-se apenas 1.113 (Seara, 1955, ano7, nº2:122123). Em 1955/1956: 3.661 do sexo masculino e 1.124 do sexo feminino (Seara, 1956, ano 8, nº2:139-140). Em 1956/1957, os matriculados do sexo masculino diminuíram drasticamente, tendo-se registado apenas 3.414, enquanto sexo feminino teve um aumento de 12 alunas; deste modo, as raparigas matriculadas tinham chegado aos 1.136 (Seara, 1957, ano 9, nº3:164-165).

Gráfico 5 – Percentagem dos alunos matriculados, 1953 a 1961

No ano lectivo de 1958/1959 encontravam-se matriculados 3.262 alunos do sexo masculino e 1.200 alunas matriculadas (Seara, 1959, ano 11, nº1); em 1959/1960, foram matriculados 3.449 alunos do sexo masculino e 1.229 do sexo feminino (Seara, 1960, ano 12, nº1:42-45). Ainda no ano lectivo de 1960-1961, foram matriculados cerca de 3.685 alunos do sexo masculino (Seara, 1961, ano 13, nº5-6); neste número da Seara, não foram publicados os dados referentes às raparigas matriculadas; em 1960/1961 matricularam-se 3.685 alunos do sexo masculino, não tendo sido actualizados os dados referentes ao sexo feminino. Sofia Miranda (2003:47) faz questão de nos lembrar que a aliança entre Igreja e Estado foi reafirmada em 1940, com a assinatura de uma Concordata entre o Estado português e a Santa Sé, que confiou a educação das colónias à Igreja, sob a tutela do Estado. A educação

169

tornou-se uma prioridade e, como tal, estabeleceram-se escolas católicas por todo o território. Porém,

como

argumenta

Taylor

(1993:90),

citado

por

Miranda

(2003:47),

“Institucionalmente, a igreja era vista pelos Timorenses como o lugar onde iam para se tornar ‘civilizados’, necessariamente, visto terem que se educar, mas no entanto também relutantemente uma vez que a educação acarretava uma progressiva perda da cultura tradicional através da aquisição dos costumes portugueses”. Tal situação foi justificada explicitamente por Sofia Miranda, na sua pesquisa de campo, em que lhe foi passada esta informação pelo interlocutor Gregório Henrique: “Os padres eram uma forma de colonização, a colonização não foi feita [apenas] pelos colonos, mas difundiu-se através dos missionários. Portanto, em primeiro lugar, os padres detinham o poder: eles eram os mais sábios e então ninguém tinha coragem de protestar. Por outro lado, nós também queríamos ir à escola! [risos]; P: E a única forma que tinham de o fazer era através das escolas da Igreja? R: Pois!” (Miranda, 2003:47). Todas as actividades de missionação foram ajustadas pelo Decreto-Lei Estatuto Missionário, artº 68, que frisava: “o ensino indígena obedecerá à orientação doutrinária da Constituição Política Portuguesa […] O ensino indígena será, assim, essencialmente nacionalista” (Barros, 1981:89); isto é, portugalizar os timorenses com a aplicação do direito de igualdade, fraternidade e liberdade. Apesar disso, já em 1952, o governo metropolitano, pela voz do ministro das Colónias, Almirante Sarmento Rodrigues, dizia que “é preciso refrear o ímpeto missionário”; mas, dois anos depois, o governador colonial da província de Timor, Capitão Serpa Rosa, deixou um claro aviso: “Os senhores [missionários], com esse surto de alunos da 3ª e 4ª classe, estão a criar ao governo um problema muito sério” (idem:90). Em jeito de resumo, o carácter cristocêntrico e a crença generalizada na “missão civilizadora” de Portugal (Schouten, 2001) estiveram sempre subjacentes à prática ideológica da colonização portuguesa, expressa através da máxima “educar para civilizar”, que teve na política da Igreja Católica um dos mecanismos para converter os timorenses à religião católica romana. O forte aliado da Igreja Catolica de Timor era o governo português, tendo este trabalhado progressivamente para uma conversão dos timorenses de forma mais rápida possível como estratégia de dominação colonial, através da qual foram sendo aplicadas algumas regras no sentido de proibir alguns usos e costumes (crenças e práticas culturais de natureza timorense), pelo que obrigaram as mulheres dos funcionários públicos timorenses a deixaram de usar o ‘táis’ (traje timorense). Até 1970, porém, Timor-Leste era um país ‘simbolicamente católico’, pois o número de cristãos convertidos era bastante reduzido e, 170

entre estes, havia os cristãos de nome, continuando muitos a manter as suas crenças e práticas tradicionais. Na prática, a religião católica esteve sempre associada à elite timorense, pelo que o catolicismo em Timor era uma religião de elite.

6.2. Seara e nacionalismo timorense O controlo exercido pela ditadura portuguesa foi um tremendo obstáculo para o normal desenvolvimento da vida política timorense (Barbedo-Magalhães, 2007a:147-148). Sendo assim, na década de 60, já se faziam sentir os primeiros passos de uma ideia da nação timorense, uma inspiração de uns tantos membros do clero estrangeiro que ensinavam os timorenses sobre a temática do nacionalismo e da criação da ideia de uma identidade nacional como nação. Alguns timorenses se tinham inquirido se seria pecado ser timorense com bandeira nacional própria. Tal ideia patriótica emergente começava a transparecer no desejo e no esforço de alguns ex-alunos formados nas escolas das missões católicas, e, deste modo, “a Igreja era uma espécie de escola para os nacionalistas” (Jolliffe, 1989:29). Estes tinham sido formados nos Seminários de Dare e de Soibada com professores jesuítas mais liberais, que actuavam como “agente de mudanças sociais e políticas” (Miranda, 2003:108; Dunn, 1983:53), criticavam o sistema político colonial português e a condição social das províncias colonizadas, e ensinavam os alunos sobre movimentos nacionalistas, destacando, simultaneamente, a forma como se desenvolvia o projecto de melhoramnento da condição social do povo. Nos anos 70 do século XX, ex-seminaristas timorenses (estudantes do seminário de Leiria) formaram uma equipa e começaram a lançar uma folha de formação e informação, destinada a algumas elites locais. Embora de tiragem bastante reduzido, consistia numa acção em que se percebia a existência de um grupo de inspiração nacionalista. Nos finais dos anos 60, o aparelho de repressão colonial tinha perdido muito da sua dureza inicial, embora PIDE estivesse omnipresente em Timor, controlando as actividades nacionalistas. O sistema de trabalhos forçados ainda vigorava na lei sobre o estatuto dos trabalhadores. Pairava a revolta dos timorenses contra a presença portuguesa. Entretanto, o jornal diocesano de Díli, Seara, que escapava aos mecanismos censórios, tornou-se conhecido pela promoção de debates sobre assuntos da realidade sócio-económica da época, convocando a colaboração de alguns timorenses letrados que, em privado,

171

começaram a pensar na ideia de independência (Anderson, 1998:132). Deste modo, o envolvimento da imprensa católica de Timor contra o poder colonial tornava-se indiscutível. Assim, se cristianização da população timorense era feita também através da Seara, legitimando o poder político e social da Igreja, aquela produzia simultaneamente, visões imaginárias sobre a sociedade timorense que provinham do pensamento de alguns fiés. Concluimos que a viragem política da redacção editorial da Seara visou legitimar e integrar a Igreja Católica no projecto da construção da nação emergente de Timor: De força ideológica mundial, a Igreja passa a ser apenas uma força subalterna e o no seu todo, torna-se, como observou um dia António Gramsci, concepção ‘parcial’ de uma parte da sociedade \ Não é já a Igreja a ditar as condições e os meios de intervenção, mas sim a aceitar o terreno e os instrumentos de acção que lhe dita e oferece o adversário. [….] A Igreja representa-se partidariamente no sistema político liberal, ao lado de outras forças ideológicas e políticas, disputando com elas o controlo e a posse do poder político e, através dele, o controlo ideológico das massas. E no terreno da sociedade civil disputa com elas também o exercício dos direitos de associação, expressão e informação (Cruz, 1980:259-260).

No início da década de 1970, pois, a Seara publicava vários artigos com críticas ao sistema, tornando-se, deste modo, o veículo do movimento nacionalista timorense, que começava a surgir então as elites formadas nas escolas das missões; consequentemente, estas – na opinião de Luís Cardoso – defendiam a tradição e a cultura timorenses contra os pontos de vista ocidentais e colonialistas (Miranda, 2003:109). Ramos-Horta, por seu turno, recordava a génese do termo Maubere como slogan político e, durante a sua Audiência Pública Nacional concedida à CAVR sobre o conflito interno de 1975/1976, sublinha a importância de um símbolo que unisse e consciencializasse os timorenses: Publiquei um artigo num jornal de Timor [Seara], não em 1975, nem em 1974, mas em 1973…Quando fundámos a ASDT, durante uma reunião da ASDT/Fretilin eu expliquei que todos os partidos políticos precisavam de uma imagem. Se quiséssemos convencer o eleitorado, não poderíamos fazê-lo através de filosofias complicadas. Por isso, eu disse que seria bom se conseguíssemos identificar a Fretilin com Maubere, como se fosse uma palavra de ordem, um símbolo da identidade da Fretilin. Como é evidente, 90 por cento dos timorenses andam de pé descalço, não têm documentos, mas todos se chamam a si próprios Maubere…É importante [compreender] que não havia outra filosofia subjacente a este termo; tratava-se de uma identidade partidária”109

É de salientar que o termo Maubere, além de ser caracterizada como uma identidade partidária, assume uma identidade política que se torna um poderoso símbolo nacional da 109

José Ramos-Horta, depoimento apresentado à Audiência Pública Nacional da CAVR sobre o Conflito Político Interno de 1974/76, 15 a 18 de Dezembro de 2003.

172

resistência timorense. Esta consciência de se tornar uma idenidade étnica e partidária é essencial como processo de legitimação da ordem política e social, pois, no sentido ideológico, o nacionalismo tem como fim a criação de laços de solidariedade entre os indivíduos e tenta mobilizar um conjunto de valores ou de tradições reputados como comuns, que, no caso concreto, é a utilização do termo Maubere e a lenda do crocodilo como elemento mobilizador da unidade nacional dos timorenses na afirmação da identidade nacional. Assim, o nacionalismo surge da ideia de reconhecimento dos mitos e símbolos colectivos que justifiquem a construção do Estado, produzindo identidade individual e social, em última análise, produz a identidade nacional (Mendes, 2005:45).

7. Lendas e tradições timorenses na Seara A Seara não publicava apenas os textos que resultavam do testemunho pastoral dos missionários, mas publicava também um valioso repositório de informação antropológica – que tratava de alguns temas, como o casamento tradicional, os problemas da habitação, a questão da violência ou os princípios da educação, entre outros assuntos – numa acepção mais geral. As expectativas dos missionários em escrever e publicar artigos sobre as questões referidas foram sustentadas pela ideia de interesse e de curiosidade, pois perceberam que através do jornal os leitores iriam saber logo sobre o que se passava; de modo particular, as publicações que os missionários e os curiosos fizeram na Seara eram como uma forma de referir e de afirmar a alma dos timorenses, os seus costumes e as suas origens, a identidade cristã e lusitana em Timor. A Seara não dispunha de espaço suficiente para publicar todos os artigos sobre as diversas culturas timorenses. Mas, graças ao esforço do director, Pe. Ezequiel Enes Pascoal, este órgão conseguiu publicar alguns artigos sobre as tradições e os costumes da população timorense. Pascoal explica: Por consequência, nas páginas da Seara, na medida em que for possível colher elementos que, infelizmente, escasseiam, haverá uma secção de história local. Na mesma ordem de ideias, não podia deixar de lhe merecer especial interesse o vasto, pouco explorado e sempre interessante ao campo do folclore – crenças, tradição, lendas, usos – tão impregnante de estranha religiosidade – que nos permite ver a alma destes povos tão simples e tão complexa, tão diferente da nossa, mas, em última análise, a braços com as mesmas eternas aspirações humanas, em presença das mesmas interrogações perturbadoras, em luta com os mesmos imponderáveis inimigos, perplexa arte o acervo de problemas que

173

com maior ou menor acuidade, sempre preocupou a humanidade, onde quer que fosse, e a que só o Evangelho responde cabalmente (Seara, 1949, ano 1, nº1:11).

Nesta sua acepção, o autor demonstra o seu profundo interesse em documentar as lendas, costumes e tradições dos timorenses, com a intenção de preservar as tradições orais, difundindo ao mesmo tempo a identidade cultural cristã à população timorense, alegoriacamente de “aspirações humanas”. O conhecimento desta “estranha religiosidade”, elucidatória da “alma destes povos simples”, não pode deixar de ser analisado como uma estratégia de superação desses mesmos factos, transformados em lendas desprovidas de autoridades e resignadas a encontrar no Evangelho as respostas cabais (Paulino, 2011b:174). Que razão levou o responsável da Seara a manifestar a sua vontade em publicar as lendas, tradições e costumes timorenses? Por um lado, segundo o Pe. Ezequiel Enes Pascoal, “amanhã talvez já seja tarde para reunir o valioso tesouro de lendas timorenses, filhas da imaginação de homens doutros tempos, anteriores àqueles em que a estas remotas praias aproaram as naus que traziam o fermento de profundas transformações” (Seara, 1949, ano 1, nº5:12); por outro, e, simultaneamente, visava contribuir para conservar o tesouro da tradição timorense. Transmitir a cultura pelos media – por exemplo, no caso da Seara – é servir dignamente a população, pois, segundo Jean Claude Bertrand (2002), são funções dos media: observar o meio envolvente, dar a felicidade aos recebedores de informação e transmitir a cultura, enquanto elemento típico da identidade pessoal e social. Acerca desta última, é preciso que os media transmitam a herança do grupo de uma geração à geração seguinte: uma visão do passado, do presente e do futuro do mundo, uma amálgama de tradições e valores que dão ao indivíduo uma identidade étnica, estabelecendo simultaneamente uma identidade colectiva, no sentido de cultivar as características comunais com vista à identidade nacional.

7.1. Lendas e contos timorenses na Seara As lendas timorenses publicadas na Seara são, na sua maioria, da autoria do Pe. Ezequiel Enes Pascoal (Paulino, 2011f), incluindo ainda algumas publicações de outros autores (Natália Maria da Conceição, Eurico Correia de Lemos, Marisa Volta). As lendas, contos e fábulas publicados na Seara são conhecidos nas diferentes regiões de Timor ou em diferentes localidades da mesma região, ou até mesmo noutras regiões asiáticas e nas ilhas do Pacifico Sul e nas ilhas do continente europeu (por exemplo: nos Açores, há uma lenda que 174

diz respeito à transformação das sereias em mulheres bonitas). Embora nem todas as representações sejam idênticas, e os nomes, às vezes, sejam diferentes, a ideia básica nunca muda. As lendas publicadas na Seara são classificadas em cinco categorias: lendas mitológicas, lendas totémicas, contos, fábulas (rato e macaco) e contos mestiços. Estas são transcritas tal qual os compiladores as ouviram da boca dos lia-na’in, ou, em certos casos, a pessoas de estirpe real, ou conhecedoras de tradições mitológicas ou totémicas, que a relacionam com a origem de suas famílias, e que elas se empenham em não quebrar por terem sido consideradas sagradas. Não é possível, evidentemente, os compiladores reproduzirem os gestos, as vozes na sua totalidade, as variantes fisionómicas, a gama de atitudes e outros pequenos gestos significativos dos narradores. Em suma, o aspecto expressional mais empolgante é, precisamente, a representação da roupagem típica táis que as pessoas cultas apreciam, porque representa o carácter do povo timorense. Esta representação da roupagem parece ter uma característica típica que, na observação dos locutores de outras culturas, é uma obra-prima de um povo. Esta identidade parece ter um carácter artístico e simbólico que torna o timorense emocionado e empolgante. Os coleccionadores ou compiladores das lendas e contos têm mostrado respeito pelos narradores, os quais procuraram, desde o início e dentro dos seus limites, colaborar com a imaginação dos autores anónimos, no sentido de recuperar e revalidar a história, que, em certos casos, sofreu modificações de narrador para narrador, ou de geração em geração. Por isso mesmo, antes de as editar – no caso das lendas, por exemplo –, o autor deve realçar o tema, explicitando-o numa linguagem acessível. Tabela 8 – Lendas e contos timorenses publicados na Seara Artigos De Mano-Coco ao Génesis Quando as ribeiras rugem Lenda de Muapitine Inundações Misteriosa A lenda de “Bé Malai” Amo-Deus Coronel Santo António

Classificação

Narrador

Compilador

Ano de publicação

Nº de Ref. 1

Lenda

Keti-Roma

Ezequiel E. Pascoal

1949, ano 1, nº 2

Lenda

Não aplicado Ezequiel E. Pascoal

1949, ano 1, nº 3

1

Lendas

Não aplicado Eurico C. de Lemos 1949, ano 1, nº 4

1

Lenda

Mau Luís

1949, ano1, nº 5

1

Lenda

Não aplicado Eurico C. de Lemos 1949, ano 1, nº 8

1

Conto

Não aplicado Ezequiel E. Pascoal

5

Ezequiel E. Pascoal

175

1949, ano 1, nº 6,7,9,11e12; 1950, ano 2, nº 5 e 6

Como em Belém Conto mestiço O primeiro Lenda Habitante de Timor Conto do Natal Conto

Não aplicado Ezequiel E. Pascoal Não aplicado Ezequiel E. Pascoal

1949, ano 1, nº 9 1950, ano 2, nº 1-2

1 2

Não aplicado Ezequiel E. Pascoal

1

A morte do ‘búan’ Conto

1950 – Ano 2-nº11e12; 1952 – Ano 4-nº6; 1953 1950, ano 2, nº 7-8, 9-10

1 1 7

Curiosa lenda O resto da Terra Uma vítima do ‘barlaque’

Conto mestiço Lenda

Não Ezequiel E. Pascoal aplicado, Não aplicado Ezequiel E. Pascoal Bere Léqui Ezequiel E. Pascoal

Conto

Não aplicado Ezequiel E. Pascoal

Uma visita (conto literatura) A Lâmpada que não pode apagar-se A oitava espada A origem de ‘BéDois’ Carau Cohe Haat Bere-Mata-Rúac O rato e o macaco Chico Tó O dilúvio na tradição de Lautém O silêncio do Príncipe Uma lenda e uma devoção Viajando de Piroga Lenda da mulher Cacatua Lenda das Irmãs Cetáceas

Conto

Não aplicado Chico

1950, ano 8, nº, 3-4 1951, ano 3, nº 1 1951, ano 3, nº 2; 1952, ano 4, nº 4,5,6; 1953, ano 5, nº 1,2,3 1953, ano 5, nº 2

Conto

Não aplicado Ezequiel E. Pascoal

1953, ano 5, nº 6

1

Conto Lenda

Não aplicado Marisa Volta Não aplicado Ezequiel E. Pascoal

1953, ano 5, nº 5 1953, ano 5, nº 4

1 1

Lenda Lenda Fábula Lenda Lenda

Não aplicado Não aplicado Não aplicado Não aplicado Não aplicado

1953, ano 5, nº 5 1954, ano 6, nº 2 1954, ano 6, nº 3 1954, ano 6, nº 4 1954, ano 6, nº 5

1

Conto mestiço

Não aplicado Ezequiel E. Pascoal

Ezequiel E. Pascoal Ezequiel E. Pascoal Ezequiel E. Pascoal Ezequiel E. Pacoal Ezequiel E. Pacoal

Conto Lenda

1955, ano 7, nº 1,2,3; 1956, ano 8, nº 1,2 Não aplicado Emílio Euclides de 1954, ano 6, nº1 Oliveira Não aplicado Ezequiel E. Pascoal 1955, ano 7, nº 3 Não aplicado Não aplicado 1972, ano 7, nº 226

Lenda

Não aplicado Não aplicado

Conto mestiço

1972, ano 7, nº 227

2

1

1 1 1

5 1 1 1 1

7.1.1. Lendas mitológicas As lendas mitológicas (no seu termo plural) são relatos de um acontecimento ocorrido em tempos primordiais mediante a intervenção de poderes sobrenaturais. Na era primitiva, o Homem caracterizou o seu mundo como uma espécie de cosmogonia sui generis, ou seja, o Homem dos tempos primordiais dotou os recursos (por exemplo, certos animais) de poderes sobrenaturais como símbolo de manifestação do poder, considerando-os, de algum modo, como seus ídolos. Os povos antigos – sejam habitantes do continente europeu, americano, asiático, africano ou da Oceania – tinham em comum uma ou mais superstições cosmogónicas. Os antigos consideravam a natureza como única fonte de vida e estavam conscientes de que a própria natureza os observava, ao mesmo tempo que o Homem

176

observava a sua acção. O trabalho talentoso dos antigos não pode dissociar-se das manifestações das forças da natureza, pois, através dela, pode dar-se à vida. Os estudos antropológicos afirmam que a origem dos antepassados timorenses esteve sempre associada a uma ou mais lendas mitológicas, evidenciando não apenas a origem da terra, os antepassados e os seus descendentes, mas também as suas divisões políticas e linguísticas. O mito ou narrativa mitológica está sempre presente na linguagem e nas estruturas mais elementares do pensamento humano, pois ele constitui o símbolo, o quadro ou a estrutura em que a acção humana tem sentido, como ‘destino’, como ‘sucessão de acontecimentos’, como ‘relação essencial ao tempo’, como ‘curva de que o momento presente é apenas um ponto’ e como ‘curva antecipada do futuro’; ainda de forma racional e subjectiva, Roland Barthes (1988) define o mito como uma narrativa da fala, uma mensagem, um sistema semiológico e uma língua de conotação com as contradições que estes usos revelam na experiência do quotidiano; ou seja, o mito fundamenta o fazer jornalístico, isto é, o repórter utiliza os seus recursos mentais conscientes e racionais tal como os impulsos inconscientes, as suas imagens mentais mais profundas. Estas imagens projectam no seu consciente representações inatas, universais e arquetípicas, às vezes superficialmente chamadas estereótipos, dos quais ele não pode livrar-se. Estas imagens são ‘evocadas’ pela consciência do repórter para ajudá-lo no seu esforço de interpretação. Quando um jornal como a Seara se interessou em publicar as lendas mitológicas do povo timorense, desde logo, entendemos que a comunicação tomou de empréstimo da antropologia o conceito de mito para se referir à produção simbólica dentro de uma determinada sociedade, como no caso da sociedade timorense. A ciência da comunicação e a ciência antropológica consideram que as lendas mitológicas são originalmente usadas para questionar as características dos fenómenos ocorridos nas antigas sociedades, ou seja, as lendas mitológicas são definidas como narrativas exemplares que pretendem explicar a origem do mundo e o seu funcionamento. De acordo com Pierre Ansart (1978), tanto as sociedades modernas como as tradicionais produzem os seus imaginários sociais e os seus sistemas de representações, através dos quais estabelecem simbolicamente as suas normas e os seus valores. É compreensível, portanto, que, a fim de entender os processos de criação simbólica – já que estes nem sempre são conscientes e racionais –, o homem contemporâneo faça uso de significantes que lhe são, a um só tempo, próximos e distantes, modificando-lhes o significado. Aliás, o fascínio pelas fantasmagorias, pela produção de aparições fantásticas através de um uso mais ou menos espectacular de diversos dispositivos de projecções, reflexos, sombras, 177

etc., é um dado conhecido da cultura timorense, desde os séculos pré-históricos110. O primeiro director da Seara, Pe. Ezequiel Enes Pascoal percebeu bem a questão cosmogónica timorense e foi por isso que, logo no Ano 1-nº2 de 1949, publicou a lenda “De Mano-Cóco ao Génesis”111. No princípio era tudo mar. Só existia o cimo do Mânu-Cóco. Nele apareceu um gondão. Uma tonina comeu-lhe os frutos. Uma vez geridos, iam-se mudando em terra, diante da qual o mar baixava, deixando em seco maior extensão habitável. A tonina comeu, a seguir, as folhas e os ramos do gondão e transformou-se em suíno. Veio Deus e disse-lhe. Plantei aqui um gondão. Dava sombra. Quem o fez desaparecer? […] Enquanto Deus foi ao céu buscar o fogo para o assar, ele transformou-se em mulher. Deus voltou e perguntou-lhe: onde está o porco? A mulher respondeu: Eu é que era o porco. Deus mandou-lhe [para] ficasse na terra. Passados cinco dias, ela deu à luz dois filhos [e deu o nome] Bui e Mau. Deus deu-lhes fogo e uma força cujo calor e brilho foram secando o mar. Os peixes foram morrendo, ficou, porém, ao cimo do Mano-Cóco, um polvo e uma enguia (Seara, 1949, ano 1, nº2:33).

Para a população de Ataúro, o monte de Manu-Cóco é o Éden. É que, em certos pontos, o monte Manu-Cóco é o lugar onde Deus estabeleceu aliança com as obras da sua criação, nomeadamente com o Homem. O Éden não existe apenas na história dos judeus e cristãos, mas existe também em todos os lugares do mundo com diferentes designações, isto é, o Éden referido na Bíblia é exactamente aquilo que outros povos identificam nos seus lugares sagrados. É como no caso da história de origem dos Bunak de Timor-Leste, um dáto de umakain Aicula (de Mape-Op): “Meu filho! Veja aquela montanha de Léber; o paraíso Eden é mesmo ali; foi naquele local que o Marômak criou o homem Mau Raun e sua companheira Bui Raun”112. Julgamos que, além de a lenda “Mano-Cóco ao Génesis” ser classificada como mitológica, ao mesmo tempo, é considerada como totémica. É que “Um homem, de nome Mau-Bot, plantou bétel. Um tubarão e uma tartaruga foram roubar-lhe folhas e tornaram-se mulheres. Mau-Bot perseguiu-as. A que fora tubarão conseguiu fugir, mas ele apanhou a que fora tartaruga. Dela teve dois filhos: Sê-Ape-Lau e Sê-A-Âmat” (Seara, 1949, ano 1, nº2:34). Segundo o historiador Mircea Eliade (1993), cuja obra se encontra centrada nos mitos religiosos das sociedades tradicionais, nas sociedades modernas, os mitos encontram-se

110

No entanto, o universo cosmogónico dos timorenses é – em alguns casos – muito parecido com o dos antigos povos ocidentais. Aliás, os factos históricos ensinam-nos que a ideia de colectividade manifestada pelo antigo povo europeu em acreditar o mais superior do que ele próprio Deus. Como os antigos gregos consideraram Zeus como deus-pai e Hera como deus-mãe. 111 Esta lenda mitológica foi contada pelo lia-na’in Keti-Roma, de Ma-Kili (Ataúro). 112 Esta narrativa é o resultado de uma conversação que tivemos em Setembro de 1999, com o Dáto de uma-kain Aicula em Mape-Op.

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degradados e secularizados; foram obrigados a mudar de forma, a fim de assegurar a sua sobrevivência. Embora pense em categorias que o levam, algumas vezes, a manter uma atitude de lamentação em relação ao presente, Eliade enxerga a necessidade de se redescobrir toda uma mitologia, se não uma teologia, escondida na vida mais ‘banal’ do homem moderno, não se limitando a encontrar nas estruturas contemporâneas as formas do passado. O Pe. Ezequiel Enes Pascoal publicou, na Seara, um artigo intitulado “O primeiro habitante de Timor113”, uma descrição sobre o elemento imaginário colectivo dos timorenses na formação da sua identidade cultural e nacional. Eis a pequena descrição do artigo: Havia, em Macáçar, um crocodilo que se lembrou, certa manhã, de dar um longo passeio. […] No céu nem uma nuvem. Um ar de suave frescura afagava a terra. […] Quando estava nestas sérias e aflitas considerações e bons propósitos, apareceu um rapaz. […] Recebeu-o sobre o dorso a primeira vez que ele apareceu na praia e fez-se de longa viagem, sobre as ondas, a caminho das terras onde nasce o Sol. […] O crocodilo andou, andou, andou. Exausto, parou, por fim, sob um céu de turquês, e – oh! prodígio – transformou-se em terra e terra para todo os sempre ficou – terra que foi crescendo, terra que se foi alongando e alteando, sobre o mar imenso, sem perder, por completo, a configuração do crocodilo. O rapaz foi o seu primeiro habitante e passou a chamar-lhe Timor, isto é, Oriente (Seara, 1950, ano 2, nº1-2; Pascoal, 1967:258-260).

A partir daqui, é válido perguntar de que maneira os velhos de Bé-Hali contaram esta interessante lenda. A lenda mitológica “O primeiro habitante de Timor” ou “O crocodilo que se fez Timor” ou “Lafaic, o crocodilo timorense114”, é considerada como mito colectivo timorense, desde os tempos primordiais até à contemporaneidade. Mostrando-se, assim, como os meios de comunicação de massas funcionam como agentes de consolidação imaginária deste e de outros mitos da cultura timorense. Na edição do ano 3-nº1 de 1951, o Pe. Ezequiel Enes Pascoal publicou novamente outra lenda a que deu o título de “O resto da terra”. Segundo ele, esta lenda foi contada por BereLéqui (chefe do suco de Hatu-Ri-Lau, do posto administrativo do Remexio). Esta lenda relata a história do dilúvio que deixou a salvo apenas um pedaço da terra, para que os restantes sobreviventes pudessem construir o seu habitat. Em tempos idos, choveu tanto, tanto que todas as terras ficaram imersas sob imenso lenços de água. Era tudo um mar sem praias. Sobreviventes de tamanha tragédia, metidos num barco, vogando ao deus-dará, 113

Esta lenda foi reeditada pelo próprio autor no seu livro “A alma de Timor Vista na Sua Fantasia” (1967) e com a autorização do autor, tal lenda foi reeditado pela direcção do jornal A Voz de Timor na secção de “Timor na lenda e na poesia” (4/10/1970, nº 542). A mesma lenda foi compilada e publicada também por Jaime Neves no jornal mesmo jornal sob o título: “Origem de Timor e o Crocodilo” (A Voz de Timor, 1973, ano XIV-nº 659:8). 114 Veja-se Júlio Garcez de Lencastre (1934), “Lafaic, o crocodilo timorense”, in O mundo Português, nº4,

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impelido por violentos e opostas correntes, chegaram a Timor. Notaram que a água não tinha a mesma cor que noutros sítios. O arrais, chefe dos infelizes náufragos, mandou lançar, a toda a volta, as redes que tinham. Se apanhassem peixe, era sinal certo de que estavam num mar anterior ao dilúvio, o que lhes dava esperanças de surgir, em breve, terra firme, no horizonte, até onde durariam, talvez as míseras provisões que lhes restavam. […]. Levados ao sabor da corrente, tiveram a dita de ir da ao Ramelau que ficava apenas uns palmos abaixo da quilha do barco115. […] Os homens que lançaram o pó do ninho sobre as águas foram habitar num dos primeiros píncaros que emergiram e chamaram-lhe ‘Rai Récin - o resto da terra’ (Seara, 1951, ano 3, nº1).

Aparece, assim, o nome duma montanha de Timor chamado Rai Récin, de configuração arredondada, na região de Caimauc. A população desta zona considera a montanha de Rai Récin como lúlik (sagrado), pois foi ali que os seus antepassados começaram a descer do seu barco e fundaram uma nova aldeia, construindo novas casas. Os europeus – homens cultos e missionários cristãos –, na era da colonização, procederam a uma lei de classificação e de distinção das classes sociais com uso de termos desagradáveis, pois depararam com um novo saber que originou múltiplos problemas. Foi neste sentido que inventaram novos termos segundo as suas leis e classificaram os nãoeuropeus e não-cristãos como ‘primitivos’, ‘gentios’ ou ‘selvagens’. A respeito deste pressuposto, citamos as interrogações apresentadas por Edmund Leach (1985:24): Como se poderiam adaptar as descobertas dos exploradores aos dogmas temporais e geográficos do Génesis? Se a cronologia da Bíblia é exacta, como fizeram os Índios da América para chegar aonde se encontram, no breve intervalo decorrido desde o Dilúvio? É exactamente o que se encontra na lenda sobre o dilúvio em Timor. Outra lenda mitológica timorense que se parece com “O resto da terra” é “O dilúvio na tradição de Laútem”. Esta lenda foi narrada por um velho ancião dagadá e compilada e publicada por Pe. Ezequiel Enes Pascoal, na Seara, ano 6, nº5 de 1954. Alguns anos mais tarde, publicou-a com outras lendas que deram origem ao seu livro A Alma de Timor Vista na Sua Fantasia. A narrativa da mesma lenda foi encontrada também no livro O Rei de Nári (1962), do Pe. José B. Rodrigues, cujos relatos foram narrados de forma mais desenvolvida. O Planalto de Nári encontra-se a uma altitude 600 de metros e faz parte da cordilheira que vai de Laútem à ponta de Tutuala, sobranceira ao mar, ligando-se daí à serra de Muapitine 115

A lenda mitológica timorense “Rai-Récin” (o resto da terra) é semelhante à história do dilúvio na tradição judaica e cristã. Segundo testemunho bíblico, Deus disse a Noé: “Faz uma arca de madeira resinosa; tu a farás de caniços e a calafetarás com betume por dentro e por fora. Eis como a farás: para o comprimento da arca, 300 côvados; para sua largura, cinquenta côvados; para sua altura, trinta côvados”. E logo: “Entrarás na arca, tu e teus filhos, tua mulher e as mulheres de teus filhos contigo. De tudo o que vive, de tudo o que é carne, farás entrar na arca dois de cada espécie, um macho e uma fêmea, para os conservares em vida contigo”. Assim fez Noé, salvando-se, e aos animais, do dilúvio de quarenta dias.

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(terra branca), de 1200 metros de altitude, a qual recebe a primeira luz do sol, ou seja, que Vatchu hiasuque emer tava atchi (o sol logo em nascendo vê primeiro). Segundo narrativa oral, Nári é a residência do rei e que dá o nome ao reino; Nunutchêno é o nome de uma trepadeira, a qual é caracterizada como local onde se agarrou, numa pequena elevação da planície vizinha. Foi neste local que se refugiaram os únicos sobreviventes do Grande Dilúvio de Laútem e que repovoaram a Terra de Nári. Quem visita esta terra pode ver as sepulturas da família do rei e a única arequeira da região, chamada ‘ete tei’nu – árvore sagrada’, que todos veneram. A narrativa da lenda do “Dilúvio na tradição de Laútem” começa com a guerra sangrenta em Nári (Terra dos Gemidos). Assim narra o venerando ancião dagadá nos seus noventa anos: O seu lugarejo chama-se, no dialecto local, a Terra dos Gemidos. Uma pilha de caveiras, a pouca distância, atesta que dali, daquele ermo agreste, em terras de Lospalos, saíram açuá’in – guerreiros destemidos, que se cobriram de glória em escaramuças doutros tempos e trouxeram, no regresso ao lar, cabeças de inimigos como valiosos troféus. A própria Terra dos Gemidos teria sido teatro de carnificinas ferozes (Seara, 1954, ano 6, nº5).

Tanto Pascoal como Rodrigues consideram que o ancião pertenceu ao número desses açuá’in que morreram todos naquela terrível guerra. Assim reza a lenda do dilúvio de Lautém sobre a existência do mundo, do homem e da sua destruição: No início [disse o ancião] o mundo estava envolto em trevas. Quando se dissiparam, não se via senão lama. Deus moldou, então, um homem. Desse homem procederam todos os homens e mulheres que foram povoando a terra já em condições de habitabilidade. [Porém] não tardou que se desencadeasse horrorosa tempestade de vento e chuva. Aniquilou por completo, a nascente humanidade. Deus voltou a povoar a terra com uma geração de pigmeus. […] Estranha malvadez distinguia estes homens e mulheres (Seara, 1954, ano 6, nº5).

Nota-se que o primeiro dilúvio que Deus fez descer sobre a terra aniquilou desde os seres humanos às espécies animais. Ficou arrependido e, por isso, voltou a povoar a terra com uma geração de anões. Mas estes continuaram a praticar maldades proibidas. Não tardou que viesse outro dilúvio para os destruir. [O Senhor Deus] encarregou outro dilúvio para os destruir. Apenas um irmão e uma irmã se conseguiram salvar. […] Ele refugiou-se, por fim, na copa de altíssimo coqueiro. Ela segurou-se, ao lado, entre as folhas duma esguia arqueira. […] A certa altura, viram, com indescritível espanto, duas colossais massas de água precipitaram-se, ruidosamente, em sua direcção. […] Numa ascensão célere, as duas ondas

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gigantescas que se fundiram, numa só, sob vastíssimo véu de refervente espuma. […] O irmão e a irmã, qual outro Deucalião e outra Pirra116, ficaram sempre, prodigiosamente, à tona das águas diluvianas. Os dois notaram, passado algum tempo, que as ondas estavam a refluir. Sentiram imensa satisfação ao porem, outra vez, os pés em terra (Seara, 1954, ano 6, nº5).

Na tentativa de procurar descobrir os vestígios de outros sobreviventes, os dois irmãos encontraram carcaças de desmesuradas jibóias mortas umas sobre as outras, na pavorosa catástrofe natural, ou aquilo que os homens antigos costumavam designar por castigo divino sobre os malditos dos seres na terra, mas não os encontraram. Daí começaram a perceber que eram eles os únicos sobreviventes e, simultaneamente, começaram a erguer os braços ao céu, exclamando: “Uruvátchu, Uruvátchu inim lauh’pai: Deus, Deus salvou-nos”: Nas redondezas não havia vivalma. Levaram até bem longe as suas pesquisas. Percorreram Muapitine, Iliômar, Loré, Laivai. Foram mais além, às regiões limítrofes. Por toda a parte os seus olhos só viam a solidão. Ao seu grito apenas respondiam o silêncio ou o eco dos vales e das cavernas. [Finalmente], resolveram, por isso, repovoar a terra. Tiveram sete filhos.

As características físicas, psicológica e as crenças dos habitantes da Terra dos Gemidos (habitantes de Laútem) são muito comuns com as dos povos da Papua Nova Guiné, ou das ilhas adjacentes, donde teriam vindo em remotas migrações. De modo geral, será que as lendas mitológicas aqui abordadas e analisadas são apenas simples fantasmagorias? Talvez sim, talvez não. Porém, a resposta peremptória da ciência a esta aliciante incógnita vem dizer-nos que a fisionomia convulsa de boa parte da ilha de Timor, sobretudo, à volta do seu principal maciço orográfico, é de modo a validar a hipótese sugerida pelas lendas, onde as águas enfurecidas do mar ou das chuvas diluvianas teriam subido até montes mais altos. De acordo com o Pe. Ezequiel Enes Pascoal (1967), tudo se resolve quando está posta de parte a teoria de influências sísmicas, a que, aliás, a mitologia dos timorenses não faz qualquer referência, por remota que seja. Assim sendo, a história do dilúvio na tradição judaica e cristã também não tem qualquer referência histórica global, por completa que seja a descrição, pois tais histórias também foram invenção do homem primitivo do Médio Oriente, ou seja, dos antepassados primitivos dos judeus e dos cristãos. 116

As figuras apresentadas são, de facto, na mitologia grega: o Deucalião era filho de Prometeu (deus do fogo) e marido de Pirra. Ele e a mulher foram os únicos sobreviventes do dilúvio de que fala a mesma mitologia, embora em regiões diferentes: uma aconteceu na Grécia e outra em Timor, nomeadamente em Laútem. Porém, no relato do Pe. José B. Rodrigues os irmãos sobreviventes do trágico dilúvio são de nome Maupé (homem) e Puiôna (mulher). Na mitologia grega, a história do dilúvio foi narrada da seguinte forma: a barca em que se salvaram encalhou no monte Parnasco. Vendo que a terra estava deshabitada, foram atirando para trás de si todas as pedras que encontravam. Cada pedra que Deucalião atirava, transformava-se num homem. Das pedras lançadas por Pirra iam surgindo mulheres. Este dilúvio mitológico colectivo do povo grego sucedeu na Tessália, planície da Grécia, com uma configuração entre montes muito parecidos com os de Laútem.

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Os estudos de antropologia cultural indicam que as lendas mitológicas são histórias inventadas pelos homens para descrever a sua existência enquanto habitantes da terra. Em certos pontos, as lendas mitológicas podem estar presentes e ausentes, reais e aparentes, e não são caracterizadas e interpretadas pela sua ordem de representação, mas sim por uma presença que supõe uma espécie de triunfo sobre as leis da natureza. Trata-se, pois, de uma produção simulacral da vida, isto é, a produção da representação e do comportamento nas lendas parece apresentar a consistência de seres vivos. As lendas mitológicas mostram que a criatividade do ser humano aspira, em última análise, à encarnação ou, se quisermos, a uma verdadeira consubstancialidade entre o Homem e os poderes inconcebíveis da natureza.

7.1.2. Lendas totémicas Chama-se totem, ou totemismo117, a um sistema especial que, em certos países de religião animista, une determinadas famílias ou clãs a uma espécie animal ou vegetal de que se julgam descendentes. Daí resulta um parentesco ou aliança peculiar com todos os representantes dessa espécie animal ou vegetal. O totemismo timorense corresponde inteiramente à definição dada acima, porque, de facto, aqueles que o admitem, às vezes, abstêm-se de comer a carne de certos animais ou espécies vegetais. É que, em certos pontos, um dos seus antepassados estava associado a este hábito, em virtude de reconhecimento para com um animal ou vegetal que, em circunstâncias difíceis, os ajudou, ou por respeito e medo em relação a uma planta que, por qualquer motivo, tenha curado a doença de um membro da família. Talvez seja um modo de reconhecer a existência de um poder sobrenatural sobre o Homem. Este poder, que o supremo Deus manifesta em certas espécies de plantas e em certos animais, simboliza a sua aliança com os seres humanos, embora nem sempre envolva a ideia de protecção. Assim, por exemplo, o crocodilo é tido, em quase todo o território de Timor, como o “grande avô 118”, e, em algumas regiões, o porco é considerado avô (ver a lenda De Mano-Cóco ao Génesis de Ataúro). Parece mais prudente recorrer a este paralelismo de forças vitais para explicar o lugar especial que os timorenses atribuem a certos animais (crocodilo, búfalo, porco, jibóia, etc.), para dizer aos seus visitantes que estes são ‘sagrados’, porque são ‘ain-liman marâomak nian 117

A palavra totem deriva de dotem, termo usado pelos índios Ojibwa, da América do Norte, para denotar um membro de um clã de forma tríade: “feticismo, mais exógama, mais descendência matrilinear” (Léví-Strauss, 1986). Segundo Durkheim (1989), o totemismo era uma religião que deriva um grande número de crenças e de práticas presentes em sistemas religiosos tidos como mais antigos. O que teria denominado de totemismo seria o facto de cada grupo (ou clã) estar associado a uma espécie particular de animal ou planta. 118 Vide o sub-tópico da “Primeira Parte – Os mitos e as crenças do povo de Timor”.

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– enviados de Deus ou intermediários entre Deus e o Homem’. Porém, este tipo de crenças é puramente totémico, é um conceito muitas vezes utilizado pelos autores que escreveram sobre Timor, e que Claude Lévi-Strauss (1986) não hesitou em classificar como “a ilusão totémica”. Ainda assim, de modo claro, pretendemos afirmar que o conteúdo de inúmeras lendas deste género publicadas pelos missionários nas páginas da Seara estava em transcrição da tradução ‘tradição oral’, mas era mera transcrição solta, pois, antes de iniciar a narrativa propriamente dita, o narrador faz uma pequena introdução com uma descrição de viagem. No entanto, é já um bom sinal para a preservação da tradição oral timorense. As lendas totémicas eram inteiramente contadas em forma de prosa poética por certos lia-na’in, ou, simplesmente, por professores-catequistas. Muitas vezes, esses lia-na’in não contavam tudo, precisamente para conservar em segredo algumas partes das suas crenças, de modo a poder manter a união da família, pelo que não se está na disposição de contar tudo aquilo que se considera original. Como escreveu Adolphus Peter Elkin, no caso dos aborígenes australianos, em The australian aborígenes: how to understand them (1964:149): But such is their loyalty to their secrets, that, they never drop a hint to be the white ‘authority’ of the Great world of thought, ritual and sanction of which is unaware. They feel either that the would understand it or that the would despise it, and so the the ‘past-masters’, the old custodians of secret knowledge sit in the camp, sphinx-like, watching with eagle eye the effect of white contact on the young men, and deciding how much, if any, of the knowledge of their fathers can be safely entrusted to them, and just whem the imparting of secrets can be effectively made. If the young men are too much attracted to the which denotes lack of stability in character, the old men either teach them nothing, or else traditional false versions of some myths as a means of testing their sincerity and loyalty.

A Seara publicou no seu nº4-ano1 de 1949 a interessante lenda de Muapitine, da autoria do tenente Eurico Correia de Lemos, companheiro de armas do governador Celestino da Silva e, durante muitos anos, comandante militar com provas de serviços prestados em vários pontos da ilha de Timor. O tenente foi um homem apaixondo por assuntos etnográficos relativos a Timor. Percebemos, nesta lenda, a origem de Ira-ina Fitu119 (sete nascentes), onde se encontra “Ira-ina tapi vavarese utu’we” (três fontes da água límpida e cristalina), que abasteciam a povoação de Muapitine e as restantes fontes, secando ocasionalmente. A população desta região disse aos estrangeiros: “I’tapa afi hupata capa capar pai – não estragueis as nossas coisas”. Porém, o estrangeiro estava com sede e disse ao guardião das 119

“Ira” significa água, “ina” significa olho (matan), “Fitu” significa sete. Estas fontes estão situadas na zona de Muapitine, entre Mehara e Lore.

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fontes: “Ira tutu – quero beber água”, porque sabia, de facto, que aquelas três fontes eram caracterizadas como “Ira teinú – água sagrada”. Em Timor-Leste, há uma lagoa que se chama “Bé-Malai – água estrangeira120”. Esta lagoa tornou-se lendária para os habitantes de Sanirin e de outras regiões vizinhas, porque “em tempos imemoriais, quando ainda Timor não estava povoado, emigraram algumas famílias vindas das terras do Oeste para as do Leste. Uma vez chegados ao local hoje conhecido por Bé-Malai, tiveram que estacar, perante a visão de dois vultos que, à distância, caminhavam, a passo lento, notando que ambos eram malais – com parecenças de um homem e uma mulher que, ao verem-se descobertos, estugaram o passo até se esconderem por detrás da tal ponta da montanha” (Seara, 1949, ano1, nº8:186). A povoação de Sanirin e outras regiões vizinhas consideram a lagoa de Bé-Malai como o caminho dos antepassados estrangeiros, ou seja, na expressão mais comum, designa-se como o caminho dos irmãos mais novos. É um lugar para todos os aventureiros que procuram a verdadeira riqueza, seja material ou espiritual, dependendo do plano da viagem que o próprio aventureiro estabeleceu na sua mente para chegar à montanha sagrada, onde estão guardadas as riquezas naturais de grande valor. Na lenda de Bé-Malae, lê-se: “eram malais – com parecenças de um homem e uma mulher que, ao verem-se descobertos, estugaram o passo até se esconderem por detrás da tal ponta da montanha”. Perguntamos, qual teria sido o motivo de estes malais irem até à ponta da montanha da lagoa? Na edição nº5, ano 1 de 1949, a Seara publicou uma outra lenda de “Inundação Misteriosa”, da autoria do Pe. Ezequiel Enes Pascoal. Esta lenda relatava a guerra entre o reino de Motael – a que pertence Balibar – e o de Bé-Hali. O vencedor desta guerra foi o reino de Motael; segundo o narrador Mau-Luís, em tempos remotos, existia uma povoação. Um dia, no coração do estio, começou a chover a potes. Nunca tal sucedera. Chuva assim jamais se vira. A povoação começou a inundar-se. Resolveram abrir uma valeta para que as águas se escoassem. Enquanto cavavam, descobriram, na terra, uma enorme enguia. Mataram-na, puseram-na numa panela, mas ouviram-na dizer o seguinte: ‘só os grandes me 120

A lenda de “Bé-Malai” foi narrada de forma diferente. Na descrição do tenente Eurico Correia de Lemos, encontra-se uma versão que diz respeito aos caminhos dos malais, mais conhecidos como “irmãos mais novos”. A descrição mais completa está na versão do Pe. Ezequiel Enes Pascoal, publicada em A alma de Timor vista na sua fantasia em 1967, narrada por narrador Isaac dos Reis (professor-catequista que residiu em Balibo, onde fica Bé-malai) e confirmada por Evaristo (do suco de Ró-Métan em Manu-Sa’e do sub-distrito de Hatolia). A lagoa de Bé-Malai tornou-se tão importante para os povos do Noroeste (Sanirin, Balibo e Atabae), que em 1895 foi considerado um local trágico para as forças portuguesas. O local tornou-se conhecido quando, em 1898, a autoridade política (régulos e os dátos) e a autoridade ritual (lia-na’in ou kukun na’in) da referida região começaram a proceder a uma cerimónia de abertura anual do espaço. A abertura formal foi animada pela assistência de guarda de honra e batuques, das autoridades locais e foi assistida pela própria pessoa do governador Celestino, no momento certo para desenvolver e socializar a política de pacificação do território.

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podem comer. Os pequenos não’. Os grandes cortaram-na aos pedaços e, dura como estava, comeram-na. Logo, a água foi subindo, inundando toda a aldeia até que desapareceram as suas casas e todos os seus habitantes (Seara, 1949, ano 1, nº2:113).

Tempos antes da inundação misteriosa, a povoação de Ataúro dependia do reinado de Motael. “Os Ataúros vinham aqui [Motael] ouvir ordens. Grandes fogueiras, à noite, na ponta de Fatucama, eram o sinal de que eles tinham de fazer-se ao mar nos seus beros e comparecer” (Seara, 1949, ano1, nº2:114). Porém, alguns anos mais tarde, na montanha de “Fatucama já não ardem fogueiras mas sobre Ataúro e Balibar desponta um clarão que não se apaga – a mensagem evangélica – e chama os povos duma e doutra para comparecerem transfigurados, por novos caminhos, e servirem, erguidos ao mesmo nível, o Supremo Rei (refere-se ao rei dos cristãos chamado Cristo)” (Seara, 1949, ano1, nº2:114). Esta última transcrição foi acrescentada pelo próprio compilador da lenda, no sentido de tentar impor a civilização ocidental de forma gradual no território do tal reinado.

7.1.3. Contos mestiços Em Timor-Leste, existem os “contos mestiços”? Existem, sim, porque algumas histórias (sejam reais ou fictícias), plasmada pelas ‘narrativas conjugadas’, isto é, as narrativas orais dos timorenses intercruzam com a presença de elementos exteriores, sobretudo, o uso dos nomes, as expressões linguísticas, tais como, príncipe, princesa, torre e outros. É portanto, Segundo o Pe. Ezequiel Enes Pascoal, não se pode dizer o mesmo a respeito de bastantes contos que se narram nesta ilha [de Timor]. Nesses é evidente a presença de elementos portugueses. Elementos ideológicos e, sobretudo, linguísticos (por exemplo: príncipe, princesa, torre, gigante e outros). Os termos como ‘príncipe e princesa’ são usados pelos contadores timorenses, talvez por serem mais expressivos e não porque não haja em tétum e nos outros dialectos nativos palavras equivalentes que traduzem absolutamente a mesma ideia. […] Em qualquer dos casos, realizou-se um processo mais ou menos lento e notável de assimilação mútua. À substancia nativa ou portuguesa juntou-se – como diz Gilberto Freire, ainda que noutro sentido – o tempero genuinamente português ou genuinamente nativo (Pascoal, 1967:28).

Tal definição manifesta uma fusão de termos e de ideias que, do ponto de vista antropológico cultural é uma espécie de miscigenação cultural. Aparecem, assim, os ‘contos mestiços’, ainda que não sejam conhecidos com essa designação. Os ‘contos mestiços’ marcam, de algum modo, a convivência colectiva entre portugueses e timorenses (Paulino, 2011b:178; Paulino, 2011c:14). 186

A Seara conseguiu publicar alguns contos mestiços: o “Amo-Deus Coronel Santo António2 (Seara, 1949 – Ano 1-nº6,7,9,11e12; 1950 – Ano 2-nº5 e 6), “Chico-Tó” (Seara, 1954 – Ano 6-nº4)121, “A lâmpada que não pode apagar-se” (Seara, 1953 – Ano 5-nº6), “O silêncio do príncipe”, da autoria do Pe. Ezequiel Enes Pascoal; A oitava espada, de Marisa Volta (Seara, 1953 – Ano 5-nº5); “Uma visita”, de Chico (Seara 1953 – Ano 5-nº2). Os cristãos timorenses têm uma forte devoção a Santo António de Lisboa. Tal devoção, certamente, foi trazida pelos missionários dominicanos por volta do ano de 1750 à terra de Mena (o actual enclave de Oé-Cussi). De acordo com o primeiro padre timorense, Pe. Gregório Maria Barreto, que foi responsável pelas missões de Timor em 1856, constatava-se que a igreja existente no reino de Cotubaba (Atabae) era dedicada a Santo António. Acrescentava ainda o padre Barreto que, no reino de Motael, havia-se construído uma capela de Santo António – a qual passou a ser a Igreja de Santo António de Motael –, e era a única capela com paredes de tijolo, embora o tecto fosse coberto de palha. No reino de Lacluta, a igreja também foi dedicada ao culto de Santo António. Em 1905, a missão de Alas construiu uma capela sob o patrocínio de Santo António. A construção das igrejas nas estações missionárias era uma das características religiosas portuguesas para tentar organizar as novas comunidades cristãs à semelhança das da metrópole, isto é, através de dioceses e paróquias, com seminários ou colégios onde se procedia ao ensino da moral católica e da cultura portuguesa (Miranda, 2003:15). Acerca da devoção do povo de Manatuto, o padre Ezequiel Enes Pascoal, fundador e primeiro director da Seara, contou que, em tempos idos, as populações, ao verem os seus arrozais atacados e dizimados pelos ratos, levaram a imagem do santo a percorrer os natar (várzeas ou campos de arroz), entre preces e haklalan (aclamações e gritarias). Conta-se que, certa manhã, ao irem venerar a imagem do santo na igreja, os devotos viram os pés de santo António cobertos de lama. Pelos vistos, durante a noite, o santo Padroeiro tinha saído do seu altar para ir “afugentar os ratos”, pois viram patentes nos natar as pegadas do santo… A verdade é que, nos anos seguintes, o “neli” (arroz, em português de Timor) produzia a cem por cento…Perante estes factos, os habitantes de Manatuto passaram a aclamar o santo com o magnífico título de “Amo Deus Coronel Santo António” (Seara, 1949, ano 1, nº6,7,9,11e12; 1950, ano 2, nº5 e 6). Actualmente, encontram-se várias igrejas de Timor-Leste dedicadas a Santo António: Igreja de Santo António da Paróquia de Motael (Díli – diocese de Díli); Igreja de Santo 121

Este conto de Pe. Ezequiel Enes Pascoal encontrou-se publicado também na edição do nº 545 de 25 de Outubro de 1975 d’A Voz de Timor.

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António da Paróquia de Manatuto (diocese de Baucau); Igreja de Santo António da Paróquia de Baucau (Diocese de Baucau); Igreja de Santo António da Paróquia de Balibó (diocese de Maliana); Igreja de Santo António da Paróquia de Lacluta (diocese de Baucau); Igreja de Santo António da Estação missionária de Buibau (diocese de Baucau); Igreja de Santo António de Oé-Cussi. Neste tópico, pretendemos explicitar também a verdadeira história da conversão do rei ao cristianismo, o relato vinculado ao plano dos missionários. Diz-nos a lenda, que, uma noite, um missionário foi ao encontro do liurai de Tchauluturo com a missão de o converter. O liurai recebeu-o e marcou o encontro seguinte: […] O Liurai não pense no nosso cansaço. Por maior que ele seja, é bem compensado pela alegria que sentiremos em ver um dia o Liurai fazer parte da nossa família cristã. E ele mais uma vez se riu de satisfação e concluiu: Então podeis vir no 3º e no 7º dia. […] O Liurai levantou os olhos para céu coberto de estrelas e, apontando-me uma com o dedo, disse-me: quando o sol chegar ao lugar daquele podes vir122 (Seara, 1966, ano 1, nº34:5).

Era uma ordem que advém do seu papel e, simultaneamente, para dignificar a sua plena autoridade. Não visa informar nem assegurar um acordo, mas o que o rei de Tchauluturo123 fez, foi uma tentativa de estudar o modo como José Ribeiro (o próprio autor do artigo “A Conversão do Rei”) cumpre o compromisso. A ordem do rei era uma ordem natural e carismática, ou autocrática, dependendo da sua acção humanista com a sua comunidade, incluindo também a sua disposição para receber o “Outro” com honra. O sol e as estrelas eram os relógios dos reis, ou dos homens que trabalhavam no campo. O desafio do rei foi bem aproveitado por José Ribeiro, mas este atrasou-se, com o próprio descreveu: “No dia e hora marcados pus-me a caminho”. Tal citação pode ser interpretada como ‘atraso’ ou ‘incumprimento do horário’, isto é, olhando para tal enunciado parece que o religioso que ia ao encontro do rei e da sua gente não cumpriu bem a hora marcada pela própria Alteza, pois bem sabia que podia estar em casa do rei antes da hora do encontro. Ele não visava assegurar o acordo e atrasou-se a sair de casa.

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“Quando o sol chegar ao lugar daquele podes vir – Vatchu mau fan ivane zhetetu eta mau”. “Chauluturo” é o nome de uma região na ponta leste da ilha de Timor, entre Fuiloro e Lospalos. “Chauluturo” significa “lutu halo ho ema nia ulun” (muralhas feitas de cabeça humana). A expressão “Chauluturo” é constituída por duas palavras: Chau (cabeça), ou chau-tapunu (cabeça), e “Luturo” (fatuk hada). Relacionando com a identificação dos elementos básicos da cabeça humana, a própria palavra “chau” liga-se a vários sentidos, por exemplo: “chau-vari” (cabelo); “chau-paruhe” (halo fuk konde); “chau-luluno (fuk konde). Existe outro significado da expressão “chau”, por exemplo: “chau-hafa”significa “osso da cabeça” mas pode significar também “chefe”, ou “chau-hafa marau” (Senhor Criador). 123

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Naquelas circunstâncias (numa perspectiva da comunicação oratória), o que uma pessoa de bom senso podia fazer era pedir ao próprio adversário, ou ao juiz, para fazer uma reflexão muito precisa, sem o magoar. Nota-se bem tal bom senso na figura carismática do rei de Tchauluturo, que não interrogou o seu adversário (neste caso, era o próprio religioso), mas convidou-o honrosamente, que significa não ter mostrado comportamento de revolta ou indignação: Antes de chegar a Tebaulteira (parede das cabeças124), passou sobre mim [diz José Ribeiro] uma grande nuvem de patos bravos, que se tinham espantado com o forte buzinar do chifre de búfalo. Era o próprio rei que o tocara a chamar a gente para a catequese. Vieram 35 pessoas, incluindo Sua Alteza Rei. A aula foi ao ar livre, debaixo de uma grande árvore e sentada na relva (Seara, 1966 – Ano 1, nº34:5).

De facto, o rei não se converteu de imediato ao cristianismo; porém, alguns dias mais tarde, o religioso voltou a visitá-lo, e à sua gente. Ele ficou contente, porque aumentou o número de pessoas que queriam participar na catequese, chegando às 102 pessoas. O rei e a sua gente não se converteram logo à religião católica, vendo, em consciência, que não podiam trocar de imediato a sua crença por uma religião estranha. Alguns meses depois, o religioso voltou a vistá-los, visita ocasional de um interessado sobre a gente daquela região. Era uma visita cheia de graça, porque foi nessa ocasião que o rei e o seu povo manifestaram conscientemente a sua vontade de se converterem à religião cristã católica, e receberem “os sacramentos do Baptismo e do matrimónio” (Seara, 1966, ano 1, nº34:5). A mesma ideia foi partilhada pelo Pe. José B. Rodrigues (1962), mas a história da conversão do rei ao cristianismo é contada de forma diferente. De acordo com este sacerdote, a população da região montanhosa de Luro tem uma lenda histórica e mitológica, que descreve a vida heróica e aventureira de dois irmãos gigantes: Miloro (o mais velho) e Coromáa (o mais novo). Miloro era o rei e o senhor de toda a região, desde as montanhas de Luro ao extremo da ilha, excluindo o reino de Nári. Segundo a tradição, Miloro era um herói que “arrancou um ramo de árvore, atou-lhe uma corda e fez um arco e, com outro ramo fez uma flecha que disparou contra o reino rebelde de Muapitine, a uma distância de cinquenta quilómetros. A flecha espetou-se no chão, mesmo ao pé dos revoltosos que, aterrorizados, nunca mais tiveram a veleidade de se rebelar contra o chefe. Quanto à flecha, criou raízes com o tempo, deu origem a uma mata, com o nome de ‘Fèlucáu – flecha’ e considerada ‘tei – sagrada’” (Rodrigues, 1962:262-263). 124

Antigamente, quando os homens de Timor guerreavam, cortavam a cabeça aos vencidos e com elas faziam paredes. Esta prática de cortar cabeças não foi praticada só por timorenses antigos, mas foi praticado também pelos europeus das antigas civilizações.

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A propósito da história de Miloro e Coromáa, distinguimos a memória histórica dos habitantes de Luro em dois tipos de história: por um lado, a história chamada “objectiva”, que é a série de factos que nós, investigadores, descrevemos e estabelecemos com base em certos crtitérios de forma objectiva e universal no que diz respeito às relações da própria população de Luro com o seu herói antepassdo Miloro e a sua sucessão, não tendo esta última sido relatada em pormenor pelos seus descendentes; por outro lado, a história ideológica e política, que as novas gerações dos Bunak costumam classificar como política dos avós em que se descrevem certos factos do seu tempo de acordo com as normas estabelecidas. Esta última é a memória colectiva, que tem estado na história oral de outros grupos étnicos (os Mambae, os Makasae e os Fataluku, os kemak, os Baiqueno). A história ideológica, política e económica vira-se, de preferência, para os primórdios do reino, por exemplo, a personagens de Miloro e Coromáa são heróis culturais e fundadores mitícos do reino de Luro e, no caso dos Bunak de Tapo (distrito de Bobonaro), os casais Mau Sirak e Bui Sirak, Mau Guzu e Bui Guzu, Dudu Mau e Sesu Mau, são considerados heróis culturais e fundadores míticos do reino dos Bunak que venceram a batalha contra o mal na terra sagrada chamada ‘Bekali Annola’ (Paulino, 2012c). A história desta natureza é designada por Malinowsky como um “cantar mítico” da tradição (Goff, 1984:14) que no conceito de homem natural, “tinha-se limitado a afirmar a oposição entre a nossa mortal ligada ao tempo, deste mundo de imperfeição, e a imortal perfeição anteporal do paraíso. Este Mundo e o Outro Mundo coexistem. Mas as histórias míticas têm, necessariamente, uma estrutura linear em que cada coisa acontece depois de outra” (Leach, 1985:24). A Fèlucáu do Miloro para a população de Luro é considerada como símbolo da defesa e da caça. Quem visita a região, pode ver directamente tal flecha e a sepultura do rei Miloro. Segundo a lenda, os irmãos gigantes – Miloro e Coromáa – pertenciam à linhagem do seu antepassado tio Daibúnu, que era muito rico e vivia perto de Luro, e a história da conversão do rei ao cristianismo começou por aí. […] O jacaré não faz mal a ninguém; a cobra come galinhas, cordeiros e porcos: [afirma o Daibúnu] vou ajudar o jacaré. Aproximou-se e cortou a cabeça da cobra com o machado. Vendo-se livre, o jacaré transformou-se num homem branco, muito novo e elegante, que disse: vem comigo à minha casa, que é numa ilha longe daqui! Tenho medo, respondeu Daibúnu. Nada receies, põe-te em cima de mim, fecha os olhos e a boca, que nada te acontecerá. […] Quando chegaram à ilha, o bicho voltou a converter-se em homem e levou Daibúnu a sua casa, que era um edifício alto e muito branco. […] A vida não me interessa, porque não tenho filhos. Como Daibúnu não queria nada, o branco disse: Toma esta bandeira e este livro, e vamos para a tua terra. […] A bandeira parece ter a data de 1700 e o livro deve ter sido impresso entre 1650 e 1700. Contém orações e salmos, em latim, com tradução alemã, e ambos os

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objectos são considerados sagrados e, como tal, os indígenas oferecem-lhes sacrifícios (Rodrigues, 1962: 265-266).

A narrativa aludida vem revelar a história de um viajante que visitava a região da ponte leste da ilha de Timor, estava sempre acompanhado por um ou mais jacarés. No entanto, podemos entender que o jacaré que se converteu num homem era um viajante e, consequentemente, levou Duibúnu à sua casa para lhe mostrar a infinita riqueza. Segundo reza outra lenda, havia antepassados da família de um chefe que se converteu ao cristianismo, que, a nosso ver, parece ter semelhanças com outras mitologias de conversão do rei ao cristianismo existentes noutras regiões de Timor. A evangelização coincidiu com a persistência dos sistemas de práticas e crenças timorenses já existentes, conferindo à religiosidade timorense uma forma sincrética, pois bem se sabe que, na história das religiões, o sincretismo é uma fusão de concepções religiosas diferentes, convertendo, no caso de Timor, os cultos sagrados ao culto cristão, rebaptizandoos com o nome dos santos católicos. No século XIX, começava a haver uma vaga de inculturação do culto mariano com cultos timorenses, como no caso do culto ancestral de Hoho-Úlu, situado entre Aileu e Maubessi; o outro era o movimento dos Robuta (fechar os olhos – uma manifestação imediata nas orações) (Barros, 1987a). Tais exemplos fazem parte da nova dinâmica de mitificação dos cultos, ao mesmo tempo que participam de uma atitude expansionista que procura dominar os cultos originais de um povo. Porém, sublinha Boavida (1993:12), “in its composite of Christian values and local East Timorese elements” ocupam lugar importante na afirmação identitária timorense de hoje. Aliás, apesar do esforço de alguns religiosos e religiosas timorenses que tentaram acabar com as tradições e crenças da sua origem, não conseguiram destruí-las, porque a grande maioria dos timorenses defende a sua tradição e as crenças herdadas dos seus antepassados.

7.2. Tradições e costumes abordados na Seara Tradição (em Timor, o termo é conhecido por lisan ou adat) é a transmissão de práticas ou de valores espirituais de geração em geração, o conjunto das crenças de um povo, algo que é seguido conservadoramente e com respeito através das gerações. A tradição e a sua presença na sociedade baseiam-se em dois pressupostos antropológicos: a) as pessoas são mortais; b) a necessidade de haver um nexo de conhecimento entre as gerações. Os aspectos específicos da tradição devem ser vistos em seus contextos próprios: tradição religiosa, tradição familiar e 191

outras formas de perenizar conceitos, experiências e práticas entre as gerações. A tradição toma feições peculiares em cada crença e, simultaneamente, pode destacar-se a presença da tradição nos grandes grupos religiosos, por exemplo, Judaísmo, Cristianismo, Islamismo, Hinduísmo. As lendas e contos explicitados nos tópicos anteriores são histórias que relatam as origens dos povos timorenses. É, até certo ponto, a ideia imaginária colectiva sobre as particularidades da alma timorense, pois o que era tradição puramente oral passou a ser documental. E isto surpreende muito quem (investigadores ou simples visitantes/turistas) entra em contacto, pela primeira vez, com o povo timorense. Porque no aspecto de representação e mentalidade (quer no aspecto físico quer psicológico) é muito diferente dos povos vizinhos.

7.2.1. Visões sobre Díli e Tutuala Manuel Ferreira, no seu artigo “Díli: Apontamento etnográfico”, publicado na Seara, ano 5, nº4 de 1953, recordava que, em Díli, vivia uma pequena comunidade maometana a que, impropriamente, se chamava árabe, pois eram muito poucos os naturais da Arábia. No seu testemunho afirmava que, em Motael, havia uma pequena povoação de Mouro, habitada por islamizados (Ferreira, 1953, ano 5, nº4:214). O que nos parece a actual família de Alkatiri é, sem dúvida, parte desse grupo. Os árabes têm estilos próprios e usam papelinhos próprios para conquistar amizade, chamados ajimat, e as mulheres utilizavam certo pó, designado por sala matan, que é colocado nas sobrancelhas para dar um brilho especial à face, parecendo mais novas (Idem:215). Este misterioso ingrediente foi usado também por mulheres timorenses para a perfeição do corpo. Os timorenses de Díli adoravam o jacaré, considerado o avô, e, conforme a tradição desta população, “um jacaré que vivia no pântano de Caicoli foi, por passagem subterrânea, aparecer em Luca” (Ferreira, 1953, ano 5, nº5:249). Em certos eventos, é indispensável que as mulheres só usem um brinco em cada orelha, e quem observa as raparigas de Tutuala (do distrito de Los Palos) admira-se bastante porque elas usavam mais de treze pares de brincos. Ainda no artigo, “Díli: Apontamento etnográfico”, Manuel Ferreira – com base na descrição do livro “Timor: Quatro séculos de colonização portuguesa”, do capitão José Simões Martinho – sintetiza que a capital da província colonial, Díli, é uma “cidade de muitas e desvairadas gentes, onde se encontram nativos de todas as partes da Província, sujeitos ao 192

fenómeno da atracção dos grandes centros. Como é aqui onde, evidentemente, vive o maior núcleo de população europeia. Muitas superstições e crendices dos nativos ressentem-se da influência da Metrópole” (Ferreira, 1953, ano 5, nº4:112). Quarenta e oito anos depois desta descrição, em 2001, Paulo Castro Seixas descreve: “Dili é uma cidade num processo de renascimento e, como na fase liminar de um rito de passagem, é possível ver os sinais da morte de uma cidade ao mesmo tempo que se vislumbram sinais da sua ressurreição. Estes sinais de liminaridade podem ser lidos por uma semiótica espacial, social e política (Seixas, 2001). Nos Apontamentos Etnográficos de Tutuala, Manuel Ferreira (1951:211) mostrou a sua admiração pela paisagem misteriosa de Tutuala: “Na povoação de Tchailoro, já no suco de Tutuala, os nossos olhos abrangem os dois mares, o do norte e o do sul, ambos refulgentes de Luz. Surge Vero, a aldeia mais pitoresca, passada a povoação de Ioro, fica-nos à direita a picada para Tutuala e ilhéu do Jaco”. O autor cita os nomes da povoação de Tutuala e outras povoações que a rodeiam. O nome destas povoações tem um significado próprio; por exemplo: Tutuala (pedra em cima de uma forquila); Ioro (junta-se gente); Vero (ribeiras); Tchailoro (o lugar de dança); Mehara (formigas/formigueiro) e Porlamano (de poria-lamanu “po’ora-lamanu”, que significa mata de ainitas ou ainitas-laran). Relativamente a alguns aspectos da tradição do povo destas paragens, o autor fez referência a crenças supersticiosas de certas mulheres, segundo as quais a mulher, durante a gravidez, não deve comer carne de tartaruga, tavez por ter um significado próprio. Ferreira refere ainda que o nome do recém-nascido é escolhido pelos avós (um velho ou uma velha), mas, na realidade, é sempre dado pela mãe ou pela avó paterna. Antigamente, a aldeia e as casas da povoação de Tutuala eram construídas de forma sobrelevada e quadrada, semelhante à das outras regiões vizinhas (Lospalos, Laútem, Maupitine, Com e Lore). Normalmente, cada família tem duas casas: uma tem função de celeiro e de cozinha e outra servia para o repouso da família. Por exemplo, em Poros, o chefe da povoação estava a construir uma habitação de seis lados. Hoje, a aldeia e as casas antigas já não existem (ver o anexo 3), pois estas já foram transformadas em cidade urbana semimoderna. Existem variedades dialectais dentro da própria língua fatuluku: por exemplo, em Tutuala, falava-se o lovaia-epulo. É de registar também que a povoação de Porlamano, do suco de Loiquero, era caracterizada por Lovaia, julgamos que por ali ter sido muito usado o referido dialecto. O lovaia-epulo não era um dialecto com literatura, pelo que Manuel Ferreira (1951, ano 3-nº6) fez uma simples descrição de nomes de animais, elementos corporais do ser 193

humano, família, números, tempo e algumas partes de plantas, mas não apresenta o verdadeiro nome, isto é, segundo a nossa informadora Sabina da Fonseca, grande parte dos nomes dos animais, das plantas e do corpo humano referidos por Manuel Ferreira foi traduzida de forma errada. Aliás, a natureza de argumentação que devemos fazer é, segundo a doutirna de Mário Mesquita, se há neste processo de narrativização – no caso de Apontamentos Etnográficos de Tutuala e a lenda de Muapitine, de Manuel Ferreira – uma diluição de fronteiras entre o jornalístico e o ficcional, tal como entre o público e o privado. Porém, toda a narrativa informativa aparece subordinada a uma estrutura dramática que, segundo Mesquita, visa provocar no receptor um efeito de suspense, ou aquilo que, na retórica do jornalismo, se chama “figuras de contaminação”, uma designação baptizada por Gérard Leblanc para significar “os fenómenos de desinformação e confusão resultantes da contiguidade das formas de ficção e da não-ficção, da publicidade e do jornalismo” (Mesquita, 2003:113).

7.2.2. Visões sobre Barlaque O Pe. Jorge Barros começou por definir o barlaque a partir da definição do Pe. Artur Basílio de Sá. Segundo Barros o casamento timorense consistia nas práticas Berlaki, que, segundo Artur Basílio de Sá, “é um casamento celebrado pelos não cristãos” (Sá, 1961:191). Gramaticalmente, o termo Berlaki é formado por dois vocábulos: Bere (tomar) e laki (marido). O termo mais clássico referente ao Berlaki – do ponto de vista linguístico – é o foli (valor – no sentido de elevar a dignidade da mulher, não no sentido do preço de mercado). É o termo mais popular em Timor-Leste. Importa ter presente também que grande número de cristãos, dum modo geral, celebra em primeiro lugar as cerimónias do berlaki, antes de estabelecer o casamento formal dentro da orientação católica. De facto, existe também uma noção de que a derivação do termo terá sido aplicada “nas uniões simplesmente conjugais entre timorenses ou entre europeus” (Barros, 1964 – Ano 16-nº3e4). O autor estabeleceu uma pequena proporção comparativa do termo “barlaque” com o “môhar” dos hebreus e que na prática tem o mesmo significado, mas, segundo ele, “o barlaque timorense não parece menos legítimo que o môhar dos hebreus em várias passagens do Antigo Testamento (Géneses XXIV, 53; XXIX, 18;XXXI, 15; Êxodo XXII, 16,17). Ora, a nosso ver, legítimo ou não, depende do contexto em que o ritual seja realizado ou aplicado.

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De acordo com o Dicionário Tétum-Português, da autoria do Cónego Manuel Patrício Mendes, citado por Jorge Barros, o barlaki é definido também como um processo de “casamento entre gentios”. O termo fôlin é, segundo Barros (1964, ano 16, nº3e4:93), como um sistema de pagamento, ou preço da mulher. O argumento do autor foi sustentado pelas declarações inesperadas de alguns indivíduos, dizendo que “já paguei o barlaque e outro não pagou barlaque”, mas, na nossa opinião, isto não justifica que o termo fôlin/barlaque seja considerado um casamento de compra da mulher (Paulino, 2011b). Na mesma perspectiva, o Pe. Quintão (1971 e 1972) questionava o conceito do barlaque a partir de uma pergunta: “é, moralmente, licito exigir-se o barlaque?” Segundo o autor, “o barlaque, hafoli ou pana gobol” é um casamento por compra, ou seja, o “preço da mulher” é por ele questionado como venda e compra directa e/ou imediata da noiva, quer no aspecto de residência virilocal quer de geração patrilinear. O autor sublinhou ainda que o barlaque do hafoli, incluindo o dos Fetosá Umane, não é uma compra e venda por permuta, nem é um comércio, mas é um símbolo semelhante à troca dos anéis no actual matrimónio cristão; por não ser compra e venda, nem comércio, não existe preço ou folin nesse barlaque; consequentemente, a palavra hafoli não poderá ser composta por terminologia de halo-folin (fazer preço), mas é originária do foli, que é mencionado no acto de casamento timorense de certas regiões do grupo etnolinguístico tétum125. Em todo o caso, o conceito de barlaque, para nós, é uma espécie de matriz de um pacto social para estabelecer e fortalecer os laços familiares da mesma linhagem genealógica 126, ao mesmo tempo que é símbolo de troca de presentes e de bens materiais que ligam duas linhagens numa futura relação duradoira. A prática do barlaque é também uma circulação dos bens cerimoniais e suporte de uma relação hierárquica de poder político e económico, e não no sentido dos autores referidos, isto é, há um paralelismo entre o casamento e a troca, mas, na prática, os princípios e objectivos fundamentais são diferentes (Boavida, 1993). Podemos definir o conceito de barlaque/hafoli em três momentos: o primeiro consiste na oferta de alguns objectos (como o anel e fio de ouro) à noiva; estes objectos representam a consideração e a valorização do amor conjugal; o segundo momento consiste na entrega de objectos aos pais da noiva como sinal de aproximação e de amizade; e, por último, os 125

Veja-se o artigo de Pe. Quintão, intitulado “Tentativas de adaptações: o casamento nativo”, in Seara – Boletim Eclesiástico da Diocese de Díli, ano 6-4ª série - nº213,214, 1971; ano 7- nº216, 217, 218, 219, 220, 224, 226,227,282,229,230, 1972. 126 Este sistema é como uma ideia fundadora da comunicação, aliança e dominação até da organização política social e territorial, como explica Ivo Carneiro de Sousa: “Lineage and appropriation of space, or in other words, kinship and terriotorialy are fundamental factor in the traditional social organization of the peoples of Timor” (Sousa, 2001:188).

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familiares do noivo apresentam e oferecem alguns objectos como símbolo de elevação dos valores da mulher, que serão colocados na casa sagrada. A expressão feto-sá-umane ou feto-sau-umane é equivalente a feto-oan – na’i-hun, e deriva destes quatro elementos vocabulares: feto (mulher); sau (ligar-se, aparentar, consagrar; Uma (casa), família; mane (homem). Em galole (língua de um grupo étnico de Manatuto), a expressão equivalente, feto-sau, é batsau, tirada de babata-sau (mulher-ligada). O vocábulo galole sau é verbo e substantivo e, na expressão portuguesa, equivale ao verbo “trazer ao colo ou trazer no ventre”; justaposto ao substantivo, quer dizer esposa mulher; por outras palavras, sau-ôbun significa pessoa casada. Nestas acepções percebemos que o modo de relacionamento é baseado no conceito de relação e de ligação. É que o ponto-chave deste processo de interacção é designado por “mulher-ligada”. No grupo étnico de Mambae, o termo sao significa “parente”, a expressão equivalente ao termo tétum máluc. Em Uaikênu, mat-sau é casar-se; e, finalmente, em língua indonésia, o parentesco é designado por saudara. Nota- se, em todas estas expressões, uma semântica similar, no étimo sau (Barros, 1964, ano 16, nº3 e 4:98). No seu aritgo “Barlaque”, o autor sintetiza a questão do casamento tradicional do povo etnolinguístico tétum, nomeadamente, do povo de Samoro. Segundo este autor, na tradição do povo falante de tétum, os fetosá Umane e a aplicação do barlaque sofrem divergências pelo facto de que os Fetosá Umane aparecem unicamente no hafoli, enquanto o barlaque marca a sua presença nos mais diversos tipos de casamento timorense e os fetosá Umane supõem necessariamente o barlaque; embora numa determinada circunstância como causa-ocasião, o barlaque pode subsistir sem eles. No rito do casamento dos povos de tétum, o noivo é convidado especial para a família da noiva e vai ocupar o lugar reservado aos nubentes. Nesse momento, a noiva começa por afastar-se da lareira e vai sentar-se ao lado do seu futuro marido, rodeados por toda a família dos dois lados. Diante dos nubentes estende-se uma esteira grande, feita de folhas de palmeira, sentam-se todos e procede-se, então, à oferta que é denominada “prenda nupcial”, de feto-oan, ao seu umane (da família do noivo à família da noiva), e que consiste em alguns objectos, vestuários e outros objectos valiosos, tudo colocado numa kohe-tálin (uma espécie de saco de viagem). Para o Pe. Jorge Barros, o ritual de casamento dos povos falantes de tétum mostra alguma característica religiosa, suficientemente indicativa de uma representação de culto religioso. Como tivemos a oportunidade de explicar noutro contexto (Paulino, 2011c:15-16), no casamento de sistema de barlaque há um conceito chamado “vítima do barlaque”, de que derivam relações desiguais de poder entre os recém-casados ou casais que já vivem juntos há 196

muito tempo. Segundo a tradição, os timorenses, na maioria dos casos, dizem que o pagamento do barlaque estabelece uma rede de protecção à esposa e a manutenção dos valores familiares herdados dos seus antepassados. Mas, em alguns casos, há um lapso ou desentendimento entre os casais e isso pode – em maior ou menor grau – favorecer a ideia de vitimização. A vítima do barlaque pode vir a ser o noivo ou a noiva. A este propósito, o Pe. Ezequiel Enes Pascoal escreveu um artigo intitulado “Uma vítima do barlaque”, que publicou na Seara127. No fim desse mesmo artigo, o leitor pode perceber exactamente o conceito de vitimização na prática do barlaque. Eis a narrativa: Soube-se, nesse mesmo dia, que Coli-Mau fora preso por uns ‘moradores’. Tendo-se recusado a parar, uma flecha atravessou-lhe uma coxa. Uma pedrada fracturou-lhe várias costelas. Cevaram nele, abusiva e irresponsavelmente, o ódio que o seu crime provocara, depois de o terem forçado a confessá-lo. Enquanto ia crescendo e alastrando por toda a parte, nesse lutuoso domingo, a onda de aversão ao rancoroso bandido e à sua nefanda vingança, os sinos continuavam a chorar, em arrasta plangência, mais uma vítima do barlaque (Seara, 1953, ano 5, nº 3:172).

A existência de “vítima do barlaque” acontece em todo o território de Timor; assim, em Tutuala, um casal tem um filho barlaqueado, que morre, e, se não tem outro filho que possa casar com a nora, esta pode casar-se com o sogro. Se a nora não aceita – o que é o mais comum –, é devolver o barlaque e retirar-se para a família. Se a mulher comete adultério, o culpado entrega ao marido dois pares de brincos em ouro ou cordão de mutiçala, para que o ofendido possa continuar a viver com a mulher (Ferreira, 1951, ano 3, nº 5:216). É uma prática costumeira muito comum na sociedade timorense que a punição se dê mediante compensações materiais às vítimas, logo, tais vítimas podem voltar a viver com a sua família de origem.

7.2.3. A invenção da alma timorense Há duas dimensões do tempo na classificação da alma timorenses: o passado (antes e depois da presença portuguesa) e o futuro. O timorense antigo pertenceu ao passado e foi no passado que construiu a sua knua (aldeia) ideal, foi no passado romoto que, acaso, o próprio antepassado timorense construiu a casa e, simultaneamente, constituiu família e estabeleceu a estrutura social como tesouros da sua evolução. O timorense actual vive cada vez mais no

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Edição de 1951 (ano 3, nº 2), edição de 1952 (ano 4, nº 4, 5, 6) e edição de 1953 (ano 5, nº 1, 2, 3).

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horizonte do futuro ou da transformação com outra latitude e outro modo de pensar, sem esquecer a alma dos seus antepassados. No seguimento deste raciocínio, pretendemos considerar que a afirmação identitária é uma constatação de personalidade do próprio ser humano que tem por função fazer distinção simbólica como forma de manter a sua supremacia. Sendo esta afirmação identitária que define a particularidade de um determinado grupo social e tende a fazer corresponder a cada posição na hierarquia social uma cultura específica, que deu origem ao termo simbólico, por exemplo, “alma”, tem por função a representação simbólica para identificar ou caracterizar a identidade de um povo. No primeiro século da presença portuguesa, um missionário franciscano reflectiu sobre a evolução da civilização timorense, sobretudo, a existência de uma identidade vestuária, crença e arma guerreira: O traje actual [dos timorenses] não difere muito do que descreve o franciscano do século XVII, mas só nos dias de festas usam, nos braços manilhas de oiro e prata. […] As mulheres já não tatuam o corpo128 nem usam manilhas nos braços, embora o seu traje conserve semelhanças ao da época escrita129. […] A arma que usam é uma espada curta e larga, à maneira de alfange, um lanche de duas varas de comprimento e um arco com frechas. […] O seu culto [chamado lúlik e segundo este artigo], somos movidos à compaixão e ao sentimento – consta da cabeça de búfalo, espetada num pau com os chifres e miolos, depois de se lhe tirar a carne (Seara, 1953, ano5, nº3:133-139).

O Pe. Jorge Barros, por seu turno, publicou, na Seara, uns rápidos apontamentos sobre a “Alma timorense”. Asseverou que não pretendia revelar aos leitores nenhum génio do Parnaso (Barros, 1958, ano 10, nº1:96), mas, apenas uma manifestação descritiva sobre a alma timorense. O autor evidencia que as características dos povos de Timor não tinham ainda “sido absorvidas por uma evolução que se vem processando desde há quatro séculos em

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Tatuar o corpo é uma das características dos timorenses, mas de forma responsável, não de maneira exagerada. Em seu artigo “Tutuala: apontamentos etnográficos”, Manuel Ferreira (in revista Seara, 1951, ano3, nº5-6) destacava a importância da tatuagem para a população de Tutuala: se um membro da família morre sem ser tatuado, deverá receber um castigo imperdoável e terá de ir viver no mundo dos porcos (refere o inferno). A gente desta região disse que, no sítio onde hoje é a lagoa Muapitine, era, nos tempos idos, a povoação de Poros, castigada porque matou uma gibóia, e daí ter surgido a lagoa que cobriu a povoação (Seara, 1951, ano 3, nº5:216). Veja-se também a “Lenda de Muapitine”, de Francisco de Lemos, publicada na Seara (1949, ano1, nº4). 129 Veja-se Alberto Osório de Castro (1996:54) que, no seu tempo, descreveu o traje das mulheres de Timor, como sendo uma coisa nova que precisava tanto de ser abordada. No interior de Timor, só em casa dos régulos é usado o sáron-cabaia, trajando as mulheres o comum tais-feto, o sabúlo, ou, como se diz em português de Díli, o sárão, que é um sárong estreito de cores escuras, tecido nos teares domésticos, e que remonta, como o das camponesas de Java, até às axilas

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contacto com o povo civilizador” (Barros, 1958, ano 10, nº1:96), preservando, assim, as suas línguas, os seus costumes e a sua mitologia130. A observação deste sacerdote é muito clara quanto à abordagem de uma ideia de identidade e de uma tradição própria dos vários povos de Timor, onde o autor encontra uma ideia de vivência colectiva a que chama alma timorense. É a alma de um povo que estabeleceu o contacto com o povo europeu (nomeadamente, os portugueses) e de que redundou esse mínimo denominador comum sustentado pela vivência com o povo civilizador. Sabe-se bem que, por mais diferentes que sejam, os povos timorenses partilham uma história que os situa dentro do seu próprio território e no mundo, afirmando-se como portadores das suas próprias idiossincrasias (o que faz deles um povo diferente), mas consciente de que, enquanto parte da Humanidade, ‘somos todos o mesmo’, isto é, humanos. (Paulino, 2009:40). A partilha de um passado histórico configura-se como um poderoso recurso argumentativo na medida em que funciona como uma espécie de “repositório de precedentes” capaz de justificar uma série de demandas políticas relacionadas à concepção da “identidade colectiva”. O passado é um elemento essencial, pois, fornece um pano de fundo mais glorioso a um presente que não tem muito o que comemorar (Hobsbawn, 2005:17). A alma timorense é constituída por meio de representação simbólica e discursiva guerreira ou do amor conjugal. Os timorenses costumam respeitar o conselho prudente da autoridade legítima, como no caso do amor conjugal entre parentesco do segundo e/ou terceiro grau, que persiste ainda hoje, mas não no sentido do casamento arranjado. Importa dizer, portanto, que o amor conjugal é um dos atributos da alma timorense. Outro atributo da alma timorense é a canção guerreira. Um timorense, para ser forte e heróico, tem que cantar a sua canção guerreira, narrando e fixando os actos cometidos, submetendo-os aos versos poéticos. Na recitação oral não se ouvem os seguintes sinais gramaticais: a exclamação, a interrogação, o parêntesis, as reticências, as frases em discurso directo, as vírgulas, os pontos e vírgulas e os pontos, mas na escrita usam-se todos estes elementos. Como se vê nestes versos recolhidos pelo Pe. Jorge Barros (Barros, 1958, ano 10, nº1:97): Hau’ ca’ac: he! Cona au-láran.

: Pelo bambual, te dizia eu.

Ó ma’ac :he ! Cona fuca-láran.

: Pelas ‘fucas’, me opunhas tu…

Há’u la’ac: ‘curaco’!

: Clamei: ‘Curaco’!....

130

Esta mesma óptica etnocêntrica foi partilhada também pelo Pe. Ezequiel Enes Pascoal, dizendo que “Timor evoluiu. A civilização alastrou-se até quase à porta da sua palhota, mas ele mantém-se inalterável na sua crença, nos seus costumes, no seu apego a um passado ameaçado, como ele próprio, de próximo desenlace” (Seara, 1954, ano 6, nº5).

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Curaco mônu tan! …Curaco!

: E tombou Curaco! … Curaco!

U…U…, tálin,

: Ai ! Ai! Acorda!...

Tálin dodéroc,

: Fio traiçoeiro,

Dodéroc namate

: Presa de engano fatal evolou-se…

Fúlan rua ona !...

: vão já dois meses!

Esta narrativa poética, segundo o autor, tem uma estrutura lírica de estilo saudosista, a que o timorense se sente muito propenso. Isto significa que o discurso saudosista não pode ser construído somente na estrutura dos vocábulos de uma sentença de rimas, como se o discurso filosófico e poético fosse constituído por recortes, interligados pela estrutura linguística e, no contexto da análise do discurso dos media, o discurso é mais do que isto, ou seja, o discurso é sentido, pois é constituído por palavras dentro da produção linguística, existindo nas situações em que são usadas para construir o sentido no contexto em que aparecem. Quer isto dizer que a palavra enquanto signo ideológico no discurso jornalístico tem mais poder na construção de uma ideia discursiva em relação àquilo que o homem pensa sobre si e sobre o meio ambiente que o rodeia. A preparação para a guerra é também executada com cantos guerreiros que incentivam à vitória. Bandera ida rai-quiac ona!

Ruiu um potentado! Rufam tambores ! Leu-

Baba lian! Leu-Laco!...

Laco !

Rai-quiac ona!....

Ruiu o potentado !

Cablaqui taruto!

Troa o Cablaque!

Rona è lae ?

Porventura não ouves?!...

Rona, rona,

Ouvi, ouvi,

Canona

Veteranos guerreiros

Catais

De cartucheira

Fátin!

À cintura!..

A solução poética é bem aceite pelas pessoas que fazem parte da linha de combate, utilizando simultaneamente alguns sinais ou gestos que possam traduzir a passagem da vitória. Na recitação, as alterações de voz e as pausas das personagens traduzem sempre uma certa confiança na transformação que há-de vir. Normalmente, a recitação do ritual em rima está associda a alguns eventos importantes, como, é óbvio, no acto do casamento, hakoi mate e na inauguração da casa. É um pedaço da tradição timorense que alimenta a sua alma, que, de alguma maneira, funciona como sustento de vida, e, por isso, os dados históricos estruturam-se sempre em torno de um “dever lembrar200

se” (Ricouer, 2007). A memória exercida institucionalmente é sinónima de memória ensinada; a rememoração dos factos históricos comuns é o indicador principal dos acontecimentos fundadores de identidade colectiva. A partir daí, o enquadramento da memória opera através de uma História ensinada, aprendida e celebrada por uma sociedade ou por um povo. É a isto que Paul Ricoeur (2007:98) se refere quando fala do “temível pacto” estabelecido entre rememoração, memorização e comemoração. A canção guerreira timorense mais conhecida é o lorsá. O Pe. Jorge Barros, no seu artigo “Lorsán”, publicado na Seara (1963, ano 15, nº2), tinha a intenção de explicar as características da alma timorense apresentadas nas canções guerreiras, e uma delas é o Lorsán. Segundo o Dicionário Tétum-Português do Pe. Manuel Mendes Laranjeiras e Manuel Patrício Mendes, o loro-sáan ou loro-sáa é um “canto guerreiro que os indígenas entoam, quando cortam a cabeça a um inimigo e nos estilos gentílicos que, acabada a guerra, costumam fazer em volta das cabeças que nela cortadas; também o costumavam entoar em volta do ladrão apanhado em flagrante, antes de o decapitarem” (Barros, 1963, ano15, nº2:47). Na base desta definição, o Pe. Jorge Barros redefine o lorsá por canto e, por extensão, dança, com que se pretendia festejar a decapitação de um ladrão ou se celebrava a vitória favorável de uma luta. Numa perspectiva linguística, Jorge Barros define o termo lorsá ou lorsán em duas palavras (de loro + sal, saun). Este termo foi utilizado ou expressado pelos povos da língua tétum, embora o seu modo de expressão seja mais para os povos falantes da língua mambae, que, de algum modo, denominam preferentemente por lorsá. Para a população da zona de Fatuluku, o termo é conhecido pelas suas acções apelativas de vauré e, sobretudo, de semai, da região de Lautém, expressão antonomástica do género. Acresce que o semai, ao longo da sua performance, é de menor expressão, como o sikire: na perspectiva de representação, as mulheres formam roda e acompanham, com os seus pira-titiro (pratos metálicos que se percutem com baquetas de madeira), um ou dois dançarinos brandindo na mão direita a catana, agitando com a mão esquerda um lenço branco (Rodrigues, 1962:193). O povo timorense caracteriza a sua alma através das canções líricas, respondendo, assim, ao diálogo da beleza poética embalada no ritmo suave de uma lírica tradicional lorsá. A canção guerreira timorense lorsá foi interpretada pelos homens da guerra de pacificação do Timor Português como algo na alma e no coração timorense para enriquecer o património lusíada, como símbolo de dedicação e de inteligência.

201

Os heróis timorenses, quando cantam o lorsán, começam a executar gestos, e os movimentos do corpo traduzem, ao vivo, a intensidade e extensão do “pathos colectivo”; “todo o homem que vai para a guerra é um herói” a quem é dado o título de “aço-ua’in” (Barros, 1963, ano 15, nº2:48-49). O enaltecimento do próprio valor e causa é exuberante, em qualquer das versões do lorsá, sobretudo, a maneira como se trata o relacionamento entre o vencedor e o vencido, como se lê nestes versos: Loro mane nacsán iha ami leten, Natutu iha ami úlun; Loro feto tur tan imi, Monu tan imi. Ne’e duni loron ida ôhin, uain ida ôhin, Ami fera imi rain, Têri imi ulun; Ulun monu ba rai, Tetec ih arai, Lian laec ona, Lian côtu ona” (Sobre nós raiou o sol-homem, Brilhou sobre nossas cabeças; Em vós poisou o solmulher, Sobre vós tombou. Por isso, neste dia, nesta data, Devastámos vossas terras, Decepámos vossas cabeças; Cabeças caídas na arena, Amontoadas no chão; Já silenciosas, Já emudecidas) (Barros, 1963, ano 15, nº2:50-51).

Este é um dos retratos da alma timorense dos séculos passados, séculos antes e depois da presença portuguesa em Timor. Por um lado, o povo timorense sabe bem que as características das suas almas – sejam de que género for, tecidas pela sua criatividade de pensar e de imaginar que afloram, dum modo ou do outro, crenças e usos, aspectos da sua vida familiar e social – associam-se sempre à sua índole. Descrevem, assim, aspirações da sua alma nas lendas mitológicas. Por outro lado, o elemento funcional – autoridade, espaço e tempo – não se opera sozinho, porque os papéis sociais e os papéis da autoridade ritual e política pressupõem diferentes ideologias, quer dizer que “em toda a sociedade a produção do discurso é, ao mesmo tempo, controlada, seleccionada, organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos que têm por função esconjurar os seus poderes e perigos, dominar o seu acontecimento aleatório, esquivar a sua pesada e temível materialidade” (Foucault, 1997:910). Neste precioso argumento é necessário sublinhar que a produção do discurso baseada na recitação do rito assenta sempre na ordem de solidariedade social. Noutro aspecto, a festa de homenagem aos guerreiros timorenses era antigamente, como dizia Schouten, um festejo de matriz selvagem e, por isso, a autoridade colonial portuguesa destacada na ilha introduziu a civilização europeia à força. Embora, em alguns casos, esta autoridade tivesse oferecido um brinde oficial aos guerreiros timorenses que entregaram a cabeça de seu inimigo, vê-se num texto escrito em 1860 que o então governador de Timor Português, Afonso de Castro, classificava como uma “festa das cabeças”, ao qual os

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timorenses atribuem grande importância131: cada movimento tem um significado próprio e a forma como gere a movimentação parece caçar à cabeça (Fox, 2000:19). Porém, noutro sentido, justificava-se o ritual de cortar cabeças como um meio para a autoridade portuguesa – de pacificar a ilha e controlar efectivamente o território. Há outra ideia (ainda no tempo português) que se referia à alma timorense caracterizada como uma alma cristã e lusitana, de que fala o Pe. Ezequiel Enes Pascoal: “quanto mais cristã tanto mais lusa” (Seara, 1949, ano 1-nº2:29). Tal ideia foi reforçada por um jornalista mexicano, Fernando Medina Ruiz, no seu jornal El Sol de México, explicando que “Timor, farol cristão na imensidade do arquipélago malaio, é a mais remota província lusitana” e “Com a conquista de Malaca, em 15 de Agosto de 1511, abriram-se aos portugueses as ilhas das especiarias e de Timor, de onde provinha o sândalo, tão apreciado no Oriente e em todo o Mundo”. O jornalista finaliza o seu discurso com expressões elogiadoras ao processo de missionação portuguesa na terra de Timor: “hoje, Timor prossegue o seu silencioso e fecundo trabalho de todos os dias e, mais do que nunca, é terra lusitana e cristã” (Seara, 1967, ano 2, nº54:1). Depois da invasão indonésia, os timorenses fixaram novamente o seu olhar nas memórias do tempo dos portugueses, ou seja, reviveram as memórias da identidade lusitana em Timor, onde a Igreja Católica foi vista como legado cultural que une o povo de Timor. Daí se construiu a identidade timorense tão cristã e tão timorense, porque foi através dessa identidade religiosa que se manifestou o repúdio pela presença indonésia em Timor-Leste. O regresso timorense às “origens portuguesas” foi um reconhecimento incontornável na defesa de identidade cultural, territorial e religiosa, dando-se, assim, uma imagem cristalizada de um Portugal mítico à comunidade internacional, pois foi este país colonizador que deixou a religião católica ao povo de Timor e, simultaneamente, considerando-a como uma memória de partilha. Sobretudo, Portugal era imaginado por Luís Cardoso como “Uma espécie de paraíso distante, que nós tínhamos de copiar. Um Portugal das grandes procissões em Fátima,

131

Cf. Afonso de Castro, (1863), “Noticia dos usos e costumes dos povos de Timor, in Anais do Conselho Ultramarino, Parte Não Oficial, série 4 (Março), pp. 28-32; série 4 (edição de Abril), pp.33-40; (edição de Maio), pp.41-42; Acácio Flores (1891), Uma Guerra no Distrito de Timor, Macau:Typographia Commercial; José Celestino da Silva (1897), Relatório das Operações de Guerra no Distrito Autónomo de Timor no Anno de 1896 Enviado ao Ministro e Secretário dos Negócios da Marinha e Ultramar, Lisboa: Imprensa Nacional; José dos Santos Vaquinas (1883), “Timor: Usos – Superstições de Guerra”, in Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, nº 4, pp.476-492; Pieter Middelkoop (1963), “Headhunting in Timor and Its Historical Implications”, in Oceania Linguistic Monographs, vol. 1, nº 8, pp.6-47; Ferreira da Costa (1947), “Etnografia De Timor – Que Significam o Corte de Cabeças Humanas e a Conservação dos Crâneos em Muralhas e Árvores Sagradas”, in O Mundo Português, vol. 2, nº 7, pp.22-36; Ricardo Roque (2010), Headhunting and colonialism – anthropology and the circulation of human skulls in the Portuguese Empire, 1870-1930, Basingstoke: Palgrave Macmillan.

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do Mosteiro dos Jerónimos... É este Portugal que está na cabeça das pessoas e é à procura dele que vêm quando cá chegam” (Miranda, 2003:125).

8. Considerações finais Procurou-se, neste capítulo, estudar a Seara em Timor-Leste (ainda durante a administração portuguesa), desde 1949 até 1973, a fim de contribuir para o estudo dos media em Timor-Leste. Na imprensa católica, normalmente, os colaboradores, leigos ou sacerdotes, exerciam o seu trabalho com base nos princípios cristãos. Verificou-se ainda que a Seara, periódico da Diocese de Díli (abrangendo, na época, todo o Timor), teve um papel de animação e orientação das missões católicas. O periódico ajudava também outras comunidades a divulgarem as suas actividades, mas ao longo da sua publicação não vinculava nenhuma publicidade de cariz comercial, significando que os dirigentes deste periódico não investiam muito nesta área. Percebemos, na Seara, a amplitude da acção dos religiosos como contribuição para a cristianização dos timorenses, como também percebemos que durante o seu breve funcionamento a Seara advogou aos interesses da Igreja Católica em Timor. Pretendemos afirmar que o escopo inicial deste órgão diocesano era a difusão da cultura cristã e da cultura timorense no seio da população. A sua actividade, entretanto, não se restringiu a este objectivo, a sua missão primordial, como transparece nos editorais, era a defesa da Igreja católica, concorrendo, desta forma, para a cristianização dos timorenses, o que significava a legitimação da instituição católica em Timor. Percebemos que as lendas mitológicas timorenses analisadas, por um lado, do ponto de vista de ciência, registaram-se especialmente em regiões onde, em épocas pré-históricas, o ímpeto de forças naturais lhes imprimiu uma ideia de que a natureza em si tinha um poder absoluto, susceptível de causar impressão. Mas, do ponto de vista de tradição e crença, registou-se uma verdadeira história universal da criação do mundo e do homem, incluindo a relação deste com a natureza, que, por sua vez, era governada pelos braços direitos de Marômak. Pretendemos dizer também que as lendas mitológicas timorenses têm algumas semelhanças com o mito da criação e do dilúvio na tradição judaica e cristã.

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Capítulo 5 O semanário A Voz de Timor

1. Consideração prévia A publicação d’A Voz de Timor encontra-se catalogada na Biblioteca da Universidade de Yale de New Haven (EUA), desde a edição de 13 de Junho de 1965 (ano 6, nº 304) até ao nº 554, de 27 de Dezembro de 1970, sendo que, no respeitante ao ano de 1966 tinham sido catalogadas apenas a edição do nº 333, de 2 de Janeiro, e nº 378, de 11 de Dezembro. A edição mais completa é a do ano de 1969. A Universidade de Yale tem catalogadas as edições d’A Voz de Timor, porque foi uma das primeiras intituições universitárias norte-americanas que fez uma assinatura anual do jornal; de seguida, foi a Universidade Michigan, como comunica a direcção editorial d’A Voz de Timor nos seguintes enunciados: “Em pedido feito através da Agência Geral do Ultramar, a Universidade de Michigan solicitou uma assinatura do jornal ‘A Voz de Timor’, pedido que já foi satisfeito. Esta é a segunda Universidade dos Estados Unidos da América que assina o nosso jornal. A primeira, como oportunamente noticíamos, foi a de Yale” (A Voz de Timor, 12/3/1967, nº 390:1). Entretanto, a Biblioteca Nacional da Austrália, em Camberra, tinha catalogadas as edições (1965 a 1970) d’A Voz de Timor, graças à cópia do microfilme disponibilizada pela Biblioteca da Universidade Yale, na Southeast Asia Collection, datada de 1972. Na Biblioteca Nacional da Austrália encontram-se catalogados ainda outros números d’A Voz de Timor referentes aos anos de 1970 até 1974, mas sem algumas edições. Entre estas edições encontram-se publicados os artigos sobre a fundação da UDT e da ASDT, leis e programas dos mesmos partidos; os poemas de Paulo Quintão da Costa e alguns artigos sobre o nacionalismo timorenses, nomeadamente o artigo “Maubere”, pois, como era óbvio, “o jornal A Voz de Timor, habitualmente favorável à FRETILIN” (Ramos-Horta, 1994:106).

2. A Voz de Timor: um jornalismo colonial

O movimento colonial tornou claro que, do ponto de vista das exigências, as regras básicas vigentes nas suas colónias – África (Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Guine Bissau e Cabo Verde), Brasil e Ásia (Malaca, Goa, Macau e Timor) – não eram muito 205

diferentes umas das outras. Isto é, na perspectiva positiva, a “unidade da colonização portuguesa sob a perspectiva de uma só estratégia e política”; e, na perspectiva negativa, é necessário sublinhar que “o motivo para os sucessivos debates que ao longo dos séculos se vão desenrolar nas próprias colónias e, às vezes, em Lisboa, junto às Côrtes ou junto à Câmara dos Deputados: Portugal trata igualmente aos desiguais, não distinguindo políticas de desenvolvimento diferenciado para as suas colónias, o que lhes vai provocar consideráveis atrasos” (Hohlfeldt, 2009:140). No entanto, uma das regras básicas que implica o atraso de desenvolvimento nas colónias é a proibição dos debates públicos e o absoluto controlo sobre a imprensa e, por esta razão, alguns jornais de Angola e Moçambique fizeram “queixas” relativamente ao silêncio dos jornais metropolitanos sobre os problemas coloniais (Reis, 1943). O conceito de jornalismo colonial pauta-se, fundamentalmente, pelos padrões de pactos coloniais englobando um conjunto de regras, leis e normas que as metrópoles impunham às suas colónias durante o período colonial. O jornalismo colonial é um instrumento do governo colonial na transmissão de informação sobre os projectos coloniais, que nem sempre despertam a curiosidade do público, porque não coloca nas primeiras páginas dos jornais os grandes problemas dos nativos das colónias. Segundo a jornalista Fernanda Reis (1943:5), “não existia, em Portugal, aquilo a que poderia chamar jornalismo colonial” que, apesar de não ter a magnitude de outros jornalismos, não deixa de possuir os mesmos defeitos, incluindo os que António Sardinha disse serem os da “industrialização da inteligência”. Este conceito traduz a ideia de que a imprensa é movida por uma finalidade comercial, pelo que não se interessa por temas que não despertem a curiosidade do público (Reis, 1943:6). A propósito do jornalismo angolano, Júlio Castro Lopo (1964) destaca o jornalismo colonial das demais colónias em três períodos: a) imprensa oficial ou oficiosa, da data de criação dos respectivos boletins oficiais até ao surgimento de um jornal que gozasse de maior distanciamento da autoridade política e administrativa da colónia; b) imprensa livre, da data de criação desses jornais com maior autonomia, até ao aparecimento de jornais em que a actividade jornalística fosse considerada, em sentido estrito, como profissionalizada; c) imprensa profissional, a partir daquele momento, quando o jornal se torna a referência para a sobrevivência de seu director, editor ou redactor (em alguns casos, tudo isso ao mesmo tempo) e onde, em geral, o jornal se imprime a partir de uma gráfica própria que também edita outros periódicos e/ou realiza serviços gráficos para terceiros, garantindo sua independência financeira (apud Hohlfeldt, 2009:143).

Os jornais criados ou financiados pelas autoridades coloniais preocupavam-se com a transmissão das notícias e dos “assuntos de carácter obscuro tratados com um sentido 206

oportunista sob o imperativo daquilo a que, em gíria das redacções, se chama vender mais papel” (Reis, 1943:6), e, consequentemente, esta autora caracterizou o jornalismo colonial como uma “desoladora falta de substância”, porque “a abundância de material puramente especulativa” e os “largos espaços absorvidos pelos serviços”, as “notícias insignificantes, de interesse restrito às camadas menos instruídas da população”, e ainda a “abundância de reportagens fúteis e aborrecidas” (Reis, 1943:7), davam especial atenção aos assuntos coloniais que interessavam à metrópole. Importa sublinhar que os jornais coloniais dependiam dos documentos e comunicados oficiais dos governos coloniais, de cartas particulares, do sistema de troca de notícias com outros jornais coloniais e, ocasionalmente, de conversas com habitantes locais ou com viajantes. As tiragens raramente excediam os trezentos exemplares, e as notícias eram apresentadas em três colunas, ocupando três das quatro páginas, sendo uma delas dedicada, na maioria das vezes, a propaganda política colonial, com um pequeno espaço publicitário, uma vez que representava uma das poucas fontes de rendimento à qual os redactores dos jornais recorriam. No entanto, a maioria dos editores coloniais não encarava as notícias como a razão primordial da sua existência, sustentando-se, preferencialmente, de editoriais e de ensaios que eram, frequentemente, dedicados a assuntos como a religião ou as actividades comerciais (Sloan & Williams, 1994: 207). Relativamente ao jornalismo colonial em Timor, ressalta um acontecimento histórico que provocaria mudanças significativas, quando, por ordem do governador colonial, Themudo Barata, a Imprensa Nacional de Díli criou o semanário A Voz de Timor, cuja primeira edição saiu em 16 de Agosto de 1959 (do ano 1, nº 1). Era propriedade do governo e, por isso, afirma Paulo Pires (2001:143), “seria mais lógico dizer a Voz do Governo da Província”; acrescenta: este jornal só se limitava a dar notícia das actividades do governo – visitas e outra inauguração das escassas obras públicas – e a publicar os boletins informativos sobre nomeações dos funcionários e o seu estatuto jurídico e um ou outro artigo da lei emanada na Assembleia Nacional ou dos diplomas do Governo relativos às colónias, caso concreto, à colónia de Timor.

Ou seja, num certo sentido, a direcção d’A Voz de Timor utilizava, de facto, uma agenda de serviço que correspondia a uma produção de notícias antecipada, com a diferença de aquela se basear no mero conhecimento de que certos factos vão ocorrer e não na observação do seu decurso (Golding & Elliot, 1979:93), relatando os acontecimentos formais da política do governo da província de Timor (visitas oficiais, condecorações, eleições, inaugurações) e os acontecimentos culturais e religiosos cristãos católicos e desportivos. 207

Houve portugueses que se preocupavam em corrigir a atitude dos seus concidadãos que caracterizaram o território timorense como uma terra inóspita, pantanosa, de gentes incultas, como escreve Bailão Lopes, leitor d’A Voz de Timor, em “Ecos de Timor”: Recordo-me que durante a minha instrução primária pouco me ensinaram sobre a verdade de Timor. Que era uma terra distante, pequena, de condições de vida difíceis, que o solo era árido, a terra inóspita, pantanosa, as gentes incultas, que o clima era pouco saudável e propício a doenças fatais e que o povo vivia ora atormentado não só pela sua produção extrema mas ainda pela presença de feras, bichos e insectos daninhos e perigosos. Esta é a mesma ideia que a maior parte desses mesmos alunos continuam hoje a fazer de Timor. Mas, não só a juventude tem este pensamento tremendamente falso e injusto da mais longínqua das províncias portuguesas. A maior parte dos portugueses têm de Timor uma definição errada, culpa do silêncio quase confrangedor e da falta da propaganda adequada por parte da Imprensa, da Rádio e da Televisão metropolitanas. E para esse silêncio só se encontra justificação possível na falta de notícias e de informações, cuja culpa cabe inteirinha aos ultramarinos dessa encantadora parcela do território português (A Voz de Timor, 17/5/1970, nº 522:6).

Releve-se, aqui, uma pequena sugestão: “Timor tem de fazer ouvir a sua voz, tem de ter um jornal diário, e a responsabilidade de ter uma emissora oficial não lhe permite viver como até aqui silenciado sobre si mesmo, pois há sempre um Timor desconhecido que espera por nós” (A Voz de Timor, 17/5/1970, nº 522:6). De facto, Timor não era divulgado ou noticiado pelos meios de comunicação da metrópole: não existia um jornalismo colonial na metrópole que assumisse a função de divulgar e orientar a política ultramarina, e Timor não foi excepção: “Não é menos verdade desde que regressámos a Lisboa e já lá vão oito meses, ainda não lemos na Imprensa diária, nem ouvimos nem na rádio nem na televisão uma única referência que fosse sobre Timor” (17/5/1970, nº 522:6). Assim, Bailão Lopes insiste que Timor teria de trazer até à metrópole a sua voz, pois havia, no já conhecido Portugal, um desconhecido que esperava pelos portugueses. Ao estudar A Voz de Timor, não devemos considerá-lo um órgão de informação legítimo do povo de Timor, mas um periódico do governo colonial que noticiava os assuntos coloniais. Quer isto dizer que este periódico era um semanário de carácter colonial, relato de tudo quanto acontecia na ilha com interesse para Portugal, constituindo, ainda, uma poderosa arma de cooperação para o Estado colonial e as missões católicas. Era esta perspectiva que se notava nas páginas d’A Voz de Timor. Segundo Rita Baleiro132, a imprensa colonial não era unidimensional ou uniforme, mas, sim, multifacetada, e o que era verdade em relação a um

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Veja-se o artigo de Rita Baleiro: “Dependência e irreverência: o papel da imprensa colonial na revolução americana (1690-1776)”, http://www.dosalgarves.com/revistas/N15/3rev15.pdf (consulta a 15/9/2011).

208

jornal não o era forçosamente em relação a outro. Tomando como exemplo o jornalismo colonial americano pré-1765, poder-se-á concluir que se está longe de uma imprensa vigilante e interveniente face ao poder. Só aconteceria mais activamente a partir de 1765, quando várias motivações se reuniram sob um ideal comum.

2.1. Os objectivos na perspectiva editorial e a vida da publicação

É vulgar pensarmos que o nascimento d’A Voz de Timor foi consequência do interesse do governo colonial. Segundo Bailão Lopes, este semanário Tem uma grande influência na base da educação e da aproximação dos povos a divulgação dos seus usos e costumes, a divulgação dos seus meios de cultura, a divulgação das suas diferentes formas de viver e encarar a vida, e ainda a divulgação não só das suas belezas naturais como principalmente das dificuldades do amanho das suas terras e da expansão do ensino do artesanato (A Voz de Timor, 17/5/1970, nº 522:6).

Na verdade, tais elementos foram bem difundidos. Nós, porém, concluímos por um resultado diferente. Quer isto dizer que os artigos eram, na sua maioria, notícias sobre o desporto, sobre a religião católica e respectivas actividades133; notícias sobre as visitas das autoridades coloniais para as províncias ultramarinas e seus respectivos discursos e notícias sobre os discursos do governador e restantes chefes das respectivas instituições coloniais (por exemplo, ACAIT, Turismo de Timor) e as visitas ao interior do território de Timor, incluindo as inaugurações das escassas obras públicas e respectivas publicações sobre nomeações dos funcionários e diversos anúncios, como indica o gráfico seguinte:

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Sobre esta temática, eis alguns títulos de notícias: “Dedicação ao culto da Igreja de Becora” (3/10/1965, nº 320) e “Natal de Jesus” (25/12/1966, nº 380), de Jaime Neves; “Homenagem prestada ao Rev. Pe. Francisco Campos” (11/6/1967, nº 401-402); “Crise da igreja” (15/12/1968, nº 449; 22/12/1968, nº 450; 29/12/1968, nº 451; 5/1/1969, nº 452), da autoria do Pe. Manuel André Pinheiro; “A igreja e a política” (18/8/1968, nº 432) e “Liberdade religiosa” (9/3/1969, nº 461), de F. A; “A igreja e o comunismo” (1/6/1969, nº 473); “Vocação dos filhos: problemas dos pais” (27/4/1969, nº 468), da autoria de J. Viera Caniço; “Padre Manuel Luís Morreu” (4/7/1965, nº 307); “A resignação de D. Jaime Garcia Goulart” (1967, nº 385-386); “Unidade católica” (26/5/1968, nº 420); “O Rev. Padre António Maia celebrou a primeira missa em Lete-Foho, sua terra natal” (17/10/1965, nº 322); “D. Jaime Garcia Goulart, bispo da Diocese de Díli em visita pastoral pelo interior da província” (28/11/1965; nº 328); “A morte do bispo da Beira” (5/2/1967, nº 385-386); “D. José Ribeiro sucedeu ‘Ipso Jure’ a D. Jaime Garcia Goulart no solo episcopal de Díli” (19/2//1967, nº 388); “Cerimónias do cinquentánario de Fátima: a nomeação de D. José da Costa Nunes como representante de Paulo VI assume especial significado” (12/3/1967, nº 390); “Homenagem de despedida a D. Jaime Garcia Goulart” (12/3/1967, nº 390); “implicações e modificações nas práticas litúrgicas do cerimonial católico” (7/5/1967, nº 398); “despedida do Rev. Pe. Januario da Silva constituiu impressionante manifestação de carinho” (7/5/1967, nº 398); “Apelo à consciência dos homens” (21/5/1967, nº 400); “Convite do Arcebispo de Cantuário aos católicos e anglicanos para orarem em comum” (23/7/1967, n. 404).

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Gráfico 6

Com base nos dados acima apresentados, é necessário salientar que as notícias sobre os timorenses e as suas culturas não estavam bem publicitadas nas páginas d’A Voz de Timor. Por isso, Paulo Pires (2001) tinha razão quando caracterizou este periódico como A Voz do Governo da Província, pois divulgava mais as notícias de interesse colonial e, desta forma, A. de Cruz, em “Carta Aberta a Jaime Neves” (edição de 14/7/1968, nº 427), definia A Voz de Timor como “um jornal português e cristão de Timor”; acrescentando: nós portugueses do Minho a Timor que somos constituídos em frente única e cerramos fileiras em defesa do sagrado património da Pátria, somos também empenhados, por Deus e pela Pátria, em A Voz de Timor, um arauto categorizado da nossa cultura (portuguesa), da nossa capacidade, das nossas realizações e do nosso ‘estilo de vida’ e um campeão intrépido do direito, da mentalidade e dos princípios tradicionais de Portugal […]. E, como critério de rumo, todos têm o direito de esperar que A Voz de Timor adopte uma linha recta e definida, de harmonia com os princípios constitucionais vigentes e com os princípios da doutrina e morais cristãs tradicionais em Portugal (A Voz de Timor, 14/7/1968, nº 427:1).

Aparentemente, a política editorial d’A Voz de Timor seguia a linha de orientação política editorial da SEARA – Boletim Eclesiástico da Diocese de Díli, pois os dois periódicos eram meios de divulgação e de orientação política colonial e missionária. No entanto, para que A voz de Timor chegasse a todos os letrados, não letrados e ‘ouvintes’ timorenses e não timorenses, A. de Cruz convidou “todos que trabalham e servem neste querido rincão português, até os de letras grossas, a que não dispensem A Voz de Timor, leiam o seu jornal. Antes, porém, impõe-se torná-lo mais interessante e benquisto, fazê-lo autêntica voz

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credenciada das justas aspirações humanas, sociais e religiosas das populações” (A Voz de Timor, 14/7/1968, nº427:1). No fundo, A Voz de Timor surge para advogar particularmente o interesse do governo colonial, a cultura, o direito e os princípios tradicionais de Portugal e moral cristãos tradicionais na terra de Timor. Era por isso que o Governo da Província de Timor utilizava este jornal como um meio de divulgação e de orientação política de suas respectivas actividades e, simultaneamente, O jornal A Voz de Timor propor-se-ia apenas exercer uma missão de paz, e portanto não atacaria ninguém, não desafiaria, não provocaria e também não lisonjearia seja quem for. Seriam arredadas das suas colunas as questões irritantes, respeitar-se-iam as pessoas, quer os amigos quer os adversários, se os houver, protestando o respeito por todas as opiniões sinceras, discordando muito embora daquelas que forem contrárias aos seus princípios. E se, pelas forças das circunstâncias, tiver de entrar em polémica – que afinal é alma do jornalismo – saberia restringir-se à discussão serena dos princípios na esfera superior, onde se mantêm as pessoas educadas que podem divergir, fundamentalmente, mas não se insultam, nem descem às insinuações baixas (A Voz de Timor, 14/7/1968, nº 427:1).

Atente-se que o prestígio e a grandeza d’A Voz de Timor estavam marcados nos inalienáveis princípios culturais e morais cristãos em Portugal, segundo os quais “Deus, Pátria e Família” não se discutem, mas admitem-se como axiomas. Portanto, não é de estranhar que o referido jornal tivesse como objectivo defender todo o património nacional, as razões, o direito e o modo de Portugal estar no mundo, defendendo igualmente a verdadeira moral cristã e os direitos da Igreja Católica em terras de Timor, pois estas foram “a terra que Deus nos deu”, afirmou Bailão Lopes (A Voz de Timor, 11/10/1970, nº 543:1). É certo que esta era uma das principais estratégias políticas que os redactores e colaboradores utilizavam, desejando-se manter profundas relações com o governo e a igreja, obedecendo, assim, à defesa das ideologias que professavam ou dos partidos em que militavam (Gouveia, 2009:334). No editorial “Remando sempre” (edição 25/8/1968, nº 433:1-2), A Voz de Timor apresentou uma pequena nota de reconhecimento ao antigo governador Filipe Themudo Barata pelo forte ânimo que deu e pelo firme apoio que sempre concedeu ao referido periódico, apoio reiterado pelo Governador Brigadeiro Valente Pires, e tal apoio seria decisivo para o futuro do jornal. Para reforçar este apoio, era necessário que todos os colaboradores se agrupassem em torno d’A Voz de Timor com a sua inteligência vigorosa e colaboração activa e eficaz na redacção, nas suas correspondências locais, na propaganda e difusão do jornal (A Voz de Timor, 28/7/1968, nº 429:4). 211

Segundo o editorial “A Voz de Timor e notícia” (10/8/1969, nº 483), este jornal, nos seus dez anos de existência, já se dedicava a tudo quanto pudesse constituir notícia de interesse para o leitor em geral e para o povo de Timor em particular, trazendo a lume todas as informações de mais variadas fontes e origens. Acima de tudo, o mesmo editorial confirmou o progresso da terra de Timor bem portuguesa e o desempenho cabal da sua missão jornalística e de órgão informativo do Governo da província, sempre presente em todos os momentos da vida pública e nas manifestações políticas, desportivas, culturais e recreativas, embora nem sempre A Voz de Timor tivesse conseguido ilustrar com o devido relevo as notícias insertas em suas páginas: adiantava ser um órgão informativo para registar o passado no sentido de realçar o presente e valorizar o futuro. A renovação da direcção d’A Voz de Timor aconteceu em 1974, quando o comandante naval Manuel Lourenço Pereira, fundador e director nominal do jornal, deixou o cargo. Em sua substituição, o governador nomeou Francisco Lopes da Cruz como director do jornal e as funções da chefia da redacção, anteriormente exercidas por Jaime Neves, passaram para Chrys Chrystello. Este, porém, desiludido com o crescente partidarismo político e sujeito a pressões psíquicas e morais por defender os princípios mais sagrados, decidiu demitir-se do cargo, sendo substituído pelo Dr. Alberto Trindade Martinho. É necessário salientar que o Dr. Martinho foi quem inaugurou as primeiras sondagens à opinião pública, era um homem que lutava, sem meios técnicos, humanos ou materiais para desempenhar as suas funções. Em 1974, uma Comissão ad hoc aprovada por portaria de 27 de Dezembro, tomou posse, para velar pelo cumprimento da nova lei de Imprensa de Timor. Os considerandos da dita Lei de Imprensa focavam alguns princípios básicos da liberdade de informação, tais como a necessidade de salvaguardar segredos militares, evitar perturbações na opinião pública (por agressões ideológicas), garantir uma informação isenta e completa, baseada na verdade, objectividade e respeito pela legalidade democrática e pelos direitos individuais. Mostram a vantagem de órgãos de comunicação social se orientarem de acordo com as suas tendências políticas sem ingerências que pudessem impedi-los de contribuírem com o seu espírito crítico construtivo para o processo de descolonização e democratização, bem como a necessidade imperiosa de evitar o uso indevido duma liberdade que tem de ser responsável, sem incitações à desordem e à violência e a existência duma única estação de radiodifusão – governamental à qual deviam ter acesso todas as correntes políticas expressando livremente ideias e críticas.

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2.2. O conteúdo do jornal, redactores e colaboradores

Seja qual for a teoria adoptada, é preciso não esquecer que antigamente os editores concentravam em si todas as tarefas necessárias à realização de um jornal. Eles eram simultaneamente proprietários, jornalistas, tipógrafos, investigadores e distribuidores. Não se dedicavam só ao trabalho jornalístico, porque este não os sustentava economicamente, pelo que não podiam dedicar-se exclusivamente à produção dos seus jornais. Alguns editores também publicavam livros e panfletos, outros eram donos de lojas, outros acumulavam a chefia dos correios, outros ainda a magistratura ou a função de tipógrafos oficiais (Emery e Emery, 1988: 67). Contudo, é de recordar que o nascimento do jornal foi consequência da invenção da tipografia e, no entanto, se ignorarmos a data do aparecimento do primeiro jornal, significa que estamos perdidos na escuridão da noite dos séculos (Neves, 1969:1). Quanto se sabe, a tipografia clássica baseia-se em pequenas peças de madeira ou metal com relevos de letras e símbolos e foi inventada inicialmente pelos chineses. Mas, com a invenção da imprensa tipográfica por Johann Gutenberg, no século XV, alterou-se a antiga formatação de característica chinesa, que passou ao tipo de formatação gráfica reutilizável. A reutilização dos mesmos tipos para compor diferentes textos mostrou-se eficaz e é utilizada até aos dias de hoje, tendo constituído a base da imprensa durante muitos séculos. Esta revolução deu início à comunicação em massa cunhada pelo teórico Marshall McLuhan (1962) como o início do “homem tipográfico”.

2.2.1. Formato/estilo Os estudiosos de comunicação e jornalistas valorizam significativamente o design de imprensa. A utilização de gráficos, diagramas, mapas e formas gráficas de hierarquizar e sistematizar pelos redactores dos jornais são muito frequentes, dando conta de que a atitude dos leitores seria mais receptiva se os conteúdos fossem interessantes e a paginação garantisse uma maior legibilidade das páginas e tornasse o jornal num produto mais agradável (Sousa, 2001). A Voz de Timor tem formato tablóide segundo a divisão do formato standard em duas partes. O tamanho total de duas páginas d’A Voz de Timor é o mesmo que uma única página do standard da imprensa e o formato assume um aspecto cómodo, inclusive para encartes 213

especiais ou cadernos suplementares de um formato standard, pelo encaixe perfeito entre os cadernos principais do jornal. Os redactores d’A Voz de Timor, pela sua capacidade em melhorar a qualidade do formato, conseguem conquistar a admiração dos leitores. O Sr. Pompeu do Cruzeiro (provavelmente, um pseudónimo), por exemplo, manifestou admiração pela mudança gráfica do jornal: Não sei o que de repente aconteceu ao seu jornal [A Voz de Timor] que mudou como o dia para a noite. Está a ganhar melhor apresentação gráfica. Nota-se que lhe está a passar por cima uma lufada de ar fresco. São explanados problemas. Aparecem nas suas colunas críticas construtivas. Apontam-se deficiências. Tudo escrito sem se molhar o opera em fel e vinagre. Naquele estilo de pancadinhas de amigo nas costas. Como quem diz: ó compadre vá lá, olhe para aquilo … Ou também com divagações instrutivas, loirando a pílula para se chegar ao que importa e zás” (A Voz de Timor, 18/8/1968, nº 332:1)

A questão, neste ponto, é que há quem defenda que a capacidade dos redactores no melhoramento da apresentação gráfica do jornal é um processo positivo. É por isso que o redactor do jornal, em nota de redacção, respondeu o seu agradecimento ao elogio feito pelo leitor Pompeu do Cruzeiro, no seguinte enunciado: “Agradecemos, muito obrigados, às referências generosas que faz ao nosso jornal. Se houver mais quem ajude pode crer que faremos muito melhor” (A Voz de Timor, 18/8/1968, nº 332:3).

2.2.2. Aspecto da primeira página

No campo da História dos Media, as primeiras páginas surgiram na Idade Média: os letrados começaram a recolher os textos e copiaram-nos de forma cuidadosa; de seguida, organizaram em volumes embrulhados com folhas dobradas reunidas por costuras laterais e encadernadas. Eram capas grossas que serviam primordialmente para proteger o conteúdo do volume, ou seja, o texto, das adversidades do manuseio e do tempo. Depois do surgimento da imprensa, surgiram maiores possibilidades de diversificação de modelos da primeira página. No entanto, analisar a primeira página do jornal é uma acção de comunicação, pois ela é também um género jornalístico (Miller, 1984), que tem por função atrair e seduzir o leitor. A interpretação da primeira página de um jornal ou a capa de uma revista começa no seu ‘título’ e ‘ logótipo’. O jornal do governo da província de Timor na epopeia da colonização portuguesa titulava-se A Voz de Timor. No contexto pragmático, este periódico contém duas palavras: ‘voz’ e ‘Timor’. O enunciado ‘voz’ simboliza o poder de comunicação, 214

é através dela que o ser humano constrói a palavra com que nomeia as coisas à sua volta. O enunciado ‘voz’ existe porque existe uma vida e sem ela nada existe, pois o universo existe porque existe uma ‘voz’, logo, há comunicação. É por isso que o Homem (no seu sentido plural) sempre é obrigado a comunicar com os outros para se poder desenvolver, e, daí, a comunicação quase não é um problema do ser, mas é um fenómeno natural, logo, a comunicação é uma experiência humana intermediada por “vozes” com que se nomeiam as coisas e se define o poder do acto comunicacional. O enunciado ‘Timor’existe porque há uma ‘voz’ que profere desde tempos primordiais o nome desta terra que, na língua Bunak, se designa por Tchimul; segundo alguns mátas134 deste grupo étnico, ‘muk Tchimul ná en tás tás gie gibis – a terra de Timor é o umbigo do universo’, logo, A Voz de Timor é a voz dos timorenses, inclusive, a voz dos povos de todos os territórios do mundo, que ocupava quase todas as páginas do referido jornal.

Figura 18 – O título do jornal

Esta mensagem textual A Voz de Timor, sendo dirigida aos timorenses, portugueses, restantes terras ultramarinas de então e ao mundo, provoca neles sentimentos variados. Como o próprio nome do jornal indica, e demarcando-se como o mais intenso, podemos referir o sentimento de ‘Voz de Timor’, que não é propriamente ‘voz dos timorenses’, de um título enfeitado pelo poder de interesse colonial, isto é, o que está por detrás do título deste jornal é o desejo e a ambição do governo da província de Timor. Por isso, analisar o aspecto da primeira página de um jornal é muito importante para o significado que a mensagem pretende atingir e para a reacção do receptor à mensagem. No objecto em estudo, há uma mensagem linguística com poder de persuasão, sendo a única parte verbal do título d’A Voz de Timor puramente indicativa de uma conjunção de enunciação ‘voz’ e ‘Timor’ e, no entanto, o enunciado ‘voz’ é uma enunciação viva e dinâmica com múltiplas significações e sentidos que dá força ao enunciado ‘Timor’. Trata-se de uma grafia simples com uma cor preta a letra maiúscula, cujo objectivo é fazer com que o receptor compreenda melhor o conteúdo da mensagem transmitida pela primeira página do referido jornal, pois é um elemento que também pode persuadir o público-alvo. 134

Mátas – o senhor mais velho que assume o cargo dentro da hierarquia organizacional da ‘casa’ ou da knua.

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Figura 19 – Logótipo d’A Voz de Timor

Em relação ao logótipo do jornal, há duas formas de transmitir a mensagem: mensagem textual e mensagem visual. No caso d’A Voz de Timor, o seu logótipo é constituído pela mensagem textual, que, do ponto de vista semiótico, enquanto signo, aproxima à classificação triangular de Peirce (Fidalgo, 2009; Eco, 1990) em símbolo, ícone e índice, já que condensa os três regimes de signos no seu funcionamento: ‘A Voz de Timor’, ‘Hebdomadário independente’ e ‘Díli’. Estes três regimes de signos estão interligados, pois que era um jornal colonial que aliava o seu serviço editorial ao governo da província, mas caracterizava o seu estatuto editorial como ‘hebdomadário independente’, impresso na capital Díli. No entanto, o logótipo enquanto escrita é como corpo organizado e regulamentado de signos e símbolos, com a função sistematizadora, e ainda a ser alterado conforme a exigência do mercado e do público-alvo.

2.2.3. Secções gerais e específicas Por razões discursivas, cognitivas e sociais, os tópicos do discurso desempenham um papel fundamental na comunicação. Os tópicos sumariam conceptualmente o texto e especificam a sua informação mais importante, porquanto se responde à pergunta sobre o que fala o discurso, conferindo-lhe um significado global, o qual Van Dijk (2005) classifica como “macro-estruturas” das notícias, que se expressam convencionalmente no título e no parágrafo do lead (Correia, 2011). Entretanto, o conteúdo dos jornais costuma ser dividido em diferentes ‘secções gerais’, que englobam diversos assuntos, tais como notícias nacionais, internacionais, locais e regionais, economia, desporto, ciência & tecnologia, cultura (cinema, música, teatro, televisão), turismo, informática e moda. Estas ‘secções gerais’ podem ser designadas também como “super-estruturas” (Dijk, 2005). Os diários apresentam ainda outras secções de conteúdo jornalístico no âmbito da opinião, das informações institucionais e da utilidade pública que também fazem parte da estrutura de informação periódica (Urabayen, 216

1993). Costumam estar distribuídas pelos cadernos ou páginas especiais: por exemplo, editorial (artigos que expressam a opinião institucional sem assinatura individual do jornal; Expediente (listagem dos membros da redacção – pelo menos, a direcção, as chefias e as editorias –, dados de tiragem e circulação, endereços e telefones para contacto, assinaturas, números atrasados, etc); Cartas dos leitores (cartas seleccionadas pela redacção, comentando temas abordados ou sugerindo pautas para novas matérias); Obituário (falecimentos, geralmente agrupados junto aos anúncios fúnebres); Coluna Social (notas e fotos de personalidades em festas e eventos sociais); Tempo e Clima (previsões meteorológicas); Efemérides e curiosidades (factos históricos na data corrente e informações de almanaque e cultura geral); anúncios e desporto. Alguns dos referidos conteúdos estão bem aplicados pelo redactor d’A Voz de Timor, em que se apresentava a divisão em secções gerais com temáticas de ‘actualidade internacional’, ‘notícias do mundo’, ‘o que se passa no mundo’, ‘notícias do ultramar’, ‘notícias da província’ e ‘informação económica’. Nas colunas desta última destacavam-se apenas as informações económicas internacionais, da metrópole e das restantes colónias, menos de Timor. Para a utilidade pública e para agradar ao público, o redactor apresentava outras secções de conteúdo jornalístico com temáticas específicas, como a secção de ‘Artes e letras’, ‘página literária’, ‘mundo artístico’, ‘no mundo da ciência’, ‘vida desportiva’, ‘página desportiva’, ‘acontecimentos e factos’, ‘notícias e factos’, ‘uma página da história’, ‘notas em rascunhos’, ‘última hora’, ‘problemas da cidade’, ‘os problemas citadinos’ e ‘a nossa cidade’, ‘panorama artístico’ e ‘conversa de cacatua em liberdade’. No entanto, a categorização das secções gerais e secções específicas é um método utilizado pelos jornalistas para enquadrar a ‘estruturação da informação numa sequência apropriada’, ou ‘estandardização do produto’, uma vez que “as notícias elaboradas passam pela hierarquia do jornal sem grandes alterações” (Traquina, 2002:142).

2.2.4. Título do jornal e o título de informação Na hora de criar o gráfico de uma página, muitos chefes da redacção questionam o título, pois é dele que se pode definir a identidade de um jornal. Com o título podem jogar as ilustrações e definir-se o tratamento geral da matéria. O título é a chave de um texto jornalístico, e o índice de leitura de uma notícia depende da qualidade do título. É

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fundamental que resuma o que está no texto, que seja verdadeiro e, além do mais, que seja atraente, de entendimento imediato ou provocatório. Numa perspectiva semiótica, o título do jornal e o título da informação ganham uma força identitária própria, conquistando a sua autonomia através da vertente narratológica de significação e de sentido. O princípio de identidade torna-se, pois, decorrente dos princípios de unidade, coerência e coesão internas. A identidade textual que se aplica no título do jornal e no título de informação é consequência da significação que o texto do título tem para conquistar a curiosidade dos leitores. O designer gráfico d’A Voz de Timor apresentou o título deste periódico no meio do “cabeçalho da primeira página”, incluindo a apresentação de fichas básicas como a editora (Imprensa Nacional de Timor), logótipo do jornal, preços e alguns nomes de chefia da equipa (director e chefe da redacção).

Figura 20 – Título do jornal e respectivos elementos que constituem a ficha técnica

Importa salientar porquê A Voz de Timor. Porque o jornal foi impresso em Timor e é a voz dos timorenses, mas não transmitia a voz dos timorenses; tratava-se de um dos meios que divulgavam a orientação política do governo da província de Timor. Isto era notório nos artigos publicados segundo a caracterização do tema. Os acontecimentos só têm interesse para o grande público, quando o título das notícias lhe transmite a informação que lhe interessa. Para isso, cabe ao chefe de redacção seleccionar as notícias vindas de colaboradores e de repórteres, dar-lhes destino uma ordem na página, para conquistar ou atrair o interesse do público-alvo. Recomenda-se que o título tenha verbo no presente do indicativo e no futuro do indicativo, pois o diário fala sobretudo do que aconteceu ontem e, em menor escala, o que está previsto para hoje e para amanhã: “Em Nova Lisboa vai ser erigido um teatro com mais de 1000 lugares” (A Voz de Timor, 28/7/1968, nº 429:1); “Terá a duração de três anos o mandato dos administradores por parte do Estado” (A Voz de Timor, 17/5/1970, nº 522:5). No subtítulo já podemos usar o verbo no passado: “O chefe da província foi carinhosamente cumprimentado” (A Voz de Timor, 9/2/1969, nº 457). 218

2.2.5. Ficha técnica A ficha técnica apresenta, de forma concisa e padronizada, informações sobre o proprietário e respectivos órgãos que trabalham directamente com o jornal. Como sublinha M. A. Ferreira de Almeida em “Jornalismo: tarefa ingrata, missão sublime”: “A imprensa não é só o jornalista, pois também é constituída por outros elementos imprescindíveis à sua vida e que trabalham em equipa, como o tipógrafo compositor, o linotipista, o impressor, o revisor, o corpo redactorial, o editor, o director e até o próprio ardina” (A Voz de Timor, 19/8/1968, nº 432:4). Estes mesmos elementos característicos da imprensa foram também apresentados no capítulo anterior relativo à ficha técnica da SEARA – Boletim Eclesiástico da Diocese de Díli. A Voz de Timor também já na sua página principal ou – em termo escorreito jornalístico – no ‘cabeçalho da primeira página’ apresentou uma pequena ficha técnica (embora sem registo completo), que inclui o nome da propriedade do jornal (o próprio Governo da Província), o director e editor, chefe da redacção, redacção e administração.

2.2.6. Tiragem, preço e circulação de publicação

A Voz de Timor, na sua primeira edição, imprimiu apenas 500 exemplares, que não eram em número suficiente para todas as pessoas letradas. Benedick Anderson (1998:132) opinava que este jornal noticioso era apenas “uma sombra de imprensa”. A tiragem d’A Voz de Timor apresentada por José Júlio Gonçalves foi aumentando nos anos seguintes, o que levou o australiano James Dunn (1983:39), sem citar fontes exactas, a informar que as tiragens começavam a variar entre os 4000 e os 7000 exemplares. Mas o jornalismo é também um negócio, como explica Nelson Traquina (2001:78): O jornalismo é também um negócio. [...] O jornalismo tem custo, a começar pela contratação de jornalistas e pelos vencimentos oferecidos aos jornalistas. […] A dimensão económica enfatiza a percepção da notícia como um produto que deve ser inserido na relação existente entre o produtor e cliente a satisfazer as exigências do cliente. [...] Assim, a notícia é um produto perecível, que deve chegar ao cliente o mais rapidamente possível para ser utilizada.

Por isso, os jornais têm um preço e, normalmente, o preço é fixado na “primeira página”, mas não é uma regra obrigatória. Em certos casos, o preço não aparece na página principal sob o título do jornal e respectiva ficha técnica, mas na página seguinte ou na última página (como no caso da revista SEARA – Boletim Eclesiástico da Diocese de Díli); no caso 219

concreto d’A Voz de Timor, o preço encontra-se junto ao título do jornal no cabeçalho da página 4 ou página 6.

Figura 21 – Título do jornal e respectivos preços na página 4 e 6

O preço deste periódico é composto pelas seguintes categorias: a assinatura anual para os leitores da Província de Timor é de 100$00; 160$00 para a assinatura anual dos leitores da Metrópole e outras províncias do Ultramar; 200$00 para a assinatura anual dos leitores de outros países. Para quem comprar a série de 20 números, o preço seria de 45$00, preço só para os leitores residentes no território de Timor. Desta forma, a circulação de uma publicação representa efectivamente o número de exemplares que chegarem às mãos dos leitores, seja por meio de assinaturas, venda avulsa ou distribuição direccionada. É um parâmetro de maior valor, critério e precisão no aspecto qualitativo dos dados se comparada com a mera aferição da tiragem. A Voz de Timor, na sua edição de 29/9/1969 (nº 489), deu a conhecer a subida do preço dos jornais portugueses no continente (Metrópole) aos seus leitores e assinantes nacionais e ultramarinos nos seguintes anúncios: “a partir de 1 de Outubro, o preço dos jornais do continente será elevado para um escudo e cinquenta centavos por decisão da assembleia-geral do Grémio Nacional da Imprensa Diária, o qual distribuiu um comunicado sobre as razões do aumento e salientando que, mesmo assim, o jornal português é um dos mais baratos do mundo”. Este aumento não foi aplicado À Voz de Timor.

2.2.7. Redactores e colaboradores O trabalho de redacção e composição não é uma tarefa fácil, pois, de acordo com o chefe da redacção d’A Voz de Timor, Jaime Neves, É difícil fazer ideia fora do ciclo limitado em que se desenvolve a azáfama da redacção dum diário, ou dum simples periódico como o nosso (A Voz de Timor), haverá por aí alguém capaz de calcular, mesmo

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aproximadamente, as despesas de energias, o esgotamento nervoso, que custa a publicação dum jornal? Entre o público que lê, ou entre aqueles que passam os olhos pelos jornais como cão por vinha vindimada, encontrar-se-á quem faça ideia de quanto, dia a dia, verga ao peso das responsabilidades, um chefe da redacção? (A Voz de Timor, 25/8/1968, nº 433:1).

Num certo sentido, o trabalho jornalístico assemelha-se mais à agricultura intensiva do que à caça ou à colheita (Elliot, 1979:66) e os estudos sobre newsmaking, no seu conjunto, direcionam-se para esta prática de recolha de noticias, que, de facto, faz parte integrante da rotina do trabalho dos jornalistas e do chefe da redacção. A Voz de Timor, ainda no seu editorial “Remando Sempre” (edição de 25/8/1968, nº 433:2), sublinhou que os funcionários da Imprensa Nacional, tanto o director como o chefe de oficinas, estavam a trabalhar juntos para garantir o êxito do jornal. O primeiro director d’A Voz de Timor foi Manuel António Lourenço Pereira, apoiado pelo locutor da Radiodifusão de Díli, Jaime Neves, que, na qualidade de chefe da redacção, editava semanalmente um ou mais artigos de género opinativo, comentário ou reportagem. Mais tarde, o periódico foi dirigido pelo timorense Francisco Lopes da Cruz (ex-seminarista e membro da ANP – Associação Nacional Popular, ou seja, partido caetanista e o único autorizado por lei). De 1973 a 1975, o cargo de editor-chefe desse jornal foi confiado a um açoriano, Chrys Chrystello, que começou a interessar-se pela questão da diversidade linguística de Timor e, desde 1967, se dedicou ao jornalismo (rádio, televisão e imprensa escrita); foi ele quem, durante décadas, escreveu sobre o drama de Timor-Leste, enquanto o mundo se recusava a ver essa tragédia violenta. Os colaboradores e correspondentes d’A Voz de Timor eram padres, licenciados (sobretudo médicos, alguns chefes de repartições administrativas e chefes da missão científica e antropológica de Timor) e outros (funcionários e professores, militares, administradores do distrito, chefes do posto), tendo em conta alguns indivíduos que tiveram já a formação básica sobre o jornalismo. Como frisou A. de Cruz, no editorial “A carta aberta a Jaime Neves” (edição de 14/17/1968, nº 427:2), A Voz de Timor não faltará colaboração sincera, leal e constante de entre os oficiais superiores do nosso glorioso Exército, com os seus comandos, os seus directores e chefes de serviço, com o pessoal técnico e prático, os sacerdotes do ensino e das missões, os mestres e guias, todos os que pertencem ao escol da Nação e deste povo onde trabalham e servem e que são outros tantos continuadores da acção civilizadora de Portugal e modeladores da sua alma nacional.

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Não é de estranhar que os colaboradores fossem – na sua maioria – portugueses, entre os quais, o fotógrafo e jovem militar Carlos Augusto Gil (entre o ano de 1963 a 1965) 135, Inácio de Moura, Alberto Mourão, Mário Bravo, Adriano Peixoto, Carlos Pinhão, Filipe Gameiro Pereira, Carmo Lourenço, Alberto Costa, Dr. Celsus, Pires Duarte, Manuel José Nogueira, Freitas e Silva, Ruy Cinatti, Bailão Lopes, Jorge Bastos, Vítor Real, António Molinos, Oliveira Machado, Ferreira de Almeida, J. Vieira Caniço, Morais Cabral, Joaquim Manuel da Fonseca136, Joaquim Campos, Mirone, Ilhéu, Dr. Mesquita Guimarães, Dr. Furtado Lima, Dr. Victor Perscott, Manuel Amorin Costa, Dr. António Botelho Meni, Pe. Manuel André Pinheiro, bispo D. José Ribeiro, entre outros. A partir de 1969, a direcção começou a contar com a colaboração activa de alguns timorenses, entre eles, Fernando Sylvan, Agostinho Tibar, José Ricardo, Francisco Lopes da Cruz, o fotógrafo timorense Xanana Gusmão (iniciou a carreira jornalística neste jornal em Abril de 1974), Ramos Horta (correspondente da RTP em Timor), Francisco Borja da Costa. Este último era conhecido como o “poeta timorense” e, antes do 25 de Abril, esteve a estagiar no Diário de Notícias e n’O Século, regressando a Timor já como jornalista, pois “anda sempre com a eterna mochila do tempo da tropa (passada em Timor) e com um bloco de nota, a escrever de tudo o que o impressionava” (Fernandes, 2001:149), pelo que foi convidado a trabalhar n’A Voz de Timor.

3. Género jornalístico Em “Carta aberta a Jaime Neves” (14/7/1970, nº 427:1), A. de Cruz justificava que, pela obediência a princípios e directivas, planos e objectivos de ordem superior, “há muitíssimo a esperar d’A Voz de Timor, é o bom informador e educador da opinião pública e é uma escola 135

Carlos Gil teve as suas primeiras experiências na área do jornalismo, colaborando com o jornal A Voz de Timor e com a Emissora da Radiodifusão de Timor, para a qual produziu, realizou e apresentou, programas culturais e de informação. A sua paixão pelo teatro não estava esquecida e o jovem militar ajudou a fundar o Grupo de Teatro Experimental de Timor, levando à cena espectáculos vicentinos e outros (cf. http://www.cmlisboa.pt/archive/doc/site_carlos_gil.pdf (consulta a 13/4/2012). Em Abril de 1970, a direcção d’A Voz de Timor anunciou mais um colaborador Carvalho Pinto (era um oficial superior do Exército) que passou a fazer reportagens fotográficas para o jornal (A Voz de Timor, 26/4/1970, nº 519:6). 136 Foi Locutor-Produtor na Rádio Altitude da Guarda, durante quinze anos. De1969 a 1971, foi Adjunto do Director da Emissora de Radiodifusão de Timor, em Díli e com funções de Produtor, Realizador e Locutor. Redactor (e Chefe de Redacção-interino) do jornal semanário militar A Província de Timor, editado pelo (CTIT) Comando Territorial Independente de Timor. Professor da Escola Industrial e Comercial “Prof. Silva Cunha” de Díli, onde dirigiu o Centro de Actividades Circum-Escolares e fundou o jornal quinzenário “Em Frente”. Colaborou nos jornais semanários Timorenses A Voz de Timor e a Seara – Boletim Eclesiástico da Diocese de Díli. Foi correspondente da Emissora Nacional na cidade de Díli (Timor Português) e de Timor enviou, semanalmente, para publicação na Metrópole (cf. http://www.radiomonsanto.pt/galeria-marcos-de-uma-vida.php (consulta a 12/4/2012).

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que instrui na verdade e educa na bondade os seus leitores”. Tal constatação enquadra-se nos géneros jornalísticos que se expandem na linguagem, e deixam de ter uma função meramente informativa, opinativa e propagandista, para se alargarem a factos secundários. Gráfico 7

Considerando a classificação inicial dos objectivos d’A Voz de Timor, os géneros jornalísticos estão divididos em quatro categorias: géneros informativos (notícia), géneros dialógicos (entrevista), géneros argumentativos de opinião (editorial e artigo) e géneros narrativos (reportagem e crónica). Tal como na notícia, os factos continuam em primeiro plano e a opinião própria do jornalista habitualmente não aparece. A diferença está em que, na reportagem, os acontecimentos já não são narrados puramente segundo a sua lógica própria: introduz-se na narrativa a actividade de procura de informação e, então, o tom do discurso e o próprio relato da natícias deixam entrever uma personalidade.

3.1. A divulgação de notícias A notícia é uma forma de divulgação de um acontecimento por meios jornalísticos, porque ela é uma realidade construída (Tuchman, 2009), ou seja, matéria-prima do jornalismo normalmente reconhecida como um evento socialmente relevante que merece publicação nos mass media. Factos políticos, sociais, económicos, culturais, naturais e outros podem ser notícia, se afectarem indivíduos ou grupos significativos e, em certos casos, sublinha João Carlos 223

Correia (2011), a crença na transparência da linguagem jornalística e na sua capacidade de reflectir a realidade constituiu uma das dificuldades na análise do jornalismo, que se torna possível se compreendermos a natureza discursiva das notícias. Acredita-se que a faculdade humana de conhecer pode ser colocada pela notícia diante de factos ou de coisas que se sucederam, ou, inversa e complementarmente, que a realidade pode ser trazida diante de nós por meio da notícia. A ideia que sustenta esta pretensão é a de que o conhecimento é especular (no sentido do latim speculum, espelho), no sentido de que espelha, reflecte os factos. Assim, a notícia como narrativa deveria levar a termo uma operação mimética ou tautológica. Mimética porque a narrativa nos daria, uma nova presença, uma representação das coisas já havidas ou que se estão passando em outro lugar; tautológica, porque o evento como que se desdobraria, duplicar-se-ia, dar-se-ia uma segunda vez diante do leitor do relato. (Gomes, 2009:13).

A arte do jornalismo é, pois, escolher os assuntos que mais interessam ao público e apresentá-los de modo atraente (Sousa, 2001); as notícias não trazem unicamente o que é “importante”, têm também de trazer o que é “interessante” ou, pelo menos, ser contadas de uma forma interessante. A Voz de Timor mostra, nas suas páginas, muitas notícias interessantes que, na sua maioria, eram notícias internacionais, notícias da metrópole e respectivos territórios ultramarinos, incluindo as notícias nacionais de Timor, sendo algumas delas locais. Acerca desta última, o Ilhéu (provavelmente o pseudónimo do colaborador d’A Voz de Timor), em “Uma sugestão para dignificar a cidade”, escreveu que “cabe à imprensa, na sua função informativa, esclarecedora e crítica, levar ao conhecimento de quem de direito, dos problemas que necessitam da atenção das autarquias locais no sentido da sua solução em benefício da colectividade”. Só assim, adiantou o autor, ”se compreende a missão do jornalista, esse trabalhador anónimo e muitas vezes incompreendido e muito devoto à defesa das aspirações e reivindicações daqueles que, sendo contribuintes, esperam a concretização das mesmas” (A Voz de Timor, 9/6/1968, nº 422).

3.1.1. A divulgação de notícias da metrópole, internacionais e das restantes colónias Um texto jornalístico impresso destina-se, primeiramente, a manter informados muitos leitores. No caso concreto d’A Voz de Timor, a maior parte das notícias apresentadas nas suas páginas eram notícias internacionais, notícias da metrópole e respectivos territórios ultramarinos, e menos notícias locais da província de Timor. As notícias internacionais publicadas foram tratadas nas secções de “actualidade internacional” e “notícias do mundo”. As notícias da metrópole e territórios ultramarinos foram tratadas não só na secção de 224

“notícias do ultramar” e “notícias da metrópole”, mas olocadas em qualquer página do jornal, quer na página principal, quer na “página do desporto” e na secção de “actualidade internacional”. Relativamente às notícias nacionais da província de Timor, não foram apenas apresentadas na primeira página, mas também na secção de “notícias da província” e em todas as páginas137. Em termos de cobertura noticiosa segundo a proveniência geográfica da informação, as notícias internacionais eram de maior destaque d’A Voz de Timor e as notícias nacionais da província de Timor ocupavam a segunda posição; as notícias da metrópole e dos restantes territórios ultramarinos estavam na terceira e quarta posição; salientemos, por fim, que as notícias locais eram pouco explicitadas no destaque do jornal (ver gráfico 8). Na secção de “actualidade internacional” e “notícias do mundo”, encontravam-se diversas notícias sobre política e economia internacionais, sobretudo, a guerra do Vietname, incluindo alguns comentários do chefe da redacção138 e restantes colaboradores139, que analisaram os fenómenos internacionais ocorridos no período dos anos 60 e 70 do século passado.

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Eis alguns títulos de notícias nacionais da província de Timor: “Está a trabalhar em Timor uma missão de centro de biologia piscatória” (17/10/1965, nº 322); “O régulo de Atsabe Guilherme Maria Gonçalves seguiu para a Metrópole acompanhado pela esposa” (15/8/1965, nº 313)”; “A inauguração do porto de Díli vista por um holandês” (14/11/1965, nº 326); “Está actuando em Timor uma equipa de filmagens encarregada de produzir um documentário de longa-metragem sobre o nosso país” (19/9/1965, nº 318); “Será impossível a vinda dos T.A.P a Timor?” (14/7/1968, nº 427). “A T.A.P. e a ligação de Timor ao mundo português” (21/7/1968, nº 428) e “10 de Junho – Luís de Camões”(9/6/1968, nº 422), da autoria de M. A. Pereira de Almeida; “Nas pedras de Bui-Cari foi solenemente recordada a morte heróica em combate do Alferes Francisco Duarte (Arbiru)” (23/7/1967, nº 403-404); “No quadriénio de 1964-1967 mercê de esforço espantoso foi construído um fragmento da história de Timor” (23/7/1967, nº 403-404), da autoria de João de Barros; “Faleceu o capitão Serpa Rosa – ex-governador de Timor” (17/3/1968); “O homem que Timor não esquece: o capitão César Maria de Serpa Rosa” (11/10/1970, nº 543) e “Notícia histórica sobre a moeda de Timor” (1/11/1970, nº 546); “Timor em Espanha” (27/4/1969, nº 468). 138 Vejam-se alguns artigos do chefe da redacção, Jaime Neves, pertencentes à categoria “opinativa” ou de “comentário”: “Os últimos dias da grande Malásia” 29/8/1965, nº 315), “Eleição na Alemanha” (3/10/1965, nº 320), “ Traição da CIA” (12/3/1967, nº 390), “O conselheiro de guerra de Guam” (26/3/1967, nº 391/392), “A lei orgânica del Estado da Espanha” (25/12/1966, nº 380), “a situação no Brasil” (17/10/1965, nº 322), “duas chinas na ONU” (24/10/1965, 323). 139 Eis alguns títulos de comentários e artigos de opinião sobre a actualidade internacional: O comentário do M. C. sobre “O presidente das Filipinas no combate ao comunismo” (7/5/1967, nº 398); “o governo de Tóquio: contrário ao imobilismo” (21/5/1967, nº 399-400), “A crise do Médio Oriente – a voz centenária do Canadá temse feito ouvir construtivamente” (11/6/1967, nº401-402), “A Argentina e o seu desenvolvimento industrial e agro-pecuário” (28/7/1968, nº 429) “A paz no Médio Oriente e o presidente Jonhson” (27/10/1968, nº 44), “A nova constituição da Grécia” (4/8/1968, nº 430), “O Equador no sentido da independência económica” (4/8/1968, nº 430), “A república federal Alemanha e a ameaça soviética” (13/10/1968, nº 440), “As relações Belgas” (5/5/1968, nº 417) e “O Equador no sentido da independência económica” (4/8/1968, nº 430) da autoria de Morais Cabral; “Luter King assassinado” (26/5/1968, nº 420), da autoria de Francisco Varela Rodrigues; “O Médio Oriente” (29/12/1968, nº 451), da autoria de Geoffrey Hutton; “Alemanha de hoje – o 17 de Junho visto pelos artistas” (28/6/1968, nº 425), “Alemanha de hoje lutou pela paz” (26/5/1968, nº 420) e “O México continua na ordem do dia” (20/10/1968, nº 441) da autoria de Gomes Serra; “Marrocos” (28/4/1968, nº 416); “O senado francês” (20/10/1968, nº 441), da autoria de Gomes Cabral.

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Gráfico 8

As notícias da metrópole transmitam os discursos do presidente do Concelho de Ministros140 e de outros ministros, as visitas ao interior do país (continente) e às colónias, inaugurações de projectos141, condecorações e festejos do dia de Portugal142, incluindonão só as visitas de outros povos a Fátima143, mas também as notícias sobre desporto na metrópole e crónicas da metrópole. Tudo reportado ou transmitido duma forma parcial, porque não havia uma liberdade de imprensa que permitisse veicular livremente outras notícias da metrópole. Encontramos, entretanto, notícias como: “O Prof. Doutor Oliveira Salazar completou 33 anos na chefia do governo” (A Voz de Timor, 11/7/1965, nº 308); “A vida do Salazar ao serviço da nação portuguesa” (A Voz de Timor, 5/5/1968, nº417); “Grande acontecimento nacional – a cerimónia de consagração dos militares” (11/6/1967, nº401-402); “Aniversário da visita do chefe de Estado a Moçambique” (8/8/1965, nº 312). A propósito desta visita, A Voz de Timor publicou uma reportagem de Jaime Neves, intitulada “A Maior cobertura do órgão de informação realizada até agora em Portugal”, descrevendo que “fomos o primeiro jornalista e elemento da radiodifusão (de Timor) a chegar, por via aérea, a Lourenço Marques dos mais de oitenta convidados, nacionais e estrangeiros, que vieram depois, pelo ar e pelo 140

Para informações mais detalhadas sobre discursos, visitas e respectivas acções que o presidente do Concelho de Ministros português fez pela sua pátria: “40º aniversário da entrada de Salazar para o governo da nação” (28/4/1968, 416); “Novo Capítulo da nossa história – Marcelo Caetano assegura a obra de Salazar” (13/10/1968, nº 440:6); “A visita de Marcello Caetano às províncias ultramarinas portuguesas analisada pelo ‘Southern África’, de Londres” (18/5/1969, nº 471:1-6); “Intervenção do ministro dos negócios estrangeiros de Portugal no Conselho de Segurança nos EUA sobre a situação nos territórios portugueses de África” (14/11/1969, nº 326). 141 Sobre esta temática, eis alguns títulos de notícias: “Grande desenvolvimento no espaço português” (2/6/1968, nº 421); “A inauguração da nova sede da ‘União’ foi celebrada com luzida festa” (6/8/1967, nº 405-406); 142 “O dia dos heróis – os mortos ganharam imortalidade traduzida no toque de alvorada” (4/7/1965, nº 307:1-5); 143 “Os peregrinos goeses e paquistaneses chegaram à Cova da Iria e foram recebidos pelo Ministro do Ultramar” (28/4/1968, nº 416:1); “A pascoa bizantina em Fátima” (12/5/1968, nº 418:2); “No ano jubilar das aparições – a presença do Papa Paulo VI no santuário de Fátima consagrou a Cova da Iria como altar do mundo” (21/5/1967, nº 399-400);

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mar, em grupos, para acompanharem a visita presidencial à província de Moçambique”; acrescentando: “nunca no nosso país, em acontecimento nenhum, se organizou tão vasta e completa cobertura de órgãos de informação” (A Voz de Timor, 8/8/1965, nº 312). No mesmo número, Alberto Mourão reportou em linguagem poética, uma outra notícia sob o título “Moçambique a Timor – fascinante eldorado de poesia tropical”. Relativamente às notícias sobre as outras colónias portuguesas (Moçambique, Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau, São Tomé e Príncipe) apareceram, de facto, n’A Voz de Timor, sobre as visitas do Presidente da República Portuguesa, presidente do Concelho de Ministros e

respectivos

ministros;

foram

transmitidas

outras

notícias

sobre

sectores

em

desenvolvimento, como a educação, turismo, economia, fomento agrícola, saúde, transportes, justiça e defesa ultramarina144. Curiosamente, apareceram mais notícias sobre Moçambique e Angola nas páginas d’A Voz de Timor do que sobre as outras colónias.

3.1.2. A divulgação de notícias locais A cobertura das notícias locais diz respeito ao espaço geográfico de um concelho, distrito ou, em casos maiores, a regiões de maior concentração do sistema político-social e político-económico. A Voz de Timor dá conta de determinados factores que elevam a importância de um facto local destacando-o no espaço do noticiário nacional ou mesmo nas outras secções; entre tais factores estão, por exemplo, o grau inusitado de um facto ou a importância geopolítica do local onde ocorreu o acontecimento. Mas a direcção não disponibilizou uma secção específica para a publicação das notícias locais e, por isso, todas essas notícias locais apareciam em qualquer das ‘secções informativas’. Para cobrir notícias locais que tenham interesse nacional, a direcção d’A Voz de Timor costumava manter subdelegações em regiões estratégicas, mas, a maioria das notícias nacionais da província de Timor (ver gráfico 8) centrava-se apenas na cidade de Díli, com 144

Para estas temáticas, destacamos: “O ensino em Angola e Moçambique” (14/4/1968, nº 414:2); “É notável de desenvolvimento em Angola no campo do ensino” (11/6/1967, nº 402); “Os planos de desenvolvimento de Timor prevêem imediato e notável progresso de todas as actividades” (7/5/1967, nº 398); “O arranque da açucareira de Moçambique” (A Voz de Timor, 12/5/1968, nº 418:2); Em Luanda, a grande manifestação de protesto contra as afirmações contidas no manifesto da oposição foi uma eloquente jornada de fé patriótica (14/11/1969, nº 326); “Bacar Jaló – um heróri da luta contra o terrorismo na Guiné” (4/7/1965, nº 307); “Os refugiados da Guiné Portuguesa são vendidos como escravos” (25 12/1966, nº 380); “Assinalado êxito da exposição do artista angolano João Manuel Pratas” (25/12/1966, nº 379-380); “É notável a acção de desenvolvimento em Angola pela junta de povoamento” (26/3/1967); “Angola bateu o ‘record’ na exportação do café” (1967, nº 386); “Alberto Sordi em Angola” (7/7/1968, nº 426); “Novo governador-geral de Moçambique” (14/7/1968, nº 427); “Vaga de frio em Lourenço Marques” (28/7/1968, nº 429); “Decisivo impulso da rede rodoviária de Moçambique” (15/9/1968, nº436).

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uma representatividade muito maior da capital145. Porém, o apuramento das notícias locais contribuiu também para que A Voz de Timor se caracterizasse como a voz da população local. Aí, a interdependência entre capital e local mantinha-se, mas a primeira continuou a ser protagonista. Gráfico 9

Tendo por base os dados acima apresentados, é necessário destacar algumas notícias locais que A Voz de Timor publicou nas suas páginas. De acordo com a edição de 20 de Junho de 1956, nº 305 deste periódico, o governador da província de Timor, José Alberty Correia, visitou o distrito de Viqueque para inaugurar o hospital desta região e, no discurso que proferiu naquela ocasião, destacou que a população, conhecedora das muitas dificuldades, devia saber que, para as vencer, teria que aguardar algum tempo, certo de que o governo não esqueceria os seus problemas, antes pelo contrário, empregaria todos os esforços para trazer ao povo os benefícios de que ele precisava para se valorizar, pelo que o futuro desta província acompanharia o progresso que o governo da nação continuaria imprimindo a todas as parcelas da Pátria Portuguesa. Já na edição de 4 de Julho de 1965, nº 307, a direcção d’A Voz de Timor fez sair seguinte nota: “Maubisse pode vir a ser um óptimo centro de turismo e veraneio”. Para isso, bastava transformar todas as instalações onde se encontrava o posto administrativo num 145

Eis alguns títulos de notícias sobre a cidade de Díli: “Díli de ontem e de hoje: no primeiro ano de 30” (15/11/1970, nº 548” e “Díli de ontem e de hoje: no primeiro ano de 70” (20/12/1970, 553); “O Bi-centenário de Díli” (26/1/1969, nº 455), da autoria de Ilhéu; “Está em Díli o Coronel Australiano Jales Bernard Callian” (30/6/1968, nº 425); “Centenário da fundação de Díli com vista ao Sr. Presidente da Câmara” (8/9/1968, nº 435).

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complexo hoteleiro. Nesta edição publicou também uma pequena descrição do “Bairro dos Grilos”, que tinha acabado de ser construído com um toponímico que ficou na história da construção da cidade de Díli. O colaborador/correspondente d’A Voz de Timor acompanhou sempre a visita do governador José Alberty Correia aos postos administrativos distritais da província. Daí resultaram algumas descrições sobre a região ou distrito visitado, como da notícia de 18/7/1965, nº 309, que relatava a visita de dois dias do governador José Alberty Correia ao concelho de Bobonaro. Posteriormente, tal distrito apareceu mais uma vez na página d’A Voz de Timor devido à visita do governador a este concelho Administrativo em Novembro de 1965. Desta vez, o título da notícia não se referia apenas ao Concelho de Bobonaro, mas referia-se também ao Concelho de Ermera (A Voz de Timor, 28/11/1965, nº 328). Encontram-se admiráveis expressões dos leitores assíduos sobre o que pensam acerca de Timor e das regiões por onde passavam. Assim, o Dr. J. Bárbara Branco, em carta aberta “Frecalços do jornalismo – um lapso a corrigir”, testemunhou que “Sempre interessado por quanto a Timor diga respeito (interesse reavivado pelos dois mais extraordinários anos da minha vida, aí vividos até 1967), leio com avidez todas as notícias que tragam até mim ecos dessa belíssima terra portuguesa e sobretudo das montanhas de Bobonaro que não mais esquecerei” (A Voz de Timor, 26/4/1970, nº 519:6). Em 1967, A Voz de Timor, fez sair algumas informações interessantes e esperançosas, destacando-se entre uma sobre a vila de Venilale, que, pela sua condição espacial, foi uma das povoações timorenses com mais árvores de fruto nas vias públicas (26/3/1967, nº 392). Outras notícias locais foram as seguintes: “A zona de piscina de Baucau vai ser ampliada e melhorada e passa para a posse do CIT” (26/3/1967, nº 392), “Ainda no decorrer deste ano serão instaladas em Baucau alguns serviços públicos” (26/3/1967, nº 392), “Num futuro próximo entrará em pleno funcionamento a escola de práticas agrícolas de Fato Maca” (26/3/1967, nº 392), “O dia do turista vai ser comemorado na zona de Baucau” (10/4/1967, nº 394), “Um meteorite enorme caiu na região de Ossu” (10/4/1967, nº 393-394) e “Cerimonia de juramento da bandeira em Aileu” (7/5/1967, nº 397-398). Na edição de 1968 encontram-se também algumas notícias locais em destaque: “O governador da Província visitou o Concelho de Liquiçá” (14/4/1968), “Uma tragédia em Viqueque” (2/6/1968, nº 421), “Na feira de Liquiçá – concurso-exposição de fotografia e pintura” (14/7/1968, nº 427) e uma fotografia da “Casa típica de Lospalos” (27/9/1970, nº 541) como ícone presencial daquela região.

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3.2. Apelos ou anúncios aos leitores ou assinantes É importante ressaltar que o apelo ou o anúncio relativo à vida de um jornal e à sua expansão no seio dos leitores letrados e ‘ouvintes’ é uma das temáticas que o chefe da redacção formula na sua política editorial. Pois, o apelo e o anúncio do redactor do jornal são também formas de comunicação com os leitores, enquanto dá a conhecer a existência do jornal aos desconhecidos. De certa forma, esta noção de comunicabilidade através da ‘mensagem apelativa’ e de ’anúncios convidativos’ era aplicada pelos redactores nas páginas d’A Voz de Timor, convidando leitor e assinante – na secção Vida Desportiva – para que “Anuncie em A Voz de Timor e terá a certeza de que os seus artigos serão preferidos” (1965, nº 304) ou “Leia e divulgue A Voz de Timor” (25/1965, nº 310). Posteriormente, foi “Leia e assine A Voz de Timor”. Em alguns números, encontrava-se uma pequena nota que dizia: “Este número foi visado pela Comissão de Censura” (1965, nº 315).

Figura 22 – Apelos da direcção do jornal aos seus leitores e assinantes

Para o bom funcionamento duma imprensa, é necessária a participação activa de todos os seus colaboradores no que diz respeito ao cumprimento dos prazos estabelecidos para o envio de informações, notícias ou artigos de opinião, de forma a evitarem-se atrasos na sua edição e publicação. Muitas vezes a direcção editorial vê-se na necessidade de solicitar através de apelos ou avisos como o que se segue: “Aviso – a fim de evitar atrasos na publicação, solicitamos dos nossos prezados colaboradores o obséquio de nos enviarem os seus trabalhos duplicados” (A Voz de Timor, 1/8/1965, nº 311:2).

3.3. A interacção entre leitores-redactores A interacção entre leitores-redactores A Voz de Timor é mediada por uma linguagem dialógica textual anunciada nas respectivas páginas. Este tipo de interacção é, segundo Bakhtin (2003:229), uma enunciação dialógica centrada nas relações inter-discursivas como uma orientação para o discurso do interlocutor, ou seja, todo o discurso é sempre dirigido, 230

trazendo respostas às possíveis questões, críticas e contraposições do interlocutor, seja ele real ou virtual, pois tudo isto constitui “um elo na cadeia da comunicação discursiva” entre leitores-redactores que funciona como uma comunicação por via textual. A direcção compreendeu que, para colocar A Voz de Timor no lugar de destaque na imprensa portuguesa e na imprensa das restantes colónias, é necessário estabelecer uma cooperação mútua entre os leitores, assinantes, anunciantes e colaboradores. A propósito, o colaborador F. A, em “À consideração dos nossos leitores”, chama a atenção dos leitores: Este jornal [A Voz de Timor] está procurando despertar o interesse de todos os seus leitores de maneira a tornar-se um amigo e companheiro indispensável, aos Domingos, no aconchego do vosso lar, permitindolhe ficar ao corrente do que se vai passando no mundo em que vivemos. Não teremos alcançado ainda esse objectivo, mas a nossa vontade é a de trabalhar mais e melhor para atingir a meta que todos ambicionamos. Para isso necessitamos da cooperação de todos. Assinantes, não só de Díli como de todos os pontos da província, das restantes parcelas do ultramar, da metrópole e mesmo dos núcleos de portugueses espalhados pelo mundo, para que seja maior a sua tiragem. Anunciantes, para divulgação dos seus produtos e das suas actividades, com vista à intensificação do comércio com o exterior. Colaboradores, para que todos os assuntos versados sejam de interesse para todos os que leiam o jornal. O que precisamos é de cooperação e não detractores; por isso não discutam nem critiquem na sombra, antes apresentem os vossos alvitres que tomaremos em devida consideração. Ficamos a aguardar as vossas notícias e confiamos que, com a vossa ajuda, A Voz de Timor será o vosso jornal e alcançará um lugar de destaque na imprensa portuguesa (A Voz de Timor, 22/9/1968, nº 437:1).

Numa perspectiva pragmática, o enunciado referido é um pedido de cooperação dos leitores, assinantes e anunciantes, para que trabalhem juntos no sentido de conquistar leitores interessados nos assuntos de Timor. Numa perspectiva da recepção, parece que o enunciado acima está a colocar o leitor, assinantes, anunciantes e colaboradores como um ‘modelo’ de sustentabilidade e de manutenção da vida do jornal, ou procurando o ‘leitor modelo’ (Eco, 1985). Foi neste sentido que, em “Ecos da Maliana”, um leitor anónimo manifestou a sua preocupação com o atraso da chegada do jornal àquela região fronteiriça: É o caso da notícia inserida na primeira página do nº 548 d’A Voz de Timor. Comunicar a aposição do carimbo especial do 1º dia de circulação dos selos comemorativos do 1º centenário do nascimento do Marechal Carmona em 12 de Novembro numa terra onde nem sempre a Emissora é captada em condições, pelo menos no interior da província e onde o jornal chega três dias depois da sua saída da capital, é tarde de mais, uma vez que no dia 15 ou seja, passados três dias era o dia da aposição do tal carimbo (A Voz de Timor, 20/12/1970, nº 553:2).

No entanto, tal preocupação foi um acto de reclamação, sem, contudo, culpar a direcção do jornal, criticando ao mesmo tempo os CTT pelo trabalho mal feito: “À direcção do jornal 231

culpas não cabem. O que achamos é que os CTT deviam fazer essas comunicações com antecedência. Ou os carimbos especiais dos CTT são só para Díli? Vamos lembrar-nos do interior onde também há gente e entre ela são filatelistas. Para que servem então os carimbos especiais? A quem interessam? Está certo?”. Tal crítica não foi respondida de imediato pelo director dos CTT; no entanto, ficou-se a saber que “Após cerca de dois meses de ausência de ‘A Voz de Portugal na Oceânia’ pelos aparelhos das terras fronteiriças, os seus ecos fizeramse ouvir de novo. Regozijamo-nos com tal facto e daqui saudamos o seu director com votos de que ela continue a chegar até aqui sempre em boas condições. Só é pena não termos tido essa sorte mais cedo para sabermos do tal carimbo especial dos CTT” (A Voz de Timor, 20/12/1970, nº 553:2). O dever do leitor de um jornal colonial era estabelecer uma mútua cooperação na promoção e divulgação da cultura colonial e dos princípios morais cristãos. No caso de Timor, um leitor d’A Voz de Timor frisava que “sou modestíssimo leitor da Voz de Timor. Procuro envidar todos os esforços para cumprir os meus deveres de cristão. Aceito as responsabilidades que me cabem entre o povo de Deus peregrino em terras de Timor e tenho o dever de cooperar na edificação do Corpo Místico, de trabalhar na chamada consecratio mundi e de informar do Espírito de Cristo, a ordem temporal” (A Voz de Timor, 5/1/1969, nº 452:3). Bem, parecia que, naquela época, um bom leitor de jornal em terras colonizadas era considerado um bom cristão. Mas quem se apresentava a sua identidade como um leitor modestíssimo d’A Voz de Timor não era propriamente um timorense, mas um português que propagava a doutrina cristã, não excluindo a hipótese de ser um timorense assimilado. No jornalismo há uma expressão que diz: “criticar sim, mas louvar também”, expressão que o colaborador Ilhéu (provavelmente um nome usado como pseudónimo) d’A Voz de Timor utilizou para direccionar a sua livre opinião ao público, dizendo que, “Quando começámos a colaborar neste jornal, foi nosso propósito promover uma campanha com a intenção de fazer a crítica a tudo o que estivesse mal, apontando os factos e alvitrando as soluções”, não apenas criticar, mas louvar também (A Voz de Timor, 28/7/1968, nº 429:4). Os leitores dirigem-se aos redactores sobre assuntos relacionados com educação, economia, infra-estruturas, saúde e turismo. No que diz respeito à economia, um dos leitores, em “Uma ideia a Esmiuçar” (A Voz de Timor, 18/8/1968, nº 432:1), afirmava que a província de Timor era produtora do melhor café do mundo até Agosto de 1975 e que, segundo os técnicos do antigo Departamento de Agricultura de Java, bebia-se cá dentro pelo preço que foi exportado.

232

Em 1969, a direcção d’A Voz de Timor recebeu o nº 56 do jornal Clarim, publicado em Macau, datado de 9 de Novembro, que continha um artigo assinado por Frei Tomás, tecendo críticas ao atraso do desenvolvimento administrativo de Timor, a que Jaime Neves, em “Por amor à verdade, homessa Frei Tomás”, respondeu ironicamente: Muito de relance, e de longe, quis Vossa Reverência, piedoso Frei Tomás, fazer a caridade de interromper por alguns momentos as suas persistentes orações de penitência e descer ao mundo para se ocupar, entre outras coisas, do nosso humilíssimo jornal – Deus lhe pague – e dizer das boas, ali à preta, do que julgou saber do estado actual da província de Timor quanto ao seu desenvolvimento administrativo. […] Frente à melíflua e diabril proposições do mal, que o tentador lhe insuflou na imaginação, Vossa Reverência questionou-se. Como o deleita escrever, e gostar de ver o que escreve posta em letra redonda, caiu no logro de produzir de jacto um bricabraque de ideias, do qual bricabraque o demónio sub-repticiamente surripiou toda a lógica e pumba, publicou-o sem revisão no Clarim (A Voz de Timor, 14/12/1969, nº500:1).

Relativamente ao atraso da imprensa em Timor questionado por Frei Tomás no Clarim, Jaime Neves retorquiu nos seguintes termos: […] Escute: Em Díli há duas tipografias. A da Imprensa Nacional apetrechada com máquinas de compor Intertype e máquinas de impressão automáticas, do que melhor se fabrica no mundo de há dez anos para cá. A da Diocese, em plano mais modesto mas também com equipamento moderno que incluía máquina de fabrica sobrescritos e de pautar. Não se pode assim dizer que estamos em ‘grande atraso’ quanto a tipografias, embora nos faltem rotativas, das que cortam e dobram os exemplares que imprimem, e tituleiras Ludlow, luxo escusado – não acha?” e, acrescentou mais o chefe da redacção que “Publicam-se aqui três jornais – A Voz de Timor, a Seara e a Província de Timor. Os dois primeiros impressos e o terceiro tirado a ciclostilo, mas em folhas encabeçadas com títulos impressos a cores. A comunidade chinesa também tem o seu jornal com tiragem a duplicador e apresentado com os caracteres-fonogramas do seu complexo sistema de escrita (A Voz de Timor, 14/12/1969, nº 500:6).

O chefe da redacção do jornal prossegue: “Se Vossa Reverência consultou a colecção d’A Voz de Timor aí encontraria muita crítica, claro está que era construtiva. Homessa, Frei Tomás! Onde foi buscar o ‘atraso administrativo de Timor’? E queria que lhe justificasse uma coisa, que não estamos atrasados em tudo”. Alguns leitores preocupavam-se com o que aconteceu e acontece na sociedade timorense, como sobre a criação do ‘almoxarifado’, o organismo que regulava o emprego dos automóveis do Estado, o consumo de combustíveis e a reparação. A propósito, um leitor assíduo dirigiu ao director d’A Voz de Timor, uma carta aberta, “Venha o almoxarifado”:

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Sr. Director: sou leitor assíduo do vosso jornal. Quando me falta ao Domingo pela manhã (o que agora sucede raramente) é como se ficasse todo o dia em jejum. Ninguém me pode aturar em casa. […] Decidime a escrever-lhe para pôr o preto no branco quanto a um assunto em que muito se fala à chucha calada. Não faça caso do meu português. Nunca fui forte em letras, mas aproveite a ideia, se for de aproveitar. Ao que oiço dizer, em todas as províncias ultramarinas há um almoxarifado e […] dizem-me que anos atrás, por ser pequeno o número de automóveis do Estado, não se justificava a criação dum almoxarifado em Timor. […] Não se pouparia com o almoxarifado muito material e muita gasolina? Por mim não digo nada, o que não sei, mas a ser verdade o que se afirma, existe nas outras províncias ultramarinas com resultados financeiros (A Voz de Timor, 3/11/1968, nº 443:1).

Em Abril de 1970, a redacção d’A Voz de Timor publicou uma carta aberta intitulada “Precalços do jornalismo – um lapso a corrigir” (26/4/1970, nº 519:6), do leitor Dr J. Bárbara Branco. Nesta carta, alertou que havia um erro “no número de 15 de Fevereiro de 1970 d‘A Voz de Timor’, de que sou assinante, pois publicou um artigo com o título ‘Engenheiro Artur Canto Resende” e o subtítulo ‘Homenagem a um herói’, que rezava: ‘No mês em curso decorre o 25º aniversário da morte do engenheiro Artur do Canto Resende, ocorrida nesta província, onde se encontrava no desempenho da sua actividade profissional e havia sido feito prisioneiro dos invasores japoneses”. Esclarecia: “trata-se, com certeza, de um lapso do redactor que convirá rectificar para que a juventude da província conheça com verdade o fim heróico e trágico do engenheiro Canto Resende”. A redacção deu-lhe razão e pediu aos leitores para que compreendessem o erro assumido pelo esforço do voluntarioso colaborador Sr. Ferreira de Almeida.

4. A propaganda política da metrópole sobre as suas colónias Propaganda é um modo específico de apresentar informação sobre um produto, marca, empresa ou política que visa influenciar a atitude de uma audiência para uma causa, posição ou actuação. O seu uso primário advém do contexto político, referindo-se geralmente aos esforços de persuasão patrocinados por governos e partidos políticos. Como explica Richard Alan Nelson (1996), de forma neutra, propaganda é definida como forma propositada e sistemática de persuasão que visa influenciar com fins ideológicos, políticos ou comerciais, as emoções, atitudes, opiniões e acções de públicos-alvo através da transmissão controlada de informação parcial (que pode ou não ser factual) através de canais directos e de media. Relativamente à propaganda colonial da metrópole nas colónias, Perry Anderson (1966) argumenta que a ideologia colonial portuguesa contrastava com a realidade, distorcendo-a 234

para além da capacidade de reconhecimento, na forma de uma singular cosmologia delirante. A consolidação do termo “província ultramarina” e de uma missão ancestral e espiritual do português de ‘civilizar e cristianizar’ encobriam a dominação ultra-colonial. A emigração como desafogo demográfico na metrópole e a ideia de um “colonialismo missionário”, moralmente superior e não exploratório (“não imperialista”, em oposição aos demais), encobriam o ‘atraso’ económico e social de Portugal. Algumas fontes menos avisadas reverberaram a mitologia portuguesa da inexistência de discriminação racial nas colónias. Porém, só a caracterização de ‘nativos’ para os não brancos e as condições exigidas para que estes pudessem ser considerados ‘assimilados’ evidenciavam o racismo oficial. No caso concreto de Timor, a expressão “racismo oficial”, embora tivesse sido aplicado, foi menos visível146, por exemplo, no lema “a nossa razão de existir tal como somos”, expressado por Jaime Neves num artigo, intitulado “Como eu vi as festas comemorativas do duplo centenário da cidade de Díli”, publicado em 19 de Outubro de 1969: […] A diferença de comportamento, entre nós (portugueses) e os outros (europeus), é simples e percebese sem grande esforço: eles eram aves de arribação e rapina; nós chegávamos para revelarmos o Evangelho e para ficarmos à boa mente. O povo timorense é inteligente. Mesmo duma impressionante acuidade espiritual. Viu a humildade natural dos frades pregadores, humildade que não excluía uma actividade corajosa e o atractivo duma cultura deslumbrante. A brandura dos seus processos de catequese. […] Nos dominicanos, que facilmente aprendiam os seus dialectos (timorenses) […] E como os filhos de S. Domingos a par de zelosamente cuidarem da vinha do Senhor, escopo cimeiro de toda a sua acção, se empenhavam em servir também Portugal (Nação cristianíssima), já para alienarem de si as preocupações de ordem administrativa e política, já porque se impunha uma defesa armada contra os inimigos que se avizinhavam, forem eles que fizeram de Timor uma província portuguesa (A Voz de Timor, 19/10/1969, nº 492:1).

Este tipo de propaganda política de assimilação ainda é muito destacado pelos redactores e colaboradores (os padres missionários) nas páginas da revista/jornal Seara – Boletim Eclesiástico da Diocese de Díli, estudado no capítulo anterior. O processo de descolonização dos impérios europeus no pós-guerra afectou Portugal a partir da década de 60. Enquanto outras metrópoles se desfaziam de seus impérios coloniais e desenvolviam novas formas de exploração (neocolonialismo), os imperialistas portugueses – incapazes de desenvolver relações neo-coloniais – esforçavam-se por manter o seu, reprimindo os movimentos nacionalistas nas possessões e insistindo no discurso salazarista de 146

Em certas circunstâncias expressão “raciasmo oficial” estava bem visível “quase maioria” nos discursos dos missionários do que nos próprios discursos de outros ‘agentes coloniais’.

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que as ‘províncias ultramarinas’ não seriam colónias, mas partes integrantes e inalienáveis de Portugal. A propósito, o Dr. Custódio Lopes, na Assembleia Nacional, fez uma declaração a que A Voz de Timor deu o título “O problema da informação acerca do ultramar português” (1/3/1970, nº 511:6), segundo a qual “temos que contrapor à propaganda estrangeira tendenciosa ou ignorante, quanto ao ultramar português, uma política de esclarecimento, verdadeira, aberta e objectiva, baseada na realidade dos factos que queremos conhecidos para que mais facilmente possam ser compreendidos e aceites”; e Sacramento Gaudêncio defendeu que “A política ultramarina portuguesa tem que ser integralmente compreendida porque é justa e a única que serve os interesses da conjuntura nacional e da Europa Ocidental” (A Voz de Timor, 8/3/1970, nº 512:3). Ao contrário da busca de imparcialidade na comunicação, a propaganda apresenta informações com o objectivo principal de influenciar uma audiência. Uma audiência que reforça toda a eficiência dos projectos de desenvolvimento propostos pelo governo em cooperação com outras instituições de sociedade civil, como no caso do império português. O próprio presidente da Comissão Central da ANP e presidente do Conselho, Marcello Caetano, afirmou que “o ultramar tem de ser defendido porque temos a consciência de defender uma obra de valorização dos territórios e de dignificação das pessoas que se está a processar em termos de que nos podemos justamente orgulhar” (A Voz de Timor, 1/11/1970, nº 546:1-2), porque “sob o signo da portugalidade somos uma nação multirracial e pluricontinental”, afirmou o governador Valente Pires À Voz de Timor (28/5/1970). Segundo este jornal, a sessão solene de boas-vindas do governador de Timor ao Subsecretário da Administração Ultramarina mostrou a dimensão do fervor patriótico que aglutina à volta do Governador da província, em comunhão de esforços, os timorenses irmanados com todos os seus patrícios de outras paragens do mundo português que aqui labutam. A. de Cruz, em “O segredo da nossa força” (A Voz de Timor, 28/7/1968, nº 429:1), sublinhava que A Voz de Timor seria uma força que construía a opinião pública do governo da província, da Igreja Católica e dos militares. A opinião pública foi orientada, formada e comandada pela Radiodifusão e A Voz de Timor, pois eram a grande arma das três referidas instituições para a organização social, a acção popular, o alto serviço de Deus e da Pátria portuguesa e a influência política, a que estavam nobremente devotados e consagrados n’A Voz de Timor. Sabe-se, no entanto, que toda a eficiência das operações militares e as políticas de desenvolvimento tomadas pelos governos ultramarinos dependiam mais do que do número e qualidade do material utilizado, do espírito dos seus soldados e dos seus funcionários

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públicos, classificados como uma força invencível, pois eram apoiados pela Igreja Católica, constituída desde o século I. As colónias portuguesas eram diferentes: eram sobrevivências de feitorias quinhentistas subitamente ampliadas para o interior e com o domínio metropolitano reforçado perante a ameaça de serem atacadas por seus rivais imperialistas. De facto, a partir da Conferência de Berlim de 1885, Portugal empreendeu a conquista dos territórios, antes que fossem absorvidos pelas demais potências. Denominou-se esta expansão colonial “colonização reflexa”, com a formação da nação de etnias, cores, culturas variadas, e a introdução das culturas de café, cana-sacarina e algodão, não só nas devastadas florestas de Timor, mas também em terras da África. Isto é, “um aspecto basilar da nação portuguesa que não pode ser esquecido, ou posto de lado, quando se intente apreciar a história portuguesa”, afirmou o editorial d’A Voz de Timor (12/9/1965, nº317:1-4). Além disso, as características de Portugal - um país pobre, não industrializado, com uma estrutura política de carácter autoritário e, posteriormente, com traços fascistas conduziram à formação de um sistema colonial sui generis, designado por Perry Anderson (1966) como “ultra-colonialismo”, sob o lema “De Minho a Timor”. A propósito disto, Ferreira Almeida, em “Uma missão importante: desvendar tudo o que é nosso”, declarou que “Em toda a nossa colaboração para a Imprensa temos frisado a importância que advirá para o país se for promovida uma grande e contínua campanha em prol da divulgação de tudo aquilo que é nosso, nos seus mais variados aspectos, abrangendo todo o território nacional, de Minho ao Algarve, de Cabo Verde a Timor, dos Açores a Moçambique, de S. Tomé a Macau e Angola” (A Voz de Timor, 30/4/1968, nº 425:2). Os que não fizessem isso teriam sido chamados “embaixadores de traição”, segundo Couto Rodrigues (A Voz de Timor, 3/10/1965, nº 320). O mesmo amor à pátria portuguesa foi expresso por Ruy Miguel, justificando que a pátria portuguesa não se discute, porque “ninguém pode ficar indiferente – mesmo os que se dizem apolíticos – quando se discute a Pátria” (A Voz de Timor, 24/10/1965, nº 323:1-4). “Estamos seguros”, afirmou Carlos Nogueira (A Voz de Timor, 29/8/1965, nº315) e esclareceu ainda o editorial d’A Voz de Timor, que “As nossas preocupações” (A Voz de Timor, 5/9/1965, nº 316) eram manter viva a alma lusitana em diversos aspectos de vida, e por isso, dizia Inácio de Moura: “o nosso dever é continuar” e “vitória será nossa, venceremos sem armas e sem sangue, pois a voz da razão que nos assiste será suficiente para despertar os olhos da descrença e do maquiavelismo”. Adianta o autor que “o dever de arauto da civilização e o dever dos portugueses na vera acepção do termo consiste na firme decisão de continuar” (A 237

Voz de Timor, 26/9/1965, nº 319), pois que “a história será o nosso melhor juiz” (A Voz de Timor, 14/11/1965, nº 328:1-4). No termo da campanha eleitoral, Salazar mostrou a inanidade das ideias da oposição democrática, dizendo que “os políticos imbuídos de teorias, sedentos de poder, enamorados das mudanças revolucionárias são na verdade número insignificante da nação”, declarando ainda que “votar nas próximas eleições de deputados com ou sem oposições, firmemente, virilmente, ordeiramente como afirmação de portuguesismo e profissão da fé” (A Voz de Timor, 7/11/1965, nº 325:1-4). Com esta campanha de Salazar, a direcção d’A Voz de Timor estava ciente de que o partido iria ganhar, e assim, no espaço editorial, “Ao eleitorado”, dirigiu uma mensagem aos portugueses de Timor: “votar é dizer não ao inimigo de Portugal”. A mesma mensagem já fora transmitida almirante Américo Thomaz perante as duas Câmaras reunidas e a multidão: “com a ajuda de Deus e dos portugueses, prometo solenemente, com a maior firmeza, e até ao limite das possibilidades humanas, que tudo empenharei na alta missão de continuar Portugal” (A Voz de Timor, 29/8/1965, nº 315). Não esquecer também a seguinte afirmação de um leitor d’A Voz de Timor, Ferreira de Almeida, sobre o espírito de ser português: “onde pulsar um coração português a pátria estará sempre presente, assim, Portugal é sempre Portugal” (15/6/1969, nº 475:2).

5. Artigos de opinião mais representativos Apresentamos nas tabelas 9 e 10 os artigos de opinião ‘mais representativos’, porque tratam de diversas realidades, como a política, economia, literatura, turismo, educação, desporto, cinema, rádio e imprensa. Foram seleccionados segundo o critério narratológico literário e jornalístico; na sua maioria, estão apresentados não só na secção “artes e letras” e “página literária”, “vida desportiva” e “página desportiva”, mas também noutras secções (por exemplos, na primeira página do jornal). Tabela 9 – Artigos de opinião mais representativos publicados pel’A Voz de Timor,carácter narratológico literário e jornalístico Descrições O saber de Gil Vicente Independência crítica de Gil Vicente O candidato e a linguagem dos factos Bocage o Elmano Sadino – talento de um boémio literário Fernando Sylvan – um escritor timorense com vasta obra literária

Autor e Ano de publicação Dr. Queiroz Veloso, 4/7/1965, nº307 Jaime Neves, 4/771965, nº 307 Rui Miguel, 4/7/1965, nº 307 Jaime Neves, 22/8/1965, nº 314 10/4/1967, nº 393/394

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Nº de Refª 1 1 1 1 1

A língua portuguesa no mundo Um romance de Eça Queiroz: O Conde D’Abranhos

14/4/1968, nº 414 25/8/1968, nº 433 a 7/12/1969, nº 499

Sol e Jardins

Minore, 20/10/1968, nº 441; 10/11/1968, nº 444 Jaime Neves, 27/10/1968, nº 442 23/6/1968, nº 424 23/6/1968, nº 424 26/1/1969, nº 455 Jaime Neves, 23/2/1969, nº 459 Ruy Cinatti, 2/3/1969, nº 460 a 29/6/1969, nº 477 César Afonso, 2/3/1969, 460

Investigações científicas em Timor Concurso literário para a juventude A arte juvenil A arte moderna Ruy Cinatti – poeta do infinito Um cancioneiro para Timor (obra) No mundo da arte – uma exposição que interessa sempre ver Arte e loucura Problemática da língua portuguesa Entre Manatuto e Laleia Ruy Cinatti e alguns problemas da literatura ultramarina Crónica de Macau – defendamos os sagrados direitos do espírito A palavra e a imagem das coisas

1 63 2 1 1 1 1 1 13 1

César Afonso, 18/5/1969, nº 471 Fernando Sylvan, 7/9/1969, nº 486 Ruy Cinatti, 9/11/1969, 495 Mário António, 1/2/1970, nº 507

1 1 1 1

8/3/1970, nº512

1

25/10/1970, nº 545

1

Os artigos literários mencionados foram publicados nas secções “artes e letras”, “página literária”, alguns deles destacados na ‘primeira página’; no entanto, os artigos de opinião referidos na tabela 9 são de produção literária e, simultaneamente, procuram um estilo jornalístico, segundo definição utilizada na abordagem da crónica literária e do relato jornalístico na revista Seara (Paulino, 2011d). A direcção dedicou também espaço à secção desportiva, onde entra a “crónica desportiva”, como mostra a tabela a seguir. Tabela 10 – Artigos de opinião que integram a categoria da crónica desportiva Descrições Lamirés No bom caminho Real de Madrid, Benfica, Juventus ou Manchester United? Desporto e medicina O árbitro Divagando sobre futebol Os segredos da arbitragem Em defesa do futebol nacional O anti-jogo e o ‘fora de jogo’

Autor e Ano de publicação Zequilma, 14/4/1968, nº 414 Zequilma, 28/4/1968, nº 416 Alberto Mourão, 5/5/1968, nº 417 Dr. Furtado Lima, 29/9/1968, nº 438; 6/10/1968, nº 439; 13/10/1968, nº 440; 20/10/1968, nº 441 António Augusto Santos, 17/11/1968, nº 445 Álvaro Santos, 1/12/1968, nº 447 Joaquim Campos, 22/12/1968, nº 450; 29/12/1968, nº 451 Dr. António Botelho Meni, 22/12/1968, nº 450 Adriano Peixoto, 12/1/1969, nº 453

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Nº de Refª 1 1 1

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Disciplina Um apito duas bandeiras O atleta, o árbitro e o espectador O saber perder Apontamentos sobre a arbitragem O fora de jogo e os fiscais de linha Ingrata missão As excepções surgem apenas para confirmar a regra Esta palavra ‘Arbitro’ Jogar a bola com as mãos Casos de consciência A disciplina causa ou efeito? A colocação da bola para pontapé de baliza Violência, insulto e agressão O capitão da equipa O difícil problema das arbitragens Um caso insólito em Timor O uso e abuso do apito O desporto amador O poder discricionário dos árbitros de futebol Desporto e saúde escolar Reforma do ensino Arbitro na família Arbitragem ultramarina Conjugação de esforços Profissionalismo A sinfonia verde do maestro Fernando Vaz A arbitragem, contingência do jogo? Criticar é fácil O homem do apito Futebol e a sua história Atenção Timor: a tua juventude precisa de praticar desporto O homem e o desporto Para ser árbitro é preciso ter vocação

Ricardo ornelas, 19/1/1969, nº 454 Carlos Martins, 19/1/1969, nº 454 Manuel Amorin Costa, 26/1/1969, nº 455; 2/2/1969, nº 456 Lorenzo Ausina Tur, 9/2/1969, nº 457 Filipe Gameiro Pereira, 16/2/1969, nº 458 Adriano Peixoto, 9/3/1969, nº 461;16/3/1969, nº 462 Oliveira Machado, 16/3/1969, nº 462 Mário Cília, 23/3/1969, nº 463

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Mário Bravo, 30/3/1969, nº 464 Carmo Lourenço, 13/4/1969, nº 466 G. Boyreau, 27/4/1969, nº 468 J. B, 11/5/1969, nº 470 Carmo Lourenço, 18/5/1969, nº 471 António Molinos, 25/5/1969, nº 472 Alberto Costa, 8/6/1969, nº 474 J. C, 15/6/1969, nº 475 Oliveira Machado, 6/7/1969, nº 478 20/7/1969, nº 480 Tavares Júnior, 27/7/1969, nº 481; 3/8/1969, nº 482; 10/8/1969, nº 483; 24/8/1969, nº484 Dr. Celsus, 7/9/1969, nº 486 14/9/1969, nº 487 21/9/1969, nº 488 Manuel Barata Hipólito, 21/9/1969, nº 488 Pires Duarte, 21/9/1969, nº 488 Pires Duarte, 5/10/1969, nº 490 Manuel José Nogueira, 12/10/1969, nº 491 19/10/1969, nº 492 Adriano Peixoto, 19/10/1969, nº 492 Carmo Lourenço, 26/10/1969, nº 493 Óscar Silva, 28/12/1969, nº 502 M.M.A. Ferreira Costa, 15/2/1970, nº509 Bailão Lopes, 15/3/1970, nº 513

1 1 1 1 1 1 1 1 1 1

30/8/1970, nº 537 Vítor Real, 31/8/1969, nº 485

1 1

2 1 1 2 1 1

4 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1

Os artigos de opinião referidos na tabela 10 são ‘crónica desportiva’, por configurarem um género associado à produção de opinião sobre a realidade desportiva. Contudo, não sendo possível apresentar todos os artigos que nos parecem importantes (ou representativos no destaque do jornal) e relevantes para o estudo histórico e político-económico, geográfico, artístico, desportivo, científico e da religião e da educação, anexámo-los no fim deste trabalho (ver anexo 3)

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6. As autoridades coloniais: discurso e as suas acções Em todas as práticas governativas – quer no sistema colonial quer no sistema democrático e autoritário –, as autoridades, em nome do bem comum, lançam um discurso político com vagas argumentações, fortemente persuasivo, com informações compartilhadas que traduzem valores sociais, políticos, religiosos e outros. Discurso político de uma personalidade política ou figura pública apresenta-se frequentemente como uma oratória colectiva que procura sobrepor-se, em nome de interesses da comunidade, e constituir norma de futuro de forma airosa. É o caso do discurso do governador da província de Timor, José Alberty Correia, que usou de um argumento fortemente persuasivo para persuadir a multidão: “ […] no momento em que regresso da Metrópole para encarar mais um período de trabalho e bem desta terra portuguesa”, por isso, “metamos mãos ao trabalho para que Timor venha a ser maior na sua economia e melhor no teor de vida do seu povo, no entanto, considero de minha obrigação prestar contas ao povo [timorense] do que tratei em Lisboa” (A Voz de Timor, 23/7/1967, nº 403-404:1-2). A mesma preocupação foi demonstrada pelo respectivo governador no Conselho Legislativo sobre “as medidas tomadas durante a sua estadia em Lisboa para resolução do problema de Timor” (A Voz de Timor, 31/10/1965, nº 324:1-4). Segundo testemunhas oculares, o governador José Alberty Correia, embora homem de convicção ateísta, foi um dos governadores que estabeleceram contactos mais frequentes com o povo. Aliás, a acção deste governador estava inserida numa dinâmica social que constantemente se ajustava à melhoria da condição do povo e dos salários de professores primários e liceais. A sua consciência permitia uma resposta que oscila entre a satisfação individual e os grandes objectivos sociais da resolução das necessidades elementares dos outros. Assim, por ocasião da festa nacional de 10 de Junho de 1965, realizada em Díli, A Voz de Timor (13/6/1965) testemunhou: Empenhou-se o governo, e consegui inteiramente que os festejos fossem expressão para além dos folguedos e divertimentos usuais, da vitalidade económica das diversas regiões da Província, do índice de instrução e estágio de cultura do povo timorense, da educação física e artística da juventude, da insipiência prometedora do gosto generalizado pelo saber nos domínios que realmente servem, sem utopias, a promoção social.

De um modo especial, o liurai de Atsabe, Guilherme Gonçalves, dirigiu-se afectivamente ao governador José Alberty Correia:

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Vossa Excelência há uma preocupação que mais do que qualquer outros [governadores] nos tem merecido uma gratidão especial não só pelo seu alcance como por vermos o carinho e o entusiasmo com que Vossa Excelência vai erguendo e com ela lançando os alicerces dum novo Timor cada vez mais progressivo e mais português. Refiro-me […] a Criação da escola de habilitação de professores do posto escolar ‘Engenheiro Canto Resende’ e da escola indústria e comercial ‘Professor Silva Cunha’, são duas obras que só por si seriam suficientes para deixar o nome de Vossa Excelência para sempre ligado à história do nosso Timor (A Voz de Timor, 23/7/1967, nº 404:3).

A mesma eloquência foi expressa pelo régulo de Quelicai, Agostinho de Jesus Freitas Cabral: Venho em nome da população de Quelicai cumprimentar Vossa excelência e tenho eu próprio de me desempenhar dessa missão para poder dizer tal qual da estima e simpatia que nós, os de Quelicai, nutrimos por Vossa Excelência que em quatro anos de governo tem vivido só para nós, trabalhando como nunca vimos, para o nosso bem, sacrificando-se em caminhadas constantes por estradas, andando a cavalo e a pé para ver e não deixar que as coisas se arrastaram e nunca mais se acabem” (A Voz de Timor, 23/7/1967, nº 404:7).

É de salientar que, no dia em que Alberty Correia completou dois anos de Governo, em de 12 de Junho de 1965, o liurai de Atsabe, Guilherme Gonçalves, sublinhou que “esta data, para nós tão significativa, de modo algum poderia passar despercebida”. O governador, por seu lado, interpretou as palavras bondosas do liurai de Atsabe, não como um elogio à sua pessoa, mas como incentivo da população ao que deveria ser a acção do governo da província na tarefa da valorização da terra de Timor e na promoção do bem-estar do povo timorense (A voz de Timor, 20/6/1965, nº 305:1). A própria direcção do jornal conferiu que, “ao partir para Lisboa, o governador da província, José Alberty Correia, deve ter levado a certeza que o povo confia na sua missão”, e, para que isso se tornasse realidade, “O governador de Timor tem trabalhado com o Ministro do Ultramar e com subsecretários da mesma pasta” (A Voz de Timor, 19/9/1965, nº318), para implementar melhor o programa de reconstrução de Timor. O discurso político é, provavelmente, tão antigo quanto a vida do ser humano em sociedade. Na Grécia antiga, o político era o cidadão da polis, que, responsável pelos negócios públicos, decidia tudo em diálogo na agora, mediante palavras persuasivas. Daí o aparecimento do discurso político, baseado na retórica e na oratória, orientado para convencer o povo. Ao deixar Lisboa, o governador de Timor José Nogueira Valente Pires afirmou: “Parto com a maior confiança certo de que se criaram mais condições que contribuirão para o desenvolvimento de Timor, porque a nação é só uma e tudo, em todos os territórios da Pátria 242

se tem de desenvolver no conjunto harmónico duma orientação comum” (A Voz de Timor, 10/8/1969). Na reabertura do Conselho Legislativo da província de Timor, reforçou o discurso nos seguintes enunciados: “Todo o homem integrado na sociedade tem obrigação de trabalhar. A condição de cidadão confere a cada um a liberdade de escolher a actividade que mais lhe agrada e não o direito de não trabalhar. Como é do conhecimento de todos, a província tem continuado a viver em paz no interior e na melhor harmonia com os nossos vizinhos” (A Voz de Timor, 8/11/1970, nº 547:1). O discurso político implica um espaço de visibilidade para o cidadão, que procura impor as suas ideias, os seus valores e projectos, recorrendo à força persuasiva da palavra, instaurando um processo de sedução, através de recursos estéticos como certas construções, metáforas, imagens e jogos linguísticos. Valendo-se da persuasão e da eloquência, fundamenta-se em decisões sobre o futuro, prometendo o que pode ser feito. A propósito, importa transmitir o discurso do governador José Alberty Correia, que, A Voz de Timor, reportou, como exemplo de decisões sobre o futuro de Timor: “Temos de conquistar mais mercados para os nossos produtos exportáveis”, porque “Timor precisa de mais e mais dinheiro porque só o capital pode resolver, com a sua força, o problema geral do desenvolvimento da província” (A Voz de Timor, 23/7/1967, nº 404:7). A preocupação sobre as futuras condições para a valorização económica de Timor foi questionada esperançosamente, em 1967, pelo deputado por Timor Pe. Jorge Barros Duarte, na Assembleia Nacional da Metrópole (A Voz de Timor, 26/3/1967, nº 391-392:1-3), o que Jaime Neves, enquanto jornalista, aproveitou para afirmar que “A acção do BNU na província de Timor” (A Voz de Timor, 1/12/1968, nº 447) junto à sociedade timorense era muito importante, nomeadamente o apoio dado à construção das habitações dos funcionários públicos e à realização dos eventos sociais (como as manifestações culturais populares), assim chamando a atenção dos turistas para visitarem Timor. É importante recordar também que a administração portuguesa retomou o controlo da colónia após a enorme devastação causada pela 2ª Grande Guerra e a ocupação japonesa do território, sendo as suas prioridades a reorganização das estruturas administrativas, a renovação da agricultura e da engenharia civil (sobretudo, na construção civil), a atenção ao sector da educação e do turismo. Estes sectores vão ser destacados nos sub-tópicos a seguir.

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6.1. Educação A instrução dos timorenses era, sobretudo, ministrada por missionários, que espalharam escolas por Timor, em algumas das quais, além da educação literária, se desenvolveu também o ensino de certas profissões (Leitão, 1929:30) com a criação do primeiro liceu em 1938 denominado Colégio-Liceu de Díli. Este colégio foi destruído durante a Segunda Guerra Mundial e foi reconstruído nos finais de 1949, o seu funcionamento se realizou em 1952. Embora a abordagem sobre a educação em Timor já tinha sido explicitado nos capítulos anteriores, vale a pena salientar que “até 1960, a educação em Timor Portugês estava quase inteiramente nas mãos da Igreja Católica. Só nos anos 60, quando as guerras colonias começaram nas colónias africanas portuguesas, é que o Estado e as próprias Forças Armadas investiram na educação”. É por isso que “o subdesenvolvimento da educação e o número extremamente reduzido de elementos de uma elite instruída eram uma grande limitação para a leitura, a escrita e a partilha de ideias com outras pessoas dentro e fora de Timor” (BarbedoMagalhães, 2007a:146). Mesmo assim, encontrava-se pequenos grupos que debatiam a situação económica social e política, criticando os abusos dos colonializadores e a própria situação colonial; e, já em 1965, o governador José Alberty Correia afirmou que, a par da construção de edifícios escolares, aumentava o número de professores devidamente habilitados (A Voz de Timor, 15/8/1965, nº 313:1-4). Gráfico 10147

Caldeira Baptista, no “V curso de aperfeiçoamento de monitores escolares” (A Voz de Timor, 26/10/1969, nº 493:7), esclareceu que a educação em Timor dera mais um passo na

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Fonte: “Timor: pequena monografia” (1965), Lisboa: Agência Geral do Ultramar.

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vanguarda, graças à boa compreensão do Governo da província, que tinha despendido larga soma de contos. Só assim, com a saída de novos agentes docentes da Escola Canto Resende, com o aperfeiçoamento de agentes docentes já existentes a acompanhar um aumento sempre crescente de novos estabelecimentos, podia fazer-se uma eficaz cobertura escolar na província. Chegados aqui, apresentamos os números que seguem na tabela 11 e que mostram o movimento dos alunos no ensino primário e liceal em Timor na década de 1959 até 1969: Tabela 11 – O movimentos dos alunos no ensino primário e liceal na década de 1959 até 1969 148 Ensino Primário Ensino Liceal Anos lectivos Alunos Agentes Anos lectivos Alunos Agentes matriculados de ensino matriculados de ensino 1959/1960 4.898 139 1959/1960 1960/1961 6.076 239 1960/1961 175 15 1961/1962 8.995 229 1961/1962 183 16 1962/1963 12.994 391 1962/1963 211 13 1963/1964 14.228 411 1963/1964 262 28 1964/1965 18.403 386 1964/1965 387 33 1965/1966 18.488 450 1965/1966 607 48 1966/1967 20.813 467 1966/1967 833 36 1967/1968 23.059 490 1967/1968 588 1968/1969 27.299 513 1968/1969 376 -

No caso do ensino liceal, nota-se que no ano lectivo de 1967/1968 houve um descrésimo significativo dos alunos matriculados, e como tal facto acontece devido a abertura do ensino técnico profissional daquele ano, o qual matriculava-se cerca de 333 alunos. Ao começar o ano lectivo 1969/1970, abriram-se, em Díli, três estabelecimentos de ensino primário para escolarizar cerca de seis centenas de alunos que acorreram às matrículas. Dando cumprimento ao artigo 3º do Decreto-Lei nº 45908, realizou-se no dia 4 de Novembro, na escola primária nº 1 de Díli, a primeira reunião de pais e professores, com a presença do chefe dos Serviços de Educação, Dr. João Manuel Leite de Castro. De acordo com a directora desta escola, D. Maria Irene de Castro Cardoso, era primeira vez que se reuniam professores e pais nesta província de Timor (A Voz de Timor, 9/11/1969, nº 495:5). De acordo com a edição d’A Voz de Timor (20/12/1970, nº 553), em Maliana encontrava-se já concluído o edifício das oficinas mecânicas da Maliana, e, em vias disso, a residência da parteira. A escola chinesa tinha já os caboucos abertos, enquanto a ponte na estrada Vila-Hospital Regional estava prestes a concluir-se. Acrescentava a edição deste periódico que, na escola primária desta vila, tiveram início dois cursos muito úteis para os

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Fonte: Timor: Pequena Monografia (1970), Lisboa: Agência Geral do Ultramar, pp.92-93.

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jovens da terra, o curso da 4ª classe para adultos e o Ciclo Preparatório do ensino secundário, ambos com carácter particular, frequentados por algumas dezenas, ou seja, por 300 alunos. A Voz de Timor publicou (19/3/1974) um suplemento especial dedicado à educação, incluindo a entrevista auto elogioso do Dr. Félix Correia. Não era de estranhar que os editoriais denunciassem as falsas estatísticas e apresentassem propostas para melhorar o nível de ensino e de alfabetização. Em vez de aceitar os dados estatísticos oficiais de 80% de alfabetização, Correia avançou com a mesma percentagem, mas de forma inversa (80% de analfabetismo e 20% de alfabetização). Na mesma edição saiu um artigo “Educação e Autonomia”, de António Sérgio, que não motivou comentários, se bem que devesse ter sido banido de publicações. De imediato, a máquina política manipulada pelo Dr. Correia iniciou um coro de protestas de apoio à educação, na sua maioria assinados em cartas à Redacção pelos mais representativos líderes locais e funcionários públicos. Alguns professores, irritados pelas acusações, que consideraram difamatórias, exigiram uma reparação. Era um facto, as pessoas em Timor viviam os últimos dias do decrépito Estado Novo e nem sequer se davam conta disso (Crhystello, 2000:52). Curiosamente, Ramos Horta escreveu editorias a apoiar Félix Correia, em “Educação – Um Suplemento Especial” (A Voz de Timor, 3/1974), pelo que foi alvo de crítica de “um tal Farinha” que, regressado a Portugal “nunca mais deu sinais de vida, nem uma palavra de solidariedade para com o povo maubere” (Ramos-Horta, 1994:74). E, quando o governador Fernando Alves Aldeia regressou a Lisboa, o governador interino, Níveo Herdade impunha profundos controlos no jornal e o autor do artigo “Educação – Um Suplemento Especial” foi impedido de se expressar publicamente ou de apresentar a sua defesa. Face à atitude repressiva dos militares, os serviços da Imprensa Nacional, onde A Voz de Timor era impresso, fizeram uma greve simbólica (cf. Chrystello, 2000:53). Já em 1974, o governador Lemos Pires nomeava uma comissão de reformulação do ensino, com sete elementos, alguns dos quais eram algo controversos: Roque Rodrigues (alferes miliciano, um dos impulsionadores do manual Político da FRETILIN); Alferes miliciano engenheiro António Barbedo de Magalhães e sua mulher; Drª. Judite de Magalhães; Caldeira Batista (professor primário, simpatizante afecto à UDT, íntimo colaborador do exPresidente da ANP, Dr. Félix Correia [o Presidente local do único partido político português legal durante a ditadura, e Chefe dos Serviços de Educação]; António Duarte Carvarino (presidente da “Casa dos Timores em Lisboa”, ideologicamente um vanguardista afecto à FRETILIN e impulsionador das campanhas de alfabetização em Timor. 246

O major Jónatas (Chefe do Gabinete de Comunicação Social no novo executivo) diria: “Podemos caracterizar o ensino em Timor como de tipo colonialista, elitista e veículo dum aparelho fascista com o recurso quase exclusivo a professores 64 metropolitanos, não sendo dadas oportunidades iguais a todos os jovens, sendo feita uma segregação em função das posses económicas. A cultura timorense surge mais no mercado que nas escolas onde ela tem de vir à superfície” (apud Chrystello, 2000:162). O Dr. Jorge Pestana Bastos, por seu lado, em “Timor: Portugal e o futuro”, afirmou que “A instrução pública em Timor, tem sido apenas uma fábrica de diplomados, cujos diplomas não criam empregos. É difícil depois de todo este mostruário não assumir uma qualquer atitude de desculpabilização. Fácil é atribuí-la ao regime apeado em 25 de Abril, talvez até provavelmente justo, mas nunca será o suficiente. O problema é essencialmente político e só duma forma directamente derivada, económico. Primeiro terá que vir a motivação, depois a promoção e só depois os serviços” (apud Chrystello, 2000:37).

6.2. Saúde Humberto Leitão (1929:31) justificou que, em 1929, o governo colonial de Timor desenvolveu um programa de assistência médica aos timorenses que viveram no interior do território, segundo o qual os Serviços de saúde tenham destacado por várias regiões, além de alguns médicos, grande número de enfermeiros; também os seus postos, estavam directa ou indirectamente ligados a Díli por rede telefónica. Em 2 de Novembro de 1970, a Radiodifusão de Timor difundiu uma palestra sobre a saúde pública, que, posteriormente, foi transcrita e publicada integralmente pel’A Voz de Timor (8/3/1970, nº 512), sob o título “Os alimentos e o papel que desempenham na vida do homem”. Outro texto sobre a saúde pública foi também transmitido pela Emissora de Radiodifusão de Timor e reportado integralmente pel’A Voz de Timor (11/10/1970, nº 543:5): “O que devemos considerar na organização da comunidade”. Verificou-se que, no âmbito do dia mundial de saúde, a Emissora da Radiodifusão transmitiu a conferência sobre a saúde pública dirigida pelo Dr. Florentino Matias, editado integralmente pel’A Voz de Timor (23/4/1967, nº 395/396). De acordo com A Voz de Timor, os governantes estavam preocupados com “A saúde da população de Timor” (20/10/1968, nº 441:6) e, por este motivo, começaram a desenvolver os serviços de saúde, de modo a conseguir-se uma abertura sanitária de todo o espaço português, nomeadamente, a campanha contra a cegueira, as

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doenças dos ouvidos, nariz e garganta, promovida pelo Dr. Francisco de Morais Sarmento Campelho. Em Julho de 1974, houve uma polémica controversa no seio dos serviços da saúde. Esta polémica surgiu numa carta de manifesto duma médica de Timor, Blanchinha Varela Rodrigues, enviada aos órgãos de comunicação social, onde criticava severamente o modo como os médicos trabalhavam e o tipo de serviços da medicina praticados em Timor. O texto foi primeiramente transmitido na Emissora da Radiodifusão de Timor e, por razões de pressão, não foi publicada pel’A Voz de Timor (Crhystello, 2000:67). De facto, o conteúdo da carta aberta de Blanchinha não atacou os médicos, ao contrário do que estes pensaram. Apenas pôs em causa uma estrutura colonial decadente que, neste caso, para sobreviver, se socorria dos médicos em comissão militar, não os remunerando de acordo com o trabalho que efectuavam mas antes, impondo-lhes uma obrigação de acumulação. Blanchinha criticou, ainda os serviços de saúde, que, na altura, exploravam sistematicamente a classe de enfermagem por muitos médicos, que se comportavam como meros mercadores de saúde. Enumerando as principais doenças de Timor, sugeriu ao governo da província que criasse hospitais e centros de doenças específicas, concentrando-se no paludismo (malária), disproteinémias e outras doenças típicas. Dizia também que Timor necessitava de escolas médicas para doenças tropicais, escolas de enfermagem e escolas médicas cirúrgicas, para proporcionarem aos seus habitantes meios de sobrevivência. Contudo, a maioria dos médicos em funções em Timor subscreveu um documento de repúdio público, em que Blanchinha não era mais do que um pretexto encapotado para atacar a nova linha política, em especial, o que de progressismo surgia n’ A Voz de Timor, com a nova liberdade política. Deverá notar-se que o Chefe dos Serviços Médicos Militares, Ten. Cor. Médico Buceta Martins, servindo-se do antiquado mas ainda vigente “RDM” (Regulamento de Disciplina Militar), datado de 1826, exercia pressões sobre todos os médicos sob o seu comando, para tomarem o seu partido, e oporem-se À Voz de Timor, então já liberto das peias e interferências governamentais (Chrystello, 2000:68). Para a UDT, as ideias expressas por Blanchinha são repudiadas em vários excertos, convidando a autora, num tom acidamente irónico, a criticar in loco, em vez de, como bolseira por Timor, se refastelar na crítica fácil em Lisboa. Sem se aperceberem, Blanchinha deu-lhes uma legítima desculpa para atacarem a democracia embrionária. Os leitores d’A Voz de Timor repudiavam o tom fácil e demagógico da UDT. O editor publicou, então, o estudo do Dr. Horn, que trabalhou e viveu 14 anos na China de Mao. Publicou o resultado do encontro numa mesa redonda efectuada em Lisboa sob o título “A saúde maltratada pelo fascismo”, à 248

qual se acrescentaram contribuições de alguns médicos locais, os quais tinham de se manter no anonimato, a fim de evitar repressão militar e represálias. Entretanto, a recém-nomeada Comissão Ad Hoc para a Imprensa, usando os seus poderes de censura, vetou a publicação de um artigo criticando a celebração do Dia da Marinha, para o qual apenas metropolitanos eram convidados, embora eles representassem uma minoria do pessoal naval (Crhystello, 2000:69).

6.3. Transportes, telecomunicações e serviços postais Em 1965, o governador da Província de Timor, José Alberty Correia, inaugurou a Ponte-Cais de Díli e, nesta ocasião, discursou: “Esta ponte-cais não deve por nós ser olhada como um melhoramento isolado, mas antes deve ser encarada como uma pequena parcela da grande obra ultimamente levada a efeito pelo governo da nação” (A Voz de Timor, 13/6/1965:1-3). É um discurso positivo e elogiador da presença da nação portuguesa em terras de Timor, e o mesmo conteúdo discursivo foi expresso pelo editorial deste semanário (edição de 18/7/1965, nº 309:4), dizendo que a Ponte-Cais de Díli era a alavanca do progresso económico como valioso pilar das infra-estruturas que estão a ser realizadas, sendo de esperar que nos dez anos seguinte a produção pudesse decuplicar. De acordo com A Voz de Timor (de 27/6/1965, nº 308), a caminho de Manatuto, o governador da província apreciou o bom andamento das obras em curso na estrada que liga Díli àquela região. Deslocou-se também a Manatuto para ver directamente o andamento das obras, quer da construção civil, quer das estradas ou dos portos, o estado pecuário, o aproveitamento da população escolar, a assistência sanitária aos povos, como uma forma de aproximação e reforçar a identidade e paridade do ritmo de vida de Timor149. Em 1968, a Comissão Administrativa da Assistência Social construiu um lar para 200 pessoas, que albergariam 100 homens e 100 mulheres, como confirmava A Voz de Timor (3/11/1968, nº443); em Díli, “vai ser construído um imóvel grandioso para lar de 200 pessoas”. Este edifício está localizado na zona de Caicoli e, no tempo da ocupação indonésia, foi utilizado pela TNI como sede da Korem. Entretanto, n’A Voz de Timor, as rubricas “A nossa cidade” e “Problemas citadinos”

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, que relatam as situações políticas, económicas,

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Verificou-se, entretanto, uma acentuada mudança na reconstrução de Timor e registou-se com agrado o facto, principalmente por parte da população timorense “De lés a lés, por ter sabido que Timor vibrou de júbilo com a notícia da recondução do coronel José Alberty Correia no governo da província de Timor de então (A Voz de Timor, 7/5/1967, nº 398). 150 Vejam-se a detalhadas informações reportadas nestas rubricas, por exemplo, “A nossa cidade – o pai-nosso de cada dia” (4/8/1968, nº 430) e “A nossa cidade” (11/8/1968, nº 431; 13/10/1968, nº 440) da autoria de Zeca; “A nossa cidade: os camaleões” (28/7/1968, nº 429) e “Cidade nossa – diz que disse” (14/7/1968, nº 427) da autoria

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educação e até os problemas de transportes públicos (18/8/1968, nº 432). Este último foi questionado muitas vezes por Bailão Lopes, Ilhéu e outros colaboradores, pelo que o presidente da Câmara Municipal de Díli, Dr. Francisco Xavier de Menezes, em carta aberta intitulada “Os transportes públicos”, respondeu à preocupação dos referidos colaboradores nos seguintes termos: Sob as rubricas “A nossa cidade” e “Problemas citadinos”, tem o jornal de que V. Ex.ª é mui digno Director, ventilado, dentro do vosso espírito de ‘critica construtiva’, diversos problemas desta nossa cidade de Díli, apresentado sugestões que esta Câmara tem tentando seguir, sempre que as mesmas se afiguraram razoáveis e consentâneas com as suas possibilidades, salvaguardada a escola de prioridade estabelecida para a execução dos seus serviços mais prementes. Assim, no nº 432, de 18 do corrente ano [1968], desse jornal, vêm justos e merecidos reparos acerca das deficiências que, presentemente e já de há longa data, se verificam nos transportes públicos da cidade. […] Para a satisfação de necessidades públicas, a que a iniciativa privada não proveja de modo completo” (A Voz de Timor, 1/9/1968, nº 434:1

O novo director dos Serviços Provinciais de Telecomunicações, Eng. Sampaio Rodrigues, numa entrevista concedida ao jornalista À Voz de Timor em 1974, declarou: As comunicações telefónicas com o interior são deficientes. Em 1972 foi aberto concurso para uma rede telefónica interurbana em Timor. Concorreram cinco firmas, as japonesas Mitsui e Oki, as portuguesas Standard Eléctrica e Plessey e a australiana Page. Eu vi tanto interesse em favorecer as firmas portuguesas, que só porque as propostas não estavam totalmente redigidas em português, foram excluídas a Mitsui e Oki … só não pode ser eliminada a Page com uma proposta de 14 mil contos (AUD $437,500 dólares), A Plessey queria 22 mil contos (AUD $687 500 dólares) e a Standard Eléctrica 30 mil contos (AUD $937 500) e era à Page que devia ter sido entregue a obra. “Em meados de 1973, o Director Geral das Obras Públicas, de acordo com o Governador Aldeia, incompreensivelmente anularam tudo. Assim, e em vez de 30 mil postes podres e a cair, sem telefonistas a interromperem as comunicações, teríamos hoje (Setembro de 1974) uma rede automatizada. Quando soube da decisão em Lisboa disse ao ministro encarregue de Timor (que era Engenheiro Abecassis: Veja, 14 mil contos (AUD $437 500) são uma percentagem mínima dos 500 mil contos para estradas e aeródromos (AUD $15,6 milhões), mas a minha opinião não foi ouvida (apud Crhystello, 2000:102).

Posteriormente, houve nova proposta dos japoneses para construírem a rede gratuitamente, se o governo aceitasse futuros serviços exclusivos. Esta proposta do gabinete japonês como recompensa dos danos da guerra foi repudiada. Um delegado do governo nipónico foi mandado a Díli, mas, depois dos contactos iniciais, o negócio não se concretizou, de J. V; “A nossa cidade” (18/8/1968, nº 432) da autoria de Aldebaran; “A nossa cidade – Sol e jardins” (20/10/1968, nº 441); “Problemas citadinos” É assim mesmo Sr. Presidente”( 5/8/1968, nº 433), de José Manuel Portugal.

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porque a administração portuguesa não queria aceitar nenhuma oferta japonesa. A propósito, Sampaio Rodrigues acrescentou: Quando regressei de Lisboa, o Governador compreendeu que tinha sido um erro a anulação do concurso e mandou abrir, um limitado, para a realização da rede telefónica UHF, por fases. A Page orçamentou o concurso por 4 300 contos (aprox. AUD $134,400) e venceu o concurso para a 1ª fase (24 canais entre Dili e Baucau) que se prevê irá durar um ano a efectuar. Porém agora em vez dos 14 mil (AUD $437 500) já são necessários mais de 20 mil contos ($625,000). O transporte do correio ao interior é feito da maneira mais elementar: utilizando as carreiras’, barcaças, avião, colunas militares, etc. Há apenas 18 estações postais no interior, não há distribuição domiciliária em Díli […] há apenas 200 caixas postais e em breve dispor-se-á de mais 300 para os 25 mil habitantes (apud Crhystello, 2000:102-103).

Sampaio Rodrigues adiantou, ainda, que as receitas acumulavam cerca de 75% das despesas e todos os anos havia défice. O pessoal dos CTT trabalhava mais de 45 horas semanais, incluindo sábados à tarde, mas desde Novembro 1973 não foram remunerados pelas horas extraordinárias. A central automática de Díli previa em estudos de 1968, 800 postos e saturação dez anos depois. Em 1974, necessita ser ampliada para 1800 (o dobro da capacidade actual). Entretanto, era a falta de estruturas administrativas que estava no cerne de todos os problemas de Timor. O chefe dos Serviços de Marinha e Presidente das C. A. da Junta Autónoma dos Portos e Serviços e Transportes Marítimos, Comandante Leiria Pinto, numa longa entrevista à Voz de Timor em meados de 1974, declarava que os serviços de transportes marítimos eram bons. Mas, em certas circunstâncias, havia um problema na operacionalização e na fiscalização, pois após o desaparecimento do Arbirú, era muito difícil ter uma nova barcaça que pudesse carregar 150 toneladas do produto. Perante tal situação, o chefe dos Serviços da Marinha de Timor afirmou que, para fins turísticos, os serviços disponibilizavam a barcaça ‘Comoro’ nas ligações Díli-Ataúro-Díli.

6.4. Economia No sector económico, as actividades comerciais e industriais foram, como dantes, entregues à iniciativa privada. Tal como aconteceu na Indonésia antes da revolta anticomunista de 1965, as actividades comerciais estavam todas nas mãos da minoria chinesa, especializada no comércio de retalho. Muito activos e empreendedores, ignorando as tendências consumistas, os chineses tinham cerca de uma dúzia de empresas de importação e exportação com domínio total do comércio em Timor Leste. 251

Em “O prato da balança” (A Voz de Timor, 19/8/1968, nº 432), M. L escreveu que a história económica de Timor é a história das suas florestas que, ao longo de séculos, vêm produzindo a selva vivificante de que se tem alimentado. A história do sândalo e a do café ilustram, sobremaneira, a asserção. Timor viveu sempre da colheita de frutos florestais e conheceu durante três intermináveis séculos o ciclo de sândalo, esse pau salutífero e cheiroso de que falava Camões, que, hoje, não passa duma relíquia botânica. No entanto, a cafeicultura em Timor, é uma actividade tipicamente florestal, porque o café é considerado fruto de um arbusto que só se desenvolve à sombra da floresta. A Voz de Timor (15/9/1968, nº 436), em “Trabalho por Fazer”, referia-se à existência de dois municípios (o de Ermera e o de Liquiçá) como os maiores produtores do café da província de Timor. Inquiria se estas condições constituiriam uma sustentabilidade da economia da província de Timor, pelo facto de serem zonas de maior produtividade do café, precisando de uma pesquisa aprofundada do sector, que recolhesse informações analíticas para elaborar um quadro dos princípios imprescindíveis à rectificação da política económica até então adoptada ou à formação da política a adoptar para aquela zona e para toda a província, no conjunto das zonas inter-relacionais. Julgava-se, porém, que, de acordo com a notícia d’A Voz de Timor (edição de 13/10/1968, nº 440:6), naquela altura, ainda não havia meios possíveis para detectar exactamente quantos hectares de terreno eram ocupados pela plantação do café que Timor produzia, nem como se processou a expansão patente da economia agrícola de exportação e qual era o seu valor percentual em relação à pecuária. Assim sendo, quais seriam as possibilidades oferecidas pelo governo da província à monocultura do café, em relação às outras lavouras de exportação, para o desenvolvimento económico de Timor? Qual era a assistência técnica que estava a ser oferecida aos produtores do café? Que se fazia ou estava a fazer para evitar a ocupação de terras inferiores para o cultivo do café? Estas questões foram estudadas e analisadas por uma equipa de inventário dos recursos naturais, culturais e humanos para fazer um acervo estatístico sobre os recursos naturais em exploração, assim como alguns estudos agronómicos. Para elevar o nível económico e social da população rural, a camada mais ampla da comunidade timorense, urgia criar “Medidas práticas de fomento agrícola” (A Voz de Timor, 23/2/1969, nº 459:1-6), aumentado o baixo nível de renda e a capacidade aquisitiva, tudo com vista ao aumento de renda provincial e à sua distribuição per capita mais equitativa que, naquela época, era uma das preocupações mais salientes e mais persistentemente evidenciadas pelo governador Valente Pires. Daí resultou a entrada das receitas no cofre no governo 252

colonial da província de Timor, receitas que provinham das principais exportações como o café, copra, cacau, madeira, amendoim e borracha, mas o único produto que realmente tinha algum volume era o café, pois “desde há 48 anos ensinava-se a cultura do café” (24/10/1965, nº 323; 24/11/1965, nº 327) aos povos de Timor. Embora o montante de capitais recebidos fosse pequeno localmente, ele representava um enorme investimento. Verificou-se, no entanto, uma acentuada evolução técnica dos cafeicultores timorenses e registou-se com agrado o facto, principalmente por parte da população timorense que gradualmente executou e aplicou as indicações dadas pelos técnicos. A Brigada cedeu 5 Kgs de sementes seleccionadas do “Híbrido de Timor” (moca), da plantação de Apidó, a pedido da Fazenda Algarve (Liquiçá), para sementeira em alfobre. A propósito desta iniciativa, foram publicados dois artigos n’A Voz de Timor, um sob o título “Porque se deve substituir o café Arábica pelo Híbrido de Timor (moca)” (edição de 22/11/1970, nº 549) e outro intitulado “Como deve plantar e conduzir o cafeeiro a seguir à plantação”. Foram divulgados junto das Administrações da área cafeeira e de alguns cafeicultores evoluídos, através das circulares números 287 e 288. O Chefe da Repartição de Economia, Dr. Chagas de Jesus, afirmou à Voz de Timor (edição de 1974, apud Chystello, 2000:78): “No primeiro semestre [1974] houve um défice de cinco mil contos na classe dos produtos alimentares (aprox. AUD $200,000). Houve uma retracção por razões de política interna e externa… tendo os países de origem das importações adoptado o sistema de pagamento adiantado de produtos” (A Voz de Timor, 1974). De qualquer forma, para quem nunca conheceu as receitas aduaneiras nos últimos anos da administração portuguesa, importa apresentarem-se aqui os dados estatísticos das Alfândegas de Timor relativos aos anos de 1970 a 1974, como mostra a tabela a seguir. Tabela 12 – Dados das Alfândegas de Timor relativos aos anos de 1970 a 1974 Ano 1970 1971 1972 1973 1974 (estimativa)

Escudos (Milhões) 50,0 63,5 70,0 86,0 73,5

AUD (Dólares Australianos) (Milhões) 2,00 2,54 2,80 3,44 2,94

Salienta-se que, embora 31 navios tivessem acostado nos primeiros sete meses de 1974, apreendendo a 40% do total de 1973, havia-se registado uma redução do movimento portuário. Isto prejudicaria o orçamento provincial, afirmou o Director das Alfândegas, João Couto, à Voz de Timor (apud Chrystello, 2000:87-88).

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6.5. Turismo O turismo foi um dos sectores que o governo da província desenvolveu em Timor, colocando-o como fonte de receitas desta terra. Segundo a notícia d’A Voz de Timor (23/7/1967, nº 404:3), os turistas australianos que por acaso se encontravam em Díli declararam-se que o vibrante espectáculo de boas-vindas e atrações culturais era extraordinário e surpreendente. É certo que, graças às actividades turísticas desenvolvidas pelas autoridades coloniais da província de Timor, nomeadamente em 1966, representaram um aumento significativo na exportação da Borracha (5/2/1967, nº 385-386). O turismo era um sector aberto, que se movia pela oferta variada em determinados destinos, e tais manifestações culturais podiam formar parte de um produto, desde que sejam conectados de forma directa ou complementar aos serviços turísticos. Para tanto, no dia 24 de Agosto de 1965, foi inaugurado mais um serviço turístico em Díli, o Hotel Mimosa, propriedade do industrial Fu Chong Ing (A Voz de Timor, 8/8/1965), nº 312), e, por isso, estava “na hora exacta de opção” (A Voz de Timor, 12/3/1967, nº 390), e assinalar duas correntes distintas no sector do turismo – a de qualidade e a de turismo de massa – parecia oportuno para Timor, no que concerne aos investimentos a efectuar pelo Plano de Fomento. É importante lembrar que, na edição de 5 de Setembro de 1965 (nº 316), a direcção publicou uma fotografia que ilustra o aspecto dum povoamento misto duma das zonas menos densas das florestas de Loré que, segundo este jornal, de entre as maravilhas naturais que Timor tem, as florestas de Loré151 foram escolhidas pelo governo colonial da província para promover o turismo interno no sentido de convidar os timorenses que ainda não conheciam a beleza da sua própria terra. Era necessário recordar também que, a propósito de uma fotografia de Carvalho Pinto, reportada pel’A Voz de Timor na sua rubrica “Imagem de Timor” (13/9/1970, nº 539:4), Inácio de Moura interpretou textualmente tal fotografia, dizendo que em Timor tudo é belo e original. Desde o emaranhado dos capinzais até aos recortes naturais dos seus contornos geográficos, tudo se identificava com a máxima expressão da beleza. Nessa imagem (referiase à fotografia de Carvalho Pinto), o artista, sempre pronto e apto a registar o imprevisto, o original, revelava-nos mais um prisma de beleza onde nem os horrores dos fenómenos atmosféricos – as trovoadas – têm razão de existir, por pertencerem já a um natural e quotidiano acontecimento. 151

Gostaríamos de apresentar aqui a fotografia sobre a densa floresta de Loré (do distrito de Los Palos) ilustrada n’A Voz de Timor (edição do nº 316 de 5 de Setembro de 1965), mas não foi possível, porque a fotografia, já não tinha qualidade suficiente para ser apresentada neste trabalho.

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O turismo transforma lugares e grupos humanos, e, por isso, “A expansão turística exige promoção e organização” (A Voz de Timor, 3/5/1970, nº 520:5). Faz parte da cultura humana na redefinição das realidades sociais, é uma “expressão de cultura” (A Voz de Timor, 6/9/1970, nº 538:2). Para tanto, a auto-reflexão sobre representações culturais é um elemento básico no quadro de um projecto de preservação cultural, o que associamos à especificidade das culturas populares, por exemplo, “turismo e beleza” (A Voz de Timor, 24/11/1968, nº 446) podem ser conjugados como plataforma para contextualizar a noção do turismo de qualidade e de massa, porque, através destas duas noções, podemos conhecer as paisagens exóticas de uma região consideradas como berço da evolução da cultura humana, onde o universo espalhou tanta beleza natural. Na comemoração do “dia dos turistas” (A Voz de Timor, 5/5/1968, nº 417), o governo colonial, em cooperação com o chefe do turismo e indústria, celebrou-o em Baucau, com o objectivo de promover e divulgar os patrimónios naturais e culturais daquela região. A Voz de Timor confirmou que, no dia 23 de Julho daquele ano, desembarcaram no aeroporto de Baucau 22 turistas (maioritariamente, australianos) e foram recebidos pelo ancho folclórico de Venilale. Assim, “Timor continua a ser cartaz turístico à vizinha Austrália” (A Voz de Timor, 13/9/1970, nº 539).

7. Os traços culturais timorenses n’A Voz de Timor Para diversificar as notícias e os artigos de opinião editados pel’A Voz de Timor, a direcção encaixou alguns artigos em narrativa textual e exposição fotográfica relativos aos traços culturais timorenses que caracterizam o sujeito do seu ‘ser’. Os traços culturais timorenses destacados neste jornal foram, de facto, sobre a cultura da pesca, as casas típicas, danças, folclore, as lendas cosmogónicas, motivos artísticos e o barlaque. A “Imagem de Timor” e “Conheça a nossa terra” são secções específicas que A Voz de Timor disponibilizou para reportar as fotografias que continham representações físicas e simbólicas dos traços culturais timorenses, em que algumas delas eram acompanhadas de pequenas narrativas textuais. De acordo com o editorial de 1 de Novembro de 1970 (nº 546), dizia que naquela época a cultura da pesca em Timor era muito rica 152 e os pescadores timorenses, com a sua embarcação típica, não pescavam só para alimentação, mas também 152

Iconologicamente, os mares são ricos, mas (até 1975) os “Beremau” (homens Timores) passavam todo o dia, do sol nascente ao poente, meio submersos na água com um pau de bambu e uma rede primitiva de pesca, esperando que os peixes mordessem o isco.

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para sustentar a economia da família. Normalmente, os pescadores cortam a árvore, cavamlhe o troco e adaptam-lhe aos lados umas canas de bambu para servirem de flutuadores. Assim nasce uma pequena embarcação a que dão nome de beiro e, antes de a embarcação ser lançada à água, faz-se um ‘estilo’ (festa de consagração de carácter religioso) para o qual são convidados todos os colaboradores na confecção do beiro. Lançado o pequeno barco à água, nasce mais uma fonte de riqueza para o seu proprietário. O “aldeamento timorense”153 (27/6/1965, nº 306:4) é uma preciosidade etnográfica que caracteriza a representação identitária timorense, pois, segundo esta edição d’A Voz de Timor, a habitação dos diversos povos corresponde a determinada vida mental e a um estágio de cultura material que interessa preservar sob variadíssimos aspectos. O interesse de preservação é mais acentuado e impõe-se quando as construções reflectem uma inteligência apurada dos pormenores de utilidade prática e de decoração artística, constituindo fantásticas preciosidades etnográficas, como no caso da habitação timorense. Por isso, adiantou este jornal que não custa nada, ou custa tanto como fazer de outra maneira, urbanizar os aldeamentos timorenses sem lhes tirar as características próprias e sem alterar o traço dos seus edifícios. As danças também são indicadores da afirmação identitária de um povo, como no caso das danças timorenses, que apresentam características próprias e se assemelham umas às outras, como a dança do milhafre de Balibó, a dança da Cobra de Laclubar e a dança dos lençóis de Suai. Esta última foi ilustrada fotográfica e textualmente por Inácio de Moura n’A Voz de Timor, com o título “bailarinas bonitas do Suai” (ver anexo 4) que “Toda a gente conhece e admira. A sua fama, tal como o colorido dos seus trajes e a suave melodia dos seus cantares. Muitas turistas que nos visitaram as lembram com saudade em fotografias e jornais. Donas de uma beleza sem par, em suas meigas feições de tez morena e macia, as bailarinas do Suai são bem as meninas bonitas de Timor” (4/10/1970, 542:4). Na sua edição de 1 de Agosto de 1965 (nº311), A Voz de Timor reportou uma fotografia de um timorense que usava um traje festivo com muitos enfeites no dia de festa e levando a sua montada. A fotografia que a direcção do jornal produziu era para dar a conhecer um arreio, que aparece com pouca frequência, isto é, apenas em festas mais solenes com curioso selim, engalanado com arcos de rota, puramente ornamentais, que dão certa majestade e elegância à cavalgadura. Como se pode observar, o conjunto cavaleiro-montada dá um quadro que evidencia o aprumo e o bom gosto dos timorenses na arte de vestir e utilizar adornos, quer

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A ilustração fotográfica foi umas das cartas de turismo da província de Timor de então.

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pessoas quer animais que os acompanham e ajudam nos êxitos da existência e a dobrar as dificuldades da vida. No mesmo ano, publicou-se outra fotografia dos guerreiros timorenses de Mambae vestindo os seus característicos trajes, com a respectiva legenda: “esta é uma fotografia dum passado da história etnográfica, como gala das gentes das diversas regiões, em dias festivos. Hoje estes guerreiros, outrora servindo clans, estão integrados nas Forças Armadas da Nação Portuguesa, sua Pátria, grande parte incorporados em formação de voluntários (A Voz de Timor, 12/9/1965, nº317). Timor é uma terra colorida pelas maravilhas naturais, aldeias típicas e diversidade racial ou diversidade somática dos grupos étnicos timorenses regionais como ilustraram as fotografias que A Voz de Timor reportou nas suas páginas, entre as quais “A habitação timorense – casa suro” e “O homem baiqueno, natural de Oé-Cussi, ostentando adornos de prata na cabeça” (17/10/1965, nº 322; cf. Almeida, 1959:XXI); uma “mulher baiqueno (de Oé-Cussi) com adornos de prata na cabeça e brincos nas orelhas” (15/8/1965, nº 313; cf. Almeida, 1959:XXIV) e “friso de camponeses de Oé-Cussi” (3/10/1965, nº 320); “as dançarinas de Viqueque” (24/10/1965, n. 323); “os timorenses de Lóre” (28/11/1965, nº 328), o “porte e dignidade de um chefe tradicional de Timor” (1/11/1970, nº546) e “Casa típica de Lospalos” (27/9/1970, nº 541 – ver o anexo 5), os homens de tocodedes vestidos de traje tradicional, ostentando as pratas e disco de oiro (8/8/1965, nº 312), entre outras.

7.1. Lendas Entre as lendas sócio-religiosas e tradições cosmogónicas que se encontram armazenadas na memória dos timorenses, de geração em geração, temos a história da lagoa de Bé-Malae que foi e é contada em versões eivadas de maravilhoso peregrino e de múltiplos acrescentes fabulosos. Os povos Belos e Kemak, respectivamente da região de Balibó e Atabae, que, desde época remota, disputam a propriedade da lagoa, organizam eventos festivos de dois em dois anos (normalmente, realiza-se no mês de Agosto), sempre a acompanhar o início de cada pescaria, e tal festividade popular persiste até hoje. A direcção d’A Voz de Timor interessou-se pela história desta misteriosa lagoa, pelo que publicou “A pescaria de Bé-malai: uma tradição que resiste ao desgaste dos séculos (edição de 27/8/1967, nº 407 a 409:1-4). Na edição do nº 519, de 26 de Abril de 1970, reeditou o excerto do texto “A Pescaria de Bé-malai: mito e ritual”, de Ruy Cinatti, publicado na separata da Revista Geográfia, nº 1. Em 21 de Maio de 1970, A Voz de Timor dedicou uma edição especial na secção de “Timor na lenda e na poesia”, que continha o poema “Morenina 257

de Díli” e “A lagoa Bé-Malai”, de Inácio de Moura; este texto que, de acordo com o autor, foi recolhido junto do katuas, filho legítimo do suco de Aidabaleten, do sub-distrito de Atabae. Na “Página Literária” d’A Voz de Timor (4/6/1970), Inácio de Moura voltou a publicar uma lenda Kemak, “As sete irmãs de Mau-Icun ou as exigências do milhafre?”, tendo sido antes já publicada a lenda Kemak sob o título “A vingança de Bere Lico e Cai-Buti” (1/6/1969, nº 473), mas sem assinatura de autor. Encontraram-se também n’A Voz de Timor, não só algumas lendas do Pe. Ezequiel Enes Pascoal, tais como o conto “Chico-Tó” (25/10/1970, nº 545); “O primeiro habitante de Timor” (4/10/1970, nº 542); a lenda de “BauTai” (1/11/1970, nº546) e “contos Bé-Malae” (8/11/1970, nº 547)154; mas também alguns contos e lendas de Eduardo dos Santos, como “A guerra entre Behale e Liquiçá“ (22/11/1970, nº 549) e “O dilúvio” (27/9/1970, nº 541)155.

7.2. As artes timorenses Na edição de 1/8/1965 (nº311), encontram-se encaixadas duas fotografias para ilustrar um texto de Ruy Cinatti, “Formações florestais, o mangal”, e outras cinco fotografias (que eram esculturas de madeira recolhidas pela Junta de Investigação do Ultramar) ilustrando “O estilo e abstracção da arte timorense”, de Jaime Neves. Com esta reportagem fotográfica “queremos que esta página seja um miradoiro, voltado para as belezas naturais da nossa terra e para a arte do nosso povo, de onde se possa abarcar uma panorâmica que dê ideia exacta do encanto da paisagem física e do relevante valor humano dos portugueses oceânicos” (1/8/1965, nº 311:3). Ainda nesta edição, quando Jaime Neves, em “O estilo e abstracção da arte Timorense” (1/8/1965, nº 311:3-4), inquire-se “Haverá uma escultura, que merece este nome, caracterizadamente timorense?”, logo responde: “não hesitamos em dizer que sim, e aceitamos controvérsia serena se alguém, mais entendido, pretender convencer-nos do contrário”. Acrescenta, adiante que “não se pode, porém, entender a imaginária que comanda a escultura timorense, nem ossatura das obras que a evidenciam, sem se conhecerem os lulics que influenciam a alma timorense, a intensidade passional das crenças populares e os seus ritos agrários e fúnebres”. Estes elementos são a chave da personalidade artística timorense. Na edição de 15 de Agosto de 1965 (nº 313), Jaime Neves, com os materiais da Junta de Investigação do Ultramar, produziu “O engenho dos nossos artífices – um curioso artesanato 154

Estas lendas foram extraídas do livro “A alma de Timor vista na sua fantasia” (1967). Tais contos e lendas foram extraídos do livro “Mitos e lendas de Timor” (1967) de Eduardo dos Santos, publicado pelo Serviço de Publicações da Mocidade Portuguesa. 155

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com aspectos de execução que revelam prodigiosa habilidade” (15/8/1965, nº 313), ilustrado com duas fotografias de mulheres Tokodedes confeccionando bolsas e carteiras de fibras de palmeira e uma mulher Bunak de Bobonaro a fiar o ‘táis’156. As mulheres apresentadas na fotografia utilizavam matéria-prima de primeira ordem para confeccionarem material de artesanato como prova da sua grande criatividade. A Voz de Timor relevava a importância económica e social do “artesanato timorense” (A Voz de Timor, 27/10/1968, nº 442:1-4), elemento integrante da vida cultural das comunidades timorenses, constituído por símbolos icónicos dos estados instrumentais, emocionais e identitários. O significado expressivo, representação física e simbólica do artesanato timorense assentam, pois, num elemento da teoria icónica, como fez notar Carmo D’Orey (1999:471): “o facto de as obras de arte serem expressivas de qualidades humanas, sem que essa expressão seja dependente nem dos sentimentos do artista nem dos sentimentos do espectador nem dos acontecimentos representados ou descritos”. Assim, as propriedades que as obras de arte exprimem encontram-se nas próprias obras (Almeida, 2010). Neste contexto, como seria de esperar, segundo T. S., em “O artesanato timorense” (A voz de Timor, 4/8/1968, nº 430:1-3), os artistas de Atsabe, Lolotoi, Tutuala, Manatuto ou Viqueque estavam bem orientados no sentido de uma maior produção e melhoria de qualidade, seriam capazes de dar à sua capacidade criadora uma maior dimensão. Os artistas destas zonas trabalharam por conta própria e muitos deles viviam praticamente fora de qualquer circuito de produção comercial. Elogiava Ruy Cinatti (1987:13): “O meu amigo timorense, por motivo novo e inexperiente que fosse, era um artista nato. Os timorenses eram senhores de um engeno que, embora se afirmasse já na decoração das casas, da panaria e dos ornamentos – até nos utensilios domesticos – não resultava apenas da imitação pura e simples dos padrões tradicionais. Em cada timorense havia um artista latente que, por vezes, se revelava predestinado”. Acrescenta que os timorenses são artistas artífices e a sua arte não meramente decorativa, mas uma aplicação com uma função prática.

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Estas fotografias foram publicadas por António de Almeida em “Notas sobre artes e ofícios de nativos Timor Português”, in Garcia de Orta, vol. 7, nº 3, 1959, Lisboa: IICT. Enqaunto a primeira fotografia, devemos dizer que as folhas de palmeira são tranformadas em tiras estreitas, tingidas ou não, entrelaçadas pels habilíssimas mãos das mulheres timorenses (como é o caso da fotografia apresentada), com o auxílio de afiadas facas, confeccionam-se esteira, cestos, sacos, bornais, malas e tabaqueiras, artefactos nos quais se salienta admirável combinação de cores, evidenciada em desenhos geométricos, figuras estilazadas e dísticos em português (Almeida, 1959:447); relativamente a segunda fotografia, podemos dizer que “com o fio do algodão, fabricando panos de diferentes qualidades: grosseiros, simples ou diversas corres, ostentando estes últimos interessantes desenhos geomteircos, estilizações de pessoas e de animais e outros motivos artísticos que os toranm muito apreciados, nomeadamente os que contém retrós e as finas linhas de Macáçar (Celébes, mercadorias estas que têm mito ocorrido para o esmoreciemnto da cultura do algodão em Timor (Almeida, 1959:446).

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Entretanto, a Missão Antropológica de Timor interessou-se em recolher o artesanato timorense, pelo seu valor instrumental, prazer estético e valor artístico. Entre as principais criações de artesanato timorense, destacam-se os trajes ou panaria e cestaria, a olaria, a ourivesaria, assim como o baixo-relevo em madeira, e algumas esculturas. Os trajes típicos timorenses são de uso masculino ou feminino, sendo os de uso masculino normalmente mais espectaculares nos motivos e cores. Os trajes de fabrico tradicional definem-se como ‘táis feto’, para uso das mulheres, e ‘táis mane’, para uso masculino. Há trajes que se usam apenas em situações especiais, que implicam não só o indivíduo, mas também a comunidade, a sua linhagem. Em 1969, encontra-se n’A Voz de Timor (3/8/1969, nº 481:3-6) um artigo, “Onde se fala de artesanato: reforçando uma ideia”, ilustrado com fotografias intituladas “Indicie do artesanato em Timor” e “trabalhos da arte timorense executados em ponta de búfalo”157. Estas fotografias representavam a arte timorense e, por isso, foram certamente divulgadas no norte do território da vizinha Austrália para os turistas conhecerem melhor os aspectos mais salientes da vida e trabalhos artísticos do povo timorense. Como dizia António de Almeida (1959:449), os timorenses dedicam-se à escultura, utilizando habitualmente chifres de búfalo; nesta arte revelam grande sensibilidade e sentido estético. Como instrumental, dispõem de serras, de escopros, de martelos de chifre ou de madeira e de catanas - que sabem fabricar e utilizam na agricultura, na derruba das árvores e como arma de ataque e de defesa. Na verdade, os artesãos timorenses executam trabalhos de arte com ponta de búfalo, demonstrando assim a sua capacidade de prodigiosa imaginação e a sua extrema habilidade, ao ponto de bem poderem servir de modelo aos modernos escultores da estatuária dita concreta ou não-figurativa. É necessário sublinhar que os trabalhos da arte timorense executados em ponta de búfalo são dignos de serem apresentados em qualquer dos mais exigentes certames do mundo, para além de demonstrarem a criatividade imaginativa e intelectiva dos artesões timorenses, em que também revelam um sentimento artístico. A reflexão e as práticas culturais timorenses no domínio da arte evidenciam a coexistência de elementos material e imaterial, ainda com vestígios de crenças populares, ligadas à 157

Estas fotografias pertenciam à Junta de Investigação do Ultramar, nomeadamente a Missão Antropológica de Timor. Em relação do animal búfalo, Ruy Cinatti, em “Motivos Artísticos Timorenses e a Sua Integração” (1987) esclarece que o búfalo é associado ao crocodilo, que o trouxe d’além-mar, via oeste. Segundo os mitos de origem, o búfalo desempenha na sociedade timorense um papel multi-activo, como animal de trabalho, de prestígio, de cerimonial e de sacrifício. Como animal de trabalho, cabe-lhe o piso das várzeas de arroz inundadas; nas trocas matrimoniais constituti parte da prestação masculina [barlaque] e é, também, o animal de sacrifício por excelência, nos ritos propiciatórios, agrícolas e mortuários. A utilização do búfalo ou a sua armação como motivo na decoração simbólica encontram expressão na gravura em madeira, na tecelagem, na ourivesaria e na fundição.

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consciência do devir histórico, e que motivou os timorenses a procurarem afirmar na arte os seus valores referenciais enquanto ser e povo.

7.3. Barlaque Apesar da sua complexidade, a prática cultural do barlaque é um dos usos e costumes mais marcantes e importantes na sociedade timorense. O estudo etimológico do termo desta prática cultural tinha sido já abordado por Basílio de Sá (1961), Pe. Ezequiel Enes Pascoal (1967), Pe. Jorge Barros, Pe. José Quintão e Nicolau dos Reis Lobato. O estudo dos últimos três autores foi publicado na revista católica de Timor Seara – Boletim Eclesiástico da Diocese de Díli, já revista no capítulo anterior. A discussão sobre a questão de prática cultural do barlaque n’A Voz de Timor surgiu quando o poeta português Inácio de Moura escreveu um poema intitulado “Menina da ‘Lipa’ feto de Timor” (8/2/1970, nº 508) nos seguintes versos pejorativos: “Menina da lipa,

o leite materno,

‘feto’ de Timor,

que vai ao ‘bazar’,

vaidosa, bonita,

à horta e ao ‘tébe’,

de encantos mil,

que dança, que ri,

que dá o amor

que descalça sorri

em troca de ‘caraus’

aos inocentes gracejos

e outras alimárias

em troca de beijos

de grandes ‘pardaus’.

húmidos e quentes divide o seu pão

Menina da lipa,

com o seu irmão

‘feto’ de Timor,

que já não tem dentes.

soberba, catita de entontecer,

Menina da lipa,

que troca o amor

‘feto’ de Timor,

por libras, dinheiro,

asseada, elegante,

e outros enfeites

que troca o amor

mais ou menos luzentes

por grande ‘barlaque’

que são o deleite

que é uma vaidade

de pais e parentes

de outra vontade sempre triunfante”

Menina da lipa, ‘feto’ de Timor,

Menina da lipa,

escultura divina,

‘feto’ de Timor,

que vende o amor

261

e nada recebe

que não sabe ler

(que pobre menina)

e ensina a escrever

que paga com o corpo

poemas de amor.

A propósito, Abílio Araújo (timorense), numa “Carta Aberta” – nº 220 de 10 de Março de 1970 – publicada n’A Província de Timor, críticou Inácio de Moura, que, nos seus versos, considerava o barlaque como uma espécie de compra e venda da mulher que nada lucra nesse negócio. Eis a carta de indignação de Abílio Araújo: […] O barlaque ainda não é compreendido, quer por esta incompreensão ser derivada de uma tentativa de explicação errada dada por alguns timorenses (convertidos ao cristianismo, nomeadamente os catequistas) ou à pouca vontade destes no sentido da divulgação da sua essência; quer pela pretensão de pseudohistoriadores quer por forte têm uma explicação ou comentário de outrem e o interpretam (?) por um prisma pessoal e egoísta (A Voz de Timor, 22/3/1970, nº 514:1).

Jaime Neves, por seu lado, em “A propósito duma carta aberta”, defendeu Inácio de Moura: “Timor é a nossa terra adoptiva. Esta adopção não nos permite ficar indiferentes perante assunto que se prende com uma vivência persistente do que resta de primitivo em população com as quais a nossa vida se identificou quanto podia ser”. Considerou a concepção de Abílio Araújo enquanto timorense sobre o balarque como “argumento de engano”, ou seja, “Abílio Araújo tem recalcadas no subconsciente, visões deformadas de factos político-sociais que certa atmosfera intoxicante de pensamentos ao inverso propiciou. Daí o ser levado a raciocínios circulares, obnubilantes das realidades que porventura se situem para além do seu perímetro, raramente concludentes e só por acaso verdadeiros” (A Voz de Timor, 22/3/1970, nº514:1). É normal que Jaime Neves não tenha concordado com a abordagem conceptual do termo barlaque que os timorenses, como Abílio Araújo, Nicolau dos Reis Lobato e Francisco Xavier Amaral, defendiam. Mas não concordamos com a expressão utilizada por Jaime Neves, “Timor é nossa terra adoptiva […] de primitivo em população”, porque a história ensinou-nos que não foi por livre vontade que os timorenses abraçaram a fé cristã e foram acolhidos à sombra da bandeira verde-rubra, mas, sim, por uma violenta força política de divide et impera que Portugal conseguiu controlar e dominar Timor (Pélissier, 1996)158.

158

Este autor, a partir do estudo de fontes portuguesas e holandesas, analisa, nomeadamente, mais de cinquenta campanhas e expedições, necessárias à Monarquia e à Primeira República, para que os guerreiros timorenses se tornassem súbditos portugueses. Neste livro de René Pélissier Timor en guerre: le crocodile et les portugais (1847-1913), o leitor ficará a saber como o governador José Celestino da Silva (1894-1908) foi o grande aniquilador da resistência dos “reinos locais” e um “precursor” da unidade luso-timorense. O que não

262

Barlaque é sigilo ou enigma? Pergunta que Abílio Araújo colocava na sua carta aberta – como disse Jaime Neves – para afastar a hipótese da figuração dum enigma, só considerada ‘pelos estranhos’, pois, uma vez que o esclarecimento provenha de um juízo, mais ou menos fundamentado, talvez haja sigilo a embuçar a noção da realidade. Aliás, em certo sentido, Abílio Araújo explicitou a sua tese sobre barlaque a partir do étimo, para legitimar a sua argumentação, dizendo que “etimologicamente, barlaque ou barlaki em Tétum é a corrupção de berlaki que em malaio significa ‘ter marido’”. Jaime Neves, por seu lado, continuou a considerar a tese de Abílio Araújo como “um equívoco e uma traiçãozinha da etimologia”, dizendo que “não nos parece assim, que de qualquer forma berlaki possa exprimir ter marido senão na medida em que neste caso exprimiria também ter mulher. O que, a ser assim, invalidaria o argumento de Abílio Araújo no sentido em que o utiliza”. Abílio Araújo adiantou que “O hafólin, termo que em Tétum significa valorizar, é o tipo de casamento com dote. Chama-se barlaque, segundo o conceito actual o casamento acompanhado de hafólin. Aqui estamos: não há termo algum que nos faça entender compra ou venda da mulher, porque o próprio hafólin não é mais do que um contrato de casamento de repercussão universal”. Mais uma vez, Jaime Neves não concordou com a explicação de Abílio Araújo, considerando o seu argumento como “confuso”, porque este adiantou a sua tese de que “Hafólin ou hafoli significa, na linguagem corrente, ajuste de preço, no âmbito da procura e da oferta. Vai-se ao bazar (mercado) pergunta-se a um vendedor: ne folin hira? (quanto custa isto). Resposta às vezes: hafoli ba? (quanto oferece?). Retruca o comprador: hó maca hafolin! (diga você o preço). Hafolin mostra-se assim um contrato de compra e venda, com preço previamente ajustado. Não envolve qualquer ideia de dote” (A Voz de Timor, 22/3/1970, nº 514:3). O argumento de Abílio Araújo referido não é uma “ideia confusa”, porque ele empregava o termo hafolin ou hafoli aos negócios do mercado, não no sentido de compra e venda da mulher. Enquanto Jaime Neves, no seu ideário, não hesitou de tirar uma conclusão errada de que o termo “Barlaque e hafolin são sinónimos da mesma ideia. O que pode haver é barlaque ou hafolin com tau-o, rai-rua ou ne-nó, dote da noiva. Mas isto faz logo aumentar o preço do barlaque” (A Voz de Timor, 22/3/1970, nº 514:3).

impediu a eclosão e o esmagamento assaz sangrento da última grande revolta (1911-1912) contra a Administração colonial. Sem maniqueísmo e com uma atenção aos pormenores inigualada até hoje, esta obra faz cair por terra alguns mitos relativos à presença portuguesa na Oceania.

263

Na edição de 19 de Abril de 1970 (nº 518), Inácio de Moura agradecia a Jaime Neves ter feito a sua defesa, também “pelo valioso contributo que a sua oportuna intervenção no seio da cultura portuguesa acaba de prestar à cultura ultramarina e muito particularmente pelas elogias referências críticas com que me distinguiu, e que muito me envaidecem […] Integralmente reconhecido e admirador, Inácio de Moura, Atabai – Primavera de 70” (A Voz de Timor, 19/4/1970, nº 518:2). Francisco Xavier Amaral, em “Nota de abertura a propósito duma polémica aberta” (A Voz de Timor, 10/5/1970, nº 521:4), manifestou o seu apoio à tese de Abílio Araújo, dizendo que o barlaque, hafolin ou hafoli é “um casamento valorizado, não só no material e trocas de bens, mas também no aspecto moral, porque o casamento desta ordem estabelece a mulher como um objecto de alto valor inacessível a qualquer”, não poupando críticas a Inácio de Moura: “Não é qualquer Bere Mau que vai enfrentar barlaque, porque a rapariga vende o amor por carau, cavalos, etc., (o sublinhado pertence ao Sr. Inácio de Moura)”. Xavier Amaral adianta que os nubentes constituem apenas motivo para a aproximação e consolidação dos laços de parentesco com uma responsabilidade colectiva baseada na consciência de um amor conjugal e não no sentido de amor forçado. Já na edição de 17/5/1970 (nº 522), Jaime Neves voltou a sobresaltar com um artigo intitulado “No desdobrar duma carta aberta – Luz, mais luz”, uma contestação ao artigo de Nicolau dos Reis Lobato sobre a prática cultural do barlaque, inserto no nº 175 da Seara – Boletim Eclesiástico da Diocese de Díli, publicado no dia 2 de Maio de 1970: “Demos o nosso acordo, com reserva implícita mas evidente, à fluida dedução, dum encadeamento lógico impecável, que Nicolau dos Reis Lobato fez, a partir do habani, para concluir (e nos confundir) que, afinal, pela nova fórmula de casamento gentílico, a mulher timorense teria sido redimida da situação degradante que nós víamos (injustamente) no hafoli” (A Voz de Timor, 24/5/1970, nº 523:2). Admita que o povo timorense, ao enjeitar o hafoli, em certa época, e ao esforçar-se por impor a instituição do habani,mostrar uma rebelião surda dos ventres-ao-sol ferozmente combatida mas não totalmente sufocada. No entanto, hafoli, para Neves, não estava destronado; mas, o habani ficara. Para legitimar o seu argumento, Neves recorreu aos versos folclóricos “Um cancioneiro para timorense”, de Ruy Cinatti, que manifestaram uma reivindicação social: “Enquanto não me detenho e mudo a vida nos braços, alegro fora do mundo, o choro dos desgraçados. Acalmo na terra inteira o choro dos desgraçados”. A hipótese de Jaime Neves a citar os versos de Cinatti não estava colocada no lugar certo, pois a

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contestação do Cinatti era criticar as injustiças sociais praticadas pelos senhores europeus, e não propriamente destacar o choro dos desgraçados na prática cultural do barlaque. O chefe da redacção d’A Voz de Timor não escondeu a sua discordante opinião com algumas interpretações de Nicolau dos Reis Lobato, considerando-as ilógicas. Acrescentou Neves que “não nos custa nada aceitar, como base de investigação, a hipótese de que os valores que o homem entregue aos pais da noiva com a qual pretende consorciar-se sejam para compensar a dívida de que os pais se julgam credores, consubstanciada num montante do barlaque (entendido como válido, arbitrário e convencional, resultante de quanto teria custado a mulher, em canseiras e dinheiro a ter, criar e educar)” (A Voz de Timor, 21/6/1970, nº 527:3). Neves continuava a defender no seu ideário, desta vez, legitimando-o com tese de Alberto Osório de Castro (1943 [1996:121]), que dizia: “A noiva é comprada ao pai ou chefe da família, por búfalos, porcos, luas de oiro ou prata, espadas macassares ou catanas ou pelo serviço do noivo em casa do sogro até completar o pagamento do preço ajustado do barlaque, serviço que só por vezes a morte faz terminar, de tantos juros e trejuros a que se multiplica o preço primitivo (casamento por servidão)”. Parecia que Neves não se lembrava do “casamento por servidão ou por interesse” praticado na cultura ocidental ou na cultura judaica, a propósito do qual bastaria olhar para a narrativa bíblica: “Jacob filho de Isaac e Rebecca, para se casar com Raquel, filha do irmão da sua mãe, teve de trabalhar setes anos e mais sete, porque o pai da rapariga no fim dos primeiros sete anos, não lhe deu logo Raquel mas Lia, a filha mais velha e, só findos os outros sete anos, conseguiu autorização para casar com Raquel. Jacob aceitou a proposta e, mais tarde, tomou-a por sua mulher”. Há também exemplos de casamentos por interesses políticos e económicos, como sucedia na Europa monárquica, quando os pais dos príncipes negociavam o casamento dos seus filhos legítimos. Será que estes não eram “casamentos por servidão ou por interesse”? Quer-nos parecer que, Jaime Neves e outros autores (os missionários), que definiam o hafolin ou hafoli, ou barlaque como casamento de compra e venda da mulher, não queriam que os povos não ocidentais daquela época soubessem do verdadeiro primitivismo cultural ocidental, que também teria a mesma função, pois as mulheres eram compradas e escravizadas para responderem à necessidade sexual dos senhores da classe superior, ou, se calhar, não queriam correr o risco de dizer que na Europa também eram praticadas as tradições denominadas “Senhores e escravos”, explicitadas por Hegel na Fenomenologia do Espírito. Para destruir tal expressão, Hegel faz notar quão importante e decisivo é o 265

reconhecimento do outro como pessoa, isto é, a importância da alteridade para a nossa própria completude. Como explica Alex Honneth, citado por Pissarra-Esteves (2003:95-96), “os sujeitos humanos dependem constitutivamente de uma aceitação em termos normativos por parte dos outros para formar as suas identidades, na medida em que eles só podem afirmar as suas pretensões de ordem prática e objectivos com base na reacção positiva dos seus semelhantes”. Após uma observação cuidadosa, Francisco Xavier Amaral, (21/6/1970, nº 527:) debruçou-se novamente sobre o tema do barlaque e, desta vez, em linguagem filosófica, criticou as interpretações de Jaime Neves sobre esta prática cultural timorense, dizendo: “congratulemo-nos com tanta cultura, mas não baralhemos ‘camaruas, barlaque, fen, cabem’ com conceitos político-sociais em que a intelectualidade se aplicou […] resta, portanto, que barlaque é um casamento segundo os usos e costumes timorenses, ilibado de qualquer noção de compra e venda de mulher. Dele fazem parte integrante as trocas de bens entre os parentes. Não existe acto coercivo na escolha do marido nem da parte dela escravidão”. De resto, Jaime Neves, em “Ainda Barlaque – palavras serenas” (19/7/1970, nº 531:2), não escondeu o seu reconhecimento (de forma irónica) pela capacidade de três timorenses (Abílio Araújo, Nicolau dos Reis Lobato e Francisco Xavier Amaral), que contribuíram para o debate e defenderam os seus pontos de vista, por isso, adiantando que “já não há possibilidade nenhuma de encontro e conciliação entre o nosso pensamento e o deles”. Porém, “o mais curioso é que, no fundo, todos estamos a pugnar, cada um à sua maneira, pela dignificação da mulher timorense, isto é, um dos sinais positivos da polémica”. Noutro sentido, Neves caracterizou os três opositores timorenses como uma espécie de egocentrismo étnico que, julgando-se aptos a darem lições aos ocidentais sobre a matéria do barlaque, resvalaram, insensivelmente, para racionalizações das suas próprias crenças e afectos e vieram à liça com argumentos de ordem sentimental, literária e de certa oralidade descritiva, com interesse, mas longe de adiantarem algo na definição que se pretendia alcançar. A finalizar o poema “Menina da lipa feto de Timor”, Inácio de Moura desvalorizou a capacidade intelectual das mulheres timorenses: “Menina da lipa feto de Timor, que não sabe ler e ensina a escrever poemas de amor”, ou seja, as meninas timorenses daquela época eram analfabetas, nomeadamente as de lipa. A propósito, salientaremos que, ainda nos anos 50, até 70, do século XX, em Portugal, existiam, e ainda existem meninas de ‘saia’ nas mesmas condições159. 159

ler

O Instituto Nacional de Estatística (INE) registava em 1970, 31% de de mulheres portuguesas que não sabiam nem escrever. Os homens analfabetos eram 19,7 por cento (fonte:

266

8. Considerações finais Como tivemos oportunidade de explicar noutro contexto, nomeadamente no caso da imprensa católica Seara – Boletim Eclesiástico da Diocese de Díli, deu-se especial destaque às actividades de missionação, juntamente com o governo colonial da província de Timor, com vista a assegurar a soberania portuguesa nesta longínqua parcela do império até à data da invasão indonésia. Na mesma linha política editorial adoptada pela imprensa colonial, A Voz de Timor auto-caracterizou como um jornal português e cristão. Por isso, difundiu temas relativos à cidadania portuguesa como valor humano, social e cristão. Enquanto a Seara publicou a notícia “Por que a Nação chora” (Seara, 1968, ano 3, nº131), de Agostinho Tibar, que se debruçava sobre os princípios perfeitos da obra executada por D. Henrique, D. João I até Salazar, que trabalharam para o “bem da nação portuguesa”. A Voz de Timor também não deixou de transcrever a história de um Portugal multirracial e multicultural, em frases como “somos portugueses de Minho a Timor”, “este povo português no rincão Oceânico”, entre outras. Além de traçar um perfil editorial na transmissão das notícias, A Voz de Timor contribuiu também para promover e divulgar a imagem de Timor através da exposição fotográfica nas suas páginas, como sinal de compromisso social e estratégico junto dos serviços de turismo e indústria, e para dar a conhecer Timor ao mundo. Este semanário deu especial destaque às notícias internacionais, da metrópole e restantes províncias ultramarinas, e menos às notícias locais; houve muito menos notícias sobre os timorenses e suas culturas, àqueles se dirigindo crónicas desportivas e notas soltas sobre desporto. Após o 25 de Abril, A Voz de Timor teve grande poder de difusão de informação e tornou-se o único jornal, desvinculado da oficialidade, com mais páginas e maior tiragem. No entanto, a luta de poder entre a FRETILIN (Frente Revolucionária do Timor-Leste Independente) e a UDT (União Democrática Timorense) e a posterior invasão indonésia interromperam qualquer possibilidade de desenvolvimento de actividades de imprensa em língua portuguesa na ilha.

http://www.tsf.pt/paginainicial/interior.aspx?content_id=873224 – consulta a 12/11/2011). E os dados estatísticos mais recentes do PNUD referentes ao ano de 2005: “Estima-se que existiam em Portugal cerca de 658 mil pessoas, com mais de 15 anos, que não sabim ler nem escrever. Os números, relativos a 2005, são do Plano das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Apesar da evolução registada em Portugal ao longo dos últimos 30 anos, os valores ainda estão longe da média apresentada nos restantes países da Europa. No último Censo, realizado em 2001, 9 em cada 100 portugueses não sabiam ler nem escrever” (Fonte: http://www.portugal-on-line.com/t863-analfabetismo-existe-em-portugal - consulta a 12/11/2011).

267

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Terceira Parte A formação da identidade nacional e a agenda dos media de 1975 a 1999

Todos os indivíduos criam os seus diacríticos identitários, reconstruindo-os de acordo com os contactos estabelecidos com outro grupo ou povo. Assim, a identidade étnica é a realização de uma organização social, política e económica que permite constituir as fronteiras e as relações entre os diferentes grupos. Neste sentido, importa olhar à origem da identidade étnica timorense, de acordo com Michel Cahem (1994:20): les Timorais, d’origine malaisienne, polynésienne et mélanésienne, sont plus proches des peuples du Pacifique que les balinais ou Javanais d’Indonésie. Par ailleurs ils sont à 95% catholiques alors que l’Indonésie est majoritairement musulmane.

A teoria de Michel Cahem goza da mais elevada consideração por parte dos nacionalistas timorenses, pois estes defendiam que não tinham traços culturais nem religiosos comuns com os indonésios, embora alguns líderes (principalmente da UDT, Apodeti, Kota e Trabalhista) queiram justificar que há uma pegada cultural que os liga com a recente população da Indonésia. É evidente, sobretudo em algumas partes, que o povo timorense é um povo plural e culturalmente diferenciado. Talvez tenha sido por isso que Ramos-Horta destacou que a recente população de Timor provinha de uma cultura melanésia (do Pacífico Sul), da malaiopolinésia (do sudeste asiático) e da cultura cristã católica europeia romana, nomeadamente, de Portugal (Gunn, 1999:14; Mendes, 2005:280). Nesta perspectiva, podemos dizer que a identidade timorense é compreendida como culturalmente formada e, por sua vez, está ligada às identidades colectivas e “outras que formam quadros de referência e sentidos estáveis, contínuos e imutáveis sob as divisões cambiantes e as vicissitudes de nossa história real”. (Hall, 1996:68). A nação de Timor-Leste é constituída por múltiplas identidades étnicas: línguas, crenças, histórias fundadoras dos grupos étnicos, história colonial. Para estas múltiplas identidades, Geoffrey Gunn alertou os timorenses que, antes de definirem a sua identidade nacional, deviam olhar para a evolução da conjuntura internacional, pois esta também trouxe uma nova luz aos jovens timorenses para construírem “um novo Timor-Leste independente” (Gunn, 2001:25) e, ao mesmo tempo, desafiado pelos efeitos da globalização. Este autor 269

entende que a “cultura” e a “identidade” timorenses são superficialmente uma “duplicidade” identitária, forjando a relação entre cultura e identidade com o nacionalismo. A respeito dos argumentos propostos, é necessário afirmar que esta parte tem como objectivo identificar e articular factores e formas de condução do processo de formação da identidade nacional, nomeadamente a busca de uma clarificação do conceito da identidade timorense. Todo o processo de construção da identidade cultural, étnica e nacional timorense foi conscientemente suportado pelo sofrimento e pela perda de vida de mais de 200 mil timorenses no período da ocupação indonésia. Este violento acontecimento histórico na formação da nação timorense foi o resultado de uma política de descolonização mal feita. Iremos analisar alguns dos elementos que se poderão identificar e articular com o conceito da formação da identidade timorense baseado no projecto de unidade nacional. Centraremos em seguida a nossa análise no enquadramento dos media na divulgação das informações sobre a Resistência dos timorenses, formando uma opinião pública acerca do que tenha acontecido ao povo de Timor. Desde 1975 até 1999, a agenda dos media em Timor ajudou o povo e os líderes da Resistência a difundirem uma cultura colectiva de opinião pública, focalizada na importância de algumas das formas e instrumentos através das quais se pode atingir a difusão de informação e a inculcação do projecto de libertação nacional do povo Maubere. Se existe um assunto que nos últimos meses de 1999 teve maior destaque nos jornais com frases fortes e fotografias agressivas, é, sem dúvida, a questão de Timor.

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Capítulo 6 Para a clarificação do conceito da identidade timorense

1. Consideração prévia

Há duas maneiras de abordar as questões da identidade colectiva, etnicidade e nacionalismo timorenses. Por um lado, há a chamada visão essencialista, que salienta determinadas características de um grupo para definir os traços comuns baseados no patamar da personalidade colectiva e da unidade, bem como a sua existência supostamente multissecular. O outro modo de ver é abordar as distinções com os outros grupos e as suas razões na partilha de uma memória colectiva. As identidades colectivas são criadas, apagadas e reformuladas, consoante o contexto e o momento conjuntural. Onésimo Teotónio Almeida, num estudo sobre a identidade cultural açoriana, tece algumas considerações que podem, sem dificuldade, ser extrapoladas para os contextos coloniais e pós-coloniais: “A questão da identidade surge sempre num contexto de confronto. Normalmente, não nos apercebemos dela quando vivemos no seio de uma comunidade sem contacto com outra, ou outras. [...] Historicamente, o ressurgimento da preocupação com a identidade está, em regra, ligado ao confronto com uma realidade exterior. [...] É ao confrontar-se com outra cultura que um nacional se apercebe da diferença entre essa e aquela a que pertence” (Almeida, 1995:81). Do nosso ponto de vista, a construção da identidade do povo de Timor confirma por inteiro a tese deste autor. Portugueses, japoneses e indonésios (entre outros) representam bem a enorme diversidade de culturas com que se confrontou o povo timorense, tomando assim consciência da sua própria identidade (Paulino, 2009:19). A partir da tese de Onésimo Teotónio Almeida, compreende-se que as experiências do colonialismo e do imperialismo são, na verdade, um facto determinante no desenvolvimento das ideias modernas de nação. Nesta perspectiva, os colonizadores devem dar mais atenção às formas de identificação nacional dos colonizados. Assim, se, por um lado, o Estado-Nação imperial teve sempre necessidade, para a sua autolegitimação, de apelar para uma imagem de unidade e permanência que encontrava na missão civilizadora um dos mais importantes esteios, por outro, a afirmação dos movimentos anti-colonialistas fez-se precisamente, e em grande medida, pela assunção de discursos nacionalistas exacerbados. A nação timorense – que, como foi referido muitas vezes, é constituída por diversos ‘reinos’ com as suas especificidades culturais –, tem igualmente a ver com um sentimento de 271

identidade comum, construído ao longo da sua história. Em todo o caso, como nos adverte Anthony Smith na sua obra A Identidade Nacional, importa ter presente que os atributos da comunidade étnica são, em grande medida, os mesmos que servem para identificar a nação, por ele questionada como “um nome colectivo, um mito de linhagem comum, memórias históricas partilhadas, um ou mais elementos diferenciados da cultura comum, a associação a uma terra natal específica e um sentido de solidariedade em sectores significativos da população” (Smith, 1997:37). Partindo deste pressuposto, a identidade nacional timorense é alimentada ainda hoje pelas tradições e costumes. Quer isto dizer que, apesar de a nacionalidade dos timorenses ter sido constituída pela natureza política, acaba por ser resultado de uma instância simbólica, fruto de uma incessante construção discursiva cultural, que é um sistema de representação. Deste modo, não importam as diferenças de qualquer ordem que caracterizem os grupos étnicos de uma nação. A ideia de uma identidade cultural nacional acaba por levar a uma unidade em que a cultura é agora o meio partilhado necessário, o sangue vital, ou, talvez, a atmosfera mínima partilhada apenas no interior da qual os membros de uma sociedade podem respirar, sobreviver e produzir. Para uma dada sociedade, ela tem que ser uma atmosfera na qual podem todos respirar, falar e produzir; ela tem que ser, assim, a mesma cultura (Gellner, 1983 e 1998; Hall, 2002). Isto é, produzir a identidade própria como um meio para eternizar as tradições e os costumes, tratando-se de uma tradição eminentemente existencial – juntamente com os seus costumes impregnados de vivência material e espiritual – que inspira a sua vida e que a liga profundamente à terra-mãe.

2. O colonialismo português e o discurso da definição do conceito de identidade timorense Antes de mais, impõe-se um esclarecimento sobre a construção da identidade timorense. Não pretendemos limitar-nos aqui aos agentes políticos timorenses, mas incluir também as possíveis descrições de outras histórias relatadas pelos portugueses. Segundo alguns, os timorenses eram um povo sem religião definida, um povo animalesco, considerados até como um povo bárbaro, enquanto outros afirmavam que, ainda antes de os portugueses introduzirem o seu sistema administrativo na ilha de Timor, já os timorenses tinham a sua própria organização e eram um povo pensante e acolhedor.

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Quando surgiu a Revolução de 25 de Abril de 1974 em Lisboa, os timorenses fundaram cinco partidos políticos e, cada um à sua maneira, começou a clarificar e esclarecer o conteúdo da identidade nacional timorense. Moisés do Amaral (membro fundador da UDT) defende a ideia de que, “antes da unidade Indonésia, Timor era já uma entidade cultural, política, religiosa e historicamente constituída” (apud Duarte, 1988:11). Abílio Araújo (FRETILIN) sustenta que a existência da “Nação Timor” começa com a sua proclamação como República Democrática de Timor-Leste, em 28 de Novembro de 1975. Abílio Araújo (1977:31) fez uma evocação poética da dura condição de timorense, sobretudo no sentido de ser pobre, nestes termos: “nós, os pobres, moramos em terrenos pedregosos, plantamos o bétel e não germina, plantamos a areca e não dá rebentos! Nós, os pobres vivemos nos beirais, quando erguemos os olhos caem-nos lágrimas, tal como as gotas de chuva que caem dos beirais! Nós, os pobres procuramos caminhar pelos relevos velhos; se caminharmos pelos píncaros das serras, o vento sopra-nos para muito longe! Nós, os pobres, só temos um ‘tais’ (traje de Timor); com ele nos cobrimos à noite e com ele nos cingimos de dia” O autor, enquanto político, fez uma hábil conjunção entre a poesia e o senso comum para persuadir o seu auditório sobre as tribulações da caminhada colectiva de todo um povo em busca da identidade nacional, e refere que “D. Boaventura [é] o símbolo de um esforço patriótico na conjugação dos reinos de Timor para uma acção unitária. A revolta de toda uma sociedade que quis libertar-se do colonialismo português [foi] para salvaguardar a racional correspondência entre as estruturas políticas, sociais e económicas” (Araújo, 1977:158-159). A raiz da “Nação Timor” expressa poeticamente por Abílio Araújo mostra-nos que o conceito por ele definido se funda num quadro comum identitário e cultural – que pode ser totalmente considerado como a transmissão de um património histórico, ou herança –, o qual constitui a realidade da afirmação identitária do povo timorense, também “Pátria Maubere”, referida várias vezes por Xanana Gusmão num dos seus discursos. Os líderes políticos de Timor-Leste não têm descurado, nos seus discursos, a questão da construção da identidade nacional timorense. Todavia, como nos ensina Mendes, a autenticidade e a instrumentalização da identidade são dois lados da mesma moeda (Mendes 2005:262). O que importa é que todos os políticos estejam conscientes da necessidade de formar uma identidade nacional que agregue todos os timorenses, qualquer que seja a sua pertença étnica originária. Depois da criação do CNRM, em 1987, abriu-se caminho para a valorização das diferenças ideológicas e de opinião, de modo a contribuir para uma noção de identidade nacional que comporte a pluralidade de crenças e de opiniões. Todavia, como 273

forma de garantir a estabilidade de uma identidade nacional recentemente conquistada, a Igreja e a Resistência esforçaram-se por alertar o povo contra a propaganda indonésia e os seus cincos mandamentos de unidade na diversidade da Pancasila, símbolo da união da Indonésia. Xanana Gusmão contrapõe às doutrinas da Pancasila a ideia de que a identidade timorense foi adquirida ao longo dos séculos sob o domínio português e deve ser entendida como uma identidade histórica e cultural plena, capaz de identificar e especificar as raízes de um povo (Mendes, 2005:175). Neste sentido, os Nacionalistas e a Igreja Católica trabalhavam em sintonia quanto à necessidade de congregar o povo para contrapor às doutrinas ideológicas indonésias de ‘Binheka Tungal Ika – unidade na diversidade’ derivadas do Pancasila. Xanana Gusmão, num documento por ele assinado e datado de 1989, faz uma análise global sobre o sentido da identidade nacional timorense, e questiona com profundidade duas ideias essenciais. Por um lado, faz uma crítica à colonização portuguesa e acusa-a de fomentadora do caos em Timor-Leste, embora, por outro, reconheça que a colonização constituiu um elemento unificador. Eis a sua explicação: “Muito embora as tradições orais – sempre permanentes – (que constituem o único – e, por isso mesmo, sagrado – veículo de transmissão histórica) salientem como uma fatalidade histórica e ponto fundamental de viragem o facto de alguns reinos terem acolhido as primeiras presenças dos portugueses (os quais, posteriormente e ao longo dos tempos se traduziram pelo domínio do chicote e da palmatória, das leis e do bando), encontra-se guardado entre o povo de Timor-Leste um sentimento de carinho e de respeito pelo ‘branco colonialista que tanto mal nos faz’” (Gusmão 2002:53). Importa dizer que, apesar dos aspectos negativos da colonização portuguesa – como em quase todos os tipos de colonização, pela destruição de alguns sistemas sócio-políticos dos reinos autóctones, considerada como uma fatalidade histórica, pois os timorenses viviam sob a lei do chicote, uma lei que os obrigava a obedecer às ordens da autoridade colonial – Xanana Gusmão (2002:54) coloca a tónica na existência de uma identidade herdada, “a cristianização que, se não alterou radicalmente os fundamentos morais da sociedade indígena, conseguiu no entanto, impregnar-se na espiritualidade do povo timorense”, de que resultou um sentimento de aproximação e de relação com o passado histórico, reforçando assim uma ideia de miscigenação cultural e religiosa. Na crítica que faz aos excessos cometidos pela colonização portuguesa, Xanana Gusmão faz questão de valorizar a cultura, a história e a língua herdadas dos portugueses, como elementos unificadores da identidade do povo timorense, de par com “os elementos que identificam o povo Maubere: a sua etnia – identidade étnica, a sua histórica – identidade 274

histórica, a sua cultura – identidade cultural, a sua religião – identidade religiosa. [...] conformemente com as diversas normas e com o direito internacional, a secular dominação portuguesa contribuiu assim, para definir um espaço território, identificação como TimorLeste, habitado por um povo que adquiriu uma personalidade própria” (Gusmão, 2002:54). Contudo, em texto, datado de 1986, Xanana Gusmão faz-nos saber que a colonização portuguesa bloqueou totalmente o espírito dos timorenses que queriam reafirmar a sua identidade própria, pois, antes de os portugueses desembarcarem na ilha, Timor já era uma nação, e que a identidade histórica dos timorenses não é um “simples efeito de uma situação colonial”, mas, sobretudo, uma identidade que “remonta aos recuados tempos antes da entrada dos colonialistas portugueses”, sublinhando que, se “não fosse a intrusão do colonialismo português, o povo de Timor-Leste teria seguido um rumo próprio, teria definido uma estrutura sócio-política que esboçaria os fundamentos de um Povo e de uma Pátria. Com a entrada dos colonialistas, esta marcha ficou bloqueada” (Gusmão, 2002:179). No plano de construção nacional da identidade há um discurso político de matriz revolucionária, abordado pelo historiador, ex-líder da FRETILIN e actual presidente do Partido Nacionalista Timorense (PNT), Abílio Araújo. Ramos-Horta (1994), por seu lado, manifesta abertamente a influência dos movimentos nacionalistas, especialmente aqueles que lutaram contra a colonização portuguesa, que, no fundo, é uma resistência comum que procura salvaguardar a identidade timorense, fortalecendo assim a tradição de resistência ao intruso colonial português Nesta sua descrição histórica, afirma que a construção da identidade nacional de Timor foi defendida pelos timorenses ao longo dos 450 anos da presença portuguesa, merecendo particular relevo a luta iniciada em 1911 por D. Boaventura contra todas as injustiças sociais aplicadas pelo governador colonial e pugnando pela liberdade e identidade do povo de Timor. Este acontecimento terá estado na origem “de uma longa série de levantamentos populares contra a dominação portuguesa” (Ramos-Horta, 1994:69), considerando D. Boaventura como “pai fundador” proto-nacionalista; na mesma linha situa-se o levantamento de Viqueque em 1959 contra tal dominação colonial. Quer Abílio Araújo quer Xanana Gusmão, bem como Ramos-Horta, assumiram a sua posição enquanto nacionalistas e teceram profundas críticas à ordem e desordem fomentadas pelos agentes coloniais, pois foram eles quem impedia os timorenses de seguirem o seu rumo em direcção a uma pátria, e consideraram a colonização portuguesa o principal actor que impediu a hegemonia unificadora de um reino sobre os outros, porque temia que surgisse um sentimento mobilizador de unidade contra a instrução colonial. Quer isto dizer que o mundo 275

conhece bem que a determinação dos timorenses não foi efeito de uma raiva pessoal contra a presença dos portugueses em Timor. Foi, sim, efeito de uma consciência colectiva que liga os timorenses ao espírito heróico de D. Boaventura e de outros heróis em cuja alma heróica os seus descendentes acreditam, e cujas virtudes lhes adornam o coração, que há-de unir os espíritos aos esforços dos seus descendentes, felicitando assim um povo que deu tantas provas de heroísmo para assegurar a sua identidade histórica, cultural e crenças próprias. Do ponto de vista histórico, a presença portuguesa em Timor-Leste desde o século XVI até uma parte do século XX foi uma presença “insignificante”. Uma presença colonial “insignificante”, referida pelos líderes nacionalistas; quer dizer, por um lado, uma presença que pouco desenvolveu tanto as infra-estruturas como a economia do território; “insignificante” também porque, ao longo de 450 anos, não houve mudança política e económica de relevo na sociedade timorense; “insignificante” ainda porque, aquando da Segunda Guerra Mundial, não foram os portugueses que defenderam fielmente a sua Pátria Portuguesa, mas foi a maioria dos timorenses quem defendeu e edificou o glorioso nome da Pátria Portuguesa em Timor. Nessa guerra, foram os timorenses que mais sofreram, não os portugueses. Por isso, qualquer revelação sustentada por alguns historiadores ou testemunhas directas dos portugueses que naquele tempo se destacaram no território é apenas uma parte da verdade que valoriza o lado dos portugueses, esquecendo as consequências da guerra sentidas pelos timorenses. Basta olhar para a realidade histórica do pós-guerra mundial: a seguir à retirada dos nipónicos, os portugueses começaram a instalar-se novamente em Timor sem consentimento e sem entusiasmo dos timorenses, como nos adverte Ramos-Horta (1994), e os timorenses assistiram ao regresso dos chefes de posto, sipaios, ao imposto domiciliário, e à mediocridade da colonização dos portugueses, que durante a guerra fugiram para Austrália, para viverem, bem, na terra do Kanguru, donde voltaram como heróis que não pisaram o solo timorense durante a guerra para defender a sua amada Pátria Portuguesa. Foi uma atitude pouco digna dos portugueses na sua colónia asiática, uma atitude que impediu os timorenses de se reunirem ao movimento nacionalista surgido na Ásia, impossibilitando-os de formarem a sua identidade própria como Estado-Nação. Não se negam, porém, as negociações que Salazar fez a favor de Timor, cedendo a base militar das Lajes, nos Açores, aos EUA. Foi uma estratégia política do Estado Novo que os timorenses não devem esquecer nem apagar, pois, sem tal decisão política, o destino do actual Estadonação Timor-Leste seria, talvez, semelhante ao da Irian Jaya ou dos aborígenes da Austrália.

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Depois da Segunda Guerra Mundial, as Nações Unidas tomaram algumas medidas relativas ao direito dos povos colonizados, exigindo aos países colonizadores que atendessem às aspirações das suas colónias à autonomia territorial até à independência total. Esta medida foi-se exprimindo através de mecanismos como o da Assembleia-Geral da ONU que, em 1960, reconheceu o colonialismo como uma violação dos direitos humanos160. Mas o Timor Português foi incluído na lista de ‘Territórios Não Autónomos do Comité Especial de Descolonização da ONU’, afirmando-se o direito do seu povo à autodeterminação. Tal perspectiva manteve-se até à Consulta Popular supervisionada pela ONU em Agosto de 1999. Em resposta a este consenso internacional quanto à necessidade de uma possível descolonização, Portugal, por sua vez, em 1951, começou a criar novos estatutos às suas colónias com a nova denominação de “Províncias Ultramarinas”. Foi como um prolongamento do seu poder paternalista, concebido para dar melhor educação aos seus súbditos coloniais e acalmar as críticas da comunidade internacional, mas nada fez, como se vê, no caso de Timor, que se mantinha isolado. Em Timor-Leste, não havia qualquer movimento de independência semelhante aos nascidos nas colónias africanas de Portugal, mas a vida dos timorenses estava longe de ter mudado, quer no aspecto político, das infraestruturas e da educação, quer no sector económico. No que diz respeito a esta questão, D. Martinho da Costa Lopes frisou que, em 400 anos de colonização portuguesa, não houve um único advogado, engenheiro ou médico que tivessem nascido em Timor (Lennox, 2000:62). Os colonizadores, como disse Xanana Gusmão (2002:3), não deram nenhuma igualdade e liberdade significativas aos timorenses para decidirem o seu destino, continuando a ser maltratados, e os seus direitos de propriedade foram abusados e roubados pelos portugueses. O mesmo assunto foi também referido pelo então Bispo de Díli, D. Carlos Filipe Ximenes Belos, “Vi, muitas vezes, alguns portugueses levarem vinho de palma que estava a ser vendido pelos nativos, sem lhes darem qualquer dinheiro. E as pessoas tinham percorrido um longo caminho a pé até ao mercado, na expectativa de regressarem com algum dinheiro. As pessoas eram oprimidas e não podiam defender-se. De cada vez que assistia a estas coisas, o coração doía-me e gritava dentro de mim. Mas não podia fazer nada” (Kohen, 1999:88). Aliás, só em 1956 é que a utilização de chicotes e bengala foi proibida pela autoridade colonial e lançada outra campanha de

160

Resolução 1514 (XV) da Assembleia Geral da ONU, 1960: “Declaração sobre a Concessão de Independência aos Países e aos Povos Coloniais.”

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portugalização dos timorenses através da educação, mas a prática de chicotadas manteve-se (Lennox, 2000:63)161 até à data da sua saída em 1975. Luís Filipe Thomaz (1994:603) sustenta que “antes de 1974 não se conheciam em Timor autonomistas”. Apesar de se saber que não havia nenhum movimento autonomista significativo nos anos 50 e 60, a independência da Indonésia teve um forte impacto em algumas revoltas em Timor, como no caso da revolta de Viqueque. Do ponto de vista político, a referida revolta era, por um lado, um movimento de tentativa na integração à Indonésia, que a autoridade colonial considerou uma revolta fomentada por agentes secretos e de espionagem indonésios infiltrados (entre eles, um oficial de nome Gerson162), que desestabilizou o território; por outro lado, os timorenses, após o movimento de 25 de Abril, consideraram-na um movimento de matriz nacionalista que procurou destruir a base colonial portuguesa em Timor. Embora a história nos mostre que os dirigentes da APODETI eram, na sua maioria, proveniente deste movimento, isto não significa que a revolta de 1959 em Viqueque tivesse sido uma acção política de integração de Timor na Indonésia, como a autoridade colonial costumava dizer. Aliás, para Ramos-Horta (1994), o mais importante daquele movimento foi a chamada de atenção para a autodeterminação de Timor-Leste como um país independente. Reflectindo melhor sobre as teses apresentadas, chegámos à conclusão de que, do movimento de ‘rebelião’ insurgido em Viqueque, podiam advir efeitos negativos e até desastrosos para os timorenses, sobretudo no aspecto político, em virtude da falta de preparação em matéria política, para além da falta de quadros devidamente capacitados e competentes para assumir os cargos na administração pública. A tese de alguns líderes nacionalistas (nomeadamente, o laureado do Nobel da Paz) e académicos timorenses caracertiza as personagens do movimento de Viqueque como sendo nacionalistas, por se terem revoltado contra a presença portuguesa. Embora esta tese seja talvez reveladora da verdade, não apaga a hipótese de que o referido movimento possa ser considerado também uma acção mais propensa para a integração de Timor na Indonésia. Assim, a revolta, em si, foi um movimento ‘nacionalista obscuro’, pois a estratégia principal era estabelecer um estado à sombra da bandeira ‘rubra-branca’ (merah putih). Se, na altura, o governo colonial português não tivesse controlado de imediato o dito movimento, Timor teria sido 161

A respeito desta prática de chicotadas, Xanana Gusmão (2002:3) recordou o que tinha visto no posto administrativo: “[P]resenciei no posto administrativo, as chicotadas a presos gemendo sobre pedrinhas e ao sol e com os pés algemados. Não poucas vezes também, nas minhas fugidas às ‘guardas’ com os filhos dos liurais, colegas da escola, presenciei ordenanças e moradores saindo ou regressando com o ‘bando’ trazendo infractores ensanguentados, por faltarem aos trabalhos forçados nas estradas ou aos turnos obrigatórios de prestação de serviço como asu-lear [trabalhador braçal, ou escravo] em casas dos colonialistas, chinas e assimilados”. 162 Informação obtida de um ancião de nome Bernardo Pinto, na altura liurai de Uatu-Carbau,

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transformado numa província indonésia. E a independência de que hoje todos usufruímos seria apenas uma mera utopia, ou talvez nem houvesse. Apesar de Ramos Horta ter feito uma dura crítica à autoridade paternalista portuguesa, reconheceu nela três elementos fundamentais que constituem a identidade timorense: a etnia, a língua e a história. Para ele, estes três elementos são indicadores que alicerçam a tradição de resistência no sentido de autodeterminação, isto é, reformulam o seu pensamento, afastando o espírito do radicalismo essencialista demonstrado nas suas primeiras intervenções na Assembleia das Nações Unidas. Assim, à semelhança de Xanana, Ramos-Horta destaca a importância da colonização portuguesa na formação da identidade timorense: “Timor-Leste foi colonizado durante quase 500 anos por portugueses e forjou uma identidade cultural e religiosa” (Ramos-Horta, 1994:34). A utilização do verbo “forjar” por Ramos-Horta é uma afirmação de reconhecimento dos valores históricos e culturais coloniais no sentido de evidenciar o contacto entre portugueses e timorenses ao longo dos tempos. É um verbo que pode contrapor à expansão ideológica da Indonésia junto de um povo a quem, durante séculos, foi permitido viver em total liberdade nas suas terras ancestrais, com contactos ténues com a autoridade colonial portuguesa, omnipresença indonésia essa, em si, violadora e desestabilizadora da sua integridade. A independência, diz Xanana Gusmão, só fará sentido “se a soubermos cuidar com programas dirigidos a tirar o povo da miséria em que se encontra e a orientar a juventude na futura gestão do país” (apud Mendes, 2005: 277), mesmo se “reforçar a identidade vai custar”163. Sobre esta importante questão da identidade nacional, José Ramos-Horta aponta para um caminho de valorização de uma identidade plural: “um estado independente não tem de ser homogéneo, do ponto de vista étnico, cultural e religioso. Existem inúmeros exemplos de estados multiétnicos que vivem em paz, partilhando de preocupações e de um destino comum” (Ramos-Horta, 1994:34).

3. Memória e nacionalismo timorense na construção da identidade nacional A narrativa da nação é contada e reforçada de várias maneiras. Isto é, a história da nação é “contada e recontada na história e na literatura, nos media e na cultura popular” (Hall, 2002:52). Nessa acepção, as histórias são contadas e recontadas pelas experiências 163

Entrevista de Xanana Gusmão concedida a Paulo Dentinho, Março de 2002 (Mendes 2005:271).

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partilhadas, no sentido de reconhecer as perdas, os triunfos e os desastres que lhes dão sentido. Outra é a ênfase dada às “origens, às continuidades, à tradição e à intemporalidade”. Os signos de carácter nacional “permanecem imutáveis, apesar de todas as vicissitudes da história” (Hall, 2002:53). A descrição da nação tem sempre um mito fundador, “uma estória que localiza a origem da nação, do povo e de seu carácter nacional num passado tão distante que se perde nas brumas do tempo, não do tempo real, mas do tempo mítico” (Hall, 2002: 5455). Portanto, a ideia imaginária de construção da nação é também simbolicamente baseada na identidade original de um povo. No que diz respeito à memória da construção de identidade nacional timorense, o que nos vem pela história portuguesa é uma descrição dos actos de lealdade da ‘Coroa dos Reinos Timorenses’ à ‘Coroa Portuguesa’, moralmente manipulada, e o território dividido entre poderes para dominar o território, impondo algumas regras que a ‘Coroa dos Reinos Timorenses’ deveria cumprir, dando-se assim um novo começo à colonização efectiva em Timor. Porém, a lealdade bem construída e bem patente nas novas gerações de timorenses instruídos levou a ‘imaginar’ Timor como uma nação (Taylor, 1999). Esta perspectiva encontra-se bem presente no espírito dos novos timorenses recrutados nas forças armadas portuguesas, levando a ‘imaginar’ orgulhosamente Timor como uma nação. Este sentimento foi afirmado, pela primeira vez, em Outubro de 1975, com a sua adesão e lealdade à FRETILIN, de modo a reforçar a visão de si próprio enquanto timorense. Deste modo, pode dizer-se que a FRETILIN foi a primeira organização política baseada nas massas em TimorLeste que se assumiu como verdadeiramente timorense (Gunn, 2001:22). Neste enquadramento, pode frisar-se que a importância da adesão do grupo timorense das forças armadas portuguesas à FRETILIN teve um carácter genuinamente honroso e patriótico com ideias claras, que é a libertação total do território das mãos do colonizador. Nesta sequência, aceitamos a tese de Benedict Anderson, onde se menciona a comunidade imaginada pela elite daquele partido político, tendo, entre outros pontos de referência, o uso da língua e de outros elementos de Portugal164. Partindo desta ideia, deve dizer-se que a fundação da nação é reforçada pela “invenção das tradições” (Hobsbawm & Ranger, 1994), que pode ser entendida também como um conjunto de práticas normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceites, sendo tais práticas de natureza ritual ou simbólica, que objectivam inculcar certos valores e normas de comportamento por meio da repetição, o que implica automaticamente uma continuidade em relação ao passado. 164

Por fidelidade histórica, Timor-Leste assume estabelecer relações diplomáticas, políticas, económicas e culturais com os outros países lusófonos, a CPLP.

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A ‘invenção das tradições’é realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas. É por isso que a produção discursiva é um dos procedimentos mais utilizados no processo de construção de uma identidade nacional, a par de outro igualmente referido por Stuart Hall, e outros elementos a ter em conta, como o nacionalismo, os ritos comemorativos, ou os “dispositivos mnemónicos de uma dada memória – os monumentos” (Sobral, 2003:1119). Estes conduzem à formação de uma narrativa de integração nacional que fará sentido se perspectivada numa verdadeira política de identidade. José Mattoso (2003:5), com o rigor próprio da linguagem de historiador, refere-se à mesma questão nestes termos: “a identidade nacional resulta, antes de mais, da percepção que os próprios cidadãos têm de formarem uma colectividade humana [...]. Dado que essa colectividade tem uma existência histórica, será necessário [...] não esquecer que a identidade nacional foi revestindo formas sucessivamente diferentes ao longo dos tempos”. Na mesma linha de pensamento, Amin Maalouf, jornalista e autor de As Identidades Assassinas, destaca que “a identidade não é algo que nos seja entregue na sua forma inteira e definitiva; ela constrói-se e transforma-se ao longo da nossa existência” (Maalouf, 2002:33). No que diz respeito ao processo de construção da identidade nacional timorense, há uma relação directa entre a construção da memória e a construção da identidade, isto é, a formação do sentimento de pertença a uma identidade nacional atestada pela ênfase dada ao conceito de homem novo. A participação na luta de libertação lançou esta nova concepção que hoje conhecemos como nova cidadania. É isto que toca no discurso patriótico de modo a dar significado às imagens, símbolos e valores locais, tais como as normas costumeiras de Timor, as casas sagradas, especialmente o direito costumeiro. Estes elementos são utilizados como principal referência na construção e representação identitária165, pois conferem significado à formação da nova nação, isto é, e de algum modo, os fortíssimos sentimentos de pertença a uma identidade nacional induzidos pelo nacionalismo são caracteristicamente instigados por uma relação interpessoal e de imagens colectivas partilhadas. Isto resulta também de uma convergência do poder da linhagem e da consanguinidade, reunidas em torno do conceito-referência de casa, que é muito importante para a afirmação identitária timorense. 165

Para a mesma referência, pode dizer-se que o processo histórico da colonização é um vector principal, pois, através dele a formação de uma unidade nacional foi consumada e diferenciada com a outra região, porém, a este substrato histórico opõe-se um fundo etno-simbólico, dirigindo para a tradição do culto dos mortos e dos lúlik, consolidando a fortíssima estrutura de parentesco, valorizando o conceito de linhagem e família alargada, e o modelo da nobreza autóctone com os seus privilégios inviolados até hoje. Tomamos, portanto, a referênciaconceito da casa pode ser um elemento que fundamenta as formas de tratamento ou de respeito pessoal e colectivo aos valores pessoais e sociais que reforçaram uma identidade sócio-cultural e religiosa, em que também se constituem valores materiais e espirituais.

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Assim, a construção da identidade nacional timorense recorre à memória colectiva, à composição multiétnica e à referência às casas sagradas, com a finalidade de se definirem as referências históricas e geográficas no sentido da reafirmação identitária. De facto, o enquadramento da memória comum timorense na construção da sua identidade é “mais do que uma afirmação étnica do ponto de vista territorial ou no predomínio de determinada etnia; é o resultado da evolução de uma unidade político-administrativa” (Mendes, 2005:234). Quer isto dizer que a identidade territorial é mais do que a língua, o desenvolvimento económico ou a etnicidade. A maior parte dos nacionalistas timorenses foi educada no Seminário de Dare, pois a educação recebida pelos timorenses neste Seminário era menos conformista e conservadora do que no Liceu de Díli, e os padres jesuítas, enquanto educadores, assumiam posições críticas relativamente aos trabalhos colonialistas. Como explica James Dunn (1983:53): “above all, the seminary tended to make the Timorese more conscious of themselves, their country, its colonial predicament and its future”. Embora os padres jesuítas não fossem revolucionários, afastavam, assim, a teoria de educação convencional a favor do colonialismo, pois os professores desta instituição educativa tratavam alguns temas relacionados com a evolução política mundial e asiática, o plano político sobre o desenvolvimento económico nacional e a fundamentação da identidade timorense. Nesta perspectiva os alunos conseguiam saber mais sobre o quadro da política internacional que lhes permitiram pensar o futuro de um Timor independente. Muitos destes alunos eram frequentadores do ensino laico liceal de Díli. Em 1974, foram enviados 39 alunos timorenses para Lisboa, a fim de se integrarem no ensino superior português (Hill, 1978:8). Estes estudantes começaram a sentir o verdadeiro valor de ser timorense, pois foi no exterior que encontraram a sua identidade nacional, sem fazer qualquer distinção entre Makasae, Mambae, Bunak ou Kemak, ou Kaladis/firakus, detentores da única identidade: a ‘timorense’. Portanto, os timorenses que saíram do Seminário de Dare assumiram um papel fundamental na formação das ideias básicas e programáticas de um sentimento de pertença que favoreceu o surgimento de uma acção política e de resistência contra a doutrina e mentalidade coloniais (Gunn, 1999, Mendes, 2005; Hill, 1978; Taylor, 1994). As diferentes contribuições dadas pelas estruturas de identificação (os partidos políticos, os guerrilheiros, a resistência, a Igreja, as comunidades locais e internacionais, a diáspora, a colonização portuguesa, embora por outra via) foram, de facto, reforçadores do processo político, social, cultural e simbólico de produção do sentimento identitário timorense. Daí surgiu o verdadeiro nacionalismo ‘geral e difuso’, popular e mobilizador da acção conjunta na 282

socialização da ideia de liberdade no campo e na cidade, que Ivo Carneiro de Sousa (2001:190) assume como “an almost sacred dimension liberation”, porque tem a ver com a dimensão sócio-política-religiosa: os políticos esquerdistas também frequentam a Igreja, casando-se segundo a tradição – o barlaque –, que favorece a identidade nacional. A actual nação Timor-Leste é, sem dúvida, uma construção da comunidade imaginada baseada na superfamília dos grupos étnicos timorenses que engloba não só as características físicas dos indivíduos, mas se baseia, sobretudo, em símbolos e práticas culturais, em instituições e discursos políticos. Esta perspectiva de comunidade imaginada é muito próxima do conceito de “comunidade imaginada” de que fala Benedict Anderson. A abordagem de Anderson aproxima-se daquilo que Adriano Moreira questiona como “nação subjectiva”, pois uma nação surge, antes de mais, fortalecida pela língua, crença e práticas culturais. Assim, a identidade nacional timorense foi formada também, e em primeiro lugar, pelas diversas identidades étnicas e uma ambicionada unidade na diversidade166. Apesar de ser difícil fazer convergir a particularidade das etnias numa identidade comum denominada Timor-Leste, o certo é que a sustentação do nacionalismo timorense se fortifica num quadro de referência que é o da relação inter-cultural através da colonização portuguesa.

4. Unidade e etnicidade imaginada no Timor Pós-colonial e da Resistência: Questão do Firaku e Kaladis167 Sabemos que a política ‘dividir para reinar’, sustentada pelos colonizadores em Timor, teve sempre o propósito de dominar e minimizar o poder legítimo dos ‘príncipes da terra’. Para alcançar este desígnio, foram feitas alianças com alguns ‘reinos’ na preocupação de separar as duas forças étnicas de Timor (dos reinos de Belos e dos reinos de Servião). Como 166

A este propósito, destacamos a opinião do Professor Adriano Moreira (1996), em Teoria das Relações Internacionais, Coimbra: Livraria Almedina, p. 279: “a Enclyclopédie tinha proposto, no século XVIII, que a expressão Nação designasse o conjunto de povos submetidos ao mesmo governo, de modo que se tratava de uma síntese que absorvia os regionalismos culturais e políticos, problema que enfrentaram as monarquias centralizadoras, e que constitui hoje objectivo fundamental dos Estados que foram colónias das soberanias europeias” (apud Mendes, 2005:263). 167 No contexto histórico, a mesma significação das expressões firaku e kaladi é muitas vezes politizada. A expressão Firaku, de origem de makassae, que significa “nossos amigos” ou “nós camaradas” (cf. Justino Guterres em sua entrevista concedida a Terreno e Hill, 2004), é um etnónimo de auto-classificação. Em Tétum, o termo passa a significar “pessoas das montanhas de leste e nordeste”, uma tradução sem sentido, pois, apercebese pelo facto os Tétum fazerem fronteiras com os makassae e os considerarem Ema foho (gente da montanha) por oposição a si próprios, criando uma nova expressão imaginada, Ema feha (gente da planície). De facto, o Tétum também deriva de outro termo chamado tetuk, que significa “planície” (Seixas 2005). Já em relação à expressão caladi é muito difícil compreendê-la, pois não é certo que tal expressão fosse uma auto-classificação étnica da língua Mambae. Como Alberto Osório de Castro referiu que este termo etnónimo se denominava Gari (Castro, 1996:92).

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nos lembra James J. Fox, os colonizadores cedo se aperceberam de que, na pluralidade de reinos, se destacavam dois grandes reinos de etnia diferente: o reino de Servião, controlado pelo imperador Senobai, e o reino dos Belos. O autor tem fundadas dúvidas de que houvesse uma relação de interacção entre os dois grupos rivais que fosse capaz de gerar alguma homogeneidade, tanto no plano político como linguístico (Fox, 2000:15:16). Importa dizer também que a constituição de novos grupos, como os firakus e kaladis, ou os lorosae e loromonu, foi estimulada pela autoridade colonizadora portuguesa, como forma de sustentar a política dominadora e criar assim o divisionismo favorável à imposição do seu sistema político. Na nossa opinião, não havia uma expressão divisionista dessa natureza, o que nos leva a entender que a expressão em si não se aplicava entre os timorenses, embora existisse alguma diferenciação nas práticas culturais. Tal divisão surgiu em função da maior resistência timorense contra a colonização portuguesa, por exemplo, a de Manufahi, e, devido às ‘guerras celestinas’ ou à estratégia dos colonialistas de ‘dividir para reinar’, o governador Celestino da Silva usou os reinos do Este (lorosa’e) com a intenção de acabar com as revoltas dos reinos do Oeste (loromonu) liderado por D. Boaventura, e pacificar o território168. No contexto etimológico, Alberto Osório de Castro, em Ilha Verde e Vermelha de Timor, refere que esta divisão não estava presente na vivência social dos timorenses, mas considerava os dois termos como uma designação colectiva étnica169, ao contrário da versão do padre Artur Basílio de Sá, que identifica os dois termos firaku e kaladi. Segundo este sacerdote, a expressão ‘fraco ou firaku’ é de origem Makasae, para designar “certa população dispersa pelo interior, bravia e fugidia”, e a expressão ‘calado ou Kaladi’ deriva do Mambae, também com o mesmo significado pejorativo (Castro, 1867:328; Seixas, 2005). Ruy Cinatti, por seu lado, sublinha que a população de Maubesi se chama a si mesma caladis, pelo seu

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A mesma categoria, mas outra divisão sustentada pelos colonialistas portugueses, era a expressão ‘EsteOeste’ (Lorosae-loromonu). De facto esta expressão divisionista foi lançada no século XVIII quando a capital da administração colonial de Lifau (Oé-Cussi) foi transferida para Díli, e se estabeleceu a diferença entre ‘Reinos de Oeste’ e ‘Reinos de Leste’. O uso do termo Lorosae-loromonu pelos portugueses era uma estratégia para dominar e controlar os reinos revoltosos, por exemplo, quando surgiu a guerra de Manufahi em 1911-1913, o governador Celestino da Silva recorreu aos “leais moradores de Manatuto” e “outras forças fiéis” (Thomaz, 1994:597), para dizer ao mundo que foi uma guerra entre Lorosae e Loromonu. Quer o uso do termo Firaku/Kaladi quer o de ‘Este-Oeste’ foram planeados cuidadosamente pelos portugueses para contra-atacar os reinos revoltosos. 169 Veja-se Castro, Alberto Osório (1996:74) – “Oán Timor, filho de Timor, domina colectivamente o timorês do nosso território, mas designações colectivas étnicas só conheço na linguagem moderna a de Firácus, por si próprios aplicada aos povos que moram desde Baucau (no mar da Banda), passando por Luca (mar de Timor) Contra-Costa, até à extremidade oriental da ilha; de Kaládi, ou aportuguesadamente, Calades, aos povos da linha central de montanhas, com dois estratos, pelo menos linguísticos para o mar da Banda a um lado e outro de Díli (Hera e Motael ou Mota-áin, Mota, ribeira e áin, foz, ou a-par); de Lamaquitos, ou Lama-Kito, aos povos montanhosos de Bobonaro, mas ainda considera como calades a mais gente de Manufahi, ou de Motael, da Ermera, etc”. Cf. Correia (1943:585).

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“carácter independente e belicoso” (Cinatti., Almeida & Mendes, 1987:79) em relação a outros grupos étnicos. Artur Basílio de Sá (1961:26) não fez nenhuma distinção destas expressões, o que nos leva a entender ter havido uma evolução semântica das mesmas. Isto é, uma diferenciação do termo que, na realidade, não se encontrava no tétum. Deste modo, não estaria em causa uma divisão da ilha entre ‘oriente’ e ‘ocidente’, mas uma clivagem entre o interior inacessível e os centros urbanos, sobretudo, no litoral, onde se utilizam expressões como identificadoras; de facto, no grupo etnolinguístico tétum a maioria das pessoas é identificada por categoria geográfica. Confirmamos o que foi dito por Cinatti em relação aos Maubisenses e apresentamos outro exemplo relativo à população do distrito de Bobonaro que se caracteriza a si mesmo kura ulun lian170, que significa ‘amador de cavalos’, pois, curiosamente, em todo o território de Timor-Leste, no distrito de Bobonaro é onde abundam mais cavalos. O termo kura ulun lian é uma expressão que se refere a este povo lutador e guerreiro, mas respeitador, com um forte sentimento de pertença a uma identidade colectiva, propensa à aproximação com outra sociedade. Podemos, por isso, caracterizá-la como fomentadora do conceito de governação chamado ‘pemerintah’, isto é, “pemerinta i Timor gomo ukon: okul liulai nalan liulai na pemerinta171 – Governo, o nosso governo de Timor. O grande ritual a grande cerimónia é o governo”. Em 2004, o okul gomo Dato Pou Tato Metan referiu este conceito de governação nos seguintes termos: bai pemerenta uen tas uen gita, pemerenta o i timul gomo ukun. Okul liulai nalan liulai pemerenta. Neto na ba’a no na. Hot gutu na man sagal, ukun han bai gie ukun an sagal. Si okul nalan liulai na pemerenta tebe bai na guat na ginat gini pemerenta hone gie (aponta para cima com o dedo). Ba’a no na sibil ba’a no na guat, si sibil ba’a gene mit no o ba’a no kantor gene mit ba’a o na’a ta’ gie gua los ni, no los ni. Ukun an tama na bai ba ta’gie no los ni, menal bai=ukun na nego ata sagal gie, ukun na: Um governo, o nosso governo do tas, o nosso governo de Timor. Okul liulai nalan liulai governa. Eu digo isto. O que obtivemos ate hoje, procuramos a independencia. Se okul nalan liulai governa, se se e indigitado, e para governar (aponta com o dedo para cima, para o ceu). E assim a funcao, se se e indigitado, mandado sentar ali, mandado sentar no escritorio, nao se pode fechar o caminho, nao se pode. Agora que a independencia chegou nao se pode fechar! (Sousa, 2010:311).

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O termo Kura ulun lian é constituído por três palavras: kura/kuda (cavalo), ulun (cabeça), lian (voz). Se traduzirmos literalmente, o significado deste termo é ‘a voz da cabeça do cavalo’, mas não é isto que pretendemos dizer, porque a ‘cabeça não tem voz’, mas poderá mostrar a expressão gestual. No entanto, a tradução mais correcta deste termo, em nossa opinião, é ‘a voz do cavalo’. Quer isto dizer que, quando o cavalo de um guerreiro levanta a cabeça e relincha, é sinal do começo do combate e, ao mesmo tempo, um sinal de saudação aos visitantes, um sinal de aproximação e de amizade. 171 Pemerinta é uma expressão malaia que significa ‘governo’ ou em Tétum Ukun.

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Com este conceito de governação, sabemos que a existência do próprio Estado-nação era já compreendida desde tempos primordiais. O mesmo espírito de aproximação poderá eventualmente ter existido em outras regiões de Timor-Leste, embora com outras designações172. No que diz respeito à divisão dos grupos étnicos firaku e kaladi, segundo testemunho pessoal de um velho da zona de Aileu, entrevistado por Sofia Ospina e Tanja Hohe, assinala a tese da separação entre a parte ‘Este’ e ‘Oeste’ (Lorosa’e e loromonu) do então Timor Português e da união de forças aquando da guerra de Manufahi em 1911: “Esta guerra não ocorreu só em Manufahi mas em todo o Timor: Os portugueses enviaram homens por barco para falar a todos os liurais” (Ospina & Hohe, 2001:39). Porém, Gudmund Janissa considera que a revolta de D. Boaventura foi uma resistência identitária que juntou dois grupos étnicos superando as divisões existentes em torno de duas referências supra-locais. Esta ocorrência torna possível dizer que tais referências supra-locais não foram sentidas apenas na Segunda Guerra Mundial, mas também em 1975, quando António Carvarino (Mau Lear) recusava a ideia de tribalista e afirmava que não existia um grupo superior ou inferior a outros (Hill, 1978:9). A partir da década de 80 do século XX, o nacionalismo timorense começou a aumentar significativamente, como frisou Benedict Anderson, em Imagining East Timor (1993) e em Gravel in Jakarta Shoes (1998), que era, do ponto de vista políticoestratégico, a abertura do território ao exterior, a criação de escolas e implementação de novos projectos de desenvolvimento chamado ‘pembangunan’, que foi aproveitado pelos timorenses para reactivar a resistência contra a colonização indonésia. Este facto leva-nos a entender que os timorenses não estavam a ‘imaginar’ Timor-Leste como parte integrante da Indonésia, mas imaginavam Timor-Leste como uma nação. Foi a mesma perspectiva que se viu ao longo dos anos da presença portuguesa, em que Portugal sempre teve dificuldade em lidar com os timorenses e considerava a sua presença como um colonialismo frágil, porque o seu sistema administrativo colonial coexistia com a estrutura social e política dos reinos locais (Thomaz, 2000:34; Seixas, 2005). A administração portuguesa chefiada pelo governador José Celestino da Silva assumiu o papel de “coordenar os pequenos reinos de liurais e a função de arbitragem dos seus conflitos permanentes até à sua pacificação violenta, dolorosa e sangrenta […] de 1912” (Mattoso, 2001:8 – sublinhado nosso). Daí começou a implantar-se a colonização efectiva, com padrões

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Por exemplo, a população de Balibo chama a si próprio Gari porque tinha como característica o cultivo do tabaco, como se ouve na letra de uma música: Fehuk Maubesi diak liu, Tabaku Balibo morin liu – Batata de Maubesi é boa, Tabaco de Balibo é perfumado.

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de Berlim, e manteve-se a definição definitiva da fronteira assinada em 1916, formando assim uma unidade administrativa efectiva. Poucos anos depois da Segunda Guerra Mundial, que abalou Timor, os japoneses começaram a criar um novo sistema de divisionismo chamado colunas negras, que originou mais separação entre os timorenses. Na base desta separação surgiu também uma linha de apoio a Portugal, chamada ‘timorense Pró-Portugal’, no interior daquilo que no pensamento político moderno se chama ‘consciência pré-nacional’. Esta visão divisionista trazia também outra luz de união, a ‘consciência nacional’, transformando assim o estatuto da consciência pré-nacional numa acção política de libertação nacional do território. José Mattoso vê isto como o início da resistência pela autodeterminação, pois, de facto, desde a criação dos partidos políticos, o território timorense, em si, já se encontrava numa onda de conflitualidade partidária que deu origem à invasão por parte da Indonésia. Aliás, segundo tese deste historiador, a diferença ideológica também contribuiu para o aprofundamento do conceito de identidade nacional. Duma maneira geral, após a ocupação da Indonésia, em 1975, o território passou a ser disputado por duas forças antagónicas: uma, integracionista, constituída pelo exército da Indonésia; outra, independentista, constituída pelos grupos nacionalistas de Timor. A este respeito, é necessário salientar que a presença das forças da Indonésia constituíram, por um lado, “uma efectiva ameaça à independência; mas [por outro lado, foram] também um elemento essencial da memória colectiva e, por isso mesmo, reforçam o sentimento de que para combater esse risco é necessário estreitar os laços comuns e aprofundar a noção de identidade nacional” (Mattoso, 2001:10). Deste modo, a proclamação da independência é ela própria um momento muito importante do processo de consciencialização colectiva da identidade. É uma realidade com importância cultural e histórica que potencia o desenvolvimento do país e do bem-estar do povo.

5. A importância da unidade e etnicidade na construção do Estado-nação timorense A ideia da unidade e etnicidade da construção da Nação e do Estado em Timor-Leste ganha em Paulo Castro Seixas (2005) uma perspectiva da Antropologia Política e Etnográfica. Parece que o investigador foi inspirado pela visão de “invenção da tradição” de Hobsbawm, de “comunidade imaginada” de Benedict Anderson, “dispositivo ritual alargado” de Marc

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Augé e do “processo ritual” de Turner173 como uma ideia de partida para abordar a questão da construção da Nação e do Estado em Timor-Leste. O investigador propõe as palavras “inventar” e “imaginar” da nação como memória oral e memória escrita surgida nos séculos XIX e XX. São estas palavras que provavelmente estão em destaque na construção da Nação e do Estado em Timor-Leste, embora existam algumas dificuldades na escolha do tipo de Nação e do Estado que se irão criar. Tal perspectiva foi abordada por Armando Marques Guedes (2001), utilizando os verbos ‘descobrir’ e ‘inventar’ de modo a poder ver Timor numa ordem descendente e ascendente, que nos leve à reflexão sobre a ambivalência da sua pertença e da sua exclusão relativamente ao que se chama a comunidade, embora difusa, do Sudeste Asiático. Historicamente, o nascimento do Estado-nação timorense e os seus processos de invenção da tradição e as suas comunidades imaginadas estão presentes na memória do período pré-colonial, colonial, da resistência e pós-colonial. Portanto, para compreender a imaginação unitária da construção do Estado-nação timorense, deve-se olhar para cinco grandes formulações de imaginação unitária sobre Timor, constituída pela estrutura sóciopolítica da etnia, a que chama “imaginação étnica dicotómica”, a qual existe para além da imaginação étnica plural. Esta imaginação étnica resistiu bastante, mas falhou na formação da ideia de imaginação unitária, diz o sociólogo e antropólogo Paulo Castro Seixas (2005). Isto demonstra que em Timor existe um palco chamado “choque de civilizações”, pois a ilha foi ocupada por duas grandes civilizações: a primeira foi a papuásia-melanésia e a segunda foi a Papuásia-melanésia e malaia-indonésia, como sustentam os investigadores, verificando-se a existência de tal encontro civilizacional das várias culturas migratórias174. No entanto, antes de os portugueses chegarem à ilha, Timor já tinha um Estado, dividido em dois grandes Estados: a Província dos Belos e a Província do Servião. O primeiro era uma unidade territorial imaginada pré-colonial do Timor Oriental com sede em Wehali; o segundo, do Timor Ocidental. Portugal, por seu lado, construiu a sua política de conquista e 173

Veja-se: Augé, Marc (1994), Pour une anthropologie de mondes contemporains, Paris: Aubier; Turner, Victor (1974), O processo ritual: estrutura e anti-estrutura, Petrópolis: Vozes 174 Os termos Firaku e Kaladi também remetem para este choque civilizacional, envolvendo assim a questão indonésia/papua que, enquanto questão rácica-étnica, tem ainda sentido, embora pouco credível. Mas, em algumas circunstâncias, parece que não é assim. Por exemplo, na história actual de Irian Jaya ou Papua Ocidental – lugar ocupado pela Indonésia, confronta-se com a população local Melanésia – fala-se de “um comandante militar indonésio que pergunta a um guerrilheiro do Movimento da Papua Independente (OPM - Organisasi Papua Merdeka), na ponta ocidental da Papua-Nova Guiné, qual a diferença entre os indonésios e os papuas da Nova Guiné. Ao que o guerrilheiro responde: ‘uma coisa que você nunca compreenderá: isto!’ e arrancou da cabeça um cabelo crespo” Jolliffe 1998:14; obs. cit. Seixas, 2005). Ainda relacionado com este exemplo: em 2000, num encontro entre organizações não-governamentais, Yayasan Hak, RENETIL, entre outras instituições situadas em Maliana, o que se desejava era conhecer o líder da Papua Independente (OPM) que naquela altura estava acompanhado pela ETAN (uma organização de rede internacional a favor da resistência dos timorenses).

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de controlo da mercadoria no Oriente, imaginando Timor como a ‘ilha do sândalo’, que, pelo menos no início do século XX, era o ‘Distrito Autónomo de Timor’, embora nalguns casos se preocupasse em imaginar a identidade territorial timorense como um ‘Timor da Insulíndia’, pois a ilha está situada no meio das ilhas do arquipélago da Indonésia, não sendo no entanto, da mesma identidade do grande estado unitário da Indonésia, diferenciada pela cultura, história e religião. Em 1951, passou a imaginar Timor como uma das ‘Províncias Ultramarinas’ e, dos anos 30 até 70 do século XX, voltou a produzir a ideia de imaginação unitária para caracterizar a sua presença, denominada ‘Timor Português’. Daí, na administração do território, potenciou uma política de reprodução da dicotomia étnica Firakus e Kaladis. Pode dizer-se que a imaginação colonial portuguesa sobre a designação do nome do território de Timor teria acabado em 1974 com a Revolução do Cravos de 25 de Abril em Lisboa, no novo processo de ‘descolonizar as colónias’. Aliás, ainda em 1974, os timorenses preocuparam-se em imaginar um ‘Timor Independente’, um ‘Timor Autónomo sob a bandeira portuguesa’ e um ‘Timor Indonésia’. Tudo isto foi uma imaginação unitária de três grandes partidos políticos que acabavam de ser fundados. Nesta lição de imaginar Timor enquanto nação, notou-se logo a ordem política da FRETILIN, que caracterizou o povo timorense, num enquadramento de imaginação unitária, a que chamou ‘Povo Maubere’, e, ainda em 1975, com a invasão da Indonésia e implementação do governo fantoche de Timor, surgiu outra ideia de imaginação unitária, que classificava Timor como a ‘27ª província indonésia – Timor Timur ou Tim Tim’. Estas imaginações unitárias de construção da identidade territorial timorense são formas de inventar e de imaginar a ilha de Timor como um ‘paraíso tropical do Sudeste Asiático’, disputado por dois países europeus – Portugal e Holanda – e por dois países vizinhos Indonésia e Austrália. Foi por isso que surgiram muitas imaginações unitárias em Timor. Importa dizer que a imaginação unitária sobre a construção da identidade timorense, duma maneira geral, é a faculdade originária de se pôr ou de se dar, sob a forma de apresentação de uma coisa, ou fazer aparecer uma imagem e uma relação que não são dadas na percepção de uma sociedade. O ser imaginário é, assim, a produção de uma imagem que não existe nem nunca existiu, mas a imaginação unitária pode ser formada a partir de um apoio real dos componentes necessários como cultura, território, língua, crença e religião. Portanto, pode sublinhar-se que a ideia de pensar um ‘Timor Independente’ faz parte da representação

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unitária que corresponde à necessidade de afirmar uma identidade única enquanto Estadonação. O processo de invenção de nação, de dentro para fora, poderá ser configurado num projecto político e nacional que define todos os planos de desenvolvimento do Estado, e que fortalecerá a unidade à diversidade de identidades, criando o espírito do povo timorense de querer ser integrado no quadro da comunidade plural dos países do sudeste asiático e, de modo mais global, inserido no universo das relações transnacionais, em particular, na CPLP. Este facto projecta as dificuldades que o Estado de Timor-Leste encontra no futuro, mas que são fáceis de adivinhar com a ponderação da planificação do projecto nacional. Em larga medida, o referido projecto dá-nos a possibilidade de congregar as diferentes ideias e de reunir as condições políticas, de segurança e de economia que marcam o conceito de ‘pensabilidade de Timor-Leste’. Esta noção, que, no argumento de Armando Marques Guedes, se chama visão construtivista ‘Antropologia Política’, leva à conclusão que tal ideia poderá ser uma genealogia e uma arquitectura do nacionalismo timorense de dentro para fora, para evitar as visões sectárias. Is the existing endogenous diversity amenable to reduction? The lines of fracture visible between networks of multiple clientelisms which are difficult to render compatible, among diverse ethnolinguistic identities whose communication is not easy; between enemy and long resentful political-ideological groupings, between ex-militias and the rest of the population, between ‘active resistance fighters’ and ‘passive civilians’, between those who stayed and those who left, among generations, between a State and a Church with competing hegemonic propensities – can they be repaired?” (Guedes, 2001:324).

Uma nação pode ser formada sobre uma abstracção sustentada por uma ‘hegemonia’ que vai legitimando os aparelhos do poder do Estado. Estes podem reproduzir o mito da nação sem uma densidade histórica concreta. Foi o que a ONU implementou em Timor-Leste nos últimos 4 anos antes do conflito interno de 2006 que abalou o jovem país, e, especialmente, entre 2000 e 2002 (Seixas, 2003); ou, pelo contrário, uma nação pode ser fundada a partir de sociedades concretas plurais, assumindo a sua densidade histórica e o mito fundador com a clara preposição do processo ritual, ou do dispositivo ritual alargado. Para já, os timorenses sentem-se conscientemente agarrados à tradição da sua nação recém-nascida (com origem na proclamação da independência de 28 de Novembro de 1975) sustentada pelo conceito de comunidade imaginada, chamada ‘Timor oan’ (filhos de Timor) e ‘Timor ida deit’ (um só

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Timor175), que considerou como símbolo dos heróis da luta por aquilo que é chamado ‘Povo Maubere’. A função de uma dimensão étnica menos falada – mas com uma posição significativa na sociedade timorense, que alguma vez conjuga com um certo ‘nativismo’ (Parry, 1994) e uma certa estratégia de retorno das actividades aos rituais – é evidenciada por Paulo Castro Seixas no seu documentário etnográfico, em 2004.

6. O paradigma Mauberiano e a etnicidade como símbolo da identidade nacional

A história da expressão Maubere é fundamentada pelas novas visões ideológicas que sustentam os valores simbólicos de uma personalidade colectiva timorense, embora não haja uma ‘língua maubere’176. Não há instrumento absoluto que indica a sua existência por não pertencer a um “grupo etnolinguístico maubere” (Marcos, 1995:120). Esta expressão é constituída pela sua evolução semântica. O uso deste termo, dado por certa gente traduzida por preconceito, troça e desprezo, torna-se significativo quando, pela primeira vez, foi expresso orgulhosamente como indicativo de afirmação colectiva e nacional. Existem divergências entre os políticos e intelectuais sobre a implementação do termo Maubere, como fundamento da identidade nacional de Timor-Leste. Alguns dizem que Maubere é o homem de Timor iletrado, descalço, pobre; outros dizem que este termo foi utilizado pela FRETILIN para identificar e caracterizar o povo de Timor. Para responder a esta clivagem, abordamos o termo Maubere sob dois conceitos. O primeiro conceito é baseado na teoria colonialista. Nesta teoria, o colonizador utilizava a arma chamada ‘política

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Timor oan e Timor ida deit são, de facto, uma afirmação identitária que ultrapassa as divergências entre os timorenses na luta pela libertação da Pátria, de modo a poder imaginar um ‘Timor Unido’ e/ou um ‘Timor Independente’, com a intuição de, por um lado, se demarcar perfeitamente do adversário comum, e por outro, estabelecer a ‘unidade entre todos os timorenses do território colonizado pelos portugueses’. Esta formação da identidade colectiva do povo de Timor-Leste foi oportunamente apoiada por “ideias de factos, ou ideias sobre factos” (ver Maria Johanna Schouten, “Os Timorenses, Portugal e a Indonésia: factores na formação de identidade”, in: IV Congresso Português de Sociologia, Covilhã: UBI). De facto, a imaginação unitária Timor oan e Timor ida deit foi expressa, mais de uma vez, na campanha pela paz promovida pelos jovens de Arte Moris em 2006 para impedir a crise política militar que arrastou polícias e militares em confronto directo nas ruas de Díli, e que provocou, pelo menos, 37 mortos e deixou um décimo da população sem tecto (ver Pedro Rosa Mendes, “Timor-Leste: onde a cultura é criação de identidade”, in Território Artes – Revista de divulgação da cultura, Lisboa: DGARTES, 2008). 176 Entretanto, pode notar-se que aqui há diversas interpretações muito complexas. Alguns autores designam a referência Maubere como antropónimo. No entanto, se este é referido no trabalho de campo, designa-se logo como referência de etnónimo. Fernando Sylvan (1995) remete o termo para o Galole (língua de Manatuto) e Artur Marcos (1995:123) sublinha que, no século XIX, o termo terá sido usado para denominar um distrito em particular. Paulo Castro Seixas diz que nunca encontrou nenhuma referência a um distrito denominado Maubere e, de qualquer maneira, no terreno remetem-no para a denominação das pessoas que vivem no Aileu, Ermera e Maubesi.

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de assimilação’, obrigando os timorenses a aceitarem a sua civilização europeia e sensibilizando-os para abraçarem a fé católica. Daí, surgiram os conceitos sarani e jentiu. A utilização da palavra sarani é para caracterizar os timorenses baptizados em nome de Jesus Cristo, e o termo jentiu é a caracterização genérica dos não baptizados ou que não aceitavam o baptismo. Por outras palavras, no momento em que os timorenses alteram o seu nome jentiu (nome orginal) para o sarani, por exemplo, Mau-Loman ou Loe-Rasi para João ou Alenxandre, entre outros177, começam a ser chamados gente civilizada. Porém, uma grande percentagem de timorenses daquele tempo nunca aceitou tal política de assimilação como um caminho certo para a sua vida, antes da invasão indonésia. A atitude demonstrada pelos timorenses da época é reforçada pela sua capacidade de entender a existência da sua civilização, crença e cultura, mediante a sua fé nos lúlik e Marômak178. Nesta teoria colonialista, pode afirmar-se também que aqueles que não aceitam a civilização do colonizador e não abraçam a fé cristã são considerados não civilizados, isto é, no caso de Timor, chamam Maubere porque não aceitam tal política de assimilação. No contexto sóciocolonial, segundo Paulo Castro Seixas (2005), Maubere e assimilado são termos que surgem com a consciência da dominação portuguesa e como forma de resistência face a tal dominação. No contexto da sociologia e antropologia, o termo Maubere é uma identidade sujeita à categoria de identificação da pessoa. Timorense é o natural ou habitante de Timor e maubere é o indivíduo do povo dos Mauberes; os Mauberes são o povo asiático que é o habitante tradicional de Timor-Leste. O termo Maubere é constituído por duas palavras, Mau (irmão) e Bere (homem). Contudo, a expressão Maubere é uma designação do nome de uma pessoa, pois em Timor-Leste existem pessoas com o nome Bere, ou Maubere. Basicamente, a expressão aproxima-se muito do conceito de ‘somos homens e somos irmãos’179. Quer isto 177

A este respeito, em 28 de Março de 1999, Xanana Gusmão concedeu uma entrevista à SIC (televisão portuguesa). O jornalista perguntou a Xanana: “Qual é o nome que quer usar? José Alexandre Gusmão ou Xanana? Xanana respondeu: “Sou filho do Maubere, quero usar o nome Maubere – Xanana”. Este acto é um sinal de reconhecimento da existência de uma caracterização específica do nome do povo de Timor, desde tempos idos. Ao mesmo tempo, a atitude de Xanana na resposta ao jornalista é uma rejeição da ‘política de assimilação’ que fora implantada pela colonização portuguesa no território. Querendo ser verdadeiro timorense, é melhor usar o nome timorense, como Aça Mali, Mau-Pelun, Maunana, porque estes nomes são verdadeiros nomes timorenses e mauberes. 178 Ezequiel Enes Pascoal, em “O culto dos lúlic”, descreveu que os timorenses são pagãos animistas e a sua ideia de imaginação unitária sobre Deus assenta numa ideia muito vaga. Isto é, “em quási todos os dialectos Lhe chama Marômac que será possivelmente, uma modificação da palavara naroman que significa luz, esplendor. […]. Toda a sua religião gira sobretudo, à volta dos lúlic” (in Seara, 1949, ano 1, nº1:12). Considera os timorenses pagãos por não aceitarem facilmente a política de assimilação e civilização europeia. 179 A este respeito, parece que as mitologias fundacionais de Timor têm, entre si, uma forte ligação. Elas dizem que existe o primeiro homem e a primeira mulher e que se chamam Maubere e Buibere e que terão surgido das montanhas do centro-leste Ramelau/Matebian. Isto leva-nos a entender que esteja relacionado com o facto de

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dizer que não existe uma cultura superior a outra, porque cada cultura tem origens próprios. No entanto, alguns timorenses dizem que Maubere é o homem de Timor, porque reconhece a existência da sua própria identidade cultural e territorial. É por isso que alguns timorenses se caracterizam a si mesmos como Maubere. Abílio de Araújo explica que Maubere é uma identificação do nome de um indivíduo, tal como João ou Maria, que é muito comum em Timor-Leste, e Maubere é o homem de Timor180. Diz o documento da FRETILIN: “O termo maubere é um conceito político identificador de todo um Povo ou uma Nação. Maubere deixará de ser um simples nome próprio para se tornar num conceito político e sócio-antropológico de diferenciação da gente mais humilde e autóctone dos colonizadores e naturais assimilados. Maubere era, assim, o timorense no mais profundo da sua identidade”. Durante a ocupação indonésia, a FRETILIN conseguiu transformar este termo num poderoso símbolo de identidade nacional, que foi “aceite por todo o povo de Timor-Leste, transbordando para além das fronteiras de Mambae [….]. O nome está consagrado nacional e internacionalmente” (Ramos-Horta, 1994:98). Embora a UDT nunca tenha aceitado tal expressão, aqueles que estavam no território aceitam tal termo como símbolo da unidade e da resistência. Só não foi aceite por alguns dirigentes udetistas na diáspora, o que dificultou todas as decisões políticas e mobilização da opinião pública internacional sobre a questão de Timor. Para manter a credibilidade desta noção que caracterizava a personalidade colectiva dos timorenses, procura evitar-se a ideia controversa que poderá abrir uma nova vaga de divisão entre os timorenses pela aplicação deste termo e recusar-se a ser identificado como Maubere. Xanana Gusmão, na sua mensagem, de 1 de Maio de 1992, apelou aos timorenses residentes no estrangeiro, com a intenção de lhes demonstrar que não havia razão para contrariar o uso do termo maubere. [...] Que razões semânticas justificam estas terminologias? Quando buscam razões para justificar uma aversão pelo termo. […] Quanto a mim, sejam quais forem os pontos de vista, o termo MAUBERE tem que Geoffrey Gunn chama o grupo étnico-cultural ‘essencial’, que, segundo o autor, teria sido o grupo “Maubere, indigena, de língua tétum” (Gunn, 1999:14). 180 Abílio de Araújo explica que a palavra “Maubere é um nome próprio como João ou Maria, muito comum em Timor-Leste. Há mais indivíduos com o nome Maubere em Timor que João e Maria em Portugal. Por isso, os colonialistas chamavam Maubere a qualquer nativo iletrado, sub-alimentado, pobre. A palavra Maubere sofreu, assim, uma evolução semântica. Nos últimos anos da dominação colonial portuguesa, o homem do interior, aquele que resistiu à dominação cultural do colonialismo passou a ser chamado indiscriminadamente Maubere. Maubere é o homem de Timor que resistiu culturalmente ao colonialismo, aquele que era o verdadeiro portador da cultura popular e, por isso mesmo, sofreu na carne e ossos os piores efeitos da colonização” (Barros, 1988:18). Ver também o artigo de Fernando Sylvan (1995), “Presente e futuro da palavra Maubere”, in Marcos, Artur, Timor Timorense com suas línguas, literatura e lusofonia, Lisboa: Edição Colibri.

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uma expressão que Filipinas, por exemplo, não possui. Por falar no termo, reparo que CNRM – ‘Conselho Nacional da Resistência Maubere’ não é do gosto de todos. Pequenos coágulos de sangue maubere, que têm que ser retirados para que a avenida seja lisa? Penso que são atitudes que nos desprestigiam apenas, porque o povo maubere vai sofrer quando tomar consciência de que o Maubere nunca libertará Timor. Compreendo que o ‘M’ pode estar a actuar num sentido discriminatório para alguns, contudo, com toda a franqueza e com toda a liberdade que chamo por mim, como razão também da minha própria participação nesta grandiosa epopeia do nosso povo, nunca hesitarei em utilizar a já tão consagrada expressão de Povo MAUBERE. Serão pontos de vista, diferentes ou distintos ou simplesmente consciência que se adquirem desta Luta! (Gusmão, 2002:213-214).

Contudo, se houvesse um plano de ataque ao abrigo do inimigo, o comandante das FALINTIL dava ordem aos seus elementos da Força – ‘Maubere ataque’, isto foi um facto concreto da utilização do termo, que era como remédio da luta pela libertação nacional. E, em 1990, Xanana Gusmão, na entrevista concedida ao jornalista australiano Robert Dumm, citado por Mendes (2005:274), classificava o nacionalismo maubere não como propaganda da Resistência e que “it’s not an ephemeral, temporary phenomen but it is part of our unconscious; it is part of the soul of the Maubere people”, isto é, a aplicação do termo mostrava a importância de fixar a identidade que existia efectivamente na alma do povo de Timor-Leste.

7. Considerações finais

Todas as comunidades políticas regulam as suas funções através das instituições do Governo ou do Estado, depositários do poder. Contudo, a sua estabilidade e unidade políticas requerem um princípio de unidade mais forte que o de um Governo ou de um Estado, isto é, requerem um princípio que seja ‘norma de unidade política’ – a Nação. Todavia, tal facto mostra-nos que o ‘estado-nação’ surge como a mais alta forma de organização política, apta para exercer a sua soberania, a soberania nacional; esta é entendida como pedra de toque do direito internacional, na medida em que dá a cada Nação ‘o direito de auto-defesa’ e o direito de ‘determinar o seu próprio destino’; é nesta estabilidade baseada na ideia de ‘estado-nação’ que os timorenses colocam o seu interesse de ser um país independente, sobretudo nos seguintes pontos: reconhecer a sua identidade cultural, crenças, religião e língua, já constituídas historicamente; defender o direito da soberania timorense e o desenvolvimento económico do seu povo; integrar-se nas organizações internacionais com soberanias supranacionais, tais como ONU, CPLP, ASEAN e outras. 294

Constatámos que a ideia de nação surge a partir de uma evolução do conhecimento e da civilização da humanidade que, de certo modo, produz o sentimento de consciência colectiva – que pressupõe a assimilação de uma história comum – e a consciência de uma unidade social, priorizando uma trajectória geral da consciência social e da consciência individual. Todavia dir-se-á que ela está muitas vezes ligada “à ideia de partilha de uma língua comum, à etnicidade, à religião e à história comum, critérios que permitiram o sentimento colectivo de pertença que pode estar na base da consciência nacional de um grupo ou de um povo” (Paulino, 2009:1). Ernest Gellner, em Nation and Nationalism (1983), define os traços distintivos de uma consciência nacional complementando os factores de ordem emocional (laços afectivos e de cumplicidade que ligam os membros de uma comunidade) com a necessária aspiração dessa comunidade a ser independente e a escolher livremente o seu próprio destino enquanto autogoverno (Heywood, 2004:99). Segundo Ernest Gellner, a articulação entre poder e Estado só ocorre nas sociedades modernas, industriais. O autor salienta também que, nas sociedades agrárias da Idade Média, a nação tinha uma estrutura piramidal, com a minoria governante no topo, extremamente afastada da grande maioria da população, composta por camponeses. Estes possuíam línguas e culturas distintas entre si; existia uma fraca mobilidade social e a sociedade reproduzia-se com base na família e na actividade desenvolvida colectivamente. Importa dizer, portanto, que a concepção deste autor é uma pista que pode considerar a ideia de consciência nacional como a base da construção da nação timorense. Parece ter sido fundamentada na característica cultural, quer do ponto de vista prático, quer do aspecto discursivo. A este respeito, Benedick Anderson sublinha a ideia da construção de uma nação, como foi referido inicialmente, uma imagined communities, quer dizer que o labor da imaginação está presente no processo de construção de uma comunidade (Paulino, 2009:31) e, segundo Anderson (2005:25), “É imaginada porque até os membros da mais pequena nação nunca conhecerão, nunca encontrarão e nunca ouvirão falar da maioria dos outros membros dessa mesma nação, mas, ainda assim, na mente de cada um existe a imagem da sua comunhão”. Quer isto dizer que, tratando-se da ideia de nação como um produto da imaginação, este deverá ser compreendido com dois grandes sistemas culturais que o precederam e influenciaram as comunidades religiosas e o poder dinástico. Neste sentido, a possibilidade de imaginar a nação está dependente: 1) da fragmentação imaginária das linguagens religiosas; 2) do declínio da comunidade sagrada (cristã medieval), que causou a crença de outra sociedade que estava naturalmente bem organizada em torno do poder monárquico. Dava-se, 295

pois, uma possibilidade de construir uma nova composição da comunidade imaginada; e, por último, há o aparecimento de uma nova concepção de tempo, permitindo assim pensar o colectivo como algo que existe simultaneamente em sítios diferentes. Faz todo o sentido dizer isto: por um lado, a fundação das nações é para promover o bem-estar e a satisfação da Humanidade; por outro, toda a política da construção de uma nação é sempre baseada na identificação cultural e no poder político, quer numa acepção prática, como exercício do poder, quer no aspecto teórico. Na perspectiva de Anthony Smith181, a importância dos elementos pré-modernos da nação e do nacionalismo é mais do que uma ideologia ou uma forma política. Para este autor, a emergência da ideia moderna de nação é remetida para as revoluções americana e francesa, antes das quais não existiam nações, mas sim etnias ou comunidades étnicas. Desta forma, a nação surge como soma de representações culturais, pois o que é imaginado tem de ser representado colectivamente, embora haja uma implicação no processo de criação. Mas o crítico Anthony Smith fez-nos lembrar que a nação não teve ou tem uma realidade independente das suas imagens e reconstruções, o que lhe diminui a realidade sociológica. Aliás, Anderson, que foi influenciado pela ideia marxista, introduz uma dimensão subjectiva e cultural, aquilo que Adriano Moreira baptiza como ‘nação subjectiva’.

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Em Identidade nacional, Anthony Smith (1997:95-96) utiliza várias abordagens para referir o termo nacionalismo. Segundo este autor, o nacionalismo é: a) Todo o processo de formação e conservação de nações ou de estados-nações; b) Uma consciência de pertença à nação, unida a sentimentos e a aspirações pela sua segurança e prosperidade; c) Uma linguagem e um simbolismo da ‘nação’ e do seu papel; d) Uma ideologia, incluindo uma doutrina cultural das nações, e a vontade nacional e as prescrições para a realização das aspirações nacionais e da vontade nacional; e) Um movimento social e político para alcançar os objectivos da nação e realizar a sua vontade nacional”. Esta tese multiforme, no seu todo, não corresponde a toda a realidade vivida pela sociedade enquanto membro de uma nação, porque o termo nacionalismo é um conceito dinâmico que liga a um sentimento de pertença ideológica e política doutrinária, ou, por outras palavras, pode caracterizarse como uma teoria nacionalista e praxis política e social dos movimentos partidários ou sociais que defendem a sua própria ideologia. Aliás, no caso do nacionalismo timorense, a tese deste autor faz todo o sentido, porque mobiliza os timorenses a afirmarem o seu sentimento de pertença étnica à nacional. Isto é, uma vontade étnica através do movimento social de matriz patriótica que funda os objectivos da nação, realizando assim a vontade nacional.

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Capítulo 7 A agenda dos media em Timor-Leste de 1975-1999

1. Consideração prévia

A informação contemporânea pode contribuir, como no caso de Timor, para uma efectiva solidariedade universal e, de um modo especial, a televisão. Ela tem o condão de pôr o indivíduo em relação directa com as comunidades de outros continentes e responde, na medida das suas possibilidades, à necessidade que o público tem de aceder, com a maior exactidão possível, ao que se passa no mundo, mesmo que não consiga captar a complexidade dos processos de construção jornalística da informação que lhe é servida. Sabe-se também que a questão chamada ‘Timor-Leste’ foi sempre integrada na agenda mediática da ‘opinião pública’ portuguesa. Os jornalistas tiveram uma participação muito importante no projecto da construção da identidade cultural e nacional timorense, quer junto da população de Timor, quer da comunidade internacional. Num tempo em que se pontificam os valores da globalização e se consolida a ‘Sociedade da Informação’, o jornalismo contemporâneo tem uma matriz de universalidade. Os poderes socialmente constituídos podem travar, acelerar ou, mesmo ainda, censurar, segundo as suas conveniências, o fluxo da informação jornalística que circula no espaço público mediatizado de dimensão planetária. Mas não parecem capazes de restringir o alcance e universalidade do discurso jornalístico. Apesar de as notícias serem construídas muitas vezes a partir de notas difundidas pelas mesmas agências noticiosas e, por isso, terem cada vez mais um formato estereotipado, pensamos que é possível escapar a uma verdadeira massificação, tanto mais que “As mensagens dos meios de comunicação contêm características particulares do estímulo que interagem de maneira diferente com os traços específicos da personalidade dos elementos que constituem o público. Desde o momento que existem diferenças individuais nas características da personalidade dos elementos do público, é natural que se presuma a existência, nos efeitos de variações correspondentes a essas diferenças individuais” (Wolf, 2003:29). Os media desempenharam papéis específicos na condução da resolução do problema do povo de Timor. A agenda dos media em Timor-Leste nos anos de 1975 até 1999, de acordo com Rui Marques (2005), deu-se em cinco fases: 1) de Janeiro de 1987 a Janeiro de 1989 (período de silêncio); 2) de Janeiro 1989 a Novembro de 1991, caracterizou-se como o 297

período de despertar (visita de João Paulo II a Díli; massacre no cemitério de Santa Cruz); 3) de Novembro 1991 a Novembro de 1994, como o período de explosão (o navio Lusitânia Expresso; prisão e julgamento de Xanana; assalto à embaixada americana em Jacarta); 4) de Novembro 1994 a Novembro de 1997, período de consolidação (atribuição do Prémio Nobel da Paz a D. Ximenes Belo e Ramos-Horta); 5) de Novembro de 1997 a Dezembro de 1999, período de consagração (queda de Suharto na Indonésia; assinatura de acordos em Nova York; referendo em Timor-Leste).

2. O controlo dos media e as armas silenciosas

Do ponto de vista jornalístico, certos conflitos chegam às primeiras páginas dos jornais em todo o mundo e outros não (Taylor, 1993:9), justificando-se que a importância dos órgãos de comunicação social em determinar quais os assuntos e problemáticas que podem ter direito à existência na opinião pública internacional e ao esquecimento de outros. Timor-Leste encontra-se nesta última situação. A cobertura dos media sobre o que acontece na sociedade, seja ele conflito armado ou não, pode mudar as prioridades da opinião pública internacional e reforçá-la a adoptar algumas medidas com determinadas acções, como argumenta Tommy Koh, citado por Inbaraj (1997:1): “Pressure from the international media could distort the international community’s priorities in the international media should decide to put a crisis high up on the agenda, then the international community is forced by the pressure of public opinion in our respective countries to act”. Nesta perspectiva, o poder da comunicação social tem grande influência na tomada de decisões sobre determinada crise política de um estado soberano, ou seja, os media influenciam a reacção emocional da opinião pública para pressionar os líderes mundiais a reagirem de imediato sobre um determinado caso (por exemplo, a guerra, a fome). Timor-Leste foi um exemplo de demissão e silêncio da imprensa nacional portuguesa perante a política de descolonização. Isto significa que a noticiabilidade do acontecimento de Timor não estava rotinada e estandardizada nos processos das práticas produtivas de informação, pois não havia uma certa rotina de que podia servir-se para cobrir os factos imprevistos pelas organizações jornalísticas “quanto ao grau de integração” que o acontecimento apresentava relativamente “ao curso, normal e rotineiro, das fases de produção” (Wolf, 2003:191) – as excepções mais notáveis são os “mega-acontecimentos” de que “A tragédia de Timor é um testemunho de quem assim foi, o que lá se passou poderia 298

talvez, se os jornalistas portugueses – como o fizeram, para vergonha nossa, os jornalistas australianos – tivessem cumprido a sua missão de informar” (Barata-Feyo & Sousa-Tavares, 1996:286). De um modo geral, apresentamos três exemplos ou factos importantes para elucidar as problemáticas da cobertura jornalística em Timor-Leste: o primeiro era a entrevista de Rui Alexandre Novais – à data da invasão e consequente anexação do território pelo regime indonésio – concedida a um diplomata ocidental em Jakarta, tendo este confessado que teve dificuldade de acesso às informações para redigir os relatórios oficiais; o segundo era a morte de cinco jornalistas ocidentais, em Balibó, em 1975, que dificultou a obtenção de notícias independentes do território; o terceiro era a opinião pública portuguesa e os media portugueses, que se interessavam mais pela questão interna do seu país do que com Timor. Estes enquadramentos foram categorizados como pano de fundo do silêncio mediático em Timor-Leste, que, até ao final da década de 80, se manteve fechado ao exterior, embora, em 1983, as autoridades indonésias – quer do governo central quer do governo fantoche provincial TIM-TIM – tivessem autorizado a entrada do jornalista português Rui Araújo em Timor. As dificuldades, porém, perduraram até à data da visita do Papa João Paulo II ao território, em 1989. Relativamente à opinião pública portuguesa e à imprensa portuguesa sobre Timor após a invasão, Luísa Teotónio Pereira, em entrevista concedida a Rui Marques (2005:92), chegou a reconhecer que Timor, “do ponto de vista jornalístico, era também pouco interessante e havia pouca gente que lidava com a matéria, que conhecia os problemas - a questão interna e o processo de descolonização. Havia realidades que interessavam muito mais, que estavam muito mais presentes, e eram muito mais importantes do que Timor que, também por essa razão, ficou de parte”; pela mesma razão, “Timor foi uma catarse do povo português de uma descolonização mal feita182” que deixou margem a Indonésio colonizar o território (Diário de Notícias, 28/7/1982). Por outras palavras, enquanto a capital metropolitana, Lisboa, amanhecia entre um mar de cravos e gritos de liberdade, em Timor, a noite caía sem o brilho da lua e das estrelas; em Portugal, fez-se o 25 de Abril com grito divino; em Timor, jorrava o sangue dos inocentes. Foi assim que “Timor, o último paraíso de Cinatti” (Expresso Revista, 30/6/1988) mergulhou nas trevas, e Luísa Teotónio Pereira não escondeu a dor que sentia no coração, dizendo “Timor-Leste: até quando a hipocrisia” (Expresso, 4/2/1984:6). Enquanto cidadã portuguesa, 182

Entrevista do jornalista Hernâni Carvalho concedida ao jornal Ensino Magazine Online, ano IV, nº 40, Junho de 2001

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ficou magoada por ter deixado o povo irmão inocente entregue à sua sorte, mergulhado no mar de sofrimento, reconhecendo também a impossibilidade de libertá-lo daquela situação catastrófica; e, com o coração dolorido, exprimiu esta amargura em “Timor-Leste: as lições de uma derrota amarga” (Expresso, 13/3/1985:9), exclamando de seguida: “Timor é nosso?” (Expresso, 24/4/1988). Uma expressão que não pôde ser respondida com um só grito, “Timor é nosso”, mas, teoricamente, uma interrogação da consciência que tentava reflectir o acontecimento do passado sobre o futuro de Timor, traçado pelo Ministro de Coordenação Interterritorial Dr. Almeida Santos, que, irresponsavelmente, classificou Timor como “um transatlântico imóvel que nos custa muito dinheiro, não querendo que o saldo do nosso império colonial viesse a ser apenas a permanência na Indonésia, ocupando metade de uma ilha. [...] A independência total de Timor era de um irrealismo atroz, Timor só podia ter uma das duas opções, manter-se ligado a Portugal ou ligar-se a Indonésia” (Expresso, 3/8/1974; Horta, 1994:121)183. A propósito deste argumento, apresenta-se a exclamação de Mário Soares no seu livro Portugal Amordaçado, publicado em francês em 1972, em que dizia: “Timor é uma ilha indonésia que muito pouco tem a ver com Portugal”, sendo tal ideia seguida pelo então Ministro de Coordenação Interterritorial, Dr. Almeida Santos, nos seus discursos oficiais, dizendo que a solução para Timor é “manter-se na soberania portuguesa ou integrar-se na Indonésia” (Abreu, 1997:11). Será um estratagema para dizer que Timor não tem valor para Portugal e só existe em algumas linhas dos jornais? Assim sendo, como se explica que o problema de Timor enquanto colónia portuguesa não tenha sido resolvido na íntegra184, dando margem a outros intervenientes interessados na questão de Timor como a América, Austrália e a Indonésia. Este último tornou público no editorial da Berita Yudha (18/8/1974): “Hak untuk menentukan nasib sendiri tidak boleh dipisahkan dengan estrategis umum dan global185”, procurando justificar a invasão de 7 de Dezembro de 1975 e consequente ocupação e anexação forçada do território de Timor-Leste perante o mundo internacional.

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Tal declaração de Almeida Santos foi aproveitado por Goutland (primeiro-ministro australiano) e num encontro oficial com Suharto, a 6 de Setembro de 1974, em Yogyakarta, afirmava que “Timor Leste é demasiado pequeno para ser independente. É economicamente inviável. Se lhe for concedida a independência, é provável que haja uma dominação estrangeira, até mesmo um ataque” (Abreu, 1997; Mendes, 2005; Ramos-Horta, 1994; Gunn, 1999). Aliás, em qualquer circunstância, Almeida Santos aquando da visita a Timor, em Outubro de 1974, reverificou o seu discurso, 184 Michael Richardson, “Timor: a colonial question that has to be settled” (The Age, 5/9/1974). 185 “O direito à autodeterminação não pode ser separado de uma estratégia geral global”. Aliás, antes disso, ou nos meados de Maio de 1974, John McCredie (embaixador da Austrália em Jacarta) enviou um telegrama ao chefe do Departamento dos Negócios Estrangeiros, esclarecendo que a “Indonesian absorption of Timor makes geopolitical sense. Any other long-term solution would be potentially disruptive of both Indonesia and the

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“Timor-Leste é português até uma decisão da ONU”, afirmou o diplomata francês no Le Monde (Diário de Notícias, 3/11/1980). Portugal não tinha nenhuma necessidade de fazer exames de consciência, usando o ponto de interrogação para dizer “Timor é nosso?” Mas di-lo afirmativamente: sim, ‘Timor é nosso’, sem o ponto de interrogação. Noutro aspecto, se a Indonésia afirmou a sua soberania sobre Timor, não havia necessidade de manter os seus soldados nesta terra, porque um dia o ‘segredo escondido’ teria de ser coberto pela imprensa. Como é óbvio, todas estas exclamações (com ou sem ponto de interrogação) permanecem na memória daqueles que viveram na época, quando se acostumaram a “recompensar a distância com o prazer” (Blumenberg, 1990:32) da diversão do poder, que foi permanentemente alimentado com a reverência da informação construída a partir de uma censura prévia. Por esta razão, o jornalismo esgotou a esperança da firmeza daqueles que aventuram em busca da liberdade e da verdade – no caso concreto de Timor, tornaram-se, eles próprios, objecto de informação no limiar de todas as interrogações. É uma esperança “restituir a grande planície das palavras e das coisas, fazer falar tudo, fazer nascer, por sobre as marcas, o discurso ulterior do comentário” (Foucault, 1991:95). Os cinco países africanos de língua oficial portuguesa (PALOP’S), desde a data da invasão indonésia, foram a retaguarda diplomática da luta timorense. O apoio dado por estes países na Assembleia Geral da ONU foi muito significativo para o povo timorense, pois, sem esse apoio, a questão de Timor-Leste talvez tivesse sido já retirada da agenda política da ONU. Devido ao apoio dado pelos PALOP’S à FRETILIN (ainda em 1976), certa imprensa portuguesa caracterizava a solidariedade humana entre os povos de PALOP’S e Timor-Leste como uma “conspiração do comunismo internacional” (Ramos-Horta, 1994:181) e, a propósito disso, Michael Richardson, no Sydney Morning Herald (21/3/1975), colocava a seguinte pergunta: “Communism in Portuguese Timor: real threat or the work of a fevered imagination?”, afirmando também que a Fretilin era um partido popular ou social-democrata. Adelino Gomes186, então jornalista da RTP, referia também que alguns portugueses começaram por dizer: “Se você analisar as notícias em Portugal, o tema sobre a dimensão da tragédia do povo Timor é a primeira página, mas também os comentários são todos: ‘que chatice, houve uma invasão, mas também... são comunistas” (apud Marques, 2005:214-215 – sublinhado nosso), de que falavam o General Galvão de Melo e os Movimentos anticomunistas protagonizados por alguns dirigentes da UDT, Kota, Trabalhista e Apodeti, sob os

region. Its (absorption) would help confirm our seabed agreement with Indonesia. It should induce a greater readiness on (Jakarta’s) part to discuss Indonesia’s ocean policy” (Calk, 2001:37). 186 Foi testemunha ocular directa da invasão indonésia na zona fronteiriça de Timor.

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auspícios dos militares indonésios, incluindo o Bispo de Díli, D. José Ribeiro, que acusava a FRETILIN de comunista (Miranda, 2003:56-57). Na verdade, tais acusações não tinham fundamentos, porque os guerrilheiros nas montanhas de Timor-Leste rezavam sempre o terço numa capela improvisada (Stahl 1994:39)187. Miguel Sousa Tavares, em editorial da Grande Reportagem (edição de 1994, ano 5, nº 36), escreveu uma mensagem a Galvão de Melo, intitulada: “Deus lhe perdoe, general188”, adiantando que “esta edição da GR [Grande Reportagem] é dedicada a todos os Galvões de Melo deste desgraçado mundo”. Desde Dezembro de 1975 a 1988, em Timor-Leste encontrava-se “uma população dizimada pela guerra, pela fome e por todo o género de arbitrariedades e atrocidades das forças ocupantes” (Barbedo-Magalhães, 1992:35)189, e as autoridades indonésias autorizaram apenas poucos jornalistas estrangeiros a entrarem no território timorense. A esta realidade, a população reagiu de imediato, convertendo-se ou reforçando a sua adesão à Igreja Católica. O autor adianta que “o esquecimento e a apatia internacional são o maior inimigo do pequeno e oprimido povo Maubere” (idem, 1992:70-71), e as únicas forças que nutriam a sua coragem e a sua luta contra a ocupação indonésia eram a justiça e o direito190. Embora Timor tivesse sido assolado pelo silêncio histórico e pelo silêncio dos líderes mundiais, muitos deles detentores permanentes de cargos com poder de decisão e da chefia dos seus países, o povo timorense continuou a resistir, obrigando os referidos líderes a quebrar alguns dos compromissos assinados com as autoridades de Jacarta (relativamente ao apoio militar). Como observou Miguel Sousa Tavares no editorial da Grande Reportagem (edição de 1992, ano 3, nº 10:9), Ao longo de todos estes anos, desde 7 de Dezembro de 1975, muitas vezes, tenho pensado nos portugueses, cujos nomes a história absorveu, que espalharam em Timor a demagogia e a irresponsabilidade e, através do seu criminoso diletantismo político dos senhores de 25 de Abril, 187

A história dos guerrilheiros nas montanhas foi de uma vida dura, mas nem sempre, porque eles foram apoiados logisticamente pela população. Quando nos encontrámos com eles em 1999, os guerrilheiros rezavam sempre o terço no seu aquartelamento, e foram seguidores dos cultos de Santos, por exemplo, Santo António que era designado por grupo “Cinco Cinco”, e do grupo da “Sagrada Família”, liderado por L 7 (L sete) (Cornélio Gama), e o grupo de “Sete Sete” ou (77). Estes grupos rezavam o terço todos os dias para obterem um poder sobrenatural no sentido de resistirem ao ataque dos inimigos indonésios. 188 O autor acrescenta: Não me choca que o general Galvão de Melo se proclame amigo dos indonésios, que se faça receber, transbordando de vaidade, pelos esbirros dos Timorenses, que se ofereça para o cargo de embaixador da Indonésia em Lisboa ou de Portugal em Jakarta. Manifestamente, o general precisa de um cargo. Sofre porque acha que não lhe dão a devida importância. Mas, como vivemos em democracia, este homem – cujas amizades incluem, além da Indonésia de Suharto, o Iraque de Saddam Hussein – deve ter absoluta liberdade para revelar em todo o seu esplendor o substrato moral das suas convicções” (ano 5, nº36). 189 Cf. Tony Walker, “Report on Timor Atrocities”, in The Age, 22/2/1977, p.5; “The Dunn report on East Timor a chilling account alleging killing of civilians, looting and rape”, in Sydney Morning Herald, 4/4/1977. 190 Leia-se: Michelle Grattan, “Timor: sense or just a sellout”, The Age 23/1/1978, p.8; Stephen Nisbet, “Timor decision raises storm”, The Age 28/1/1978, p.3.

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nomeadamente Mário Soares, António de Almeida Santos, Galvão de Melo, Arnão Metelo, major Vitor Alves, Lemos Pires e outros membros do MFA, abriram caminho para a invasão indonésia. Que será feito deles? Dormirão descansados? Será que, ao menos, terão consciência do horror que causaram e do qual escaparam então, lestos e avisadamente? Imagino-os hoje feitos gestores de empresas, yuppies da bolsa e do mercado imobiliário, escondendo no fundo da memória o episódio fugaz de Timor e o seu fervor revolucionário de então (sublinhado nosso).

É bem clara a mensagem crítica de um jornalista sobre o modo como o governo português de então resolveu o processo de descolonização de Timor através do abandono e da entrega à Indonésia. Por isso, com Timor na sua consciência, Tavares pensa na justiça social: Se existe uma justiça para além da justiça dos homens, espero e desejo que eles (os autores responsáveis referidos na acepção) sejam um dia chamados a prestar contas, porque directa ou indirectamente já cometeram crimes contra a humanidade, saquearam o povo timorense inocente. Por isso, o que eles fizeram não tem perdão. Aproveitaram-se da ingenuidade e da boa fé de um povo que resistira durante 400 anos à hegemonia javanesa e conseguiram lançar entre ele a semente da discórdia e da divisão, terminando por fomentar uma guerra civil a que assistiram, feitos basbaques marxistas, versão Vavá. No final, foram os primeiros (o governador Lemos Pires, e suas respectivas equipas de trabalho), quando o exército de Suharto, com a complacência de Lisboa, resolveu pôr fim àquele pandemónio, da forma mais bárbara possível (Grande Reportagem, 1992, ano 3, nº 10:9 - sublinhado nosso).

No jornalismo, há sempre o conceito ‘ruído do silêncio’, ou seja, ‘espiral do silêncio’, que o próprio órgão jornalístico não consegue evitar. Por exemplo, há momentos em que o primeiro-ministro estava calado, porque se sentiu errado nas tomadas de decisões sobre o futuro de um povo. Segundo José Rodrigues dos Santos, é óbvio que falar à comunicação social em torno da ‘opinião pública’ formada pelo público em geral, independentemente de ser considerada uma reflexão inicial e a mais sensata, enquanto não se direcciona ao verdadeiro acontecimento, torna-se num espiral do silêncio (Santos, 2001:122).

2.1. Máscara do silêncio: a morte de cinco jornalistas estrangeiros Nos meses que precederam a ocupação de Timor-Leste, assistiu-se a campanhas de manipulação da informação a nível mundial. As principais agências de comunicação social indonésia divulgavam informações sustentadas pela tese dos EUA, dos países ocidentais (Austrália, Inglaterra, Canadá e França), incluindo a tese dos BAKIN, de que Timor-Leste

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independente poderia perturbar a segurança da região191. De facto, a invasão indonésia era parecida com o que foi praticado pelas tropas americanas no Vietname. Será que Timor foi a nova Vietname? (The National Times, 29/9 e 4/10/1975). A Operação Komodo dirigida a Timor-Leste em Outubro de 1975 não era para moderar a situação, mas tratava-se de uma operação de invasão e de ocupação, que foi assistida por cinco jornalistas estrangeiros192. Por este facto, Desmond Ball chegou a afirmar que a Indonésia não podia ignorar a monitorização da sua operação: It is noteworthy that on 8 April 1976, Australian Labor Senator, Gietzelt, alleged that the Australian Govermment was trying to suppress information about the deaths of the five journalists killed in balibo. He maintained that an Indonesian army radio message ordering the execution of the journalists had been monitored at the Australian naval headquarters at Jervis Bay (apud Gunn, 1994:133)

Os militares tinham medo de que estes jornalistas fossem divulgar as imagens sobre a invasão, por isso, a solução era matá-los a todos, como recordou Adelino Gomes em entrevista concedida a Rui Marques (2005:224): Em 75, eu quis dar o ponto de vista deles, no Timor Ocidental, e eles podiam ter influenciado porque influência sempre. Eles não quiseram, já tinha muito que esconder. E isso veio a provar-se, quando os indonésios encontram os jornalistas australianos e os mataram imediatamente. Os invasores, realmente, odiavam os jornalistas. E conseguiram mantê-lo fora. O que eu acho que se deve dizer é contrário: houve um muro de silêncio que afastou a imprensa mundial. Há apenas algumas excepções. Provavelmente porque foram tão excepcionais, faziam com que, quando um jornalista lá fosse, procurasse juntar todos os factores que eram aqueles que o lado indonésio estava a esconder.

Em certos casos, na comunicação, não havia uma terceira corrente que procurasse defender a verdadeira opinião pública, porque existia uma mudança de categorização dos assuntos, e talvez fosse isso que suscitava o problema de incapacidade na produção das ideias para convencer as diferentes opiniões contraditórias. No caso da Guerra do Vietanme, por exemplo, nos anos 70 do século XX, a população viveu numa situação de pânico e o campo 191

A propósito disso, Daniel Moynihan (Embaixador dos EUA na ONU) considerou Timor-Leste como “A dangerous Place”, isto é, segundo ele, “The Us wished thing to turn out as they did and worked to bring this about. The Department of State desired that the United Nations prove utterly ineffective in whatever measures it undertook. This task was goven to me, and I carried if forward with no considerable success” (obs. cit. Gunn, 1994:130). 192 Gregory Shackleton, Anthony Stewart, Gary Cunnigham, Malcolm Rennie e Brian Peters estavam em TimorLeste a efectuar a cobertura da invasão indonésia da antiga colónia portuguesa em 1975. Os três primeiros trabalhavam no Channel 7 e os dois últimos eram jornalistas do Channel 9. A morte dos cinco foi considerada como a de mártires da liberdade de expressão (Expresso, 9/2009). O filme sobre a morte destes cinco jornalistas foi exibido na Austrália, mas a Indonésia proibiu a exibição do filme “Balibó” no seu território, por recear que pudesse afectar as relações com Timor-Leste e a Austrália (Jornal de Notícia, 2/12/2009).

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jornalístico foi considerado uma área importantíssima para alguns jornalistas, como defende Adelino Gomes na sua entrevista concedida a Rui Marques (2005:227): o trabalho mais importante, que me deu o enquadramento que eu precisava, é um artigo de fundo no ‘Monde’, intitulado – O Vietname Silencioso. É um pequeno artigo, mas para mim foi importante porque tinha essa sensação, mas era preciso que os outros dissessem. E então um jornal de referência como ‘ Monde’, diz que há ali um ‘Vietname’, há ali uma luta, mas é silenciosa. Pegava nas duas coisas, a resistência e a opinião pública. E eu senti-me, digamos, encorajado a contrariar essa barreira de silêncio.

O silêncio193 foi considerado pelas autoridades indonésias como condição necessária da consolidação de um facto consumado e que motivou o encerramento do território timorense aos jornalistas194, organizações não-governamentais e à assistência humanitária. A estratégia política dos militares indonésios na eliminação da vida dos jornalistas e o fecho do território tinham como finalidade: 1) destruir os filmes dos cinco jornalistas que se encontravam em Balibó e que, de seguida, foram torturados e executados (Diário de Notícias, 5/3/1976:7) como uma forma de eliminar as provas da invasão195; 2) bloquear as redes de informação do 193

No caso de Timor, o silêncio mediático estava bem conspirado por agentes políticos internacionais, e esse silêncio só foi fortemente quebrado após o massacre de Santa Cruz de 1991, mas ainda duma forma ‘condicionada’. Assim sendo, vale a pena reter o que foi dito pelo responsável da operação CIA em Jacarta, C. Philip Liechty, ao jornal The Washington Post: “There is no shared of truth in the Indonesian version of events … before isolated East Timorese could agree upon a viable government, massed Indonesian forces swept in, US helicopters and logistical supplies were featured as more of our misdirected Asian largesse…little factual reporting on the bloodiest atrocities left the island; the Indonesian made sure of that, effectively blockading East Timor, turning back journalist and Western observers, terrorizing the populace and lying to the world about it, as now. […] Among some key Americans, the predominant view seemed to be that the US cultivation of a newly independent East Timor, to ensure its favorable UN vote during the Cold War years, would not be worth the necessary input, better to allow this half of an island to be grabbed by the Jakarta generals, who already ran the other half, thereby hopefully placing them in our political debt. And so it was” (apud Gunn, 1994:130) 194 Isto é, de acordo com o jornal Diário de Notícias (20/9/1976), “Indonésia corta acessos a Timor”, não só para legitimar a sua presença no território, mas sobretudo para defender a legitimidade de um artigo intitulado “Timor será a 27ª província da Indonésia”, publicado pelo Diário de Notícias (15/7/1975). O comportamento da Indonésia em fechar o território aos estrangeiros evidenciou a “fome geral em Timor-Leste”, confessa a fonte oficial indonésia (Diário de Notícias, 23/12/1977) e a mesma fonte oficial afirmou que “Timor continua a ter apoio da Cruz Vermelha” (Diário de Notícias, 8/9/1980), não resolvendo, porém, todo o problema que agravou a situação da população timorense, porque a fome e o recomeço da guerra em 1980 fazia com que aumentasse os números de vítimas da fome (Expresso, 22/3/1980); em 1982, outro documento afirmou que a fome e a doença (malária) em Timor-Leste não paravam de aumentar, deixando cerca de três mil órfãos” (Diário de Notícias, 14/9/1982), sendo isto prova de que o referido “espectro da fome” se mantinha (Expresso, 25/9/1982). A forma como a Indonésia colonizou Timor-Leste (Diário de Notícias, 28/7/1982) foi de ‘repressão cultural’, isto é, procurou destruir a existência da raça timorense através de casamentos forçados. 195 De acordo com Gatot Purwanto (na altura, tenente do exército indonésio), as forças especiais indonésias que controlavam a região de Balibó, em 16 de Outubro de 1975, assassinaram os jornalistas, que ficaram conhecidos como ‘os cinco de Balibó’, para manter o secretismo do envolvimento militar da Indonésia, dois meses antes da invasão (revista Tempo, 7/12/2009; Lusa, 8/12/2009), adiantando que, se os jornalistas tivessem sido deixados vivos, teriam revelado o que estava planeado para a invasão. Na base desta declaração, o diário Sydney Morning Herald (8/12/2009) publicou um artigo intitulado “Balibo Five Executed, Soldier Admits”, vejam-se também o “Pengakuan Gatot Buka Babak Baru Balibo Five” (Kompas, 11/12/2009). John Milkins (o filho de Gary Cunningham), por sua vez, afirmou que tanto os dois militares – Christoforus da Silva e Yusuf Yosfiah – como o ex-primeiro-ministro australiano Gough Whitlam, no poder na altura, devem ser considerados responsáveis pelo

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exterior para o interior ou vice-versa para que os estrangeiros não pudessem ter acesso à informação sobre a violação dos direitos humanos, ou, por outras palavras, os crimes cometidos durante a invasão e a ocupação; 3) para garantir o interesse dos quatro partidos políticos (UDT, APODETI, KOTA e Trabalhista), que desejavam integrar Timor-Leste na NKRI, a Indonésia criou uma ‘comissão secreta’ composta por agentes do BAKIN com o objectivo de preparar um documento chamado ‘Declaração Balibó de 1976’, em Bali, obrigando os dirigentes dos referidos partidos a assiná-lo para legitimar a intervenção militar directa em Timor; 4) foi necessário aniquilar todos os jornalistas estrangeiros que, após a invasão, queriam entrar no território de Timor-Leste e, ao mesmo tempo, as autoridades de Jacarta e respectivos oficiais mobilizaram uma campanha de lobby perante a comunidade internacional para que esta pudesse estabelecer a própria opinião pública a favor da Indonésia196. É neste sentido que emerge a espiral do silêncio, um círculo vicioso que distorce a imagem da construção social da realidade e desacredita qualquer definição de opinião pública (Santos, 2001:123). No que se refere ao silêncio mediático sobre a questão de Timor-Leste desde 1975 até à sua cobertura em 1988, Xanana Gusmão reconheceu que a situação naquela altura não permitia a entrada dos jornalistas estrangeiros, mas acusou toda a política, porque os políticos timorenses não estavam bem informados, e não conheciam ainda o papel da solidariedade internacional. Xanana adiantou que, embora as outras pessoas pudessem conhecer, ele próprio não conhecia muito porque não tinha informações. Desta forma, pegavam nas resoluções da ONU e tentavam segui-las todos os anos, para saberem se o caso ainda estava vivo, ou se estava morto. Era mesmo um completo isolamento (apud Marques, 2005:179).

crime de guerra, adiantando que “Este tipo de crime não prescreve. A Indonésia tem simplesmente que cumprir as suas obrigações internacionais à luz da Convenção de Genebra e dos tratados firmados entre a Austrália e a Indonésia”. De igual modo, a ex-jornalista Geraldine Willessee disse que o seu pai (Don Willesee – ministro dos Negócios Estrangeiros da Austrália, à época dos factos) contou-lhe sobre o papel da Austrália na invasão de Timor-Leste e como os indonésios tinham morto os cinco jornalistas australianos. Consultam-se o artigo de Patrícia Viegas: “Cinco de Balibó: crime de guerra investigado” http://www.dn.pt/inicio/globo/interior.aspx? content_id=1357417&seccao=%C1sia (consulta a 20/7/2011). Veja-se a obra de Shirley Shackleton (2010), The Circle of Silence: A Personal Testimony Before, During and After Balibo, Editora Murdoch Books Pty Lim; a entrevista de Shirley Shackleton a Mariângela Guimarães, publicada em http://www.rnw.nl/ portugues/video/shirley-shackleton-35-anos-em-busca-da-verdade (consulta a 15/6/2011); Shirley Shackleton, “Eight years of silene” (The National Times, 28/10/1983) e “Timor’s Torment” (Melbourne Sunday Herald, 10/12/1989). 196 De qualquer modo, relativamente às condenações à invasão contidas nas resoluções então adoptadas pelo Conselho de Segurança da ONU, a Indonésia continuava a impedir o acesso de estrangeiros ao território, dificultando a circulação de pessoas e de informação. Esta regra foi aplicada também aos timorenses, isto é, qualquer timorense que quisesse viajar dentro do seu território devia fazê-lo com o surat jalan (uma guia de marcha), que lhe permitia circular livremente na sua terra, mas sob controlo e terror.

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2.2. Timor-Leste nos jornais australianos e indonésios (1975-1988)

O objectivo de abordar a cobertura dos jornais australianos sobre os acontecimentos de Timor-Leste é procurar entender de que maneira a imprensa australiana pôde influenciar os diversos grupos envolvidos no processo de ‘troca de informação’, ‘discussão’ e até a ‘tomada de decisão’ sobre o futuro do povo de Timor. Estes três processos têm, como principal fonte, a cobertura jornalística australiana sobre o caso propriamente dito. A participação da imprensa australiana – The National Times, Melbourne Herald, The Bulletin, The Canberra Times, The Age, The Australian, The Weekend Australian, The Sunday Age e The Sydney Morning Herald – na cobertura jornalística sobre os acontecimentos que sucederam ao povo de Timor, antes e depois da ocupação Indonésia, parecia estar dividida em duas facções, ou seja, demonstrava uma certa insegurança na transmissão das notícias. Podese considerar esta participação da imprensa autraliana como um dos principais assuntos que Geoffrey Gunn (1994) abordou em A critical view of western journalism and scholarship on East Timor. A participação da imprensa australiana na cobertura jornalística sobre Timor começou desde cedo; em finais de Fevereiro de 1975, os jornais da Austrália começaram a dar ‘relatórios secretos’ a Camberra e afirmaram que as forças da Indonésia estavam a preparar-se para invadir Timor (The Age, 22/2/1975). A comunicação social Indonésia, por sua vez, acusava a Austrália – os esquerdistas, funcionários do Ministério da Defesa e o líder da oposição e porta-voz para os Negócios Estrangeiros, Andrew Peacock – de conduzir uma campanha contra a Indonésia (Chrystello, 2000:217). No momento em que surgiu a guerra civil em Timor, a imprensa australiana (The Northen Territory News, Nation Review – Melbourne, The Bulletin) e outra imprensa estrangeira (New York Time, Newsweek – New York e Far Estern Economic Review (Hong Kong), fizeram um excelente trabalho jornalístico, cobrindo quase todos os acontecimentos relacionados com a guerra civil entre a UDT e a Fretilin, que provocou entre 1500 e 3000 mortos. A cobertura jornalística deu também especial destaque à questão dos refugiados e ao problema do bem-estar dos timorenses; a FRETILIN estava pronta a formar o governo, preocupando ao mesmo tempo com os planos indonésios para intervir em Timor, por isso, apelou o Papa para ajudar Timor197. Estas questões foram propositadamente destacadas pelos

197

Vejam-se alguns artigos publicados pelo jornal The Northern Territory News: “A Fretilin pronta a formar governo” e “A Austrália acusada das mortes: ajudou a UDT, diz o líder da Fretilin” (29/9/1975); “Banho de sangue em Timor”, Planos de evacuação” e “partida do navio de refugiados” (22/8/1975); “Planos de auxílio aos

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jornais referidos com grande quantidade de informação, desde 11 de Agosto a 1 de Outubro de 1975 (Chrys, 2000:217-221), como destaca o gráfico a seguir. Gráfioco 11

A guerra civil terminou e a Fretilin retomou Díli e, em meados de Setembro, controlava todo o território. Por seu lado, o governador Lemos Pires e sua comitiva refugiaram-se na ilha de Ataúro. Veio outra ameaça do exterior e, nem mais nem menos, era o país vizinho Indonésio. O ódio começou a instalar-se entre os timorenses, e o partido derrotado (alguns dirigentes da UDT, conjuntamente com os da Apodeti, Kota e Trabalhista) pediu apoio militar e financeiro à Indonésia para recuperar o controlo de Timor-Leste a partir da fronteira. O apoio foi concedido com um simples gesto sarcástico, que era obrigá-lo a criar o MAC (Movimento Anticomunista), com a sede em Atambua (Timor Ocidental). Contudo, estava iminente a invasão da Indonésia; ninguém podia impedir a reivindicação do território timorense pelo regime de Jacarta. Nem o bom diplomata, nem o Santo, nem Deus, nem o diabo podiam alterar o plano indonésio de invadir formalmente o território de Timor-Leste, como destacaram alguns jornais sobre esta tragédia que se encontrava já instalada na zona fronteiriça de Balibó e Batugadé. Entretanto, a imprensa australiana e o jornal Far Easterns Economic Review, de Hong Kong, viram esta invasão como uma ameaça e, consequentemente, publicaram uma grande quantidade de notícias relativas aos meses de Outubro e Novembro (Chrys, 2000:222-226), como mostra o gráfico a seguir:

refugiados movem para sul”, Chefe da UDT a caminho de Darwin” (1/9/1975); “Fretilin apela ao Papa para ajudar Timor” e previu o “perigo de fome em Timor-Leste” (18/9/1975).

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Gráfico 12

Quanto a invasão, a imprensa australiana The Northern Territory News conseguiu reportar nas suas páginas cerca de 80 volumes de notícias referentes aos meses de Dezembro de 1975 a Junho de 1976 (Chrys, 2000:250:254). No seu curto tempo de governação, a direcção do Comité Central da Fretilin foi obrigada a proclamar unilateralmente a independência de Timor, alertando a opinião pública internacional para a eventual ameaça iminente da invasão indonésia. Não encontrámos nenhuma referência de notícias nos jornais relativa ao tema, mas, de acordo com Chrys Chrystello (2000:240), o The Northern Territory News estava desesperadamente a construir um discurso de positivismo para evitar o impossível: “Não havia conhecimento da invasão” (25/11/1975; “FRETILIN apela ao fim da agressão” (26/11/1975; “ACTU diz a Jakarta para largar Timor” (27/11/1975; “Refugiados de Timor temem represálias, afirma Rick Leeming” (28/11/1975); “Tentativa de auxílio humanitário falha” (1/12/1975); “A solução de Timor no campo de batalha” (2/12/1975); “Evacuação de Timor” e “Reconhecimento para a FRETILIN” (3/12/1975); “Médico fala de ameaças de morte; Chegam os evacuados de Timor”, “FRETILIN vai efectuar conversações”, “Apoio para a resolução”, “Apelo para a paz em Timor” e “Missa para jornalistas” (4/12/1975) e “Timor tenta admissão na ONU” (5/12/1975). Em Novembro de 1975, a invasão de Timor foi aceite pelo governo da Austrália, ignorando as fortes críticas da opinião pública australiana que provinha de todas as vertentes políticas e se uniram “numa só voz” (26/11/1975) para dizer ao mundo que “Timor-Leste é 309

livre” (The Age, 12/1975). Apesar destas duras críticas, o governo australiano não alterou a sua política externa devido à importância diplomática que tinha com a Indonésia. Contudo, no que diz respeito aos crimes sistemáticos de raptos e de matança dos timorenses pelos militares indonésios, foram sempre acompanhados pela guerra de informação – não só na imprensa australiana, mas também na imprensa de outros países, como Indonésia e Portugal –, pois a guerra de informação assumiu a responsabilidade da direcção quanto aos assuntos de garantia de informação (information assurance) e de protecção das infra-estruturas críticas. Estas duas expressões constituem tópicos de inovação doutrinária do discurso jornalístico na denúncia dos crimes praticados por elementos envolvidos no conflito. Vejamos, por exemplo, em 1977, James Dunn no jornal The Age (22/2/1977), afirmando que havia crimes sistemáticos de rapto e de matança dos timorenses (sejam eles apoiantes da FRETILIN ou da UDT) pelos militares indonésios, ao mesmo tempo que pelo menos 500 chineses timorenses foram torturados e assassinados pela unidade militar do Major Yusman e Coronel Sinaga, tendo esses crimes sido classificados como “new evidence of war crimes in Timor” (Sydney Moring Herald, 14/1/1977)198. As autoridades de Jakarta negaram as acusações de James Dunn sobre os crimes referidos e Adam Malik lançou uma campanha de “ungkupan peringatan Indonesia kepada Austrália – declaração de aviso da Indonésia à Austrália” (Merdeka, 16/3/1977). Mário Carrascalão, por seu lado, disse que “tolak tuduhan James Dunn dan Ramos Horta – recusa as acusações de James Dunn e Ramos Horta” (Antara, 5/4/1977). A negação assumida pelas autoridades de Jacarta era para garantir a confidencialidade de informação do seu legítimo estado e também de todas as outras propriedades da informação, designadamente as da integridade, do não repúdio, da autenticação e da disponibilidade. As referidas autoridades e seus militares não se limitaram a colocar a informação em locais bem protegidos, com controlo físico de acessos de grande robustez – o conceito de ‘cofre de informação’ passou a ser aplicado a um número reduzido de dados, até porque, com a indispensabilidade da rede, é-se forçado a correr um outro tipo de risco, ao fazer com que a informação estivesse disponibilizada a quem dela necessitava no tempo certo, sem estar deturpada ou corrompida. Por isso, era preciso vigiar e detectar indícios de ataque, agir com antecipação, e reagir no momento ou no pós-ataque, no sentido de reparação de danos ou de recuperação da 198

Veja-se também o editorial de Sydney Morning Herald (edição de 4/4/1977) sobre a testemunha de James Dunn perante a questão de captação “The Appeasers”. James Dunn estimava que 100.000 timorenses foram aniquilados, mas Adam Malik (ministro dos Negócios Estrangeiros da Indonésia), na sua convicção retórica distorcida, estimava apenas de 80.000 mortos (Sydney Morning Herald, 4/4/1977).

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informação – a título de exemplo, referia-se que, quando se estava a vigiar uma zona ocupada ou controlada, as informações fornecidas por Agentes Secretos eram deliberadamente erradas e, no quadro de acção, tudo isto poderia ser considerado como uma acção de ‘information assurance’. Foi talvez este o método utilizado pelos militares indonésios na sua campanha política de legitimação da integridade do estado NKRI, controlando os jornais nacionais do seu país e utilizando-os para contrabalançar o ataque da imprensa internacional à Indonésia. Nos primeiros anos da ocupação, os jornais nacionais da Indonésia lançaram uma campanha de lobby no intuito de procurar conquistar a opinião pública internacional, aproveitando o discurso dos líderes de países aliados (Austrália, os EUA, Canadá, França e Inglaterra), como revelou o editorial Kompas (edição de 18/12/1978): “Australia siap akui de júri Timtim199”. Para a Indonésia, isto significava a integração de Timor-Leste como ‘closed chapter’ (Sydney Morning Herald 12/10/1976)200. Foi nesta expectativa que o editorial Antara (26/5/1981) escreveu “Menurut Whitlam Tim Tim tidak akan dipermasalahkan lagi201”, porque foi a própria Austrália que apoiou a reivindicação da Indonésia sobre Timor-Leste (The National Times, 15-20/12/1976; The Age, 21/1/1978), para que “Integrasi ada artinya yang dirasakan rakyat kecil” (Kompas, 15/10/1977)202, e o editorial do Sydney Morning Herald, a 12 de Julho de 1984, apresentou a mensagem de Bill Hayden (ministro dos Negócios Estrangeiros na conferência nacional do ALP – partido a favor da incorporação de Timor na Indonésia), segundo a qual “Nothing can change the fact East Timor is part of Indonesian”. Devido a este facto, o então primeiroministro português, Cavaco Silva, criticou a posição do partido trabalhista australiano (Gunn, 199

“Juridicamente, Austrália estava disposta a apoiar a integração de Timor-Leste na Indonésia”. Foi uma decisão do governo australiano, que não queria saber nada sobre os crimes praticados pelas forças armadas indonésias. Vejam-se o editorial The Age (23/1/1978): “Realities of recognition” – “The fact recognition cannot be welcomed. it is both wrong and premature . … we do not accept that a too hasty bowing to the inevitable is necessarily in our best interests, particularly if the region thinks we are prone to make a habit of it”; e “Whitlam tentang masalah Timor Timur” (Sinar Harapan, 28/5/1991). 200 Veja-se Pat Walsh, “Timor Report: Whitlam and Hastings Observed”, Arena, nº 60, 1982, p.136-145; consulta-se também “Walsh examines Hastings own reports as they appeared in the Sydney Morning Herald and Melbourne Age (6/3/1982 e 9/3/1982); “Whitlam’s own account in the Bulletin (30/3/1982). 201 “Segundo Whitlam, Timor-Leste já não tem problema”, mas foi atacado com duras críticas na ONU pelos respectivos membros dessa Organização Internacional (Sydney Morning Herald, 10/11/1982) por ter rejeitado a presença dos representantes da Fretilin na ONU, como escreveu a agência noticiosa indonésia Antara (10/11/1982): “Whitlam cela para petisioner pendukung Fretilin”. 202 Vejam-se também os artigos do Prof. H. W. Arndt (Professor da Economia da ANU), “Pengabungan TimTim dengan damai ke RI, jalan paling masuk akal” (Suara Karya, 30/3/1977); “Timor: expediency ou principle” (Quadrant, 5/1976); “Timor: vendetta against Indonesian” (Quadrant, 12/1979) e “The propaganda war over East Timor” (The Bulletin, 18/7/1979). O periódico do partido Golkar, Suara Karya (30/3/1977), aprovava a asserção do Prof. H. W. Arndt publicada no Camberra Times (22/3/1977) e The Age (22/3/1977), no que diz respeito ao ponto de vista de Whitlam sobre a integração de Timor na Indonésia (ver informação completa em Gunn, 1994:139).

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1994:148). As autoridades indonésias não se preocuparam com tal crítica e, desta forma, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Indonésia, Mochtar Kusumaatmadja, declarou: “I think it will help restore relations between the two Governments, as the Labor Party happens to be in power” (12/7/1986). Por seu lado, a imprensa nacional da Indonésia sempre foi a voz do regime e nunca ali passou nenhuma notificação de notícias retóricas que colocasse em causa o regime político em que se inseria; quando havia ‘escândalos’ de ‘fuga de informação’, os alinhamentos políticos começavam a obrigar os jornais nacionais a desmenti-la, dizendo que tinha sido apenas um boato inócuo que os adversários políticos lançavam para que o mundo não acreditasse na Indonésia. No fundo, os jornais indonésios, pela sua credibilidade editorial enquanto órgão de comunicação independente, mudavam os responsáveis dos jornais, mas a essência manteve-se. Era um repositório editorial que estava sob controlo do regime de Suharto e respectivos militares e, em relação aos jornalistas estrangeiros, as autoridades de Jacarta entenderam que alguns jornalistas manifestavam a sua crítica à Indonésia e referiam que entre estes ‘alguns’ estavam na lista negra, como Mark Baker, Michael Bymes e David Jenkins. Dom Martinho da Costa Lopes, num dos seus comunicados, criticava abertamente os terríveis crimes praticados pelos militares203:

For us of the Church it was terrible, there was no one the people could go to for help, except us, and we could do so little. Each time I went to the commander and complained; for years I did this. Maybe it helped for a short while, but really nothing, the military treated us with contempt, so after five years I started to speak out. I spoke in the church against the military. I told them that if they wished to kill me they knew where I was, I was ready for death204

203

Em 1983, Monsenhor Martinho da Costa Lopes dirigiu uma carta ao Comité Episcopal para o Desenvolvimento Social e a Paz Mundial dos EUA, chamando-a atenção para que fosse solidário com a Igreja e o povo de Timor-Leste: “Face ao genocídio cultural e psicológico que nos foi imposto pelo exército indonésio, a Igreja Católica emergiu como única organização na qual o povo de Timor-Leste confia […] As pessoas contam tudo o que sabem aos padres. Há nove anos, desde a invasão indonésia, que a Igreja timorense escuta com atenção. Com a mais alta autoridade moral, a Igreja de Timor-Leste pode afirmar que conhece as dificuldades do povo, bem como as suas mais profundas aspirações” (veja-se o IDOC – International Documentation Centre, Rome, Introduction, pp.1-2, Pro Mundo Vita Dossier ‘East Timor’, 1984, Brussels, pp.36-7). Um ano depois, D. Ximenes Belo, através da sua carta datada de 16 de Fevereiro de 1984, explicou a D. Martinho da Costa sobre o agravamento da situação política e social que os indonésios criaram em Timor-Leste: “Desde 8 de Agosto que a situação piorou. Prenderam-se em todos os postos as pessoas (só em Díli seiscentas pessoas) e agora estão a ser julgadas em tribunais militares. Outras feitas desaparecer. Não sabemos se estes tribunais são imparciais e se há advogados de defesa” (Expresso, 28/4/1984:1-24). 204 Monsenhor Martinho da Costa Lopes (1992), “Whispering terrible things day and night” in: Turner, Michele, Telling: East Timor Personal Testimonies, 1942 – 1992, Kensington: New South Wales University Press, pp. 164 – 168; cf. Miranda, (2003:66-67)

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Era a sua primeira denúncia em público. Noutro documento, apelou à comunidade internacional para que exigisse a retirada imediata das forças armadas indonésias do território timorense, e, numa atitude realista, afirma: A 13 de Outubro de 1981, perante uma multidão calculada entre 12.000 e 15.000 pessoas, julguei oportuno denunciar pela primeira vez a morte de 500 timorenses que, mal se tinham rendido, foram cruelmente assassinados [...] Sinto-me na imperiosa necessidade de denunciar ao mundo inteiro [...] o genocídio que se pratica em Timor, para que, se morrermos, o mundo saiba pelo menos, que morremos de pé (apud Miranda, 2003:67).

Na sequência desta denúncia foi alvo de ameaças de morte; Whitlam, por seu lado, não gostou deste tipo de declaração e respondeu: “I cannot understand why he [bishop] perpetrated this wicked act and sent this cruel letter” (The Age, 6/3/1982). Por esta razão, o editorial de Kompas (6/5/1982) descreveu que “Whitlam sesali isi surat uskup Dilli”, enquanto editorial de Suara karya (6/3/1982) fez saber que, na opinião de Whitlam, a segurança pública em Timor-Leste estava óptima e o desenvolvimento estava a seguir pelo bom caminho, pelo que, “tiba saatnya masalah Tim Tim dicabut dari PBB” (Kompas, 11/11/1982)205. Em todo o caso, a política externa australiana sobre a questão de autodeterminação de Timor-Leste foi sempre pautada pelo seu interesse nacional e não pelo interesse do povo timorense. Em 1983, houve um ciclo de mudanças na política executiva australiana que levou Bob Hawke a governar a Austrália206, mas a sua estratégia política externa com a Indonésia não se alterou, continuando a defender a incorporação de Timor-Leste na Indonésia como um ‘facto consumado’. O ainda primeiro-ministro australiano adiantou: “Nós não podemos deixar a Indonésia de rastos” (Sydney Morning Herald, 5/5/1986). A mesma estratégia política foi seguida também por Paul Keating em 1993207; já em 1990, o líder da Resistência Timorense

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“Chegou a hora de o problema de Timor-Leste ser retirado da agenda da ONU”. The Age: “Australian under fire over switch on Timor vote” (15/3/1985), “PM facing a new row on Timor” (19/8/1985), “Hawke shrugs off Portugal’s Timor protest” (23/8/1985), “Mr. Hawke and East Timor” (Editorial, 23/8/1985), “Hawke’s East Timor stand is applauded” (24/8/1985) e “Australia just a koala bear on East Timor” (9/12/1985); Sydney Morning Herald: “Hawke’s ‘embarrassment’ over Timor policy” (18/3/1983), “Govt. seek loophole on ET” (26/3/1983), “Hayden off to fix fences in Jakarta” (25/3/1983), “Hayden warns ALP on Timor” (21/4/1983), “Hawke criticized over East Timor” (18/4/1983), “Govt set for change on Timor” (9/4/1983), “Cabinet meets on East Timor” (29/3/1983), “Hawke concerned over Timor deal” (4/6/1983), “Leftwing to challenge PM’s policy switches” (7/6/1983), “PM denies breach of policy on Timor” (8/6/1983), “Hawke’s Timor hurts Hayden’s Kampuchea” (11/6/1983), “Hayden defends Indon policy” (18/6/1983) e “Hawke’s is not fussed by policy critics” (28/6/1983). 207 A propósito, Paul Keating definiu a sua política de engagement com a Ásia sem subterfúgios, dizendo que “nem Camberra nem Jacarta podem permitir que a relação entre os dois países se torne eternamente refém de Timor Leste” que “nenhum país é tão importante para a Austrália como a Indonésia”. Gareth Evans afirmou em 206

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acusou a Austrália de se parecer com uma equipa que fazia o trabalho de “playing dirty” (Sydney Morning Herald, 25/11/1990) nas páginas dos jornais do seu país. O problema de Timor foi entendido na íntegra como uma temática institucionalizada pelas grandes empresas de comunicação social australianas. Havia duas opiniões quanto ao tema de Timor: uma apoiava o direito do povo timorense à independência; outra apoiava a Indonésia, ambas fazendo guerra de argumentos sobre esta causa nos jornais do seu país, desde 1975 até 1999, como tema de cobertura jornalística e como referência do panorama mediático australiano. A quantidade de peças publicadas foi ‘quase sempre’ semelhante entre uma e outra, isto é, embora o título da notícia fosse diferente, o conteúdo de notícias que os jornais referidos construíam, era o mesmo. Timor-Leste era abordado com maior frequência pelo The Sydney Morning Herald, com 43% referências publicadas; de seguida, pelo The Age, com 20% referências de notícias, e 15% de referências editadas por The Australian, como se pode ver no gráfico seguinte: Gráfico 13

várias ocasiões a recusa de adoptar qualquer atitude “de confrontação com Jacarta”, e explicou que a posição do seu país assentava na ideia de que “A anexação de Timor é irreversível [...] movimentamo-nos no contexto de uma colónia desprezada [...] deixada numa situação revoltante, sem educação, sem infra-estruturas, sem nada. Apenas um enorme vazio”. Em 27 Fevereiro de 1996, em Sydney, os manifestantes ocuparam uma sede da campanha eleitoral do Primeiro-ministro australiano, Paul Keating, em protesto contra o governo da Austrália por alegadamente ignorar as violações dos direitos humanos em Timor-Leste.

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Atente-se ainda que, nos anos 90, a sociedade australiana estava dividida em duas facções quanto ao problema de Timor. De acordo com Geoffrey Gunn (2001:81), havia muitas pessoas comprometidas na luta pela independência, mas outras, especialmente aquelas que tinham trabalhado no governo e na administração pública, consideravam a luta do povo de Timor como uma coisa perdida, de entre estas, havia quem apoiasse activamente a integração de Timor na Indonésia. O escândalo internacional causado pelo massacre de Santa Cruz não passou impune perante a opinião pública australiana, como afirmou o secretário da Australian jornalist’s Association (AJA), Christopher Warren: Embora a AJA não tenha uma política específica em relação a Timor Leste desde há muito que tem uma forte dedicação ao princípio da liberdade de imprensa e dos direitos dos jornalistas relatarem livremente e em segurança de qualquer parte do mundo. A morte de cinco jornalistas australianos, há mais de 15 anos, reforçou esse nosso compromisso pelo qual lutamos activamente nesta nossa região e através da nossa filiação com a Federação Internacional de Jornalistas. Por favor transmite os meus melhores votos à Conferência em nome da AJA (apud Chrystello, 2000:271-272).

Com o massacre de Santa Cruz, o problema de Timor tornou-se centro de atenção da sociedade australiana, mas isto não alterou a política externa do seu governo com a Indonésia; isto porque continuava a haver duas facções: por um lado, o povo dizia aos media australianos, “Australia has forgotten it's friends in East Timor but australians have not”; e, por outro, Bob Hawke, então primeiro-ministro, classificava o massacre como uma “tragédia horrível208”, mas o ministro dos Negócios Estrangeiros, Gareth Evans, foi a Jacarta para assinar com a Indonésia os acordos sobre a exploração do petróleo do Mar de Timor e afirmou pragmaticamente aos media australianos209 que não acreditava que a opinião pública internacional fosse mudar de decisões após o que se passou no cemitério de Santa Cruz de Díli. Aliás, fosse qual fosse a opinião do governo da Austrália sobre Timor para bem ou para mal, não alterou totalmente a sua política externa face à Indonésia. Em virtude disso, recorremos à opinião de Chrys Chrystello, porta-voz da Australian Jornalists’ Association (AJA), numa mesa-redonda sobre a opinião pública internacional: […] A maior parte dos jornalistas está subjugada por uma concentração da comunicação social em que esta depende da concentração do capital em volta de alguns para sobreviver, e, mesmo que quisessem não poderiam escrever livremente sobre Timor Leste. A maior parte dos meios de comunicação social na 208

Veja-se o artigo de David Jenkins – Hawke sound and fury no solace for East Timor (Sydney Morning Herald, 16/11//1991) e Hawke and the East Timor (5/12/1991). 209 Veja-se: The Sydney Morning Herald – Whitlam wrong on Timor: PM, Evans (11/12/1991), Jakarta General rebuked by Evans (12/12/1991), Massacre enquiry must be fair, Evans (20/11/1991).

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Austrália tenta ignorar o mundo e nem sequer disfarçam esse facto. Uma visão limitada e xenófoba ainda caracteriza os meios de comunicação australianos e, embora nós, Australianos, proclamemos ser a nação mais multicultural do mundo vivemos ainda com os nossos fortes laços emocionais com o Reino Unido, os nossos laços ideológicos com os EUA e os nossos laços linguísticos com o Canadá. Embora nos localizemos na área geopolítica do Sudeste Asiático e Pacífico fingimos viver na Europa. Em décadas futuras tornar-nos-emos mais asianizados mas enquanto isso não acontece a nossa mentalidade ainda é muito europeia (Chrystello, 2000:270-271).

De igual modo, Chrys Chrystello não escondeu a sua admiração pelo modo como o caso de Timor foi adoptado por políticos, académicos, pelas pessoas da rua: O caso de Timor Leste já foi adoptado por políticos, académicos e pelo homem da rua mas parece sempre demasiado afastado quando comparado com as atrocidades no Chile, Camboja, América Latina ou África. Contudo, Timor fica apenas a 400 km. de Darwin, no Território Norte e é sempre mais fácil defender os Direitos Humanos daqueles que vivem mais longe e não nos dizem muito em termos civilizacionais. Esta a razão pela qual decidi basear a minha representação neste Seminário em depoimentos escritos de políticos, australianos, indivíduos e grupos de apoio (Chrystello, 2000:270-271).

A legitimação do discurso dá especial valor ao poder de persuasão, e essa persuasão discursiva está na base da crítica da razão. Crhystello usou esse poder de persuasão para convidar o público a interessar-se por ‘Timor-Leste’, o tema em discussão, apresentando o apoio vindo dos ‘povos aborígenes que identificam a sua luta com a dos primos vizinhos de Timor-Leste’, como um exemplo incontestável na história de solidariedade social, embora até hoje, essa raça fabulosa há mais de 60 mil anos não goze dos direitos básicos.

3. Período de despertar, de explosão e de consolidação (1989-1996)

Em 21 de Maio de 1988, o ministro do Interior indonésio, Rudini, declarou em entrevista ao jornal Kompas que Timor-Leste deveria tornar-se uma província indonésia com livre acesso e circulação de pessoas. Embora faltasse saber a reacção dos militares para tal proposta, o Ministério do Interior continuou a avançar com o plano de abertura do território; porque, segundo documento do referido Ministério, não haveria dificuldade em sancionar uma abertura ao mundo exterior. Esta notícia foi divulgada pela maior parte dos jornais indonésios, e reeditada por alguns jornais da Austrália, dos países da ASEAN e Portugal.

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A abertura do território em si foi concretizada formalmente em 1989, e considerada como uma profunda mudança política interna indonésia no respeitante a Timor-Leste. Esta abertura foi um marco positivo para os jornalistas poderem recolher informações sobre os acontecimentos em Timor. Assim sendo, as notícias fabricadas pela imprensa internacional, ainda pouquíssimas, tiveram apenas três acontecimentos principais: a visita do Papa João Paulo II, em 1989; e, em 1990, a do embaixador norte-americano, John Monjo, a Jakarta, onde foi acolhido por uma manifestação em frente ao hotel onde se encontrava hospedadado210; e o pedido de asilo político de estudantes timorenses na embaixada holandesa, em 1994. Estes acontecimentos – na perspectiva da agenda dos media – foram classificados como acontecimentos privilegiados na história de libertação nacional timorense. A propósito da abertura do território, Xanana Gusmão (2002:146) afirmou que “Se Jacarta continua saboreando a sua grande vitória no plano da propaganda, a resistência maubere não deixou de mostrar que sabe situar-se a toda e qualquer alteração produzida pelo ocupante. Temos usufruído muito mais vantagens do que o próprio ocupante, dessa política, vantagens que são despercebidas muitas delas até mesmo desconhecidas mas que, no âmbito global da resistência, reforçam os fundamentos desta luta popular”. Adiantava que a abertura do território “é uma marca importante, e nós devemos reconhecer, o papel que Mário Carrascalão desempenhou, quando insistiu na abertura do território. O palavreado que ele usou foi diferente. Mas nós também aqui nunca elogiámos, estamos sempre a condenar...De forma que revelou, vamos dizer, um entendimento político profundo do próprio Mário, quando insistiu na abertura” (apud Marques, 2005:181). Verifica-se, no entanto, que, com a abertura do território ao mundo, o problema de Timor ganhou visibilidade na opinião pública mundial. Na construção das notícias, os media foram dando conta de que existia uma sólida consciência nacional no povo timorense e que a sua luta tinha um fundamento de legitimidade211. 210

Em Díli, John Monjo foi igualmente recebido com uma manifestação de jovens no Hotel Turismo. Nos dias seguintes, durante a sua estadia em Díli, teve lugar uma manifestação com a participação, não só de jovens, mas de grande parte da população mais corajosa, que desfilaram pelas ruas, aclamando palavras de ordem como ‘Viva Timor-Leste’, ‘Viva Xanana’, ‘Resistir é vencer’, entre outras. As consequências foram desastrosas, pois seguiram-se capturas e perseguições aos manifestantes. Gregório Saldanha, um líder do movimento juvenil de então, relatou a CAVR que “A manifestação ao embaixador dos EUA durou três dias. No primeiro dia, havia poucas pessoas, mas no segundo aumentou e no terceiro dia estavam lá, além dos jovens, também os mais velhos – entre eles as mães que, na rua, rezavam o terço” (Entrevista da CAVR a Gregório Saldanha, Díli, 6 de Maio de 2004; ver também entrevista da CAVR a Octávio da Conceição, Díli, 3 de Novembro de 2002). 211 O embaixador Rui Quartin Santos, em entrevista concedida a Rui Marques (2005:106), defende que “essa abertura trouxe a vinda de pessoas, a vinda de jornalistas mais ou menos reputados, de países que não precisavam de ‘visto’ para entrar na Indonésia e acabavam por chegar aqui. Começou a haver claramente, com essa abertura, à qual na altura não se deu um grande relevo, mas teve um significado profundo, que talvez os indonésios não tivessem percebido”.

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3.1 A visita do Papa

A visita do Papa João Paulo II a Timor-Leste, no dia 12 de Outubro de 1989, foi um momento de grande alívio e alegria para muitos timorenses. Tratou-se de uma visita histórica, porque era a primeira vez que o chefe de Estado do Vaticano fazia uma viagem de peregrino a Timor-Leste. Os jornalistas dos grandes meios de comunicação internacionais que acompanhavam o Papa abriram um novo caminho para produzirem o discurso jornalístico sobre a chamada ‘Resistência Timorense’ nas primeiras páginas dos jornais212. Naquela altura, os timorenses e os indonésios viviam uma realidade de grandes expectativas. Os timorenses esperavam que o Papa denunciasse a ocupação indonésia; e a Indonésia esperava que o Papa reconhecesse a integração e a incorporação da Igreja de Timor-leste na Conferência Episcopal Indonésia213. Nem o desejo dos independentistas nem o da Indonésia foi questionado pelo Papa, mas este partilhou a sua simpatia com o sofrido ‘clero timorense’214 pelas pressões e reconheceu publicamente o sofrimento do povo timorense, como exclamou na sua homilia: O que significa ser-se o sal da terra e a luz do mundo em Timor Leste, hoje? Há muitos anos que experimentais a destruição e a morte devido a conflito; sabeis o que é ser-se vítima de ódios e contendas. Muitos inocentes morreram, enquanto outros têm sido vítimas de retaliações e de vinganças…Deve

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Alguns jornais australianos anticiparam a visita do Papa; por exemplo, The Age (7/10/1989) publicou o artigo de Desmond O’Grady intitulado: “Political dilemma for visiting Pope”; Lindsay Murdoch – “Political minefield awaits the Pope in East Timor” (9/10/1989) (The Age, 31/8/1989). Os jornais portugueses também não quiseram perder no concurso de “transmissão de informação” sobre a eventual visita do Papa João Paulo II, e o Expresso (22/4/1989) não hesitou em publicar um artigo intitulado “Timor-Leste: Suharto compromete João Paulo II” e “Indonésia tenta evitar boas vindas ao Papa” (7/10/1989). 213 Veja-se o artigo de Lindsay Murdoch, “Indonesia hits at vote call in Timor” (The Age, 31/8/1989). A agência noticiosa LUSA também teve acesso a este acontecimento: “[…] o Governo indonésio tinha esperanças de que a visita do Papa a Timor-Leste fosse um reconhecimento de que Jacarta controlava aquele território que as suas forças invadiram em 1975. Porém, sublinha o Guardian, numa reportagem de Juliet Rix, a missa terminou com uma manifestação barulhenta e com o povo gritando apelos à liberdade e independência de Timor-leste” (Lusa, 31/10/1989). Segundo o Expresso (14/10/1989), a “Polícia indonésia matou manifestantes frente ao Papa”. 214 É necessário, portanto, reconhecer também que alguns padres, além de darem apoio moral às populações, serviram, muitas vezes, de transporte e de abrigo a Xanana e a outros elementos da Resistência, e chegaram mesmo a transportar pelo menos um aparelho de rádio emissora e outros equipamentos de comunicação, e até uma metralhadora para a Resistência. O primeiro contacto estabelecido entre os religiosos (bispo D. Martinho da Costa Lopes e respectivos padres) e a Resistência (nomeadamente, com o Xanana) realizou-se na casa do Liura de Mehara, Miguel dos Santos. O Pe. Mário Belo albergou, muitas vezes, Xanana Gusmão em sua casa, chegando a acontecer lá escondido o líder da Resistência e, na sala ao lado, o comandante local ou outros militares indonésios que o padre entretinha com anedotas e animadas conversa (Barbedo-Magalhães, 2007b:371373). Pe. Felgueiras escreveu que “Anos mais tarde, o então Presidente da Câmara de Lisboa, Dr. Jorge Sampaio, ofereceu à resistência armada um telefone de comunicação via satélite (apud Barbedo-Magalhães, 2007b:374).

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garantir-se firmemente o respeito pelos direitos que tornam a vida mais humana; os direitos dos indivíduos e os direitos das famílias (Kohen, 1999:178).

Uma declaração experimental e indirecta, mas com perspectiva global, ou seja, uma explicação moral que o Papa deu aos timorenses sobre ‘o que significa ser-se o sal da terra e a luz do mundo em Timor-Leste?’, utilizando tais expressões para questionar a destruição e a morte do ser humano inocente, não só em Timor, mas no mundo. A declaração de João Paulo II mais empolgante e directa foi na jornada açoriana em Maio de 1991, onde quebrou finalmente o silêncio sobre Timor, dizendo: “todos os dias rezo, em especial por essa ilha e desejo que os timorenses vivam de acordo com os seus próprios princípios e costumes, a sua própria língua, a sua própria cultura, a sua própria tradição” (Público, 12/5/1991). A visita do Papa foi, como pudemos todos constatar, largamente acompanhada por jornalistas da imprensa, rádio e televisão. “Os gritos por um Timor-Leste independente ecoaram em Português e em Tétum, quando João Paulo II concluiu, com as palavras ‘ite missa est’, as forças de segurança começaram então a actuar com maior contundência contra os jornalistas. Arrebataram as máquinas a dois deles, destruindo os filmes” (Barbedo-Magalhães, 1992:45). Ramos-Horta, por seu lado, enquanto fonte privilegiada de notícias, começou a entusiasmar-se, escrevendo vários artigos para mobilizar a opinião pública internacional: Daí que eu tenha escrito, em várias ocasiões, que ‘o momento de viragem na mobilização da opinião pública internacional para Timor-leste foi por ocasião da visita do Papa. [...] depois de muitos anos de silêncio, de repente, Timor é colocado no mapa. E acredito que a vinda dele foi a sua maneira de ajudar este povo. E jovens timorenses, com algum sector da Igreja timorense por trás, sem o bispo Belo estar envolvido nisso, já conscientes da importância política do Papa e dos media, orquestraram uma acção de protesto durante a missa em Tacitolu. Começam a surgir os meios de comunicação mais rápidos, e a partir daí, já era mais fácil sensibilizar ONG e as organizações religiosas para o drama de Timor-leste, e já era mais fácil sensibilizar todo o mundo (apud Marques, 2005:197).

A visita do Papa foi - segundo os líderes da Resistência timorense – um sinal positivo demonstrado pela administração apostólica com o sofrimento do povo de Timor, como foi bem expresso por Xanana Gusmão (2002:205): “é com gratidão que tivemos conhecimento de que Sua Santidade o Papa João Paulo II continua rezando pelo povo de Timor-leste. Apelamos a Sua Santidade para interceder junto dos governos ocidentais, nomeadamente, da Austrália, no sentido de reservar a sua atitude perante o martírio do povo de Timor-Leste. Expressamos a nossa confiança de que Sua Santidade continuará abençoando a heróica luta do povo Maubere pela sua libertação”. Entretanto, para Xanana, a visita do Papa foi um passo importante do 319

ponto de vista político e da resistência, porque, afinal, o Papa visitou a 27ª província, que ainda está na agenda da ONU, que ainda não está resolvido, fazendo falar e colocando a questão de uma situação ainda ilegal.

3.2. O Massacre de Santa Cruz: o silêncio quebrado

Apesar de os governantes, políticos e militares indonésios inicialmente terem acreditado que, mais tarde ou mais cedo, “o tempo está do nosso lado” (Anderson, 2000), e a questão de Timor-Leste acabaria por desaparecer da agenda política internacional, com o massacre de Santa Cruz, em 1991, esta convicção política começou a perder adeptos215. Isto para mostrar que, apesar de terem sido registados outros massacres praticados pelos militares indonésios nos anos anteriores – por exemplo, no massacre de Kraras registaram-se, pelo menos, 500 pessoas esmagadas de uma forma sádica216, e o bispo Ximenes Belo acusou os militares de terem praticado massacres em 84 vilas (Reuters, 1/3/1984), – o massacre de Santa Cruz marcou a diferença, porque foi acompanhado directamente pelos jornalistas internacionais, entre os quais Alan Nairn, Amy Goodman, Max Stahl e Steve Cox. Estes jornalistas foram espancados pelos militares indonésios (RTP, 12/11/1991). O massacre de Santa Cruz foi seguramente o acontecimento que mais mobilizou os jornalistas e as organizações não-governamentais, no sentido de se interessarem e se preocuparem definitivamente com o destino do povo timorense217. A partir das imagens de

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Metaforicamente, Timor era – segundo Philip Adams – um território “the forgotten Kuwait on our doorstep” (The Weekend Australian, 24-25/11/1990) que, em termos de valor-notícia, começou a ganhar espaço de acção na agenda política internacional depois que as tropas indonésias mataram Sebastião Rangel Gomes e Alfredo, em 28 de Outubro de 1991 (Camberra Times, 30/10/1991). Veja-se também “Australians dispute Timor riot claims” (Weekend Australian, 2-3/11/1991); Peter Cronau – “Pre-Massacre plan to dismantle underground” (Broadside weekly, 18/11/1992); Mark Metherell – “Indons accused of Dili Killings” (The Age, 13/11/1991) e “Troops kill 100 in Timor crowd” (Sydney Morning Herald, 13/11/1991). Podem ler-se também as cartas ao editor, as quais: “Indonesia has perpetrated a massacre like sharpeville” (The Age, 14/11/1991), “Genocide risk faces Timorese” (The Age, 11/12/1991), “Timor barbarism is no surprise” (The Age, 15/11/1991). James Dunn na sua carta ao editor de The Australian (21-22/12/1991), afirmou que “Timor is a different story”, depois do massacre. 216 Veja-se Jolliffe, Jill (1991), “Lisbon tells UN to halt ‘atrocities’”, in Sydney Morning Herald, 14 de Novembro de 1991, p.13; The major source on the Kraras massacre is Tapol Bulletin, nº 68, Março de 1985 e nº 48, Dezembro de 1987. 217 “A presidência holandesa da CE condena a Indonésia, o Vaticano não emite qualquer comunicado e a Igreja portuguesa também não. O governo da Nova Zelândia declara-se chocado com os acontecimentos verificados em Timor-Leste; o primeiro-ministro australiano, Bob Hawke, condena a tragédia de Timor e o embaixador indonésio é chamado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros australiano; o representante da indonésia na GrãBretanha é chamado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico e são-lhe exigidas explicações” (RTP, 13/11/1991).

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um jornalista inglês, de pseudónimo Max Stahl218, os jornalistas começaram a construir um discurso mais incisivo e persuasivo junto da opinião pública219. A morte de Kamal Bamadhaj220 também transformou o problema de Timor num dos principais cabeçalhos dos jornais um pouco por todo o mundo. É certo que, no editorial da Grande Reportagem (edição de 1992, ano 3, nº 10:9), Miguel Sousa Tavares elogiou o jornalista britânico que, através do seu filme, reviveu a dignidade perdida do povo português sobre a Resistência timorense, como revela a sua admiração no seguinte teor: “acordámos tarde e a más horas e que só devido à iniciativa e ao sangue-frio de um estrangeiro – o jornalista inglês Max Stahl – ficámos a dever este sobressalto de orgulho e de indignação que, por um momento, nos fez reencontrar com os fundamentos da nossa dignidade como povo”. Nesta sua afirmação, Miguel Sousa Tavares, enquanto cidadão português, classificou-se a si mesmo e ao povo português como “acordámos tarde e a más horas”, pois não estava atento ao problema do povo de Timor221. A internacionalização do massacre mobilizou uma onda de indignação e protesto generalizados sem precedentes. A distância geográfica manteve-se, mas a distância psicológica diminuiu, colocando a tragédia timorense na agenda dos media internacional. A Cruz Vermelha Internacional considerava a tragédia do massacre de Santa Cruz como uma

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José Martins, o primeiro correspondente português a entrevistar, em Banguecoque, o jornalista britânico Max Sthal para o semanário a Tribuna de Macau de que era, então, o correspondente em Banguecoque, publicou na página principal do dito jornal (edição de 7/12/1991) o artigo “Este homem filmou o massacre de Timor” e “foram as suas imagens que fizeram chorar Portugal” (ver o anexo 6), porque ele esteve em Timor com a Resistência timorense nas montanhas de Timor (Grande Reportagem, nº 10 de Janeiro de 1992) e apelou ao mundo que “Timor ainda resiste” (Grande Reportagem, nº 36 de Março de 1994). Grosso modo, a entrevista de Max Stahl concedida ao jornalista José Martins, em Banguecoque, foi enviada pelo Embaixador Sebastião de Castello Branco ao Ministro dos Negócios Estrangeiros em Lisboa (ver a carta no anexo 7). É de Salientar que em 11 de Novembro de 2012, este jornalista britânico que filmou o massacre de Santa Cruz, recordou que o filme era um “filme de uma vida”, até porque “muitos jornalistas não têm possibilidade de influenciar” de forma tangível a opinião mundial. Cf. http://expresso.sapo.pt/jornalista-que-filmou-massacre-de-santa-cruz-continuaem-dili-videos=f687032 (consulta a 12/5/2012). 219 Em Lisboa, cinco meses depois do “Massacre de Santa Cruz”, 123 activistas de 21 países, acompanhados por 50 jornalistas de diversas agências noticiosas, alugaram o barco “Lusitânia Expresso”, que partiu de Lisboa rumo a Timor-leste para homenagear os jovens que foram vítimas do “Massacre de Santa Cruz”. Os militares indonésios deslocaram seis barcos de guerra e mais alguns helicópteros para bloquear a entrada do “Lusitânia Expresso” no território de Timor-Leste. Xanana Gusmão demonstrou o seu reconhecimento a esta acção de solidariedade promovida pela juventude portuguesa: “Pelos objectivos dos promotores, era bem-vinda a iniciativa. Objectivos que foram, no essencial, alcançados. Consideramo-lo um acto de coragem da juventude portuguesa, à qual reafirmo o nosso apreço e a nossa profunda gratidão” (Gusmão, 2002:264) 220 O Departamento de Arquivos e Documentação da RTP justificava que Kamal Bamadhaj, de 20 anos de idade, era estudante universitário em Sydney e que viajou para Timor com passaporte da Nova Zelândia. Ele não sobreviveu, porque os soldados indonésios não lhe deram assistência médica (RTP, 13/11/1991). Veja-se: Sigrid Kirk – “Student from NZ reported killed” (Sydney Morning Herald, 14/11/1991) e a pequena nota de Kamal Bamadhaj, “Last days of brave but doomed defiance” (Sydney Morning Herald, 23/11/1991). 221 Tracy Woods escreveu sobre a atitude dos portugueses e “A imprensa pareceu esquecer convenientemente de 15 anos de regime opressivo pela Indonésia” (obs. cit. Gunn, 1994:176). Peter Henderson classifica a atitude dos portugueses como “A symbolic gesture founders in errors” (Sydney Morning Herald, 17/3/1992).

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“violência extrema”,222; o Vaticano “não emite qualquer comunicação e a Igreja Portuguesa também não” (RTP, 13/11/1991). Esta última instituição e – um ano antes do massacre – o governo português já haviam sido criticados pelo bispo Ximenes, porque não deram auxílio suficiente ao povo de Timor: “De Lisboa ninguém ajuda, nem a Conferência Episcopal Portuguesa”; ao mesmo tempo, fez um apelo aos padres timorenses residentes em Lisboa: se “já existem muitas divisões entre nós (timorenses), é bom que a Igreja também não se divida” (Expresso, 5/10/1990:3)223. O Vaticano, pela voz do Papa João Paulo II, lançava apenas um pequeno apelo a Jakarta para que recorresse à sua cultura milenar no sentido de resolver as persistentes tensões e dar um novo impulso aos valores de humanismo e harmonia civil, mas não se pronunciava sobre o massacre (RTP, 15/11/1991), porque não foi um caso extraordinário para o Vaticano. Não apagou, porém, a sua preocupação com o caso, embora fosse em menor grau 224. O então secretário e porta-voz da Conferência Episcopal, Albino Cleto, justificou que, como português, seria agradável que o Papa tivesse dito uma palavra de compaixão pelos timorenses, de condenação pelo gesto da Indonésia, porém, acrescia Albino Cleto, “não condeno nem aprovo o silêncio do Papa. O melhor é respeitar o seu silêncio” (Grande Reportagem, 1992, ano 3, nº 10:26). De qualquer modo, achamos muito estranho a atitude do Papa João Paulo II, que sempre tomou posição ao lado dos povos revolucionários contra os regimes ditatoriais da América Latina e dos países europeus do Leste, e não fez qualquer declaração emancipatória sobre o massacre. Era uma posição de inquietação e estranheza sobre o caso de uma forma espontânea. Uma posição que era – do ponto de vista de alguns sacerdotes, nomeadamente de Albino Cleto – como uma atitude correcta, e, por isso, não era preciso interpretar atitudes de outros,

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O semanário The Weekend Australian (16-17/11/1991) classifica o massacre de Santa Cruz como uma “tragédia para Timor e para a Indonésia”. Para Greg Sheridan esse acontecimento foi como um “mito de explosão” (The Australian, 1/12/1991) que quebrou o silêncio, ou seja, “A symbolic gesture founders in errors”. 223 Dom Ximenes Belo fez esse apelo como um acto de defesa contra os padres timorenses destacados em Lisboa que o acusavam, pois, desde o início da sua nomeação”, o bispo de Díli “primou por uma incoerência notável em ideias e acções”, e “foi uma nítida opção política, quer da parte do governo indonésio, quer da parte do Vaticano. Estava latente o interesse em encontrar um homem que facilitasse as manobras políticas” (Expresso, 5/10/1990:3) 224 Em alguma circunstância, o Vaticano viu a opinião pública internacional cada vez mais a favor da Resistência dos timorenses e, nesse sentido, alterou de imediato a sua posição, começando a divulgar uma declaração oficial onde se sublinha que o massacre de Díli tocou profundamente a Santa Sé (RTP, 22/11/1991); porém, de acordo com os dados de sondagem da Euroexpansão, publicados no Expresso de 30 de Novembro de 1991, 67% dos portugueses inquiridos consideravam que a atitude do Papa em relação aos acontecimentos do cemitério de Santa Cruz “foi insuficiente, pois não condenou o massacre”. Apenas 19% consideravam uma atitude acertada e suficiente. Neste caso, era evidente que foi uma manifestação de silêncio na qual se formulava uma reflexão continuada no acompanhamento dos acontecimentos no sentido de salvaguardar a minoria de cristãos (nomeadamente, católicos) que se encontrava no arquipélago indonésio, apesar de ser uma decisão injusta.

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mas o certo é que, na história actual timorense, a Santa Sé e o Papa são classificados como figuras entre os primeiros intervenientes a favor de Timor; posteriormente, os timorenses afirmaram: “Santo Padre, ainda bem que vieste, porque nos tornaste conhecidos” (Grande Reportagem, 1992, ano 3, nº 10:26)), embora persistam ainda hoje opiniões contrastantes. A solidariedade internacional para com o povo de Timor-Leste tinha aumentado significativamente, mas, de acordo com Tavares, “não tenha conseguido contagiar a nossa classe política, [porque] o governo e a oposição, singularmente unidos na incapacidade de ler os sinais da rua, de interpretar este sobressalto de orgulho e de remorso. Os deputados fugiram de ir a Timor; o Governo teve pudor de incomodar as Nações Unidas e contentou-se com uma vaga declaração da CEE, que é um modelo de hipocrisia, indigno de algumas nações da Europa. Quanto à oposição nem isso: quedou-se por um silêncio e um marasmo que dizem mais sobre a oposição que temos do que tudo o resto eles queiram dizer” (Grande Reportagem, 1992, ano 3, nº 10). É certo que o governo e a oposição não tinham consciência do que se passava em Timor; notava-se isso no caso da tomada de decisão do governo português que decretou um Dia de Luto Nacional, não no dia depois de Massacre de Santa Cruz, mas depois do dia da exibição das imagens, como constatou José Rodrigues dos Santos (2001:114): “o massacre de Santa Cruz confirmou o agendamento do problema, mas foi preciso esperar pelas imagens da chacina, difundidas pela televisão uma semana depois, para que o público finalmente reagisse à agenda imposta pelos meios de comunicação social. O mais interessante é que o Dia de Luto Nacional foi decretado no dia seguinte à exibição das imagens, e não no dia seguinte ao massacre, num curioso tributo ao poder da televisão”. Isto é, de acordo com o documentário da RTP, à data de 18 de Novembro de 1991, Mário Soares (então presidente da República Portuguesa) manifestava na televisão a sua profunda emoção e indignação com as imagens passadas pela RTP225 e pede ao governo português de então, liderado por Cavaco Silva, para decretar um dia de luto nacional (Publico, 19/11/1991). Em reforço da natureza prevalecente da televisão sobre os demais órgãos de comunicação social, Pierre Bourdieu (1997:71) afirma: “se acontece que um tema seja lançado pela imprensa escrita, ele só se torna determinante, central quando é retomado pela televisão”. De igual modo, Rui Marques (2005:29) adverte com alguma prudência, que as imagens de um acontecimento histórico nos poderão levar “a perceber a realidade não 225

Dias depois, a 19 de Novembro de 1991, Mário Soares mostrou a sua indignação pela tragédia de Díli e enviou uma mensagem aos timorenses através da televisão britânica BBC e, em data posterior, a FRETILIN insistiu na convocação do Conselho de Segurança da ONU para solucionar o problema de Timor (RTP, 20/11/1991).

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exactamente como ela é mas como a desenhamos na nossa mente, designando estes dois universos, respectivamente, por ambiente e pseudo-ambiente”. Comungando desta mesma preocupação de tentar ‘perceber a realidade como ela é’, Castells (2007:450-451) afirma: “As notícias devem estar centradas nos acontecimentos, não nas condições a eles subjacentes; na pessoa, não no grupo; no conflito, não no consenso; no facto que ‘antecipa a história’, não naquele que a explica. Somente as ‘más noticias’, referentes a conflitos, cenas dramáticas, acordos ilícitos ou comportamentos questionáveis são notícias interessantes”, porque fazem parte do critério de noticiabilidade chamada ‘negatividade’ e o centro de cobertura está no evento, não no processo. Tal constatação levou a que se produzisse uma possível selecção de más notícias e boas notícias. Este tipo de critério de noticiabilidade era bem aplicável ao caso de Timor, enquanto a Indonésia ocupava ilegalmente o território, a violência alastrava e cometiam-se as maiores atrocidades. Tal realidade foi justificada por um poeta timorense, Fernando Sylvan, nos versos do poema ‘meninas e meninos’, “Todos já vimos nos livros, nos jornais, no cinema e na televisão retratos de meninas e meninos a defender a liberdade de armas na mão. Todos já vimos nos livros, nos jornais, no cinema e na televisão retratos de cadáveres de meninos e meninas que morreram a defender a liberdade de armas na mão. Todos já vimos! E então?”226. Se importarmos o argumento de Bourdieu, Marques, Castell e Sylvan para o campo do discurso dos media, temos dimensão ética do ‘modelo dos Lang’, que é o processo de focalização no qual num determinado acontecimento “é dado destaque a determinados acontecimentos ou actividades. Fazem-nos sobressair de entre inúmeros outros eventos e actividades contemporâneas, que também poderiam ter sido seleccionados para divulgação. Transformar algo num centro de interesse afecta a forma como as pessoas irão pensar e falar” (Marques, 2005:37); ou, por outras palavras: com ou sem a classe política do nosso governo e oposição – disse Tavares – há que manter acesa a chama de solidariedade para com Timor. Na imprensa, o nosso dever é recordar-lhes, a propósito e a despropósito, que Timor continua lá, a sofrer, à espera que Portugal se mexa. Devemos incomodá-los, embaraçá-los, enxovalhá-los. É o que fazemos neste número da GR, publicando a primeira reportagem alguma vez feita junto da Resistência Timorense. Há passagem dessa reportagem – quando se fala do desespero dos timorenses perante a notícia do cancelamento da visita dos deputados irresponsáveis – que são penosas de ler, para um português. Mas é bom que oiçamos. Depois, não podemos dizer, como dissemos durante dezasseis anos, que não sabíamos sobre a história do sofrimento de um povo que o

226

http://www.recantodasletras.com.br/homenagens/2151620 (consulta em 15/5/2012).

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governo português de então causou e os media silenciaram (Grande Reportagem, 1992, ano 3, nº 10 – sublinhado nosso).

As notícias sobre o massacre de Santa Cruz circularam rapidamente pelo mundo fora e provocaram um reforço impressionante das acções de solidariedade. Alguns jornalistas e ONGs estrangeiros tinham-se deslocado a Timor Leste, de modo a poderem fazer reportagem sobre a visita da delegação parlamentar portuguesa ao território. Vários deles presenciaram fisicamente a curiosa manifestação dos jovens até ao cemitério de Santa Cruz, onde teve lugar o massacre, tendo aqueles desempenhado um papel fundamental, porque foam testemunhas directas daquilo que aconteceu naquele local. As notícias sobre o massacre de Santa Cruz deram um salto positivo para os timorenses, porque a opinião pública mundial, começou a construir um discurso de pressão ao regime de Jacarta. De acordo com Nelson Traquina (2007:190), em Portugal, “depois do massacre no cemitério de Díli, Timor ganhou noticiabilidade. Qualquer assunto relacionado com Timor era visto pela comunidade jornalística portuguesa como valor-noticia”. Isto significa que a produção de notícias relaciona “a imagem da realidade social fornecida pelos mass media com a organização e a produção rotineira dos aparelhos jornalísticos” (Wolf, 2003:183) conduziu o massacre a estimular a opinião pública portuguesa, tendo-se realizado manifestações de protesto em massa contra os crimes praticados pelos militares indonésios e apresentado, simultaneamente, pedidos de intervenção da ONU. Alguns governos, em especial o da Austrália, corroboraram com a explicação da Indonésia de que se tratava de uma acção incaracterística desenvolvida por ‘elementos marginais’ dentro das forças militares. Apesar disso, o massacre foi um dos acontecimentos que chamaram mais a atenção da comunidade internacional e, em termos de relações públicas, constituiu uma catástrofe para a Indonésia. Isto é, segundo Adriano Duarte Rodrigues (1999a), o acontecimento situa-se, portanto, algures na escala das probabilidades de ocorrência, sendo tanto mais imprevisível quanto menos provável for a sua realização. É precisamente neste sentido de maior ou menor previsibilidade que um facto se torna pertinente do ponto de vista jornalístico – quanto mais imprevisível, mais hipóteses tem de ser notícia. Ou seja, o acontecimento noticiável dá-se quando a norma é quebrada – “o fio da normalidade inflecte subitamente perante um facto surpreendente, afasta-se do que é regra” (Aubenas & Benasayag, 2002:35), com o fim de criar uma “estória de convergência” dos valores-notícia a favor do interesse nacional.

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O relatório da Amnistia Internacional confirmou 271 mortos no massacre de Santa Cruz227, o que, do ponto de vista jornalístico, foi considerado como o valor-notíca da violência segundo outro critério de noticiabilidade – que é a infracção (Traquina, 2007:193), sobretudo, qualquer acção de violência física praticada pelos soldados indonésios sobre os jovens manifestantes era perfeitamente considerada um acto de violação dos direitos humanos, transgressão das regras da liberdade de expressão e de “espírito do terrorismo” Baudrillard, 2002). Assim, podemos entender “a publicitação dos seus actos, possível visibilidade social e o reforço da sua legitimidade (Traquina, 2002: 121) e, desta forma, a importância da notícia do massacre no cemitério de Díli, que foi um crime perpetrado por agentes secretos das autoridades indonésias, como Uma parte importante das notícias sobre o crime são rotineiras e breves, porque a generalidade do crime é vista como rotina. O crime é percebido como um fenómeno permanente e recorrente, assim, grande parte dele é observado pelos media noticiosos de forma igualmente rotinizada. A cobertura de certas circunstâncias dramáticas de um crime resulta e sobressai do pano de fundo do seu tratamento rotinizado. Um crime mais violento, com maior número de vítimas, equivale a maior noticiabilidade. Qualquer crime pode ficar com mais valor-notícia se a violência lhe estiver associada (Traquina, 2007:193):

Com efeito, é necessário salientar que o massacre de Santa Cruz é um dos acontecimentos de rotina que talvez caracterizemos como os “mega-acontecimento” de que fala Nelson Traquina, ou “acontecimentos noticiosos excepcionais”, de que fala Tuchman. Estas caracterizações são, de forma alguma, um dos característicos da definição de acontecimentos mais defendidos nos estudos dos media e do jornalismo. Imprevisíveis, surgem inesperadamente e carregados de incontornáveis e consensuais valores-notícia. A história de tortura e violação na zona do conflito coberta pelo trabalho jornalístico é, com efeito, o resultado da mediação social promovida entre a realidade e a nossa capacidade de imaginação e de emoção; é a consequência do contacto entre a nossa mente e os factos que despertam em nós as nossas mais profundas sensações, sejam elas de pânico, de alegria, de terror ou de entusiasmo. No entanto, as máquinas electrónicas (máquina de filmagem, máquina de fotografar, gravador) que suportam o jornalismo do nosso tempo têm aparentemente esta virtude: a de promover a afecção do homem no mundo, e, no caso de regimes autoritários como o da Indonésia, o jornalista foi sempre considerado como uma figura que matou a sua imaginação, pelo que, como dizia Karl Kraus (2000:190) “é contra a nossa vida que ele atenta com as suas mentiras”. 227

Veja-se o artigo do Greg Sheridan, “Timor in Crisis: the myth exploded” (The Australian, 1/12/1991).

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A participação dos media na construção noticiosa, dando conta da saga da resistência de um povo sofredor, não deixa de constituir, em si mesma, uma acção de solidariedade, seja esta solidariedade assumida ou não. Tenhamos presente que a sua função primeira é a de informar com verdade. Xanana Gusmão (2002:218) considerou, mais do que uma vez, que “o 12 de Novembro mostrou-nos as novas potencialidades e creio que, sobretudo, ensinou-nos a rever os métodos já tradicionais de trabalho”, enquanto do lado “da Indonésia não mais conseguia desinteressar a comunidade internacional” (Ramo-Horta, 1994:303), por isso, dizia Horta, “não podemos permitir que o mundo volte a dormir depois disto” (apud Marques, 2005:198). Entretanto, para legitimar o argumento anterior sobre a solidariedade assumida pelos media, aí está a transmissão de mensagem seguindo as narrativas das vítimas. Porém, em certos pontos, os meios de comunicação de que fala John Thompson não impedem o nosso juízo crítico, pois estes fornecem-nos muitas formas de informação a que não tínhamos acesso no passado, ou seja, no momento em que se deu o acontecimento. Desse modo, citemos Thompson (1998:42-43): As mensagens dos media são vulgarmente discutidas por indivíduos no acto da recepção e posteriormente […]

Essas mensagens são transformadas através de um processo subsequente de contar e recontar, de

interpretar e reinterpretar, pelo comentário, pela anedota e pela crítica […] Ao apoderarmo-nos dessas mensagens e ao incorporá-las de uma forma rotineira nas nossas vidas, estamos constantemente a moldar e a dar novos contornos às nossas capacidades e aos nossos conhecimentos, a testar os nossos sentimentos e preferências e a expandir os horizontes da nossa experiência.

Outro factor significativo foi a disponibilização de imagens sobre as atrocidades indonésias, embora a imprensa britânica, por exemplo, pouco as relevasse. No entanto, o facto que Rui Alexandre Novais (2000) sublinha, no caso da imprensa britânica, foi que pela primeira vez em dezasseis anos depois da invasão indonésia, Timor apareceu na primeira página de um diário de qualidade, The Independent, na edição de 17/11/1991 (uma edição de fim-de-semana), que fez uma cobertura significativa, mantendo-se as notícias sobre Timor nas suas páginas ao longo do mês de Novembro e, ocasionalmente, em Dezembro, e sobrevivendo no início do ano seguinte (apesar da concorrência dos acontecimentos na Bósnia, Tchechénia, ou no Médio Oriente). Atente-se ainda que a televisão britânica transmitiu um documentário de uma hora sobre o massacre em Timor-Leste, sob o título “A sangue Frio: o Massacre de Timor-Leste”, da autoria do jornalista britânico Chris Wenner (por razões de segurança, utilizava o pseudónimo 327

Max Stahl), uma produção da Yorkshire Television (RTP, 7/1/1992)228. No seu depoimento concedido a CAVR, explicava que na Inglaterra ninguém se interessava por Timor-Leste: Quando viemos a Timor-Leste em 1991, filmar para a televisão britânica, Timor-Leste não era notícia. Em Inglaterra ninguém se interessava por Timor-Leste. Falo enquanto testemunha estrangeira. Estiveram presentes em Santa Cruz outras testemunhas estrangeiras. Russel Anderson encontra-se hoje aqui connosco, Helen Todd, cujo filho foi morto nesse dia e várias outras pessoas que também estiverem presentes. Muitos estrangeiros tentaram advertir os respectivos governos sobre a situação em TimorLeste. Algumas das pessoas envolvidas durante anos nessas campanhas encontram-se hoje aqui presentes (CAVR, 2005)

A manifestação pacífica dos jovens foi acatada com extrema violência pelos soldados indonésios, que tinham como objectivo sufocá-la. Max Stahl, no entanto, reportou-a na íntegra, impedindo que mais um crime continuasse oculto: Foram necessários cerca de 40 minutos para os soldados entrarem no cemitério. Foi por isso que dispus de quase 40 minutos para filmar. Visionaram as imagens das duas cassetes que enterrei junto a uma campa. Numa terceira cassete filmei oficiais indonésios, com a patente de coronel ou superior, a entrarem no cemitério e a inspeccionar. Revelavam calma, como se estivessem a inspeccionar a guarda do Palácio de Buckingham. Não demonstravam pânico. Se houve resposta, esta foi dada pelos oficiais e não pelos escalões inferiores” (CAVR, 2005), e mais adianta que “Um aglomerado de pessoas estavam presas na estrada, comprimidas por centenas de outras desesperadas, que tentavam escapar às balas […] Lá fora, na rua, os soldados mantiveram uma barragem de fogo durante cerca de dois minutos, tendo milhares de disparos atingidos a multidão e caído no cemitério, onde eu me encontrava escondido (Publico, 229

21/11/1991)

.

A reportagem de Max Stahl é uma ligação directa entre o discurso fílmico e textual, isto é, as notícias infiltram-se, vêm de longe, de outras terras, polidas, arredondadas, como as águas de um rio que percorrem as zonas difíceis até ao mar.

228

O seu texto e fotografias do filme foram publicados também em The Australian Magazine (18-19/1992), sob o título “Frontline Timor: to resistis to win”. 229 Bob Muntz (membro da Community Aid Abroad’s South-East Asian) foi ferido por uma bala, e, por isso, sabia o que se passou no cemitério de Santa Cruz, dizendo: “o exército abriu fogo durante 2 ou 3 minutos, carregando as espingardas quando estavam vazias, milhares de tiros foram provavelmente disparados” (Reuters 15/11/1991). A mesma situação foi partilhada pelo repórter fotográfico Steve Cox (espancado e preso): “À primeira vista, pareceu-me ver os rapazes saltar do muro. Mas lembro-me de pensar se eles não teriam antes caído e, por alguns segundos, achei aquilo estranho. […] De repente oiço um estrondo enorme que não se cala mais. Ao princípio nem percebi o que era. As rajadas continuaram ininterruptamente durante dois a três minutos, o que me pareceu uma eternidade” (Independente 22/11/1991).

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3.3. Nobel da Paz Estamos convictos de que a visibilidade e a justeza da causa timorense atingiram o seu ponto mais alto com a atribuição do Novel da Paz a dois filhos de Timor-Leste, D. Ximenes Belo e José Ramos-Horta. O Nobel da Paz foi um dos preciosos prémios para os timorenses, tendo estes dito que, sem o Nobel da Paz, não havia incentivo necessário para que o presidente pós-Suharto fizesse a viragem. O Prémio Nobel da Paz aumentou os custos da ocupação em termos diplomáticos e em termos políticos. Sem o Nobel da Paz, mesmo com a queda de Suharto e a crise económico-financeira, a situação em Timor-Leste seria manejável pelos indonésios. D. Ximenes Belo (1997:54) era Bispo de Díli quando, no seu discurso de laureado com o Prémio Nobel da Paz, afirmou: “É do conhecimento de V.Ex.ªs o esforço da Igreja no que concerne ao sofrimento do povo de Timor-Leste [...] enquanto bispo deste povo, não encaro esse Prémio Nobel da Paz como algo com que se prestigia somente uma pessoa, mas como a homenagem devida à Igreja Católica de Timor-Leste, pelo trabalho feito na defesa dos direitos inalienáveis do seu povo”. D. Ximenes Belo conclui, enfaticamente: “O homem é um ser para a liberdade”. Este mesmo reconhecimento está presente nas seguintes palavras de Jorge Sampaio, proferidas enquanto presidente da República Portuguesa: “o Prémio Nobel da Paz marca a consagração definitiva da causa timorense como uma grande causa internacional, onde se revêem todos os que lutam pela paz, pela liberdade e pelo direito. [...] O prémio Nobel da Paz representa o reconhecimento internacional da causa timorense, e assegura-lhe a projecção indispensável para garantir a sua continuidade. Afinal, o tempo corre do lado dos timorenses” (Sampaio, 2007:20-21).

4. A dimensão de ética e política da opinião pública A centralidade da opinião pública no pensamento social e político faz dela um valor simbólico fundamental das sociedades. Com efeito, ela serviu para fundamentar revoluções, movimentos democráticos ou apoiar regimes totalitários. No caso da França, por exemplo, Napoleão considerava a opinião pública do seu tempo como “um poder invisível e misterioso ao qual nada resiste; nada é mais mutável, mais vago ou mais forte; e mesmo que caprichosa ela, porém, é justa bastante mais frequentemente do que pensamos” (Le Bon, 1918: 163). Na mesma proporção amplia-se o interesse dos leitores da comunidade nacional e internacional na leitura das notícias do jornal e/ou revista. E, na medida em que cresce este 329

sentimento de interesse pela informação sobre os acontecimentos globais e regionais, como que assistíamos, por exemplo, as lutas dos timorenses contra a ocupação da Indonésia no seu território. De qualquer forma, temos interesse em discutir sobre este tema com os políticos, economistas e sociólogos, de modo a poder saber mais sobre tais acontecimentos, a razão da anexação, e qual era a estrutura da informação sobre os referidos acontecimentos. Sobre este último, veja-se a estrutura da informação na categoria da Ásia, de que Timor-Leste também faz parte, como mostra a tabela 13. Tabela 13 - Estrutura da informação na categoria Ásia (Gomes, 1998:184) Países Timor-Leste Índia China Vietname Rep. do Iémen Nepal Indochina Correia do Norte Bangladesh Tailandia Totais

Área total % na categoria 19.832.18 24,34 18.472,40 22,67 8.313,64 10,21 8.281,20 10,17 7.071,98 8,68 5.137,64 6,31 4.702,92 5,77 4.546,64 5,58 3.448,44 4,23 1.659,10 2,04 81.466,14 100,00

Fotos área total 5.212,21 9.452,13 4.326,59 3.259,09 4.262,21 2.409,56 2.818,10 1.947,05 1.538,17 784,58 36.009,69 %Fotos categorias: 44,20

Texto área total 14.619,97 9.020,27 3.987,05 5.022,11 2.809,77 2.728,08 1.884,82 2.599,59 1.910,27 874,52 45.456,45 % Textos categoria: 55,80

Não se deve esquecer que a estrutura de informações na categoria de Timor foi estudada e analisada por Rui Marques (2005) a partir das notícias produzidas pela agência LUSA entre 1987 e 1999 (que terão constituído o núcleo da sua investigação); entrevistas a 11 personalidades timorenses e portuguesas (da guerrilha, da igreja local, da diplomacia, do activismo e do jornalismo); e, por último, documentos cedidos pela Resistência (referentes à cobertura jornalística da sua luta). Como ele mesmo nos dá conta de que as notícias foram agrupadas por meses, foram construídas tabelas de frequência de notícias e, a partir delas, elaborados gráficos que visualizam as tendências, nomeadamente a curva de evolução ao longo do tempo e os valores acumulados. O autor procurou ainda identificar os momentos mais significativos em que o número de notícias se situou acima de média. Na verdade, fontes ligadas aos serviços secretos em Timor-Leste indicaram que, em parte, como no caso do massacre de Santa Cruz, foi o culminar de uma luta no seio dos militares indonésios sobre a política que se deveria seguir em Timor-Leste. As autoridades indonésias foram – do ponto de vista public communication – censores da opinião pública, como guardião da sua moralidade pública um tanto carnavalesca para se justificar. “Do mesmo modo que a declaração da vontade geral se processa na lei, a declaração do 330

julgamento público realiza-se na censura; a opinião pública é o espaço da lei cujo censor é o ministro [...] ”, e, por conseguinte, “A censura preserva os costumes e a moral prevenindo as opiniões de se corromperem através de intervenções razoáveis, algumas vezes mesmo, fixando-as quando ainda não estão definidas” (Rosseau, 1966:168-169). A censura das autoridades indonésias foi como uma defesa propositada, a chamada ‘destruição da verdade’, no sentido de estabelecer a sua própria estratégica da opinião pública para descodificar a ortodoxia da informação sobre Timor-Leste. Por exemplo, com a captura de Xanana Gusmão, em Novembro de 1992, a opinião pública divergiu no seio da comunidade política e jornalística e, perante esta realidade, apareciam alguns artigos, obviamente, de um jornalista português sobre o “fim da Resistência”230. Tal jornalista abordou o conteúdo do seu discurso jornalístico de acordo com os dados contraditórios fornecidos pelos comandantes da TNI231 sediados em Timor, afirmando que “primeiro, centenas, depois milhares de guerrilheiros e de colaboradores da guerrilha e activistas da Frente Clandestina se tinham rendido (Stahl, 1994:39). Foi uma opinião pública industrialmente produzida pelas autoridades indonésias baseada num critério de “ficção estatística” (Lippman, 2004:16), porque perceberam que já não tinham poder vinculativo e, nesse sentido, apresentaram dados imaginários para convencer a opinião pública da comunidade internacional a seu favor. Perante este facto de manipulação de informação e de censura, importa sublinhar que, de acordo com Adriano Duarte Rodrigues (1985), que os processos manipulatórios como a censura, e a coacção da liberdade não são exclusivas dos regimes opressores, como o regime do Estado Novo em Portugal, o regime militar Pinochet em Chile, Franco de Espanha, incluindo o regime de Suharto na Indonésia. Não existe a ideia de censura que possa estar completamente afastada dos países de regime democrático, embora se aplique a democracia de liberdade de expressão; no regime totalitário, aplica-se uma democracia de opressão e de censura. Isto é, na realidade, uma imagem que paira no imaginário colectivo, tanto dos democráticos como dos totalitários. Não há sociedade sem censura, pois esta liga-se sempre a qualquer sistema de poder; o que pode mudar de um para outro regime político são as modalidades de censura, e, entre elas, Adriano Rodrigues refere-nos duas: “Na modalidade guerreira predominam os mecanismos estratégicos da defesa e do ataque em relação a um inimigo e da ordem interna destinada a preservar a coesão do tecido social. Tudo o que atentar contra esta ordem e contra 230 231

O mesmo artigo foi transcrito pela AP, Reuters e pela imprensa oficial da Indonésia chamada ANTARA, TNI (Tentara Nasional Indonesia) – Militar Nacional da Indonésia

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esta estratégia é impensável e condenado à morte. Na modalidade despótica, a ordem ditada pelo déspota é a proibição dos discursos que escapam ao seu controlo232”. O argumento pressuposto de Adriano Rodrigues está bem visível na política do Departemen Penerangan Indonesia (Departamento de informação indonésia) que fez imperdoável censura aos media escrita; no caso concreto de Timor, o jornalista britânico Max Stahl afirmou que a maioria dos acontecimentos em Timor-Leste (nomeadamente, o mais conhecido massacre de Santa Cruz) não estava a ser revelada de forma justa, pois os políticos são manipuladores da verdade: Os políticos mentiram aos jornalistas. Gareth Evans, o então ministro dos negócios estrangeiros da Austrália, disse-nos que se tratara de uma acção conduzida por um pequeno número de soldados indonésios. Esta mensagem foi transmitida por outros governos e foi divulgado que os indonésios iriam proceder a uma investigação e processar judicialmente os responsáveis. Era mentira, não havia nada de verdadeiro nestas declarações, nada mesmo. Se Gareth Evans não o sabia então deveria ter despedido toda a sua rede de serviços de informação.

A questão chamada ‘Timor-Leste’ na agenda dos media é impulsionada pela opinião pública sistemática, porque apresentou uma crítica a outro tipo de opinião pública. Quer isto dizer que, dentro da agenda mediática, há uma política editorial chamada ‘pró e contra’. Este sistema estava bem visível na abordagem das notícias sobre o problema de Timor pelos jornalistas e agentes envolvidos (políticos, militares). Estes agentes utilizaram o conceito de tematização (Luhmann, 1978) como dispositivo de construção da opinião pública, pois perceberam que existe diferenciação funcional e divisão de subsistema ou sistema parciais, divisão do trabalho e especialização do conhecimento, que muitas vezes geram conflito ou constroem uma ética de comunicação para legitimar o poder dos poderosos nas sociedades complexas (Pissarra-Esteves, 2003). Neste entendimento, o enquadramento do discurso jornalístico, segundo o ‘Modelo dos Lang’, trata de uma dimensão do trabalho jornalístico que “para além de dar a notícia, a explica e a enquadra. Não resultando exclusivamente da sua vontade ou da sua grelha de leitura, estas têm, no entanto, uma enorme importância”, que, de um modo geral, é reforçado por outra dimensão do ‘Modelo dos Lang’ chamada ‘universo simbólico’, no qual “compete ao jornalista, de entre os elementos simbólicos presentes numa dada mensagem, sublinhar os mais relevantes em si mesmo e no diálogo com o universo do público-alvo a que o jornalista se dirige” (Marques, 2005:151). 232

Adriano Duarte Rodrigues (1985), Figuras das Máquinas Censurantes Modernas, retirado da www: http://bocc.ubi.pt.

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No contexto da agenda política internacional e mediática, a opinião púbica é funcionalmente diferenciada, mas, no caso concreto de Timor, entendida como mecanismo de redução da crescente campanha de manipulação da verdade constatada pelas autoridades indonésias que procuravam descodificar a mensagem de terror, por intermédio da tematização de assuntos que devem ser censurados. No entanto, a opinião pública construída pela comunidade jornalística e pela sociedade civil sobre o caso de Timor, por definição, foi uma acção de solidariedade e “de reconhecimento público através da acção determinante dos meios de comunicação de massas” (Saperas, 2000: 89), que impulsionou a tomada de decisões dos governantes internacionais. Neste entendimento, a opinião pública constituída tanto pela agenda dos media como pela sociedade civil não tem por objecto a generalização do conteúdo das opiniões individuais através de fórmulas retóricas e discursivas aceitáveis por todo aquele que faça o uso da razão, mas, sim, a adaptação da estrutura dos temas do processo de comunicação política às necessidades de decisão da sociedade e do seu sistema político (Luhmann, 1978:98). No contexto da ética jornalística, o jornalista deve assumir um papel neutro. Este papel manteve o jornalista do Libération aquando da sua entrevista a Xanana Gusmão. O líder da Resistência timorense tratou-o como amigo da causa, o que irritou profundamente o jornalista. A propósito, explica Luísa Teotónio, o jornalista do Libération ficou muito irritado com a resposta de Xanana, por duas razões: primeiro, porque Xanana o tratava como se ele fosse um amigo da causa, e essa foi uma das principais aprendizagens: nem todos os jornalistas eram amigos da causa. Eram jornalistas, em primeiro lugar! Mas foi preciso muito tempo para que os timorenses se apercebessem disso, porque quem lhes dava atenção era automaticamente um amigo, e, portanto, havia um sentimento de cumplicidade, de confiança, que, nesse caso muito concreto, irritou profundamente o jornalista (apud Marques, 2005: 154). Afinal, o jornalista queria, muito legitimamente, salvaguardar apenas a independência que dele espera o público e, no limite, lhe era exigida pela sua deontologia profissional. É por isso que os jornalistas verificam sempre as suas declarações antes de as publicar, porque as regras de trabalho jornalístico “exigem fontes inatacáveis e identificam aquelas que se encaixam no conhecimento estruturado socialmente do mundo e das suas instituições” (Santos, 1997:168). Nem todos os jornalistas são independentes, pois, no conceito de vitimização, o jornalista é portador das vítimas de guerra, de violação sexual, de intimidação e de tortura. Em última observação, e no caso concreto de Timor, os jornalistas (na sua maioria) estavam ao lado dos timorenses. Por isso, alguns oficiais indonésios (segundo foi referido no tópico anterior) afirmaram que os turistas que iam a Timor eram agentes políticos e jornalistas, na 333

medida em que eles levavam sempre consigo, para fora de Timor, notícias, fotografias e vídeos da Resistência. Os oficiais indonésios afirmaram que os europeus que iam a Timor naquela altura construíam a notícia segundo o seu critério, sentiam que a opinião pública formulada por eles era baseada no critério de hiperracionalidade, designadamente na forma como concretiza a lógica instrumental e um racionalismo utilitarista233”. Enquanto a crescente mediatização, Miguel Sousa Tavares (então director da Grande Reportagem) afirmou que, no caso da “imprensa portuguesa tem sido às vezes acusada de tratar a questão de Timor como uma causa e não como uma notícia. Por outras palavras: os jornalistas não serão isentos, vêem sempre o mal do lado dos Indonésios e o bem do lado dos Timorenses. A fronteira não é, concedo, por vezes clara e fácil de traçar. À ofensiva da propaganda dos poderosos contrapõe-se quase sempre a tentação da militância a favor dos fracos” (Grande Reportagem, 1994, ano 5, nº 36:9). Mas, em relação a este facto, José Pacheco Pereira (1997:112) levantou algumas dúvidas, opinando que “assiste-se a uma verdadeira obsessão para com a causa de TimorLeste e tudo está mal contado”. Nesta linha de raciocínio, advogamos que há uma estranheza consensual no envolvimento da sociedade portuguesa, começando com a ala direita nacionalista, passando por alguns sectores da Igreja até aos ‘jornalistas da esquerda’; em última análise, de acordo com Miguel Sousa Tavares, “Timor foi abandonado por todos – por Portugal, pelo Papa, pela CE, pela ONU, pelas potências ocidentais e pelos países do Terceiro Mundo234. O povo de Timor vive encurralado na sua ilha, cercado por um exército poderosíssimo e pelos interesses diplomáticos e a hipocrisia do mundo exterior. Só a imprensa pode e tem rompido esse bloqueio. Se a imprensa se calar, não restará nenhuma esperança para os Timorenses,

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João Pissarra Esteves (s/d), Opinião Pública e Democracia na Sociedade de Informação, http://www.bocc.ubi.pt/pag/esteves-pissarra-opiniao-publica.pdf (consulta a 3/6/2011). 234 A propósito deste facto, o ex-presidente da República Portuguesa, Mário Soares, em entrevista à agência Lusa nas comemorações dos 20 anos do massacre de Santa Cruz, afirmou que “Houve uma altura [em que] políticos portugueses – não vou citar nomes, mas é fácil – chegaram à conclusão que não havia nada a fazer [por TimorLeste] e quando se deu o massacre de Santa Cruz, “Todo o país [Portugal], independentemente dos partidos políticos, se interessou” pelo que aconteceu, daí “as coisas mudaram”. Esclareceu ainda que “Até ao massacre, pouca gente se interessava por Timor”, mas “Eu interessava-me muitíssimo, sempre me interessei e nunca desisti” ao problema do povo de Timor e “muitas vezes falei com os secretários-gerais da ONU Pérez de Cuéllar e Boutros-Ghali” e estes diziam “sim, sim, mas há tantas coisas no mundo”. Quanto a posição do Vaticano sobre o massacre, Mário Soares recordou que escreveu ao papa João Paulo II e foi a Roma falar de Timor. Soares tinha “um grande amigo no Vaticano, o cardeal Casaroli”, com quem chegou a ter “uma pequena discussão” sobre Timor, porque ele dizia “mais vale não mexer nisso”. Soares não gostou da afirmação do cardeal Casaroli e questionou-o no seguinte modo: “Então a igreja desinteressa-se de Timor, onde se segue a religião cristã, que está bem enraizada na população?”, Mas o cardeal respondeu-lhe assim: “É que entre Timor e a Austrália e a Indonésia... são outras potências” – http://expresso.sapo.pt/mario-soares-alguns-politicos-achavam-que-naohavia-nada-a-fazer-antes-do-massacre-video=f686975 (consulta a 12/5/2012)

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condenados a sujeitarem-se à verdade oficial reproduzida nas mentiras impúdicas dos propagandistas agenciados por Jakarta” (Grande Reportagem, 1994, ano 5, nº 36). Seja ingénua ou não o tratamento de dados sobre o que se passou em Timor-Leste, o mais importante é que, mais uma vez, na opinião de José Pacheco Pereira, “a comunicação social actua em relação a Timor como se fosse uma causa e, se isso é legítimo quanto à posição editorial dos órgãos de informação, já que justifica pouco quando afecta a objectividade da informação”. Pelo facto de a opinião pública portuguesa não querer saber o que dizem os indonésios na ONU sobre a sua posição, “a verdade é que, por detrás de toda esta nuvem de fumo, ninguém quer saber o que realmente aconteceu em Timor, e a informação reduz-se à propaganda” (Pereira, 1997:113) do regime indonésio e o conteúdo de informação reforça a resistência timorense. Logo, as fontes de informação constituídas pela opinião pública são, de facto, um “monopólio da informação legítima” (Bourdieu, 1997:81) a favor da causa timorense. Embora, neste caso, haja uma profunda manipulação de informação, parece que, em termos de produção técnica e ética da comunicação, a opinião pública formulada pelos jornalistas e pela sociedade civil é produzida em dois sentidos: por um lado, uma opinião pública controlada pelo Estado indonésio, que não revelou as verdadeiras atrocidades cometidas pelos seus militares, logo, houve manipulação de informação; por outro, uma opinião pública formulada pela Resistência Timorense e reforçada pelos jornalistas que caracterizaram a sua presença como amigos da causa e, consequentemente, quebrou-se a sua identidade de independência jornalística.

4.1. O jornalista e a prova da Resistência A cobertura das guerras concentra-se em eventos, e não em processos. Isto é, para os agentes da comunicação social, a cobertura das guerras parece uma galinha de ovos de ouro e uma vaca sagrada, porque, como sabemos, desde a guerra dos cruzados, até à guerra vietnamita, foi sempre uma fonte de ingresso muito cobiçada por eles. Entretanto, num quadro de tão grande abertura, o jornalista faz todo o possível para entrar na zona do conflito. A dimensão do relato de um acontecimento na zona de guerra depende da percentagem das informações que os jornalistas recolhem. Eles são agentes da verdade e, simultaneamente, agentes de manipulação da informação e da verdade. No caso da Resistência de um povo pela libertação, o jornalista é considerado um amigo da causa, porque estabelece directamente o

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contacto com os responsáveis da Resistência e as vítimas de opressão. A propósito disto, basta ver o caso do jornalista da TSF João Gabriel, que queria saber tudo sobre o que se passou em Timor; homem curioso, ele acreditava sempre na sua convicção: empreendeu uma viagem cuidadosamente planeada e bastante arriscada, sem apoio de qualquer organização e com as despesas por conta da emissora, conseguindo chegar a Díli, sem ‘visto’ e sem autorização, o que implicava sobretudo a sua exclusão imediata do território pelas autoridades indonésias. Nesta viagem, o jornalista pôde testemunhar o verdadeiro clima que se vivia na ex-colónia portuguesa e contar histórias que viu com os próprios olhos (Marques, 2005:254). No contexto da dimensão ética jornalística, Adelino Gomes, na sua entrevista concedida ao Rui Marques (2005:230-231), explicou que, no caso de Timor, reunia os três ingredientes necessários para a mobilização de um jornalismo de reportagem: O ingrediente de aventura, o de utopia ancorada nas realidades e o de solidariedade de estar ao lado dos que sofrem. Entretanto, existia o plano B desta categorização, uma alternativa, como a querer dizer ‘vocês não tiveram a reportagem de Timor, e nós vamos oferecer-vos uma reportagem de Timor, com riscos, e com a mesma possibilidade de atingirem os mesmos objectivos, que é verem Timor’. [...] O repórter diz assim: ‘portanto, o senhor governador está na montanha? E a resposta foi: ‘não, estou aqui em Díli’. Na cabeça do jornalista, o governador era um resistente que estava na montanha a resistir.

Parece que era esta a estratégia da cobertura jornalística utilizada pelo Sr. Hearst, o grande magnata da imprensa americana, já no fim do século XIX, quando se apercebeu que a guerra da Espanha em Cuba ia começar. Enviou de imediato um dos seus correspondentes para o campo de batalha e, quando chegou ao local, o enviado mandou-lhe o seguinte telegrama: “Eu estou aqui e não há nada relacionado com a guerra”. Perante este comunicado, o Sr. Hearst ficou confuso e preocupado, mas não se deixou esmorecer e mandou novo telegrama: “Você faça a prosa, deixe a guerra por minha conta” (Shinar, 2009). Do ponto de vista jornalístico foi, provavelmente, o melhor argumento imaginário que exerceu influência nos editoriais e no campo do trabalho do próprio jornalista. Talvez por isso, Rui Marques chegou a afirmar, dando o exemplo de Timor, que parecia existir uma relação de proximidade e de cumplicidade entre jornalistas e membros da Resistência. Por sua parte, diz o autor, “a Resistência teve a intuição da importância da componente mediática para a sua causa e desejou a presença de jornalistas no território” (Marques, 2005:153), para que o elevado valor da notícia das guerras fosse promovido, seguindo a norma da comunicação constituída por componentes como o heroísmo, o drama, a acção, o visual, o emocional e todo o meio envolvente. A resistência, tal como a sociedade civil, reconheceu a grande importância

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da solidariedade jornalística para o bom êxito da causa de Timor, mas não deixou de reconhecer, ao mesmo tempo, que, no decurso dos acontecimentos, sempre foram surgindo, aqui e ali, algumas dificuldades de relacionamento com a imprensa, uma vez que ela e eles (Resistência e jornalistas) tinham lógicas de funcionamento diferentes. Felizmente, as relações entre a Resistência e os jornalistas pautaram-se, na sua maioria, pelo padrão do respeito mútuo, sabendo cada parte o que lhe competia fazer, como sublinha Marques (2005:159): “A história das tentativas de contacto da Resistência com os jornalistas evidencia, em pequenas ‘estórias’, uma estratégia intencional. Por exemplo, uma das figuraschave na interface da sociedade timorense com os jornalistas que visitam Timor-Leste é o taxista. Com a vantagem de poder, por uns minutos, acompanhar os jornalistas a sós, sem o risco de serem escutados ou de serem tidos como suspeitos, estes timorenses desempenham um papel relevante”, ou seja, o taxista era classificado como um colaborador permanente na condução do encontro entre os jornalistas e os responsáveis da Resistência no mato. Neste sentido, salientarmos que a relação entre jornalistas e ‘colaboradores permanentes’ pode ser caracterizada como uma relação de simbiose, porque a notícia em si é produto de transacções entre ambos que, na maior parte das vezes, lideram o processo de negociação para determinar o valor de noticiabilidade (Gans, 1979; Santos, 1997). Era evidente que o taxista – no ‘modelo dos Lang’ – fazia parte da ‘porta-vozes’, em que a sua participação tinha enorme relevância na disponibilização das notícias credíveis aos jornalistas e na consolidação de um determinado acontecimento: “os jornalistas têm uma importância poder de informar aos cidadãos nacionais e internacionais no sentido de revelar a verdade, pois, através da sua gestão de fontes, vão, directa e indirectamente, destacando porta-vozes, através das opções que fazem – a quem dão voz – e da leitura prévia ou posterior que introduzem na interacção com os porta-vozes” (Marques, 2005: 151-152 – sublinhado nosso). Entretanto, nesta fase de interacção, o papel dos jornalistas é essencial, porque as imagens do massacre de Santa Cruz tornaram-se um elemento fundamental no processo de programação das agendas mediáticas para além de fornteiras de Timor-Leste. A relação de proximidade entre o jornalista e a Resistência foi bem visível na causa dos timorenses, como o caso do jornalista britânico Max Stahl, que em 1991 percorreu as montanhas de Timor-Leste em busca de informações sobre a Resistência dos timorenses e, num dos seus diários, escreveu: Os meus ouvidos estavam em alerta e permaneci sentado ouvindo agora as vozes de aldeões locais ainda mais próximas, a menos de cem metros de distância a nós, cantando em coro e conversando enquanto conduziram o seu rebanho de um campo para outro. Mas os guerrilheiros pareciam tranquilos. ‘Esta é a

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nossa gente’, explicou o comandante [David Alex], ‘eles não conhecem necessariamente a nossa posição e não sabem que você está cá – há informadores em todas as aldeias – mas a maior parte deles sabe que nós estamos na zona e nós mantemo-nos em comunicação com eles. E há também aqueles que sabem exactamente onde é que nós estamos (Stahl, 1992:39).

Nesta perspectiva, salientamos que havia um ‘triângulo da comunicação política’ no esquema da Resistência timorense, no qual os ‘meios de comunicação’, o ‘público’ e ‘todos os órgãos de Resistência’ estabeleceram contactos permanentes para gerar e manter os princípios básicos da mesma, tudo isto passando pela ‘troca de informação’ e pela ‘política cooperativa’. Figura 23 - O triângulo da comunicação política no esquema da Resistência timorense

Este ‘triângulo de comunicação política’ sugere uma alternativa ao modelo vigente, um modelo ‘transmissivo’, para o qual a comunicação é encarada como partilha de informação, orientada para a defesa dos direitos do povo de Timor à autodeterminação. A aproximação do jornalista à causa dos timorenses não se vinculava apenas à presença de um ou mais jornalistas no massacre de Santa Cruz, mas, antes disso, já havia contacto directo entre jornalistas estrangeiros e o líder máximo da Resistência. É o caso do repórter australiano Robert Domm, que esteve em Timor em Setembro de 1990235. Posteriormente, o jornalista português Mário Robalo, do jornal Expresso, entrevistou Xanana Gusmão, sem ter saído da cidade, porque o próprio Xanana Gusmão foi ter com ele a uma casa escolhida, tendo o líder carismático dado a conhecer todo o empenho da Resistência para o futuro, não através de solução armada, mas de diplomacia pacífica. Os militares indonésios, por seu lado,

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A visita de Robert Domm, segundo Max Stahl, era uma visita que abriu novos horizontes diplomáticos para a Resistência e, particularmente, para Xanana Gusmão, embora tivesse consequências militares desastrosas (Stahl 1992:35).

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continuavam a montar a sua espionagem para a recolha de informações sobre a posição da Resistência, e eles – disse o comandante David Alex – “estão continuamente a interrogar a população sobre se viram brancos na região. É a forma de evitarem que os jornalistas contactem connosco” (Stahl, 1992:35-36). Numa perspectiva positivista, os jornalistas fazem o seu trabalho a favor daqueles que não têm voz, ajudando o povo oprimido a libertar-se da opressão militar ou do regime de ditadura. Assiste-se, então, a uma intervenção que faz uso da capacidade de persuasão dissuasiva, lutando pelo mesmo ideal ao lado da população oprimida para tentar suprir a dominação reinante. Os jornalistas não transmitem notícias sem que haja acontecimentos, mas, quando os há, e a sociedade entra em pânico, eles também não param de transmiti-las em pormenor. Como escreve Pierre Nora (1983:49), “o mais pequeno acontecimento é vivido como sendo já histórico, memorável, inscrevendo-se já história, quando nem sequer se sabe, se ela terá lugar ou se virá a ter alguma importância”. Isto é, os pequenos acontecimentos e as notícias como estórias (Traquina, 2002; Tuchman, 1978), que transferem para primeiro plano a importância de compreender a sua dimensão histórica e cultural, como defende Carey: “a notícia, dando vida ao acontecimento, constrói o acontecimento e constrói a realidade” (apud Traquina, 2002: 100). A influência, a intervenção e a participação activa do próprio povo timorense e a opinião pública internacional nos grandes meios de comunicação social foram as chaves fundamentais para acelerar o processo de autodeterminação de Timor-Leste. A formação das opiniões maioritárias foi resultado das relações entre os meios de comunicação de massas, a comunicação interpessoal e a percepção de cada indivíduo em relação à sua própria opinião quando confrontado com a dos outros, ou seja a opinião é fruto de valores sociais, da informação veiculada pela comunicação social e também do que os outros pensam (Santos, 2001:123). Para finalizar esta secção, tenhamos presente o precioso argumento do jornalista Adelino Gomes na sua entrevista concedida a Rui Marques (2005:240), enunciado nestes termos: “Timor não foi o resultado da informação, mas a realidade de Timor impôs-se à informação e, a partir daí, teve os favores da informação e da opinião pública. Os jornalistas estiveram lá, mas a opinião pública não ‘pega’. Como não se conseguem abarcar todas as tragédias do mundo, as pessoas elegem uma. Mas essa tragédia tem que ‘merecer’. Portanto, não foram os jornalistas que contaram bem a história, mas foi a história que se impôs aos jornalistas e ganhou a opinião pública”.

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4.2. Timor-Leste nas páginas do Diário de Notícias e do Expresso Timor foi (ainda em 1974) um território de disputa do poder entre os políticos e oficias da metrópole para governá-lo com o cheiro fresco dos cravos encarnados e da Revolução de que tanto ouviram falar. No entanto, não pudiam tomar uma decisão, porque a disputa política sobre o futuro deste território ainda estava numa situação controversa, conforme consta no semanário Expresso (edição de 25/5/1974), na sua página principal, sob o título: “TIMOR: situação controversa agora sem vendilhões do tempo”. Na verdade, a situação política real daquela época em Timor estava aparentemente numa fase confusa, com algumas declarações bem ambíguas e nebulosas feitas por delegados do MFA e, consequentemente, o próprio major Garcia Leandro desmentiu as suas declarações confusas, apontando o semanário Expresso como uma imprensa sensacionalista e incorrecta na sua reportagem sobre Timor, prometendo que iria descobrir os autores das “notícias alarmistas que obviamente conspiraram contra a paz e tranquilidade na ilha”. Na verdade, talvez as pessoas (e o próprio major Leandro) fossem apontar o dedo aos dois correspondentes deste semanário, Cristóvão Santos (director da imprensa nacional, mais tarde, porta-voz da FRETILIN e ministro da Comunicação Social no curto governo da RDTL) e José Chrys Chrystello, porque foram eles que enviaram as notícias sobre Timor para este semanário. Se recorrermos às notícias sobre Timor nas páginas dos jornais portugueses após o 25 de Abril, a confusão seria cada vez maior, porque “A atitude dos dirigentes militares-políticos portugueses em relação a Timor-Leste ultrapassava as fronteiras da negligência e do paternalismo colonial”, como disse o major Vítor Alve s, em 1975, a um grupo de jornalistas portugueses: “Timor não justifica mais do que algumas linhas nos jornais”. Esta afirmação de desprezo por parte do major, segundo José Ramos Horta (1994:121) foi provocada por uma entrevista publicada com destaque no Diário de Notícias com o vice-presidente da FRETILIN, Nicolau Lobato, que esteve em Portugal em Maio e Junho de 1975, na tentativa de sensibilizar o poder central para a causa da independência do povo timorense. Após a ‘Revolução dos Cravos’, a invasão indonésia e os primeiros anos da ocupação, Timor-Leste não era assunto da imprensa nacional portuguesa, não apagando, porém, o contributo de alguns jornais portugueses (como o Diário de Notícias e o Expresso), que publicaram algumas linhas de notícias sobre a Resistência timorense, embora fossem em número reduzido e a opinião pública portuguesa tivesse sido sempre confusa e incerta.

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4.2.1. Diário de Notícias As notícias sobre Timor no Diário de notícias, em 1975, foram, sem dúvida, de interesse editorial perante a divulgação de um acontecimento específico sobre o processo de descolonização que deveria ser consolidado pela Comissão do MFA nas colónias, principalmente na terra do oriente chamado ‘Timor’. Em termos numéricos das informações publicadas pelo Diário de Notícias relativamente ao ano de 1975, pode estimar-se que houve, pelo menos, 52 notícias, das quais 5 referências relativas ao mês de Janeiro; no mês de Fevereiro registaram-se 6 referências e, outras 6 no mês de Março; em Junho, registaram-se 3 referências e, em Julho, apenas uma referência. Embora o mês de Agosto tivesse sido marcado pela agitação política partidária, o Diário de Notícias não se interessou em relatar pormenorizadamente todo o processo que levou esta turbulência política à beira de guerra civil, pelo que se encontravam apenas 3 referências. Em relação ao mês de Setembro, Diário de Notícias publicou pelo menos 14 referências; no mês de Outubro, registaram-se 7, uma relativa ao mês de Novembro e 3 referentes ao mês de Dezembro, noticiando que “A Indonésia desmentiu a intervenção militar directa em Timor-Leste: em resposta ao Conselho de Segurança” (edição de 24/12/1975) e “A Fretilin controla a maioria do território de Timor: afirma a Nova China” (edição de 27/12/1975). Neste sentido, apresentaram-se três realidades abordadas pelo Diário de Notícias relativamente ao ano de 1975: a primeira dizia respeito à fase de socialização do processo de descolonização protagonizado pelo MFA e a consolidação dos programas políticos encabeçados pelos partidos políticos timorenses recém-criados236; a segunda realidade referiase às provocações internas e externas que levaram à guerra entre timorenses 237; a terceira

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Face à esta realidade, verificou-se que o governo de Lisboa criou uma Comissão Coordenadora do MFA para desenvolver a campanha de descolonização em Timor (Diário de Notícias, 6/1/1975:11), mas a FRETILIN recusou-se a participar no Conselho de Governo enquanto esta Comissão não procedesse ao plano político de saneamento. A recusa da FRETILIN não alterou o plano da Comissão do MFA, grosso modo, continuava a desenvolver intensa actividade no quadro da descolonização de Timor (Diário de Notícias, 24/1/1975), porque “o panorama político de Timor após o 25 de Abril” já estava no centro de disputa do poder entre partidos políticos recém-formados. Consequentemente, a Comissão acelerou a sua campanha de socialização do processo de descolonização de Timor com a marcação da data das eleições (Diário de Notícias, 3/2/1975:13) para que o povo de Timor pudesse pronunciar-se sobre o seu futuro (6/2/1975:9) que fora já consumado na estratégia política de dois partidos políticos coligados (FRETILIN e UDT) para negociarem com Portugal a independência da colónia (Diário de notícia, 23/1/1975). 237 De Junho a Setembro de 1975, a situação política em Timor-Leste estava fora do controle, nem o governo colonial nem os dirigentes dos partidos políticos conseguiam tranquilizar a situação. Havia factores que influenciavam ou destruíam a coligação entre a FRETILIN e a UDT: alguns dirigentes da UDT foram influenciados por agentes oficiais indonésios e pelos membros da hierarquia da Igreja Católica de Timor, quebrando a coligação porque temiam que a FRETILIN governasse o povo de Timor com uma ideologia comunista. Uma história ainda hoje mal contada, pois a verdade é que a FRETILIN não era um partido de ideologia comunista, mas um partido com projecção política socialista; e a UDT não era um partido socialista,

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realidade era uma fase ‘difícil’ para a direcção da FRETILIN, mas este partido fez todo o possível para consolidar a gestão administrativa deixada pelo governo colonial até à data da invasão indonésia238. Gráfico 14

Apesar das notícias da eventual invasão, a vida em Timor continuava a ser calma, constata o Diário de Notícias (26/2/1975). O major Vitor Alves, na chegada a Lisboa, afirmou que “o povo de Timor deverá querer a independência” (8/3/1975)239, não omitindo, porém, a mas sim, um partido social-democrata. Por isso, pode dizer-se que a infiltração da política externa, como a da Indonésia, Austrália e EUA, deixou bem claro que a UDT foi usada por estes países no sentido de destruir a boa imagem da FRETILIN, desestabilizando assim o território de Timor; por outro lado, pela força de interesse partidário, os dois partidos decidiram acabar com a coligação e a UDT, por sua vez, acusou a FRETILIN de não aceitar as condições tomadas durante a coligação (Diário de Notícias, 5/6/1975). Não se apaga, no entanto, o envolvimento da hierarquia da Igreja Católica na abolição da coligação, pois o bispo D. José Ribeiro, através da sua política “moral santa” acusava a FRETILIN de ser um partido de ideologia “comunista”, sem ler o programa político deste partido. A atitude deste bispo justificava o seu apoio dado incondicionalmente à UDT (Miranda, 2003:56-57). As influências dos agentes externos e internos deixaram cair a boa intenção política dos dois partidos sobre o futuro de Timor. Consequentemente, surgiu a guerra civil, de que resultou “a morte e a destruição de bens matérias” (Diário de Notícias, 22/8/1975), sendo uma destruição provocada pelo violento combate à granada e tiros de morteiros (Diário de Notícias, 23/8/1975) entre a UDT e a FRETILIN. Perante esta situação tão dramática, o governador Lemos Pires apelou à intervenção internacional (Diário de Notícias, 25/8/1975), mas a sua voz não foi ouvida, nem pela autoridade da metrópole, muito menos pela ONU; a mesma preocupação foi partilhada também pelos timorenses em Lisboa, acusando a UDT e a FRETILIN como autores de instabilidade do território (Diário de Notícias, 26/8/1975:6), esquecendo-se, porém, de criticar as conversações de Suharto na Austrália com Withlam (Diário de Notícias, 24/3/1975). 238 Vejam-se os artigos publicados pelo Diário de Notícias, “A situação em Timor: a Fretilin só aceita discutir com Pinheiro de Azevedo” (19/9/1975); “A situação em Timor: a Fretilin ocupa novas posições enquanto prossegue o esforço de paz da missão especial portuguesa” (6/9/1975); “Soldados portugueses libertados pela Fretilin: a Indonésia insiste na criação urgente de uma força quadripartidária para intervir em Timor” “A Fretilin propõe a Portugal negociações para a independência de Timor: tropas indonésias de prevenção na fronteira com Timor português” (8/9/1975); “A Fretilin aceitou negociar com as autoridades portuguesas e afirmou que mais de 40000 timorenses refugiaram-se na parte indonésia da ilha” (7/10/1975); “A situação em Timor mantém-se estacionária: a Fretilin solicita a presença de um membro do governo português para se inteirar da situação” (21/10/1975). Portugal não respondeu a nenhum pedido feito pela Fretilin, ignorando-o de uma forma cínica e deixou a Indonésia intervir sem consentimento do povo. Quando duas cidades – Batugadé e Balibo – caíram nas mãos dos indonésios, a Fretilin começou a perceber que já não havia outra alternativa, e, por isso, proclamou unilateralmente a Independência de Timor-Leste em 28 de Novembro de 1975. Na sequência disso, em 29 de Dezembro de 1975, o primeiro-Ministro Gough Whitlam declarou que “não reconheceria a declaração unilateral de independência da Fretilin, por anti-democrático e imposta ao povo pelas armas” (Abreu, 1997:89). 239 Apesar de algumas ideias imprecisas e indifnidas quando ao futuro de Timor, o governador Mário Lemos Pires, partilhou também esta mesma ideia, dizendo: “Se me perguntarem o que é que pensará a maioria do povo

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sua intenção de voltar “a avistar-se com o seu homólogo do sector indonésio da ilha” (25/3/1975). A guerra diplomática entre a Indonésia e Portugal passou para uma fase mais activa, acusando-se face à condução do processo de descolonização de Timor-Leste. Consequentemente, o chefe do gabinete de Comunicação Social de Timor, acabado de chegar a Lisboa, afirmou que “a invasão de Timor pela Indonésia é uma possibilidade remota” (27/2/1975), e tal possibilidade revelou-se mais tarde pela voz do Adam Malik (Ministro dos Negócios Estrangeiros da Indonésia), afirmando que “a Indonésia não tolerará que a situação em Timor atinja uma fase perigosa” (3/1975). Três dias depois, este ministro indonésio defendeu que a “Indonésia não tem qualquer intenção de ocupar a parte portuguesa de Timor (6/3/1975). Desmentiu assim a sua alegada declaração anterior e, de seguida, “Indonésia e Portugal acordaram manter a segurança ao longo da fronteira de Timor” (7/6/1975). Este acordo era um jogo político, diplomático e militar bem planeado – quer do governo português, quer do governo indonésio – para construir ou destruir Timor, como se o território timorense fosse sua propriedade. O acordo diplomático não durou muito, porque a trágica situação de guerra entre timorenses levou a Indonésia a apontar Portugal como o único responsável pela situação de guerra civil (26/8/1975. Alguns dias depois, as autoridades de Jacarta reiteraram a sua acusação a Portugal e reafirmaram, mais uma vez, que “a Indonésia não intervirá no Timor português” (13/9/1975); desmentiram o seu envolvimento directo no conflito e ter dado qualquer apoio às forças da UDT e Apodeti (18/10/1975) e, perante a reunião do Conselho de Segurança da ONU, o porta-voz do regime de Jacarta desmentiu a intervenção militar directa em TimorLeste (24/12/1975)240, porque “o repórter não estava lá” (Expresso, 12/11/1983). Sendo assim, a Fretilin continou dominar a “costa sul de Timor” (Diário de Notícias, 15/1/1976) e exigiu um “novo debate na ONU sobre Timor” (11/3/1976).

de Timor, eu tenho grande dificuldade em o dizer, dado o grau relativamente grande de despolitização. Mas parece-me que o povo de Timor quer seguir sozinho o seu ramo na história” (Jornal de Notícias, 8/3/1975). Em declaração ao mesmo jornal (25/5/1975), o Major Vítor Alves afirmava que “a ideia de construção de mãos dadas e tanto quanto possivel com o MFA local, a construção de um espírito de nacionalidade que é fundamental para que se possa ouvir o povo de Timor e para que se possa respeitar a sua vontade”, cujo conteúdo não se conhecia. Mas, estabeleceu-se a constituição de um governo provisório até a independência e a realização de eleições directas e livre para a Assembleia Constituinte de Timor-Leste (Jornal de Notícias, 29/6/1975; Mendes, 2005:304), previstas para Outubro de 1976 que não ficou apenas nas expectativas (Hill, 1978:159). 240 Contudo, a Assembleia-Geral e o Conselho de Segurança da ONU não acreditavam aquilo que os diplomatas indonésios diziam, por isso, através da Resolução 384 de 22 de Dezembro de 1975, apelaram a todos os Estado membros para que respeitem a integridade territória de Timor-Leste e o direito inalienável do seu povo à autodeterminação, e pediram à Indonésia para que retirasse as suas forças do território. No ano seguinte, pela sua Resolução 389 de 22 de Abril de 1976, o Conselho apelou de novo, a todos os Estado membros para que respeitem a integridade territorial de Timor-Leste, obrigando à Indonésia retirasse as suas forças (Diário de Notícias, 22/4/1976), mas não se retirou porque confiava nas suas políticas diplomáticas.

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4.2.2. Semanário Expresso O semanário Expresso – desde o período que medeia o acontecimento histórico de 25 de Abril de 1974 até 31 de Dezembro de 1996 – foi um dos órgãos de imprensa escrita de referência no panorama mediático português. A quantidade de peças publicadas e a centralidade do tema sobre a questão ‘Timor-Leste’ foram tratados gradualmente só a partir da década de 80 (ver gráfico 16). Somente a partir de então Timor-Leste foi abordado com maior frequência nas páginas do jornal, atingindo os valores máximos em 1991,1992 e 1996, data da outorga do Prémio Nobel da Paz a D. Ximenes Belo e a José Ramos Horta (Matos, 2001). Gráfico 14 – Artigos sobre Timor-Leste publicados pelo Expresso segundo o ano de publicação

O volume de peças publicadas pelo Expresso sobre Timor aumentou significativamente em 1988, em virtude da abertura do território e da existência de um consenso e empenho efectivos de todos os órgãos da soberania portuguesa (Governo, Parlamento, Presidente da República e sociedade civil) no que dizia respeito à defesa do direito do povo timorense à autodeterminação. Tal consenso foi promovido pelos respectivos órgãos de comunicação social portugueses, mais concretamente, pelo Expresso aqui apresentado. O aumento do volume de notícias teve em conta também a aceleração da política externa portuguesa relativamente ao tema discutido em Estrasburgo, Genebra e Nova Iorque241, que pressionou a Indonésia a retirar a sua candidatura à presidência do Movimento dos países Não-Aliados. Foram estas as razões que levaram o subdirector do Expresso, Vicente Jorge Silva, a transformar Timor-Leste numa causa nacional, tendo-se dado especial destaque ao tema na agenda do seu jornal. 241

Veja-se: “Timor leva Durão Barroso a Genebra” (Expresso, 6/2/1988) e “Timor de novo em debate na Suíça” (Expresso, 13/2/1988); “Timor leva Deus Pinheiro a Nova Iorque” (Expresso, 16/1/1988) e “Timor-Leste tem novo debate na ONU (Expresso, 13/8/1988).

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Em 1983, o Expresso publicou 18 referências sobre Timor, entre as quais, a notícia mais controversa foi acerca do encontro de “cessar-fogo” em Lariguto, que se pode ler no artigo “Guerrerilheiros timorenses assinaram a rendição” (2/7/1983) da autoria de Maria Gabriela (correspondente do Expresso em Melbourne) e José Carlos Viera. Nesse artigo dizia-se: Responsáveis militares da Fretilin e da Administração indonésia em Timor-Leste chegaram a um acordo segundo o qual os guerrilheiros que lutavam pela independência da antiga colónia portuguesa deporão as armas e aceitarão, pelo menos, implicitamente, o princípio da integração na indonésia, de acordo com fontes de Díli e de Jakarta contactadas pelo Expresso. […] Responsáveis da Aministração indonésia em Timor-Leste afirmaram à correspondente do Expresso em Melbourne, Maria Gabriela, o comandante-emchefe das forças da Fretilin, Kay Rala Xanana Gusmão (também conhecido por José Alexandre Gusmão), teria afirmado, na semana passada, após as conversações com o governador de Díli nomeado por Jakarta, Maria Carrascalão: ‘Rendo-me ao que está evidente, timor Integrado na Indonésia.

Esta notícia não correspondia a realidade do terreno, porque as fontes de informação a que o Expresso teve acesso, baseavam-se apenas nas declarações prestadas pelas autoridades indonésias e respectivos militares que tinham por objectivo: vender o plano de ‘cessar-fogo’ para agradar a opinião pública internacional. Por isso, o Comité Central da Fretilin, Abílio Araújo, desmentiu ao Expresso de que tinha havido apenas as conversações de ‘cessar-fogo’ e, não a rendição; enquanto Ramos-Horta consideraria que a notícia do Expresso supracitada era “uma campanha de desinformação e contra-informação”, alegadamente lançada a partir da Indonésia com o fim de “criar dificuldade ao processo de conversações” que estava em fase prelimiar. Barbedo-Magalhães (2007b:364), por seu lado, ficou surpreendido com a notícia, sobretudo, o seu título, que poderia convencer os leitores que a Fretilin ia render-se. Ele não hesitou em telefonar a direcção do Expresso, explicando que não era, de algum modo, da rendição da Fretilin que se tratava, mas naturalmente as fontes indonésias manipuladas pelos serviços secretos. O jornalista ficou indignado e defendeu-se dizendo que tais informações eram a opinião dominante no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Contudo, Barbedo-Magalhães esclareceu ainda que em 7 de Julho de 1983, o semanário Tempo, dirigido por Nuno Rocha, também publicou em Lisboa uma notícia que ia muito mais longe do que outros jornalistas e amigos do povo de Timor imaginavam. O artigo deste semanário intitulava “Fretilin depõe armas – Fretilin na hora da rendição”: Pela primeira vez desde 1975, falei para Díli. A chamada foi dolorosa porque, no outro lado da linha, estava nem mais nem menos, aquela em que a Fretilin depositava todas as esperanças para manter acesa a luta pela autodeterminação de Timor-Leste: José Xanana Gusmão. […] Nada mais errado. Houve com efeito conversações, mas não em Março. Foi em Fevereiro, e não foram solicitadas ou anunciadas por

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autoridades indonésias. Foi José Gusmão que solicitou às autoridades locais para ter um encontro com o engenheiro Mário Carrascalão, o homem nomeado governador de Timor pelo Governo de Jakarta. […] Um mês depois, houve a rendição total na zona de Aileu, com comida, bebidas e um desafio de futebol entre guerrilheiros da Fretilin e soldados indonésios. Ao regressar a Díli, José Gusmão recebeu uma casa e um Land Rover das autoridades como oferta. Hoje, é um funcionário no Departamento de Economia de Díli, Gusmão garantiu-me que ‘já não há qualquer luta em Timor’.

Este discurso jornalístico de Nuno Rocha não tinha nenhuma credibilidade dos factos concretos, por isso, manipuladamente colocou o nome Cristovão Santos como autor do artigo publicado. Grosso modo, o que Nuno Rocha escreveu era uma parte do seu apoio à campanha de desinformação e intoxicação da opinião pública, que a Indonésia lançou contra a Resistência timorense. Parecia que a predominância das fontes oficiais relativa ao caso, fornecida pelas autoridades indonésias era uma parte considerável das notícias produzidas em torno da actuação com os jornalistas, com o fim de possuir recursos determinantes para conseguirem impor com sucesso os seus “acontecimentos e problemáticas na agenda dos jornalistas e fazer passar os seus enquadramentos na luta simbólica em torno do processo de significação” (Traquina, 2002: 125). Sabendo que as fontes oficiais controlam a informação sobre o meio envolvente, em especial o mundo, a opinião pública (Santos, 1997:26) até os jornalistas que, de alguma forma, impõem o processo de produção de notícias como “uma questão de representantes de uma burocracia, apanhando notícias pré-fabricadas de representantes de outras burocracias” (Schudson, 1986: 31) que, no caso de timor, estavam na acção da “propaganda indonésia num semanário português” (Barbedo-Magalhães, 2007b:365) que deixou Portugal perplexo. Em 1989, deu-se uma queda de informação que permitiu publicar apenas 50 referências, mas ganhou uma nova dimensão na agenda mediática em virtude da abertura formal do território pelo governo de Jacarta, que permitiu o acesso dos jornalistas ao território. Daí, o problema de Timor-Leste passou a ser coberto definitivamente pelos órgãos de comunicação social de diversos países, incluindo aqueles que desde o início apoiaram a Indonésia, como a imprensa britânica (The Independent), que só depois do massacre de Santa Cruz passou a interessar-se pelo tema. No entanto, a cobertura jornalística em 1989 foi um caso bastante bem sucedido, porque havia informações a favor e contra relativamente à visita do Papa João Paulo II, não deixando, porém, de considerar aquele ano como o ano ‘Santo da Paz’, porque os timorenses diziam: ‘ainda bem que o Papa veio até nós’, não se importando se ele denunciava ou não os crimes contra a humanidade praticados pelos militares indonésios. Sendo assim, a opinião pública sobre a visita do Papa e o seu comportamento de silêncio 346

perante a situação vivida pelos timorenses estavam no auge das contradições, como foi referido. Relativamente ao ano de 1990, o Expresso só publicou 43 notícias relacionadas com o plano da visita dos deputados portugueses a Timor-Leste. Uma das notícias foi “Xanana quer ver missão da AR” (7/4/1990), mas a “Indonésia não deseja visita de deputados” (30/6/1990), porque a “Indonésia quer eliminar resistência” (14/7/1990), e, pela decisão incerta do governo português sobre a visita dos seus deputados, Xanana, enquanto líder da Resistência, acusou “Lisboa de punhalada nas costas” (27/10/1990). No mês de Novembro do mesmo ano, “indonésios prendem 50 jovens em Díli” (17/11) e o bispo Ximenes Belo atribuiu a responsabilidade ao governo Português (24/11). O período de 1991 e 1992 foi marcado pela grande expectativa de que o problema de Timor ia ser reforçado na agenda política internacional através da futura visita dos deputados portugueses. Neste período, a questão de Timor-Leste estava a ganhar uma nova dimensão de noticiabilidade na agenda mediática internacional, não deixando de incluir também a participação dos media portugueses. O Expresso ultrapassou todos os outros periódicos portugueses, com a publicação de 111 volumes de notícias referentes ao ano de 1991 e 121 relativas a 1992. O tema tratado pelo Expresso daquele período era, por um lado, relacionado com a visita dos deputados com quem os timorenses desejavam encontrar-se, mas essa visita “preocupou D. Ximenes” (19/10/1991), porque a Indonésia tinha começado a prender timorenses (20/7/1991), e, em Lisboa, Mário Soares e Ângelo Correia cancelaram a visita a Timor (26/10/1991); devido a este facto, Xanana pediu uma resposta clara ao governo português sobre a posição de Portugal (9/11/1991); por outro lado, graças à entrada do jornalista Mário Robalo no território, o Expresso empreendeu um esforço notório no sentido de definir os contornos da apresentação pública do caso de Timor de que a integração dos timorenses na Indonésia foi uma invenção política do regime de Jacarta e, apesar da repressão violenta, os timorenses continuavam a lutar pela sua liberdade com o sangue derramado no cemitério de Santa Cruz. Nos anos a seguir, o Expresso continuava a destacar ‘Timor-Leste’ como tema principal e prova de solidariedade mediática, segundo a qual, em 1993, ainda publicava mais de 74 de notícias e 79 relativas a 1994, mas, em 1995, a participação do Expresso na disponibilização do tema quebrou um pouco, encontrando-se, deste modo, apenas 59 volumes de notícias. Retomou a sua habitual participação activa na condução do tema a partir do ano de 1996, com a publicação de 106 de notícias, graças à atribuição do Prémio Nobel da Paz aos dois timorenses José Ramos Horta e bispo Ximenes Belo. 347

5. Fase de consagração Rui Marques classifica o período compreendido entre Novembro de 1997 e Dezembro de 1999 como a fase de consagração da resistência timorense. Isto é, a luta dos timorenses pela sua autodeterminação já estava no ponto mais alto da história da sua luta. A crise económica na Ásia, que atingiu a Indonésia numa altura estratégica, foi aproveitada pelos timorenses para defender e reclamar, perante as Nações Unidas, o seu propósito de realização do Referendum, sabendo que uma vitória poderia ser decisiva para a sorte da sua luta242. O clima de insegurança dos timorenses, durante e após o Referendum, foi visivelmente reportado pelos jornalistas acreditados em Timor. Na cobertura de um acontecimento desta natureza, os jornalistas portugueses que na opinião de Adelino Gomes, eram os primeiros que tratavam o assunto, influenciados pelos acontecimentos e, é gente que pode ser levada pelas circunstâncias [...] os americanos estão acostumados a que, quando falham no terreno, estão lá os editores para repor o ‘jornalisticamente correcto. […] O que o que aconteceu é que a realidade reforçou o mito, isto é, o mito da formação da ideia nação e da identidade nacional. Acho extraordinário Timor ter aguentado aquele ano inteiro, até Agosto, reportagens sucessivas de jornalistas e ver-se quase uma continuidade de discurso nos media (Marques, 2005:237-238 – sublinhado nosso).

Uma das atrocidades mais alarmantes, durante os primeiros seis meses de 1999, foi o massacre de Liquiçá, em inícios de Abril, onde, pelo menos, cerca de cinquenta civis foram massacrados de forma cruel e outros tantos foram gravemente feridos243. Na sequência destas violências, o então presidente da República Portuguesa, Jorge Sampaio, afirmou que “The Indonesian authorities must be seen as responsible before the international community for the wave of violence by armed militias against civilians” (The Age, 9/4/1999); em 27 de Setembro, a Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas pronunciou-se, condenando as “ […] violações graves, sistemáticas e de larga escala de direitos humanos e direito 242

A propósito, reportamos o testemunho de um jornalista que visitou Maliana, afirmando que a população daquela região foi intimidada por grupos “Besi Merah Putih” (paramilitares pró-integracionistas) e ameaçada por violentas represálias se votassem pela independência, observou que “um dos primeiros a votar foi um homem de meia-idade apoiado em duas bengalas partidas. As suas pernas estavam arqueadas permanentemente, e demorou cinco minutos para atravessar a sala, ir buscar o boletim e arrastar-se até à urna. Observei-o enquanto escolhia penosamente a mais pequena das duas urnas, a que rejeitava a continuação da ligação à Indonésia” (cf. Taylor, John G Taylor (1999), “A Indonésia e a transição para a independência em Timor-Leste”, in Política Internacional, nº 20, pp.193-225). 243 Cf. David Scott and Scott Goodroad (1999), Human rights in East Timor: Indonesia defies UN & the international community - bi-annual report of human rights violations in East Timor. Cf. o Tim Dodd da agência noticiosa The Age (9/4/1999) escreveu que segundo “An assistant of East Timorese Catholic leader Archbishop Belo, Mr Ammandeaou, said that residents of Liquisa, where 25 people were massacred by loyalists on Tuesday, were living in fear and only left their houses wearing the red and white Indonesian colours”.

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humanitário em Timor-Leste; as graves violações e abusos em larga escala do direito à vida, à segurança pessoal, integridade física e do direito à propriedade; e as actividades das milícias que aterrorizavam a população” (E/CN.4/RES/1999/S-4/1). Este acto é uma acção de “violência terrorista”, porque ataca “inesperadamente pilares ‘positivos’ da estrutura social” (Schmid, 1992:114); e, se encaixamos tal acto nos valores-notícia provavel que um evento espectacular, imediato, espontâneo e negativo para o discurso dos media (Simões, 2004:463). De acordo com o Pe. Rafael dos Santos, os militares indonésios começaram a disparar para o ar quando as milícias do Besi Merah Putih atacaram a população indefesa, tendo estas sido obrigadas a fugir: “Some fled into my house and others into the church, but the police threw in tear gas to make them come out. The people left the church with their eyes streaming and were hacked to death with machetes by the Merah Putih (Red and White)” (The Age, 9/4/1999). Porém, o porta-voz da BRTT (facção leal à Indonésia), Gil Alves (actual ministro do Turismo de Timor-Leste), disse que o ataque das milícias foi uma resposta imediata aos tiros que vieram de dentro da Igreja, e, ao mesmo tempo, negou que as milícias tenham sido armadas pelos militares indonésios, como Xanana declarava. No caso concreto, pode dizer-se que Gil Alves, leal à Indonésia, argumentou que o grupo Besi Merah Putih atacou a casa do padre para desarmar os membros do CNRT que tinham guardado armas na Igreja, adiantando que a polícia estava presente para prevenir a violência, e o gás lacrimogéneo fora lançado em autodefesa (The Age, 9/4/1999). De acordo com as vítimas daquele massacre, os agentes da polícia, nada fizeram, quando as milícias atacaram a Igreja e mataram as pessoas, além de que não havia armas escondidas pelos membros do CNRT. Aquando da tragédia ocorrida a seguir à realização do Referendum de 1999, a opinião pública portuguesa estava bastante dividida e confusa quanto à explicação do que se passava em Timor. Porém, através de artigos da imprensa escrita, de directos para televisões e rádios, mantiveram Portugal e o mundo informados do que acontecia em Díli e nos restantes distritos do território. Alertados para a realidade do povo timorense, cidadãos anónimos e várias organizações não-governamentais de defesa dos direitos humanos e de ajuda humanitária deram origem a grandes vagas de solidariedade e de ajuda a Timor. Estas acções foram decisivas na intensificação da pressão exercida sobre a comunidade internacional para que pusesse termo às barbaridades. Nessa altura, Timor-Leste estava sob um clima de insegurança e terror provocados ou lançados pelas milícias e organizações armadas indonésias que pretendiam manter o território timorense como parte integrante da NKRI, propósito traduzido não só nas acções violentas 349

contra a população civil, mas também nas atitudes de intimidação aos jornalistas e elementos da ONU presentes no território, embora se limitasse apenas à capital Díli. O Hotel Mahkota (actual Hotel Timor) servia de ‘centro de imprensa’ de diversos meios de comunicação social, porque a maioria encontrava-se alojada naquele hotel. Foram várias vezes atacados pelas milícias pró-indonésia, para que tivessem medo e regressassem de imediato aos seus países de origem, no intuito de impedir que o mundo tivesse conhecimento do plano de extermínio e deportação do povo timorense para outras ilhas ou territórios indonésios. Devido a este cenário de intimidação, cerca de noventa por cento dos jornalistas abandonaram o território de Timor-Leste e a sua gente, permanecendo alguns, menos de 20, entre os quais, quatro portugueses: Hernâni Carvalho, jornalista da RTP, Jorge Araújo, d’O Independente, José Vegar, do Expresso, e Luciano Alvarez, do Público. Estes jornalistas trabalharam incondicionalmente, produzindo notícias sobre a situação de terror em que se encontrava um povo que lutou pela vida e pela liberdade, como foi bem relatado no sugestivo livro Timor: o Insuportável Ruído das Lágrimas (Alvarez, 2000), cuja descrição está constantemente dividida entre a imparcialidade jornalística e o apelo dos sentimentos que os quatro jornalistas portugueses viveram, obrigados a confrontar-se com a falta de informação, porque não havia espaço para eles poderem sairem à rua para recolher informações de terror que as milícias e as tropas indonésias espalhavam. No entanto, não deixaram de receber notícias do lado timorense, embora algumas delas fossem apenas rumores. No dia em que o terror e a violência aumentaram, os referidos jornalistas também partiram juntamente com o responsável e respectivos funcionários da UNAMET para a Austrália, porém, a maioria foi a Jacarta. Era a repetição da história que sucedeu em 1975, em que o governador Lemos Pires e respectiva comitiva abandonaram o território de TimorLeste, deixando o seu povo mergulhado na tragédia inacabada e, mais uma vez, entregue à sua sorte. Timor ficava, assim, sem os olhos, os ouvidos e as bocas que tinham denunciado o seu sofrimento. No entanto, a permanência de alguns jornalistas nos dias que antecederam à partida da missão da UNAMET foi fundamental para a mobilização da opinião pública por todo o mundo. Os repetidos e incessantes apelos aos que podiam fazer alguma coisa surtiram efeito. Contudo, todos os dias havia notícias em dois sentidos: aprofundar a imagem virtuosa dos bons, por um lado, e, por outro, a imagem diabólica dos maus. Isto fez com que a opinião pública, já preparada, se tornasse aí também quase incontrolável (Marques, 2005: 238). Apesar de não entender bem as causas do que se passava, a opinião pública portuguesa, 350

perante o drama e a destruição que diariamente lhes eram mostrados pela televisão, compreendeu que o povo de Timor estava a ser vítima inocente das maiores atrocidades. Isto teria bastado para que uma opinião pública dividida se unisse, em torno duma causa comum: “foi um tempo rico de afirmação de gestos simbólicos: os cordões humanos, a roupa branca, a pressão junto das embaixadas [...] ” (Marques, 2005:118). Este gesto do povo português foi considerado por Sofia Aureliano (2004:42) uma “mobilização de facto, mas não é tão claro o que terá estado na sua origem”. É esta tendência de ‘obrigação moral’ que tem sido manifestado pela maioria da opinião pública, colocando o papel dos media em primeiro lugar, sendo também verdade que, “Se o caso de Timor-Leste não tivesse tido tanto impacto junto da sociedade civil, a cobertura não seria a mesma. E o motivo é mais simples do que pode parecer: porque não teria assunto para cobrir. Se aquelas massas, que alimentaram todos os noticiários, não estão na rua, não há nada para meter dentro da informação jornalística. Se essa vaga de emoção não tivesse acontecido, não haveria história para alimentar tanto tempo e com uma exposição tão prolongada do assunto de Timor”244 Muitas vozes do opositor independentista acusaram os repórteres portugueses de terem sido ‘apaixonados e parciais’ nos seus trabalhos sobre Timor. Outras, por sua vez, enalteceram essa mesma paixão e parcialidade imprimida, segundo elas, no jornalismo português durante este período. É por isso mesmo que desde o dia 2 de Setembro, membros das milícias avisaram os jornalistas estrangeiras que só tinham três dias para sair do território. As ameaças visavam todos e, muito particularmente, os portugueses e os indonésios que trabalhavam para agências estrangeiras (Público, 3/9/1999:3). Na apresentação da obra Timor: o Insuportável Ruído das Lágrimas, o jornalista do Publico, Adelino Gomes respondeu aos críticos para que apresentassem “exemplos de coberturas da história recente em que os jornalistas oriundos de um país que era parte da história tenham feito um esforço maior para ouvirem e darem voz à outra parte”. Hernâni Carvalho, por seu lado, disse que apenas falava de factos e “no nosso caso, apenas de quatro escrevedores de factos” reconhecendo que, enquanto humano “Tive medo, não o nego, eu e os colegas de trabalho que lá ficámos, naquela altura, tínhamos plena consciência do perigo e do sério risco que corríamos”, mas “alguém tinha de ficar para poder contar ao mundo o que se estava a passar, do nosso ponto de vista, isso era imprescindível”. Isto significa que os jornalistas que quotidianamente cobriam os acontecimentos em Timor foram contagiados pela

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Entrevista de Henrique Botequilha (jornalista da revista Visão) concedida à Sofia Aureliano (2004:43).

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natureza emotiva do acontecimento, onde a voz embargada, os silêncios, a excitação, as explosões de dramaticidade, em que os gritos e as palavras se sucedem com muita rapidez na imprensa escrita e televisiva. É portanto a solidariedade generalizada da sociedade portuguesa em torno da dramática situação que sucedeu em Timor pós referendo, galvanizou completamente de Norte a Sul, de Este a Oeste (apenas com uma exepção no Governo Regional da Madeira e no seu Presidente Alberto João Jardim). As suas acções centraram-se junto das embaixadas dos países membro permanente do Conselho de Segurança e noutras iniciativas que pudessem contribuir para um alerta e mobilização internacional. Enquanto o papel da solidariedade australiana não era, inicialmente, apoiar o governo do seu país, como o caso em Portugal, mas, pelo contrário, força-lo a mudar de posição e a fazer o oposto do que sempre fizera antes (BarbedoMagalhães, 2007b:585-586). Permitimo-nos destacar também a forma como dois jornais portugueses cobríram o referendo de 1999 em Timor-Leste, quando os timorenses, pela primeira vez, foram chamados a dar o seu voto pela independência, e os violentos acontecimentos que se seguiram. Foram os pontos que marcaram a reflexão do jornalista João Manuel Rocha (2011) sobre a natureza do poder dos media, no seu sugestivo livro Quando Timor-Leste Foi uma Causa, onde consta a intensa cobertura jornalística do referendo de 1999 e que, do ponto de vista do discurso dos media, levou Timor-Leste a tornar-se um ‘monotema’ da informação nos media portugueses, quase eclipsando a outra actualidade e contaminando, ou até ocultando, a campanha para as eleições legislativas em Portugal. A mesma reflexão também está presente na tese de Gisele Calgaro, A questão de TimorLeste no Jornal Público: a Voz do Bartoon (2006). Ela começou a sua análise a partir dos sete Bartoons criados pelo cartunista português Luís Afonso, publicados na secção “Espaço Público” do Público, datados 6 e 24 de Setembro de 1999, o qual reflecte profundamente sobre a voz de um povo que emerge na enunciação do discurso. Na opinião de Calgaro, Bartoon conseguiu despertar a reflexão dos leitores portugueses acerca da independência de Timor-Leste ao confrontar o discurso empregado pela Comunidade Internacional e o discurso identitário timorense. O Diário de Notícias e o Público tinham de sintonizar o tema de antes e após o referendo de 1999 com a partilha do sentimento emotivo e de solidariedade para com o povo de Timor-Leste. Esta partilha foi facilitada pelo facto de as notícias se terem inscrito numa ‘esfera de consenso’, em que os órgãos de informação tenderiam a relativizar um distanciamento que pretendiam legitimador da sua actividade. Este papel leva a admitir que, 352

em quadros de consenso, os media influenciaram a opinião pública portuguesa não só sobre o que se pensa e como se deve pensar, mas também o que se deve fazer e como se deve agir.

6. Considerações finais A cobertura jornalística de Timor-Leste era uma missão impossível, pois, por um lado, havida a proibição de acesso ao território, aliada às precárias condições técnicas ao dispor dos jornalistas e também pouca gente (portugueses) as lidar com o problema de Timor; alguns até diziam: “que chatice, houve invasão, mas são comunistas”; por outro lado, todos os acessos de informações eram controlados pelo regime militar indonésio. As novas tecnologias da comunicação potenciadas pelo recurso à televisão e principalmente à internet facilitavam o conjunto de trabalhos de solidariedade estabelecidos pelos estudantes universitários em colaboração com as organizações não-governamentais (por exemplo, ETAN, SOLIDAMOR e outras) e com os núcleos activos da Resistência da diáspora timorense. Deste trabalho conjunto resultou uma mobilização global a favor de Timor. As redes de telecomunicações, designadamente os canais televisivos, deram um enorme contributo mediante a exibição de imagens do sofrimento de um povo que lutava pela Pátria Timor-Leste, particularmente o choque provocado pelas imagens do massacre de Santa Cruz em 1991. Oito anos depois deste acontecimento, a destruição maciça do ‘Setembro negro’ levou a opinião pública internacional a pressionar os Estados-membros da ONU – particularmente, os membros permanentes, EUA, a China, a Rússia, a Inglaterra e a França – a usarem dos mecanismos institucionais no sentido de intervir com eficácia e rapidez na solução do problema de Timor-Leste com o envio da Força Multinacional denominada INTERFET, concretizando desta forma o seu apoio com a edificação do novo Estado imaginário/sombra chamado ‘UNTAET’, que vigorou até 20 de Maio de 2002. As redes de comunicação de massa canalizam, numa dimensão global, uma importante interacção social e cultural de pessoas de diferentes países como geradora de identificação e de solidariedade étnica e nacional. Portanto, o caso de Timor-Leste ilustra também esta capacidade de trabalhar em rede comunicacional, estabelecendo-se o contacto com todos os intervenientes no processo de mobilização da opinião pública internacional. A geração formada nesta lógica promoveu as actividades de Resistência eficaz e crescente. Aquando da visita de Bill Clinton à Indonésia em 1995, os jovens estudantes, patriotas, ocuparam de forma pacífica a Embaixada norte-americana em Jakarta, com a intenção de pedir asilo

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político a Portugal. Foi uma ordem e uma vitória para a Resistência, ao mesmo tempo, e um desafio à diplomacia (EUA e Indonésia), ou seja, uma lição dada pelos jovens estudantes patriotas timorenses aos Estados poderosos. Esta lição, do ponto de vista jornalístico, é um “espantoso golpe de relações públicas” (Anderson, 2000:11). Vimos também que a Indonésia considerava os timorenses que lutavam contra a sua posição como indivíduos ‘ingratos’, tal como a autoridade colonial holandesa dizia relativamente aos próprios indonésios, quando se revoltar contra ela. Tal constatação pode dar razão a ‘mobilização do viés’ na política convencional, por norma, no interesse do status quo dos grupos de elite que, no caso de Timor, é reforçada positivamente contra os interesses estabelecidos, por parte da sociedade, forçando a agenda política internacional. Mostramos, enfim, os valores-notícia que apresentam o problema de Timor – tanto na agenda dos media como na agenda política internacional – sob duas formas. São critérios de noticiabilidade, desde o material disponível até à selecção. Em segundo lugar, funcionam como linhas-guia para a apresentação do material, sugerindo o que deve ser realçado (Golding & Elliott, 1979:114). A selecção das notícias é um processo de decisão e de escolha realizado rapidamente (Gans, 1979:82); por isso, os valores-notícia derivam de pressupostos ou de consideração relativas: a) às características substantivas das notícias; ao seu conteúdo – como uma categoria de consideração que diz respeito ao acontecimento a transformar em notícia; b) à disponibilização do material e aos critérios relativos ao produto informativo – diz respeito ao conjunto dos processos de produção e realização; c) ao público – diz respeito à imagem que os jornalistas têm acerca dos destinatários; e, d) à concorrência entre os mass media.

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Conclusão

Este trabalho de investigação, que intitulamos Representação Identitária em TimorLeste: Culturas e os Media, pretende ser o pequeno contributo de um cidadão que teve a oportunidade e o privilégio de, à distância, analisar crítica e reflexivamente, na perspectiva oferecida pelas Ciências da Comunicação e da Cultura, o contexto das múltiplas identidades sócio-culturais e linguísticas que constituem a identidade nacional de Timor-Leste. Quando iniciámos este trabalho, a nossa maior preocupação foi, por um lado, apresentar algumas explicitações e fundamentações teóricas, no sentido de procurar compreender, num universo de contrastes étnico-culturais vastos e diversificados, tornando possível a construção de uma identidade nacional una, capaz de funcionar como norma de unidade política que legitima a sua formação. Para atingir este objectivo, importava, antes de mais, dilucidar os conceitos de ‘cultura’, ‘identidade’, ‘representação’, ‘comunicação’ e ‘língua’, em correlação permanente com a realidade de Timor. Neste enquadramento, importa esclarecer que o fenómeno do alargamento tendencial do nosso estudo se apresenta como uma constante analítica, tanto em termos históricos, como no plano político-estratégico, verificada desde a presença dos grupos humanos na ilha de Timor em unidade sociais politicamente organizadas, pois cada reino tinha uma estrutura social própria de legitimação do poder político instituído, exercido por uma autoridade política e autoridade ritual nas knuas e nas casas sagradas. Por outro lado, tentámos perceber de que forma, em contexto timorense, a memória cultural colectiva é construída. Procurando responder a esta questão, podemos dizer, em primeiro lugar, que a memória cultural colectiva timorense é construída ao longo do tempo a partir de uma imaginação que “saiu do espaço particular expressivo da arte, mito e ritual para passar a fazer parte da actividade mental quotidiana da gente vulgar de muitas sociedades” (Appadurai, 2004:17), não podendo dispensar também a abordagem na sua dimensão histórica. Enquanto expressão e metáfora da própria modernidade, a memória cultural (no sentido mais amplo) é indissociável do modelo romântico das construções identitárias nacionais, quando passaram a ser publicamente criadas a partir das formas de mediações da memória colectiva. O entendimento que hoje temos acerca de traços culturais timorenses está relacionado com os processos de activação de repertórios mnemónicos por parte dos mecanismos de construção imaginária do Estados-nação ocorridos na época pré-histórica de

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Timor e no período da colonização portuguesa, nomeadamente nos finais do século XIX e inícios do século XX. Antecípamos, conclusões em cada capítulo das temáticas abordadas, aqui resumidas: 1. Que o surgimento do Estado-nação timorense e o seu projecto nacional tiveram a sua génese num processo de unificação administrativa levado a cabo pela colonização portuguesa, na medida em que estimulou a criação de um conjunto de identidades com carácter homogéneo e de tradições culturais distintas. O Estado-nação de Timor-Leste assume por inteiro, e na consciência de que tal representa uma riqueza cultural, as múltiplas identidades que coexistem no território nacional. 2. A demarcação da fronteira territorial de Timor-Leste não pode dissociar-se da carga simbólica das suas ‘casas sagradas’, uma-lúlic, enquanto representação do cosmos e lugar de repouso da memória dos seus ancestrais. A ‘casa sagrada’ é, pela sua força agregadora e identitária, um valioso património material e imaterial de Timor-Leste. Por essa razão, as ‘casas sagradas’, enquanto lugares colectivos ritualmente estruturados, continuam a ser espaço de realização de rituais privados e sociais, o mesmo é dizer de promoção e salvaguarda do fluxo de vida do indivíduo, da família e da comunidade. Ainda hoje, apesar da destruição maciça levada a cabo durante a guerra pela libertação, a casa sagrada continua a ser um lugar simbólico de extrema importância, análogo ao de um santuário ou sinagoga nas culturas ocidentais. 3. A casa, ou knua, enquanto habitação singular, surge como metáfora da ideia de nação e como matriz da identidade cultural do povo timorense. A ‘casa’ é o principal elemento identitário e o elo mais forte da cadeia de interacções sociais. O espaço de habitação é, para os timorenses, um espaço também sagrado. Daí a pertinência das palavras de Anthony Smith (1997:146): “a nação é concebida como uma pátria territorial, o local do nosso nascimento e da nossa infância, a extensão do coração e do lar”. 4. A composição multiétnica de Timor-Leste é uma realidade largamente comprovada pela coexistência de cerca de 31 grupos étnico-linguísticos, entre os quais se foram sedimentando, ao longo dos tempos, os traços de uma cultura comum que o uso da língua Tétum se encarregou de difundir, mas podendo salientar já que, daqui a alguns anos, o Tétum irá tomar o lugar das outras línguas nacionais reconhecidas na Constituição da República Democrática de Timor-Leste. 5. Os media, tanto aqueles que assumiram uma atitude mais comprometida, como os que adoptaram uma atitude de maior imparcialidade face à luta do povo de Timor, desempenharam, no seu conjunto, um papel relevante na afirmação de Timor no mundo, na 356

divulgação das raízes ancestrais da sua cultura, na denúncia da violência sofrida e na afirmação da sua identidade como nação. É justo reconhecer que a formação da identidade nacional timorense muito deve ao empenho e participação activa dos jornalistas. Neste passo, é importante salientar que a participação dos media na transmissão de informação é uma acção colectiva sustentada pela visão humanística e aqueles que têm esta mesma ideia são caracterizados como “comunidade de sentimentos” (Appadurai, 2004:20). 6. A língua portuguesa é um património cultural que os timorenses guardam ciosamente. Atente-se, muito especialmente, no facto de ela desempenhar a função de suporte natural da língua tétum, uma vez que esta necessita da língua portuguesa para se desenvolver. Do ponto de vista afectivo, lembremos que o Português foi a língua da Resistência e o veículo da comunicação clandestina nos períodos conturbados da guerra pela libertação. Por tudo isto, ela merece ocupar, juntamente com a língua tétum, um importante lugar na afirmação cultural do povo de Timor-Leste, marcando, desta forma, a fronteira linguística entre Timor-Leste e os Estados contíguos. Estas são, em síntese, as conclusões complementares mais relevantes das apresentadas em cada parte das temáticas desenvolvidas. Contudo, tal como os processos anteriormente abordados e analisados, também um trabalho de investigação nunca está verdadeiramente acabado. Por isso, às dúvidas e às interrogações que ressaltam da pesquisa exploratória e das leituras especializadas acrescem agora novas dúvidas e novas interrogações que emergem da própria observação feita ao processo de desenvolvimento sócio-económico e sócio-político timorense, incluindo também outros sectores como a cultura e a educação, temas actualmente em crescente debate nos discursos dos políticos, dos agentes das organizações nãogovernamentais e destacados nos discursos dos media. É inegável que a globalização trouxe nova acuidade à questão das identidades, à inserção do indivíduo, do grupo e da nação numa sociedade global – nomeadamente nos aspectos linguísticos, territoriais (identidade) e económicos (identidade económica global) –, impondo-se a necessidade de redefinir e recompor todos os seus modos de relacionamento com os outros. Este novo modo de relacionamento veio reforçar os laços culturais, religiosos e históricos dos países em desenvolvimento, mas precisamos de salientar que toda a similitude esconde mais do que uma diferença e que similitudes e diferenças se escondem umas às outras sem cessar. Sendo assim, a última tendência ainda é uma questão de convivência ou de metodológica, porque no contexto antropológico pressupõe ainda fortemente a ideia de que a globalização não é uma questão de homogeneização cultural. O que parece é que a

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substancialização da cultura remete para o espaço discursivo da raça, segundo a qual a ideia surge precisamente na origem da diferença. O mundo actual é particularmente influenciado pela comunicação social, pela imigração, pela internacionalização da economia, pela valorização do papel da mulher e por outros factos que se tornam cada vez mais ambivalentes, fragmentados e até híbridos. A propósito, Hutchison & Smith (1994:287) argumentam que “if the concept of ‘national identity’ is under scrutiny form within, it is also being transformed by external pressures and wider forms of association”. Neste sentido, importa perguntar: será que existe um particularismo nacional no mundo globalizado? A esta questão, Zaki Lïdi (1998) responde que o nacionalismo, para sobrevirer e ser legitimado, tem de ser apoiado pela globalização e não apenas pelo universalismo. Esta tendência está patente no patriotismo dos timorenses que defenderam os seus interesses colectivos – resultado do profundo significado da liberdade de um povo e de uma Nação –, em que a globalização é vista como um processo dinamizador do espírito patriótico e não como um factor de destruição da Resistência. Podia ainda colocar-se outra questão, que ficará como uma questão em aberto para próximas investigações: em que sentido este particularismo transformou o conceito de identidade nacional na era global? Timor-Leste é – do ponto de vista geopolitico e geo-estratégico – um país que liga a Ásia e os países das Ilhas da Oceania. Parece ser um interlocutor importante; e, num quadro institucional, é um Estado de relevo no apoio à rota comercial entre países da Ásia – principalmente, dos do sudeste asiático –, da Austrália e da Nova Zelândia. Deste modo, importa dizer que a globalização afecta já algumas raízes da identidade timorense, embora não signifique a morte ‘cultural’ de Timor-Leste, pois a sua construção também não destruiu outras realidades colectivas (Thiesse, 2002: 280). Também na opinião de Otayek, não há paradoxo entre globalização e nacionalismo, pois o sentimento de um povo na reivindicação identitária pode constituir-se em agentes da modernidade e de uma “reterritorialização” (Otayek, 2000:115-116) – com a condução do processo de afirmação de pertença a uma identidade específica, de autodeterminação e de criação do novo Estado –, em que a própria “globalização nunca eliminará o peso das aldeias-nação na aldeia global” (Almeida, 1995:7), porque o mundo foi sempre um espaço universal e global (Appadurai, 2004:43). Por esta razão, Otayek considera globalização e reterritorialização como duas referências dinâmicas complementares e não antagónicas: ambas apontam para uma abordagem do conceito de ‘transfronteiriço’ e ‘transnacional’, o que significa levar e reforçar os fluxos económicos e as comunicações do local ao global. Num certo sentido, não podendo esquecer que os referidos fluxos podem criar comunidades “sem sentido do lugar” 358

(Meyrowitz, 1989), por isso, há que reconhecer que o mundo em que hoje vivemos é fortemente acelerado e dificilmente controlável, Apesar de a globalização significa abertura à mudança cultural e cria novas oportunidades para o diálogo, mas também ameaça a sobrevivência de tradições culturais. Por isso, não é de estranhar que na sociedade actual se encontre grande número de catástrofe (Turner & pidgeon, 1997), porque a civilização contemporânea está culturalmente cega e numa fase de ‘desmoralização dos valores tradicionais’, onde se verifiquem vulnerabilidades diferenciadas dentro do próprio sistema político, económico, consoante a sua forma de organização, o seu modo de distribuição e a constituição de um sistema social assente para além das condicionantes sociais que decorrem nos domínios de tecnologia de informação e de sistema de segurança. Aliás, podemos dizer que, ironicamente, a época em que estamos a viver é um tempo de alteridade, onde a ciência e a tecnologia vão mais longe do que se pôde imaginar, os indivíduos ficam vulneráveis e com menor controlo sobre as suas vidas e o mundo que as rodeia, afectando desta forma, não só as promessas de felicidades provenientes na modernidade, mas também todas as comunidades independentemente da sua condição sócio-económica. Neste contexto, podemos perguntar: Qual é o conteúdo da identidade que temos hoje? Será que estamos numa fase de reafirmação ou na de decadência da nossa identidade? Com efeito, o sociólogo Anthony Giddens (2000:56-57) faz-nos saber que a mudança tecnológica pode mudar o modo de pensar da sociedade actual, porque, segundo ele, “somos apanhados em experiências quotidianas cujos resultados, num sentido genérico, estão tão em aberto como o estão aqueles que afectam a humanidade no seu conjunto. As experiências quotidianas reflectem a mudança de papel da tradição. […] Dizem respeito a aspectos essenciais relacionados com o self e a identidade, mas implicam, também, uma multiplicidade de mudança e adaptação na vida diária”. Culturalismo é a política de identidade mobilizada ao nível do Estado-nação, em que ele próprio é caracterizado como um dos movimentos que envolvam identidades em construção consciente (Appadurai, 2004). O estado é um órgão soberano que consolida conscientemente as diferenças culturais ao serviço de uma política nacional ou transnacional mais ampla. Neste contexto, a preservação e manutenção da identidade cultural do Estado timorense depende das políticas culturais definidas pelo governo através do Secretariado de Estado da Cultura que possam dar a conhecer as culturas do local ao global, numa linguagem técnica, a que chamamos ‘Cultura em exibição’. A sobrevivência política e a soberania de Timor-Leste dependem da qualidade política de preservação e manutenção dos seus traços culturais específicos, os quais são, por um lado, inseparáveis da estabilidade e da coesão política 359

interna, e, por outro, condicionam também a responsabilidade política externa de Timor-Leste enquanto Estado soberano na reafirmação da sua posição territorial perante a comunidade internacional, sendo Timor-Leste um país asiático. O desentendimento político, em 2005, entre o governo e a Igreja Católica acerca da política de implementação da disciplina de religião nas escolas básicas como ‘matéria facultativa’ e a crise política e militar de 2006, são casos que eticamente poderiam ser considerados como um exemplo desastroso para o país. Para que isto não se repita no futuro, quem vier a governar deve prestar atenção, por um lado, à consolidação do espírito de cooperação entre as instituições políticas democráticas no sentido de procurar legitimar e preservar a soberania de Timor-Leste enquanto Estado-nação; por outro, controlar a penetração de forças externas que procuram destruir a unidade nacional dos timorenses e a pluralidade dos interesses nacionais. Em relação a esta última, é necessário salientar que o equilíbrio entre o Estado, a Igreja Católica e as forças de Defesa é muito importante e indispensável para sustentar a coesão interna, bem como para consolidar uma identidade nacional timorense. A questão mais importante na organização das políticas externas de Timor-Leste que o governo deste Estado-Nação procura defender perante a comunidade internacional é a sua posição territorial, mais precisamente, a sua filiação à ASEAN, para consolidar o estatuto político e estabilizar a identidade internacional de Timor-Leste, salvaguardando a sua integridade territorial e as suas múltiplas identidades linguísticas que estão nas encruzilhadas culturais e territoriais entre o Sudeste Asiático e o Pacifico Sul, duas regiões internacionais – as duas únicas – cujos estados pertencem todos, sem excepção, respectivamente à Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) e ao Fórum das Ilhas do Pacifico. Embora TimorLeste ainda não seja parte delas, a sua escolha por uma ou por outra imprime de forma continuada uma marca identitária própria, que distingue os estados asiáticos dos estados do Pacifico. A razão pela qual Timor-Leste queria aderir à ASEAN é a posição histórica e geográfica, que, de acordo com a descrição do mapa, o território timorense desde tempos primordiais pertencia à Ásia Oriental, situado no prolongamento das ilhas menores de Sunda e no limite do grande arquipélago indonésio, segundo o qual se encontra bem posicionado dentro do vestígio geográfico do Sudeste Asiático. Com efeito, podemos salientar que, na história colonial, supervisionada pela presença portuguesa, Timor nunca esteve ligado ao Pacifico, embora alguns governadores designassem esta terra como “possessão portuguesa na Oceânia” (Castro, 1867), nem Portugal fazia parte da Comissão do Pacifico Sul, formada pelas potências ocidentais com territórios nesta área. 360

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382

Anexos

Anexo 1 – Casa sagrada e ‘típica’ do distrito de Aileu245

Anexo 2 – Aldeia e casas antigas da povoação Ioro em 1973246

245

Fonte : fotografia do professor António M. de Almeida Serra – http://opatifundio.com/site/?p=2658 (consulta a 15/3/2012). 246 Fonte: http://actd.iict.pt/eserv/actd:AHUD18453/web_n16494.jpg (consulta a 12/2/2012)

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Anexo 3 – Outros artigos de opinião publicados pel’A Voz de Timor que nos parecem importantes e relevantes para os diversos campos de estudos Artigos de opinião (art)/editorial (edit)

Autor e Ano de publicação

Comentário – A independência da Rodésia Crime sem nome segundo as pisadas do nazismo com os judeus, a união Indiana ordenou a esterilização em Massa de casais goeses Homem e livros de quinzena – a situação da arte moderna O candidato e a linguagem dos factos Comentário – Ahmed Ben Bella Vou difundir a língua portuguesa entre a gente do meu povo Comentário – Aniversário Sombrio Meses que já contam na história Carta sem direcção – Querido camarada Alferes Francisco Duarte, saudoso ‘Arbiru’ Para proclamar a Biblia voltará a Portugal dentro de dois ou três anos o pregador Billy Graham (sobre religião) Reflexões sobre a fugacidade do tempo (sobre ciência e religião), alocação do papa VI Carta sem direcção – ser soldados é dedicar-se por completo a causa pública, trabalhar sempre para os nustor Comentário – Nuvens Negras sobre o Ocidente A bem da cultura popular Comentário – Escalada da Morte Formações florestais – o mangal Consequências militares do voo do Gemini IV Notícias de interesse militar Sem lugar para dúvida Relíquias de amor pátrio Carta sem direcção – Meu querido anónimo A inauguração da sede provisória do fundo de habitações económicas e do Banco de Urgência do Centro Sanitário de Díli foi um acontecimento marcante O turismo em Timor – Na hora exacta de opção Comentário – revolta pacífica Comentário Única Alternativa Reforma do ensino agrícola nas províncias ultramarinas Estranha incapacidade Comentário – Desarmamento Foram lições do mais alto interesse Comentário – o conflito indo-paquistanes Interlocutores Válidos Comentário – O ultimato chinês Nós, e o meio social Comentário – Eleição na Alemanha

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Nº de Refª

Jaime Neves, 1964, nº 233 13/6/1965

1 1

13/6/1965

1

Rui Miguel, 4/7/1965, nº 307 Jaime Neves, 11/7/1965, nº 308 18/7/1965, nº 309

1 1 1

Jaime Neves, 18/7/1965, nº 309 25/7/1965, nº 310 -

1 1 1

22/11/1970, nº549

1

22/11/1970, nº549

1

Mouzinho de Albuquerque, 8/8/1965, nº 312

1

Jaime Neves, 25/7/1965, nº 310 25/7/1965, nº 310 Jaime Neves, 1/8/1965, nº 311 Ruy Cinatti, 1/8/1965, nº 311 Manuel L. Rodrigues, 1/8/1965, nº 311 1/8/1965, nº 311 1/8/1965, nº 311 1/8/1965, nº 311 Mouzinho de Albuquerque, 8/8/1965, nº 312 19/2/1967, nº 388

1 1 1 1 1 1 1 1 1

12/3/1967, nº 390 Jaime Neves, 8/8/1965, nº 312 Jaime Neves, 15/8/1965, nº 313 15/8/1965, nº 313 Editorial, 22/8/1965, nº 314 Jaime Neves, 22/8/1965, nº 314 5/9/1965, nº 316 Jaime Neves, 5/9/1965, nº 316; 12/9/1965, nº 317 Carlos Nogueira, 19/9/1965, nº 318 Jaime Neves, 19/9/1965, nº 318; 26/9/1965, nº 319 Jaime Neves, 3/10/1965, nº 320

1 1 1 1 1 1 2 1 2 1 1

O próximo acto eleitoral Dr. Manuel Florentino Maias fala-nos das 16 secções do Cómite Regional da Organização Mundial de Saúde para o Pacífico Ocidental De ‘martelo na mão’ A oposição prestou alto serviço ao país Comentário – Golpe comunista na Indonésia No termo da campanha eleitoral – palavra de ordem de Salazar Fronteira sem derramamento de sangue Comentário – o revisionismo russo Espírito de sacrifico mais confiança igual êxito Comentário – Pinay salvou a V República Palavra que queimam Comentário – Paralelo 17º norte Exame de Consciência Comentário – O caso Indiano (a incapacidade do partido do Congresso e a ‘frente’ política dos Marajás Os primeiros raios de sol de 1967 Comentário – A revolução Cultural A acção social do exército no plano do ensino tem sido em Timor – vasta e meritória Impressões que me ficaram na retina em viagem para Leste (crónica) Na academia de Ciência – o Prof. António de Almeida apresentou uma comunicação sobre aspectos antropológicos de Timor Intercâmbio cultural entre professores e estudantes da metrópole e ultramar Na Somália – Ameaça de rebelião Taxa Raul de Almeida (crónica desportiva) A partida do comandante militar Temos de conquistar mais mercados para os nossos produtos exportáveis Da teoria à realidade na revolução maoista A educação física em Timor (desportivo) Timor e o grande ‘Safari’ A volta do ‘mundial de futebol’ a realizar em 1970 Oportunidade intervenção do deputado por Timor na Assembleia Nacional As responsabilidades da Nação Colecções de conchas Problemas da cidade: A passividade é a inimiga do progresso O que pode o ‘cérebro de papel’ A encíclica ‘Humane Vitae” O prato da balança A batalha do ensino No limiar de 1970 – pão, paz e luz Educar Criança – construir o futuro Optimismo Uma história de Macacos Afinal o conselho de desportivo já havia decidido Progredir e retroceder

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Ruy Miguel, 10/10/1965, nº 321

1

10/10/1965, nº 321 Inácio de Moura, 17/10/1965, nº 322 Couto Rodrigues, 31/10/1965, 324 7/11/1965, nº 325 7/11/1965, nº 325

1 1 1

Cecil Holmes, 14/11/1965, nº 326 Jaime Neves, 14/11/1965, nº 326 Inácio de Moura, 24/11/1965, nº 327 Jaime Neves, 24/11/1965, nº 327 Couto Rodrigues, 28/11/1965, nº 328 Jaime Neves, 28/11/1965, nº 328 Alberto Mouro, 25/12/1966, nº 380 C.M, 1967, nº 386

1 1 1 1 1 1 1 1

Alberto Mouro, 1967, nº 386 Jaime Neves, 19/2/1967, nº 388 12/3/1967, nº 390

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José Ramos Horta, 12/3/1967, nº 390

1

26/3/1967, nº 391/392

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26/3/1967, nº 391/392

1

M.C, 10/4/1967, nº 393/394 José Ramos Horta, 10/4/1967, nº 393/394; 23/4/1967, nº 395/396 21/5/1967, nº 399-400 23/7/1967, nº 403-404

1 2

Morais Cabral, 17/3/1968, nº 410 Dr. Celsu, 17/3/1968 Carlos Pereira de Lemos, 12/5/1968, nº 418 Alberto Mourão, 26/5/1968, nº 420 2/6/1968, nº 421

1 1 1

28/6/1968, nº 425 J. V, 28/6/1968, nº 425; 7/7/1968, nº 426; 21/7/1968, nº 428 7/7/1968, nº 426

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(editorial) A. de Cruz, 21/7/1968, nº 428 (22/9/1968) M. I, 11/8/1968, nº 431; 18/8/1968, nº 432 Agostinho Tibar, 25/8/1968, nº 433 João Brumal, 8/2/1970, nº 508 João Brumal, 8/2/1970, nº 508

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Aldebaran, 25/8/1968, nº 433 Aldebaran, 25/8/1968, nº 433 F. A, 25/8/1968, nº 433 Augusto Ricardo, 8/9/1968, nº 435

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Posto de observação

As corridas de cavalos em Timor Firme propósito de servir Breve história da medicina desportiva

Recortes da imprensa desportiva Paradoxo voluntariado Monumentos A saúde nos programas de desenvolvimento Perto de quarenta mil contos investidos pelo Banco Nacional Ultramarino na sua obra de valorização social na província de Timor Cartas ao cafeicultor

Regadio em Timor A crise monetária europeia Um timorense: director-geral da cultura e espetáculos Israel Reflexões sobre pecuária Medidas práticas de fomento agrícola Tem a palavra um jornalista (a vida desportiva) O problema de Rodésia Civilização musical Piratas no Índico A língua portuguesa no mundo A praia da areia branca veste-se à metrópole Novo Decreto-lei sobre o ensino nas províncias ultramarinas Os ‘Lusíadas’ traduzidos em Japonês Entrega de diplomas aos alunos finalistas da escola ‘Engenheiro Canto Resende’ Em vésperas de eleições – carta aberta ao eleitorado de Timor Na academica de ciência – o prof. António de almeida apresentou uma comunicação antropologia de Timor Os banhos de Mar Os primeiros homens na lua Uma noite no restaurante de Tocodede Do muito ‘que se diz … por dizer’ Exemplo para a juventude: um volto do realismo O velho, o rapaz e o burro

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Mirone, 15/9/1968, nº 436; 6/10/1968, nº 439; 13/10/1968, nº 440; 8/12/1968, nº 448; 19/1/1969, nº 454; 26/1/1969, nº 455 A. M, 6/10/1968, nº 439 Jaime Neves, 27/10/1968, nº 442 Dr. Mesquita Guimarães, 27/10/1968, nº 442; 10/11/1968, 444; 17/11/1968, nº 445;24/11/1968, nº 446; 1/12/1968, nº 447; 8/12/1968, nº 448; 15/12/1968, nº 449 F. A, 27/10/1968, nº 442 Rodrigo de Alvares, 3/11/1968, nº 443 Mirone, 3/11/1968, nº 443 17/11/1968, nº 445 1/12/1968, nº 447

15/12/1968, nº 449; 22/12/1968, nº 450; 29/12/1968, nº 451; 5/1/1969, nº 452; 12/1/1969, nº 453; 2/2/1969, nº 456 Soares Teles, 29/12/1968, nº 451 Dr. Victor Perscott, 19/1/1969, nº 454 26/1/1969, nº 455 Morais Cabral, 26/1/1969, nº 455 2/2/1969, nº 456

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Carlos Pinhão, 2/3/1969, nº 460 Morais Cabral, 9/3/1969, nº 461 16/3/1969, nº 462 F. A, 13/4/1969, nº 466 Marilia Lopes Furtado,14/4/1968, nº 414. Inácio de Moura, 17/10/1965, nº 322 13/7/1969, nº 479

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20/7/1969, nº 480 J. Horta, 27/7/1969, nº 481

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28/9/1969, ano 10, nº 4489

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26/3/1967. Jorge Bastos, 27/7/1969, nº 481 7/9/1969, nº 486 5/10/1969, nº 490 Pires Duarte, 2/11/1969, nº 494 Ferreira de Almeida, 2/11/1969, nº 494 José Ricardo, 15/3/1970, nº 513

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Anexo 4 – Bailarinas de Suai, dançando e tocando tambores nos anos de 1969247

Anexo 5 – Casa típica de Lospalos

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Fonte: http://farm1.static.flickr.com/33/39338548_1103a882c4.jpg (consulta a 12/5/2012).

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Anexo 6 – Max Stahl entrevistado pelo correspondente do semanário a Tribuna de Macau, José Martins, a 7 de Dezembro de 1991, em Banguecoque.

Anexo 7 – A entrevista de Max Stahl concedida ao jornalista da Tribuna de Macau foi enviada pelo Embaixador Sebastião de Castello Branco ao Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal

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