Reprodução Assistida: uma perspectiva de gênero e das ciências humanas ISBN 978-3-330-73758-7

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são: a) transtornos na produção de espermatozoides, que afetam sua qualidade, sua quantidade ou ambas; b) obstruções anatômicas; c) outros fatores, como os transtornos de imunidade

(anticorpos

antiespermatozoides); d) varicocele; e) obstrução do trato genital; f) criptorquia; g)

distúrbios do canal da ejaculação, h) anomalias

genéticas. Nos casos da infertilidade masculina devida a problemas imunitários, eles podem ser de origem endócrina ou por incapacidade dos testículos para responder à estimulação hormonal que desencadeia a produção dos espermatozoides. Nos casos de infertilidade masculina debitada a espermatogêneses4, eles se devem à inadequada produção de espermatozoides ou a defeito deles, de origem desconhecida. As causas mais frequentes de infertilidade feminina5 podem ser atribuídas a: a) fator ovariano (ausência de óvulos, disfunção ovariana, anormalidades no eixo hipotálamo hipofisário); b) fator tubário (ausência ou obstrução das trompas de falópio, aderências pélvicas,endometriose); c) doença inflamatória pélvica (DIP), fator para avaliar a capacidade de penetração espermática no muco cervical. O teste de penetração espermática ou teste de Alexander avalia a capacidade dos espermatozóides de penetrar no muco cervical. Para evidenciar uma possível infecção espermática, a espermocultura e o antibiograma. Há também pesquisa de clamydia e mycoplasma no sêmen e na uretra e a Cultura seriada de Stamey na suspeita de prostatite. Informações detalhadas disponíveis em: VVAA. Infertilidade Masculina. Disponível em: . Acesso em: set. 2008. 4 Também chamada gametogênese, que é a formação de dois tipos de gametas masculinos, metade com cromossomo X e metade com cromossomo Y, o que define o sexo masculino como heterogamético. A gametogênese feminina (ovulogênese) origina apenas um tipo de gameta, sempre com o cromossomo sexual X, segundo Oliveira (1995). 5 Para avaliar a infertilidade da mulher são utilizados: curva da temperatura basal (CTB); score cervical, para verificar as características do muco; teste pós-coito (SimsHuhner); ecografia transvaginal; histerossalpingografia (HSG); histeroscopia e laparoscopia.

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uterino (anomalias anatômicas, distúrbios de implantação, alteração endometrial, sequelas de infecção ou cirurgia, sinéquias, pólipos e miomas). O fator imunológico pode estar presente tanto cervical

quanto

nos

espermatozoides.

Quanto

no muco ao

fator

psicossomático, algumas evidências sugerem a validade psicogênica em determinados casos de infertilidade, particularmente apresentados em estudos com mulheres (CHATEL, 1998; FAURE-PRAGIER, 1999). As técnicas de reprodução assistida são descritas com detalhes em muitos dos sites das clínicas brasileiras, como por exemplo, no Guia prático para casais, do Centro de Reprodução Assistida Sêmion (2002)6, de onde retiramos as definições que seguem, embora elas possam ser encontradas também em outros trabalhos como: Corrêa (2001); Oliveira (1995); Collucci (2000); Iacub e Jouannet (2001). O guia do Centro de Medicina Sêmion define a inseminação artificial como o depósito de espermatozoides em diferentes níveis do

trato genital feminino, podendo ser

realizada segundo duas

modalidades: inseminação artificial intracervical (IC) e inseminação artificial intrauterina (IU). A inseminação intracervical (IC) é definida como um método simples, capaz de reproduzir as condições fisiológicas da relação sexual. Suas indicações são restritas aos “casos de impossibilidade de 6 Centro de medicina reprodutiva instalado em Campinas desde 1996. Ele conta com o apoio do laboratório de la biologie de la reprodution, Clinique Saint-Antoine, serviço do prof. Dr. Patrick Bastit, Rouen, Frar Port – Royal, Paris, França.

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uma relação normal ou de uma ejaculação intravaginal (malformação sexual, distúrbios sexuais, distúrbios na ejaculação ou impotência)”. A inseminação artificial intrauterina (IU) é o depósito de espermatozoides móveis capacitados (aptos a fertilizar, após tratamento do sêmen em laboratório) no fundo da cavidade uterina no momento da ovulação. Elementos fundamentais para atingir esse objetivo, segundo o guia do Sêmion (2002, p. 2), são: a) A estimulação ovariana: a paciente é submetida a um tratamento hormonal para maior produção dos óvulos, e este estímulo deverá ser controlado por ultrassonografia e dosagens hormonais na tentativa de avaliar o número de óvulos, já que existe o risco da hiperestimulação ovariana e de gravidez múltipla. A inseminação deverá ser realizada no momento preciso da ovulação. b) O tratamento do sêmen: permite selecionar e capacitar espermatozoides in vitro, selecionando espermatozoides móveis capacitados (aptos a fertilizar) e liberando-os do líquido seminal. Este tipo de técnica não necessita do muco cervical condutor da migração dos espermatozoides durante o processo de fecundação natural, que pode estar ausente por distúrbios na ovulação ou por alterações anatômicas do colo uterino. Em outros casos, o muco pode estar presente, porém ser hostil à penetração dos espermatozoides móveis próximos ao local da fecundação (terço distal da trompa de falópio).

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Trata-se de um tratamento que, segundo o mesmo guia (SÊMION,2002, p. 2-3), [...] facilita o encontro do óvulo com o espermatozóide, no caso de homens com insuficiência espermática muito severa. Para a aplicação deste método é imprescindível a presença de permeabilidade tubária e ausência de infecção espermática, e a inseminação deve ser feita momentos antes ou imediatamente após a liberação do óvulo na cavidade abdominal.

A fertilização in vitro (FIV) Indicada para mulheres que tiveram trompas obstruídas por infecção pélvica, gravidez tubária ou laqueadura, apresentando um quadro de difícil solução cirúrgica. Além disso, pode ser indicada em alguns casos de endometriose7. A primeira etapa do tratamento para uma FIV, como na IA, inclui a administração de hormônios e o acompanhamento da ovulação, que é estimulada para permitir a capacitação de um maior número de óvulos. Nessa fase, a mulher pode correr riscos de hiperestimulação. Nela os ovários aumentam consideravelmente de volume, provocando dor e inchaço abdominal. Podem advir sérias conseqüências, que necessitam de tratamento urgente. Numa segunda fase os óvulos são aspirados e colocados em contato com os espermatozóides numa placa. Como na inseminação artificial, os espermatozóides foram previamente preparados para a fertilização (capacitação espermática). Em seguida, as placas são transferidas para uma estufa a 37°C (graus centígrados), com 5% de CO2, o que simula o ambiente das trompas. É lá que os espermatozóides e óvulos irão se transformar em embriões. Após aproximadamente 48 horas, até quatro desses embriões, conforme regimenta o Conselho Federal de

7 A endometriose é um distúrbio caracterizado pela localização anormal do tecido interno do útero (endométrio). Recentemente se descobriu que essa patologia nada mais é do que uma falha do fator imunológico, em que os macrófagos apresentam uma deficiência imunitária e não fagocitam as células endometriais.

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Medicina, poderão ser transferidos para o útero através de um cateter. Cerca de duas semanas mais tarde faz-se o exame de sangue para comprovação ou não de gravidez. (SÊMION, 2002, p. 3-4).

Há ainda uma variação dessa técnica, que é chamada de transferência de zigotos para as trompas (ZIFT). Nela os óvulos e espermatozoides passam pelo mesmo processo de incubação em estufa, mas o processo de transferência dos pré-embriões (zigotos) é feito através da laparoscopia. Uma óptica penetra na cavidade abdominal através de uma pequena incisão, permitindo a visualização das trompas. Posteriormente, um cateter deposita os zigotos na trompa. O processo exige anestesia geral e é indicado para mulheres com endometriose mínima, problema de ovulação ou em casos de baixa quantidade de espermatozóides do marido. Para sua realização é imprescindível que a mulher tenha trompas permeáveis. (SÊMION, 2002, p. 4).

A transferência de gametas para as trompas (GIFT) [...] é semelhante à utilizada na fertilização in vitro , com a diferença de que neste caso o processo de fertilização acontece no interior das trompas e não na estufa. Por meio da laparoscopia os óvulos são aspirados e colocados na trompa com os espermatozóides. Daí em diante o processo de fertilização segue seu caminho natural. Portanto, é necessário que pelo menos uma das trompas seja saudável. (SÊMION, 2002, p. 5).

A Injeção intracitoplasmática de espermatozoide (ICSI) é conhecida como micromanipulação e começou a ser desenvolvida no início dos anos 1990, na Bélgica, com o objetivo de ajudar os espermatozoides com pouca força de locomoção. Podemos extrair do guia do Centro Sêmion (2002, p. 5) a seguinte definição: Com o auxílio de uma microagulha, o espermatozóide é injetado diretamente no interior do óvulo. A nova técnica é uma das melhores respostas da ciência à infertilidade

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masculina, pois, enquanto antes era necessário um número mínimo de espermatozóides, com a ICSI basta que se tenha uma única célula saudável e o processo se torna possível. Depois da fertilização em laboratório, a implantação segue os mesmos princípios das outras técnicas. A ICSI pode ser utilizada por casais que tenham baixa qualidade ou pouca quantidade de espermatozóides8.

São as técnicas de fertilização in vitro que permitem o acesso ao desenvolvimento de pesquisas genéticas com embriões, óvulos e espermatozoides, e às novas formas de práticas médicas, como a medicina preditiva, com seus métodos de diagnósticos préimplantatórios, capazes de avaliar os riscos de transmissão de doenças e características humanas através de testes genéticos. Caso o homem sofra de azoospermia, é possível aspirar os espermatozoides com uma agulha fina diretamente do testículo. Estima-se que 30% dos homens com problemas de infertilidade estejam nessa situação. Essa variação na forma de buscar o gameta masculino pode também beneficiar homens que foram vasectomizados ou que apresentam alterações na produção dos espermatozoides. As chances de gravidez estão entre 25% e 30% por tentativa.

A Injeção Nuclear da Espermátide (ROSNI)

8 Hoje se fala em ICSI Magnificada, que possibilita aumento nas taxas de gestação e diminuição no número de abortamentos. Por meio de um microscópio equipado com poderosas lentes capazes de ampliar os espermatozóides de seis a oito mil vezes, é possível avaliar com precisão o núcleo e a morfologia dos espermatozóides. A técnica permite visualizar vacúolos na cabeça do espermatozóide, resultado de alterações no DNA que podem causar infertilidade e abortamento. Conforme afirma, Dra. Soraya Abdelmassih, embriologista, “com esse método pode-se utilizar apenas os espermatozóides que apresentarem características morfológicas necessárias para melhorar as chances de fertilização”. Disponível em: . Acesso em: set. 2008.

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Segundo o guia do mesmo Centro Sêmion (2002, p. 6), quando os homens apresentam deficiência na maturação dos espermatozóides, uma outra técnica pode ser associada à ICSI. É a utilização da espermátide, uma forma imatura do espermatozóide, que, apesar de não estar totalmente pronta para a fertilização espontânea, já contém a carga genética necessária para a reprodução. Retirada diretamente do testículo com uma fina agulha, a espermátide é utilizada da mesma forma que o espermatozóide. Mesmo com alguns resultados positivos, tanto no Brasil quanto no exterior, esta técnica ainda está em experimentação e causa polêmica.

Segundo a Organização Mundial de Saúde, essas técnicas teriam sido desenvolvidas “com a finalidade de vencer obstáculos que impediam o encontro entre espermatozoides e óvulos em casais estéreis” (OMS, 1992, p. 7). Embora quase sempre os sites médicos e científicos consultados as apresentem como uma revolução, entende-se que essa linguagem diz muito mais respeito à legitimação de um contexto pragmático que deseja mobilizar a sociedade e as relações entre os casais. Fala-se não apenas de técnicas ou da ciência em si mesma, mas do envolvimento de coletivos sociais como sujeitos da ação. Essa linguagem e esse pragmatismo operam como se fossem cerziduras e traduções no corpo social. Essa expressão também parece falar da crença médica de que a reprodução assistida representa uma área promissora, o que, nesse sentido, não apenas insere o médico no social, mas promete possibilidades infinitas para o futuro do conhecimento e de sua própria profissão, conforme se pode constatar na fala abaixo. Então eu me interessei exatamente porque é uma área promissora, é uma área fascinante. É uma área que sofreu um avanço tecnológico surpreendente. Então por isso a gente está

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conseguindo resolver praticamente todos os problemas de infertilidade. Os fatores masculinos que antigamente não eram possíveis de serem resolvidos (Entrevista 8, médica Amanda) 9.

Segundo Batemam (1999), desde o século XVIII a aproximação instrumental da infecundidade já havia sido pensada e elaborada de maneira artesanal, como caminho experimental em biologia: a ciência nessa época visava compreender os fenômenos naturais e reproduzi-los artificialmente em laboratório. Foi assim que um cientista italiano, Lazzaro Spallanzani, concebeu a ideia de tentar a fecundação por meio de instrumentos para responder às questões que os cientistas da época se colocavam sobre a reprodução animal. Havia no século XVIII uma polêmica que contrapunha ovistas a animaculistas (o ser vivente tem sua origem dentro do ovo ou dentro dos pequenos animais, os espermas). As primeiras inseminações animais não permitiram a Spallanzani, que era um ovista preformacionista, resolver essa questão, mas ele concluiu que um contato entre ovo e esperma era necessário e poderia ser suficiente para a fecundação, contrariando ideias largamente difundidas no século XVII de que o essencial à fecundidade era o orgasmo da

9 Hoje certamente o campo dos holofotes se ampliou, aguçam-se as lutas no e pelo campo, que já não é, e nem está, inserido só no contexto privado que engendrou esse primeiro trabalho. Imbricam-se necessidades de negociações institucionais, clínicas, laboratoriais, e pela hegemonia local, ao mesmo tempo em que sua divulgação poderia estar articulando recursos econômicos, necessários à continuidade do trabalho e do serviço, ainda que com grandes dificuldades de torná-lo sempre ético, como é o caso dos serviços públicos, que têm uma quantidade incomensurável de casais inscritos, mas quase não têm infraestrutura, clínica, laboratórios e tecnologia para poder dar suporte a essas esperanças. Atendem a uma pequena quantidade por mês. Estes contextos reportando-nos à pergunta que não quer calar: se é lícito, correto, digno abrir tantas expectativas sobre o desejo de filhos, quando de fato poucos serão atendidos em período compatível com as condições para a sua reprodução?

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mulher. Spallanzani descobriu, por suas experiências, que a relação sexual não era necessária à fecundação. Segundo Rodhen (2001), essas polêmicas se deram durante os séculos XVII e XVIII, quando se desenvolveram os estudos sobre os ovários, descobertos por De Graaf em 1672. Para esse autor, “todos os animais e o homem têm sua origem em um ovo contido nos ‘testículos das mulheres’, antes mesmo do coito” (RODHEN, 2001, p. 45). É bom lembrar que até o século XIX, segundo Laqueur (1994), o corpo da mulher era concebido como o corpo invertido do homem. Por isso cabe a expressão “testículos da mulher”. Para Rodhen, imaginar que a mulher “poria ovos assim como as galinhas” gerava grandes polêmicas morais, ao mesmo tempo em que transferia à mulher quase toda a honra e responsabilidade na geração. Essa teoria foi condenada e, “em 1677, o holandês Louis de Ham observa ao microscópio ‘pequenos animais’ presentes no líquido espermático que são descritos por Antony Van Leeuwenhoek como a alma animal do embrião” (RODHEN, 2001, p. 45). Essas descobertas trouxeram muita fascinação e interesse, e o espermatozoide reconquistava um espaço preponderante sobre o ovo, que só foi recolocado em cena por Spallanzani no final do século XVIII, quando então também se reconheceu a função procriativa do espermatozoide, embora ainda não se tivesse uma solução precisa para o problema da geração.

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1.2 TECNOLOGIAS REPRODUTIVAS CONCEPTIVAS: AS REDES E OS CONTEXTOS NACIONAIS E GLOBAIS Considerados os aspectos sócio-históricos da construção do conhecimento, é preciso ainda dizer que há necessidade de se colocar esse objeto de estudo em diálogo com o terreno crítico das práticas em reprodução assistida, cujos avanços técnicos e científicos vêm ocorrendo desde julho de 1978 quando do nascimento do primeiro bebê de proveta, Louise Brown, em Manchester, na Inglaterra. Essa primeira experimentação foi efetuada pelo médico ginecologista Patrick Steptoe e pelo biologista Robert Edwards. Foi o primeiro bebê nascido no mundo depois de uma dezena de ensaios infrutíferos. Eles são também os responsáveis pela primeira fertilização in vitro (FIV) bem-sucedida com gestação tubária, ocorrida em 1976. Nesse contexto, e analisada a bibliografia, o material empírico e os sites das clínicas, pode-se relacionar uma série de fatores que contribuíram para o desenvolvimento e expansão das Novas Tecnologias Reprodutivas Conceptivas (NTRc): a indústria farmacêutica, o surgimento do ultrassom, as pesquisas com agroalimentos, as pesquisas com genética humana. Esses fatores acabaram por consolidar a reprodução humana como um campo privilegiado de transferência e aplicação dos conhecimentos biotecnológicos (ROTANIA DE POZZI, 1999). No Brasil, especificamente, a reprodução assistida entra nas clínicas privadas a partir dos contatos com os médicos estrangeiros e dos cursos de especialização ministrados por eles. Até mesmo o

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contrabando de tecnologia, conforme relato do médico Alcides10, um dos médicos entrevistados, facilitou o seu desenvolvimento nos grandes centros do país. Parece haver

consenso (FOUCAULT, 1993; RODHEN,

2001; MATOS, 2003; RAGO, 2000) de que o contexto histórico gerador das demandas e preocupações com a infertilidade visava normatizar a sexualidade e a reprodução. E, embora nem todas as práticas tenham sido aceitas passivamente, sendo as primeiras inseminações artificiais relegadas à marginalidade, após sucessivas condenações por diferentes instituições, especialmente por parte da Igreja Católica, elas já haviam sido realizadas no século XIX, bem como as primeiras procriações com o dom de esperma até o seu final (JOUANNET, 2001). E a primeira fecundação in vitro remonta a 1948,

com os trabalhos de Menken e Rock (BARBARINO -

MONNIER, 2000), no contexto da Segunda Guerra Mundial. Depois da Segunda Guerra Mundial e sobretudo no final do século XX é que as intervenções médicas na procriação humana ganharam impulso maior. Esse movimento se apoiou sobre três acontecimentos: 1) A entrada em cena de procedimentos biológicos capazes de reproduzir e regrar em laboratório os processos de fecundação e desenvolvimento do embrião dos mamíferos antes da sua implantação no útero. 2) A medicalização da procriação, que marca o início de uma demanda de contracepção eficaz, inscrita nos movimentos de emancipação das mulheres. A proposição era de melhor conhecer os mecanismos da reprodução para melhor controlá10

Todos os nomes de entrevistados que aparecerão ao longo do livro são fictícios.

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los e, ao mesmo tempo, para corrigi-los quando fossem deficientes. 3) A vontade de certo número de médicos de não mais ignorar os problemas de esterilidade e de retirar as técnicas existentes de sua clandestinidade; além disso, a demanda social ligada à oferta médica. A própria prática da fertilização in vitro FIV) e da injeção intracitoplasmática de espermatozoide (ICSI)

engendra essa

demanda de concepção de crianças sem relação sexual. Mesmo sendo apresentada como solução para a esterilidade, em algumas situações, pode significar apenas uma busca por procriação sem relação sexual. A demanda não é apresentada apenas por casais heterossexuais, mas igualmente por casais homossexuais ou celibatários que buscam procriar sem relações heterossexuais 11. Segundo Corleta e Kalil (2002) no site Abc da Saúde12, originalmente a fertilização in vitro , seguida de transferência de embriões (FIVETE), foi proposta para o tratamento dos casos de infertilidade tubária, ou seja, para aquelas pacientes em que as trompas estavam ausentes ou irreparavelmente obstruídas. O aprimoramento das técnicas de FIV ampliou as suas indicações e permitiu o seu uso para o tratamento da infertilidade de outras etiologias. Somam-se às condições para o desenvolvimento desses fatores o nascimento do primeiro bebê de proveta em 1978 e a

11

Vide a síndrome do nascimento virgem, tal qual tratada por Strathern (1995), sobre as mulheres na Grã-Bretanha que buscavam tratamento de fertilidade alegando que desejavam contornar as relações sexuais. 12 Disponível em: . Acesso em: 28 jul.2002; set. 2008.

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produção e o uso de drogas para estimulação ovariana em larga escala, ocorridos após 1981. Havia o interesse da indústria farmacêutica, produtora desses medicamentos para o mercado de reprodução assistida, que estavam em franca expansão, não só pelas suas intervenções sofisticadas, como também pelo número de tentativas necessárias para a obtenção de uma gravidez. A técnica do ultrassom13, introduzida no processo de fertilização in vitro no Brasil em 1980, permitiu ao médico aspirar os óvulos da mulher por via vaginal, substituindo a coleta abdominal por cirurgia laparoscópica, sem necessidade de hospitalização, contribuindo grandemente para a difusão e maior segurança dessas práticas. Durante a década de 1980, a reprodução assistida cresceu imensamente na Europa do Oeste, na América do Norte, na Oceania, na Austrália e na Nova Zelândia, sobretudo. No Canadá os primeiros bebês produzidos pela fertilização in vitro foram os gêmeos nascidos no ano de 1983, em Vancouver. Em 1983, na Austrália, ocorreu a primeira FIV com óvulo de doadora, e no ano seguinte, um nascimento por meio de embrião congelado (OMS, 1992). 13

A técnica de ultrassônico foi descoberta durante a Primeira Guerra Mundial e, posteriormente, adotada pela medicina. Durante a guerra os sons das ondas foram usados para detectar a presença de submarinos inimigos, e depois, com o fim da guerra, a técnica foi utilizada nas embarcações e pela industria de pesca. Sua aplicação na obstetrícia ocorreu quase que por acidente. A ideia de Ian Donald e Scotland foi utilizar um detector metálico ultrassônico usado pela indústria para diagnosticar um tumor misterioso no abdômen de uma mulher. Após o uso, descobriram que o tumor abdominal era uma gravidez. De acordo com Ian Donald, “não haveria muita diferença entre um feto no útero e um submarino no mar”. O uso de ultrassom na área obstétrica ocorreu no final de 1950, e em 1965 uma gravidez de sete semanas já podia ser identificada com esse equipamento. Uma década depois, seu uso já estava difundido (Ian Donald, em entrevista a Oakley, 1987, p. 44 apud BARBOSA, 1999, p. 37).

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Em 1985 ocorreu o primeiro nascimento de um menino com sexo predeterminado, nos EUA. Em Quebec, desde 1979 uma equipe especializada do Centro Hospitalar da Universidade Laval (CHUL) já tinha começado esse tipo de experiência e obteve o primeiro bebê em 1985. Eles já haviam experimentado a FIVETE14 antes da metade dos anos 1970, em diversas espécies animais. Essa foi a segunda equipe do mundo a obter um bezerro por fecundação in vitro . Segundo Drumond15, o primeiro bezerro obtido por sêmen congelado nasceu em 1952, nos

EUA, e em 1973 nasceu o primeiro bezerro de

embrião congelado. O que a maioria dos pesquisadores observa é que toda pesquisa em reprodução humana está diretamente ligada à indústria agroalimentar e que a maior parte dos cientistas apenas aplicou em seres humanos os métodos usados nas pesquisas com animais. Jacques Testart (1999), o criador do primeiro bebê concebido na França por FIVETE, Amandine, em 1982, diz que tanto

na

Inglaterra como na Austrália, nos Estados Unidos e na França não foram os médicos, mas os cientistas, veterinários e agrônomos que conceberam os primeiros bebês de proveta. A procriação medicamente assistida tem consistido de tomar, para a espécie humana, os mesmos procedimentos então amplamente utilizados em bovinos. (estimulação ovariana, congelamento e transferência de embriões) e de iniciar outros que foram posteriormente aplicados a esses animais (fecundação in vitro, ICSI, inibição de hormônios gonadotrópicos etc). Entretanto, não é somente este registro instrumental que me faz reconhecer que há uma continuidade,

14

Fertilização in vitro com transferência de embrião. Universidade Estadual de Montes Claros, Unimontes. Disponível em: . Acesso em: 3 jan. 2003.

15

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em minhas pesquisas, entre a espécie bovina e a espécie humana. Como também não é o apetite ginecológico para a abertura de novas vias de ação, em que o horizonte se faz passar por progresso, sem mais pudor que há entre os criadores de animais. (TESTART, 1999, p.13, tradução da autora).

Ele próprio, como veterinário, havia utilizado esses experimentos durante muito tempo, a fim de aumentar a eficácia da seleção de vacas leiteiras e o número das suas descendentes como melhores produtoras de leite. Em Testart (1986, p. 41-42, tradução da autora) encontra-se: Há quinze anos, eu me ocupava em engravidar pela força, desconfiadas fêmeas bovinas, por meio de uma catapulta que introjetava no útero das pobres bestas embriões que elas não reconheciam como sendo de Eva ou de Adão. Certo dia, quando havia colocado minha catapulta no vestiário, folheei um tratado de patafísica e, a partir do dia seguinte, meu instrumento passou a se chamar “pataculta”, enquanto eu escrevia sobre a porta de minha sala: “J.T., patacultor”. Mais recentemente, minha atividade de pesquisa sobre a FIVETE me levou a escrever sobre a porta de minha nova sala: “J. T., experimentador-inventor”. Quase ninguém achou graça dessas duas inscrições, o que me deixou triste; e a segunda me valeu algumas observações pouco corteses, o que me ensinou que não se brinca com a pesquisa, que é a única teta da ciência a ser tomada a sério. Obviamente, a coisa é bem mais grave quando a pesquisa aborda a saúde de homens e mulheres: aí ela se transforma em missão, e se há paixão, é somente a paixão de servir. E assim vão as imagens de Epinal! Querem me fazer acreditar que atribuo tanto a essa profissão que amo o objetivo essencial de aliviar a miséria humana? Por que alguém se torna pesquisador, médico, ou paciente?

Essas.falas.são.importantes

porque

estão.inseridas

no.conjunto das críticas engendradas à ciência, trazem material crítico para pensar o desenvolvimento dessas práticas no campo da biomedicina, bem como o seu uso na correção e na estimulação da fertilidade humana ou para ajudar a natureza a atingir um.fim,

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conforme a concepção dos entrevistados médicos e casais. Além disso, permitem visualizar quanto os interesses das instituições médico-hospitalares, laboratoriais e clínicas são igualmente espaços de vinculação à nova construção da engenharia genética, ligada à lógica do mercado (ROTANIA DE POZZI, 1999). Foi nesse contexto mais amplo que as condições para o nascimento do primeiro bebê de proveta brasileiro foram preparadas. Segundo Barbosa (1999), em outubro de 1982, antes.do nascimento do primeiro bebê de proveta brasileiro, ocorreu um dos primeiros seminários promovidos por especialistas em reprodução humana que trabalhavam em clínicas privadas, com a presença de médicos estrangeiros, convidados para.introduzir a técnica no país. A experiência se realizou no Hospital Santa Catarina, em São Paulo, a cargo de médicos australianos, e foi financiada por empresas e empresários privados, com patrocínio da principal cadeia de televisão brasileira, que buscava, naquela ocasião, “registrar” a primeira fertilização in vitro no país. Nessa.circunstância,.segundo

Corrêa.

(2001),.algumas.

mulheres inscritas em programas de reprodução de clínicas privadas brasileiras, principalmente em São Paulo, foram selecionadas como “voluntárias” para participação no curso. Elas seriam submetidas às tentativas de fertilização in vitro sob os cuidados de especialistas brasileiros que estariam sendo “supervisionados” pelos.médicos estrangeiros. Corrêa.relata.que.esses cursos e seminários eram organizados de modo a coincidir com a internação de pacientes ditas

53

“voluntárias”, inscritas em programas de reprodução assistida, principalmente na cidade de São Paulo. Nessa ocasião, segundo Oliveira (1997), Zenaide16, uma das pacientes voluntárias do curso, faleceu quando se submetia a uma punção via laparoscopia para a retirada dos folículos, sob a responsabilidade do médico brasileiro Milton Shim-Ithi Nakamura. Dois anos depois, em 17 de outubro de 1984, o mesmo médico que atendeu Zenaide revelou o nascimento do primeiro bebê de proveta no país. Outros especialistas que também buscavam ser os “pais” do primeiro bebê questionaram a informação noticiada. Segundo Corrêa.(2001), há quem afirme que existiam duas crianças no país produzidas pelo mesmo processo, mas que havia recusa da parte médica em revelar a identidade de uma delas, e dizia-se que era para não estigmatizá-la. Os contatos com médicos estrangeiros se sucederam, chegando a haver.a participação, em 1984, dos dois.médicos ingleses.responsáveis pelo nascimento do primeiro bebê de proveta do mundo. Em razão desses encontros com especialistas dos principais centros que já dominavam a técnica de fertilização in vitro , a reprodução assistida foi muito rapidamente se tornando disponível no país.

16

Zenaide Maria Bernardo tinha 40 anos quando se submeteu à coleta de óvulos por meio da técnica de laparoscopia. Ela estava no seu segundo casamento, tinha dois filhos e tentava engravidar há dois anos. Após ter perdido as trompas durante uma operação de apêndice, recorreu à FIV, e era a quarta vez que se submetia à laparoscopia.

54

No Sul do Brasil17 a introdução dessa tecnologia se concretizou a partir de especializações em locais que já a desenvolviam dentro do próprio país18. Essas especializações só foram intensificadas na década de 1990, conforme se pode observar através do histórico dos médicos e das clínicas pesquisadas. Em alguns casos, os médicos procuraram contatos internacionais, fizeram cursos ou estágios em outros países, todos anteriores aos anos 1990. Mas somente nos últimos anos é que o número de clínicas tem crescido e que os médicos procuraram se envolver com a reprodução assistida como um dos campos da ginecologia. As viagens de estudos e especializações empreendidas desde os anos 1980 aos centros de reprodução assistida dentro ou fora do país não traziam apenas informações, mas também tecnologia, o que insere o contexto investigado na relação global, regional, local, e conecta, desse modo, os conhecimentos tecnológicos e biomédicos na lógica do mundo globalizado, mesmo que em situação desigual. Esse fato é considerado pelos médicos entrevistados como fator propulsor dos trabalhos das clínicas. Pode-se ver que se trata, na maioria dos casos, da busca de ensinamento sobre os procedimentos e técnicas e da ausência da pesquisa científica, deixada para trás: como alguns até afirmaram, “coisa para abnegados”. Em geral, a 17

Restringe-se o Sul do país a Santa Catarina e Rio Grande do Sul (especificamente Porto Alegre), onde se esteve entrevistando médicos. Quanto aos casais entrevistados, são de diferentes cidades do Estado de SC (Florianópolis, Blumenau, Tijucas, Nova Trento, Criciúma, Tubarão), embora a dinâmica que se revela sob este foco, pode em geral, ser estendida a muitos outros lugares. 18 Nesse período, início da década de 1980, havia em São Paulo dois grupos que trabalhavam com FIV. O grupo da Santa Casa, liderado pelo professor Nilson Donadio, e o grupo de clínica privada, que é o Centro de Planejamento Familiar de São Paulo, liderado pelo professor Milton Nakamura (BARBOSA, 1999).

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maioria dessas clínicas não investe em pesquisa própria; elas aplicam os resultados das pesquisas básicas desenvolvidas nas universidades ou em outros

centros de reprodução assistida que circulam

internacionalmente.

Tampouco se discutem

publicamente os

riscos.ou os aspectos éticos/bioéticos envolvidos, tanto os de caráter deontológico como os práticos relativos à saúde presente e futura dos envolvidos, à imponderabilidade dos resultados do processo e aos altos custos. Para compreender a constituição do campo no Brasil, mais especialmente no Sul do país, é preciso ainda levar em conta a prática diária dos ginecologistas, obstetras, biólogos, embriologistas técnicos de laboratório, dentre muitas outras especialidades, além das informações técnicas e das condições em que ocorre o surgimento das clínicas. Em um primeiro momento, é o desejo de estar ligado a uma área de vida e da geração de vida que é apresentado pelos médicos da minha pesquisa, como motivação para o seu trabalho e para a escolha de uso das novas tecnologias reprodutivas conceptivas (NTRc). Eles se justificam expressando motivações pessoais ligadas ao desejo de trabalhar com a vida, ao mesmo tempo em que levam em conta o pressuposto de que a reprodução assistida mexe com a concepção e a gestação da vida. Essa compreensão sobre seu trabalho amplia a função médica para aspectos mais complexos, ligados a sentidos e afetos, à vivência social e familiar e à intimidade de casais, possibilitando-lhes participar de relações mais intrincadas, que dizem

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respeito a um modo de ser no mundo, conforme atesta a fala a seguir. Eu lutei para fazer.ginecologia e obstetrícia porque dentro da medicina era uma área muito diferenciada. Era uma área que estava muito mais perto da vida do que da morte. É a única grande área dentro da medicina na obstetrícia que faz parto.Em 90% as coisas saem muito bem obrigada. Tu estás próxima da vida. E a ginecologia sempre me encantou porque o relacionamento médico e paciente é diferente,é muito mais profundo. Embora dentro de uma especialidade técnica, tem muito de afeto neste relacionamento, tu entras na sexualidade do indivíduo, tu entras na vivência familiar do paciente. O relacionamento médico é muito mais gratificante para mim. E a ginecologia previne. O grande medo de todo mundo é o câncer, e em grande escala; já é o câncer de cólon é prevenível, câncer de mama é prevenível. O diagnóstico precoce é feito e leva à cura. Então eu acho que essas coisas de grande ligação com a vida é que me levaram a fazer esta especialidade (entrevista 5, médica Rosita).

Nesse sentido, a prática médica é definida como as intervenções que se realizam para incrementar o bem-estar com uma expectativa razoável de êxito, com poucas perguntas sobre os efeitos familiares, políticos, sociais e econômicos. Fixa-se sua positividade para a vida dos indivíduos como solução imediata, sem tomar em conta o que esses investimentos podem significar a longo prazo (SOMMER, 1999). Embora não se pretenda estabelecer nenhuma crítica às razões humanitárias aqui expressas,.mostra-se que nessa ordem de discurso, no caso da primeira fase, acima descrita, e que foi objeto desta tese, as questões encontradas como motivações profissionais estavam também articuladas a princípios bastante essencializadores da maternidade, e do reproduzirem-se, como representações de mundo da parte da medicina, que eram engendradas para fundamentar

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práticas tecnológicas e científicas nesse campo.e que também diziam respeito ao ajudar a natureza. Hoje, em boa medida, essas decisões.que estão espelhadas nas mesmas.operações,.que são políticas, científicas, tecnológicas e sociais imbricadas com a reprodução humana, que produziram tecnologias, já com uma história consolidada no tempo, se reconectam em situações novas e com necessidades diferentes. Dizem respeito à implantação de serviços nos setores públicos, ou em públicos com parcerias privadas, têm um volume global maior de atendimentos, convivendo com as filas de espera e grau maior de exposição pública das mulheres, há um.acentuado investimento em meios midiáticos e pela internet, onde circula uma variedade incomensurável de informações19. Esses aspectos nos permitem afirmar que os procedimentos utilizados para a reprodução assistida, desse ponto

de vista,

ultrapassam a razão humanitária, tanto para as primeiras afirmações quanto para as últimas. Se assim não fosse, não haveria necessidade de tanta divulgação, de investimentos pesados em equipamentos e em materiais sofisticados, de manter a ideia sobre a impossibilidade de 19

Isso é diferente de um projeto que envolva uma escolha conjugal, ou que implique a discussão sobre o direito de ter filhos. O discurso presente nos sites ocorre, em geral, pelo uso de metáforas sobre a maternidade e a felicidade do casal fértil, falando de um mundo normatizado e medicalizado em determinados padrões de reprodução humana, desejados, incentivados e recriados sob a base biológica filhos do próprio sangue, ainda quando as práticas instituídas permitam as trocas genéticas e sanguíneas. Tais discursos estão impregnados de analogias, representações e signos sobre formas de medicalizar os corpos masculinos e femininos e sobre formas de intervenção para regrar comportamentos sociais em que o casal é visto em seu horizonte como pai e mãe; se assim não puder ser imaginado, estará doente e necessitando de tratamento para medidas corretivas. Trata-se do uso de metáforas que aproxima o organismo social a um polvo e seus tentáculos. Ao se tratar de um desses tentáculos, no caso, o indivíduo mulher, pensa-se estar curando a categoria híbrida casal e, por extensão, a sociedade como um todo, assunto que analisei noutros textos (TAMANINI, 2004, 2006a, 2006b, 2007).

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viver sem filhos em alta. Não é incomum, como ocorreu recentemente, em um serviço que observo há algum tempo, filmarem para os meios jornalísticos e televisivos o nascimento do primeiro bebê nascido em parceria público/privado, fato que foi escancarado na mídia local com inclusão de uma nova entrevista coletiva à imprensa. Mas isso ocorre também porque já existem as condições históricas, bem como o desenvolvimento de opiniões públicas permissivas e demandantes dessas formas de paliar a infertilidade. Quando as experiências com fecundação in vitro, associadas

à

inseminação artificial e engenharia genética, desencadearam seu crescimento acelerado na década de 1970, em diferentes contextos mundiais, o desenvolvimento laboratorial já era uma consolidada rede mercadológica capaz de suprir as clínicas com as descobertas mais recentes nas áreas da endocrinologia e dos hormônios sexuais. Já havia, portanto, uma série de elementos capazes de sustentar institucionalmente

o

“aparato

tecnológico”

e

os

inúmeros

procedimentos exigidos pelo uso dessa biotecnologia no campo da biomedicina. Da perspectiva histórica, ainda outros aspectos contribuíram para o desenvolvimento das possibilidades em reprodução assistida. Em 1991, um grupo de cientistas belgas desenvolveu a revolucionária técnica da injeção de espermatozoide no citoplasma do óvulo (ICSI). A descoberta quase que acidental revelava.as possibilidades da injeção.direta de espermatozoide dentro do óvulo, que se torna um auxílio eficaz nos casos de infertilidade masculina, reduzindo as

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exigências quantitativas em relação.ao número de espermatozoides e mesmo as exigências qualitativas, porque as pessoas podem recorrer a células espermáticas ainda imaturas e não móveis. Hoje essa tecnologia já está mais avançada e se pode falar em super ICSI, aumentando as chances de uma gravidez. Considere-se que esses feitos levam à clonagem reprodutiva e, atualmente, essa técnica tem uso prioritário, mesmo quando não se trata de infertilidade masculina, situação que sem dúvida exige reavaliação sobre o uso e as questões éticas. Em 1993 a técnica da ICSI é introduzida no Brasil, e em 1996 cientistas ingleses desenvolveram uma tecnologia capaz de fazer a análise cromossômica de embriões concebidos em laboratório antes da implantação no útero. Em 1999, Jiaen Liu, um cientista vietnamita naturalizado americano, iniciou experiências com a maturação in vitro de tecidos ovarianos. Logo depois nasciam no Rio de Janeiro os primeiros bebês brasileiros gerados.pela técnica da maturação de espermátides20. Em 2000, os cientistas Jan Tesarik, tcheco, e Peter Nagy, húngaro, que trabalha no Brasil, publicaram na revista Human Reproduction sua experiência com transferência de núcleos de óvulos, técnica que revitaliza e rejuvenesce óvulos

fracos ou

21

envelhecidos . Hoje os desafios da criopreservação de óvulos parecem superados. 20 Retira-se um pedaço do tecido do testículo onde estão as espermátides (células ainda imaturas, precursoras dos espermatozóides e que podem ser encontradas no epidídimo ou nos testículos). Faz-se o amadurecimento artificial dessas espermátides, que se transformam em espermatozóides e podem fecundar um óvulo. É recomendada para homens que não produzem espermatozoides. 21 Estes dados foram retirados do encarte da Clínica e Centro de Pesquisa em Reprodução Humana Roger Abdelmassih, de São Paulo, que me foi cedido por uma das

60

No desenvolvimento da aplicação das NTRc, identifica-se uma série de fatores que se apresentam como imprescindíveis, e pode-se observá-los nos aspectos.estruturais/institucionais, como os que dizem.respeito aos recursos de pesquisa, aos instrumentos e materiais, aos cursos de formação para especialistas, às condições de acesso ao material genético, hormonal e laboratorial, o que pode ser encontrado por especialistas em revistas do campo da ginecologia e obstetrícia,

da

embriologia,

da

urologia,

da

biologia,

da

endocrinologia, da genética, da imunologia, da cardiologia e da psicologia, áreas em que se encontra hoje o maior

número de

profissionais publicando e interagindo com esse campo. É evidente que as redes de especialidades estão se conectando, como o aperfeiçoamento das técnicas está exigindo pesquisas e publicações interdisciplinares.

Também

fica

evidente

como

algumas

especialidades se tornaram importantes, na medida em que a ginecologia e a obstetrícia, tradicionalmente, hegemônicas no campo, não são mais suficientes e como se abriram outras

formas

de

concepção e de reprodução humana, as quais envolvem técnicas e especialidades laboratoriais, aperfeiçoamento tecnológico, diálogo entre as áreas de saber,e novas inserções nos materiais reprodutivos, entrevistadas. Disponível em: . Acesso em: 8 jul. 2001. Fala-se atualmente em uma nova técnica de rejuvenescimento de óvulos. O método recupera o potencial genético do óvulo de uma mulher mais velha, graças a uma injeção de jovialidade. Nele, é injetada uma pequena quantidade do citoplasma de outro óvulo, retirado de uma mulher jovem. O material é carregado de enzimas, responsáveis por uma boa divisão celular e, consequentemente, por um embrião. Embora, especialistas em reprodução humana argumentem que as alterações de citoplasma aumentam o risco de se desenvolver doenças, existem várias crianças concebidas por este método. Disponível em: . Acesso em: set. 2008.

61

diferentes daquelas convencionadas e relativas ao ato sexual. Também se vê ressaltada a posição dos gametas masculinos, o que se deve ao desenvolvimento tecnológico, mas também ao discurso sobre o casal infértil que introduziu o homem no laboratório para a coleta de material e ou/tratamento do seu sêmen. Tome-se em conta também, além do desenvolvimento tecnológico e da medicação, as técnicas de indução da ovulação e de preservação de embriões. Soma-se a isso o desenvolvimento econômico, o desenvolvimento dos exames laboratoriais, a possibilidade de uso de microscópios de grande potência, as técnicas a laser, e outras combinações, como óvulos congelados, doação oocitária, idade oocitária, produção de gametas in vitro, a importância dos bancos.de esperma – que na França foram.estudados por Bateman (1994) –, e a troca de material e recursos humanos entre clínicas, hoje entre serviços particulares e públicos. Isto gera as condições mínimas à expansão dessas

práticas, que, uma vez

aplicadas nas clínicas e traduzidas pelo corpo clínico, estruturam as relações entre as clínicas, os laboratórios e a indústria farmacêutica. A

desmistificação

do

método

provocada

pela.mídia,

mesmo.que tenha aproximado os casais do conhecimento dessa tecnologia, gera novas demandas, mas também cria expectativas que desembocam em práticas nem sempre éticas, legitimadas, de certo modo, pelo desconhecimento sobre os procedimentos por parte dos casais e pela ausência de controle social sobre o uso desses métodos demandados como solução para fazerem filhos. De todo modo, segundo a fala dos médicos, a mídia contribui para desmistificar o

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tema; não se trata apenas de uma simples banalização, trata-se de aproximar a medicina reprodutiva da população em geral. Eu não diria banalização da mídia, eu diria uma desmistificação do método, isso aproximou os casais.ao conhecimento da tecnologia de que.não.existe.nenhuma inferência maior.do ponto de vista genético, ou de manipulação. O que a gente faz é colocar o óvulo e o espermatozóide. [...] Na verdade, a mídia colocou isso como uma coisa mais simples do que se pensava que fosse. Então os casais têm mais facilidade de vir buscar, eu acho que essa é a ideia. (entrevista 13, Dr. Afonso).

A mídia.cumpre então.papel fundamental na sua divulgação, e os casais relatam que procuram as clínicas a partir das informações oferecidas por familiares ou por meio de amigos, que sempre se baseiam em alguma notícia de TV ou jornal.ou nas informações de alguém.que fez ou está fazendo fertilização in vitro . Os comentários falados ou escritos em jornais e revistas ou as entrevistas com pessoas que

fizeram reprodução assistida para

terem.um filho não criaram apenas expectativas, mas apresentaram possibilidades que, acalentadas pela “fantasia” e até mesmo pelo “desconhecimento”, geraram desejos.Desejos.de buscar.informações e, particularmente, de superar os limites. Por que não posso, se a Popovic22, se o Pelé23, se tantos outros puderam? É preciso também considerar os encaminhamentos de casais dos consultórios médicos para as clínicas de reprodução assistida. Esses casais contam muitas vezes com outras informações vindas de 22

Silvia Popovic era apresentadora de um programa de televisão, na Rede Bandeirantes, que tinha seu próprio nome. 23 Famoso por seus feitos como jogador de futebol no Brasil, e que também exerceu a função de ministro dos esportes durante o governo Fernando Henrique Cardoso (19962002).

63

pessoas conhecidas ou de amigos que passaram pelo tratamento, sem as quais o encaminhamento médico não seria concretizado, tamanhas são as dificuldades de acesso e a necessidade de esclarecimentos práticos quanto a gastos,.localização da clínica, lugar para ficar durante o tratamento, que em geral é fora da sua cidade de origem, segundo o contexto do meu estudo. Há ainda a internet, onde os casais buscam informações que, por vezes, servem para verificar o caminho dos procedimentos médicos ou para conhecer o médico.e a clínica24. No caso do estudo desta tese, quando os casais sabiam da existência de um intercâmbio entre as clínicas do Sul com centros considerados

maiores,

isto

lhes

dava

segurança

e

gerava

disponibilidade interna para tentarem o tratamento. A confiança nas clínicas do Sul, em particular nas de Santa Catarina, passava pelo fato de que elas estavam.sendo.assessoradas por outras clínicas consideradas mais experientes, de outras regiões, em geral de São Paulo.

Era para lá também que muitos casais catarinenses se

dirigiam antes.ou depois.de terem.tentado tratamento em locais mais próximos, como Curitiba/PR ou no próprio estado. Criava-se um imaginário de que isso garantia o sucesso.do tratamento, fato que

24

Hoje se pode observar que os sites são ricos em uma linguagem técnica, científica e médica direcionada de modo a organizar a experiência e a construção do mundo de quem os visita e, ao mesmo tempo, possuem um corpo de temas e significados encorajadores da prática tecnológica e dos valores que a permitem. O campo médico traduz, em seus próprios termos, a experiência prática da vida daqueles que se encontram angustiados pela ausência de filhos, e gera um entendimento sobre uma doença chamada infertilidade que, de fato, não existiria se não fosse no contexto da relação heterossexual e familiar e dentro de modelos tradicionais que reforçam a consanguinidade e o ideário segundo o qual o fim último do casamento é a reprodução de filhos.

64

também era reforçado na entrevista com médicos. Por um lado, esse intercâmbio efetivamente reforçava a infraestrutura e os recursos humanos e materiais necessários ao processo e, por outro, garantia o apoio gerador de confiança entre os que procuravam o tratamento a partir da crença no imaginário comum de que o que era realizado ou vinha de São Paulo era melhor. Nesses processos o que se percebe é uma inegável ligação entre.os elementos sociais e a construção do conhecimento. Os elementos sociais, por.sua.vez, estruturam e condicionam os conhecimentos científicos, ao mesmo tempo em que estes refazem as práticas sociais. Verifica-se nas entrevistas que a busca dos casais por tratamento para engravidar foi um fator estimulador do investimento médico em sua própria formação com o intuito de corresponder a essa demanda – que já estava se consolidando na sociedade e se refletia na angústia das mulheres quando nos consultórios de ginecologia verificavam que não era possível encontrar uma solução razoável para seu problema. Por outro lado, o mercado tecnológico dispõe de recursos laboratoriais que podem ser colocados e realocados a serviço desse processo.

Muitas vezes os recursos eram emprestados a outras

clínicas, como é o caso de algumas em Porto Alegre, que relatam terem recebido ajuda de São Paulo, desde a obtenção de microscópio a apoio e presença de especialistas. Desse modo, já estavam assim construídas as condições para as negociações entre clínicas, propiciadoras das práticas como uma resposta tecnológica ao presente, e as condições para ganhos mercadológicos.

65

Considere-se também o desenvolvimento de pesquisas laboratoriais e hormonais: a endocrinologia já de longa data vinha investindo recursos em pesquisas, no sentido de compreender o mecanismo glandular e desenvolver a medicação hormonal com fins de atender às demandas cotidianas (OUDSHOORN, 2000). Esses elementos pressão

sobre

as

sociais/coletivos reforçam formas de

clínicas,

que

se

explicitam

médico/“paciente”(cliente), particularmente

na

relação

entre.ginecologista e

“paciente”. Eles.ocupam o lugar central no topo dessas relações. De um lado encontram-se as mulheres, que insistem em obter a gravidez mesmo diante da impossibilidade por vias “normais”. De outro lado, a biomedicina, que também encontra no médico, somado ao desenvolvimento tecnológico, o caminho para sua expansão. Diante da finitude das práticas convencionais/tradicionais de tratamento, o médico, que se apresenta sempre como quem pode ajudar, deseja oferecer algo a mais do que as orientações dadas até então, na maioria das vezes controles ovulatórios seguidos de coitos programados, estimulação ovariana, laparoscopias exploratórias, retirada de endometriose e pólipos, ou ainda anticoncepção com a finalidade de regular os ciclos, dentre outras intervenções. Pode-se.perceber com uma simples descrição panorâmica a complexidade das questões envolvidas nas formas de agir da medicina, da biologia e da veterinária no conjunto dessa tecnologia biomédica para fazer um filho. Nessas práticas o foco não ocorre sobre o diagnóstico, mas sobre os resultados do que é chamado equivocadamente de “tratamento”, porque o que se faz ali não é curar

66

infertilidade, mas produzir um filho para um casal infértil; logo, no limite, a criança é apresentada como remédio, mesmo que isso não seja afirmado explicitamente. Os casais envolvidos ressignificam sua vida e justificam a insistência em ter um filho do próprio sangue como forma de adequar-se à prática desejável no interior de nossa cultura, que se expressa sempre na pergunta: “Você tem filhos?”, ao mesmo tempo em que no dispendioso esforço por respondê-la. Nesse sentido, o nascimento das clínicas e as formas biomédicas de tratar os problemas de fertilidade se apresentam como

respostas a uma

demanda. O nascimento das clínicas de reprodução assistida e sua explicitação pública se devem.também ao fato.de que,.uma.vez democratizada.a informação, mesmo se simplificada, não é mais possível

manter

as

práticas

isoladas,

como.se

fazia.no.caso.da.inseminação artificial, quando esta se encontrava dentro das “velhas estruturas” dos consultórios e na mão só dos genicologistas. Parece estabelecer-se nesse momento uma nova divisão de trabalho entre ginecologistas, que continuaram fazendo ginecologia geral em consultório, e aqueles que, daí em diante, serão “especialistas” em reprodução humana a partir dessasdinâmicas biotecno lógicas e do envolvimento de várias outras especialidades. (TAMANINI,2015). A prática também evidencia a comunidade científica que a produziu, os seus interesses, avanços e limites. Portanto, é uma produção cognitiva e social, expressões utilizadas por Doré e Saint-

67

Arnaud (1995). Ao falar sobre NTRc, fala-se de uma rede de acontecimentos dos quais já não se separa tecnologia e fato científico; fala-se, portanto, de uma

tecnociência. A reprodução

assistida traz, seguramente, uma tecnociência nascida

da

biomedicina. Os especialistas estão, em sua profissão, fazendo interagir duas dimensões: a da pesquisa, ainda que não seja a própria, e a da intervenção clínica, a partir de uma demanda social. Fazendo uma relação com as clínicas onde foi realizada a pesquisa, as duas do estado de Santa Catarina e as seis das sete que existiam em Porto Alegre, observa-se uma decalagem entre a produção teórica dos grandes centros de biotecnologia e a intervenção clínica para fazer um filho, mediatizada pela medicação hormonal, pelos controles ecográficos e pela insistência dos envolvidos, médicos e casais, diante das muitas tentativas frustradas. Considerado o nível.mais.geral das pesquisas,.especialmente das universidades, produz-se pesquisa básica; mas focados os níveis particularizados da maioria, o que se vê é que os conhecimentos são englobados nas práticas cotidianas do tratamento em sua relação com as ofertas laboratoriais de medicamentos e do acompanhamento médico dentro da clínica privada, embora os processos de atualizações dos profissionais se deem por meio de publicações e de redes de especilistas e congressos. O saber teórico é mediatizado pela intervenção das clínicas que

usufruem

desses

conhecimentos,

reduzindo-os

a.bases

probabilísticas de sucesso/insucesso e oferecendo-os para um público que, em geral, não se compreende em sua existência sem filhos e que

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faz grandes sacrifícios para chegar até um local de tratamento. Público

que

almeja

resultados

imediatos,

embora

o

faça,

desconhecendo os riscos envolvidos e também nada sabendo sobre os resultados; por isso, na maioria dos casos, é também conivente com as proposições do médico sobre os custos e os procedimentos, ainda que estas envolvam, por exemplo, o implante de mais de quatro embriões, situação frequentemente encontrada, que resulta não raramente em gravidez de trigêmeos, com problemas dos mais variados, desde a proposição de redução embrionária, até riscos de vida para a mãe e para os bebês ou morte efetiva dos bebês, (situação que acompanhei, em campo.de pesquisa em 2004, trabalho posterior a este), causada, entre outras razões, pela prematuridade do nascimento dos três bebês. As NTRc são um fenômeno global, caracterizado em toda parte pela hierarquia das relações e pelo poder das constelações empresariais e médicas, como se pôde observar nessa pesquisa em clínicas do Sul do Brasil. Nesse sentido, é preciso ter em conta também o seu consumo e a política criada para sua regulação em várias partes do mundo, bem como as implicações sociais desse processo.

1.3 PERCALÇOS METODOLÓGICOS Do ponto de vista da metodologia utilizada na realização do trabalho de tese.e do momento desta.publicação, deve-se.dizer.que.o sentido produzido agora é bastante retrospectivo em relação a muitos aspectos e que a escolha desta temática não foi coisa fácil.

69

Existem muitos e importantes desafios a serem considerados em um campo de pesquisa. Neste caso, muitos advêm do fato de ter que colocar para conversar, emoções, textos e dificuldades de acesso aos casais e aos médicos, dinâmica que por vezes, parecia impossível de ser administrada, e cujas dificuldades ainda.persistem mesmo.que hoje a tecnologia seja bem mais conhecida e se os serviços se expandiram. São muitas as idas e vindas aos comitês de ética, aos serviços das clínicas e à autoridade médica responsável por esses serviços. Leve-se em conta também o fato de que falar com esses casais, especialmente com as mulheres nesses processos de tratamento, carrega a situação com muitas emoções e pressões e demanda energia, distanciamento emocional da parte de quem pesquisa, por causa dos segredos, dos processos subjetivos vários, dos riscos a que são expostas as mulheres e crianças, dos erros sobre condutas médicas relatados, das coerções sociais e familiares, situações que nem sempre elas estão dispostas a revelar e que raramente, lhes permite contar sem dor, ou até com o peso de uma narrativa trágica, como são as situações de perdas e mortes de bebês. Por vezes, isso, também atingiu o par do casal, (homem, já que se está no contexto heterossexual), ou a própria pesquisadora. Além do mais, a pesquisa com médicos, com sua prática e seu discurso, permanece sendo um mundo “fechado” para quem pesquisa em ciências humanas, o que dificulta sobremaneira realizá-la. É

importante

dizer

que

a

proposta

do

doutorado

interdisciplinar e seus desafios teóricos à pesquisa, a necessidade de orientação aberta ao diálogo e a predisposição da pesquisadora a

70

aceitar um processo até mesmo fora do campo de suas escolhas teóricas e epistemológicas e da teoria que pautava o caminho das suas experiências acadêmicas, da sua trajetória profissional, poderiam ser um impedimento. No entanto, assumiu-se o trabalho de modo maduro, dialógico e responsável, com o apoio das professoras doutoras Miriam Grossi e Luzinete Simões Minella, com quem foram estabelecidas pontes metodológicas, teóricas e pessoais fundamentais ao caminho desta tese e ao caminho das muitas inserções nos códigos acadêmicos que nele se consolidaram. Apesar de essa temática estar com frequência na mídia 25, a pesquisa estava sempre diante do impasse de ter que ser explicada. Falar de fertilização in vitro e inseminação artificial não fazia parte nem da prática nem do imaginário dos que atendiam ao pedido de informação. Esse assunto estava circunscrito ao tratamento para alguns, tomado como “coisa de rico”. Dele os serviços públicos não davam notícias, pareciam desconhecê-lo e parecia que sequer fazia parte das perspectivas da área, posição que foi se confirmando ao longo das inserções no campo, em que quase sempre ocorria o questionamento: “Mas o que queres com isso?” O que não deixava de ser uma posição incômoda porque, de certo modo, também se partilhava dessa representação. Às vezes alguém dizia: “Ah! A Dra. faz”, o “Dr. faz lá na Carmela Dutra”. Cada vez as notícias eram mais desalentadoras, 25

A partir de tabela fornecida pela comissão de cidadania e reprodução (CCR), em julho de 2000, constatou-se que entre os meses de julho de 1996 e abril de 2000 foram publicadas nos maiores jornais do país 694 matérias em torno dos subtemas fertilidade, infertilidade, reprodução assistida, clonagem, tecnologia genética, anomalia, medicina fetal.

71

porque provocavam extremada consciência sobre as dificuldades. No término dos créditos das disciplinas obrigatórias, em setembro de 2000, havia-se realizado alguns poucos

contatos com casais e

médicos que mostravam grande resistência em falar. Ou mesmo diziam: “Deixa para mais tarde”. O leitor/a poderá imaginar o que isso significa quando se está sob a pressão dos prazos acadêmicos. Concomitantemente a esses contatos locais, buscava-se, através da lista de bioética26, saber se haveria um Centro de Reprodução Assistida no serviço público de saúde, no qual pudéssemos

fazer

essa

pesquisa.

Fátima

Oliveira

(médica

organizadora da lista de bioética) disse que achava difícil, o que se somava ao que já se sabia e ao que se havia lido na tese de Marilena Corrêa (1997) sobre suas dificuldades e a consequente desistência de fazer um caminho próximo ao que se almejava. Entre essas incertezas, desenvolve-se a primeira entrevista com um casal e, em seguida, com um médico de Blumenau/SC, local onde se encontrava também um dos dois Centros de Reprodução Assistida de Santa Catarina, o Procriar. O outro era o Clinifert, de Florianópolis/SC. Nesse local um médico afirmou que o acesso aos casais seria muito difícil. Ele disse: “Só para você ter uma ideia, tentei falar com uma paciente sobre uma outra, que queria conversar com alguém que havia feito ICSI porque a dela não havia dado

26

Lista bioética: , disponível em: . Projeto divulgação e popularização da bioética: direitos reprodutivos. instituição patrocinadora: MACARTHUR FOUNDATION, fundo de capacitação e desenvolvimento de projetos (FCDP).

72

certo. E a pessoa me pediu desculpas, dizendo que o caso dela era segredo” (Médico Egídio). Entretanto, também disse que achava ter um casal com quem se poderia conversar. Pensava que aceitariam, se ele lhes falasse. Combinou-se ligar novamente e após sucessivas ligações telefônicas sem sucesso, desistiu-se por convencimento da necessidade de buscar outras estratégias. Nesse período, após muitas chamadas ao telefone, quatro marcações de entrevistas, com três manhãs inteiras dedicadas a esperas no Hospital Universitário/Florianópolis/SC, conseguiu-se finalmente entrevistar outro médico, que também trabalhava no Procriar em Blumenau/SC. Esse caminho parecia ser extremamente pesado, porque se via o tempo passar, sem conseguir ter certeza de que o campo poderia ser investigado. Mas no caso desse médico, seu entusiasmo e sua disponibilidade em atender a pesquisadora em sua própria casa, durante o seu tempo de descanso, e especialmente suas palavras, pareciam garantir o sucesso do processo do trabalho empírico. Ele foi o facilitador de três entrevistas com casais, após meus insistentes contatos telefônicos. De todo modo, continuava-se com a sensação de estar embarcando em uma “canoa furada”, dada a permanente dificuldade e o medo da inviabilidade nesse campo. Persistiu-se no envio de e-mails para Fátima Oliveira, que recomendou o professor e doutor Joaquim Antonio César Mota, bioeticista da Universidade Federal de Minas Gerais e que também era

membro do comitê de Ética em Pesquisa da UFMG. Esse

professor, por sua vez, falou com o professor Aroldo Camargos,

73

coordenador do serviço de reprodução assistida do Hospital das Clínicas da UFMG, que se colocou à disposição para ajudar. Continuou-se, no entanto, fazendo contatos em Florianópolis e com pessoas em outras cidades do estado. Mapeava-se casais que haviam recorrido ao uso de NTRc, na base de quem conhece quem, tanto para o caso de não dar certo em Minas Gerais, quanto para a possibilidade de fazer um estudo comparativo entre um serviço público e clínicas privadas, proposta cogitada inicialmente. Enviouse concomitantemente o projeto de pesquisa para que Dr. Aroldo Camargos soubesse do que se tratava e para que julgasse se haveria necessidade da aprovação pelo Comitê de Ética. Mesmo sem sua resposta, sabia-se,pelas informações fornecidas por Fátima de Oliveira, que possivelmente o projeto teria que ser aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa e, sucessivamente, pela Comissão Nacional de Ética

em

Pesquisa (CONEP), uma vez que se

desenvolveria no espaço clínico-hospitalar. Depois disso, caso o trabalho de campo precisasse ser realizado noutra universidade, teria que

passar

pelo

Conselho de Ética em Pesquisa local. As

informações estavam corretas. Foi o que aconteceu, de certo modo 27.

27

A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) é uma comissão do Conselho Nacional de Saúde (CNS), criada através da resolução 196/96, com constituição designada pela resolução 246/97, com a função de implementar as normas e diretrizes regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos, aprovadas pelo Conselho. Tem função consultiva, deliberativa, normativa e educativa, atuando conjuntamente com uma rede de Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) organizados nas instituições onde as pesquisas se realizam. A CONEP e os CEP têm composição multidisciplinar com a participação de pesquisadores, estudiosos de bioética, juristas, profissionais de saúde, das ciências sociais, humanas e exatas e representantes dos usuários. O CEP institucional deverá revisar todos os protocolos de pesquisa envolvendo seres humanos, cabendo-lhes a responsabilidade primária pelas decisões sobre a ética da pesquisa a ser desenvolvida na instituição, de modo a garantir e resguardar a integridade e os direitos

74

À medida que os contatos foram avançando o impasse foi se colocando novamente, pois, para apresentar os muitos documentos ao CEP da UFSC, precisava-se do envio de duas declarações do.Centro de Reprodução Assistida de Minas Gerais. 1) Declaração de ciência e parecer do Hospital ou Instituição envolvida. 2) Declaração da Instituição em cumprir os termos das resoluções 196/96 e 251/97 e 292/99 do Conselho Nacional de Saúde. Por causa da demora em obtê-las, à medida que se aproximavam os prazos da reunião do Comitê, as preocupações aumentavam, porque, perdidas as datas, teriam que ser reformuladas as intenções de fechar o trabalho de campo no máximo até fevereiro de 2001. Depois de várias ligações telefônicas e de uma série de e-mails, Dr. Aroldo informou que deveria

encaminhar todos os documentos para o CEP da

UFMG/MG, seguindo suas exigências e que a partir de então, ele anexaria as declarações e as levaria até o Comitê de Ética. Isto de saída inviabilizava a aprovação do CEP/UFSC/SC, uma vez que não havia como completar o processo.

dos voluntários participantes nas referidas pesquisas. Terá papel consultivo e educativo, fomentando a reflexão em torno da ética na ciência, bem como a atribuição de receber denúncias e requerer sua apuração. A CONEP deverá examinar os aspectos éticos de pesquisa envolvendo seres humanos em áreas temáticas especiais, encaminhadas pelos CEP das instituições, e está trabalhando principalmente na elaboração de normas específicas para essas áreas. Dentre elas, a da genética humana, da reprodução humana, dos novos dispositivos para a saúde, das pesquisas em populações indígenas, das pesquisas conduzidas do exterior e aquelas que envolvam aspectos de biossegurança. Está organizando um sistema de acompanhamento das pesquisas realizadas no país. Funciona também como instância de recursos e assessoria ao Ministério da Saúde (MS), ao Conselho Nacional de Saúde (CNS), ao Sistema Único de Saúde (SUS), bem como ao governo e à sociedade, sobre questões relativas à pesquisa em seres humanos. Pode, portanto ser contatada por instituições, pesquisadores, pessoas participantes das pesquisas e outros envolvidos ou interessados; além disso, recebe sugestões. Outras informações sobre a resolução do CNS de 6 de julho de 2000, que trata da reprodução humana, podem ser encontradas em: .

75

Como os principais documentos para o comitê da UFSC já haviam sido providenciados, depois de uma consulta ao site do Hospital das Clínicas da UFMG28 para saber sobre suas exigências, conseguiu-se adaptar a maior parte do que já existia e enviá-la para Dr. Aroldo Camargos, que se comprometeu a anexar as declarações de sua alçada, encaminhando o processo ao Comitê de Ética da UFMG. Passados alguns dias, quando se avaliava a possibilidade de adiantar o trabalho de campo, ainda que sem a aprovação a priori do CEP, Dr. Aroldo comunicou da inviabilidade de consegui-la para o mês de janeiro, uma vez que os funcionários do Centro estariam de férias e que, nesse caso, a pesquisa só poderia ser iniciada a partir de fevereiro. Isto ressuscitou novos temores sobre o futuro do trabalho. O desfecho do caso sobre o campo da pesquisa aconteceu por ocasião da qualificação, em 19 de dezembro de 2000, quando a banca recomendou fortemente que o trabalho fosse realizado no Sul. Se por um lado isso era instigador, por outro lado, o campo de pesquisa e sua viabilidade, permanecia circunscrita aos “fantasmas” da impossibilidade, mesmo se consideradas as sete entrevistas que já haviam sido realizadas até aquele momento (com cinco casais e dois médicos). Além disso, havia sido investida tanta energia com outros contatos e preparados tantos papéis para os CEPs, que não parecia ser fácil abandonar esse caminho para recomeçar outro. No mais, desconhecia-se se, no caso de fazer esse tipo de pesquisa, seria necessária a aprovação de mais algum comitê. Nas tentativas de 28

Comitê de ética em pesquisa da UFMG. . Acesso em: 17 nov 2000.

76

esclarecimento, as respostas foram confusas e o processo demorado. Não se poderia esperar, sob pena de perder os prazos. Começou- se, então, a partir da aprovação pela banca de qualificação, a investir tempo e recursos na continuidade do “mapeamento” de casais e médicos. Os casais foram contatados nas cidades

de Blumenau,

Tijucas, Florianópolis, Criciúma e Tubarão, em Santa Catarina; os médicos, em

Florianópolis,

Blumenau e Porto Alegre. Quando

surgiram informações sobre mais algum casal 29,

ligava- se ou

buscava-se auxílio na lista telefônica para localizá-lo. Explicava-se do que se tratava e o que se desejava e, em seguida, perguntava-se se aceitariam falar sobre o seu próprio processo de tratamento para engravidar. Explicava- se sobre

o livre

consentimento30,

o

resguardo do sigilo e a possibilidade de recusa à participação em qualquer momento. Em seguida, combinava-se a forma de fazer a entrevista, esclarecendo sobre a necessidade de falar com os dois, de preferência em separado. Isto nem sempre foi possível ou aceito. Foram poucas as recusas à entrevista; a maior dificuldade deu-se em relação à compatibilização de horários. Falava-se, nesse primeiro momento, tanto com homens como com mulheres. Em ambos os casos, as entrevistas foram realizadas nas casas, no trabalho e até em lanchonetes dos ambientes de trabalho. Os homens representaram o

29

A maioria dos contatos foi obtida através dos próprios casais; em alguns poucos casos, através de alguns nomes fornecidos pelos médicos e do auxílio de ex- alunos e parentes. 30 Em campo, antes de cada entrevista, falava-se sobre a folha do consentimento informado, mas havia recusa em assiná-la. Como se percebeu que ela não fazia sentido após toda negociação anterior, e que era um elemento altamente constrangedor para todos, parecendo sempre levantar suspeitas, a retiramos da situação de entrevista, embora tenham sido mantidas cópias para eventuais necessidades e sempre dentro do espírito da informação nescessária antes de começarmos a fazer perguntas.

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maior número dos entrevistados no seu trabalho. Entrevistaram-se 20 casais, totalizando 34 entrevistas, das quais 29 foram realizadas com homens e mulheres do casal em separado; 5 casais foram entrevistados juntos (um dos pares levou meses para conseguir um horário, recusando-se, finalmente. Na última vez ele perguntou se não era possível deixá-lo fora, porque ele não tinha tempo, estava sozinho no trabalho. Como já se havia insistido muitas vezes, aceitou-se sua proposição). Além dessas entrevistas, acompanhou-se também a trajetória de um casal (dentre os entrevistados), que obteve uma gravidez após a terceira ICSI, com duas anteriores sem sucesso. Nesse caso, além de observações partilhadas, as narrativas do diário de um dos pares foi colocada à disposição e se revelou material representativo do que acontece com a maioria dos entrevistados. Entre os 20 casais entrevistados, 20 mulheres e 19 homens, somando um total de 34 entrevistas, havia 12 homens que apresentavam algum tipo de dificuldade para engravidar. Entre as mulheres, 16 tinham problemas para engravidar e, em nove casos, o problema era comum a homens e mulheres. Das 20 mulheres, quatro não apresentavam nenhum problema, e o mesmo aconteceu com sete dos 19 homens. Além disso, é preciso dizer que alguns desses casais já tinham filhos seus, ou de um dos pares; por vezes, tratava-se de casamentos reconstituídos e havia entre eles alguns com filhos adotivos. Quanto às entrevistas com médicos (16), foram realizadas durante o mês de janeiro de 2001. Durante dias, compatibilizaram-se as agendas e remarcaram-se os horários, visto que ou as entrevistas

78

eram desmarcadas com frequência ou os horários se inviabilizavam porque as atividades no interior das clínicas ou a distância entre os locais das entrevistas impediam os agendamentos. Sem dúvida essa foi a parte mais estressante e mais dispendiosa do trabalho de campo, sobretudo porque foi realizada em outras cidades. Em Porto Alegre foram realizadas oito entrevistas com médicos dos centros de reprodução assistida Gerar, Fertilitat e Progest. As demais (sete) foram realizadas em SC, nas Clínicas da Mulher e Clinifert. Um dos médicos foi localizado na Clínica Materno fetal, local onde se fazia ultrassonografia, não estando vinculado a nenhuma clínica de reprodução assistida. Ele foi entrevistado porque se revelou, na fala dos casais, uma chave fundamental para entender os processos éticos/bioéticos, já que esteve envolvido em um dos casos em que se colocou a necessidade de redução embrionária e que também acompanhava os exames de ultrassonografia das gestantes que haviam feito reprodução assistida. Terminada a fase de campo (desenvolvida durante os meses de outubro de 2000 e mais intensamente em janeiro e fevereiro de 2001), passou-se à transcrição intensiva do material, já que até aquele momento somente algumas fitas haviam sido transcritas. Havia 70 fitas de 60 minutos para serem transcritas, trabalho realizado de março de 2001 a início de junho. Cada entrevista foi reenviada ao entrevistado, pelo correio ou por e-mail, a fim de que este tivessem o conhecimento sobre o que foi gravado e pudessem acrescentar e/ou modificar algo, se assim o considerassem. Apenas

79

dois casais fizeram contato: um porque não havia entendido o recebimento do material; outro para passar novas informações. Quanto aos médicos, quatro de Porto Alegre pediram para refazer as entrevistas. Isso demandou nova volta ao campo, em julho de 2001. Na primeira vez voltou-se a Porto Alegre para refazer as entrevistas com um médico, da clínica Progest e um do Centro Gerar. Um deles preferiu conversar, e o contato serviu mais para esclarecer dúvidas. Na segunda vez, voltou-se para refazer a entrevista com um médico da PUC/Fertilitat. Um deles enviou suas modificações por email. Nessa ocasião entrevistou-se o médico fundador da Fundação Universitária de Endocrinologia e Fertilidade/ FUEFE/RS, porque ele se revelou, na fala dos outros, a chave para entender a constituição do campo da reprodução assistida no Sul do país. Concomitantemente ao trabalho de campo com as entrevistas, preparou-se o projeto e a documentação necessária para concorrer a uma bolsa de doutorado sanduíche na França. Tendo obtido a bolsa no final de agosto de 2001, (com aprovação da CAPES e CNPq), permaneceu-se em Paris como bolsista CAPES, entre setembro de 2001 e março de 2002. A pesquisadora exerceu suas atividades de pesquisa como estagiária no CERSES/IRESCO, (Centre de Recherche Sens Éthique, Societé no Centre National de La Recherche Scientifique/CNRS/Paris/França), sob a orientação de Simone Bateman. Essa permanência foi fundamental para ampliar a formação teórico-acadêmica, embora, em momento algum, se pensasse em um estudo comparativo entre Brasil e França. O fato é que sem o contato com a bibliografia lá encontrada e sem as

80

entrevistas realizadas com pesquisadores franceses (entrevistaram-se cinco especialistas em procriação medicalmente assistida – como e chama na França –: uma psicóloga, uma psicanalista, um biólogo e dois médicos, uma genicologista e um urologista), sem os quais, certamente, muitas das questões desta tese teriam ficado sem respostas

e

muitos

aspectos

não

teriam

sido

pensados,

redimensionados e até mesmo construídos. As entrevistas lá realizadas constituíram-se em contraponto fundamental para entender o uso e o desenvolvimento das tecnologias no Brasil. A França já acumulava produção teórica e discussão pública sobre o tema de longa data; no caso brasileiro, tudo ainda era bastante incipiente, tratando-se particularmente das ciências sociais e humanas, ou da psicanálise, que na França foi uma das áreas onde se pôde localizar grande número de publicações, somadas as discussões do campo da bioética.

1.4 QUEM SÃO OS CASAIS? A seguir, encontra-se uma breve descrição de cada casal, para dar ideia ao leitor sobre alguns aspectos do perfil de cada um. Os nomes são fictícios a fim de garantir o anonimato (tanto para os casais como para os 16 médicos brasileiros). De antemão pode-se dizer que se trata de casais das camadas médias (mesmo que alguns possam estar mais para classe média baixa, já que as dificuldades econômicas são relatadas pela maioria, menos por dois deles). A maioria tem curso superior, estando majoritariamente na faixa de 33 a 44 anos (apenas dois pares de casais diferentes tinham menos de 30

81

anos e um tinha mais de 60 anos). Todos esses relatos foram colhidos em entrevistas; não consultamos diagnósticos. Casal I – Rosa e Ângelo. Ela tinha 33 anos, ele, 27 anos. Ela tinha três filhos de um primeiro casamento e havia feito laqueadura após o nascimento do terceiro filho; ele sem filhos. Casada pela segunda vez, desejava “dar um filho ao marido”, que embora afirmasse amar os filhos dela, queria ter a experiência de cuidar de um bebê. Ela passou por sucessivas consultas no Brasil. Mas ambos relatam que os tratamentos, além de serem muito caros, eram em cidades distantes de onde moravam, o que os inviabilizava para eles. Diante de circunstâncias de trabalho, ela era do lar e ele era autonômo, mudaram-se para a França, visto que ele era francês, e lá passaram por sucessivos tratamentos. Fizeram sete fertilizações in vitro , e no momento da entrevista ela estava grávida de sete meses. Soube-se depois que havia nascido um menino em Marseille, na França. Foram entrevistados quando estavam de férias no Brasil, visitando sua família. O que distingue este casal dos outros é que todo o tratamento realizado na França foi pago pela Sécurité Social, diferentemente dos outros, que o fizeram em clínicas privadas brasileiras. Como eles têm embriões congelados, iriam.fazer mais uma tentativa de gravidez. Casal II – Mirna e Gilson. Ela tinha 38 anos, era funcionária pública, sem filhos. Ele, com igual idade, funcionário público, sem filhos, ambos tinham ensino superior. A demora em engravidar fez com que ela buscasse tratamento em Florianópolis, gastando muito tempo e dinheiro na clínica onde foi atendida, segundo relatou. Fazia

82

poupança mensal para pagar o tratamento, guardando o dinheiro do seu salário. Também esteve em Blumenau, Curitiba e São Paulo. Depois que mudou para uma segunda clínica em Florianópolis, foi constatada endometriose e obstrução tubária; o marido apresentava baixa mobilidade espermática, relato feito por ela. Após três inseminações artificiais e duas fertilizações in vitro (ICSI) sem resultado, ela, que já procurara tratamentos homeopáticos com os quais não se sentiu muito bem, passou a frequentar sucessivamente um Centro Espírita em Angelina/SC, onde relata ter recebido orações e ter feito uso de garrafadas. Um dia em que estava entrando no Centro Espírita, alguém olhou para ela e disse: “Você está grávida”; ela diz ter tomado um imenso susto. Após voltar para casa, foi a São Paulo a trabalho e resolveu consultar um especialista de lá. Fez o ultrassom e este não confirmou a gravidez. Segundo disse, “continuava

cismada”;

procurou

o

médico

da

clínica

de

Florianópolis e ele pediu exames que deram positivo. Ela, durante a entrevista, atribuiu a gravidez ao tratamento realizado no Centro Espírita. Posteriormente, em contato telefônico com o médico dela (o que havia indicado este casal, ao ser entrevistado), comentou-se o fato. Ele disse: “Pois é, né, dorme com este barulho”, e mudou de assunto. Casal III – Jadi e Beto. Ela tinha 35 anos, trabalhava no lar e, segundo os médicos, não havia nenhuma causa aparente para a não gravidez. Ele tinha 36 anos, era comerciante e também não apresentava nenhum problema aparente (segundo ela, porque ele se recusou a ser entrevistado), ambos com o II grau. Eles tinham um

83

filho adotivo. Ela fez três inseminações artificiais, uma fertilização in vitro em Florianópolis e estava grávida naturalmente no dia da entrevista. Atribuiu a gravidez às suas muitas orações e a chama de presente de Deus; ela era catequista na Igreja Católica e dizia também ter sido um milagre a cura de um hipertireoidismo que, segundo ela, foi adquirido por causa de toda a química ingerida durante o tratamento. Dizia que depois de ter pedido a Deus que a curasse, voltou ao médico e simplesmente não havia mais nada. Ela é a única entre as entrevistadas que relata ter adquirido uma doença durante o uso das medicações para engravidar; insiste bastante no aspecto químico e artificial desse tratamento, diz que o corpo é todo construído e que sua artificialidade só pode fazer mal. Também diz que essa criança não nasce do amor, mas da química. Fizeram poupança especial para pagar o tratamento, que durou dois anos. Casal

IV

– Janete e Geraldo. Ela tinha 33 anos, era

vendedora de loja. Ele, 37 anos, autônomo. Ambos

sem filhos

quando começaram os tratamentos. Agora tinham um filho.A uma fertilização in vitro sem resultados sucedeu-se uma

inseminação

artificial com resultado positivo de gravidez, ambas realizadas em Florianópolis. Diferentemente dos outros casais, ela engravidou por inseminação. Eles quiseram fazer primeiro a fertilização in vitro porque acreditavam que seria mais eficiente. Foram eles que decidiram sobre a escolha do procedimento. Geraldo apresentava baixa mobilidade espermática, Janete tinha problemas hormonais, além de endometriose e obstrução tubária. Consideram que gastaram uma fortuna, pagaram o tratamento com o dinheiro do Fundo de

84

Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), retirado quando ele foi demitido do trabalho. Trataram-se em consultório durante oito anos para

engravidar normalmente, e durante dois anos utilizaram as

NTRc. Ela disse que iria tentar nova gravidez, mas que dessa vez faria inseminação, já que a fertilização anterior não dera resultados. Casal V – Gilda e Ray. Gilda foi, segundo seu relato, uma das primeiras mulheres a ter acesso à reprodução assistida do Estado de Santa Catarina e era também a referência dos demais entrevistados em sua cidade. Através dela pôde-se contatar vários outros casais. Ela tinha 37 anos e era microempresária; ele, 44 anos, revendedor (microempresário). O casal tinha três filhos: o primeiro nasceu depois de quatro fertilizações in vitro, quando os tratamentos ainda eram muito incipientes; o menino estava com 12 anos; os outros foram de sucessivas gravidezes normais. Ela ia a São Paulo sistematicamente para fazer o processo e os controles. Colhia sangue em Santa Catarina e mandava por avião para São Paulo através de conhecidos da empresa do marido; eles também pegavam o material no aeroporto e levavam para a clínica. Ela tinha endometriose e ovários policísticos. O marido, que tinha varicocele, foi submetido à cirurgia. Era o casal cuja situação financeira era a melhor entre os entrevistados, o que lhe permitiu também fazer o tratamento tão longe e superar tantos empecilhos laboratoriais e clínicos em tempo tão inicial da reprodução assistida, mesmo em São Paulo. Trataramse durante quatro anos para obter gravidez normal e ela engravidou após um ano com NTRc. Durante a entrevista ele disse que se fosse para fazer hoje ele não faria mais isto, mesmo amando seu filho, o

85

mais parecido com ele. Ele não faria porque isso é artificial demais e “não se deve forçar as leis da natureza”; diz ter mudado sua concepção de mundo depois que começou a fazer parte da arte Marikari. Casal

VI – Mônica e Andrei. Ela tinha 29 anos, era

professora, e ele 37 anos, administrador de empresas. Ela também fez o tratamento em São Paulo, é da mesma rede do casal anterior. Não engravidava, mas o principal motivo de terem procurado ajuda para engravidar era que Andrei “queria filhos homens”. Ele tinha duas filhas de relacionamentos não conjugais e de mães diferentes, que o haviam “obrigado” a assumir a paternidade depois da comprovação por testes de DNA. Também relata ter tido uma namorada que fez um

aborto na Inglaterra. Como nesse casamento queria filhos

homens, foram para São Paulo, onde julgavam ser possível fazer isso. Mônica não sabia que tinha problemas; isso se evidenciou quando procurou um médico em São Paulo. Os exames revelaram ovários policísticos e trompas aderidas. Ela foi submetida a três fertilizações in vitro. Na segunda houve algum problema de troca de material, problema que foi citado em meias palavras durante a entrevista, porque ambos não quiseram falar explicitamente sobre.o assunto. Apenas disseram que estavam no hotel e a clínica chamou a Mônica para dizer que ela deveria ir até lá porque tinha alguma coisa errada; parece que eles retiraram o inseminado. Na terceira FIV ela engravidou de quatro embriões e deu à luz trigêmeos. Diz ter tomado um susto tão grande quando o médico começou a contar durante um ultrassom, “1, 2, 3”, que perdeu um dos embriões na hora. Ela deu à

86

luz dois meninos e uma menina depois de tratar-se durante um ano com NTRc. No período da entrevista moravam em casas separadas. Casal VII – Francine e Gentil. Ela tinha 43 anos, era do lar, e ele tinha 44 anos, empresário, ambos com ensino superior. O que os levou a procurar tratamento foi a demora para engravidar. Ela tinha 38 anos na ocasião do tratamento. Foi diagnosticada endometriose, o marido “não tinha nada”. Foram realizadas duas ICSI, após as quais nasceu uma filha. O tratamento foi feito em São Paulo, e na ocasião fizeram coleta de dinheiro entre

familiares para

pagá-lo. O

tratamento foi pontual com NTRC, durante um ano. Os casais V, VI, VII e IX engravidaram após tratamento na mesma clínica em São Paulo. Os casais V e VI se conhecem; os casais VII e IX são de outras cidades. Essa entrevista foi realizada com a presença de ambos. Casal

VIII



Tereza e César. Ela tinha 34 anos, era

comerciante e professora com 2o grau. Ele, 35 anos, eletricitário, com superior incompleto, ambos

sem filhos. Ela tinha ovários

policísticos, obstrução tubária e endometriose. Ele, nenhum problema aparente. Ela se submeteu a uma inseminação sem sucesso e a uma ICSI em Florianópolis, igualmente sem sucesso. No momento da entrevista aguardava a reforma da clínica para voltar ao tratamento. Estava se tratando há dois anos.

No dia da entrevista Tereza

chorava muito, o que deixou a situação delicada – nem todo assunto podia ser tratado, pelo cuidado que a situação exigia. Casal IX – Janete e Raul. Ela tinha 42 anos, era analista de sistema. Ele 44 anos, automador comercial, ambos com ensino

87

superior. Eles tinham uma filha e fizeram o tratamento em Curitiba e em São Paulo. Janete tinha endometriose e pouca ovulação; ele, baixa mobilidade espermática. Tratou- se durante mais de três anos em Florianópolis, sem resultados. Ficaram uns três anos em Curitiba e depois.foram.para São Paulo. Ela fez três inseminações, quatro ICSI, e engravidou na quarta tentativa. Tratou-se para obter gravidez normal durante três anos, estava usando NTRc há três anos. Casal X – Luíza e Luiz. Ela tinha 36 anos, era oficial de justiça. Ele tinha 67 anos, americano, aposentado, ambos com ensino superior; ele tinha sete filhos, nos EUA, do primeiro casamento e havia feito vasectomia há 27 anos. Tentou reversão, o que foi inútil. Eles tiveram um filho após duas ICSI. Ela fez tratamento pontual em Florianópolis e engravidou. Essa foi uma das entrevistas realizadas com ambos presentes. Casal XI – Mônica e Nando. Mônica tinha 37 anos, era professora estadual. Nando tinha 39 anos, era microempresário, ambos com ensino superior. Ela apresentava obstrução tubária, endometriose e salpingite. Nando tinha azooespermia, submeteu-se a cirurgia por duas vezes para coletar espermatozoides no epidídimo. Fizeram três ICSI e Mônica engravidou na segunda tentativa, mas perdeu a criança. Adotaram um menino durante a fase da construção da tese. Durante oito anos fezeram tratamentos convencionais e permaneceram dois anos tratando com NTRC, em Ribeirão Preto/SP. Casal XII – Tereza e Kauli. Ela tinha 40 anos, nunca teve filhos, era advogada. Ele tinha 42 anos, era economiário e teve um filho de um primeiro casamento (com quem se encontrava

88

regularmente). Ambos trabalhavam em sistemas de bancos e possuíam ensino superior. Tereza fez duas inseminações em Florianópolis, três fertilizações in vitro e duas ICSI em Curitiba; a terceira ICSI foi realizado em Porto Alegre com o material colhido em Curitiba. Foram feitas também sete tentativas sem obtenção de óvulos ou com óvulos considerados ruins. Engravidou na segunda ICSI, eram trigêmeos e ela os perdeu. O marido tinha oscilação espermática. Trataram-se durante cinco anos e estavam usando NTRc há dois anos. Estavam sem filhos. Casal XIII – Simone e Armory. Ela tinha 44 anos, era assistente administrativa, possuía 2º grau. Armory tinha 32 anos, era gerente administrativo, com ensino superior. Simone tinha um filho de 25 anos de um primeiro casamento. Armory não tinha filhos. Ela havia feito laqueadura e tentou reversão em Florianópolis, mas não engravidava;

o

marido

não

relatava

nenhum

problema.

Ambos.trataram-se em Blumenau e Florianópolis, e Simone fez os últimos tratamentos em Porto Alegre. Trataram-se durante seis anos, fizeram uma inseminação sem sucesso em Florianópolis e uma fertilização in vitro em Porto Alegre, da qual nasceu uma menina. Segundo relatou, ela tinha óvulos congelados e não sabia o que iria fazer com eles. Casal

XIV

– Séfora

e José. Ela

tinha 35 anos,

era

comerciária. José tinha 40 anos, era comerciante, ambos com ensino superior e sem filhos. Ela se tratava há anos em Florianópolis. Ela não tinha nenhum problema aparente; ele tinha varicocele, segundo ela. Durante a entrevista, ele disse que não tinha nada. Ela fez duas

89

inseminações artificiais. Para ela, esse tratamento era extremamente caro; alegava que não tinha a mesmas condições das pessoas que ela conhecia e que passaram por isso. Casal XV – Munique e Chico. Ela tinha 34 anos, era bancária. Ele tinha 35 anos, era dentista, ambos com ensino superior. Ele apresentava azooespermia e fez tratamento. Ela tinha ovários policisticos. Fizeram uma inseminação artificial em Florianópolis e uma

ICSI em Porto Alegre, da qual nasceram trigêmeos, dois

meninos e uma menina, de seis embriões transferidos. Permaneceram quatro anos em tratamento, antes de tentar as NTRc. Ela também relatou ter recebido muito apoio em orações de um Centro Espírita de Florianópolis. Este foi o único casal que se deparou com a necessidade de decidir sobre a redução embrionária quando nidaram três embriões. Eles mantiveram os três,

mesmo representando

acentuado risco de vida para a mãe e para as crianças. Nasceram os três, mas foi um processo muito complicado, tanto

durante a

gestação, com sucessivas internações da mãe, quanto após o nascimento de trigêmeos prematuros, que passaram mais de um mês em terapia intensiva. Entrevista realizada com ambos presentes. Casal.XVI.– Salete e Luiz. Ela tinha 27 anos, era auxiliar de administração. Ele tinha 33 anos, era funcionário público estadual, ambos com ensino superior. Ela apresentava endometriose e ele varicocele. Fizeram tratamento em Curitiba e em Florianópolis. Realizaram uma inseminação, e Salete engravidou depois de uma fertilização in vitro em Florianópolis; eles têm um menino. Trataramse durante quatro anos.

90

Casal XVII

– Anita e Ezequiel. Ela tinha 39 anos, era

psicóloga e professora. Ele

tinha 34 anos, era microempresário,

ambos com ensino superior. Anita apresentava ovários policístico e endometriose. Tratou-se durante sete anos em Florianópolis, onde fez nove inseminações artificiais. Depois foi para Porto Alegre, fez uma ICSI e engravidou de um menino. Na verdade foram feitas FIV e ICSI no mesmo ciclo. Hoje considera um absurdo ter feito nove inseminações e pretendia fazer mais uma FIV/ICSI para tentar outro filho. Entrevista realizada com ambos presentes. Casal

XVIII – Tânia e Dito. Ela tinha 39 anos, era

professora. Dito tinha 40 anos, era auditor fiscal, ambos com ensino superior. Tânia tinha endometriose e aderência tubária. Dito tinha dois filhos adotivos do primeiro casamento. Ela se submeteu a duas fertilizações in vitro em Porto Alegre, mas sem sucesso;

havia

perdido um bebê após longo tratamento para endometriose feito em Campinas/SP. Estiveram em tratamento durante dois anos.

Não

tinham filhos, e Tânia, que tinha embriões congelados em Porto Alegre,

pretendia retomar o processo quando estivesse “menos

estressada”, nas palavras dela. Casal XIX – Sônia e Mário. Ela tinha 33 anos, era professora. Ele tinha 34 anos, era bancário, ambos com ensino superior. Tinham uma filha adotiva, que havia sido deixada na porta de sua casa. Mario tinha varicocele. Fizeram duas inseminações artificiais e uma fertilização in vitro em Florianópolis, e Sônia engravidou; tiveram duas meninas gêmeas. Sônia havia perdido um feto aos três meses, de uma gravidez normal. Depois passou por cirurgias. Trataram-se

91

em Blumenau, Curitiba e Florianópolis. Trataram-se durante quatro anos e na ocasião da entrevista Sônia ainda pensava em ter filhos, embora Mário diga claramente na entrevista que não pode ter uma estrutura maior para tantas crianças. Entrevista realizada com ambos presentes. Casal XX

– Tamar e Tomás. Ela tinha 34 anos, era

professora, com ensino superior. Ele tinha 40 anos, era funcionário público, com 2º grau Tamar tinha endometriose e aderências tubárias. Tomás

tinha

baixa

mobilidade

espermática

e

imaturidade

morfológica dos espermas. Fizeram duas inseminações e três ICSI em

Florianópolis. Tamar engravidou na terceira ICSI e tem um

menino. Ela esteve uma vez em São Paulo para tentar FIV através da coleta de óvulos sem estimulação ovariana, uma das técnicas possíveis, mas o médico não a recomendou para o seu caso, visto que ela tinha obstruções tubárias e outros fatores impeditivos da ovulação. Estavam se tratando há cinco anos e ela não queria mais filhos.

1.5 SOBRE AS CLÍNICAS E AS TRAJETÓRIAS MÉDICAS Quanto às clínicas contactadas, dois dos serviços estavam no interior dos centros hospitalares/universitários; os demais são particulares e se utilizam dos hospitais particulares e da rede pública de saúde quando precisam dos exames laboratoriais ou de eventuais internações. Obstetras,

ginecologistas,

biólogas,

em alguns casos,

urologistas, eram os grupos mais representativos dos especialistas

92

ativamente envolvidos nos programas de tratamento, a maioria em grau incipiente nas pesquisas, embora alguns se destacassem de longa data com pesquisa em reprodução humana em geral. Entrevistaramse profissionais de seis clínicas cujas atividades começaram em tempos bem díspares; nelas havia profissionais com investimento longo em pesquisa, embora a clínica onde trabalhavam, nem sempre o tivesse. O primeiro bebê da clínica FUEFE/PoA, por FIV, nasceu no início da década de 1990, precisamente em 1992; o Fertilitat/PUC/ PoA, que se denomina pioneiro nos resultados de FIV, foi fundado em 1991, embora o primeiro bebê de proveta de sua equipe tenha nascido em fevereiro de 1989 no laboratório do Hospital São Lucas/PUC/RS. Era filiado à Rede Latino Americana de Reprodução Assistida desde 1993 e acreditado pela mesma organização em 1997; o Gerar também figurava entre as clínicas maisantigas; foi fundado no Hospital Moinhos de Ventos, em 1993, e também estava filiado à Rede Latino Americana de Reprodução Assistida. Em SC, as atividades em FIV eram recentes, embora um dos médicos já praticasse inseminação artificial em sua clínica há anos. As demais clínicas eram muito recentes, tinham entre um e dois anos. Eram instituições que faziam grande esforço para conquistar credibilidade e ganhos “físico-estruturais”, no sentido de investimentos técnicos e laboratoriais. Quanto aos médicos:

1) Egídio trabalhava com NTRc havia dois anos em SC, na Clínica Procriar/Blumneau/SC.Era casado, formado.em. ginecologia. e obstetrícia, e especialista em reprodução

93

humana. A clínica

de reprodução assistida onde

trabalhava tinha mais ou menos dois anos e ele fez sua formação em contato com outras clínicas no Brasil. 2) Prado trabalhava com ginecologia há dez anos em Porto Alegre, na Clínica Progest; com reprodução assistida, havia dois anos, tempo de existência da clínica. Casado, com formação em ginecologia e obstetrícia estudou em Porto Alegre, fez estágio na FUEFE/PoA. 3) Elton trabalhava em ginecologia há dez anos, NTRc havia dois anos, na Clínica Blumenau/SC.

Era

casado,

com

e com

Procriar, em formação

em

ginecologia/obstetrícia e reprodução humana, também trabalhava com laparoscopia e esterioscopia. Estudou em São Paulo. 4) Antony trabalhava em ginecologia havia dez anos na PUC/RS. Era casado, com formação em ginecologia, obstetrícia, ultrassonografia e medicina fetal pela Faculdade de Medicina da PUC/RS. Estudou no Serviço de Medicina Fetal do King’s College Hospital, Londres, fez diversos cursos em outras clínicas em São Paulo. 5) Rosita trabalhava com NTRc havia dez anos, no Fertilitat/POA Casada, com formação em ginecologia, embriologia e reprodução humana, estudou na Itália, na Universitá della Sapienza di Roma e na Universitá Degli Studi di Bologna. Era professora da PUC/RS.

94

6) Sandra trabalhava com NTRc havia nove anos em POA no gerar. Solteira, com formação em microscopia ótica/bioquímica de análises clínicas e reprodução humana pela UFRGS,

estudou

posteriormente na

Argentina, no Instituto Fecunditas; fez estágio em reprodução humana com o Dr. Roger Abdelmassif, em São Paulo, e curso de diagnóstico implantacional na Clínica Fertility, em São Paulo. 7) Dr. Salvador trabalhava com ginecologia, desde 1976, no Gerar. Formado em medicina pela UFRGS, desenvolveu trabalhos pioneiros em medicina fetal, dos quais, segundo o site da clínica31, destacava-se pelo tratamento das pacientes isoimunizadas com transfusão intravascular, pioneiro no Brasil. Relata ter sido o primeiro a detectar a ovulação pela ultrassonografia em Porto Alegre, o que colaborou para o desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida nessa cidade. Casado, com formação em ginecologia/obstetrícia e reprodução humana. 8) Amanda trabalhava com ginecologia havia vinte anos e com NTRC há dez anos, no Clinifert, com FIV/ICSI há três anos em Florianópolis. Antes só fazia inseminação. Estudou em São Paulo, era casada, com formação em ginecologia/obstetrícia e reprodução humana. 9) Rita trabalhava com NTRc havia nove anos no Centro Gerar/POA; estudou medicina na UFRGS e fez residência 31

Disponível em: . Acesso em: maio 2001.

95

em ginecologia e obstetrícia no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto/SP. Doutorou-se em medicina pela Ludwig Maximiliam de Munique, na Alemanha. 10) José trabalhava com medicina fetal na Materno Fetal/FL havia dez anos, 2 anos com NTRc. Era casado, com formação em ginecologia/obstetrícia e medicina fetal. Foi entrevistado porque, além de ele mesmo ter vivido esse processo, tornou-se personagem fundamental em relação ao problema de redução embrionária. Estudou no Brasil. 11) Santos relata que trabalhava fazia dez anos com ginecologia/obstetrícia e com reprodução humana e infertilidade e que

há dois anos, estava na Clínica

Procriar/BL, que tinha dois anos de existência. Estudou no Brasil e no exterior (SIC). 12) Josué trabalhava com NTRC no Centro Fertilitat havia oito

anos e POA. Casado, com formação em

ginecologia/ecografia e infertilidade. Estudou no Brasil. Fez

mestrado em Clínica Médica da PUC/RS e

trabalhava no serviço de ginecologia do HSL/PUC/RS. 13) Afonso relata que trabalhava com NTRc fazia 16 anos. Casado, com formação

em ginecologia/obstetrícia

e

endocrinologia da reprodução, estudou em Portugal. Era professor Universitari

da PUC/RS e

do

Felow

Descens, Barcelona e

Complutense de Madrid, Espanha.

no

Instituto

na Universidad

96

14) Petrus trabalhava em ginecologia desde 1984, mas com NTRc havia dois anos, na Clínica Procriar, que tinha dois anos. Casado, com

formação em ginecologia,

obstetrícia e reprodução humana, era professor no curso de medicina da UFSC. 15) Marina, bióloga, trabalhava com NTRc havia três anos na Clinifert/ FL. Solteira, com especialidade em genética médica e reprodução humana, estudava em São Paulo. Fez seu aprendizado com o Dr. Roger Abdelmassif, em São Paulo. A clínica de reprodução em que trabalha tinha dois anos. 16) Alcides trabalhava com reprodução humana havia 32 anos. O primeiro bebê de FIV desse centro é de 1992. Sua formação é em ginecologia/ endocrinologia e reprodução humana. Foi um dos pesquisadores do Sul a introduzir as medicações anticonceptivas, e grande parte dos médicos que trabalham com NTRc foram formados no centro sob sua direção.

97

CAPÍTULO 2 GÊNERO E SEXO: TECNOLOGIAS REPRODUTIVAS CONCEPTIVAS FAZENDO CIÊNCIA E GENEREFICANDO CORPOS 2.1 SEXO E NATUREZA: REFUTAÇÃO DAS BASES NATURAIS DA BICATEGORIZAÇÃO POR SEXO Consideradas as questões anteriores, segue-se agora com as

teorias

de gênero

assumidas

como

uma

produção

interdisciplinar necessária à compreensão da reprodução assistida, da paternidade, da maternidade e da filiação,

no

contexto das

NTRc, foco central deste livro. Dialoga-se, para tanto, com os vários campos do conhecimento e da experiência relacionados com as NTRc, e apresenta-se a categoria gênero,

tanto

complexas circunstâncias materiais, institucionais, relacionais referidas a

esse

em suas

históricas e

contexto, quanto numa perspectiva

metodológica e analítica. Esta proposição não tem o intuito de dualizar a categoria, mas pragmática agregada

de

permitir a diversidade analítica e

ao próprio conceito, em se tratando de

contextos e relações que se mantêm vinculados a uma ordem simbólica universal, mas que

também se apresentam na sua

complexa especificidade. O contexto das

NTRc assimila e

desestabiliza as bases que constituem a própria reprodução da espécie humana, e permite pensar a dicotomia que compõe as categorias sexo e gênero,

epistemologia que as forjou,

ainda

98

que, no caso desta pesquisa, a experiência dos casais e médicos não tenha chegado ao ponto de desestabilizar a fixidez do sexo que é construída em bases binárias, sob a separação dicotômica entre cultura e natureza, onde a cultura é tomada com sua ação sobre a natureza, embora, permita pensar a estabilidade/instabilidade da relação entre os gametas. A perspectiva analítica gênero que se assumiu, faz interagir ordens

simbólicas,

práticas

e

teóricas

relacionadas

à

sua

contextualidade e à sua relacionalidade quando se trata de elementos tecnológicos, interagindo com as representações sobre paternidade, maternidade, filiação e conjugalidades partilhadas socialmente. A perspectiva empírica considera que o contexto relacional das NTRc problematiza a fixidez do sexo e do gênero e a toma em construção cultural,

histórica

e

sua

contextual. Desestabiliza-se,

portanto, também a fixidez que se expressava pela diferença dos corpos, como construída a partir da relação entre dois sexos e dois corpos, já que pode entre corpos

haver

iguais,

partilha de materiais reprodutivos

e a relação reprodutiva intermediada pela

tecnologia, pode dispensar a relação sexual para esse fim, bem como, aceitar

gametas

iguais

em um mesmo processo.

O

embrião pode

ser concebido em laboratório, e os gametas –

óvulo e espermatozoide – podem ser obtidos sem relação sexual, com dois ou vários corpos (doadores) envolvidos, e com genitálias iguais, ou diferentes. O procedimento de obtenção dos gametas, no caso da mulher, é realizado pelo médico; e no caso dos homens, pode ser realizado em atos masturbatórios, ou pelo médico, com

99

microcirurgia. Atos desenvolvidos por cada indivíduo do par do casal, interessado em recolher seu próprio sêmem, ou por vários homens, que podem colaborar entre si sem se conhecerem, já que no Brasil existe a prerrogativa do anomimato da doação, situação que é intermediada pelo médico. Ainda pode tratar-se de casais homossexuais que, juntos ou não, recolhem o sêmem que desejam, podendo misturá-lo no mesmo processo para se fazerem filhos, ou então, quando o próprio médico se encarrega desse procedimento em qualquer circunstância. Há ainda mulheres que partilham óvulos, intermediadas pelo médico, processo que pode resultar também em presença de outros profissionais, que também os misturam e os trocam, ou os rejuvenescem com núcleos uns presente alguns

dos outros. No

procedimentos já são realizados com partes

enzimáticas de óvulos. Ainda há a possibilidade da sexagem de embriões, na qual se escolhe seletivamente gametas X ou Y para se fazerem

machos e/ou

corresponder um

fêmeas

sob

a expectativa de fazer

determinado sexo a um

determinado gênero

(meninas e meninos). Poder-se-ia dizer que isso não muda a ideia referida a corpos diferentes produzindo gametas diferentes, e em certa medida a afirmação corresponderia à realidade; mas a forma

como

o processo se constitui agregou uma partilha de

corpos e de novos sentidos para se obterem gametas, por vezes de diversos corpos, em que pode estar interagindo a semelhança e não a diferença. Do ponto de vista socioantropológico, essa prática vai de uma perspectiva coletiva institucionalizada sobre o que se

100

pode fazer com a tecnologia e com os materiais corporais, a uma perspectiva coletiva e individual sobre relações sociais referidas à filiação, em que ocorre a troca de células germinativas, que é diferente daquela da prática convencionada, pelo menos no que diz respeito à reprodução, já que em muitos estudos etnográficos vê-se a partilha dos espermas para outros

fins, e até fins reprodutivos,

porém, prioritariamente, para mediar relações sociais e de aliança. No caso da sociedade ocidental, no sistema tradicional, a filiação era um reconhecimento voluntário de uma criança; agora, fazem-se possíveis rejeições por razões genéticas, prevalecendo ou não o reconhecimento do fecundador real ou fictício, que pode não ter

vínculos

biológicos,

e ocorrem apagamentos das razões

genéticas para se obterem vínculos sociais, principalmente na doação de gametas. Os vínculos reprodutivos podem também, por sua vez, reportarem-se a outras médico, pelo menos

práticas sem o interviente laboratorial e no que diz respeito às viabilidades éticas,

simbólicas e sexuais da adoção ou do parto anônimo, atualmente. Essas complexas relações convivem junto a um campo de possibilidades múltiplas. No laboratório, com a mistura de materiais corporais submetidos à

intervenção

de

elementos

biológicos, cirúrgicos, genéticos e moleculares, entre

químicos, outros,

desloca-se a compreensão sobre a diferença dos sexos pautada na troca de gametas por meio da relação sexual, como condição para

a reprodução humana, para

a reprodução biomédica e

tecnológica. A introdução dessas tecnologias muda a compreensão reprodutiva que se expressava na relação sexual entre genitálias

101

diferentes e nos materiais que vinham de corpos diferentes pela mesma relação sexual. Dessa relação advinham espermatozoides e possíveis

embriões, na sequência de

um

encontro entre

espermatozoides e óvulo, isso porque os óvulos só eram acessados após o processo do ato sexual, e desse encontro dependia o surgimento dos embriões. O processo agora pode passar por verdadeiras inversões, exigindo muitas vezes a participação de vários corpos,

com várias e diferentes trocas

cronologia. Antes

e de mudanças na sua

a existência de espermatozoides na mesma

temporalidade do ato sexual era condição para fecundar óvulos cujo processo também deveria coincidir com o processo da ovulação. Agora se pode ter um óvulo e um espermatozoide que já estejam criopreservados há algum tempo, e ambos colocados em ação, um com

o outro, por meio dos caminhos laboratoriais; ou um

espermatozoide à espera de um óvulo que ainda virá, ou viceversa.

Além disso, pode-se utilizar apenas células imaturas de

espermatozoides, pode-se fazer embriões, pelo menos de animais, somente com óvulos, além de ter embriões construídos no mesmo processo e tempo sendo transferidos em momentos diferentes. Sem contar que se o útero artificial vingasse, então o processo inteiro estaria fora do corpo. Essa divisão em dois sexos, se focada pelo interveniente tecnológico, é compreendida nos valorativa que

termos de

uma

mudança

começa a apresentar cissuras, que não atingem

somente a categoria sexo, mas, exatamente por causa dela, atingem a epistemologia que a construiu, na dicotomia sexo/gênero, na qual

102

sexo era fixo e gênero

era passagem cultural. A relação

compreendida como uma intervenção da cultura sobre a natureza (sexo) e da dominação tecnológica sobre as bases materiais fixas e naturais está desestabilizada. Razão que se deve ao fato de que o que se pretende como fixidez da natureza, desde esse lugar, é uma

construção promovida pelas engenharias com critérios de

misturas e partilhas de células e de substâncias: corporais, genéticas, moleculares e/ou

químicas. Joga-se

com níveis

múltiplos de

adequação para a construção corporal da reprodução referida à necessidade de gametas. A possibilidade desse jogo, do ponto de vista da relação entre sexo e gênero, vem confirmar o que já se sabia: que é possível mexer com as ideias sobre a fixidez do sexo. Essa dinâmica reporta a outra questão que já afirmava os diferentes níveis de diferenciação sexual nos corpos e até a incompatibilidade entre os sexos presentes no mesmo corpo, no que se refere à relação entre a genitália, os genes e os cromossomos, sem desconsiderar que poderiam surgir outras complexidades se estivéssemos no campo da relação entre gênero e desejo sexual. O material necessário à reprodução humana pode vir de vários corpos, que já não são tão dicotomicamente separados no interior de uma relação a dois, e que agora se pode somar um agir a três ou a quatro, para agrupar óvulos ou espermatozoides necessários à reprodução, e até obter um útero emprestado, ou artificial. Os corpos e a complexidade das relações neles envolvidas carregam-se de indagações e de ambiguidades em níveis múltiplos. Essas novas possibilidades permitem colocar em questão a fixidez da

103

natureza e pensá-la no contexto das relações e das tecnologias que podem refazê-la,

substituí-la e reproduzi-la, e, desse modo,

desconstruir também a fixidez da categoria sexo com o uso das técnicas de engenharia genética, mas também a epistemologia histórica e cultural que a construiu. A consequência dessa nova

realidade é que

outros

conceitos são refocados e até destroçados. Por isso, trata-se do gênero

como categoria empírica e analítica, para colocá-lo em

perspectiva sempre que necessário, e até mesmo para refundá-lo, quando a base que o constituiu sofre alteração e provoca tensões, como

já ocorre

constantemente nos

estudos de matrizes

estruturalistas e pós-estruturalistas. O

conceito analítico gênero

contrapor

foi

construído para

se

à categoria sexo, que era compreendida como uma

categoria física nos corpos, e que a partir de sua leitura em geral vinculada ao determinismo biológico, demarcava-se homens e mulheres fisicamente, definindo-se também seu status, sua função e seu papel

social

de modo

diferente e desigual. Sua base foi

construída sobre a dicotomia de sexo no corpo e gênero na cultura; pertencendo sexo à natureza, todo o resto estava na cultura. Diante das NTRc, as bases biológicas, como gametas,

ao útero

reprodutivos,

são

referência aos

e à estabilidade dicotômica dos materiais componentes

da

categoria

(heterossexual), constituída muitas vezes pelo

casal

fértil

binário homem e

mulher e pela leitura sobre a diferença entre os corpos, embora esses dualismos possam se cindir por meio de doadores de materiais

104

reprodutivos, que introduziriam a semelhança dos gametas, ou por outros elementos constituidores da materialidade dos corpos em dois sexos, ou mais, conforme já exposto. Portanto, se a fixidez do sexo é questionada, a natureza fixa, também o é. O que colocaria imediatamente a pergunta já formulada por Butler

(2003): para

que gênero como construção cultural, se o próprio sexo não é mais fixo? Butler argumenta, ao contrário de precipitadamente responder: “gênero não faz mais sentido”, é preciso dizer que olhar para a desconstrucão da categoria sexo só agrega ao gênero a confirmação daquilo que ele sempre expressou. Desse modo, as realidades culturais e materiais constroem-se na

história e nas

constroem- se também a materialidade dos corpos edições,

relações,

por meio de

recortes, assimilações, modificações genéticas, partilhas

moleculares, assim como se constroem linguagem e instrumentos tecnológicos. Ao contrário de parecer que não existe mais razão de ser para gênero, conforme já mostrava Butler, reencontra-se agora um novo fôlego que enseja retomar, por causa da desconstrucão da fixidez da natureza, a análise das novas relações que essas práticas em reprodução assistida e em engenharias genéticas permitem pensar. Isso diz respeito não apenas ao campo das performances corporais, da sua materialidade, no seu amplo sentido, mas envolve as relações tecnológicas e sociais engendradas. Olhar esses fatos pela perspectiva de gênero oferece elementos capazes de mostrar mudanças e permanências para o próprio campo de estudo, e agrega novas interfaces e novas ambiguidades ao conceito. Desse modo, a

105

própria categoria analítica gênero refaz-se continuamente e ganha, ela própria, novos conteúdos e novas possibilidades explicativas, compreensivas, descritivas e relacionais, para cada nova situação no leque das possibilidades relacionais genéticas e tecnológicas. Os estudos de gênero têm uma tradição interdisciplinar que se desen- volveu no interior de um processo

de desconstrução

teórica, em vários campos disciplinares. Nesse sentido, considerese o modo pelo qual o conceito de gênero foi se constituindo, suas bases teóricas e a abrangência de suas dimensões conceituais. Desnaturalizar hierarquias de poder baseadas nas diferenças de sexo tem sido um de seus eixos centrais, segundo Citeli (2001). Estabelecer a distinção entre os componentes – natural/biológico, em relação a sexo e social/cultural, em relação a gênero – foi, e continua sendo, um recurso utilizado pelos estudos de gênero para destacar essencialismos de toda ordem que há séculos sustentam argumentos biologizantes para desqualificar as mulheres, corporal, intelectual e moralmente. (CITELI, 2001, p. 132).

Essas

afirmações, vinculadas à dinâmica do

poder

referida por Citeli na citação acima, produzem um olhar para o centro do processo de compreender como ocorrem essas ligações entre os campos das ciências sociais e das ciências biológicas. Situação que se coloca particularmente no que diz respeito aos conceitos de natureza (sexo) e cultura (gênero), bases a partir das quais,

no

primeiro momento desses

estudos, constrói-se um

entendimento de gênero e sexo como categorias dicotomizadas, em que

o feminino é apresentado como

masculino próximo da cultura.

próximo da natureza e o

106

Sexo, desde então, foi muitas vezes atribuído ao biológico, à natureza feminina ou

humana, sempre como

fixo

e estável,

enquanto gênero, atribuído à cultura, representaria as forças sociais, políticas e institucionais que moldam os comportamentos e as constelações simbólicas do masculino e do feminino. O problema dessa posição é que, tendo-se partido da ideia de que sexo referiase à anatomia e à fisiologia dos corpos, construiram- se muitas interpretações explicativas para as desigualdades sociais e para as diferenças, tanto cognitivas como comportamentais, entre homens e mulheres, que eram de base essencializada. Muitos, a partir de abordagens deterministas, afirmavam que essas diferenças estavam dadas no cérebro, nos genes, ou eram produzidas por hormônios, ou por sua ausência, e que, portanto, eram parte constitutiva do ser ontologizado, perdendo-se desse modo as relações com a cultura como linguagem engendradora dessa leitura sobre o ser e sua essencialização.

De outro

lado,

quando da tentativa de

desnaturalização desse determinismo, também se caía, por vezes, em

uma dinâmica quase

mecânica da cultura, contraposta, ao

biológico no interior de um padrão funcionalista, ou de base dual, vinculada frequentemente à teoria dos papéis sexuais, o que lhe dava uma dinâmica linear

universal, desconsiderando as

possibilidades de muitas matizes dentro dos próprios contextos culturais analisados, uma vez que, também, a interpretação era produzida pela comparação entre

sistemas culturais diferentes,

perdendo-se as dinâmicas internas à própria cultura.

107

Desconstruindo essas abordagens, os estudos feministas foram solidi- ficando o entendimento de que as diferenças nos corpos, tanto nos masculinos como nos femininos, não podiam ser tomadas como espelho da natureza e que se fazia necessário atentar para a carga de valores que a ciência carregava e os contextos relacionais onde estas diferenças se formaram. Tratava-se de rejeitar vigorosamente as explicações biológicas concernentes à natureza humana e, particularmente, à mulher, superando a ideia de que a sua biologia era a marca da sua incapacidade para desempenhos sociais na vida pública e a marca de sua vocação natural para os cuidados da casa e da prole. Contudo, os estudos feministas, embora fundamentais e de inegável mérito histórico, não foram os únicos a questionar os pressupostos científicos que se pretendiam neutros e objetivos, mas se desenvolviam carregados de juízos de valor, expressos linguagens

analógicas

e

metafóricas

denotando

em

posições

marcadamente ideologizadas e políticas. Estudos primatologia,

da

filosofia

de biólogas,

Oudshoorn (2000),

Kraus

da

ciência,

nesse

caso

da

história,

da

feministas, como

(2000), Lowy (1995), Bleier (1984),

Martin (1999), Fausto-Sterling (1992, 2000) e da sociologia

do

conhecimento – entre eles os de Latour (1994), questionaram os pressupostos de objetividade, neutralidade, transparência, verdade e universalidade que sustentavam e sustentam em grande medida o método científico. Latour, por meio de seu conceito de tradução, busca compreender como o complexo tecnocientífico, que ele chama

108

de tecnociência, e o corpo social redefinem-se e reconstroem-se simultaneamente. Afirmando que precariamente no

todos

nós

“interior das

somos

híbridos, instalados

instituições científicas, meio

engenheiros, meio filósofos, um terço instruídos, sem que o desejássemos”, Latour nos diz que “[...] nosso meio de transporte é a noção de tradução ou rede. Mais flexível que a noção de sistema, mais histórica que a de estrutura, mais empírica que a de complexidade, a rede é o fio de Ariadne destas histórias confusas” (LATOUR, 1994, p. 9). Bleier (1984), bióloga feminista, refuta os argumentos centrados nas pretensas diferenças de sexo, herdadas da estrutura do cérebro

e da lateralização cerebral. Enfatiza a plasticidade e a

receptividade do cérebro humano a estímulos do meio ambiente e o fato de que não há diferenças de sexo claramente delineadas, seja nas habilidades verbais ou visual-espaciais. Poder-se-ia debulhar aqui uma série de críticas que foram sendo contrapostas ao que significou essa categorização em termos de fixação no argumento biológico, mas, segundo Citeli (2001), é na

primatologia que

a contestação das metáforas de gênero

encontra seu ponto mais alto. Algumas autoras, usando o suporte sociobiológico, alteraram

os

instrumentos de observação e o

conteúdo dos estudos sobre primatas, modificando o entendimento de que as fêmeas foram meras espectadoras da evolução, permitindo, desse modo, contrapor a versão “mulher coletora” à ideia de

109

“homem caçador”, o que causou enormes mudanças e recolocou a mulher no seu papel ativo (SCHIEBINGER, 2001). Para Lowy (2000), os trabalhos dos historiadores da ciência constituem um novo domínio de investigação que se centrou sobre a construção e a naturalização das diferenças entre sexo e gênero. A título de exemplo, ela reporta-se a autores que utilizamos, como, Laqueur (1994), ressaltando a história das representações do sexo biológico; a Lorraine Daston (1992), ressaltando a naturalização da inferioridade feminina nos séculos XVIII e XIX; ainda a Londa Schiebinger (1989), sob o foco problematizado por ela, relativo às consequências da exclusão das mulheres da pesquisa nas ciências da natureza; a Cyntia Russet (1989); a Mary Poovey (1990); a Mary Jacobus (1990);

e

a

Ornella

Moscuci (1989),

sobre

os

pressupostos da existência de uma natureza feminina impregnando a ciência e a medicina do século XIX. Nesse conjunto, lembra-se ainda de Evelyn Fox-Keller (1990, 1992, 1999), sobre os efeitos da utilização de metáforas masculinas na ciência contemporânea. Nesse contexto, a percepção da ciência como produto de uma atividade essencialmente masculina fixa-se preocupações

feministas.

Essa

permanência

no

centro das da

dualidade

masculino/feminino na sociedade e a dominação praticamente universal do masculino na construção do saber científico, entendido como objetivo e universal, legitimam sua visão, não somente da natureza humana, mas de toda natureza (HÉRITIER, 1996). Nos EUA, durante os anos 1950 e 1960, essa reflexão teria

sido reforçada pela

existência do movimento negro,

110

segundo Lowy

(2000). Nos outros

feminista retomou alguns

aspectos

países,

o movimento

da luta anticolonial. Essas

posições acabaram por inspirar uma reflexão sobre a noção de universalidade, da qual é exemplo o saber médico e biológico utilizado para

o subjugamento das mulheres. Esse aspecto

foi

desenvolvido no Brasil, entre outras autoras, por Rodhen (2001, p. 147). O mesmo se aplica à racionalidade e à objetividade, que definem a ciência como a única maneira racional e eficaz de aceder ao conhecimento e de agir sobre

o mundo. Desse pressuposto

conclui-se que a natureza é universal, estável, obediente e imutável em suas leis. Se questionada pelos historiadores da ciência, essa visão pode ser vulnerabilizada, ao mesmo tempo em que revela o modo como a ciência fabrica

e difunde seus instrumentos

e

práticas e como ela se universaliza. Olhar para dentro da ciência faz saber que não é porque os conhecimentos são universais que eles circulam, eles são universais porque circulam, conforme afirma Latour

(1995).

Desse modo,

também os fatos médicos, que

interessam sobremaneira por se tratar de reprodução assistida, “não podem ser mais do que parciais e dependentes do ponto de vista dos praticantes que os estabelecem” (FLECK, 1927 apud LOWY, 2000, p. 147). Em relação às criticas feministas, importa também dizer que mesmo se todas

se empenham em desconstruir desigualdades,

introduzir mudanças estruturais na cultura, nos métodos e conteúdos da ciência, nem sempre se chega a bom termo, e nem todas as

111

posturas adotadas nessas abordagens são homogêneas. Schiebinger (2001), explorando as discrepâncias entre o feminismo liberal e o feminismo da diferença, afirmava que o liberal, também chamado de feminismo científico, empirismo feminista, ou de feminismo igualitário, tornou-se mais visível nos EUA, na década de 70 do século

XX.

Sua tendência a ignorar ou mesmo

a negar

as

diferenças entre homens e mulheres, constituiu seu principal problema. Para as liberais, semelhança e assimilação seriam

as

bases para a igualdade entre os dois gêneros, de modo que as mulheres deveriam ser e agir como os homens. Outro problema foi incluir as mulheres na ciência canônica, sem qualquer esforço para modificá-la. Nos anos 1980, as mulheres caminharam rumo ao feminismo da diferença. A diferença em questão foi compreendida como desigualdade cultural, não como diferença biológica. Tentou-se, dessa

vez, recuperar

as qualidades que a sociedade ocidental

desvalorizou por serem femininas, tais como a subjetividade, a cooperação e a empatia. Elas também defendiam o argumento de que, para as mulheres alcançarem igualdade na ciência, deveriam ocorrer mudanças nas teorias

e laboratórios, nas prioridades e

programas de pesquisa, nas aulas e nos currículos. O grande valor do feminismo da diferença em relação à ciência tem sido o de refutar a ideia de que ela é neutra em relação às questões de gênero. Analisa como os valores atribuídos às mulheres foram

sistematicamente excluídos do saber científico e que as

possibilidades de participação e reconhecimento entre

homens e

112

mulheres foram

incorporadas à produção e à estrutura do

conhecimento de modo desigual. Para

Schiebinger (2001), no entanto, há dois

grandes

problemas nesse feminismo: a visão reducionista, que toma a mulher como universal e que desconsidera a diversidade de classe, orientação sexual, geração e nacionalidade da população feminina, por

um

lado,

e a romantização dos valores

tradicionalmente

associados à mulher, que acaba por não permitir a discussão dos estereótipos masculinos enquanto práticas dominantes e lugar do poder em uma sociedade androcêntrica, por outro. Na década de 1990, as características femininas foram vistas

como fenômenos

culturais

específicos, ocorrendo

uma

generalização segundo a qual as mulheres teriam maneiras de saber distintas, maneiras que supostamente foram excluídas das práticas e das formas dominantes de ciência. “Os escritos de Evelyn Fox Keller sobre a citogeneticista Bárbara MacClintock foram tomados como prova de que as mulheres tinham seus próprios métodos distintos de pesquisa” (SCHIEBINGER, 2001, p. 28). Conforme Oudshoorn (2000), concordando de certo modo com Schiebinger (2001) no campo da biologia feminista e com os historiadores da ciência, essa posição radical foi assumida nos anos 1980, quando essas cientistas feministas denunciaram o mito do corpo natural. A noção fundamental nesses estudos é de que não existe verdade natural sobre o corpo que seja um dado direto e sem intermediários. As percepções sobre o corpo são traduzidas pela

linguagem, e as palavras

constituem realidade porque

113

performatam instrumentos e ações no mundo. Conforme Keller-Fox (1999), os enunciados descritivos são performativos, não porque colocam em ação seus referentes, mas porque influenciam a maneira de estruturarmos e construirmos nosso mundo social e material. Nesse sentido, em nossa sociedade, as ciências biomédicas funcionam como um recurso importante da linguagem e os cientistas são, portanto, dependentes delas; por consequência, pode-se rejeitar a afirmação segundo a qual as ciências

biomédicas são as

fornecedoras de conhecimento objetivo sobre a verdadeira natureza do corpo. Os fatos científicos são criados

coletivamente e, mais

do que de descoberta, trata-se de construção ativa da realidade. No que concerne ao corpo,

isto significa dizer que a realidade

naturalista do corpo não existe; ela é criada pelos cientistas como objeto de suas investigações. Ao mesmo tempo, o corpo é um agente da cultura, conforme argumenta Bordo (1997). Segundo Oudshoorn (2000), a aproximação construtivistasocial das ciências abriu uma via totalmente nova às pesquisas feministas, além de enca- minhar os diversos meios pelos quais as ciências

biomédicas, como

técnicas discursivas, constroem e

refletem a compreensão de gênero e de corpo. Na medida em que as feministas adotaram aproximações construtivistas sobre o gênero, o corpo e as técnicas, com o objetivo

de contestar o essencialismo, elas caminharam para a

organização da introdução, nos finais dos anos 1980, dos corpos

114

femininos e das técnicas médicas questionando sua atuação sobre os corpos, nos programas de pesquisa feminista. Entretanto essa organização não ocorre de uma vez por todas, nem do mesmo modo; por isso, Oudshoorn apresenta vários jeitos

de

fazê-lo. A primeira estratégia feminista consistiu em

mostrar as contingências das significações do sexo e do corpo no interior do

discurso da

medicina

ao longo

dos séculos.

As

feministas que adotaram essa estratégia utilizaram-se dos diversos modos pelos quais os cientistas analisaram os corpos masculinos e femininos, com o objetivo de contrapor o argumento de que o sexo é um atributo do corpo, sem equívocos e a-histórico que, uma vez revelado pela ciência, é válido para todos os contextos. O sexo e o corpo, mesmo no seio do mundo da ciência, que reivindica a objetividade e a universalidade dos corpos, têm história e cultura. A segunda estratégia feminista no interior da contestação do pensamento essencialista sobre

o corpo

consiste em

mostrar

como as técnicas transformam os corpos. Para Oudshoorn (2000), a maior

parte

das feministas que

adotaram essa estratégia se

concentrou sobre a fertilização in vitro. Elas mostraram como a técnica mudou o corpo feminino, uma vez que esse processo troca o lugar

da concepção de dentro do corpo

dissolvendo, desse modo,

para o laboratório,

a distinção entre interior e exterior.

Ainda, a utilização das técnicas de FIV para o tratamento da esterilidade masculina envolve o casal reprodutor como objeto do tratamento. Isso faz com que a mulher, enquanto pessoa inteira desapareça do discurso médico, um processo que, do ponto de

115

vista político, ameaça a individuação das mulheres. Os discursos das tecnociências sobre

a reprodução são discursos sobre

o

apagamento e a exclusão dos corpos femininos e de negação de sua capacidade de agir, mesmo

quando as mulheres procuram

conscientemente essas formas de tratamento. E, finalmente, a FIV tem ainda transformado mais radicalmente os corpos femininos, deslocando as fronteiras de sua fertilidade do

corpo

para

o

laboratório. As feministas que adotaram essas estratégias mostraram que a natureza dos corpos é cada vez mais construída. No caso da reprodução assistida, trata-se de transformar corpos

inférteis em

corpos férteis, no contexto do laboratório e da intensa medicalização. A terceira estratégia de contestação envolvendo as técnicas e o corpo consistiu em mostrar como a realidade naturalista sobre o corpo

criada

por cientistas não se enraíza no corpo.

Para

Oudshoorn (2000), é importante compreender como os cientistas chegaram a convencer de que existe um corpo natural. Ela pergunta o que é necessário para transformar um conceito científico em um dado natural. Ela e tantos outros pesquisadores no campo das teorias da ciência sabem que se o fenômeno é compreendido em termos de rede de conhecimento, então ele não pode estar fora das práticas. O conhecimento é sempre local e universal. As fronteiras da rede de práticas definem, por assim dizer, as fronteiras da universalidade e do conhecimento médico. Dentro dessa perspectiva, os sucessos e insucessos na investigação dos

cientistas em

busca

de

um

universal dependem de sua capacidade de criar redes.

conhecimento

116

No século XIX os cientistas dependiam de material de pesquisa pouco presente nos laboratórios: os ovários e os testículos. Mas existiam algumas diferenças entre os atores implicados nos estudos sobre hormônios sexuais. Os ginecologistas dispunham de material de pesquisa adaptado, que obtinham de suas pacientes, pois as operações cirúrgicas para retirada de ovários humanos tinham se tornando uma prática corrente nas clínicas ginecológicas. Mais tarde eles utilizaram a urina das mulheres grávidas. Todos os outros atores implicados nos estudos dos hormônios sexuais femininos deveriam se apoiar nos ginecologistas para ter acesso às fontes de materiais de pesquisa. Comparativamente sexuais femininos,

os

aos

que

estudavam

pesquisadores

dos

os

hormônios

hormônios sexuais

masculinos tiveram muito mais constrangimentos em relação

ao

acesso ao material de pesquisa. Os testículos humanos eram mais difíceis de obtenção, porque eles não existiam como material de prática médica. Então os cientistas entravam nas prisões

para

esperar as execuções e recolher o material fresco. O acesso à urina masculina foi também problemático, uma vez que não existia contexto institucional para coletá-la em grande escala e porque os homens doentes possuíam menos hormônios sexuais. A coleta de urina de pacientes masculinos nos hospitais tornara-se difícil pelo fato de que a quantidade de hormônios sexuais masculinos presentes na urina dos homens doentes era muito menor que aquela presente na urina de homens com boa saúde. O recurso à urina animal já não podia mais resolver o problema, pois só continha bem poucos hormônios masculinos. Já que a urina humana tinha a característica específica de ter uma taxa elevada de hormônios masculinos, os cientistas ficaram totalmente dependentes da

117

urina humana masculina. (OUDSHOORN, 1993, p. 19, tradução da autora).

No início do segundo decênio dos anos 1920, os hormônios sexuais não passavam de produtos químicos manipulados com uma prática terapêutica pouco conhecida, e poderiam ser considerados como medicamentos à procura de doenças. A estratégia para conhecer o valor terapêutico dos hormônios foi a organização das clínicas e a prática clínica da ginecologia. Ambas funcionaram como um contexto poderoso para oferecer os hormônios a uma clientela preexistente (as mulheres) e sujeitá-las ao tratamento hormonal. A divulgação e utilização dos hormônios sexuais

femininos foram

integradas às estruturas institucionais existentes e estabelecidas pela profissionalização da

medicina e pela

organização racional dos

serviços de nascimentos. O público masculino, por sua vez, não se encontrava dentro de um

mercado, nem

se relacionava

institucionalmente com hospitais e clínicas. Segundo Oudshoorn (1998), a história da endocrinologia sexual, entre 1920 e 1930, na Europa, mostra que a rede

os anos de

social32

que se

estabeleceu sobre os hormônios sexuais femininos foi muito mais ampla e sólida do que aquela em torno dos hormônios sexuais masculinos, pois

a ausência de estruturas clínicas e o

desenvolvimento tardio da andrologia contribuíram muito para esse retardo. Oudshoorn conclui afirmando que a institucionalização das práticas médicas concernentes ao corpo feminino transforma esse 32

A construção dos hormônios sexuais se efetua dentro de uma rede formada pelo laboratório, o hospital e a indústria farmacêutica. Esses grupos, inicialmente isolados, terminaram por se integrar em uma rede de alianças e dependências que construiu o desenvolvimento cognitivo da pesquisa (OUDSHOORN, 1998, p. 788).

118

corpo em um fornecedor fácil de material de pesquisa e ao mesmo tempo

numa cobaia cômoda

para os ensaios

do mercado

organizado. Recuperar esses dados a partir de fatos históricos é útil para ilustrar os processos de fazer ciência e fazer corpos. Os fatos

anatômicos, endocrinológicos e imunológicos são pouco

evidentes. Observa-se que não existe uma verdade natural sobre o corpo, que seja dada diretamente e sem intermediários; e as ciências biomédicas funcionam no interior de uma sociedade que constrói determinadas concepções de corpo, traduzidas pela linguagem e pela sua prática. Kraus (2000), em suas pesquisas sobre a determinação de sexo, que também se intensificaram nos fins dos anos 1950, relata como o modelo prevalente para a determinação de sexo e sua cronologia foi

construído

a partir da descrição e comparação.

Pesquisas segundo ela, que estabeleceram um paralelo entre a raça e o sexo, colocam em evidência fronteiras biológicas menos absolutas e fixas sobre

a bicategorização por sexo e, em suas próprias

pesquisas sobre a diferenciação sexual, questiona a validade da categoria sexo. Estudando as anomalias do desenvolvimento sexual, ela mostra a pluralidade e a diversidade dos casos de diferenciação sexual possíveis. Apresenta uma

larga

gama

de situações

intermediárias entre dois sexos, o que relativiza de um modo claro a ideia

de que haveria uma

única

fronteira entre

os sexos

masculino e feminino, situação que também vem se ampliando nos estudos atuais sobre crianças intersexo.

119

Mas,

segundo Kraus (2000),

mesmo

que

algumas

pesquisadoras tenham construído o entendimento de que o sexo biológico não existe em si, sem sua compreensão circunscrita em oposição

à cultura, a categoria sexo biológico ficou

sem ser

questionada, mantendo-se desse modo a dicotomia entre natureza e cultura. Para Kraus (2000), a ideia de um sexo “nu”,

pré-

discursivo, con- traposto à cultura, que poderia escapar à marca social,

é problemática na medida em que pressupõe um limite

biológico resistente à construção social. É esse resíduo biológico perdurante como referente material do termo sexo que, uma vez contraposto à cultura, dá ao termo sexo um substrato biológico e mantém a ideia de que uma parte do sexo – as diferenças materiais entre os sexos – precede o ato social. Segundo ela, a sociedade que pensa

sexo como um referente biológico não avança a

problematização do sexo naturalizado e deixa de pensá-lo como um fato histórico, construído na relação entre vários intermediários; ou, então, mantém-se o fundacionismo biológico, conforme argumenta Nicholson (2000). Discutindo a crítica radical de Delphy (2001) sobre o caráter natural do sexo, Kraus (2000) declara ter que ilustrar a tensão entre os esforços teóricos para desnaturalizar o sexo e a aceitação implícita dessa realidade material. A tensão faz parte, segundo ela, das dificuldades para pensar verdadeiramente o sexo como uma construção social e não mais como um fato da natureza. Com efeito, a ideia de um sexo “nu” presume ainda um fundamento natural para

120

a bicategorização por sexo: aquele de dois grupos humanos naturalmente sexuados

que precedem todas

as classificações,

conforme trata Héritier (1996). Para Kraus (2000), o fato de que os indivíduos possam

apresentar sexos

discordantes leva

à

desconstrução das dicotomias de sexo marcadas pela rigidez da diferença entre machos e fêmeas. Ela analisa

o modo

como

o sexo se apresenta

multifacetado nas pesquisas no que se refere ao sexo gonádico, sexo hormonal, sexo fenotípico, interno e

externo. Segundo Kraus

(2000), o sexo hormonal não define saltos qualitativos, mas variações

quantitativas nos

indivíduos no

sentido do

desenvolvimento sexual “normal”. Os casos de anomalias relativas ao sexo hormonal ilustram claramente que essas subcategorias não definem unidades discretas. Essa característica é a origem das variações contínuas do

sexo fenotípico, definindo mais fêmea ou mais macho e

formando todos os intermediários possíveis. O sexo gonádico não é exclusivamente macho ou intersexual

em

vários

fêmea; níveis,

ele

pode

com tecidos

ser

misto

ou

testiculares e

ovarianos conjuntamente manifestos. No nível dos cromossomos, os termos macho

e fêmea

aplicam-se a muitos objetos. Existem

muitas variantes em dois cariótipos standard, e um mesmo cariótipo pode resultar em um sexo gonádico macho ou fêmea. Para a autora, a última esperança de fundar a bicategorização por sexo se esvaiu quando se colocou em evidência, nas descobertas entre os machos e as fêmeas no nível genético, a troca

dominante da primeira

121

diferenciação

sexual

(TDF:

Testis-determining

factor).

A

apresentação de resultados sucessivos sobre os testis-determining factor colocou em evidência a complexidade, ainda mal-elucidada, dos mecanismos de determinação do sexo. A autora não questiona somente os contínuos entre os machos e as fêmeas, mas, sobretudo, a recuperação entre o que caracteriza de maneira exclusiva uns e outros e todos os níveis biológicos do sexo. Segundo ela, essas recuperações permitiram refutar a ideia de uma descontinuidade biológica qualitativa entre dois e somente dois sexos. Mesmo o sexo genético (cromossomos e hormônios), que ocupa

um lugar

central dentro

do

modelo

prevalente,

caracteriza-se pela ausência de marcadores absolutos. O fato de os pesquisadores recorrerem a outros critérios, sexo

gonádico

(anatomia), e senso comum, ao pênis (fisiologia), para classificar os indivíduos, sem levar em conta (cromossômico), tem

a referência ao sexo gênico

sugerido que

a

manutenção da

bicategorização por sexo dentro dessas pesquisas responde ao imperativo cultural. Considerando-se que a refutação das bases naturais da bicategorização por sexo é principalmente fundada sobre

as

inversões de sexo, Kraus (2000) analisa a crença segundo a qual é possível distinguir claramente machos de fêmeas, desde que o desenvolvimento sexual seja normal e tenha dado a correspondência perfeita entre as subcategorias. Mostra que a questão da frequência é na realidade um falso problema, não sendo evidente que um

122

corpo normal forneça as provas de uma descontinuidade biológica entre dois e somente dois sexos. Estudos dos condições,

anos

1920 afirmaram que,

os hormônios masculinos podem

feminilizantes e os femininos, masculinizantes. Essas colocaram em

em

certas

ter efeitos descobertas

questão também os métodos de fazer pesquisa

baseados em um modelo cultural dos sexos. A possibilidade lógica de que havia

ao menos

dois

modelos simultâneos evidencia que a predominância do modelo dicotômico não procede diretamente das observações científicas e que há dados suscetíveis de questioná-la que são bem fundados. A bicategorização persiste por uma razão social e é constitutiva de uma política e de uma visão de mundo fundamentada sobre a divisão entre masculino e feminino e sobre a primazia do primeiro em relação

ao segundo. Isso significa que

as pesquisas sobre

a

determinação do sexo modelam preferencialmente o sexo macho; só ele é positivamente induzido pela ação do TDF, enquanto que o desenvolvimento da fêmea é definido negativamente por referência à diferenciação testicular. Tem-se que a diferenciação em dois, e somente em dois sexos, procede de uma dupla operação, a saber: dividir de forma dicotômica e hierarquizar as partes divididas. É por isso que a formulação das hipóteses de pesquisa, a interpretação dos resultados e a validade das provas

vêm das representações, das

redescrições da teoria e da incomensurabilidade dos sexos. Por isso, longe de descobrir a diferença sexual, a prática científica a fabricou, sexualizando a biologia de modo dicotômico e segundo as

123

oposições tradicionais de gênero, mesmo

que a riqueza e a

complexidade das diferenças entre os comportamentos sexuais de homens e de mulheres seja dificilmente reduzível a uma dicotomia entre feminino e masculino. Para a filósofa americana Butler (1998), a materialidade do sexo, longe de dissimulado do

ser

um

poder,

simples fato

biológico, é um

efeito

de normas heterossexistas. Ela vê a

materialidade do sexo como o produto de um processo pelo qual essas normas materializam o sexo. Essa materialização é a performatividade das normas que se completa pela sua reiteração, que não é uma repetição. Para

Butler

(1998), tanto

gênero

como

sexo são

fictícios; ambos são construídos por meio de práticas discursivas e não discursivas. Desse modo, o corpo não tem por essência um sexo pronto ou previsível; ele só é inteligível por meio do gênero. O corpo, assim, adquire um gênero mediante uma performance; ser feminina é representar a feminilidade. Trata-se de uma performidade que faz a materialidade como efeito de um poder.

O sexo é

materializado por intermédio de um complexo de práticas e de citações às vezes normativas e regulatórias e às vezes coercitivas e constrangedoras. Aqui não cabe discutir as críticas dirigidas às teóricas pósmodernas, que são acusadas de esquecer a própria materialidade da realidade, porque não se trata

realmente de

esquecimento, ou

discutir se o gênero é quem constrói o sexo, como aponta Delphy (2001), ao dizer que a diferença entre homens e mulheres é um fato

124

anatômico que não tem qualquer significação em si mesmo. Trata-se de ter presente que reconhecer essa diferença é em si mesmo um ato social e, portanto, passa pela compreensão cultural que se expressa na linguagem capaz de performar realidades. Desse modo, o potencial do conceito de gênero

não está simplesmente na

desnaturalização das diferenças entre

homens e mulheres, mas

concentra sua atenção sobre a existência da própria divisão humanidade em

duas

da

categorias. Seu conteúdo não é apenas

variável, já que ele é em si mesmo produto do social. Além de Kraus (2000), outros pensadores e pensadoras subverteram a heterossexualidade. Peyre, Wiels e Fonton (2002) analisaram a questão do sexo biológico do ponto de vista genético e fenotípico, bem como, a complexidade envolvida no processo de determinação do sexo, do ponto de vista da formação das gônadas e dos órgãos, gametas internos masculinos ou femininos. Com base no fenotípico ósseo de uma população neolítica, eles analisaram, a partir da

pré-história e da

antropologia biológica, os grupos

definidos por critérios socioculturais e os grupos identificados por critérios biológicos. Concluíram que nem a bacia nem o crânio, que, segundo as teorias

evolutivas, foram

adaptados cada qual

para um papel funcional, segundo o sexo – a bacia para a reprodução na mulheres e o crânio para o intelecto nos homens –, permitem concluir estabilidade e dicotomização. A morfologia dos caracteres sociais varia no curso da vida, e a morfologia óssea é instável. Há uma variação enorme de caracteres sexuais no interior de uma

mesma

população. Eles

125

vão do mais

feminino ao mais masculino. A bacia larga não

define as mulheres, e uma quantidade majoritária de indivíduos apresenta características masculinas e femininas muito variáveis. Os autores concluiram que os trabalhos realizados sobre a população Grossgartach do Neolítico colocam em causa a ligação entre sexo social e sexo biológico e podem mesmo questionar a noção

de sexo social. Nenhum dos resultados obtidos leva à

conclusão de que

a divisão

do trabalho social repousa sobre

critérios de categorização sexual.

A adequação existente nas

sociedades ocidentais entre o sexo social e o biológico parece ser fundada sobre a divisão

dos papéis,

visando, principalmente,

justificar a ligação entre a natureza e a opressão das mulheres. Para

Laqueur (1992), durante dois mil anos os corpos

masculino e feminino não foram conceitualizados em termos de diferenças. Os textos médicos dos gregos antigos, até o fim do século

XVIII, descreveram-nos como

fundamentalmente

similares. Eles consideravam mesmo que as mulheres tinham os órgãos genitais idênticos àqueles dos homens, com apenas uma diferença: os delas estavam

no interior do corpo e não no

exterior; eram as inversões interiorizadas dos órgãos masculinos. Dentro dessa abordagem caracterizada por Laqueur como o “modelo do sexo único”, os corpos femininos eram compreendidos como o de um homem voltado para dentro, não como um sexo diferente, mas

como

uma versão menos

masculino (LAQUEUR, 1992).

evoluída do corpo

126

Foi somente no século XVIII que o discurso biomédico começou a conceitualizar o corpo feminino como outro corpo, essencialmente diferente do corpo masculino. Nesse período, a tradição estabelecida durante longo tempo, que privilegiava as similitudes corporais sobre as diferenças, começou a ser criticada. Na metade do século XVIII, os anatomistas se concentraram mais e mais sobre as diferenças corporais entre os sexos e afirmaram que o sexo não se limitava aos órgãos da reprodução. No contexto da fisiologia celular do século XIX, o olhar médico se deslocou para as células. No final desse século, os cientistas médicos haviam estendido a sexuação a todas as partes imagináveis do corpo: vasos sanguíneos, células, cabelos e cérebro. Ocorreu então, no interior do discurso médico, um deslocamento claro do centro de interesses, das similitudes para as diferenças. O corpo feminino foi contextualizado em termos de corpo oposto, com órgãos, funções e sentimentos incomensuravelmente diferentes. A partir desses enfoques, os corpos femininos se tornaram objetos médicos por excelência. A história da sexualidade, de Foucault (1993, 1990), oferece várias possibilidades de interpretação desses processos, vindo daí o conceito de uma tecnologia sexual que ele define como um conjunto de “técnicas” para maximizar a vida,

criadas

e

desenvolvidas pela burguesia, a partir do final do século XVIII, a fim de assegurar a sobrevivência da classe e a continuação da hegemonia. Essas técnicas envolviam a elaboração de discursos (classificação, mensuração, avaliação)

sobre

quatro figuras

ou objetos

127

privilegiados do conhecimento: a sexualização das crianças e do corpo feminino, o controle da procriação e a psiquiatrização do comportamento sexual anômalo como perversão. Esses discursos, implementados pela pedagogia, medicina, demografia e economia, ancoraram-se nas instituições do Estado

e consolidaram-se

especialmente na família: serviram para disseminar e implantar, empregando o sugestivo termo de Foucault, aquelas figuras modos

de conhecimento em cada família

e

e instituição. Essa

tecnologia, como Foucault observou, tornou o sexo não só uma preocupação secular, mas também uma preocupação do Estado. Para ser mais exata, segundo Foucault, o sexo se tornou uma questão que exigia que o corpo social todo e, virtualmente, todos os seus indivíduos fossem colocados sob vigilância, embora haja críticas advindas da psicanálise feminista referentes aos conceitos de tecnologias como

responsáveis pela

própria constituição do

indivíduo moderno como objeto e sujeito que alegam que isso é uma forma de atribuir a elas a força totalizante que só uma teoria totalizante pode atribuir. O conceito de tecnologia sexual

é fundamental para

explicar como a sexualização do corpo, e particularmente do corpo feminino, tem sido uma das figuras conhecimento

favoritos nos

ou um dos objetos

discursos das ciências

de

médicas.

Também na religião, na arte e na literatura, como ele perpassa a cultura popular e como a sexualidade é de fato construída na cultura, de acordo com os objetivos políticos da classe dominante.

128

É fundamental observar como procuraram identificar as pareciam servir

os cientistas e médicos

características essenciais que

lhes

para distinguir o que fazia a mulher ser mulher.

Segundo Oudshoorn (2000), a literatura desse período mostra uma naturalização radical da feminilidade, na qual os cientistas reduziram a mulher a um órgão específico. Nos séculos localizar a essência

XVIII e XIX,

os cientistas começaram a

feminina dentro de diferentes partes

do

corpo. Até a primeira metade do século XIX, eles consideravam o útero como sede da feminilidade. Na segunda metade do século XIX, a atenção médica começou a se deslocar para os ovários, que eram então

considerados como

os centros de controle largamente

autônomos da reprodução nas fêmeas animais; nos humanos, eles foram pensados como essência da própria feminilidade. No início do século XX, a essência da feminilidade foi situada não mais dentro de um órgão, mas dentro de substâncias químicas: os hormônios sexuais. O novo campo da endocrinologia sexual introduziu o conceito de hormônios sexuais “femininos” e “masculinos” como

mensagens químicas da feminilidade e da

masculinidade. Essa nova concepção de corpo, determinado pelo jogo dos hormônios, desenvolveu-se e se impôs. Esse tipo de estudo ilustra como no interior mesmo discurso médico e técnico diferentes corpos

do

ganharam vida.

Essas histórias das ciências médicas e da técnica servem para mostrar como os agentes produzem e fundamentam categorias. O mesmo encontra-se em outros campos em relação à identidade de

129

gênero. Stoller (1993), ao estudar inúmeros casos patológicos de indivíduos (hermafroditas ou com genitais escondidos) que,

por

engano, haviam sido rotulados com gênero oposto ao de seu sexo biológico, afirma que é muito mais fácil mudar o sexo do que mudar o gênero de uma pessoa. A criança aprende a ser menino ou menina desde a mais tenra idade. Aos dois ou três anos, por ocasião da passagem pelo Complexo de Édipo e da aquisição da linguagem, ela já se constituiu em gênero. Para ele, o núcleo da identidade de gênero, presente em todo indivíduo, é um conjunto de convicções pelas quais se considera socialmente o que é masculino ou feminino. Esse núcleo não se modifica ao longo da vida de cada sujeito, embora cada um possa lhe associar novos papéis. Masculinidade ou feminilidade é definida, como qualquer qualidade que é sentida, por quem a possui, como masculina ou feminina. Em outras palavras, masculinidade ou feminilidade é uma convicção – mais precisamente, uma densa massa de convicções, uma soma algébrica de se, mas e e – não um fato incontroverso. Além do fundamento biológico, a pessoa obtém estas convicções a partir de atitudes dos pais, especialmente na infância, sendo estas atitudes mais ou menos semelhantes àquelas mantidas pela sociedade como um todo, filtradas pelas personalidades idiossincráticas dos pais. Portanto, tais convicções não são verdades eternas: elas se modificam quando as sociedades se modificam. Exemplo: um guerreiro indígena americano usava seu cabelo comprido e sentia-se masculino; um prussiano afirmava sua masculinidade usando seu cabelo bem curto. A masculinidade não é medida pelo cumprimento do cabelo, mas pela convicção da pessoa de que o cabelo comprido ou curto é masculino (STOLLER, 1993, p. 28).

Segundo ele, a identidade de gênero nuclear resulta de uma força biológica (originada comumente na vida fetal e genética) da designação do sexo no nascimento: as mensagens que a aparência dos

130

genitais externos do bebê leva àqueles que podem designar o sexo – o médico que está atendendo e os pais – e os efeitos inequívocos subsequentes dessa designação para convencê-los do sexo da criança; da influência incessante das atitudes dos pais, especialmente das mães, sobre o sexo daquele bebê, e da interpretação dessas percepções por parte do bebê – pela sua capacidade crescente de fantasiar – como acontecimentos, isto é, experiências motivadas, significativas; dos fenômenos “bio-psíquicos”: efeitos-pós-natais precoces causados por padrões habituais de manejo do bebê – condicionamento ou outras formas de aprendizagem que, imaginase, modificam permanentemente

o cérebro do bebê e o

comportamento resultante, sem que os processos mentais o protejam; do desenvolvimento do ego corporal: a miríade de qualidades e quantidades de sensações, especialmente dos genitais, que definem o físico e ajudam a definir as dimensões psíquicas do sexo da pessoa, confirmando, assim, para o bebê, as convicções dos pais a respeito do sexo de seu filho. Dadas condições-pré-natais normais para o sexo anatômico do indivíduo, os dois fatores principais, na criação da identidade de gênero – seja o gênero congruente com a anatomia e com o que a cultura define como comportamento adequado para aquele sexo, ou uma identidade de gênero distorcida – são os efeitos silenciosos da aprendizagem e modificações mais agudas experienciadas, resultantes da frustração, trauma e conflitos, e das tentativas de resolver os conflitos. Assim, os pais, irmãos e em certos momentos outras pessoas de fora da família, poderão modelar comportamentos masculinos e femininos em meninos e meninas, através de sistemas complexos de recompensa e castigo, sutis e grosseiros. Além disso, proibições, ameaças e comunicações confusas, que combinam a recompensa e o castigo, são absorvidas pela criança em desenvolvimento, e, em diferentes estágios de

131

maturidade e experiência, são interpretadas com diferentes significados. (STOLLER, 1993, p. 37).

A história de como diferentes corpos

ganham vida nos

reporta à compreensão da natureza e não apenas

da cultura. A

natureza é apresentada com conteúdos diferentes; de acordo com as necessidades de cada época, ela pode ser infinitamente maleável e infinitamente rígida. concebida como

Assim,

no

século XVII,

a natureza era

benevolente e dotada de intenção, o que

configurava um caráter fluido e móvel à fronteira entre o natural e o artificial. O contexto das contradições da teoria

contratual

apresenta várias possibilidades para criticar os tratados de então e mostrar que o momento histórico em que a natureza se encontrava estava longe de se tornar objeto verdadeiramente conhecido. Porém, no século XIX, a natureza é identificada com uma realidade exterior e imutável que deve ser estudada por métodos científicos. Torna- se indiferente em si mesma, sem nenhum objetivo moral; a não ser aquele que é determinado pelos cientistas como capazes de produzir um saber considerado verdadeiro. Uma natureza predefinida é atribuída às mulheres, a partir do seu corpo, e sobre essa atribuição, particularmente a biologia e a medicina constroem os parâmetros científicos que serão as bases sobre as quais a educação valorar

se pautará para domesticar, hierarquizar, binarizar e a partir dos limites e dos interesses impostos como

importantes em cada época. A natureza feminina, assim estabelecida, pode ser mostrada, escondida, entravada e sobrevalorizada, significada e ressexualizada, a partir de um jogo complexo sobre o corpo das mulheres (LOWY, 1995).

132

Nesse cultural

contexto, as

fronteiras entre

o

material e o

se endurecem. A natureza assume valor de julgamento

supremo, já que todo o mundo concorda que um tratado natural não pode ser modificado pela intervenção humana. Essa variabilidade dada

ao termo natureza contrasta com

estereótipos sociais.

a

estabilidade

dos

A inferioridade natural da mulher é uma

constante, legitimada tanto pela natureza benevolente e flexível do século XVII, quanto pela natureza mutável do século XIX, além do próprio entendimento da natureza como feminina, mito denunciado por vários pesquisadores e pesquisadoras. Segundo Varikas (2000), na medida em que essa natureza se inscreve na história das relações sociais que ela pretende remediar, sua tendência será construir um artifício político, uma natureza humana fixa e imutável a depender dos interesses. Isso fecha as possibilidades e aberturas compostas pelas relações dos primeiros humanistas da Renascença. Daí em diante, a única forma de coexistência pacífica será uma cisão radical entre o homem como sujeito racional e a natureza como objeto do conhecimento e de regramento. A cisão só é possível graças a uma outra divisão no interior do ser humano, que é a oposição entre razão e paixão. Como consequência, ocorre a atribuição da razão ao homem, e da paixão à mulher, e a ela, até mesmo a demonialização, porque ela seria capaz de prazeres físicos privilegiados. Agora, a natureza, vista como mecânica e governada por leis matemáticas, segundo Varikas (2000), impõe-se do exterior e emerge como um produto da política. O poder passa a ser fundado

133

sobre

o conhecimento da natureza, pressuposto que também

estabelece o estado moderno, a partir da teorização da propriedade como direito natural, e a distinção entre dominação doméstica e dominação civil, que está na origem da distinção entre público e privado. A Revolução Francesa, que tem

os homens como

destinatários da cidadania, mantém a ideia

de natureza como

paradigma legitimador do lugar da mulher (ÁVILA, 1997). Daí se define a mulher como a que pertence a um sexo “natural e abominável”, que necessita ser dominado, controlado e domesticado (KEHL, 1996).

Sua

natureza, uma

instabilidade de seu útero

vez determinada pela

e pela voracidade da sua libido,

transforma-se em paradigma científico legitimador e sancionador do agir moral dos indivíduos e das instituições. Resta à sociedade educar esta tão frívola e inconstante criatura, para que ela, uma

vez

educada, possa servir a uma educação moralizadora e resignadora, que não apenas seria um modelo para os filhos e o marido, mas para toda a sociedade, segundo pensava

Comte

(1977), por

exemplo. Para Kehl (1996), outro aspecto que deverá ser levado em conta é o de que as mulheres inteligentes, segundo essa concepção, deveriam ser do gosto exclusivo dos pederastas, por causa de suas características masculinas. Ainda o gosto pelas mulheres que possuem

uma

sexualidade

e

uma

afetividade

insubmissa,

desorganizadora do pacto civilizatório tão caro aos poetas e a alguns

psicanalistas, e a ideia

de uma

sexualidade difusa

e

134

polimorfa como a das crianças, com um corpo todo erotizado, em contraposição ao órgão concentracionário masculino, fazem com que

a

imobilidade

devoradora da mulher seja tomada como

fascinante e perigosa como as águas e a terra, capazes de gerar a vida e acolher a morte33.

Construções como essas – juntamente com as de bruxas, de “vaso do pecado”, de conhecedora dos segredos do amor, ou as da mulher do modern style (PERROT, 1995), que tem inexpressivo, o olhar

o rosto

vazio, o corpo evanescente, servindo sua

máscara estereotipada de suporte às variações capilares dos artistas – marcam concepções de mundo34. Uma vez demarcadas, essas questões apresentam-se como enormes desafios para a definição entre dualista natureza e cultura, e alimentam a eterna ladainha: não somos biologia

só biologia, somos

e história, biologia e cultura, biologia e espiritualidade,

biologia e vontade, biologia e desejo. O fundacionismo biológico e a matriz individualista que veio se firmando há muito tempo



quando surgiu no pensamento a ruptura entre corpo, alma e mente, sujeito e objeto, natureza e cultura – ainda desafia a sociedade e 33

Encontra-se um belo relato sobre as imagens da mulher, em “Paris 1900 (e sua encarnação na República)”, escrito por Michelle Perrot em Políticas do Corpo, organizado por Denise Bernuzzi de Sant’Anna. 34 Para Claude Guiguer, durante o século XIX, a mulher é apresentada ao mesmo tempo como o sangue e os lírios, branca Madona, lilial jovem das auroras, transparente e cheia de promessas, e pérfida Salomé das tardes púrpuras, a vítima e o carrasco, amazona liberta e guerreira, rainha dos bosques e das fantásticas cavalgadas, e a criança ingênua e carinhosa, a água e o fogo, a liberdade das florestas e o afundar dos pântanos nauseantes; a virgem e a prostituída. Seu corpo é um mistério: seu sexo aniquila o homem no prazer, emascula-o. Ela é voragem, abismo insondável (apud PERROT, 1995).

135

emerge em suas formas mais complexas e variadas, inclusive no campo das NTRc. Segundo Lowy (1995), a história da demarcação entre natural e artificial e a história das práticas de naturalização, que partilham a história social e cultural das ciências, juntamente com a história de gênero, fazem eco a um tema paralelo, enraizado na trajetória da biologia e da medicina e diz respeito à construção do que é normal e à produção de normas e de práticas de normalização. Essas

incursões feministas foram

trazer à luz os aspectos

fundamentais para

ideológicos envolvidos nas

escolhas

científicas e políticas das universidades e dos grandes centros de pesquisa, para produzir questionamentos cotidianas desses

espaços,

sobre

as

práticas

pautadas por diferenças de gênero.

Para permitir localizá-las como construto sócio- histórico, além disso, para questionar as categorias tomadas como naturais, fixas, passíveis de permitir espelhamentos, conforme foram construídas nas formas de entendimento da natureza, dentro de uma

visão

mecanicista, cartesiana e mesmo iluminista do mundo.

2.2 GÊNERO E CULTURA: REFUTAÇÃO DAS BASES NATURAIS DA DUALIDADE DE GÊNERO Consideradas as questões relativas à categoria sexo, é preciso dizer de agora em diante que para a constituição dos estudos de gênero

conta-se com o papel destacado de algumas

disciplinas.

outras

136

Como

já se verificou no contexto da biologia, a

introdução dos interesses de ciência e gênero se desenvolve nos anos 1960, principalmente nos campos disciplinares institucionais dos EUA. Biólogas feministas são pioneiras em integrar ciência e gênero nos interesses acadêmicos. Nos anos 1970 questiona-se a sub-representação das mulheres nas ciências, e o foco deixa de ser a mulher, ou os estudos de mulheres, passando-se para gênero. Ocorre, porém, que

ao introduzir, o conceito de gênero

distintivo de sexo no interior do discurso sobre

como

as mulheres, a

concepção e a utilização do conceito de sexo ficam limitadas ao sexo biológico, implícita ou explicitamente compreendido em termos de caracteres anatômicos ou cromossômicos. E o conceito de gênero é utilizado para fazer alusão

a todas as outras

características

socialmente atribuídas às mulheres e aos homens, tal como

as

características psicológicas, comportamentais, os papéis sociais e os tipos

particulares de trabalho35.

significativo ao campo das ciências

Isso trouxe um

avanço

e das práticas sociais, mas

também produziu a tradicional divisão do trabalho entre ciências sociais e ciências biomédicas. As biólogas feministas atrelaram os estudos de sexo ao domínio das ciências

biomédicas e

estabeleceram-se os estudos de gênero como domínio exclusivo das ciências sociais. Perdeu-se, desse modo, a possibilidade de questionamento da

35

fixidez

do

sexo

pelas

próprias ciências

Em relação ao Brasil, é no campo da sociologia do trabalho que esta problematização ocorre. Os estudos sobre a divisão sexual do trabalho, na década de 1980, conduziram para os estudos de gênero no início dos anos 1990: Saffioti (1981), Kergoat (1989), Lobo (1991, 1992).

137

humanas e sociais, porque os estudos seguiram pela categoria gênero a partir da compreensão sobre a construção cultural que era realizada sobre os corpos e que é bem analisada por Nicholson (2000). Ao mesmo tempo, na maioria dos estudos da área biológica, esqueceu-se a própria materialização do sexo como um efeito do poder expressões de Butler (1998). Desse modo as teorias feministas sobre a socialização não indagaram o sexo biológico desses sujeitos que são socializados como mulheres ou como homens. Consideraram que o sexo e o corpo

são realidades biológicas, não necessitando alguma

explicação

mais profunda. Também, por

sua

vez,

o corpo

sexuado foi mantido dentro de um estatuto de base a-histórica e não problemática, sobre a qual se constrói, em seguida, o gênero. A consequência foi a exclusão das análises

sobre o corpo para

problematizar sua natureza fixa no biológico, tomado sempre como um dado pronto, sem nenhuma leitura a partir da linguagem. Do ponto de vista da cultura que o produz, o corpo também ficou relegado, quando pensado em

por

vezes, a bases

binárias e fixas

sua construção cultural, aspecto que só irá

ser problematizado com os estudos sobre as diferenças geracionais, de orientação sexual,

de raça e etnia,

e com a inserção da

desnaturalização de outras categorias como experiência e identidade, que eram tomadas muitas vezes como um processo de reprodução por identificação, de maneira global, ou em quadros comparativos entre culturas diferentes, sem considerar as matizes dentro dos próprios sistemas que as produziam. Conforme Oudshoorn (2000),

138

foi nos fins dos anos 1970 e início dos anos 1980 que o corpo fez sua primeira aparição nos escritos feministas. A historicidade do corpo a partir da experiência que fazem as mulheres sobre si mesmas

foi então levada em conta, com a perspectiva de

desconstruir a ideia de uma experiência invariante na história de base experimental fixa, fornecedora da continuidade ao longo dos séculos. Desde então, antropólogos e historiadores têm fornecido análises potenciais para colocar em causa a ideia de corpo natural, ou então de coisa, matéria em movimento, semelhante aos objetos que nos cercam; portanto, como objeto para ser dominado, ideal que se desenvolveu entre os “homens de ciência”, particularmente entre os séculos XVII e XIX. Esse esforço engendra-se na visibilização de que a própria compreensão de natureza

era construída sob configurações

específicas e que a percepção do corpo como “eu natural” ou “material”, tal qual analisado por Nicholson (2000), configura-se e toma forma de acordo com as influências que recebe do mundo exterior e de acordo com a ênfase numa consciência ampliada do corpo como conhecimento sobre o eu. A natureza poderia ser, nesse caso, tanto o corpo como as influências externas geradas pela visão ou pela educação. Desse contexto de materialismo dos séculos XVII e XVIII, surgiu uma tradição que considerava as características físicas do indivíduo como fontes de conhecimento. “Assim, os aspectos físicos ou materiais do corpo, cada vez mais,

139

assumiram o papel de testemunhas da natureza do eu que esse corpo abrigava” (NICHOLSON, 2000, p. 16). Os

materialistas

dos

séculos

XVII

e

XVIII

argumentaram sobre processos que depois seriam escritos como socialização. Segundo Nicholson (2000), o foco que se tornou cada vez mais opaco na materialidade do eu significou mais do que um determinismo biológico: apontava para o fato de que o corpo surgia sempre mais como fonte de conhecimento sobre o eu. Diferentemente das

visões

começou a mudar as formas

teleológicas anteriores,

o

corpo

de se compreender a identidade.

Nesse sentido, ele foi empregado de modo crescente e passou a ser um recurso para atestar a natureza diferenciada dos humanos. O crescimento dessa metafísica materialista provocou mudanças na importância das características físicas e dos papéis sociais. Dividiram-se, por isso, também a ideia da base fisiológica da “natureza” humana e a ideia da construção social do caráter humano. Esses estudos se concentram sobre as experiências do corpo e sobre as maneiras como elas são realizadas pela época e pela cultura, o que, segundo Stolcke (1998), permite conhecer a enorme diversidade histórico-cultural dos sistemas simbólicos de gênero. Mas essa aproximação deixava ainda

sem questionamento o

entendimento que se partilhava sob a compreensão de que as experiências corporais tinham uma realidade fisiológica universal, ligada a uma base biológica não histórica da identidade feminina e de suas relações com as diferenças de sexo.

140

Esse conjunto de questões se visibiliza em várias áreas do saber e, aqui podemos destacar algumas como a antropologia, que entre outras áreas terá um papel destacado no processo de construção do entendimento cultural-histórico sobre o corpo e o conceito de gênero. Mas essa forma de problematização ocorre também em outros histórico,

o

campos

literário

e

do saber,

o

desnaturalizações nesse processo

artístico.

como o sociológico, o Uma

das

primeiras

ocorre com a problemática da

desigualdade, da opressão e da subordinação, fundamentada a desconstrução do patriarcado e focada na determinação biológica das condições do que é ser homem e ser mulher e, em alguma medida, associada à ideia de que há etapas evolutivas da situação da mulher na sociedade36. Seus pressupostos legitimadores advêm do marxismo, e o projeto político é sua condição emancipatória, embora, estivessem aqui

mantidas as abordagens universalistas sobre

o

patriarcado. A construção dessas ideias será uma baliza importante para recolocar o corpo no

conjunto da

cultura e retirá-lo do

determinismo biológico. Essa teoria fez importante caminho tanto nas teorias que relacionavam o marxismo e o feminismo, quanto

36

A perspectiva da análise centrada na teoria do patriarcado foi alvo de críticas que apontavam, sobretudo, a impossibilidade de resgate das especificidades do contexto histórico, no qual a dominação exercida sobre as mulheres estava sendo estudada. Para Sheila Rowbotham (1984), a palavra patriarcado coloca muitos problemas; remete a uma forma universal e histórica de opressão, com fortes marcas biologizantes, produz um modelo feminista de base superestrutural, uma estrutura fixa, enquanto as relações entre homens e mulheres são tão mutáveis quanto fazem parte de heranças culturais e institucionais, implicam em reciprocidades tanto quanto em antagonismos. Assim como o patriarcalismo, a abordagem teórica de cunho marxista referente à divisão sexual do trabalho não é aceita de forma consensual, embora sua grande contribuição se apresente no sentido de articular relações de trabalho e relações sociais, práticas de trabalho e práticas sociais.

141

nas de cunho liberal. Trouxe a possibilidade da constituição do lugar da mulher no pensamento clássico, também político e sociológico, e permitiu que pesquisadoras buscassem os fundamentos sociopolíticos das diferentes correntes de pensamento em ciências sociais de modo a naturalizá-los. Por

meio

dessas

análises

ampliou-se a

compreensão sobre as relações de dominação que antecederam o sistema

capitalista, enquanto relações de poder, teóricas do

liberalismo, desenvolveram essa perspectiva para discutir formas alternativas de processo

decisório na relação entre

Estado

e

sociedade civil. Mostraram-se também como as estratégias de desenvolvimento englobavam a própria identidade feminina, dificultando- lhes o seu próprio caminho. Movimento concomitante à resgate

perspectiva citada

das discussões anteriores ao

gênero,

é

o

presentes nos

estudos desenvolvidos pela

chamada escola

diferentes áreas,

tem como principais teóricos Franz

Boas3738

e

que

e Margareth Mead,

culturalista, para

antropóloga americana, para

problematizar a teoria dos papéis sexuais em sua fixidez de base dicotômica. Mead, que já na década de 1930 estudou papéis sexuais embasados nas etnografias realizadas na Nova Guiné, como Bateson, comparando três 37

culturas, os Arapesh, os Mundugomor e os

Embora também mereçam destaque Malinowisk e Gregory Bateson, antropólogos perten- centes a outras correntes. Malinowiski define seu objeto de pesquisa como a sexualidade. Em sua obra A vida sexual dos selvagens, ao examiná-la como uma força sociológica e cultural que, entre outras coisas, fundamenta o amor, o namoro, o casamento e a família, ele alonga seu tema incorporando as relações de gênero, embora se limite à inclusão do par dicotômico homem/mulher, deixando de lado as relações que se estabelecem entre homens e mulheres. Bateson, seu contemporâneo, realiza um trabalho pioneiro, ao examinar a construção simbólica da feminilidade e da masculinidade entre o povo Iatmul, de Nova Guiné.

142

Tchambuli38, demonstrou que a diferenciação entre eles estaria em suas formas

específicas de

condicionamento

social,

o

que

determinaria a diferenciação ou não entre os papéis sexuais. A autora questionou as diferenças entre os sexos como inerentes à natureza humana, deslocando a atenção da diferença entre os sexos biológicos para as determinações culturais que se impõem ao comportamento humano. Desse modo, contribuiu para a discussão sobre a desnaturalização dos comportamentos sexuais, não apenas entre os povos primitivos por ela estudados, mas também entre os seus concidadãos norte- americanos, que marcavam fortemente a diferença entre homem e mulher e levavam a masculinidade e a feminilidade para muito além de sua aparência biológica. Também no clássico texto de Rubin (1998), o biológico é tomado como o lugar

onde

os significados culturais são

constituídos. Esse construto que está no contexto dos anos 1960 e 1970 – em que as principais questões de gênero diziam respeito à relação entre igualdade e diferença, cultura e natureza – trazia uma reflexão marcada pelo estruturalismo e principalmente pelos estudos antropológicos da época

que

aproximavam a mulher da

natureza e o homem da cultura. Um eixo desse debate era o da preocupação com a subordinação feminina e a crença

38

na

“Estudei essa questão nos plácidos montanheses Arapesh, nos ferozes canibais Mundugumor e nos elegantes caçadores de cabeça de Tchambuli. Cada uma dessas tribos dispunha, como toda sociedade humana, o sexo como de diferença para empregar como tema na trama da vida social, o qual cada um desses três povos desenvolveu de forma diferente. Comparando o modo como dramatizaram a diferença de sexo, é possível perceber melhor que elementos são construções sociais, originalmente irrelevantes aos fatos biológicos do gênero de sexo” (MEAD, 1988, p. 22 apud AGUIAR, 1997).

143

universalidade da subordinação constituída pela separação entre sexo e gênero

como categorias dicotômicas. A corrente da igualdade

colocava que as diferenças eram aprendidas culturalmente e as desigualdades deveriam ser superadas. Foi Rubin que ofereceu uma das primeiras explicações contem- porâneas sobre

as relações

de gênero.

Percebia as

concepções culturais do masculino e do feminino como duas categorias complementares, mas que se excluíam mutuamente, nas quais todos os seres humanos eram classificados, formavam dentro de cada cultura um sistema de gênero, um sistema simbólico ou um sistema de significações que relacionava o sexo a seu conteúdo cultural, de acordo com valores e hierarquias sociais. O sistema sexo-gênero, categoria lançada por ela em 1975 (RUBIN, 1975), se definia “como um conjunto de acordos sobre os quais a sociedade transforma a sexualidade biológica atividade humana, e nos quais

em produtos da

essas necessidades sexuais

são

satisfeitas” (RUBIN, 1998, p. 17). Ela faz uma leitura crítica de autores como Lévi Strauss e Freud – que, prestando atenção à diferença sexual, discutiam como se produzia a passagem da natureza à cultura39 e, embora questionando aspectos dos trabalhos deles, ela utiliza suas ferramentas conceituais para descrever a parte da vida social onde se encontrava o lugar da opressão das mulheres (PISCITELLI, 1998). Também

compreende que

a

sexualidade não

está

relacionada com a genitalidade anatômica e que ela é resultado de 39

Nas palavras da autora, “a passagem de fêmea, como se fosse matéria-prima, à mulher domesticada”.

144

relações

sociais.

Nesse sentido ela ironiza falas referidas na

produção intelectual sobre o tema de que a opressão das mulheres seja uma larga fala sobre a sua natureza e que a origem da opressão esteja nela. A análise das causas da opressão, para ela, se constitui na base de qualquer avaliação do que deveria mudar. As raízes da opressão estão na relação. Segundo ela se as raízes da opressão estivessem nas condições inatas da agressividade dos homens, então bastaria um programa feminista eugênico para características.

Se

capitalismo, então

o sexismo fosse ele

modificar essas

produto da

desapareceria com

ganância do

o triunfo de

uma

revolução socialista. E se a derrota mundial das mulheres aconteceu como resultado de uma rebelião patriarcal, então está na hora de as Amazonas guerreiras começarem a treinar. Ela buscava explicações alternativas para o problema da subordinação social das mulheres. Sua obra suscitou importantes perguntas sobre

os

significados e as relações entre a natureza, a cultura, a sexualidade e o poder. Essas teorias se conformam em um campo importante de funda- mentação dos estudos de gênero, cuja compreensão está vinculada às concepções culturais de masculino e feminino como duas

categorias complementares, e que,

embora se excluam

mutuamente, permitem que os seres humanos sejam classificados, e formem, dentro de cada cultura, um sistema de gênero, um sistema simbólico ou um sistema de significações que relaciona o sexo a seu conteúdo cultural, de acordo

com valores e hierarquias sociais.

Todo sistema sexo-gênero está sempre intimamente ligado a fatores

145

políticos e econômicos de cada sociedade; portanto, sistematicamente ligado à desigualdade social. Aqui o biológico foi assumido como base sobre a qual os significados culturais são constituídos. “Assim, ao mesmo tempo em que a influência do biológico está sendo minada, está também sendo invocada”, [as] “constantes da natureza são responsáveis por certas constantes sociais” (NICHOLSON,2000, p. 11-12). Esses exemplos são de base estruturalista e servem para compreender como a anatomia e a fisiologia são, nessa ordem simbólica, a base da construção ideológica que legitima a ordem sexual. Segundo Héritier (1996, p. 26), Os sexos anatômica e fisiologicamente diferentes são um dado natural; da sua observação decorrem noções abstratas, cujo protótipo é a oposição idêntico/diferente, sobre a qual se moldam tanto as outras oposições conceituais de que nos servimos nos nossos discursos de todo gênero, como as classificações hierárquicas que o pensamento opera e que são valiosas.

Segundo Mathieu (2002), a sociedade ocidental percebeu a dicotomia de sexo como um dado fundado na natureza, sobretudo depois do século XVIII. Inúmeros ritos sociais instauraram a diferença biológica e social dos sexos e sua complementariedade, concebida como igualitária, às vezes, mas seguidamente marcada pela assimetria. Trata-se de uma hierarquização dos sexos, com prevalência do masculino. Em seu trabalho sobre a identidade de sexo/gênero, ela afirma não ser suficiente centrar-se sobre a construção (binária ou ternária) de sexo e gênero. Os estudos sobre a conceitualização das relações

de sexo e gênero

permitem também perguntar como,

146

mesmo dentro das construções ternárias, em que são transgredidas as fronteiras entre

sexos e gêneros, por vezes podem

se refazer

sistemas de pensamento bicategorizantes. Mathieu distingue três categorias de relações. No modelo I, a identidade sexual será baseada sobre a consciência individual do sexo, segundo a qual o gênero

traduz o sexo. O normal, nessa

lógica, é adaptar o gênero ao sexo, embora haja situações em que o sexo é adaptado ao gênero. No modelo II, a identidade sexual será baseada na ideia de que a identidade pessoal é fortemente ligada a uma consciência de grupo, e o gênero simboliza o sexo e vice versa. Isso exprime a elaboração cultural da diferença sexual. No modo III, a identidade de sexo ou a memória de gênero é concebida como contrária à realidade biológica do sexo. O gênero constrói o sexo. Da noção de hierarquia e desigualdade do modelo II, passa-se

à noção

de dominação, opressão, exploração das

mulheres pelos homens. No interior de cada análise, segundo ela, pode-se distinguir: a) uma problemática de identidade sexual a respeito do corpo sexuado e da sexualidade, mas também do estatuto das pessoas dentro da organização social do sexo; b) uma estratégia das relações entre os sexos; c) uma concepção da relação entre sexo biológico e sexo social (ou entre sexo e gênero); d) uma concepção

da

relação

entre

heterossexualidade

e

homossexualidade; dito de outra forma, a relação entre sexo, gênero e sexualidade. Cada um desses três tipos de lógica pode ser a expressão da norma de uma sociedade ou de um grupo particular, seja advindo de indivíduos ou grupos marginais contestatórios para

147

uma mesma sociedade, para um mesmo grupo ou para um mesmo indivíduo ou fenômenos, como por exemplo, a homossexualidade e a heterossexualidade – que a gente

poderia estimar como

intrinsecamente ligadas – não revelariam forçosamente o mesmo tipo de formalização. Inversamente, podem pertencer a um mesmo tipo de lógica de opinião ou de comportamentos aparentemente contrários. A ordem na qual

esses modos

de conceituação são

expostos aqui não corresponde a uma evolução histórica linear notadamente no

que

concerne aos movimentos de mulheres

ocidentais. Esses processos de adequação nessas sociedades que ela estuda deixam, contudo, um papel incontornável ao sexo; mesmo se a introdução do gênero

nas ciências

humanas responde a uma

política, ela apresenta os traços de gênero

como simbólicos e

arbitrários. Tomando o gênero como categoria de análise, como propos Joan análise

Scott em seu texto “Gênero uma categoria útil de histórica”, de 1986, essa perspectiva permite pensar em

continuidade; com as entradas fornecidas pelas autoras anteriores, como corpo,

sexo, gênero,

são categorias radicalmente

historicizadas e desnaturalizadas. Resgata-se a produção histórica, linguística e social sobre sexo, corpo, sexualidade, como produções oriundas de práticas discursivas e institucionais. Desse olhar, com a tese de Scott, configura-se uma aproximação entre

os estudos

feministas e as teorias de gênero e as teorizações pós-estruturalistas, marcadas pela chamada virada linguística (LOURO, 1999).

148

Segundo Scott (1990), falar em gênero

na história é

construir uma narrativa complexa, que considere, ao mesmo tempo, a posição

variável das mulheres no movimento feminista e na

disciplina de História. Para essa autora, à medida que os estudos de mulheres assumem a categoria da diferença como problema a ser analisado, despolariza-se as identidades únicas, enfocando as identidades múltiplas das diferenças e dos valores

culturais em

processos de transformação ao longo do tempo. A temporalidade passa a ser compreendida como múltipla, focalizando conjunturas provisórias e relativas a seu próprio tempo, linearidade

evolutiva de

um

processo

substituindo

a

histórico nacional e

universal. O universal implica uma comparação com o específico ou particular,

numa

temporalidade

historicamente

datada

e

compreendida na desconstrução das categorias naturais, como entidades separadas, mais do que como termos em relação. Seu foco reivindica a importância das mulheres na história e vai contra as definições da disciplina e seus agentes,

já estabelecidos como

“verdadeiros”. Traz à luz a incompletude e a parcialidade da forma como o domínio com que os historiadores têm escrito possibilitando à sondagem da crítica

história,

a verdadeira natureza da

história como uma epistemologia centralizada no sujeito. Desse modo,

tomando o gênero

como

categoria de análise,

tem-se

proposição de novos problemas de pesquisa, novos temas, e outras categorias que se entrelaçam com o gênero, como o corpo, a sexualidade, a experiência e a produção das subjetividades contemporâneas. A valorização de procedimentos de investigação

149

como a história oral, os registros de experiência, os depoimentos, os estudos do cotidiano, as genealogias e, sobretudo, o abandono da pretensão de realizar

pesquisas desinteressadas, representam os

fundamentos a partir dos quais as investigações são produzidas. Assim, gênero não irá se retingir a uma categoria de análise histórica, como apresenta Scott (1990), mas também, como categoria sociológica, antropológica, filosófica e educacional. Com o pósestruturalismo, a ênfase recai na linguagem que por sua vez produz mundo, sentido e sujeitos. Produz- se, por vertentes deste

meio

de algumas

movimento, a “desconstrução” dos princípios

fundantes sobre os quais se estruturam os sistemas tradicionais de pensamento, dentre estes o patriarcado e o falocentrismo, e toma-se o poder como um sistema capilar e descentralizado, nos moldes foucaultinos. Essa compreensão abriga, por sua vez, um campo de teoria onde gênero se produz na compreensão de que ele é relacional, não podendo conceber mulheres, exceto se elas forem definidas em relação aos homens, nem homens, exceto se eles forem definidos em relação às mulheres, além da necessidade de necessariamente ter que tomar em conta gênero como contextualizado, e que homens e mulheres não são uma realidade natural substancializada do que é a mulher e do que é o homem (MACHADO, 1998). A mesma problemática, segundo Lauretis (1994), aparece nos anos 1960 e 1970, quando o conceito de gênero como diferença sexual encontrava- se no centro da crítica

da representação, da

releitura de imagens e narrativas culturais, do questionamento de

150

teorias

da

subjetividade e

textualidade, de leitura escrita

e

audiência. Servia como base de sustentação para as intervenções feministas dentro do conhecimento formal

e abstrato, nas

epistemologias e campos cognitivos definidos pelas ciências físicas e sociais e pelas ciências humanas ou humanidades. Isso

leva essa autora

a reacomodar a possibilidade, já

emergente nos escritos feministas dos anos 1980, de conceber o sujeito social e as relações de subjetividade à sociabilidade de uma outra forma. Um sujeito constituído no gênero, mas não apenas pela diferença sexual, mas por meio de códigos linguísticos e representações culturais, um sujeito múltiplo e contraditório. Ela para

segue

o mesmo

caminho trilhado por

Foucault,

quem a sexualidade é como uma tecnologia sexual; gênero,

nesse caso, seria representação e autorrepresentação como produto das diferentes tecnologias sociais, tais como cinema, discurso, epistemologias e práticas críticas institucionalizadas, ou práticas da vida cotidiana. O gênero

não é, portanto, uma propriedade dos

corpos, nem existe a priori, mas é o conjunto dos efeitos produzidos em corpos, comportamentos e relações sociais, por meio de uma complexa tecnologia política. Lauretis (1994) pensa o conceito a partir de quatro proposições: a) gênero como uma representação – o que não significa que não tenha implicações concretas ou reais, tanto sociais quanto subjetivas, na vida material das pessoas; b) a representação de gênero é sua construção e, num sentido mais comum, pode-se dizer que toda a arte e a cultura erudita ocidental são um registro da história

151

dessa construção; c) a construção do gênero vem se efetuando, hoje, no mesmo ritmo de tempos passados, não apenas nos aparelhos ideológicos de estado,

mas nas academias, na comunidade

intelectual, nas práticas artísticas, nas teorias radicais e até mesmo no feminismo; d) a construção de gênero também se faz por meio da sua desconstrução. Decorre disso, por um lado, que as constantes não podem ser transformadas; por outro lado, do relacionamento entre o que Nicholson chama de funcionalismo (determinismo) biológico e a sociedade, pode- se pensar as diferenças entre as mulheres e o que elas têm em comum, entendendo as variações sociais na distinção das formas culturais de se compreender o corpo. A partir de então, o corpo torna-se uma variável, mais do que uma constante, não mais capaz

de

fundamentar

noções

relativas

à

distinção

masculino/feminino, e aparece atuante em qualquer sociedade. Esse

processo

é tanto

uma

construção sociocultural

quanto um aparato semiótico, um sistema de representação que atribui significados aos indivíduos dentro da

sociedade. A

construção de gênero é tanto produto quanto processo de sua representação. Essa construção de gênero intermédio de várias tecnologias do gênero

ocorre

hoje por

e de discursos

institucionais com poder de controlar o campo do significado social e assim produzir, implantar e promover representações de gênero. Mas os termos para uma construção diferente de gênero também existem nas margens dos discursos hegemônicos. Propostos de fora do contrato social heterossexual, inscrito em práticas

152

micropolíticas do gênero e seus efeitos, ocorrem em nível local de resistências, na subjetividade e na autorrepresentação. Outra contribuição advinda dessa trajetória e que se tornou fundamental, uma vez que gênero foi definido como relativo aos contextos social e cultural, é que ele permite pensar em diferentes sistemas de gênero e nas relações deles com outras categorias, como raça, classe ou etnia, bem como levar conta a mudança e as relações intragênero. Portanto, segundo Scott, a questão da diferença dentro da diferença fez surgir um debate sobre o modo e a conveniência de articular o gênero como uma categoria de análise, que a autora dividiu em duas partes e diversas subpartes: “Gênero pode ser um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos [...] uma forma de dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1990, p. 14)40. “É um meio para decodificar o sentido e compreender as relações complexas entre diversas formas de interação humana.” (SCOTT, 1990, p. 16). Para ela, o gênero implica quatro elementos: 1) os símbolos culturalmente disponíveis que evocam representações simbólicas e com frequências contraditórias; 2) os conceitos normativos, que põem em evidência as interpretações de sentido dos símbolos, os 40

Sobre o poder, em entrevista concedida em 1998 às pesqusiadoras Miriam Grossi, Maria Luiza Heilborn e Carmen Rial, Scott alerta que não se pode tratar a história apenas como a história da dominação masculina, conforme tratada por Bourdieu, para não se perderem com isso ideias mais complexas, como as da subjetividade, e também a possibilidade de as mulheres se reorganizarem contra as regras e as ideias que as aprisionam. A subjetividade feminina não é algo que existe como essência enquanto uma subjetividade feminina ligada ao corpo, à natureza, à reprodução, à maternidade. Mas é algo que existe como subjetividade criada para as mulheres, em um contexto específico da história da cultura e da política.

153

quais se esforçam para conter suas possibilidades metafóricas; 3) uma noção de política, bem como a referência às instituições e à organização social, incluídas nas análises da noção de fixidez para fazê-la explodir, eliminando também a repressão que dela deriva; 4) a identidade subjetiva, que deve ser analisada pelos historiadores e relacionada com toda uma série de atividades, organizações e representações historicamente situadas. Na

constituição das

relações sociais, estão imbricadas as instituições e a organização social como sistemas políticos e econômicos, influenciando normativamente e tentando limitar e conter as possibilidades metafóricas individuais dos símbolos culturalmente disponíveis que evocam representações simbólicas. Essas

formas

de análise

marcaram e marcam tensões

importantes na constituição desse campo analítico, desde aquelas como apresenta Heilborn (1997, p. 102), quando concorda com a conceituação social

de gênero

pela dualidade, que distingue o

biológico e o social, ao definir gênero como: Um conceito das ciências sociais que se refere à construção social do sexo. Significa dizer que a palavra sexo designa agora no jargão da análise sociológica somente a caracterização anátomo-fisiológica dos seres humanos e a atividade sexual propriamente dita. O conceito de gênero existe, portanto, para distinguir a dimensão biológica da social.

Como as que apresenta Bruschini (1992, p. 290) quando o define como: Categoria analítica, como um modo de se referir à organização social das relações entre os sexos. Numa rejeição total ao determinismo biológico, que busca as explicações para a sujeição da mulher em sua capacidade procriativa ou na força física masculina, o gênero enfatiza as

154

qualidades fundamentalmente sociais das distinções baseadas no sexo. É uma categoria relacional, que define homens e mulheres uns em relação aos outros. Rejeita-se, ao utilizar este conceito, a idéia de esferas separadas para um e outro sexo. O estudo da condição feminina, do papel da mulher na história e na sociedade, passa a partir de então a ser substituído pelo estudo das relações entre homens e mulheres.

Héritier (1996), embora com base em de Lévi-Strauss, preconiza que as sociedades e as culturas são todas irredutíveis umas às outras, e que em razão de suas características singulares e de sua experiência pontual, ao mesmo tempo irrisória e totalitária, mantêm o cultural como leitura do biológico. Cada sociedade, portanto, forja sua configuração particular, e a flexibilidade das

combinações

possíveis abre as portas às modificações que fornecem à história os fenômenos da estrutura, rompendo, desse modo, com todas as essencializações universalistas e lineares. Mas é a partir do dado biológico elementar que todas exploram as possibilidades lógicas de combinações paradigmáticas. Heilborn (1998), ao afirmar que o conceito de gênero destaca

a dimensão cultural e ao sustentar que a “natureza” é um

pilar sobre o qual se constrói a diferença sexual, de certo modo, parte do mesmo pressuposto. Na discussão que problematiza a equação natureza/cultura, conforme tratada por outros

autores

41

(LAQUEUR, 1990) , a autora destaca dois pontos principais: que 41

Laqueur mantém uma distinção do corpo, e o corpo, tal como se constitui no discurso, analisa a história da construção do sexo no Ocidente por meio dos signos que atenderam a interesses culturais, político-ideológicos, que interferiram nas descobertas cientificas e nas interpretações do que era observado. A construção de um corpo unisexuado (modelo do sexo único), com diferentes versões atribuídas ao menos a dois gêneros, foi formulada na Antiguidade, para dar valor à afirmação cultural do patriarcado; a mulher era entendida como um homem invertido (modelo

155

as teorias constroem pontos de vista e que o estatuto da natureza serve mais como base lógica do que como postulado sobre uma distinção absoluta que

todos

os sistemas representacionais

expressam. Salienta como o olhar estruturalista pode ser rentável, ocupando-se da generalidade da assimetria intrínseca aos sistemas de gênero,

apoiando-se nas contribuições da Escola Sociológica

Francesa (Durkheim, Lévi-Strauss e Louis Dumont). A autora

resgata

o porquê de o gênero

comportar

hierarquia, com base em Dumont (1979). Nessa hierarquia se advoga que tudo o que é da ordem do humano é marcado e que o plano de significação ocorre no campo do valor, entendido como operador da diferença, originando uma representação não linear do universo, com densidade e planos de significados distintos. Desse modo, expressa-se na relação englobante-englobado a afirmação de mais um princípio: o da totalidade42. metafísico ideal); constituíam signos de continuidade, da unicidade essencial dos humanos e da ordenação hierárquica das manifestações do que denomina-se de Homem e Mulher. O modelo da sexualidade bipolar masculino/feminino (fim do séc. XVIII) não foi consequência de mudanças científicas, mas de mudanças da realidade social, da revolução epistemológica e político-social. Serviu para justificar e impor diferenças morais aos comportamentos femininos e masculinos da sociedade burguesa. Marcar o corpo com a diferença dos sexos deu significação à desigualdade, à descontinuidade sexual, à oposição dos corpos (catálogos das diferenças atribuídas à natureza dos corpos) e à complementaridade natural, em que se anunciava uma incomoda igualdade jurídico-política, atribuída pelo Iluminismo, que não fazia distinção entre Homens e Mulheres. A demarcação entre público e privado, homem e mulher, política e família acentuou-se de forma constante. O corpo sexual vai ser o motivo e a justificativa das desigualdades supostamente naturais entre homens e mulheres, entre interesses públicos e privados, dando suporte ao julgamento das condutas morais privadas que mantêm-se até hoje. O sexo vai diversificar os corpos de acordo com interesses culturais, sociais e políticos. 42 O trabalho de Dumont tem a virtude de desvendar o fato de que a existência das mulheres, enquanto sujeitos sociais completos, sempre foi “domesticada” pelo pensamento antropológico clássico mediante a ideia de que o homem engloba, representa ou incorpora a mulher. Ele é a totalidade suficiente, ela é a parte

156

O segundo ponto destacado pela autora refere-se ao fato de que o modelo analítico é bidimensional, ou seja, a relação hierárquica é composta de um nível:

superior = unidade dos

termos, e de um nível inferior = distinção entre os termos, que comporta simultaneamente identidade e contradição. A hierarquia é uma necessidade lógica do ordenamento social, em que há duas modalidades

de

configuração

societária:

o

holismo

e

o

individualismo (forma aparentemente antagônica que se organiza por um princípio de segmentação e de valorização da perspectiva de uma parte sobre o todo). Segundo a autora, o princípio igualitário é aparentemente antagônico à hierarquia, e há, ao mesmo tempo, um princípio universal de ordenação social e um tipo específico de configuração ideológica contrapondo-se ao individualismo. Num sistema social moldado pelo paradigma societário individualista, a hierarquia se apresenta como o caráter subordinado dessa totalidade. Desse modo, tal sistema reitera a afirmação dumontiana de que toda configuração ideológica depende da existência de um valor que dê significado à totalidade. A questão instauradora, acrescenta Heilborn, remete aos termos de Lévi- Strauss sobre a problemática do incesto, que diz respeito à regulamentação das relações entre os sexos e “à lei da exogamia” (entendida como lei de troca das mulheres e do seu poder

de fecundidade entre

proibição do incesto é uma

os homens). Para Lévi-Strauss, a dosagem

de elementos variados,

insuficiente. O valor dessa contribuição está em acirrar nossa percepção para o imaginário que realmente povoa tanto o entendimento sociológico quanto o senso comum.

157

tomados de empréstimo da cultura e da natureza. Para Héritier, a distinção entre os sexos é definida como a “marca elementar da alteridade, matriz da atividade simbólica”. Apoia-se na ideia de que o pensamento se ordena em função de um equilíbrio entre as propriedades do idêntico e do diferente, fazendo da alteridade o fundamento do simbólico e do social. O incesto só permite pensar como universal a transformação do estatuto da diferença sexual, adquirindo sentido distinto na passagem natureza/cultura. Butler

(1987), por sua vez, questiona a naturalização do

sexo, mostrando, através de Beauvoir, Wittig e Foucault, que o gênero

é uma construção em que a identidade natural não

corresponde à identidade de gênero. O devir gênero ocorre, por um lado, no corpo

culturalmente construído, em um contexto de

sanções, tabus e prescrições, e, por outro, na possibilidade de interação a partir do que é recebido. Ou seja, não somos apenas culturalmente construídos, como, em certo sentido, construímo-nos a nós mesmos. A escolha de assumir certo tipo de corpo, viver ou usar o corpo de certo modo, implica um mundo de estilos corporais já estabelecidos. Escolher um gênero é interpretar normas de gênero recebidas de um modo que as reproduzem e organizem de novo. Menos um ato radical de criação, o gênero é um projeto tácito para renovar a história cultural nas nossas próprias condições corpóreas; não é uma tarefa prescritiva de que devamos nos esforçar por fazer, mas aquela em que estamos nos esforçando sempre desde o começo [...] “a opressão não é um sistema autocontido que confronta os indivíduos como objetivo teórico ou nos gera como joguetes culturais. É uma força dialética, que exige participação individual em larga escala, a fim de manter sua vida maligna. (BUTLER, 1987).

158

Para Butler (1998), os sujeitos que instituem ações são eles mesmos efeitos instituídos de ações anteriores, e o horizonte em que nós agimos está aí como uma possibilidade constitutiva de nossa capacidade de agir. Butler condições nas

quais

os corpos

(2002) mostra que

as

materiais, sexuados, tomam

forma, estão relacionadas à sua existência, à possibilidade de serem apreendidos e à sua legitimidade. Nesse sentido, para a autora, a categoria sexo pertence a um sistema

de heterossexualidade

compulsória que claramente opera através de um sistema reprodução sexual.

de

Essa categoria sexo, nessa visão, é uma

interpretação política e cultural do corpo, não existindo, portanto, distinção entre sexo e gênero. O gênero é embutido de sexo e o sexo mostra ter sido gênero desde o princípio. Assim: o construto chamado sexo é tão culturalmente produzido quanto o gênero; a rigor, talvez o sexo tenha sempre sido gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero não exista (BUTLER, 2003).

2.3 FILIAÇÃO, CONSANGUINIDADE E PARENTESCO: UM CONTINUUM ENTRE O SOCIAL E O LABORATÓRIO Esta relação entre natureza e cultura que problematiza a essenciali- zação da natureza permite a alteridade e embasa outras categorias sociais. De perspectiva estruturalista, conforme LéviStrauss (1982), os sistemas de parentesco são estatutos simbólicos operadores, que atuam nos sujeitos e fazem com que eles obedeçam inconscientemente às suas leis. O sistema de parentesco não

consiste, portanto, em laços objetivos de filiação

e

159

consanguinidade dada

entre

os indivíduos, mas é produto

humano das relações

simbólicas, no conjunto também das

práticas de exogamia.

A exogamia fornece o único meio de

manter o grupo como tal; desse modo, ela evita a divisão e o fracionamento indefinidos, que seriam o resultado da prática dos casamentos

consanguíneos.

mulheres, o mesmo

Acontece,

que com a moeda

portanto,

com as

de troca, cujo nome

elas com frequência carregam. A troca, com efeito, não vale apenas

o que

valem

as coisas

trocadas: a troca

– e,

consequentemente, a regra de exogamia que a exprime – possui, por si mesma, um valor social. Héritier (1989) define o parentesco como o reino da arbitrariedade e da estranheza. Define-o como as relações que unem os homens entre si mediante laços baseados na consanguinidade (enquanto relação

social reconhecida)

e na afinidade (aliança

matrimonial). Tais relações encontram uma tradução nos sistemas de designação mútua (as terminologias de parentesco), nas regras de filiação que determinam a qualidade dos indivíduos nos seus direitos e deveres no interior de um grupo. Traduzem-se nas regras de aliança que orientam positiva ou negativamente a escolha do cônjuge, nas regras de residência, nas regras de transmissão dos elementos que constituem a identidade de cada um e, finalmente, nos tipos de agrupamentos sociais aos quais os indivíduos estão filiados. Em seus estudos, a autora determina quais são as leis gerais pelas quais são elaborados os grandes tipos de estrutura de terminologias de parentesco. Apresenta como funcionam as estruturas particulares

160

de aliança chamadas de estruturas semi-complexas e busca saber se as regras de funcionamento das estruturas semicomplexas de aliança são transpostas ou não, nas estruturas complexas de aliança, que são as que existem, segundo ela, na sociedade ocidental contemporânea. Héritier

(1989)

“consanguinidade”, uma biológica, não

se

problematiza, vez que

adapta

igualmente,

o

termo

essa definição, propriamente

às sociedades humanas em que o

parentesco é o resultado de uma escolha. Trata- se apenas de uma relação socialmente reconhecida, em que a reprodução de homens é um meio de reprodução da ordem social. Segundo ela, não existem variações

importantes nas sociedades em suas maneiras de

classificar, pensar e viver o parentesco. Entretanto, é a partir do dado biológico elementar que todas as sociedades exploram as possibilidades lógicas de combinações paradigmáticas. Com base em Lévi-Strauss, afirma que o parentesco, [...] é parte de um dado biológico elementar, que não pode deixar de ter sido invariável desde sempre, que o pensamento humano aperfeiçoou, simbolizou, explorando as possibilidades lógicas de combinações paradigmáticas que este substrato podia oferecer, e elaborou os grandes tipos de sistemas de parentesco de que vêem actualmente as formas tal como a história da humanidade as modelou. Algumas das possibilidades lógicas de combinação não foram, todavia, realizadas (cf.o artigo “Incesto”): é a sua ausência, mais do que a existência de outras, que assimila os pontos fortes destas leis universais que procuramos. (HÉRITIER, 1989, p. 30).

Essas

estruturas, segundo a autora, foram

realizadas

umas independentes das outras, conforme o pouco número de combinações possíveis

a partir do dado

elementar biológico, e

161

foram possíveis, também, por causa de outros exteriores ao dado

imperativos

biológico, como os sistemas de produção, a

ecologia, a história e suas vicissitudes. Para

Héritier (1989), o dado

biológico é de extrema

“banalidade”: existem apenas dois sexos, o masculino e o feminino; a procriação comporta uma

sucessão natural de gerações; uma

ordem de sucessão dos nascimentos no interior de uma mesma geração permite distinguir os mais velhos dos mais novos. Essas relações naturais exprimem a diferença. É esse material, “banal” na sua simplicidade, que manipula em toda parte o trabalho simbólico do parentesco por

meio

de

séries

de

derivações. Os sistemas terminológicos de cada sociedade humana podem ser mais ou menos ordenados sob uma ou outra das etiquetas dos grandes tipos terminológicos, não obstante as múltiplas combinações evolutivas passíveis de serem encontradas. A

filiação

é

uma

regra

social

que

define

o

pertencimento de um indivíduo a um grupo. Na sociedade ocidental, ela é chamada “bilateral” ou “cognata”, no sentido em que somos aparentados da mesma maneira ao nosso pai e à nossa mãe, aos nossos quatro avós, aos nossos oito bisavós, etc., e que temos os mesmos direitos regulados pela lei e estatutos idênticos em todas as linhas, por pouco que a história da vida individual o permita. (HÉRITIER, 1996, p. 41).

Desse modo, a consanguinidade é uma relação socialmente reconhecida e não biológica, e a reprodução dos homens é um instrumento da reprodução social. A consanguinidade entra

na

representação simbólica da ordem social, segundo a autora, a ponto de que se pode dizer que “um sistema de parentesco não existe senão

162

na consciência dos homens e que não é mais que um sistema arbitrário de representação” (HÉRITIER, 1996, p. 50). Segundo a autora, quando se fala sobre a necessidade da produção ou da sucessão de gerações, o pai vem sempre antes do filho.

No entanto, sabe- se que, no contexto das tecnologias

reprodutivas, rompe-se essa linearidade geracional, quando a distância temporal entre

os espermatozoides congelados e a

inseminação pode cobrir várias gerações. Nesse caso, já é possível inverter a sucessão geracional se, por acaso, o filho do filho for fruto do esperma de seu avô; assim, impedir-se-ia, em certo sentido, de

se distinguir os

mais velhos

dos

mais

novos,

desconstruiriam-se alguns dos pilares dessa teoria. Isto ocorre na medida em que se permite o desaparecimento de um dos elos da corrente, o espermatozoide do pai. Este pulo para “trás” romperia com a ordem prevista como sucessão de gerações. O que também aparece arranhado no empréstimo de útero de uma mãe para sua filha,

embora a troca

seja de outra

ordem corporal e não do

conteúdo dos gametas, mas se coloca a questão da maternidade, pelo menos na lei brasileira, onde continua-se construindo a mãe como aquela que é a autora do parto. Para

Héritier, no entanto, essas inovações não o são

verdadeiramente, porque, por mais que se considerem os avanços tecnológicos e científicos dos últimos tempos, a sociedade constrói sistemas de pensamento a partir do que permite o dado biológico, dois corpos, dois sexos, para outros dois fluidos distintos. Em suas palavras:

163

Não existe sistema de pensamento, por mais ingênuo que nos pareça, nem sistema social, por mais apagado que seja, que não se tenha também baseado numa análise crítica daquilo que a natureza oferece aos nossos olhos, logo do dado biológico tal qual pode ser observado e interpretado com os seus próprios meios de inteligibilidade por aqueles que ponham em prática esses sistemas. De resto, as regras que comandam a filiação, esse lugar necessário e de direito de que depende o reconhecimento do lugar da criança na família e na sociedade, estão enraizadas naquilo que o corpo humano, logo a natureza humana, tem de mais irredutível: a diferença de sexos. (HÉRITIER, 1996, p. 240).

As regras

que comandam a filiação estão igualmente

baseadas naquilo que o corpo humano, portanto, a natureza humana, tem de mais irredutível, a diferença entre os sexos, porque mesmo que excluída a reprodução por meio da relação sexual, não se exclui a reprodução sexuada, nos mais diferentes arranjos sociais, a não ser que se trate de clonagem. Desse modo, para a autora, fica impossível separar o social do biológico, porque não existe na sociedade apenas a ideia de procriação biológica. Todas as regras consagram a primazia do social – da convenção jurídica que é a base do social – sobre o biológico puro. A filiação não é, portanto, simplesmente uma derivação pura da procriação; trata-se, segundo Héritier aparentemente, do desejo de descendência, de um desejo de realização, e não tanto de um desejo de ter filhos, em suas palavras: [...] da necessidade de cumprir um dever para consigo próprio e para a coletividade e não tanto da reivindicação de um direito a possuir [...] Desejo e dever de descendência. Não transmitir a vida é romper uma cadeia de que é nulo o resultado final, e, por conseguinte, lhe interdita o acesso ao estatuto de antepassado. Casamento e procriação são deveres em relação àqueles que nos precederam na existência. Mas a

164

ausência de procriação é também um crime contra si mesmo, tanto nesta como na outra vida. (HÉRITIER, 1996, p. 246).

O social e o biológico, em seu pensamento, são um continuum que ocorre a partir da construção do dado natural que é resistente à construção social: as diferenças materiais entre sexos em sua teoria

os

precedem o ato social. Nesse caso, as

fronteiras entre macho e fêmea, a partir do sexo, são um fato présocial. As regras de filiação são incorporadas naquilo que o ser humano tem de mais irredutível – a diferença entre os sexos –, para ela. Como se pode então explicar os estudos de biólogos quando afirmam a possibilidade de níveis sexuais diferentes no processo de constituição do sexo humano? Do que estariam falando? Não se trata

ainda

certamente de reprodução assexuada, possível

na

clonagem. Entende-se que o pensamento humano trabalhe sobre o dado biológico, que, por ser variável desde sempre, permitiu possibilidades lógicas

de combinação paradigmáticas, conforme

proposto por Héritier. Mas se observa que essas possibilidades são construídas como um continuum entre o dado biológico e o social, a partir da

dicotomia entre

natureza

e cultura, tomada sob a

diferenciação bicategorizada do sexo. Nessa

lógica,

o sexo

biológico não é passível de questionamento. No contexto das NTRc, supõe-se que os sexos com suas substâncias podem então

ser identificados como muitos, não sendo

a própria base material, “a natureza” fixa, a mesma

da

bicategorização por sexo que é realizada pela linguagem dos estudos estruturalistas, a não ser no que se refere a uma ideia

165

sobre a fixidez dos gametas: óvulos e espermatozoides, embora eles possam ser obtidos agora, de vários corpos e com combinações diversas, o que mudaria a compreensão sobre a fixidez da natureza, embora ainda talvez não se possa afirmar que muda a compreensão sobre a pertença do material a um corpo dicotomizado em macho e fêmea, na linguagem de gênero e atribuído ao feminino, ou ao masculino, já que a célula é classificada também em sua fixidez, embora de fato não seja sempre em si mesma assim, e necessite de uma série de relações

para vir a se revelar

como tal. A

bicategorização por sexo comporta a bicategorização em gônadas, sob as diferenças que se constituem em genitália masculina e feminina, “lidas” pela sociedade como normalidade, classificandose, portanto, todo

o resto como

anomalia.

Mas

essa

dicotomização não expressa todos os outros níveis constitutivos de correspondências (no

mesmo

corpo)

entre

gônadas,

cromossomos, genes e fenótipos não correspondentes. Ela expressa somente a da leitura da genitália (STOLLER, 1993); não se trata, neste caso, de comportamento, mas de níveis físicos, de corpo masculino ou feminino, que são traduzidos em gênero. Essa bicategorização é apenas uma construção social do dado biológico, que pode ser essencialmente outra, se compreendida e representada de outro modo, na medida em que são construídos novos

métodos

epistemológicos dos

de

análise

e

estudos sobre

modificados sexo.

os

enfoques

Nesse caso, é o

fundamento natural dessas categorias que passa a ser questionado, conforme já se verificou pelos estudos de Kraus (2000) e Oudshoorn

166

(2000). É contrário ao que parece acontecer em Héritier, para quem o sexo social é construído sobre o modelo binário, que é imperativamente masculino ou feminino, e é dado no interior de um entendimento de que as diferenças biológicas entre precedem o ato social. biológicas entre

Para

os sexos

essa abordagem as fronteiras

machos e fêmeas

são um

fato pré-social,

impeditivo da problematização sobre o que é assumido como natural. O

artigo

de

Kraus (2000)

demonstra como

as

pesquisas que visavam determinar o elemento único que define o sexo biológico foram sistematicamente malsucedidas. A passagem a um nível sempre mais elementar de organização – da anatomia às diferenças hormonais, depois às diferenças cromossômicas e, finalmente, aos genes, não eliminou a ambiguidade, mas, mais do que isso, as aumentou, porque os diferentes níveis de análise propostos não se conciliam entre si. Pode-se, assim, ter um sexo anatômico diferente de um sexo cromossômico, e isso demonstra que há uma impressionante riqueza de situações intermediárias. Estudos desenvolvidos por

Oudshoorn (2000)

também

mostram as dificuldades encontradas para atribuir, de uma maneira inequívoca, as características macho e fêmea aos hormônios. As pesquisas desenvolvidas nos anos de 1920 e 1930 concluem que as moléculas se sujeitam mal a categorias predeterminadas. Os hormônios masculinos e femininos se revelam possuindo estruturas químicas extremamente próximas e efeitos

biológicos muito

variáveis. Existem hormônios masculinos que se encontram também nas

mulheres

e que introduzem

efeitos

feminilizantes.

E,

167

inversamente, existem hormônios femininos que podem

levar à

efeitos masculinizantes. Os estudos realizados à luz das revisões da história da biologia, da embriologia e das imagens do corpo, permitem contruir outras

direções, além daquelas assumidas por Héritier (2000).

Olhares que não contrapõem natureza e cultura, mas fundamentam a identidade da pessoa dentro de um contínuo entre o biológico e o social, a partir do foco sobre as mudanças da realidade social, da revolução epistemológica e político-social que produz a leitura sobre o biológico. Segundo Gardey

e Lowy

(2000),

tanto

o sexo

biológico quanto o sexo social são ambos construções sociais. Nesse

caminho, Strathern (1992) visualizou, no campo

da antro- pologia, forma mais eficaz de romper a dicotomia entre natureza/cultura. Preocupada em cultura sobre

a base

refletir sobre como

opera a

do parentesco euro-americano, Strathern

procura delinear, a partir da reflexão sobre

o parentesco, como

natureza e cultura são recolocadas em novas e complexas relações. A autora

toma

os

novos

tratamentos de

fecundidade como

desestabilizantes do conceito de natureza, gerando impactos sobre outras ideias de parentesco. No intento de compreender como os conceitos de natureza e cultura são colocados em novas e complexas relações, ela contribui para a reflexão de como opera a cultura. Compreende a cultura como as conexões entre os conceitos, que, por sua vez, estendem ou deslocam seus significados por meio de concatenações de ideias. Trata-se da maneira como as pessoas estabelecem analogias entre

168

distintos domínios de seu mundo. Na forma de conexão ou contraste, um

conjunto de

ideias

pode

ser

utilizado para

representar outras. Perguntar-se sobre os efeitos das inovações no campo reprodutivo é perguntar-se sobre os efeitos de todo tipo de outras relações, como sugere a leitura que Piscitelli (1998) faz da obra de Strathern. Por parentesco, Strathern (1992) não entende, portanto, simplesmente os caminhos em que parentes interagem uns com outros, mas

como

essas relações

são apoiadas para

serem

constituídas. Fazendo sexo, transmitindo genes, dando à luz, estes fatos da vida estão formando as bases das relações entre parentes, uma vez que são construídos como alicerces para essas relações entre esposos, irmãos,

parentes e crianças. As ideias

de parentesco

oferecem uma teoria sobre a relação da sociedade humana com o mundo natural. Piscitelli diz que, ao pensar o parentesco como a construção social dos fatos naturais, os domínios dos

assuntos

sociais se combinariam com o mundo natural, ao mesmo tempo em que se separariam, afirmando-se, desse modo, a diferença entre ambos (PISCITELLI, 1998). Ter relações sexuais, transmitir genes e dar à luz são fatos da vida que foram tomados como base para as relações entre esposos, irmãos, pais e filhos. As pessoas reconhecidas como parentes são as relacionadas pelo sangue e as relacionadas pelo casamento, isto é, são aquelas que resultaram da procriação ou de uma perspectiva de procriação. E o processo de procriação, como tal, é visto

como pertencendo ao domínio da

natureza, e não ao domínio da sociedade. Assim, o parentesco é visto

169

como um arranjo social dos fatos naturais, conectando desse modo os dois domínios. Portanto, um parente do qual não se tem dúvida é aquele que está ao mesmo tempo relacionado pelo sangue e cujo relacionamento é reconhecido socialmente. Havendo um

laço

biológico, sempre haverá a questão de se este será seguido por um reconhecimento social ou não, o que irá depender do amparo jurídico construído pela sociedade. Não se trata apenas das formas pelas quais parentes interagem uns com os outros, mas como relacionamentos iguais são constituídos pelo sexo, pela transmissão de genes e pelo nascimento. Esses fatos da vida, assumidos como bases das relações entre esposos, pais e crianças, são, por seu turno, bases das relações de parentesco, incorporadas nos

modelos reprodutivos em que



suposições acerca da conexão entre fatos naturais e construções sociais. Também incorporam certas ideias a respeito da passagem do tempo, das relações entre gerações e, acima de tudo, sobre o futuro. Nesse

caso,

as

procriação introduziram um

possibilidades novo

contemporâneas

contraste entre

de

processos

naturais e artificiais. A reprodução assistida criou um parente biológico como uma categoria em separado. Pelo mesmo processo, o parentesco social está sendo

marcado por uma

deficiência

potencial em credenciais biológicas (quando se trata de um doador, ou de vários doadores no mesmo processo de material genético). Assim, o parente natural do futuro poderá ser aquele que não tem qualquer técnica especial envolvida, ou aquele que não

170

requer uma legislação especial. Dessa forma, poderá ser parente natural aquele que combina atributos biológicos e sociais legais. O que se constituirá como nova será a assistência que vier a ser dada para cada

um desses

domínios. Os fatos naturais da

procriação têm sido assistidos pelos avanços médico-biológicos, enquanto os fatos relações

sociais

de

afinidade e reconhecimento das

têm sido assistidos pela legislação.

As afinidades são

duplamente assistidas. Segundo Strathern, os euro-americanos nada veem de excepcional na possibilidade de facilitar os processos físicos, pois compreendem que tal operação mantém intacta a independência pessoal

e

a

identidade social. O paradoxo disso é que essa

facilitação do processo não implica automaticamente fazer parentes. Isso assiste o fazer crianças. O que está contemplado aqui

é o

fazer de pessoas e, especificamente, de pessoas individuais – o material genético tem consequências para a pessoa que nasce dele e isto faz parte de sua identidade. Os euro-americanos podem pensar o parentesco como existindo entre

entidades abstratas ou inanimadas, tais

como

sociedade e tecnologia. Eles as pensam, igualmente, engajando pessoas em acordo mútuo. Como consequência, as pessoas podem sentir-se poderosas ou sem poder, a partir das relações em que estão colocadas. Alguns

avanços

no

sentido de

romper com

as

dicotomizações entre natureza e cultura podem ser visualizados em autoras como Strathern. Essa autora, partindo da comparação entre

171

“nossas” noções de natureza e de cultura e as crenças dos Hagen, discute a maneira como nossos

estereótipos sobre

homens e

mulheres incorporaram a dicotomia entre sujeito e objeto. O que deriva das noções de “propriedade”, de mundo “natural” sobre o qual se atua. Entretanto, entre os Hagen não há uma concepção de cultura no sentido de trabalhos cumulativos do homem, nem uma de natureza no sentido de algo a ser domesticado e tornado produtivo. Os Hagen utilizam expressões idiomáticas de gênero para falar sobre o social como algo oposto aos interesses pessoais e sobre o “ cultivado” como

distinto do

selvagem. No entanto, os dois

domínios não são colocados numa relação sistemática: falta a metáfora – ocidental – do domínio da cultura sobre

a natureza

(MACORMACK; STRATHERN, 1998). Strathern (1988) propõe pensar gênero apenas como uma diferenciação categórica que assume

conteúdos específicos em

contextos particulares. Nesse sentido, gênero refere-se à apreensão da diferença entre os “sexos”, que assume invariavelmente uma forma categórica, tanto considerado inato

se o sexing na quanto se não

categorizações reside

psique de uma o for.

pessoa

for

A importância dessas

no fato de que as reações sociais são

construídas por seu intermédio. O gênero, pensado como categoria “empírica”, é um operador de diferenças não preestabelecidas que marcam e que só podem ser compreendidas contextualmente. Pode-se criticar os pares binários de natureza e cultura, estabelece-se todo um questionamento das diferenças biológicas como base universal para as categorias de macho e fêmea, além das

172

bases fixas que operam a diferença. Pensar gênero

é pensá-lo,

portanto, como diferente de categoria analítica (visão de Scott), é pensá-lo, simplesmente, como um tipo de diferenciação categórica. Ele é apresentado como uma concepção que deixa de se enquadrar nas dicotomias ocidentais e como principal meio pelo qual são construídas relações sociais orientadas por “outro” modo de pensamento. Cada melanésio possui capacidades que podem ser acionadas na interação com o outro, convertendo cada um, que é múltiplo e plural, enquanto capacidade, em um singular (PISCITELLI, 1997). Essa desconstrução da dicotomização é fundamental, na medida em

que o campo das NTRc trata da maternidade

como sinônimo da essência feminina e da filiação construída sobre as bases do biológico, associada à ideia de natureza como corpo reprodutivo colocado em atividade para gerar filhos e parentes. Na ação de tornar produtiva uma natureza dotada de uma falha, por ser incapaz de ser fértil, as ciências do biológico são apresentadas como as únicas capazes de fazê-lo. Tornar um homem pai e uma mulher mãe demanda uma maneira racional e eficaz de agir, capaz de estimular uma

essência reprodutiva que,

por suposto, se

encontra no interior dos corpos. Essa maneira racional acessa um conhecimento capaz de controlar e acompanhar os resultados do corpo despertado, e essa natureza que sofre o controle tecnológico é tomada em sua passividade e obediência, mesmo que os resultados sejam pensados sob bases probabilísticas, nem sempre passíveis de confirmação. Ao mesmo tempo, quem faz os procedimentos, o

173

médico, se cerca de precauções para reforçar os critérios de fixidez e estabilidade, que são critérios importantes para o agir nesse contexto. O que vem bem ao sabor do que afirma Varikas (2000), ao estudar as numerosas maneiras de utilizar a noção de natureza como forma

de subordinação nos séculos XVII e XVIII.

Conforme as necessidades, essa noção podia ser infinitamente maleável ou infinitamente rígida. Essa fase é superada a partir do século XIX, quando a natureza é identificada como uma realidade exterior imutável a ser

estudada por

métodos científicos. A

necessidade desses padrões de fixidez retrata bem o contexto moderno, ao mesmo

tempo em que revela

um

presente na maneira de fazer, nos sistemas, de

saber

tácito,

medidas, nas

tecnologias de linguagem, nos testes da história social e cultural da ciência (LOWY, 1995). No limite, trata-se da universalidade da ideia sobre o corpo fértil, visualizada na natureza feminina reprodutiva que, no campo da reprodução assistida, é transferida para um “casal fértil”, ou seja, um corpo fértil para um casal “infértil”, entendimento que nos foi inspirado por Van Der Ploeg (1999). Os

casais

e

médicos

entrevistados

revelam

uma

compreensão de natureza como aquela reconstruída em suas “falhas” pela intervenção de toda uma tecnologia – química, laboratorial e médica – capaz de fazer um filho para um casal infértil. Essa capacidade de vencer uma deficiência intrínseca a um corpo e de nele produzir um filho é celebrada hoje pelo senso comum como uma “vitória das ciências

da vida”,

consagrando as ciências

174

biológicas e a crença na evolução e no refinamento tecnológico, capazes de modificar a natureza, por causa da “necessidade social” ou afetiva que visa ter crianças. Nessa discussão observa-se, por um lado, a ideia de “domínio da natureza”, tão presente na modernidade, como um domínio autônomo da atividade humana. E, por outro lado, temse a ideia de “domínio da tecnologia que seria diretamente responsável pelos

avanços

da ciência”, fundamentos desse

processo, ao mesmo tempo em que nas representações dos casais e médicos a tecnologia é percebida como uma “ relação de ajuda”. A natureza é modificada de infértil para fértil, mesmo que nesse caso se trate da restituição de funções, passando o natural e o artificial a serem, realmente, conforme desenvolvido por Strathern (1992), metáfora um do outro. O natural como dado e o cultural como adquirido não são desestabilizados em seus fundamentos; o que ocorre é que, ao invés de se sobreporem, eles passam a ser metáfora um do outro, construindo-se entre si. Essa reflexão

sobre

natural e artificial revela

um

subtexto ligado ao entrelaçamento entre a natureza e a cultura e ao entrelaçamento entre masculino e feminino. Na medida em que se vê a dualidade entre natureza e cultura como metáfora uma da outra, vê-se o masculino e o feminino construindo-se numa continuidade entre natural, social, cultural e político (LOWY, 2000), sendo esta continuidade dada pela crença na evolução e no refinamento dessas

tecnologias, a partir de sua capacidade de construir uma

natureza fértil. A fertilidade passa a ser totalmente “construída” por

175

um tempo. O tempo do nidar, do gestar e do nascer. Depois do nascimento, o corpo (útero, ovários) pode não estar fértil. Ele volta à sua condição de hipofertilidade, ou ausência de fertilidade, exigindo o recomeço de sua construção, caso o casal queira um novo filho. Quando o médico, em seu discurso, insiste em dizer: “é preciso ajudar uma mulher a ser feliz”, ou “faz parte da essência feminina ser mãe”, coloca- se em evidência um modelo

de

“feminilidade essencializada”, fabricada para ela, a partir do entendimento de que existe um corpo natural, que é o corpo fértil feminino; o que foge a esta regra precisará ser aproximado do padrão de fertilidade, entendido como normalidade, porque ser fértil

e

reproduzir- se é o considerado “normal” em toda mulher. Trata-se da remodelação da matéria dos corpos como efeito de uma dinâmica do poder, pois o corpo é uma projeção culturalmente construída. Busca-se, como no estudo de Butler (1999) sobre o corpo dos atletas, uma performance. Fala-se

em

“padrão de

fertilidade”,

porque

as

intervenções labora- toriais, cirúrgicas, químicas, médicas, em geral, não curam a infertilidade; são meios paliativos, segundo Bateman (1999). Sobre isso há consenso na literatura consultada. Delaisi de Parseval (1989) diz que essas técnicas na verdade não são procedimentos para curar a infertilidade; são procedimentos para fazer crianças. Segundo os entrevistados, trata-se antes de uma intervenção para

resolver

a ausência de filhos,

pois

após o

nascimento da criança o casal permanece estéril. Além do fato de

176

que grande parte dos casais que entram em programas de FIV permanecem sem filhos. O mesmo apresenta Vandelac (1996), para quem o problema da infertilidade conta pouco. O que se busca é a solução para o problema da concepção. Para Becker (2000), estar em reprodução assistida tem como paradigma não o diagnóstico; a ênfase é a aparente correção de anormalidade fisiológica para a realização da gravidez, na rapidez e no modo mais direto possível, apesar

dos custos

e da invasividade. Isso se aproxima

agressivamente do ciclo da reprodução natural ou o contorna inteiramente, sem considerar o diagnóstico de infertilidade. Segundo o que se pensa, essas técnicas servem para dar potencialidade temporária ao que era considerado “improdutivo”. As ciências biomédicas se colocam na perspectiva de medicalizar a função que se encontra cindida. Trata-se de assistir e “ajudar” uma natureza que não funciona a funcionar, segundo as experiências relatadas pelos

casais.

Mas,

fazer

funcionar é construir e

modificar suas potencialidades. Se é construção, faz-se um novo corpo,

faz-se por

meio

de instrumentos e práticas. São esses

instrumentos e práticas que

circulam, articulando clínicas,

laboratórios, mídia, trabalho e dinheiro no contexto científico, que são, ao mesmo tempo, capazes de universalizar-se regionalizandose, e de regionalizar-se universalizando- se, na mesma dinâmica em que ocorre a transferência do conhecimento dos centros considerados mais avançados para os lugares onde o processo é relativamente recente, ou seja, do universal ao particular.

177

Desse modo, dá-se também a continuidade entre o social, o cultural e o político. As redes de relações se estabelecem entre médicos, pacientes e laboratórios: pacientes e pacientes, médicos e médicos, médicos e técnicos. Médicos e outras clínicas, médicas e produção científica apresentada em seminários e congressos, e clínicas entre clínicas, criando suporte social e sustentação para a formação de práticas estandardizadas segundo os modos de procedimentos para medicalizar o maternar e o paternar. Essa intervenção permite problematizar a categoria essencializada de “corpo fértil”, mesmo que as bases do resultado desse processo estejam

ainda

condicionadas

a

dados

probabilísticos.

Concomitantemente, leva a pensar nos fatos biológicos como fatos sociais históricos, legados do campo da ciência, ao mesmo tempo que demandados e construídos, performatados individual e socialmente.

2.4 MATERNIDADE E PATERNIDADE: O FAZER DAS TECNOLOGIAS REPRODUTIVAS CONCEPTIVAS As dicotomizações e descontinuidades entre o natural e o cultural e entre o orgânico e o subjetivo são estabelecidas pela linguagem e pelas práticas sociais

que performatam realidades

cotidianas no campo científico (KELLER-FOX, 1999). Desse modo, concorda-se com a crítica sobre a afirmação de que a maternidade humana funda-se na relação natural, biológica, da mãe com seu filho, e a paternidade se constitui em uma função social construída pela cultura (TUBERT, 1996). Criticar esse

178

dualismo essencializado é reconhecer a natureza não como dom, mas ela própria como inscrita em um sistema de significantes que obriga a questionar a constituição de nossa própria natureza e a reconhecer as palavras, os mitos, as leis e os discursos que nos fizeram. Por sua vez, a equação mulher/ mãe/ natureza não funciona só como suporte narcisista (CHATEL, 1998), mas se organiza numa ordem simbólica, constitutiva da diferença dos sexos, em termos binários homologados ao dimorfismo sexual (TUBERT, 1996). Esses pressupostos levam a questões importantes para o entendimento do contexto das NTRc e suas demandas particulares, se forem

tomados em conta

os avanços

tecnológicos e as

preocupações com a infertilidade, com a maternidade e a paternidade, e o argumento usado pelos médicos sobre o desespero da mulher em sua busca por filhos (FRANKLIN, 1990). Neste

trabalho

engravidar, no campo entendimentos sobre

constata-se que dessas

o

tratamento

para

tecnologias, prescinde de novos

as possibilidades reservadas às formas

de

maternidade e paternidade. Também se percebe como está entrando o homem a ser medicalizado, já que é uma escolha que ele deve fazer e sustentar ao longo do processo, ainda que a medicalização continue prioritariamente ocorrendo sobre o corpo feminino, visando a crianças, mais do que à condição biológica da maternidade, segundo argumenta Crowe

(1990).

Observa-se também o

referido por Vacquin (2001), que os casais que tentam esses tratamentos são divididos em dois, (férteis e inférteis) em seu ser e

179

em sua experiência, durante o tratamento, e nos significados que são construídos sobre o que eles fazem. Resta saber o quanto o companheiro/futuro pai se sente participante não apenas de um momento, mas de uma dimensão importante de sua vida: a vida reprodutiva; quanto ele se vincula ao universo das emoções pela experiência da paternidade, se é uma fonte de realização pessoal e transcendência de sua própria vida e história. Os estudo de Giffin e Cavalcanti (1999), pos exemplo, apresentam os homens como objetos interior do campo

e sujeitos emergentes no

da reprodução. Segundo essas autoras, há

atualmente na sociedade indícios de que os homens começam a expressar sua insatisfação com uma identidade masculina calcada na dominação, na força, somente em sua atuação pública, e passam a reivindicar um espaço privado. Também, segundo as autoras, nos

estudos de

gênero

realizados por várias pesquisadoras, aparece o repúdio à identificação exclusiva do feminino com a esfera da reprodução e das relações pessoais, embora a maior parte dos estudos sobre a sexualidade masculina tenha se voltado para a discussão da homossexualidade (ROCHA, 2006; ARAÚJO; SCALON, 2007; OLIVEIRA, 2007; PICANÇO, 2007). A entrada do homem nesse

campo

apresenta como

O papel

provedor vem

um

espaço

de

inovação.

já se do

perdendo relevância, e no campo da sexualidade

alguns pesquisadores apontam para uma relação de aproximação entre sexo e afeto, entre amor e razão.

180

Siqueira (1999) reconhece experiências sociais

que

sinalizam a busca de novos modos de ser no mundo. Essas formas ao mesmo tempo coexistem com práticas em que os sujeitos se mantêm

nos

descontruir.

padrões

que

aquelas pretendem denunciar e

Exemplifica, afirmando: “encontrei, por exemplo,

homens que maternam, mas que não abrem mão de seu lugar de autoridade na família, ou que mantêm o duplo padrão de moral sexual, afirmando que isto é coisa de homem” (SIQUEIRA, 1999, p. 195). Por outro

lado, segundo a autora, a sociedade continua

delegando as responsabilidades com

os filhos

à mulher. Nesse

sentido, é interessante atentar para as políticas de saúde maternoinfantil e para

os programas de atendimento à gestante, que,

frequentemente, quando não desconhecem a participação do pai, lhe relegam um papel secundário. Isso se explica pela construção histórico-social e por causa das teorias que nela são pautadas pelo modelo

tradicional patriarcal, enfatizador da relação

mãe-

filho,embora não nos impeça de reconhecer sinais de mudanças e novas formas de viver a maternidade e a paternidade, além de uma nova relação entre pai-mãe-filho expandindo-se no interior dessa ambiguidade. Siqueira (2000) também afirma

que na década de 1990

houve uma emergência de estudos sobre a masculinidade e o valor subjacente que possui a paternidade para as masculinidades. Do mesmo modo, Costa (1998) analisa a importância da paternidade para a elaboração da masculinidade e, nesse caso,

181

também para gênero. Segundo ela, a análise da polêmica levantada em torno da possibilidade da clonagem humana revela representações sobre a paternidade, particularmente a partir da desestabilidade gerada. A autora

exemplifica com a afirmação, primeiro, de que

os termos pai e mãe passam a ser usados na clonagem, embora Dolly seja um clone e não uma filha. No entanto, as situações de maternidade e paternidade foram ativadas para tratar de uma cópia. Segundo, que há um crescimento do consenso de que os homens devem estar mais presentes na sua função paterna, além de seu papel

de provedor. Terceiro, que, ao mesmo

tempo, há uma

oscilação entre o discurso feminista, que reivindica a participação do homem como um dever, e o discurso sobre o novo homem, defendendo sua participação como um direito. No interior da oscilação entre um discurso do homem macho e opressor com seu correlato, a crise dessa masculinidade, avulta-se a reação negativa à exclusão dos homens das esferas da reprodução e da descendência, tal qual se apresenta na polêmica em torno da ovelha Dolly. O mesmo é apresentado por Strathern (1995), quando analisa a síndrome do nascimento virgem. Essa emergência corrobora a tese de que devem ser efetuados deslocamentos conceituais no campo dos estudos de gênero e suas decorrências na área de saúde e direitos reprodutivos. As pesquisas desenvolvidas na

década

de

1990

sinalizam para

desconhecimento do funcionamento do corpo

o

masculino e dos

sentidos atribuídos pelos homens à reprodução e à sexualidade.

182

Tanto Siqueira (2000) MEDRADO; LYRA,

quanto outros 1999)

autores (VILLA, 1999;

apontam para o fato

de

que,

considerando o gênero e os direitos reprodutivos enquanto eixos articuladores do processo de constituição transdisciplinar da saúde reprodutiva como campo

de investigações e intervenções, a

inclusão do homem nessa arena parece ser uma necessidade urgente. Arilha

(1999),

igualmente,

explicita

preocupações com a população masculina Brasil,

entre

é

as

vêm crescendo no

os formuladores de políticas que se dedicam

nacional e internacionalmente ao campo da saúde Isso

como

consequência

da

constatação

da

reprodutiva.

insuficiência dos

resultados obtidos em torno da saúde reprodutiva das mulheres e da identificação do homem como específicas. Para

sujeito

de necessidades

ela, há uma indicação de que será impossível

continuar pesquisando o campo

da sexualidade e da saúde

reprodutiva, focalizando unicamente as mulheres. Nesse sentido, considere-se a necessidade de promover uma compreensão relacional de gênero mais

substantiva. Incluir os

homens não significa apenas um ponto de apoio para o bem-estar das mulheres, mas

a reconstrução de

processos sociais

e de

mentalidades, que é fundamental para a igualdade de gênero nas práticas reprodutivas. Segundo Arilha (1999) no caso do Brasil, trazer os homens para a cena da saúde e dos direitos reprodutivos, de maneira mais substantiva, supõe desafios de conceituação, na ação política e, também, na esfera de formulação, desenvolvimento e avaliação das políticas públicas. Ela conclui por afirmar que os

183

sentidos dados

por homens e mulheres ao corpo

sexual são

diferenciados e, portanto, remetem a lógicas de concepção de corpos diferentes. Esse fato constitui um campo enorme de intervenção diferenciada, na educação

para a sexualidade e para

a saúde

reprodutiva. De certo modo, Minella (2000, p. 180) reporta- se ao mesmo pensamento, quando afirma que: “os provedores de saúde reforçam as desigualdades de gênero dos usuários, considerando a mulher como

primordialmente responsável pelo planejamento

familiar, elaborando práticas que não facilitam a sua autodeterminação”. Esses

estudos são fundamentais para

compreender a

paternidade de modo mais amplo, no que tange às diferentes questões que a atingem hoje. Mas para o contexto das NTRc, é preciso

considerar esses

possibilidades que

se

aspectos

no conjunto das

apresentam com

as

novas

tecnologias nelas

envolvidas. Nesse sentido, não se pode deixar de olhar o que é analisado por Delaisi De Parseval (2000), que desenvolveu estudos sobre

paternidade no contexto das NTRc, a partir de quatro

características intrínsecas a essas possibilidades. Primeiro, as novas

tecnologias reprodutivas conceptivas

(NTRc) trazem a paternidade adicional, realizada entre

muitos

homens e instituições, com a disjunção das funções de pai, entre eles:

o genitor (doador de esperma); o pai que é o cônjuge

(marido da mãe); o centro médico (com seus pais médicos) e os juízes ou cartórios, que recebem os consentimentos – sistema criado para gerir a doação de material genético de um terceiro.

184

No caso de inseminação artificial com doador (IAD), ou de fertilização in vitro com doador (FIV-D), um cônjuge infértil pode vir a ser pai de uma criança, enquanto o genitor anônimo será chamado, por

convenção, de doador. O

médico

escolhe

os

gametas e decide quem será o doador, pois muitos cogenitores – ou copais

– participam da concepção de uma

criança. Segundo a

autora, a paternidade se torna intencional e adotiva, assumindo a singularidade de uma adoção “pré-concepção”. Pode ser somente o aceite, pelo pai social, de material genético doado por um homem a seu futuro filho (via FIV); apenas a perfilhação de um embrião dado por um outro casal ou, ainda, a adoção pré-concepcional da futura criança do casal – o acolhimento, pelo marido estéril, de um filho de sua companheira concebido com o esperma de um doador. A paternidade pode

ser adiada,

ou diferente.

Na

reprodução assistida, não é mais o momento da fecundação que determina a idade

da concepção, mas o descongelamento dos

gametas. É o que se vê, por exemplo, nos seguintes casos: 1) quando o homem é vasectomizado e recorre, posteriormente,

a

uma

inseminação com espermatozoides congelados antes da cirurgia; 2) homens que sofreram um tratamento esterilizante (quimioterapia) e recorreram, depois de curados, à inseminação artificial; 3) em que, depois

de uma FIV, o casal teve embriões congelados,

ditos supranumerários, a serem implantados anos mais tarde e 4) na paternidade pós-morte; há defensores de uma transferência de embriões dentro do útero materno depois da morte súbita (acidental) do pai, entre o momento da FIV e o momento de reimplantação.

185

Hoje a paternidade, pelo critério do DNA, tornou-se certa, embora Delaisi de Parseval (1998) e outros autores afirmem que as análises do DNA colocam a paternidade em um plano estritamente biológico. Um exemplo de prova da paternidade biológica é a ICSI, uma técnica recente de FIV,

que consiste em injetar dentro do

ovócito um único espermatozoide do marido ou companheiro, permitindo ao homem com

dificuldades reprodutivas ter filhos

próprios, sem a necessidade de um doador. Em um processo de procriação assistida, se o homem do casal é também o dono dos gametas, será preservada a paternidade biológica. Caso não sejam dele os espermatozoides, o doador passa a ser o pai genético, por referência à natureza, e o pai biológico é construído sob o signo da falta, como uma categoria de segredo do casal, pois

não

existe

enquanto genitor, somente no

relacionamento com a mãe, porque é o marido. Sua relação é apenas social, não coincidindo com os preceitos da Biologia. Por sua vez, não se atribui socialmente a categoria de pai genético ao doador, porque ele é anônimo. Ao mesmo

tempo,

também não se constituiu em pai biológico para o filho, por falta de denominação adequada e pela ausência de vínculos com a mãe, mas poderia vir a se constituir, se sua identidade aparecesse. O marido sem ser o doador genético, só é considerado socialmente o pai biológico se essa reivindicação não for feita pelo doador, embora sempre o lugar de ambos pudesse ser restituído de outras formas. O pai genético não tem se constituído como figura de linguagem na relação social e de direito na maioria das legislações

186

porque o pai biológico é engendrado sob a falta genética. Mas o que

ocorreria se ele

aparecesse como o doador do material

reprodutivo? Isso tocaria a quem? Não atingiria necessariamente, a filiação uma vez que procriação, filiação, genitor e parentes, não precisam estar juntos disputando o mesmo investimento na ordem simbólica, embora sempre se possa imaginar como estabelecer soluções para o lugar a ser ocupado por dois pais e pelo estatuto de dois homens, ao terem ambos parte no mesmo processo. As sociedades mostram a filiação como uma construção social e simbólica, unindo adultos e crianças por meio do direito, do dever e das interdições. Em reprodução, entretanto, o sentido se coloca em vincular crianças

concebidas

com

homens.

Na

reprodução assistida, o pai, em geral, é o marido da mãe; porém, isso diz respeito ao casamento e não ao filho. O surgimento do pai

genético

amedronta

os

envolvidos

nessas práticas. A

possibilidade de haver um segundo parceiro/doador talvez seja uma das explicações para a resistência masculina em aceitar a doação de espermatozoides. A maioria dos homens receia sua completa exclusão do processo, que extrapolaria todo esforço deles para construir o seu lugar na concepção. Mostram-se reticentes quanto aos fatos que estariam acontecendo somente no corpo da mulher, os quais eles não sentem. É difícil imaginarem- se criando um filho fruto de uma situação da qual não participaram da relação sexual, nem do material genético, fisicamente falando. Os homens, quando doam seus espermatozoides, também querem garantir que serão os pais biológicos, problema que não aparece na adoção.

187

Separar uma representação que faz coincidir o biológico com o social parece instaurar um esvaziamento da função paterna em sua

capacidade de gerar

um

filho.

Cinde-se igualmente a

continuidade das relações consanguíneas forjadas no imaginário que as acompanha e nas práticas institucionais fundadas muito mais pelas referências jurídicas e sociais à família do pai. Mesmo que novas práticas sejam possíveis para o homem, conforme Delaisi De Perseval (2000) a ausência do seu corpo, a não participação do seu esperma gera o “vazio” biológico, a ancoragem da representação hegemônica de paternidade. A nominação de pai biológico mantém

a

possibilidade do desaparecimento do pai

genético. Ao mesmo tempo, desnaturaliza as concepções culturais de modelos únicos. Talvez pudéssemos deslocar o biológico construído nesses moldes, não mais dizer que um parente por aliança é o genitor e afirmar que, por razões sociais e políticas, e não por razões médicas, outros homens tornaram-se pais, sem vínculos biológicos. Para

assumir

isso

em

reprodução

assistida

é

necessário que o genitor apareça, porque acabará o segredo e o homem que se reconhece como pai da criança terá lugar social e jurídico, mesmo não sendo o genitor. Nesse sentido, a reprodução seria recolocada no contexto global das várias práticas sociais, e o que ficaria em descoberto seria o direito do indivíduo, o lugar que ele ocupa, sua escolha, sua intimidade. Pergunta-se, entretanto, se essa criança que vai nascer terá seus direitos fragilizados porque foi concebida pelo espermatozoide de um doador. Questiona-se, ainda, como o seria em situação de divórcio ou de morte, se não

188

houvesse amparo legal para o filho nascido nessa situação, pois o reconhecimento, o nome, a genealogia são sociais. O homem estéril, que se serve de material genético, já o faz como um ato volitivo, pois a criança está inscrita no projeto do casal. O doador, não identificado como o pai, se estabeleceria como doador genético, dentro de um quadro de valores que o faz como pessoa humana, preocupada com alguém; não

seria,

portanto, uma

palheta de

sêmen. Se é possível falarmos de solidariedade entre mulheres na divisão de óvulos e útero, por que não dizer o mesmo dos homens? No caso da maternidade,

observa-se que ela

ganha

também uma série de outras possibilidades. Convencionalmente, o adágio era de uma mãe identificada. Quando se trata doação

de material para

da

o casal, entretanto, coloca-se em

dúvida se a mãe será aquela que gerou o filho. Qual seria o estatuto da mulher doadora dos óvulos? Assim como o doador de espermatozoide poderia surgir reivindicando paternidade, ela poderia requerer a maternidade? Na relação heterossexual, o útero segue como unificador da relação do casal; para o social, ao mesmo tempo é viabilizada a maternidade biológica

que, nesse caso,

embora, pudesse ocorrer, não é dada pelo óvulo; eventualmente o seria, em se tratando de útero artificial. O óvulo pode ser doado por outra mulher, e nem por isso ela será assimilada como mãe, a (mãe) genética desaparece, até que

ela reclame

a criança para si.

Geralmente, nessas situações, não parece reivindicar, pois está inserida na relação do casal como colaboradora, preenchendo o

189

elemento da falta: o óvulo. O que garante sua ajuda é o anonimato. Poderia ser de outro modo, assim como é para o útero de substituta? Nesse

processo

de

doação

de

óvulos,

está

preservado o que é considerado “natural”: gerar um bebê no útero da mulher do casal. É o útero quem ganha e mantém total relevância como o lugar do desenvolvimento, da nutrição e do cuidado. Nesse sentido, essa prática não altera a maternidade, pois ela permanece centrada no biológico, no corpo da mãe que gerou, até que o útero artificial a rompa. O útero ganha centralidade como o lugar que viabiliza o desenvolvimento de um embrião que foi gerado fora dele. Ser mãe será possibilitar ao embrião ser filho, e ao companheiro, ser pai biológico. Mesmo que a criança possua a carga genética de outra

mulher, a barriga que cresce

equilibra

publicamente a situação e preenche a ausência do óvulo. Perceber o olhar do outro sobre o ventre crescido facilitará os suportes emocionais necessários ao esquecimento do modo como o bebê foi concebido, embora no caso de óvulos não apareçam as mesmas ranhuras no sistema representacional. Separando o biológico/uterino do genético, porque falta ao biológico sua potencialidade em óvulos – e alguém tem que doá-los – , cria-se a categoria genética em separado do corpo que gera. Para manter a integridade do casal é necessário, portanto, absorver o genético, que é de fora. Isso será feito com a recolocação do estatuto do biológico para a paternidade com a diferença de que, no caso da maternidade, as trocas

entre

o feto e a mãe uterina serão

consideradas elementos importantes para o processo de nidação e

190

para o desenvolvimento do embrião¸ pois o corpo da mãe e o do feto interagem. Sob o aspecto biológico, o material genético doado tende a desaparecer, pois foi apenas uma “ajuda”. A ideia de casal fértil fica reforçada e aparece o filho do próprio sangue, mesmo não o sendo inteiramente. Desse modo, garante-se para o social e para o casal o aspecto genético. A mãe doadora e a mãe receptora não se confrontam, e o processo que cindiria a relação de maternidade desaparece. Após nascimento, o anonimato pode ser rompido se existir alguma forma de buscar a origem genética. Independentemente das dificuldades estruturais, o aparecimento da doadora de óvulos e a possível relação com a criança enfrentam resistências que também são de ordem simbólica sobre o estatuto da mãe. O uso de material genético entre

mulheres encontra

ancoragens no discurso médico sobre as trocas que vão ocorrer entre o corpo da mãe e o do bebê durante nove meses. Perde relevância, desse modo, o fato de o óvulo ser doado por outra mulher. Tratando-se da receptora do embrião, a mãe de aluguel ou de maternidade compartilhada, gesta o biológico/ uterino de outro. É a categoria genética (óvulos e espermatozoides do casal) que faz as vinculações com o casal. As trocas fetais e o desenvolvimento do embrião estão no corpo de uma terceira. Com o desaparecimento do vínculo biológico, é preciso garantir o vínculo genético para que esse bebê possa ser considerado do casal. Cabe lembrar, entretanto, que será gerado por uma terceira pessoa com material genético do casal. Ao mesmo tempo, pode-se conceber o útero sem o corpo,

191

porque, para garantir o vínculo desse filho com o casal, é preciso separar o corpo daquela que o está nutrindo e trocando seu sangue e seu psíquico com ele. Considere-se ainda os estudos sobre maternidade, que têm contribuído para criticá-la e desconstruí-la nos seus enfoques biológicos essencializados: estudos tomando

a

maternidade

como

centrados

nas

mulheres,

dado biológico e como

responsabilidade social, como os de vários

autores, dentre eles

Badinter (1980, 1986), Navarro (1997), Tubert (1996). Ao mesmo tempo, esse contexto é legitimado pelo envolvimento do casal (SALEM, 1987) em busca do próprio filho, como uma inquietação que não se resolve com a adoção (QUEIROZ, 2002; FONSECA, 1995). Essas colocações não são apenas ilustrativas das relações entre a natureza e a cultura, entre sexo e gênero; elas reportam-se ao corpo e às funções de maternidade e paternidade, problemas fundamentais para o contexto contemporâneo. Concorda-se que sua identificação com a reprodução biológica é produto de um sistema de representações, uma ordem simbólica que cria a ilusão de naturalidade. A função biológica da reprodução adquire, na ordem simbólica que define a cultura, um valor “remetedor” a campos semânticos complexos, definidos nas articulações significantes, e não a um

objeto

supostamente natural e, é, portanto, uma função

cultural, social e política.

192

CAPÍTULO 3 CONJUGALIDADE: O CASAL INFÉRTIL, O QUERER DO CASAL, O AMAMENTAR E O ENGRAVIDAR

A análise das representações dos casais e médicos sobre NTRc à luz

dos estudos de gênero

exige atenção especial

à

extensão e à complexidade de cada uma das problemáticas envolvidas nessa escolha. Por isso, no sentido de não gerar falsas expectativas e, ao mesmo tempo, de não cair no engodo de achar que se pode tratar sobre todas as questões neste espaço, optou-se neste capítulo por analisar as representações dos médicos e casais sobre NTRc a partir do que elas permitem fazer perceber a respeito de mudanças culturais sobre as concepções de maternidade, paternidade e filiação e sobre como elas interagem com o que os casais pretendem de si, sobre si e suas vidas. Considerando-se que a infertilidade é circunscrita em uma nova ordem universal que de fato não diz mais respeito somente à angústia das mulheres sem

filhos

e a normalizar um

casal

heterossexual, mas trata-se também de medicalizar a sociedade na sua capacidade de se reproduzir reproduzindo- se. Conforme Mills (1982) ocorre sempre mais a racionalização da vida íntima afetiva e pessoal dos indivíduos, os quais,

hoje em dia, sentem-se

encurralados e presos em armadilhas desenvolvidas no mundo

193

cotidiano, carregado de preocupações, às vezes vividas fatalidades insuperáveis se circunscritas apenas

como

como fenômenos

da vida privada. Essa sensação de encurralamento pouco pode ser explicada se não forem consideradas as transformações históricas que se constituiriam em êxito e/ou em fracasso para homens e mulheres tomados individualmente. Contudo, se a vida e a história dos homens e mulheres no seu cotidiano forem ligadas à vida e à história dos

desenvolvimentos globais,

pode-se

perceber um

vínculo profundo entre a vida privada e o curso dos acontecimentos globais, pode- se ultrapassar as preocupações pessoais e locais para desenvolver “uma qualidade de espírito” que,

segundo o autor,

ajude “a usar a informação e a razão, a fim de perceber, com lucidez, o que está ocorrendo no mundo e o que pode estar acontecendo dentro de cada um” (MILLS, 1982, p. 11). Portanto, ao extrair do contexto dessa pesquisa e de suas diferentes redes os aspectos que se conectam em diferentes sentidos, segue-se o primeiro, que se constrói com uma dinâmica demarcada pela forte dualidade de posição dos gametas, órgãos e corpos de mulheres e homens, tal qual

se revelou

em campo,

seja, a

contraposição entre útero e espermatozoide, como ocorre na base discursiva e material sobre a qual a tecnologia atua. Afirma-se, portanto, que nesse contexto a existência do útero

é o

pressuposto fundamental, sem o qual o médico está impossibilitado de realizar a intervenção, e o espermatozoide é tomado em seu papel naturalizador e ativador do processo. De outro lado, a constituição da categoria casal infértil, o segundo aspecto abordado, permite à

194

medicina tratar a esterilidade como um problema do casal, operação que faz com que o sujeito-mulher, presente nas concepções de outros contextos, desapareça; ao mesmo tempo em que o homem passa a ser tratado e a conceber-se como apoio para a mulher, permitindo desse modo o agir médico, que se legitima na ética querer do casal. No seu terceiro aspecto, apresenta-se como as representações sobre paternidade estão associadas a um conjunto de valores em mudança, os quais contemplam desde a superação das resistências ao tratamento por parte dos homens, até a constituição de novos critérios de análise em relação à intervenção nos corpos masculinos e a comum associação realizada entre infertilidade e impotência. Considerem-se também as mudanças ligadas ao papel social do pai, que são visualizadas na insistente busca pelo filho do “próprio sangue” e no projeto de conjugalidade. Na sequência, analisa-se como o resgate genético/biológico é reforçado nas concepções de maternidade e como o filho do próprio sangue se insere no desejo de consanguinidade e na construção da conjugalidade, mesmo se consideradas as diferentes possibilidades sobre o maternar, construídas pelas NTRc. Essa análise

centra-se na experiência narrada dos que

buscaram NTRc em clínicas que trabalham com reprodução humana e faz um recorte temático em sintonia com a bibliografia consultada. Desse modo, recuperam-se as preocupações iniciais em torno das NTRc à luz dos estudos de gênero, na tese também da bioética, aspectos que foram, como já informado retirados desse material.

195

Sob a inspiração de Keller-Fox (1999), consideram-se as palavras dos entrevistados como representações do seu entendimento e do seu fazer, e ao mesmo tempo eles representam as novas realidades cotidianas, realidades que

propagam uma

visão

de

mundo e um relato sobre sua experiência, capazes de falar do passado e do presente e de perfilar o futuro. O que dizem os entrevistados sobre as NTRc é uma linguagem sobre a sociedade e sobre si mesmos, como numa autobiografia reflexiva. Desse modo, rompe- se com a dicotomia de que as palavras são uma coisa e os atos são outra, porque, “dizer é fazer”. Ademais, a função da linguagem não é unicamente descritiva, mas também performativa. Fala-se,

nesse

sentido, do

ato

em palavra.

Os atos

são

necessariamente enunciados sociais que dependem da existência de convenções estabelecidas entre

os locutores, dentro de algumas

circunstâncias, entre as pessoas autorizadas a produzir certos efeitos. Segundo a autora, nem útil

toda

linguagem é igualmente

e não exerce sempre o mesmo poder de atração. Sua

eficácia

ocorre

a partir da existência de convenções sociais

partilhadas, e é a existência da autoridade conferida por

essas

convenções que acaba por determinar seus usos. Essa eficácia depende ainda de sua semelhança com a família de representações já existente. Consideremos, por exemplo, o modo de representar o processo de fecundação biológico. Há vinte anos, este processo podia ser descrito de maneira ao mesmo tempo eficaz e aceitável nos termos da história da Bela Adormecida (penetração, conquista e despertar do ovo pelo espermatozóide, por exemplo), precisamente porque a imagem desta engenharia correspondia aos estereótipos

196

sexuais então dominantes (ver MARTIN, 1991). Em nossos dias, é outra metáfora que nos parece ao mesmo tempo mais útil e mais aceitável: nos manuais contemporâneos, temos antes a tendência de falar sobre a fecundação na linguagem da igualdade de oportunidades – definida, por exemplo, como o processo de encontro e de fusão do óvulo e do espermatozóide. Esta que era uma metáfora socialmente eficaz há vinte anos deixou de sê-lo, em grande parte, por causa de uma evolução radical da percepção ideológica sobre a diferença dos gêneros. (KELLER-FOX, 1999, p. 12, tradução da autora)

Compreende-se, portanto, sob a inspiração de Keller-Fox, que as falas dos entrevistados expressam metáforas e representações que se sustentam em diferentes e ambíguos níveis de entendimento e ao mesmo tempo nas práticas e nos fatos sociais. Essas falas, por vezes, reportam-se a velhas maternidade,

concepções sobre

paternidade e filiação,

tecnologias,

mas também por vezes

mostram que há novos entendimentos sobre esses assuntos. Elas podem

trazer

tanto

a flexibilização sobre o que estava

recrudescido em sistemas de práticas cristalizadas quanto permitir concepções ambíguas e apontar para sensibilidades nunca antes percebidas. De agora em diante, portanto, o esforço será o de perceber quais são as representações que alimentam médicos e casais na tarefa tecnológica de “fazer um filho a três” 43 ou “a quatro”, até a cinco, se considerada a possibilidade de um doador de gametas, ou de útero.

43

O terceiro é o médico homem que, ao entrar na intimidade do casal como relação de ajuda, às vezes se autodenomina como “segundo pai”, ou aquele “por quem a mulher se apaixona”, ou torna-se o motivo das piadas, dirigidas aos homens que estão nessa busca. Episódios relatados pelos homens.

197

3.1 A CONTRAPOSIÇÃO ESPERMATOZOIDE

ENTRE

ÚTERO

E

As representações encontradas entre médicos e que são possibilitadoras dessas

práticas são

construídas através

da

linguagem que contrapõe útero e espermatozoide, e que é também a base discursiva e material para o desenvolvimento de tecnologia e de sua intervenção sobre os corpos ou gametas. Causa estranhamento que a contraposição discursiva dos médicos não se realize entre o óvulo e o espermatozoide, entre gametas, as duas células fundamentais para a reprodução humana, considerada a materialidade morfológica, tal como conhecida pela ciência. Sua contraposição discursiva efetiva-se entre útero e espermatozoide, pois, como eles dizem: “a mulher do casal precisa ter útero”. Mesmo que ela não tenha óvulo, ainda assim é percebida como um útero. “O óvulo é material genético, pode vir da doadora”. Nesse sentido, doar material genético constitui-se numa relação de ajuda dirigida a um casal (na fala dos médicos) ou dirigida a uma mulher (na fala dos casais). A mulher é um útero, fundamento que dá partida à decisão pelo procedimento. Basta a mulher ter um útero, ela não precisa ter ovário, ela vai engravidar. Basta um homem ter um espermatozóide que se cate por aí, mesmo com biópsia de testículo, para que esse casal possa engravidar. Bom, se não tem útero não tem como lidar com ela, porque o bebê de aluguel é complicado na América Latina. Mas a que tem útero, que tem condições, fica sempre a esperança. Os casais lidam mal com o insucesso; a grande vantagem que a gente pode oferecer para esses casais é que sempre há uma solução para a mulher engravidar, a não ser que ela não tenha útero (Entrevista 7, Salvador, médico).

198

Essa declaração tem sua essência no corpo uterino e reportase à leitura que Héritier (1996) faz de Aristóteles sobre a geração e a determinação do sexo, focada na mulher como receptáculo do esperma. Portanto, há uma longa tradição do pensamento ocidental em que o corpo feminino é considerado como passivo e necessitado do elemento ativador masculino, o que lhe confere um estatuto de segunda categoria porque não é portador da condição de ser ato em potência. O macho é aquele que é capaz de realizar, pela força do seu calor, a cocção do sangue, e de transformá-lo em esperma. “Emite um esperma que contém o princípio da forma”, e por princípio é necessário ouvir o primeiro motor, quer a ação seja conduzida em si mesmo ou em outro ser. Ora, a fêmea, matéria, não é mais que receptáculo. (HÉRITIER, 1996, p. 182).

Conceber intervenção

é

a

reprodução

humana

como

sujeita

à

a condição que fundamenta a prática médica. O

primeiro nível de intervenção médica geralmente relatado é sobre o trabalho com os ovários, que são estimulados para superar a falta, e as trompas e o útero

são os pré-requisitos para colocá-los

em

funcionamento. Diante disso, a pergunta que não se cala é se isso indica a necessidade que médicos têm de assegurar-se de que há de fato um lugar para acolher o espermatozoide ou o embrião. Esse parece ser o caso, visto que ainda não se construiu um útero artificial para fazê-lo. Ao mesmo tempo, diante da constatação sobre a existência do útero, a mulher passa a ter uma verdadeira relação produtiva. Ela irá desenvolver a vida e fazê-la crescer, interagindo com ela e sendo responsabilizada por ela.

199

Enquanto isso o homem, quase sempre, quando faz algum exame concomitante ao processo

feminino, é apenas

um

espermograma. Mas ele não é responsabilizado pela sequência da vida. Busca-se nele o papel ativador do espermatozoide, imagem fornecida por Héritier (apud LAVERYNE; COHEN, 1984, p. 193): A particularidade dos gametas femininos é um regime metabólico particular. Uma vez diferenciadas, estas células vão testemunhar uma extraordinária incapacidade em prosseguir o seu desenvolvimento; entram num estado de inércia fisiológica de tal modo que estão votadas a morrer se não forem ativadas. É então que se revela a necessidade da fecundação: o gameta masculino assegurará a função ativadora natural. Esta virtude seminal foi reconhecida desde a mais alta antiguidade.

É somente noutra etapa que se faz, por similaridade, o exame físico nos testículos e no epidídimo masculino, para detectar varicocele

ou outros problemas mecânicos e/ou

físicos

apresentados pelos homens. Embora as clínicas disponibilizem informações em seus sites sobre um rol de exames masculinos44 a serem

realizados, eles

não

foram

relatados pelos

casais

entrevistados. A contraposição entre útero (ovários e trompas), de um lado, e espermatozoide, de outro, mostra que o discurso médico está focado nas partes do corpo da mulher, apesar de os médicos 44 Tais como espermocitograma: exame que avalia a quantidade e a qualidade dos espermatozóides; dosagens hormonais: exames de sangue que avaliam os hormônios produzidos pelos testículos e pela hipófise; ecodopplerfluxometria funicular: exame que avalia a presença de varicocele, que é a causa mais comum (e reversível) de infertilidade masculina; ecografia transretal: exame solicitado nos casos em que não se detectam espermatozóides no ejaculado ou na presença de alterações específicas no exame físico; biópsia de testículo: pode fornecer elementos definitivos quanto à causa do distúrbio na reprodução. Além disso, tem valor prognóstico no caso de aspiração de espermatozóides do testículo. A biópsia pode ser efetuada abrindo-se o testículo ou com agulha que retire um fragmento de tecido; outros exames de sangue: principalmente aqueles que investigam doenças infecciosas. Disponível em: . Acesso em: 26 jun. 2000; out. 2008.

200

insistirem em suas falas no uso da categoria “casal”. A primeira resposta sobre a fertilidade ou infertilidade é dada em relação às partes

do corpo

feminino, como

o lugar capaz/incapaz de

desenvolver um filho. O espermatozoide masculino é visto pelo médico como um elemento que tem algo a oferecer sempre e que, se apresentar algum problema, ele será potencializado a fim de que cumpra sua função observe,

reprodutiva 45.

Porém, embora hoje se

com base em um outro estudo realizado recentemente

(TAMANINI; PARZIANELLO, 2008), que há um crescimento enorme das

tecnologias para

“tratamento”, capacitação,

criopreservação e utilização de espermatozoides, espermatides, ou a microdissecção testicular46, em geral, o primeiro procedimento

45

Além do que, é preciso observar as condições descritas no mesmo site da clínica onde realizaram-se entrevistas com médicos, que indicam considerações a serem feitas na investigação de infertilidade. Que os espermatozóides sejam produzidos pelos testículos em número e qualidade adequados, resultado da normalidade do eixo hipotálamo-hipófise- testicular, associada à integridade anátomo-funcional do testículo; que os espermatozóides sejam adequadamente depositados na vagina durante a relação sexual. São necessárias a integridade anatômica e funcional do aparelho genital masculino (transporte do espermatozóide e ejaculação) e da vagina; que a relação sexual aconteça no momento correto, ou seja, no período próximo à ovulação; que os espermatozóides tenham livre trânsito pelo aparelho genital feminino, o que pressupõe produção de muco e anatomia tubária normal; que os ovários sejam normais, capazes de responder aos estímulos hormonais e determinar o crescimento, amadurecimento e liberação de um óvulo maduro, o que implica integridade do eixo hipotálamohipófise-ovário; que o líquido peritoneal e o peritônio sejam normais (microambiente de fertilização); que as trompas tenham função preservada, ou seja, que captem o óvulo, permitam a fertilização e proporcionem nutrição para o embrião, e que garantam seu transporte até o útero; que o endométrio esteja apto a receber o embrião, participar da sua implantação e propiciar a interação embrião- mãe; que o útero permita o desenvolvimento do embrião até que exista maturidade para a vida extra-uterina. Disponível em: . Acesso em: 26 jun. 2002; out. 2008. 46 A microdissecção testicular é um procedimento recente desenvolvido por Schlegel (1999), que tem por objetivo a localização, com o auxílio do microscópio cirúrgico, de túbulos seminíferos dilatados que apresentam espermatogênese ativa, aumentandose assim a chance de se encontrar espermatozóides nos homens com azooespermia não

201

médico ocorre ainda no corpo da mulher, por meio da estimulação ovariana ou de tratamentos prolongados de diversas ordens, muito antes de estar nesse tipo de investimento tecnológico. Existem várias maneiras de estimular os ovários, mas a escolha do método a ser utilizado é feita pelo médico, considerada a situação de cada paciente, com base em dados clínicos, laboratoriais e radiológicos. A estimulação ovariana é o primeiro passo para o desenvolvimento da técnica FIV/ICSI. Nela são necessários vários embriões e, em razão disso, é preciso que se faça uso de medicações a fim de estimular os ovários a produzir muitos óvulos.

Para alterar esse mecanismo natural, utiliza-se uma

medicação cujo objetivo é desligar o autocontrole dos ovários, preparando- os para serem estimulados. Em seguida, aplicamse

os

medicamentos que

estimulam o ovário

a produzir um

número maior de óvulos do que o habitual. Concluída essa fase, na qual o ovário produzirá vários folículos (pequenos cistos que contêm os óvulos),

faz-se a aspiração em sala cirúrgica, com

ultrassom vaginal e uma fina agulha acoplada. A atenção se volta particularmente para a estimulação ovariana, na expectativa de que ela funcione. Porque, mesmo considerando que o resultado deve ser a nidação uterina, não há possibilidade de potencializar os espermatozoides em direção a um embrião sem os óvulos. Esse procedimento, ao mesmo tempo em que é explicitado como potencializador dos espermatozoides, esconde a função ativa dos óvulos na interação entre os gametas, obstrutiva. Disponível em: . Acesso em: jun. 2007.

202

função que ainda necessita ser problematizada e revelada para desconstruir a categoria ativo/passivo em relação à interação/fusão celular.

Se os óvulos fossem construídos em sua atividade, isso

possibilitaria igualmente a construção de uma nova linguagem, capaz de desessencializar os processos celulares corporais, resgatando a relação entre as células, em contrapartida ao mecanismo biológico mecanicista presente na polarização ativo e passivo. Mas, para

além das descrições fisiológicas sobre

procedimentos, eles

conduzem a novas

esses

concepções e novas

linguagens. É o que se pode constatar no segundo aspecto, quanto à constituição da categoria casal infértil.

3.2 O CASAL INFÉRTIL Segundo Van Der Ploeg (1999), com a FIV, no lugar de considerar as práticas médicas como constitutivas de uma nova definição dos problemas e dos pacientes, a esterilidade masculina torna-se a esterilidade do casal. Se o casal é estéril, a prática da FIV é adequada. Isso acontece através de todo um trabalho que é realizado para transformar a esterilidade masculina na esterilidade do “casal.” Deixa-se o corpo da mulher de lado e constituem- se pacientes híbridos: o casal e a junção mãe-filho no feto. Van Der Ploeg inspira-se no termo purificação, que toma

emprestado de

Latour (1991), para mostrar como um esforço concentrado constrói os destinatários dessas práticas: os homens e as crianças. Diminuemse desse modo,

segundo suas observações, as possibilidades de

verificar que são os corpos

femininos individuais os afetados

203

(diríamos suas partes, porque o foco é sempre nas partes, e a medicina age como se a medicação e o tratamento fossem interferir apenas sobre os ovários, o útero e as trompas). O fato de considerar os casais e os fetos como pacientes na FIV e na cirurgia fetal está diretamente ligado à recorrência elevada dessas operações de escondimento do corpo feminino. Pelo menos é o que aparenta quando se fala “casal” – embora a transferência do embrião para dentro das trompas ou do útero

e a estimulação

ovariana sejam praticadas no corpo da mulher, a referência ao casal obscurece esse fato. Esconde também que o corpo da mulher aqui não é visto como um todo, mas como partes que devem ser estimuladas. Van Der Ploeg (1999) afirma que o casal é tratado como paciente porque há uma continuidade da individualidade masculina; do mesmo modo, o feto se transforma em paciente nas terapias fetais porque é pensado em continuidade à individualizada. Nos

dois

casos

a

criança nascida

e

individualidade da mulher

desaparece para dar força à individualidade dos outros. Concordando com a autora, o que se observa no discurso médico analisado na pesquisa é que, ao constituir a categoria casal infértil, a mulher desaparece enquanto indivíduo, embora o seu corpo

continue sofrendo a medicalização, particularmente

seus

ovários

e

trompas.

Quando, por

exemplo,

os é

o

espermatozoide que não consegue penetrar na camada pelúcida do óvulo, é o óvulo que sofre uma pequena perfuração para que ele penetre, fato relatado em várias entrevistas com casais e médicos.

204

Essas barreiras que

impedem a penetração, esses

obstáculos,

invocam a imagem do ovócito /normal como fator de perturbação para

o espermatozoide, além de desconsiderar que a fusão do

espermatozoide e do óvulo ocorre mais por interação química do que por penetração. Para Martin (1999), mesmo que as teorias sobre óvulos e esperma- tozoides já tenham sido revisadas, a linguagem médica segue repetindo as representações de gênero ativo/passivo, nas quais os espermatozoides penetram os óvulos. Segundo ela, em recentes investigações os pesquisadores concluíram: [...] que o espermatozóide e o óvulo se colam (grudam) por causa de moléculas adesivas nas superfícies de cada um. O óvulo prende em armadilha o espermatozóide e o adere tão firmemente que a cabeça dele é forçada a ficar achatada (plana) contra a superfície da zona pelúcida = envoltório do óvulo. O espermatozóide preso continua a contorcer- se e agitar-se ineficazmente de um lado para outro. A força mecânica de sua cauda é tão fraca que um espermatozóide não consegue quebrar esta ligação química. É onde entram as enzimas digestivas liberadas pelo esperma. Se elas começam a amaciar a zona (envoltório do óvulo) apenas a extremidade (ponta) do esperma e os lados permanecem grudados, então o fraco e agitado esperma pode ficar orientado na direção certa, vencer os obstáculos e atravessar a zona, desde que sua ligação com a zona se dissolva enquanto ele se move para dentro. (MARTIN, 1999, p. 108-109, tradução da autora).

Para ela, ainda que essa nova versão da saga do óvulo e do espermatozoide tenha aberto suposições culturais, os mesmos

caminho nas expectativas e pesquisadores que

fizeram

a

descoberta continuaram a escrever até 1987 ensaios e resumos como se o espermatozoide fosse a parte ativa, que ataca, penetra, entra e desperta o óvulo. A única diferença introduzida a partir

205

desse

estudo foi

que

o

espermatozoide

agora

fazia isso

fracamente. Somente mais de três anos após essas descobertas os pesquisadores reconceituaram o processo

para

dar

ao óvulo

um papel mais ativo. Eles começaram a descrever a zona exterior do óvulo

como

um apanhador (agarrador) agressivo

espermatozoides, coberto com moléculas adesivas

de

(pegadoras,

aglutinantes, aderentes), que podem capturar um espermatozoide com uma única ligação e apertá-lo na superfície da zona. Nas palavras do relato que eles publicaram: [...] a vestimenta (parâmetro) mais íntimo (secreto) da zona pelúcida é uma concha glico-protéica que captura e amarra o espermatozóide antes de ele penetrar. O espermatozóide é capturado no contato inicial entre a sua ponta e a zona pelúcida. Uma vez que o impulso (pressão) do esperma é muito menor do que a força necessária para quebrar uma única ligação, a primeira ligação deste encontro pode resultar na captura. (MARTIM, 1999, tradução da autora)

Essa linguagem sobre o espermatozoide como penetrante do óvulo, ou seja, como elemento “ativo” na fecundação, continua agindo

como

um senso

comum que

institui uma

prática e

encontra-se nas representações dos entrevistados, tanto casais como médicos. Nas representações, os espermatozoides continuam sendo considerados os agentes

ativos

da fecundação e os óvulos

os

agentes passivos. “A médica me disse que meus óvulos tinham uma camada grossa e que seria preciso perfurar um pouco para o espermatozoide penetrá-la.” Constata-se como essa visão de ciência, recrudescida nas marcas

duais e desiguais de gênero,

constituída a partir da

compreensão sobre a função desigual entre os gametas, constrói

206

uma linguagem científica sobre a essência das células reprodutivas, definida pela bicategorização ativo/passivo, que em geral também demarca o que se poderia analisar sociologicamente, seja a relação social entre corpos, a construção performática das tecnologias, as relações entre homens e mulheres e, nesse caso, sobretudo como os fundamentos da

reprodução humana se

restabelecem no

laboratório, sob os mesmos pressupostos da ordem simbólica que faz as relações sociais genereficadas. O espermatozoide penetrador fala do ato em potência, aristotélico, e torna-se sujeito da ação que,

embora longe

no

tempo, permanece nas representações

dessas práticas. Se não é capaz de penetrar, é somente porque o óvulo não está apropriado. É o óvulo em sua inadequação que precisa ser adequado. Nesse caso, por um terceiro elemento: o raio laser, capaz de fragilizar sua zona pelúcida a fim de possibilitar que ela seja penetrada. As marcas

dessa

linguagem científica

(ativo/passiva) se estendem e se reproduzem na narrativa dos casais e ao mesmo tempo dão conta de mostrar uma intersecção entre o mundo considerado “natural” e o considerado social; a linguagem sociocultural que revela o laboratório é sobremaneira uma relação social genereficada. Se tomada a infertilidade na visão tradicional, ela era atribuída somente à mulher, suas células reprodutivas eram vistas como

as responsáveis pela doença

da infertilidade. Mesmo

representadas como passivas e necessitadas do elemento ativador, ganhavam nas representações sociais uma função ativa, pois eram

207

portadoras de incapacidades que deviam ser sanadas, e isso resultava em estigmatização. Nesse contexto, onde não existiam formas de tratamento para a infertilidade, responsabilizava-se o corpo da mulher por sua incapacidade. Sendo responsabilidade social

ele o foco dos pelo

males,

restava-lhe a

não cumprimento do seu papel

sociofamiliar – o de conceber filhos. No contexto da FIV/ICSI, recoloca-se explicitamente na ICSI a finalidade reprodutiva feminina, que é a de fazer funcionar o corpo masculino. Um homem não é considerado realmente estéril se todas

as condições externas (dos outros corpos) permitem ao

seu corpo funcionar. Qualquer que seja a manipulação sofrida pelo corpo da mulher, o objetivo é o de fazer o corpo físico ou social do homem funcionar. Enquanto a técnica não intervém diretamente sobre o corpo do homem, tem-se a impressão de que ela esteja apenas lhe permitindo utilizar sua capacidade. Nesse sentido, percebe-se que o contexto das NTRc é marcado pela explicitação de uma intervenção tecnológica sobre um dos corpos, mesmo se assimilado na linguagem discursiva de casal infértil, e se possibilita com a ICSI a chamada cura para o homem. O que é realizado na ICSI

como

tratamento para

a

infertilidade masculina é tornar um homem pai, ainda que ele possua um único espermatozoide. colocado

no

Esse

espermatozoide,

uma

vez

contexto de uma linguagem relacional de gênero

ativo/passivo, continua sendo representado como

aquele

que

é

ativo. Injetado no núcleo do óvulo, recupera-se a linguagem da

208

penetração via tecnologia. Parece sempre ser ele o potencializador do óvulo. Por exemplo, para a ICSI necessita-se de um microscópio especial, ao qual se acopla um sistema de micromanipuladores, controlados hidráulica e eletronicamente. Esses

manipuladores,

dotados de micropipetas, permitem que se fixe um óvulo e se injete no interior dele um espermatozoide. Nesse caso, o espermatozoide não jaz aderido à camada pelúcida do óvulo, ele é colocado no seu núcleo. Enquanto se procede desse modo com a tecnologia, são mantidas as imagens do

ativo

e do

passivo

na

concepção

tecnológica. Esses procedimentos tecnológicos dão continuidade à prática técnica sobre o pressuposto da penetração. A mesma transferida para

dualidade presente nesse procedimento é a construção da categoria casal infértil – uma

categoria que fala de um híbrido: natureza e cultura. Nesse discurso, a mulher permanece sendo apresentada como responsável por 40% das dificuldades para engravidar; os demais 40% são atribuídos ao homem, e fala-se em 20% como problemas do casal. Mas o que se constata na prática é que o homem é absorvido na categoria casal infértil sem ser constituído como homem infértil. Sua esterilidade não passa pelo corpo e a medicina não trata o corpo do homem como um corpo infértil, mesmo que se fale em 40% de responsabilidade para cada um ou em 20% de dificuldades para os dois. É uma outra forma de abordagem dos percentuais encontrada com frequência na literatura analisada.

209

O casal constitui-se como uma forma de individualidade híbrida. Não é a mulher que é designada como indivíduo, mas o casal. Portanto, a atribuição da esterilidade masculina a um casal se funda em transformações e em migração conceitual para outra esfera de problemas, o que constitui um indivíduo híbrido, casal, não é atribuído a um gênero que agora não se constrói a partir do corpo que gera, mas da função social do casal. Construindo o indivíduo desse modo, a diferença sexual é mantida sob os moldes da desigualdade entre homem e mulher, porque na prática clínica o corpo

feminino segue

sendo

medicalizado e os valores que sustentam a ação dos médicos sobre os corpos

femininos e masculinos na construção dos objetos

tecnológicos reificam valores tradicionais de assimetria sexual. Ao mesmo tempo, legitimam valores consanguíneos e biológicos. A categoria casal infértil ora possibilita a manutenção da representação de que a infertilidade é feminina e de que é um problema associado à sua debilidade reprodutiva, sem politizar o processo em direção a um termo híbrido no social. E na mesma dinâmica, ao mesmo tempo mostra e esconde o homem. Casal infértil é uma categoria que permite sempre focar um polo ou outro, a depender dos interesses do contexto e até mesmo das necessidades médico-sociais, além do momento do desenvolvimento tecnológico e da demanda dessa prática. A medicina, (hoje juntam-se outras especilidades) consegue mudar a categoria casal infértil para

casal fértil – ainda

que

provisoriamente, porque esse “tratamento” visa “fazer um filho”, não

210

curar a infertilidade – ao mesmo tempo

em que mostra para a

sociedade sua capacidade de curar e gerenciar a anormalidade; ao socializar o casal, ele socializa a si mesmo. Embora no

processo

tecnológico a identificação, o

chamado problema do casal, se dê sob a percepção da fusão dos gametas

como entidades diferentes, células masculinas e

femininas, nesse caso, analisar os espermatozoides e identificar suas disfunções poderia permitir o surgimento da categoria homem infértil. O que acontece, contudo, é que essa linguagem não se constitui. A esterilidade, mesmo em se tratando do uso da ICSI, técnica assumidamente criada

por

causa

da infertilidade

masculina no contexto das NTRc, será vista como problema do casal. Nesse caso, mantém-se a diferença entre os gametas para fins de análise e descrição de sua interação ou propriedade. Mas na expressão da considerada problemática da “infertilidade”, que é constituída na relação de conjugalidade, então se fala de um híbrido casal. A ciência mantém suas práticas descritivas laboratoriais na observação dos gametas (óvulos e espermatozoides) e desenvolve um discurso social próprio ao novo contexto. Como dizer que a mulher é ainda

responsável pela

infertilidade e estigmatizar o

infértil no interior do desenvolvimento científico-tecnológico? Por que continuar focando

a infertilidade sobre

a mulher, se as

descobertas tecnológicas já introduziram problemas noutro corpo? Como

transformar esses

acontecimentos em

práticas sociais

211

aceitáveis, diluidoras do contexto cultural resistente a olhar

a

infertilidade masculina, que continua sendo associada à impotência? Sem constituir a categoria homem infértil, o discurso médico desenfoca a categoria mulher infértil para casal infértil, mas a medicina constrói um novo conjunto de percepções, geradoras de práticas e intervenções que inserem o homem na discussão clínica, incluindo-o nas pesquisas, ainda que tímidas, sobre as possíveis causas da ausência do filho, (embora, sobre o sêmen estejam sendo desenvolvidas uma quantidade significativa de pesquisas hoje), ao mesmo tempo em que, em alguns casos, desenvolve procedimentos de anamnese do casal, em geral através

do preenchimento de

47

questionários . De outro lado, essa nova percepção sobre o casal infértil inaugura a entrada do homem a ser tratado e medicalizado no seu processo reprodutivo e, ao mesmo tempo, a de um homem que se concebe a si mesmo como apoio e amparo para sua companheira. As especialidades em reprodução assistida contam com essa visão dos homens sobre si mesmos para se sentirem apoiados nos seus procedimentos, uma vez que sem os companheiros dessas mulheres os especialistas não teriam a matéria-prima, espermatozoide, a não ser que incorressem em graves problemas éticos, com interferência absoluta no relacionamento. Em alguns

casos, eles chegam

a

afirmar que a “mulher se apaixona por eles e que eles, na condição de

47

Ver: , site que pode informar sobre os procedimentos em uma das clínicas, mas que fala das condutas médicas em geral.

212

médicos, têm que estar maduros para reconduzir este amor ao marido”. Ao mesmo

tempo, a referência ao casal infértil constrói

grande aceitabilidade

social,

isso

porque

complementaridade do casal. Desse modo, Bimbi

se

apoia

na

segundo Neresini e

(2000), a importância do casal desloca a atenção do

tratamento do aparelho reprodutivo e do desejo individual

de

maternidade ou paternidade para a solução prática do problema de infertilidade, que é a concepção de um filho para um casal. O deslocamento do foco, primeiro do desejo das mulheres de ter um bebê para o desejo do casal, depois do desejo do casal para a qualidade da concepção, e agora, aparentemente sobre os gametas, constitui a grande transposição que tem acontecido no campo da reprodução nos anos recentes. Ao mesmo tempo, o não nascimento da criança como resultado do sucesso conceptivo e a forma de um embrião ser mantido fora do corpo da mãe, com tudo o que isso implica como material de pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias, tem se tornado a revelação de importantes processos sociais e de quais mercados estão envolvidos com a reprodução humana assistida.

3.3 SOBRE COMO SE FAZ O PAI... Quanto

à

paternidade

representações estão associadas

no

contexto

das

NTRc,

a um conjunto de valores

as em

mudança. Primeiro identifica- se a superação das resistências ao tratamento, às mudanças nos critérios de análise em relação ao

213

uso dos exames e às mudanças na associação entre infertilidade e impotência. Segundo, há

mudanças no

conjunto de valores

ligados ao papel social do pai, seguidas da busca pelo filho do “próprio sangue” no projeto de conjugalidade e, acrescente-se, a “entrada” do corpo masculino no processo de tratamento, além do crescimento das especialidades no campo da reprodução. Na fala dos médicos, o homem no campo da reprodução é um sujeito emergente, conforme tratado por Giffin e Cavalcanti (1999). Ele aparece junto à sua esposa nas clínicas e consultórios. Ao mesmo tempo, nas representações médicas, os homens que vão ao consultório estão preocupados com a “construção da relação”, buscam sua participação e dizem encontrar prazer nisso. Eu acho que pai em um determinado momento é fruto de uma vontade. Ele é fruto de um prazer momentâneo, que é a segunda etapa. E o terceiro, ser pai é a constância e o envolvimento dele com essa criança. Isto é completamente diferente da mãe. Porque tu podes ter. Eu vou te dar um exemplo de como é diferente da mãe. Se tu tens um casamento que termina, a mãe continua com seus filhos. E se ela vai pra um casamento com aquele marido que não é o pai dos seus filhos, ele acaba adotando essas crianças. Ele acaba incorporando essas crianças. Então, a paternidade depende muito da constância. Depende muito do ambiente. Depende muito da forma como a mãe joga essa coisa dentro da sua casa. Agora isso faz parte da mãe e não faz parte do pai (entrevista 16, Alcides, médico).

Conforme a fala acima, tratando-se das relações, em certa medida é a mãe quem faz o pai, mas essa é uma representação compartilhada.

No

processo

de

reprodução

assistida,

é

imprescindível a participação do cônjuge, embora ele não necessite estar presente o tempo todo durante o pré-natal. Isso ocorre, conforme se

observou, também

para

confirmar o

apoio

do

214

parceiro à mulher, garantindo a intervenção na reprodução e, na maioria dos casos, por causa da continuidade genética. Ao mesmo tempo parece tratar-se de uma garantia de que ele está realmente contribuindo para formar uma família heterossexual. Muitos casais se envolvem muito ou o esposo, cônjuge, parceiro, nunca deixa de estar junto, acompanha cada ultrassom do lado, participa muito, como muitos homens participam no pré-natal de suas esposas, e outros muitas vezes você nem sabe quem é, e no dia lá que o bebê nasce, você encontra pra cumprimentá-lo. É muito importante o apoio emocional, a presença física do parceiro não é essencial, é possível conduzir um tratamento bem conduzido face o impedimento da participação dele, mas a mulher se envolve mais por tudo (entrevista 11, Santos, médico).

Esses aspectos são reforçados nas entrevistas com os homens do casal, quando vários relatam ter proporcionado apoio para suas companheiras

durante a

fase

de

tratamento.

Alguns

se

autodenominam âncora psicológica para suas esposas e recolocam, desse modo, seu papel na relação conjugal, quando em certa medida apontam para a ética da igualdade na aproximação dos processos que dizem respeito à sua reprodução e às dificuldades para obtê-la.

Isto

faz pensar no

tema

do

casal igualitário,

conforme tratado por Salem (1987), em que o casal planeja o filho como um evento a dois. Mesmo que, ao contrário do desejo que esses casais têm de proteger-se contra a interferência familiar, no caso dos que se submetem à reprodução assistida, esteja interagindo uma teia de sentidos construída a partir dos parentes e dos amigos que desejam sobrinhos e netos ou cobram explicações plausíveis para a ausência de fertilidade.

215

Isso tem que ser bem administrado, psicologicamente, principalmente por parte do homem, eu não sei se é porque no nosso caso, eu sou meio que âncora psicológica. A Mirna é muito alterada, ela é muito volúvel psicologicamente, então ela se emociona por qualquer coisa, então se eu não estou perto já desestabiliza. Então eu acho que se não fosse a minha modesta estabilidade emocional as coisas não poderiam ter saído da forma como saíram. As coisas foram menos traumáticas por causa disso no caso daquilo que não deu certo. A experiência do insucesso é como qualquer insucesso, é muito difícil quantificar psicologicamente. Eu encarei tranquilamente a primeira e na última, ai eu já encarei de uma forma muito melhor do que na primeira. Eu acho que você vai criando um escudo, uma resistência, você vai criando uma espécie de [...], vai ficando mais firme, vai ficando mais firme com relação ao insucesso; não que você fique mais conformado, mas vai encarando de uma forma mais racional, vai ficando mais realista. Que nós sempre tivemos plena consciência de todas as possibilidades, de todas as probabilidades das estatísticas (entrevista 3, Gilson, casado com Mirna).

Além desse aspecto,

descrevem o acompanhamento da

gravidez como uma experiência de alegria e realização pessoal que se plenifica e desenvolve sua vida reprodutiva e que lhes permite o encontro consigo mesmos e sua ação no mundo através do filho. Com a minha mão nove meses na barriga todo dia, “papai, papai”. Tem muita gente que acha assim, “gravidez, ah, tá”, olha só o lado que a mulher está engordando, está enjoada. Então, pra mim foi diferente, porque a gente já estava há muito tempo buscando, é especial, assim, tu ver a barriga dela começava a mexer, é outra [...], a sensação é legal, a mulher tem privilégio de carregar e tu tens o privilégio de acompanhar, tu vê ela por fora, coisa que ela não vê. Mas é legal ser pai, estar sempre ali do lado, aguentar as barrigadas de noite “chega pra lá”, na cama. Só não estava dentro de mim. Mas é aquilo que eu te falo, a mulher ao meu ver acompanha por dentro, tem um relacionamento que um pai nunca vai ter, é impossível, só que em compensação o que eu vi, ela também nunca vai ver, porque ela não fica fora (entrevista 38/3748 Mário, casado com Sônia).

48

Sempre que o número da entrevista aparecer deste modo é porque a entrevista foi realizada conjuntamente, com ambos os parceiros do casal.

216

Mesmo que essas falas façam pensar em um homem novo, sensível, em boa medida, ativo, participante e decidindo sobre o processo de fazer um filho, ele ainda é responsabilizado pelo equilíbrio econômico ou emocional (ou

se assume

como

tal),

pressupondo que a mulher não dará conta sozinha da situação, como

bem

se observa

acima,

o que

insere

a questão nos

tradicionais estereótipos de gênero. Por outro lado, pela primeira vez na história ele decide entrar com seu corpo, ainda que seja com

material genético, indo

até a clínica

e assumindo certa

exposição pública através dos procedimentos de fazer exames e coletar material. Começa-se a estabelecer, ainda que tímida, uma equivalência dos corpos como doadores do material genético e da disposição colaborativa durante o tratamento e durante as conversas no acompanhamento médico. O homem passa a fazer parte de uma rede de protagonistas envolvidos na tecnologia reprodutiva que integra a categoria híbrida casal infértil, ao mesmo tempo que interage com parentes, médicos, biólogos e outros especialistas. Poderia, se tal houvesse, interagir também com doadores de gametas, mas não é o caso neste estudo. Sobre isso, quando perguntados a respeito, indicam aceitar

a doação de óvulos,

mas não a de

espermatozoides. Essas mudanças nas relações provocam novas abordagens também no conteúdo dos exames, ainda que persistam resistências ligadas ao tratamento. Eu acho que sempre existiu só que a parte fator masculino não era pesquisada e atualmente é ainda a pesquisa do fator masculino a pesquisa comum, cotidiana, laboratorial, ela

217

deixa a desejar. Porque a gente que faz a reprodução assistida faz um tipo de análise um pouco diferenciada e com isso nós pegamos casos de esterilidade, considerados esterilidade sem causa aparente. Aquele esperma que era considerado normal em laboratório tu vês que na prática é diferente. Os critérios de análise são diferentes, então muita coisa que entrava para esta categoria, sem causa aparente, era fator masculino. Fator masculino sempre teve importância, mas o tabu fazia com que não se olhasse. Sempre a mulher era culpada (entrevista 8, Amanda, médica).

Essa nova dinâmica, contudo, não ocorre sem certo esforço para romper com as cristalizações culturais focadas no tratamento prioritariamente sobre o corpo da mulher por parte da medicina e sem considerar a dificuldade dessa medicina em avaliar,

através de

critérios objetivos, protocolares, conhecidos, partilhados pelo campo médico, desnaturalizadores

dos

valores

desiguais de gênero

socialmente partilhados, ou estruturadores de ordens simbólicas condicionantes do olhar sobre gametas, narrativas de vida, desejos e corpos. Então a gente manda até por mandar o marido fazer uma análise urológica, para saber se não tem uma prostatite, uma vesiculite, uma alteração de testículos. E, no entanto, ele sai do urologista assim, eu não tenho nada, e aí bloqueia a atuação da gente. Que ele nos diz que o médico falou que ele não tem nada. Ou então a mulher disse: “Doutora, meu marido disse que não tem nada”, que o médico falou que ele não tem nada. Em muitos outros médicos clínicos que leem espermograma e que dizem: “olha, isso dá para ter até três, quatro ou cinco filhos”. Então existe certo preconceito até pela parte da medicina, do médico não especialista no assunto. Mas isso vem mudando. E a gente sabe que o fator masculino implica, dentro dos casos de infertilidade; em mais ou menos na metade, 40%, é fator masculino. Então isso é uma estatística alta. Quer dizer, não é só mulher. Geralmente os casais que vêm nos procurar, os dois têm problemas; geralmente são casais que ficam muito tempo sem engravidar, não digo os casos simples. Mas os casos de mais tempo, normalmente tem fator masculino e fator feminino. Tem as duas coisas. A gente trata como casal, a gente tem um urologista, e ele não trabalha aqui. Mas a gente manda

218

fazer uma avaliação biológica. Se eu acho que tem uma varicocele, ou se é um caso de infecção, as coisas básicas a gente vê, mas quando chega na parte do exame biológico mesmo a gente encaminha (entrevista 8, Amanda, médica).

Segundo os médicos, também não é fácil para o homem encarar que ele precisa esconde

ser

medicalizado, e mesmo

a mulher

deliberadamente dos parentes, familiares e amigos

as

dificuldades do seu companheiro, ainda que para ele o envolvimento ocorra

em níveis

menores, se comparado ao processo

de

medicalização feminina. Eu observo que os homens ainda são um pouco mais relutantes, principalmente em se tratando de fazer exames. Apesar de que se começa quase sempre pelas mulheres, parece um choque para o homem quando ele percebe que tem problemas. E às vezes é difícil levar a companheira dele ao extremo [...]. O que eu faço aqui, embora não trabalhe com isso, é a parte mais básica, daqui para frente eu não dou sequência com você, com a mulher, se o teu marido não apresentar os exames. Faz parte da escadinha, um exame puxa o outro. Alguns exames são invasivos, são agressivos para mulher e se o problema for masculino. Então acho que alguns homens não estão preparados para isso [...]. Não é fácil para um homem encarar esse tipo de situação. Para os menos esclarecidos isso fere a masculinidade dele. Para os que já desvincularam uma ideia de infertilidade e impotência sexual, tudo bem. Mas para os menos esclarecidos esse tipo de associação é ainda relativamente forte. A nossa cultura que é muito pouco esclarecida em todos os aspectos (entrevista 10, José, médico).

Essas falas parecem confirmar, em boa medida, de acordo com o que afirma Arilha (1998), que “mulheres desejam o filho, e

homens

desejam

a

família”.

Segundo

ela,

o

desejo/vontade/aspiração de ser pai viria com a maturidade e com o casamento, ao

contrário do

que

mulheres, que necessitam ainda

parece

ocorrer com muitas

do filho para determinar sua

feminilidade, o que as insere em um modelo dicotômico de gênero,

219

em que para ela conta a reprodução e para o homem conta seu lugar no mundo como viril e como potencialidade para as relações sociais e históricas, embora neste estudo não esteja em jogo a feminilidade sempre. O desejo de família parece se confirmar em relação aos homens, particularmente quando o

homem vê em sua história

familiar a possibilidade de transmitir valores através da educação e da herança que ele deseja dar a seu filho. “Ensinar”, “educar”, “ter alguém

para

deixar

minhas coisas”

são termos que

estão

presentes em quase todas as falas como papel fundamental do paternar, o que os insere em sua relação social, com o mundo ao seu redor, com sua história social e seu nome. Nesse sentido, o biológico não é uma força sentida como essencializadora do ser homem, mas conta como caminho da estruturação de relações sociais que se darão por meio da paternidade. Isto se confirma pelo modo como eles definem a paternidade/o que é ser pai. Trata-se de um processo

que

aprofunda sua

humanidade, e o filho

concretiza isso porque faz com que se envolvam solidariamente com os problemas dos outros. É uma completude de vida, um exercício afetivo de tolerância, resultante do aprendizado com o próprio filho e com os outros. Eu estou muito feliz, acho que completou a minha vida. Eu me sinto muito mais ser humano. E se eu já entendia de muita coisa, se eu entendo muito os problemas das pessoas, da família, dos colegas de trabalho, hoje eu entendo muito mais. Com os filhos você começa a ver os problemas, as tolerâncias que os pais têm que ter. As pessoas às vezes têm em conta que acham que não mereciam, mas com aquele sentimento de filho também sentem coisas que tu não imaginava. As pessoas às vezes dizem: “Puxa, se fosse meu filho não faria isso!” mas depois quando está na pele tu

220

vês que pelo laço afetivo às vezes tu acabas fazendo, tendo outra atitude (entrevista 32/31, Luiz, casado com Salete).

É o filho

que

permite a um

cumprimento do seu “papel

social”,

homem ser pai, mas

no

também no

reconhecimento de si mesmo no outro. O filho é o outro que fala da

alteridade e lhe

permite marcar a passagem pelo

deixando a continuidade e a sequência de sua

mundo,

vida. Ele faz

transcender esta vida com participação no mundo geracional. “Eu acho que é uma maneira de deixar alguma coisa, uma semente tua, uma participação tua no mundo”. Estar esperando um filho é estar em relação com uma nova realidade, que junta

os desejos e os corpos,

permitindo um

sentimento de gênero igualitário, “um pedaço de cada um”. “É uma obra de arte nossa.” “Ver o filho é ao mesmo reconhecer-se nele, mas saber-se

tempo

aí.” “É o resultado do que

escolhi ser e fazer de mim mesmo.” O homem se sente grávido como casal. Essa experiência foi ótima para mim, na minha cabeça era o casal que estava grávido. Ela complementou a minha vida. Os filhos era o que faltava no nosso casamento, não como complemento, depende muito da cabeça, não era o que faltava em nosso casamento em relação a nosso relacionamento, mas o filho vai ampliar mais ainda (entrevista 30/29, Chico, casado com Monique).

O filho ainda completa e cria a conjugalidade no casamento. Ele cria outra dimensão do casamento. Aquela que só pode existir com a presença de um outro. E esse outro é a síntese de dois corpos, “pedaços de um e de outro”. É a concretude do desejo de dois.

221

Eu também acho que é fundamental um filho num casamento, tanto para manter o casamento, como para unir mais. Isso já vem de gerações, o pai teve, teu pai teve, é uma coisa natural da vida. O ser humano quando está na terra quer fomentar mais gerações. Na hora que tu tens um filho, tu tens um pedaço da mulher e um pedaço do homem. Isso aí eu acho bem interessante. Isso é uma coisa que para mim vem a somar. O filho hoje já está muito definido, ele começa a ter opinião própria desde pequeno, ele vem ajudar muito a enriquecer a união. E uma terceira pessoa sempre tem uma opinião diferente, que pode discordar de um e discordar do outro. Acho que isso transforma, ele se transforma no casamento como juiz, dizendo “Pai, não faça isso!” ou “Mãe, não faça aquilo”. Acho que ele vem a somar. Ele começa a ter opiniões próprias desde pequeno. Ele ajuda bastante a conciliar um casamento e a manter um casamento (30/29, Chico, casado com Monique).

O filho permite a transmissão da cultura entre gerações, a continuidade das crenças e dos valores societais,

o que dá

certeza para os pais e avós que suas escolhas no presente, no contexto matrimonial e nas relações de parentesco, terão um valor de futuro. Na verdade, a gente chegou a um denominador comum, a gente conversa bastante nesse sentido, acho que você quer dar sequência na sua vida, porque na realidade a gente plantou uma semente, essa semente não é só a parte física, mas também todo o conteúdo, a gente pode ensinar a ela o que a gente aprendeu com os nossos pais. Então, tem toda uma continuidade, tanto da parte dela, quanto da minha parte, eu acho muito importante dar uma continuidade, tanto o adotar uma criança, mas é fundamental, pelo menos você tentou, o resultado é o tempo que vai dizer se você conseguiu um resultado positivo, ou um resultado pra adoção. Dessa vez o resultado foi positivo. Até o jeito, até o gesto, faz você sentir que isso é gostoso, e ela, a gente, sempre tem um negócio importante na vida da gente, que é você dar a sequência. Até no teu próprio trabalho, você dá sequência, está incorporado isso ai, até no meu trabalho, eu trabalho com vendas, isso ai é fundamental, você dar uma sequência na coisa e nada mais do que um filho, um não, aliás, vários. Filho é para continuar a história. Enxergar-se nele. Para

222

reconhecer traços físicos. Para observar de quem é o temperamento que ele herdou. Identificar de quem ele é o resultado. Neste caso tem a questão da herança econômica, da casa. Quem vai continuar o patrimônio familiar. Ter alguém para criar e cuidar (entrevista 34/33, Ezequiel, casado com Anita).

Além de transcender a história do presente, jogando o pai para a história do futuro através da educação e da convivência familiar, essa criança poderá imortalizar os ensinamentos dos pais. Eu acho que é uma questão de herança, tu vês a tua participação no mundo que se completa. E tu queres que a tua participação no mundo não cesse a partir da tua morte. O pensar que tu tens uma continuidade. É basicamente isso. Chegar no final da tua vida e verificar que tu não deixaste nada é sofrido. Deixar uma continuidade é bem importante (entrevista 26, Armory, casado com Simone).

Trata-se também do poder de fazer a vida de novo, de recomeçarem novos ciclos, conforme a fala a seguir. [...] companhia, reviver sua juventude. Fazer a vida de novo. Ver o filho fazendo o que a pessoa já não pode mais fazer. Eu não consegui alcançar todos os sonhos, vou fazer com que meu filho consiga. Eu pude fazer uma coisa que imaginava completamente acabada. Quando eu fiz vasectomia eu pensava que tinha terminado. Estou sempre esperando para não cometer os mesmos erros que cometi na vida anterior, aquela vida que começou seu ciclo [...] fazer tudo de novo. Então dá esta sensação de poder refazer e poder ver renascer e de poder fazer tudo de novo e agora sem aqueles erros [...] Sim, porque ele vai cometer aqueles erros também. Mas dá aquela sensação de poder. Só que dá aquela impressão de que por causa da experiência ele [...], tudo o que ele já viu, que ele possa fazer diferente. O primeiro choro do meu filho foi a coisa mais maravilhosa que eu já ouvi em toda a minha vida (entrevista 20/19, Luiz casado com Luiza).

No contexto mais amplo das possibilidades abertas pelas NTRc, a pater- nidade também se reconfigura, conforme observado por

Delaisi De Parseval (2000) e apresentado anteriormente,

223

configura-se pela primeira vez na história, dentro da RA, com o doador de espermatozoides, a possibilidade de assegurar- se que o verdadeiro pai não é genitor, mas o pai que vive e assume processo, e com o filho,

podendo tanto

o

o pai social como os

doadores se garantirem de uma filiação, para que nem um nem outro sejam pegos em delito. Quando, num processo de procriação assistida, o homem é o dono dos espermatozoides, na relação do casal será preservada a paternidade biológica. Porque o pai biológico é também o doador dos gametas. Porém se nessa relação ele não for o dono dos espermatozoides, o doador passa

a ser

o pai

genético, por

referência à natureza, e o pai biológico desaparece pela ausência de referência à categoria corpo. Ele não existe enquanto corpo uterino, porque não gera; ele existe somente na relação com o corpo da mãe, porque é o marido. Sua relação é social e não coincide com a biológica. No caso de não ser atribuída a categoria de pai genético ao doador, do ponto de vista social ele é anônimo e também não se constitui em pai biológico por falta de linguagem na prática científica e pela ausência de vínculos com a mãe. O pai do bebê que irá nascer, o marido da relação casal, será biológico sob o signo de uma falta. Isso porque a categoria biológica está constituída sob o vazio do elemento masculino, o espermatozoide do marido, na relação do casal. O marido poderá ser considerado socialmente o pai biológico, se essa reivindicação não for feita por um terceiro, mesmo que ele nunca o seja de fato, por não ter gerado. E não

224

haverá, socialmente falando,

o pai genético, pelo menos

até

agora ele não tem aparecido na linguagem comum. Pensa-se que a suposição do possível

surgimento do pai

genético é um fantasma a rondar a mente dos envolvidos nessas práticas. A possibilidade de “fazer um filho a três” é real, e talvez seja essa uma das explicações para a resistência dos homens que participaram deste estudo em aceitar

a doação de material

(espermatozoide) de outros homens, e ainda para a dificuldade de encontrar doadores de sêmen, explicitada na fala dos médicos em relação às clínicas do Sul. Isso se reporta à necessidade que a sociedade tem da manutenção dos referenciais biológicos e de fazer coincidir o biológico com o social. Particularmente, tratando-se da paternidade, tal fato ocorre para não esvaziar definitivamente essa construção, uma vez que a categoria casal infértil já esconde as possibilidades da identificação social de problemas de infertilidade masculina. Embora ela justamente com

tenha sido

construída pela

medicina

a proposição de tratar o homem a partir do

conhecimento da existência da infertilidade masculina, ela poderá também escondê-la, na medida em que fragmenta a paternidade genética e social. Cindir uma representação tão arrumada instaura nas relações sociais um esvaziamento da função paterna em sua capacidade de gerar um filho. Cinde-se igualmente a continuidade das relações consanguíneas forjadas

no imaginário que a acompanha e nas

práticas institucionais muito mais sociais à família do pai.

pelas referências jurídicas e

225

Mesmo que novas práticas sejam possíveis para o homem, conforme Delaisi De Perseval

(2000), a ausência do seu corpo

masculino, a não participação do seu esperma, gera o “vazio” biológico, ancoragem da representação de paternidade. Manter a nominação pai biológico é manter a possibilidade de referências pelo desaparecimento do pai genético. Ao mesmo tempo, evita encarar

as

relações

culturais

pautadas ainda

sobre bases

machistas, mesmo que os médicos apontem certa mudança nos relacionamentos entre

homens e mulheres no que tange

à

reprodução. Mudança que também foi observada à medida que os homens entram com seu corpo no processo de reprodução assistida, à medida que se expõem coletando material, tomando remédios e passando por cirurgias. Embora, ao contrário da fala abaixo, encontraram-se, na fala dos homens, resistências à doação e à recepção de material genético. Cada vez mais os homens assumem a dificuldade de ter filhos, o machismo está perdendo um pouco o lugar dentro da reprodução humana, então os maridos aceitam mais a doação de sêmen e as mulheres aceitam, também, com muita facilidade, a doação dos óvulos quando existe uma castração, seja cirúrgica, seja [...], enfim, o fato de haver uma certa dificuldade hoje nas doações, tanto de sêmen, quanto de óvulo, que as pesquisas no lado masculino evoluíram muito. Buscar espermatozóide dentro do testículo, tirar uma célula de dentro do testículo, procurar espermatozóide, isso foi uma evolução muito grande nesses últimos cinco anos. Sabe-se de casais que o marido diz que não tem nada no espermograma, no ejacular, tem dentro do testículo e isso foi um avanço muito grande (entrevista 13, Afonso, médico).

Essa entrada ou desistência do homem, nos processos reprodutivos, marca exemplos de comportamentos ambíguos, ao

226

mesmo tempo que plurais, carregados por vezes de preconceitos e da expressão

sistemática do seu

desejo

de

preservação da

individualidade, o que se constitui porque a família comenta sobre a dificuldade do casal, ou cobra e expõe a busca, e as estruturas laboratoriais e clínicas nem

sempre favorecem o anonimato,

necessidade que para aos homens é sentida como fundamental à sua individuação, o que

acaba

por

conduzi-los a estratégias de

preservação da sua privacidade em situação de controle social, conforme relato abaixo. Eu tive pacientes que inclusive saíam para fazer espermograma fora, porque eles tinham vergonha de serem reconhecidos no laboratório de cidade pequena. Então eles iam para fora, São Paulo, Curitiba, para fazer espermograma; o anonimato era fundamental. Quando eles iam fazer a inseminação aqui na clínica, normalmente a gente não ficava dizendo “é inseminação”. A gente fala tudo por sigla, a secretária realmente tem esta ordem porque houve um tabu muito grande. Até hoje ainda existe um certo tabu em pacientes que nos dizem que não querem que ninguém saiba que eles fizeram a inseminação. Eles dizem: “eu não quero que a secretária, que ninguém fique sabendo que nós estamos aqui para fazer a inseminação. Para todos os efeitos eu estou aqui para fazer um tratamento meu, eu é que estou tratando. Eu é que estou fazendo um acompanhamento, não tem nada a ver com meu marido”. Então ainda encontramos resistência. Então ainda existe um certo tabu, um preconceito em relação a isso. O homem é ainda muito machista, ele tem uma formação basicamente machista e isto persiste em grau menor. Mas mudou muito, os maridos têm vindo, os maridos têm feito espermograma. Então atualmente está mais fácil lidar do que antigamente. Mas ainda existe, existe um preconceito até da parte do médico em geral. Por exemplo, a gente pega um espermograma e a gente vê nitidamente que tem alteração. Não numérica. Mas aí o paciente vai para o urologista, e o urologista diz: “Não, o espermograma dele está ótimo” (entrevista 8, Amanda, médica).

Por

causa

das

cristalizações culturais, há

também a

necessidade de superação da abordagem médica, ainda em grande

227

parte desconhecedora dos problemas de infertilidade masculina, que hoje se volta muito mais para os gametas como que isolados do processo complexo vivido por essas pessoas. Ao mesmo tempo essa abordagem aparece

recrudescida sob padrões antigos de

avaliação, marcados pela desigualdade de gênero e pela ausência de pesquisa em relação ao fator masculino, avaliado na maioria das situações pela urologia.

3.4 SOBRE COMO SE FAZ A MÃE... Este

aspecto

fará ressaltar nas NTRc o resgate

do

genético e do biológico, mesmo que suas práticas permitam tornar obsoleta

a afirmação de que há só uma mãe, não apenas pela

separação do biológico e do genético, mas

cindindo o próprio

biológico, em relação ao uso dos gametas e ao empréstimo do útero. Sabe-se que na medicina ocidental as mulheres foram tomadas, ao longo do tempo, como sujeitos prioritários quanto ao tema da saúde reprodutiva, ainda que majoritariamente sob a égide da saúde materna e infantil. As mulheres sempre foram sujeitadas aos cuidados com a gravidez e o parto, dos quais os homens não participavam. Processo semelhante ocorreu no que diz respeito ao uso de métodos anticoncepcionais e aos tratamentos para esterilidade, questões tomadas como se exclusivas das mulheres. Moscucci (1993), em seu estudo sobre

a história da

ginecologia na Inglaterra, mostra como, desde o começo do século XIX, a ciência foi legitimando a crença de que o corpo feminino era feito para a reprodução. A ginecologia foi definindo o estudo da

228

“mulher natural” como uma especialidade separada da medicina, que identifica as mulheres como um grupo especial de pacientes e um tipo distinto dentro da espécie humana, o que

contribui para

explicar por que o crescimento da ginecologia como a “ciência da

mulher”

não

desenvolvimento

de

foi

acompanhado

uma

“ciência

da

paralelamente masculinidade”

pelo ou

“andrologia”. Como culturalmente

consequência desses

fatos, ainda

prevalece

a ideia de que o sexo ligado à reprodução é mais

forte para a “natureza” das mulheres, sendo mesmo

ligados à

“instintivo,” enquanto os homens são vistos como mais próximos da cultura, dados ao sexo por prazer. Puberdade, parto, menopausa eram considerados como afetando a mente e o corpo das mulheres de maneira sem equivalência para os homens (COSTA, 2001). Na mesma

direção,

Rohden (2001), que estudou a

obstetrícia no Brasil, diz que na formação da ginecologia no século

XIX

diferença entre função

destaca-se a preocupação com a definição da homens e mulheres, centrada no predomínio da

reprodutiva para

as mulheres. Mulheres que buscavam

satisfação sexual sem o objetivo de procriar, que recorriam ao uso de métodos anticoncepcionais, ao aborto ou ao infanticídio, eram alvo da formulação de teorias científicas sobre tais “perturbações” pela medicina dos séculos XIX e XX. No contexto do século XIX, segundo Rodhen, afirmava- se que o corpo feminino refletia, por meio de sua bacia larga e curva, uma predestinação para a

229

maternidade, e estavam entre os temas mais tratados pela medicina o útero, os ovários, a virgindade e a puberdade. A pesquisa no contexto das NTRc mostra que hoje o corpo feminino continua sendo

visto pelos médicos obstetras e

ginecologistas (especialidades que estiveram em foco durante a tese) de forma parcializada; eles veem apenas as partes do corpo ligadas à gestação e ao nascimento, rara é a sensibilidade em relação a outras

questões. E se a mulher não

possuir útero,

as NTRc

permitem que ela o busque em outra mulher, sob a forma de barriga de aluguel, conforme se pode observar na fala a seguir. Antes, a mulher que não tinha trompa estava condenada, porque não podia engravidar, não dava para fazer inseminação, não dava para fazer nada; então hoje a gente diz que é possível se fazer tudo em termos de reprodução humana, NE; uma mulher pode não ter trompas, pode não ter útero, mas se tiver ovários, ela pode ter um filho dela, quer dizer, ela pode pegar os óvulos dela e transferir para um útero de aluguel, que pode ser um membro da família dela, ou sei lá, tá entendendo? (entrevista 3, Elton, médico).

No

contexto

deste

estudo,

a

maternidade

ganha

possibilidades através da relação entre mulheres que desejam ter um filho. Quando se trata da doação de material (óvulos) para o casal, a mãe será sempre aquela que gerou o filho. O útero é o elemento unificador da relação casal, ao mesmo tempo que ele viabiliza a maternidade biológica que, nesse caso, não é dada pelo óvulo. O óvulo pode ser doado por outra mulher, e nem por isso essa outra mulher irá ser assimilada como mãe. Estará inserida na relação do casal como relação de ajuda, preenchendo o elemento da falta: o óvulo. O que garante sua ajuda como conteúdo da falta é o

230

anonimato estabelecido nessa relação. Ao mesmo tempo, nesses casos, ela própria está em situação de dependência. Ela também tem problemas para engravidar e é ajudada pelo casal receptor, que paga o seu tratamento com o pré-acordo da divisão da carga ovulatória, prática corrente nas clínicas, segundo relato dos médicos, embora nenhum dos casais que entrevistamos tenha relatado essa situação. A mulher que está pagando o tratamento para outra

é

anônima, e ela está comprometida com a recepção do material genético. Quem faz a negociação é o médico, no espaço da clínica. Essa troca não prescinde de uma relação jurídica, que se configura na barriga de aluguel, e é considerada pelos médicos como difícil de ser praticada, embora teoricamente seja banalizada pela mídia. Nessa conduta do processo

de doação de óvulos

está

preservado o que é “natural”: gerar um bebê no útero de um dos pares do casal, a mulher. É o útero que ganha e mantém total relevância como o lugar do desenvolvimento, da nutrição e do cuidado. Nesse

sentido, essa prática não

muda

em nada

a

maternidade; ela permanece centrada no biológico, no corpo da mãe que gerou. O que resulta é que o útero ganha centralidade como o lugar que viabiliza o desenvolvimento de um embrião que foi gerado fora dele. Ser mãe será possibilitar ao embrião ser filho e ao companheiro ser pai. Ele se encontrará como pai biológico na geração do seu filho, na barriga de sua mulher; e mesmo sendo um filho com a carga genética de outra mulher, a barriga que cresce equilibra publicamente a situação e preenche a falta inicial pela ausência do óvulo. Olhar a barriga e receber o olhar do outro

231

sobre ela, com seus comentários, facilitará a criação dos suportes emocionais necessários ao esquecimento do modo como o bebê foi concebido. Separando o biológico/uterino do genético, porque falta ao biológico sua potencialidade em óvulos – e alguém tem que doá-los –, cria-se a categoria genética em separado do corpo que gera. Para manter a integridade da categoria casal é necessário, portanto, absorver o genético, que

é de fora, de algum modo. Isso será

realizado com a recolocação do estatuto do biológico. As trocas entre

o feto e a mãe uterina serão consideradas elementos

importantes para o processo de nidação e para o desenvolvimento do embrião. O corpo da mãe que gerou será concebido em interação com o feto gerado. Focando o biológico desse modo, o material genético doado tende a desaparecer; ele foi apenas uma “ajuda”. A relação casal fértil fica igualmente reforçada e aparece o filho do próprio sangue.

Desse modo,

garante-se para o social a

representação de casal com filho. E para o casal, o aspecto genético, mãe doadora e mãe receptora, como cindidor do novo bebê desaparece. A barriga é a prova da capacidade reprodutiva liberada para o exterior. O olhar do outro faz o reconhecimento e comenta sobre a completude da família que está aí, a caminho. Para usar uma expressão durkheimiana, o estado mórbido aparentemente está superado, tem-se um filho para o casal e uma família para a sociedade. Para o médico que participou do processo fazendo o

232

embrião, a barriga é a prova de que conseguiu assistir e acordar a natureza. O filho passa a ser o centro de todos os interesses do casal e da medicina, a ponto de, muitas vezes, se esquecerem do corpo da mãe, que, pelo menos até a cesariana, estará sempre em função

do alto

custo

daquele bebê. Não se pode, contudo,

desconsiderar que, embora não haja estatísticas, a prática médica nos casos de FIV/ICSI, segundo a maioria dos médicos, é sempre a da indicação de cesariana. Dizem: “não podemos correr riscos”, e deixam a mãe insegura, além de condicionada a fazer cesariana. Eu vou te responder: em termos médicos, a gravidez é igual, o pré-natal é igual, tudo é igual. O que eu percebo é que existe uma valorização muito grande desses filhos, eu não sei no que isso vai repercutir a nível de futuro. Mas, normalmente, as mães, os pais que se submetem a essas tecnologias reprodutivas são pais que já lutaram muito até pra chegar até aí, às vezes com dificuldades financeiras, porque uma tecnologia dessas representa muitas vezes um sonho de melhorar uma casa, um sonho de ter um carro novo ou de ter o carro desejado, de ter que vender alguma coisa pra fazer isso. Então, são crianças extremamente valorizadas, é um pré-natal que nos exige muito em termos de cuidado, em termos de acompanhamento, porque são realmente, como a gente diz, fetos muito valorizados, tanto por médicos, quanto por casais, muito mais pro casal, evidentemente, mas a gente acaba participando desse emocional, não tem como fugir desse emocional (entrevista 14, Petrus, médico).

Tratando-se

de

receptora

do

embrião ou

do

espermatozoide fora da relação casal, a mãe de aluguel configura o biológico/uterino de fora. É a categoria genética que faz as vinculações com o casal. As trocas fetais e o desenvolvimento do embrião estão no corpo de uma terceira.

233

Com o desaparecimento do vincula biológico, é preciso garantir o valor do vínculo genético para que esse bebê possa ser considerado do casal; lembremos que ele está sendo gerado por uma terceira pessoa com material genético do casal. Ao mesmo tempo, pode-se conceber o útero sem o corpo, porque, para garantir o vínculo desse filho com o casal, é preciso separar o corpo daquela que o está nutrindo, cuidando e trocando seu sangue e seu psíquico com ele. O corpo da mãe é ocultado, e o foco das atenções é o bebê. Esse processo – cindir-se-á ainda mais se os óvulos forem da doadora para uma mãe de aluguel com o espermatozoide do marido do casal, cujos embriões são conseguidos por inseminação artificial ou in vitro, com trans- ferência posterior de embrião para a mãe uterina. Porém, metaforicamente, essas

cisões

ocorrem

também quando os médicos homens dizem cumprir a função serem

eles mesmos

partes

de

do corpo na reprodução, eles se

comparam metaforicamente a órgãos reprodutivos, trompa artificial. E, em realidade, o que a gente é? Na realidade nós somos uma trompa artificial e a nossa função é fazer aquilo que a trompa não faz. Porque a trompa é onde ocorre a união do espermatozóide com o ovócito. Então, isso que a gente faz, nós somos uma trompa artificial. Nós procuramos, pegamos de um lado e de outro e juntamos, deixamos crescer e depois colocamos, devolvemos pro útero. Então, eu digo, nós somos uma trompa artificial (entrevista 2, Prado, médico).

Mas, desconsiderada essa relação com o filho, mantém-se a noção essencializada de corpo naturalmente fértil, na medida em que a intervenção médica é assumida como relação de ajuda para fazer funcionar uma potencialidade que

estava

lá, embora com

234

dificuldades para se manifestar. O casal será socializado como pai e mãe natural para além

da

doação dos óvulos,

porque o

anonimato permite isso. Mesmo levando em conta certo ruído na relação, ainda que não explicitado, sobre a presença anônima da doadora ou doador genético, o filho será tratado como do próprio sangue, categoria que motiva toda a busca nas representações dos casais e sobre a qual a prática médica se apoia. Em se tratando de mãe de aluguel, então essa situação se desarticula. Nesse caso, a barriga é evidenciada como ruído. E o bebê será filho

do casal somente se forem

generosidade de quem o carrega

tomadas em conta

a

e o contrato jurídico. Mesmo

considerando os aspectos jurídicos, ainda assim há riscos de perda. A portadora de aluguel poderá ser uma estranha, que o faça “por dinheiro”, ou a irmã, a mãe ou a avó, que o façam “por amor”. Mas no Brasil a “barriga de aluguel” está proibida. “A barriga de aluguel está proibida no nosso sistema legal, que adotou o critério da autoria do parto como regra para a definição da maternidade.” (RIBEIRO, 2002, p. 45). O Conselho Federal de Medicina (CFM) recomenda que a relação útero de aluguel se configure entre parentes próximos, e parece haver maior aceitação quando é a avó ou uma irmã que gera, no interior dos limites da configuração familiar49. Isso, a nosso ver, elimina a relação econômica e reestrutura a ideia de ajuda e solidariedade na busca do filho. O que está em jogo, mais uma vez, é o filho e a família. Ser solidária em uma situação dessas 49

Não faltam notícias recentes sobre avós que geram bebês para suas filhas ou filhos, abrindo precedentes jurídicos sobre a questão da autoria do parto.

235

revela conteúdos e valores reconhecidos como estruturantes do conjunto social. O filho é fundamental. E a colaboradora se torna igualmente reconhecida pela sociedade como pessoa de bem. Ela ajudou o homem a ter seu próprio filho e a mulher a ser mãe. O que muda nesse último caso é a base da relação social: o corpo fértil. Ela não está dada na relação casal, mas fora dele. Ela se fixa nos elementos, no útero de outra mulher, podendo ser os óvulos da mulher do casal ou de outra, e o mesmo pode ocorrer com os espermatozoides. Essa situação delineia ainda outras possibilidades além dessa. Por exemplo, o caso em que a mulher que gera o faz a partir do óvulo e do esperma do casal. É possível também que o corpo que gera seja o gerador de um bebê com óvulo da mulher do casal e esperma de doador, ou com esperma do homem do casal e óvulo de doadora. Ou ainda com nada do casal, tudo de doadores. Em todas as situações, mesmo considerados os casais entrevistados, em que o material genético, pelo menos

até onde revelado,

lhes

pertence, e nos quais se encontra resistência de assumir essas práticas, é preciso considerar que as realidades biológicas também necessitam de explicações mais profundas. Nesse sentido, acorda-se com Oudshoorn (2000), que é preciso

problematizar o corpo

natural. Ao mesmo tempo, é preciso problematizar as inter-relações entre natureza e cultura, conforme trabalhadas por Strathern (1992) quando trata do conceito e da prática de fazer parentes. A autora considera que, na representação denominada por ela de euro- americana, parentesco é um conceito híbrido, uma vez que

236

é considerado como um fato da sociedade enraizado em fatos da natureza. Se o trabalho de inseminação artificial com doador de espermatozoide coloca a divisão da paternidade em seu aspecto biológico e no seu aspecto social/simbólico, a FIV/ICSI toca o sacrossanto adágio de que a mãe é sempre certa. Para a autora, há uma questão que antes a humanidade não havia sido capaz de colocar.

O que é uma

mãe? Quem

é a mãe? E o que é a

maternidade? Ela torna obsoleta a afirmação de que há somente uma mãe. E não se trata de uma ruptura entre o social e o biológico, mas no interior do biológico, usualmente sentido como domínio da estabilidade e da fixidez. A FIV, segundo Dhavernas Levy (1999), cinde o processo da maternidade em dois aspectos. O aspecto genético e o aspecto gestativo. Esses desde

a

sempre existiram num

irrupção



processo,

mas

da fecundação in vitro passaram a ser

dissociáveis em sua prática. A partir do momento em que eles se tornam dissociáveis, a maternidade se transforma em algo ainda mais incerto do que a paternidade. Desde o momento em que o ovócito está fora do corpo feminino para ser colocado in vitro em presença do espermatozoide, nada impede de transferir para o útero de uma mulher diferente o embrião obtido. É isso que se realiza quando a candidata à reprodução não ovula, quando a ovulação não é suficiente ou quando ela está suscetível de transmitir uma grave doença ou não tem útero.

237

O sentimento de maternidade parece ter sido fundamental em muitos contextos sócio-históricos, ainda que tenha se configurado de modos

muito diferentes, a depender se estavam

demografia, política, medicina, religião, pessoais.

Para

família,

em questão ou

interesses

os médicos, embora apareça essa representação

também na fala dos casais, esse sentimento é instintivo e essencial na vida das mulheres, ainda

que o modo de realizá-lo esteja

mudando sobremaneira. Eu acho que a essência da vida é a maternidade, é a perpetuação da espécie, eu acho que isso é sumamente importante pra qualquer casal. E a busca por um filho tem razões muito particulares, mas eu acho que isso traduz na verdade a essência da vida, a perpetuação desse casal, eu acho que isso é o que traz a união conjugal no casamento, são os filhos (entrevista 13, Afonso, médico).

Essas observações além de essencialização da maternidade, apontam para

outras

dinâmicas como

as que tocam

conjugalidades reprodutivas e também apontam uma

as certa

romantização, ainda presente, na ideia de que filhos fazem a união do casal no casamento, questão, que desse ponto de vista, não foi considerada pelos casais, que acreditam mais na função social da reprodução, e não na constituição social do casamento a partir dos filhos.

3.5 MATERNIDADE: SENTIMENTO, INSTINTO, DESEJO, PAIXÃO? Na fala das mulheres e médicos, é o desejo de maternidade como constituinte do corpo

e do sentimento feminino que

238

legitima todas as práticas, até aquelas que envolvem maior risco e completa insegurança nas escolhas. Expressões como: “maternar e ser mãe é essencial”, “para poder ser completa mesmo, eu tinha que ser mãe”, “ser mãe é uma questão de vida ou morte”, “ser mãe é um projeto da minha vida”,

“maternidade é um instinto de

imortalidade”, “esta é a única coisa que eu poderia ter feito da minha vida”, “a maternidade faz todo sentido do mundo”, “não existe vida antes da maternidade, existe uma pré-vida”, acompanham as falas das mulheres. Essas representações, conforme Tubert (1996), são o resultado de uma herança cultural que continua transmitindo um dogma: a concepção da maternidade como realização indispensável da feminilidade. Embora no caso dessas mulheres não pareça ser a necessidade de expressar a feminilidade – elas não têm dúvidas sobre se são mulheres, suas convicções a respeito da relação entre seus genitais e seu gênero estão resolvidas como experiência de identidade pessoal, mulher –, é sua feminilidade quanto à identidade feminina estabelecida pela

reprodução que

está

vazia

de

reconhecimento e de processos de inserção. É o sentimento de não ter algo, esse é que se instala sobre a falta, sobre o vazio da vida, e a necessidade de preenchimento desse sentido que se traduz como incomensurável.

Em

segundo

lugar, essas

representações se

instalam pela presença de um companheiro e de um casamento. As mulheres, por vezes, produzem os sentidos para essa busca, por essa forma de tratamento, por causa do companheiro, ou porque podem contar com ele economicamente, já que buscar um filho

239

com NTRc é muito caro e é vivido como tarefa muito difícil para uma mulher realizar sozinha. Elas contam com seus companheiros na realização desse projeto, eles se apresentam como colaboradores em um projeto do casal, mas o que é focado pelas mulheres é um desejo pessoal, parte instintiva da realização reprodutiva e, em último lugar,

elas apontam para o seu papel

como mulher no

casamento; na verdade, acreditam que filho é o que fica; o casamento pode

acabar.

Além

disso,

a mulher está

sempre

premida pela emergência do tempo do envelhecer, do tempo biológico, ela tem que fazer seu corpo responder enquanto ainda pode. Esse é um discurso importante e montado pela medicina, em relação à capacidade reprodutiva feminina. Porque só de pensar que eu ia envelhecer, chegar num ponto, num limite, que eu não iria mais poder engravidar e que eu não iria ser mãe nunca, mãe biológica, me apavorava. Eu acho que se o médico tivesse me dito isso: “tu não podes ter de jeito nenhum”, eu teria morrido de tristeza, tenho certeza disso. Eu acho que a vida pra mim [...], ele ia colocar um ponto final e ia acabar por ali, eu cheguei num ponto que eu não entendia mais a minha vida, já não tinha mais vontade de fazer nada, sem ter a gravidez, sem ter [...], eu cheguei nesse ponto (entrevista 37/38, Sonia, casada com Mario).

Na opinião dos medicos, ter filhos é uma paixão que não pode ser substituída por outra,

no caso da mulher. Observe-se no

depoimento abaixo como se compara essa paixão das mulheres às suas próprias, ao mesmo

tempo em que a essencializa como

diferente, persistente e instintiva, tratando-se da mulher. Eu tenho várias paixões: uma paixão que eu acalento desde os quatro anos que eu me conheço é a medicina; então, é uma paixão antiga, cada vez estou mais apaixonado, as paixões por

240

mulheres passam, as paixões por um homem que as mulheres têm passam. No entanto, a paixão por um filho não passa. E viver, ter filhos é uma paixão, com todas as agruras, com todos os sentimentos, com todas as dificuldades; sem uma paixão a gente não pode passar (entrevista 7, Salvador, médico).

Na fala dos médicos, filho é instinto materno e genético, mesmo se há influência da cultura; esse sentimento, que não existe com a mesma intensidade no pai,

é marcado por uma

excepcionalidade no caso da mulher. Você nunca teve filhos e a pessoa que nunca teve filhos não sabe o que é ter filhos. Depois que você tem filhos você pode até pensar diferente. Mas até tê-los. Acho que a gente já nasce com isso. Acho que existe é o instinto materno embutido na mulher; a gente, desde pequena, a gente tem o instinto maternal. A gente brinca com bonequinha, com casinha. Depois vem aquela ideia de casamento e ter filhos. Eu acho que isto é até certo ponto cultural. E não sei se tem... mas tem algum instinto, alguma coisa genética. Tem uma coisa constitucional mesmo, faz com que a gente um dia queira ser mãe. Pai eu não posso dizer com a mesma intensidade. Mas a mulher tem um instinto maternal muito forte. Eu tenho mais mulheres no consultório. Eu acho assim, um filho, mesmo para um homem, acaba completando o casal. É a lei da natureza e a perpetuação da espécie. Isso existe em todo o reino animal. Então eu acho que é mais ou menos isto. É por aí (entrevista 8, Amanda, médica).

A relação com o filho é “tão vital”, “tão visceral”, que segundo o olhar médico não pode ser substituída por nenhuma outra. Mas para mim um filho é uma relação única e exclusiva. É diferente de qualquer outra, ao mesmo tempo em que é completamente independente. Meu filho vai estudar na outra cidade, no outro país e vocês quase nem se veem. Mas existe uma relação tão vital, tão visceral, que eu não tenho palavras para definir (entrevista 6, Sandra, médica).

Essas concepções, em boa medida, também dão à medicina a certeza de que o seu investimento naquele processo de fazer um

241

embrião e uma gravidez é um dever humanitário, característico de

um

envolvimento correto, ético,

mas sobretudo, de uma

missão. Contudo, é preciso dizer que embora não se trate de fazer nenhuma crítica às razões humanitárias, essa ordem de discurso está

articulada a princípios bastante essencializadores da

maternidade. Além disso o reproduzir-se com essas representações de mundo da parte da medicina engendra e fundamenta práticas tecnológicas

e científicas inseridas

em

operações políticas,

científicas, tecnológicas e sociais que se imbricam com a reprodução humana, para produzir tecnologia, mas também para ressignificar sentidos, por vezes, como únicos

e pouco

abertos para novas

dinâmicas nas relações sociais. Além disso, essas representações se fundamentam em outro recurso que é o de focar a busca e o desespero da mulher como demanda do instinto materno, realidade concebida como estando a priori na mulher, como

parte de sua natureza, que, assim

essencializada, vive uma situação desesperadora se não atender a esse grito vital. [...] É, a gente sempre fala que o problema é do casal, eu acho que quem busca mais desesperadamente é a mulher, principalmente aquela que ainda não tem filho. Ela se submete a tudo. Eu vejo assim: a gente, para conseguir que o homem faça um espermograma, a gente às vezes tem dificuldade. A mulher, você fala para ela, você vai fazer uma esterosalpincografia, tu sabes o que é isso? É horrível o exame, ela vai e faz. Aí se fala para ela, agora nós vamos fazer uma esteroscopia, que um examezinho para olhar dentro do útero, uma endoscopia ginecológica, ela vai e faz. Agora nós vamos fazer uma laparoscopia, porque nós estamos suspeitando que você tenha endometriose, ela faz, entendeu, então eu acho que quem busca mais desesperadamente o filho, no casal, é a mulher, se eu falar tudo, oh, se eu falar assim: você tem que ficar amarrada no

242

pé da cama e ela fica, entende. Eu não sei se essa busca desesperada é porque o instinto da mulher é instinto materno, o instinto dela na minha maneira de entender é um instinto puramente materno, tá entendendo, e o do homem nem sempre. O homem fica muito chateado quando ele sabe que o problema é dele (entrevista 3, Elton, médico).

Essas

composições de

interesses, desejos,

demandas,

vontade de atender, criam as condições para o desenvolvimento tecnológico e representam uma medicalização cada vez maior da sexualidade e do desejo também. Ao mesmo tempo em que estão no foro da demanda das mulheres em sua singularidade e legitimidade, são práticas que obscurecem a gestão tecnológica da reprodução, porque são representadas como uma resposta/ solução para uma demanda – caminho único

para quem

quer

se imortalizar

exercitando a maternidade. O meu instinto era o da imortalidade. Eu queria deixar a minha semente, eu queria fazer parte do mundo. Eu não queria passar por aqui apenas como passageira, ou como espectadora. E para isso tem que ter a carga genética também. Eu não estou dizendo que... eu falei, eu fui contundente quando eu disse jamais. Quando eu disse jamais adotaria. Eu não posso falar sobre o que eu vou fazer daqui a dez anos, dizer eu jamais faria (entrevista 19/20, Luiza, casada com Luiz). Ai, isto é maravilhoso, eu adoro ser mãe. Eu adoro chegar em casa à noite, pegar no pé dele, cheirar ele. Isso é muito bom. Eu acho assim.... Eu acho que a mulher nasce para ser mãe. Eu acho que ela tem que ser mãe. Eu acho que tu podes estudar, podes ter outra profissão, mas tem que ser mãe (entrevista 7, Janete, esposa de Geraldo)50.

Além desse desejo de ser mãe, elas se definem como mulheres que sonham poder 50

completar dois atos:

gestar

e

Neste caso, a inseminação foi realizada depois da FIV, ao contrário do que geralmente acontece com essas técnicas. Elas costumam sempre começar do simples para o complexo, obedecendo uma hierarquia de complexidades e valores.

243

amamentar, pois o desejo migra da barriga para o seio e se localiza no corpo como o lugar da experiência sentida como visceral na relação com o outro que cresce dentro de si. Primeiro eu queria ter um filho. Depois, depois que deu certo eu olhava minha barriga crescendo,crescendo. Eu queria muito amamentar. Quando a minha barriga estava crescendo, eu ficava conversando com ele. Eu pensava, meu Deus. E às vezes eu pensava – será que eu estou sonhando, será que isso é verdade? (entrevista 31/32, Salete, esposa de Luiz).

É o processo de gerar e o sentir sobre o seu corpo que se torna importante na maioria das falas, ao passo que essa fase poderia até mesmo ser dispensada na fala de alguns homens. É todo aquele processo da gravidez, eu quero passar por isso, entendeste? Não é simplesmente tu ter uma criança. É todo o processo que é gerar um filho.Tudo isso, todo o processo, eu não quero metade, eu quero inteiro (entrevista 13/14, Francine, casada com Gentil).

Esse sentir sobre o maternar diz da socialização que ocorre sobre o que é ser mulher e mãe, na medida em que ela se dedica ao cuidado de outros membros da família, o que também constrói o desejo de cuidar e amamentar os próprios filhos. Eu queria muito poder amamentar, poder ter meu próprio filho eu iria me sentir mais mulher. Porque é claro eu sou mulher, eu me sinto mulher, mas eu acho assim que para poder ser completa mesmo, dizer assim sou mulher, eu tinha que ser mãe. Isto era uma coisa que eu tinha, não sei se por causa de antigamente e da criação. Eu sempre gostei de ser mãe, eu sempre quis. Eu sempre brincava com os sobrinhos (entrevista 5, Jadi, casada com Beto).

Passar por esse processo como algo intrínseco ao corpo é tão forte que os desejos do marido vêm em segundo plano. A maioria das mulheres só falou sobre isso depois que refletiu sobre

244

o que se perguntou. Só então se fala nele, ou quando se trata de colocar em ação o plano do casal a partir de uma demanda feita à medicina, cujo pressuposto feminino é a completude da experiência biológica da maternidade. Mesmo que elas admitam que nem todas as mulheres têm esse desejo, relatam o que sentem como muito forte. Eu até manteria o casamento, sabendo que eu poderia.... Eu acho que a mulher, por natureza, pode ter carreira, pode ter tudo, mas um filho é muito importante. Isso está tanto dentro da gente. Eu penso assim, que acho que não é toda a mulher que tem aquele instinto maternal, mas eu digo assim, como é forte assim [...], mesmo com tudo isso, como é forte na gente essa questão de querer gerar uma criança. Então, é aquele negócio, hoje uma relação pode estar muito boa, amanhã até pode findar, mas um filho é pra uma vida, é pra continuar o teu nome, a tua história, a tua passagem por aqui, imagina, eu fiquei doze anos sem filhos (entrevista 33/34, Anita, casada com Ezequiel).

Além disso, visualizam no filho a continuidade de uma relação no casamento que é frágil e pode acabar. Se o casamento termina, o filho ainda o sustenta nos aspectos que valem a pena. Em relação a esse aspecto, o relato médico observa que a experiência da recepção do material, o que escancara uma falta, pode ser compensada pela experiência da gestação, em se tratando da mulher. Apresentar o corpo grávido cumpre uma função preenchedora. Às vezes o problema não é ter um filho, é gerar um filho. A impressão que me dá é esta. Tanto que muitas pacientes hoje estão apelando para doação de óvulos. Que o filho nem é dela biologicamente. O que acontece é que ela irá construir o sentido de estar gerando, ela vai aparecer grávida, vai estar de barriga. Isso trabalha de uma maneira diferente e isso diminui a cobrança (entrevista 10, José, médico).

245

Na fala das mulheres, conforme se afirmou, conta de modo importante a barriga e o amamentar, e há certo espaço para aceitar doação de material, embora a preferência ainda seja pelos filhos do próprio sangue.

O filho herda a parte

genética de ambos

os

cônjuges, e a mulher quer ver, tal qual relatado pelos homens, o resultado do que elas chamam “dessa misturinha”; isso está associado ora ao reconhecimento dos traços de caráter, ora aos traços físicos, ora ao poder de fazer outro ser. Porque é sempre bom saber como é que fica a misturinha do casal, como é que vem o rostinho, tu sabes também que os filhos vêm com a tua parte genética, herda um pouco a tua parte de ter uma boa índole, essa coisarada toda, também que muito disso a gente sabe que pega na criação, na educação, e todo mundo quer, a mulher, principalmente, quer ter uma barriga. Eu acho que é pra ver como é que fica, o que eu chamo de mistura, como é que vai unir dois seres e formar um outro, eu vejo mais por esse lado e pra você saber que é teu, que é um pedaço de ti, de repente, e é uma coisa muito mágica mesmo, tu construir um outro ser, eu acho a maior maravilha desse mundo, tu poder dizer que desenvolve uma criança dentro de ti, depois fica aí correndo, andando, cresce. Eu acho isso muito mágico, eu acho que não tem nada nesse mundo que justifique essa parte divina, poder gerar um filho (entrevista 21, Mônica, casada com Nando).

A procriação é essencialmente um seja

com

o grupo

de

pertença, seja

vetor com

de ligações, o

cônjuge. A

infertilidade coloca em jogo essas ligações. Ela pode ser definida como um problema psicossocial, mas, sobretudo relacional, no qual a ruptura das ligações aparece como o maior risco, porque a pessoa aqui não parece poder ser definida fora dessas ligações com os outros. Ao inverso do que se produz no caso do homem, a mulher parece estar inserida no mundo, mais do que agindo sobre ele, de modo

que ela

passa

por

certa

indistinção com

relação

à

246

sociedade. A maternidade é desejada como aquilo que pode lhe dar um lugar no mundo, e a sua ausência é espelho da própria incapacidade de viver no mundo. O desejo de ser mãe era muito grande, e dia das mães, quando eu via as outras mães, eu ficava com pena de mim mesma. No dia das mães era terrível, todas as mães estavam lá com seus filhos e eu ficava com pena de mim. Quando alguém engravidava eu ficava feliz pela pessoa. Mas eu ficava sempre me perguntando por que isso não acontecia comigo. Quando eu via na televisão que uma mãe abandonava o filho, eu dizia, meu Deus, por que eu não tenho condições de ter um filho, não vou fazer isso, por que não engravido? Eu vivia superangustiada. Eu queria ser mãe de todo jeito. Quanto mais o tempo passava esse sentimento piorava, ele aumentava (entrevista 31/32, Salete, casada com Luiz).

Além de trazer uma relação de mundo, a criança ressignifica a vida da mulher, como algo que parece vital a esta – elas falam de injeção de ânimo. É o presente dessa mulher que está conflitado, e o filho é visto como aquele que poderia lhe devolver a autoestima. Na fantasia feminina e na cultura social, ele cumprirá um

papel

normalizador dos conflitos existenciais porque dá a ela o lugar de fala, de reconhecimento e de inserção como mãe na família, nas relações de trabalho e na vida afetiva. Acho que o filho seria uma injeção na minha vida. Seria uma coisa nova boa. A criança sempre traz uma injeção de ânimo. De repente você trabalha, sobrevive, compra as coisas e precisa de uma injeção. Com uma criança você passa em um lugar e vê não sei o quê, tem toda uma relação de mundo. Então isso é uma coisa que te faz bem. Agora, em termos de felicidade, a gente não sabe, porque às vezes você tem um filho que vai te dar um retorno, que vai ser uma coisa boa na família, e às vezes pode ser que não seja (entrevista 35, Tânia, casada com Dito).

247

3.6 PATERNIDADE: UMA OBRA QUE VALORES E A CONJUGALIDADE

PERPETUA OS

Da perspectiva da inserção social dos casados,

e neste

estudo prioritariamente, no conjunto das relações que envolvem a conjugalidade, o casal fala do filho como sua obra, é ele que amplia suas relações sociais, a rede de amigos, a partir de sua vinculação com a família. Ao mesmo tempo, ele vem para completar o casamento, ou seja, ele reafirma a ideia de que o casamento implica procriação. Mas parece ser o homem quem revela a concepção de que a criança é preparada simbolicamente dentro da relação conjugal e familiar. Conforme a fala a seguir, existe um momento em que o filho precisa se concretizar. Acho que tem momentos em que o casal, só os dois se completam. Acho que são etapas e tem momentos que, seguindo o processo natural da nossa geração, família, tu precisas de um filho. Sei lá, tu te preenches com um filho. É a continuidade da tua vida, a ideia de carinho por criança. Então eu tinha apego à família. Eu gosto da família, eu gosto da religião. Eu não sou fanático, mas eu frequento. Família é importante, os amigos. Então, filho estava nesse contexto. Eu sou apegado à família. Eu realmente sentia um vazio muito grande sem filho (entrevista 32/31, Luiz, casado com Salete).

E do mesmo modo é dos homens que vem com maior frequência

a representação sobre a continuidade da vida do

indivíduo, sobre uma parte de si que é doada ao outro. Esse gesto, segundo eles, fala da intimidade do casal e do presente mútuo que ambos se oferecem – cada um dá um “pedacinho de si para o outro” –, mas também de algo que o homem engendra, na qualidade de

248

fazer-se pai, como um escultor que trabalha uma obra de arte: um filho no seu processo da conjugalidade. Eu acho que um filho é uma coisa íntima do casal. No nosso caso, a gente queria juntar os dois pra ver o que dava, um pedacinho de cada um. Então, um pedacinho dela e um pedacinho de alguém que eu não conheço, quer dizer [...] (entrevista 38/37, Mario, casado com Sonia).

A perspectiva do amor mútuo está presente também na fala dos médicos homens – filho é uma prova de amor mútuo e fonte de estabilidade no casamento. Se tu pegas um casal e os dois estão querendo ter filhos, isso às vezes pode ser a raiz da estabilidade do casamento. Por que se não, vem a culpa vem a instabilidade, o homem que é o culpado, a mulher que é culpada. Eu acho que é uma prova de amor mútua que eles se dão. Eles necessitam se entregar desta forma. Um quer sentir a correspondência do outro. Como é que um sente e como é que outro sente (entrevista16, Alcides, médico).

Filho é uma obra feita em conjunto, e o desejo de partilhar a tarefa da reprodução é declarado obra “nossa”. De modo que o projeto de gerar um filho do NÓS os amarraria em um objetivo conjunto que marca a sua relação com a capacidade do dom; “poder deixar alguma coisa para o outro”. Vê-se aqui o processo de individuação do casal, e o filho os faz indivíduos porque desencadeia o início da história deles. Individuação não como separação da família de origem, mas como inserção na ordem cronológica, familiar. Assim, ao mesmo

tempo

em que se individualizam

solidificando sua escolha por paternidade e maternidade via tratamento, eles se nuclearizam em torno dos parentes, e os homens se sentem inseridos plenamente na família. Isso parece marcar a

249

diferença em relação ao estudo de Salem (1989), para quem é a distância da família de origem que permite a escolha do casal. Mas eu acho que talvez o que a gente quer é uma coisa nossa. A gente quer uma obra nossa. Algo que a gente tenha feito em conjunto. E isso justifica. Quem sabe um de nós dois vai morrer primeiro do que o outro. E a gente sempre quer deixar para o outro alguma coisa. Se eu morrer eu quero deixar um filho (entrevista 36, Dito, casado com Tânia). Em nenhum momento a gente se separou. Isto não é uma escolha isolada. Ou a gente faz junto ou não consegue. Sabe, esse tipo de tratamento que nós fomos buscar, se o casal não entrosar, não estiver com os mesmos objetivos, com as mesmas finalidades, eles não passam dos exames preliminares (entrevista 13/14, Francine, casada com Gentil).

Filho é o maior projeto do casal na história do casamento e da família, é mobilizador da constituição do casal como

uma

realidade que transcende o corpo e partilha os desejos da alma, nesse grupo, em particular para os homens, que insistem em dizer que estão fazendo um projeto, que estão deixando alguma coisa no mundo, na vida da companheira, que estão dando algo de si e se construindo, como

alma,

permanência, na

medida em

que

constroem a sua conjugalidade com filhos. Por que você tem aquele contato corpo a corpo, mas agora eu diria um contato alma a alma, porque é os dois na busca de um ideal daquilo que todo mundo acha que é o essencial pra viver, ter filho (entrevista 24, Kauli, casado com Tereza).

Sendo assim, o desejo de filhos é construído a partir do que ele significa para o relacionamento íntimo e social do casal, mas também é uma dinâmica que se conecta ao desejo essencializado, ao sentimento de estar bem consigo mesma, da parte das mulheres, e ao projeto de transcendência dos homens. É uma

dinâmica

250

fundadora do vínculo com a conjugalidade e com a herança imaterial, que marca o mundo pelo projeto de ser pai. Esse desejo funde-se na categoria casal e faz todo um sentido, na direção de uma relação de mundo, como continuação de uma exigência cultural. Ao mesmo tempo revela o desejo mais misterioso e mais contrastante se comparadas essas relações, com outras possibilidades, também vividas por casais sem filhos, por mães que os abandonam, como o parto anônimo, ou com celibatários que nunca se colocaram a questão sobre ter filhos. Outros elementos podem, contudo, ser acrescentados: em alguns casos, o desejo de filhos será a tradução natural do desejo sexual que se transpõe para uma função coletiva de assegurar a reprodução da espécie; em outros casos, se translada para sua função individual de transmitir a história pessoal e familiar, como também é frisado por Héritier (1996, p. 246):

Da necessidade de cumprir um dever para consigo próprio e para a coletividade e não tanto da reivindicação de um direito a possuir [...]. Desejo e dever de descendência. Não transmitir a vida é romper uma cadeia de que é nulo o resultado final e, por conseguinte, interdita- lhe o acesso ao estatuto de antepassado. Casamento e procriação são deveres em relação àqueles que nos precederam na existência. Além disso, o desejo de ter um filho pode estar ligado à preservação da conexões

que

espécie, podem

numa compreensão mais ser geradas

ampla

das

sobre os sentidos dos

investimentos na reprodução da vida humana, argumento não incomum hoje nos congressos e nas reuniões científicas quando o tema é a reprodução assistida. Justificam-se os meios e os usos

251

utilizando-se fundamentações sobre o desejo de perpetuação da espécie, o sentido de continuidade biológica, mas não se pode esquecer que se transita igualmente pelas cerziduras e redes das práticas, dos argumentos, das alianças utilizados para

e desejos, dos meios

promover, fundamentar e realizar

a reprodução

humana em laboratório, com uma gama de muitos interesses de uma ciência sexista. De modo que não se trata de duvidar da boafé, ou das razões humanitárias que fazem com que a medicina em seu proceder se interesse e invista nessas relações sobre parentesco, filiação e, até por vezes, sobre a própria perfilhação, mas quando se ouve: Eu acho que é o desejo da perpetuação da espécie, eu acho que, no fundo, no fundo, a gente não quer que a minha espécie, que o meu nome morra comigo, que vá comigo para o caixão. Eu acho que o desejo, a sensação de que ter um filho, ele vai conseguir perpetuar no filho as características genéticas dele, o nome dele, a imagem dele, assim por diante. Eu acho que essa na minha maneira de entender é que faz com que o casal busque desesperadamente uma maneira de ter um filho próprio (entrevista 3, Elton, médico).

É preciso ir um pouco além do que está sendo afirmado como uma dinâmica de desejos, sentimentos, necessidades pregadas no biológico, ou na transcendência. Certamente, além de uma questão que vem vinculada aos sentidos de continuidade da vida das

pessoas

que desejam

superar

incompletude pela ausência de filhos, de

agentes

econômicos e

a

experiência

de

existem outras conexões

políticos, que coexistem com os

biorriscos (ocultos, por vezes, no rótulo da biossegurança). Além do investimento global

no

mercado, nas tecnologias da era

pós-

252

preditiva, das coberturas biotecnológicas e da engenharia genética e que interagem com essa construção sobre

filhos e

com

essa

performance reprodutiva a partir do laboratório. Desse modo, ao perpetuar a espécie, que na fala de Antony, médico, poderia ser até mesmo uma dinâmica irracional: Eu tenho uma frase que é até meio gozada, mas eu li, é assim: “ter filhos é a maneira estúpida que a natureza encontrou pra perpetuar a espécie”... mas talvez seja, seria a parte irracional do ser humano. Porque desde que o homem é homem, os bichos, os seres vivos, a tendência é reproduzir. Quando o homem não se reproduz, o ser humano não se reproduz, quando racionalmente ele pensa “não, o mundo está violento, e isso e aquilo, nós não vamos ter filhos, eu não quero ter filhos”, ele tem que pensar e racionalizar muito isso, ele tem que puxar muito freio de mão pra não ter filhos, e as pessoas: “O quê! Tu não vai ter filhos?”, etc. Então, simplificando, é uma parte mais irracional, é a vontade de perpetuar a sua espécie, é meio por aí, de uma forma que a gente vê os casais, querendo muito a busca de um filho (entrevista 4, Antony, médico).

Faz-se igualmente uma inserção no mundo coercitivo, que por razões de valores culturais também se localiza em novas dinâmicas. Novas ordens de mundo em que

se articulam

acontecimentos e sentimentos com as tecnologias reprodutivas em laboratório, o que já não dissocia sua face clínica ligada à pesquisa e à manipulação dos desejos e das necessidades da ciência, da invenção tecnológica e do desejo de mulheres e casais. Juntam- se essas práticas com os planos

sobre filiação,

no âmbito da

família e, também, na esfera jurídica e ética, no caso de heranças e reconhecimentos de vínculos. Assim reconectam-se as falas sobre perpetuação da espécie, sobre filho como espelho de si, em um rol de possibilidades enormes, desde a doação de gametas

até a

253

construção de outras lógicas sobre incertezas e decisões sobre a vida e seus sentidos, sejam

eles de gênero,

de filiações e

perfilhações, de maternidades e paternidades, de conjugalidades e sexualidades, sejam de circulação de genes, no conjunto das experiências reprodutivas globais. Eu acho que é aquele sentimento de querer perpetuar a espécie, de ter alguém parecido consigo, de ter um espelho seu numa criança. Eu, se você perguntar se pra mim isso é importante? Pra mim, não é. Pra minha cabeça, se eu tivesse uma importante dificuldade pra engravidar, eu aceitaria uma inseminação com sêmen de doador com muita facilidade, eu aceitaria uma adoção com facilidade. Mas, é verdade que os casais buscam muitíssimo ter um filho advindo de si próprio, há também o temor de doenças que possam estar sendo passadas, doenças genéticas características da personalidade de um doador de sêmen ou até dos progenitores de uma criança que foi adotada e que são desconhecidos ao se adotar um belo bebê, ou ao se ter um belo bebê com óvulos ou espermatozoides de um doador que o casal não poderá conhecer nunca (entrevista 11, Santos, médico).

Essa

concepção de

continuidade da

espécie

humana

transcende, portanto, o presente e revela o desejo de ligações com os vínculos anteriores e posteriores ao casal e ao filho em questão. No momento do nascimento, o casal

“amarra” irrevogavelmente as

gerações anteriores ao novo nascido e esquece o modo como ele foi

possibilitado, embora isso

não

se refira

doação/recepção de material genético doado, resistem, o

que

é

compreensível no

à aceitação

a que

de

os homens

conjunto de

uma

representação que os retiraria do projeto de fazer “uma obra minha”. Ao mesmo tempo, a continuidade abre as portas da história, que levará para o futuro um código genético e a experiência existencial respectiva, na qual os homens se tornarão avós e farão de seus pais

254

bisavós, por meio das escolhas procriativas de seus filhos. Fala-se de homens porque essa representação quase não aparece vinculada desse modo nas narrativas das mulheres. Se, por um lado, o fazer netos mantém o vínculo entre as relações

de descendência e hereditariedade entre

avós e netos,

relações que envolvem reconhecimento social, por outro lado aos netos cabe a função de permitir a constituição dos netos para seus pais. Trata-se do cumprimento de um dever para consigo próprio e para com a coletividade (HÉRITIER, 1996). Além

disso,

no

contexto das

NTRc ocorre

uma

reconfiguração das práticas biomédicas e familiares em um conjunto de práticas sociais que podem ser também diferentes no que tange à relação com o biológico e o genético. Para Strathern (1992), as contemporâneas possibilidades de procriação introduziram um novo contraste entre processos naturais e artificiais. A reprodução assistida criou um parente biológico como uma categoria em separado, o doador do material genético. Pelo mesmo processo, o parentesco social está sendo marcado por uma deficiência potencial em credenciais biológicas. Assim, parente natural do

futuro poderá

nenhuma técnica especial

ser

aquele

envolvida ou aquele

que

o

não tem

que não requer

nenhuma legislação especial. Dessa forma, poderão ser parentes naturais aqueles que combinam atributos biológicos e sociais legais. O que se constituirá como novo é a assistência que vier a ser dada para cada um desses domínios. Os fatos naturais de procriação têm sido assistidos pelos avanços médicos e biológicos, enquanto os fatos

255

sociais de afinidade e reconhecimento das relações têm sido assistidos pela legislação. As afinidades são duplamente assistidas. Entretanto, à medida que esse contexto reforça o ser mulher, essencializando a maternidade e construindo a categoria filho como preenchedora de uma falta fundamental à vida da mulher, os médicos legitimam a medicina no seu “papel” interventor sobre o corpo, dando-lhe a condição necessária à ação. Ao essencializar a maternidade, o que é verdadeiramente ressaltado é a importância do filho e não da mãe. De modo que a medicina reprodutiva, fazendo filhos, garante também o desejo de descendência e transcendência social das mulheres, embora para elas esse deslocamento é quase um processo impossível, tal insistência sobre

é a

a condição de maternar essencializada no seu

corpo. O filho nesse sentido é necessário para marcá-la como mulher no mundo, na sua condição intrínseca ao que a faz pessoa, diferente da condição do homem que, tendo um filho, este o joga para o que o transcende e o liberta em boa medida no sentido de continuidade biológica do casal, mas sobretudo, pelo resgate da continuidade das metas, das crenças e dos valores sociais referidos ao projeto de vida, ao nome, à família, antecipações importantes para o futuro. Joga-se com processos existenciais individuais e sociais, ao mesmo tempo em que fazer filhos localiza socialmente o pai. Localizar o indivíduo como motivações e

pai,

e/ou

como

mãe,

reforça

sentidos humanos no indivíduo homem ou mulher,

mas também estabelece ligações intergeracionais entre

heranças

256

genéticas e culturais como escolhas, ainda que objetivadas conscientemente, ao

mesmo

nem

tempo

sempre

que faz do

médico o ponto de ligação entre o passado e o futuro, inscrevendo genealogias, mas

também reconhecimentos e continuidades

histórico- sociais capazes de evitar situações como a da pluralidade de paternidades ou maternidades (doadores e receptores de material genético) que a sociedade teria

dificuldades para

absorver. Se

ele necessita utilizar esses recursos para gerar o filho, isso é feito, mas como uma linguagem que naturaliza as diferentes “naturezas” implicadas na escolha, procedimentos que também deixam em aberto a necessidade de um aparato jurídico e de uma discussão social mais profunda sobre as formas de fazer parentes.

3.7 FILHO DO PRÓPRIO SANGUE, A DOAÇÃO/RECEPÇÃO DE GAMETAS/EMBRIÕES E A ADOÇÃO . . . a) A relação fundamentada na consanguinidade é expressa como a mais desejada

na fala dos entrevistados em busca da

maternidade e da paternidade. Apresenta-se como relação social reconhecida e também como projeto de conjugalidade, resultado de uma escolha, tal como tratada por Héritier. Dentro das sociedades humanas, portanto, a consangüinidade não é mais que uma relação socialmente reconhecida; e é próprio dos sistemas de parentesco – conjunto de regras que governam a filiação, a casa e a aliança – distinguirem-se por uma certa autonomia em relação às leis naturais da espécie: a reprodução dos homens é um instrumento de reprodução da ordem social. Ela entra na representação simbólica dessa ordem social em tal medida que se pode dizer que um sistema de parentesco existe apenas na

257

conciência dos homens e que ele não passa de um sistema arbitrário de representações. (HÉRITIER, 1981, p. 11).

Ao mesmo tempo, a relação baseada na consanguinidade poderá ser muito fragilizada. A fragilização é iminente, consideradas as vezes em que se coloca a inviabilidade da utilização do material genético do próprio casal ou o limite do tratamento, encaminhando para a adoção. Esses fatos impõem ao casal uma negociação interna à relação, uma superação do fosso existencial, corporal e relacional que se interpõe quando os dois, ou um dos dois, precisam depender de material genético de um estranho e de uma negociação externa à conjugalidade. Quando se perguntou sobre essas situações, observou-se a insistência na categoria “filho do próprio sangue”, e igualmente certa

abertura para pensar a

recepção

de

material genético

feminino por parte dos homens, além de uma resistência muito maior a adotar uma criança. Isto também porque a tecnologia da reprodução in vitro apresentava-se como esperança para a solução do problema. Não precisavam, desse modo, recorrer à prática da adoção de uma criança no modelo tradicional vigente até a difusão das tecnologias reprodutivas, e não

estava

em discussão na

maioria dessas narrativas a adoção de um embrião, que de todo modo

ainda

poderia fazer a barriga crescer

e os seios

amamentarem, fundamento corporal importante nas representações sobre maternidade. Segundo Queiroz (2002, p. 25):

258

A adoção atendia a exigência social velada de se constituir uma família nos moldes tradicionais, isto é, uma família composta por pais e filhos, mas por outro lado, não afastava a inquietação íntima das pessoas diante do vazio biológico que a adoção não era capaz de preencher; a separação entre a parentalidade biológica e social.

A possibilidade da adoção só se coloca quando o médico sugere a necessidade de espermatozoides de um terceiro ou quando eles não suportam mais conviver com as decepções do insucesso das muitas tentativas. Tratar- se, adotar ou aceitar a doação de material são dilemas diferentes e de difícil solução, e deve-se dizer que vários deles no quadro deste estudo já têm filhos adotados. Essas tensões aparecem misturadas nas falas e dão conta de demonstrar os sentimentos confusos e a dificuldade que é colocar cada coisa no seu lugar a fim de poder tomar uma decisão. Quanto à busca pelo “filho do próprio sangue”, estão presentes a

associação

ao

filho

natural

e

aos

vínculos

“naturais” com a família de sangue, além do preenchimento das lacunas que eles chamam de existenciais/instintivas, uma vez que o casal deseja

ver-se

reproduzido no filho.

Isso

lhes

permite

acreditar que fizeram um filho “sozinhos” e por livre escolha. Ao mesmo tempo, caracteriza o valor que se dá às noções de pessoa e de individualismo em nossa cultura (DELAISI DE PARSEVAL; JANAUDI, 1988). Outrossim, ter filhos

consanguíneos se apresenta como

permitidor de maior tranquilidade em relação ao que pensam ser os processos educacionais futuros, porque o lugar de onde eles vêm, segundo dizem, é conhecido.

259

O lugar

do sangue

dos antepassados e do casal faz o

reconhecimento. O que está presente parece ser a continuidade genealógica, que

se funda como

referência ao conhecido.

Considere-se também que filho do próprio sangue não traz nenhum “ruído” para dentro do casamento em temos de genética considerada de risco, e nem passa pela cabeça desses casais que eles podem não ter

os melhores valores

e que,

portanto, outros

poderiam lhes trazer aspectos ricos e importantes para suas vidas. Eles sempre pensam que são bons geneticamente e moralmente. E como acreditam, por vezes, que comportamento, moral e ética vêm no sangue, acham que olhar para a criança e reconhecer o material genético de fora da relação é ter que encarar alguma forma de ruído. No caso de se interpor a necessidade de espermatozoides de um doador, há preferência pela adoção por parte dos homens. Mas para as mulheres, parece ser diferente, na medida em que, passando pelo processo de gravidez, elas esconderiam a diferença genética. Hoje, acho que... se é pra ser natural, vai ter que ser, é aquele negócio, se a pessoa vai ter que viver a sua vida sem um filho [...]. Eu não doaria, se não fosse meu eu também não queria, preferia adotar. Só se a minha mulher insistisse muito, claro, mas o filho não vai ser meu, se é pra criar eu adoto um, é mais fácil, um recém-nascido, pelo menos, pra vir só com uma carga genética, tu consegue passar amor, carinho, educação, se o cara fosse um bandido, pra tentar mudar, já que não muda o íntimo dele, mudar a atitude (entrevista 10, Ray, casado com Gilda). Eu acho que é mais uma questão de segurança, um pouco de orgulho, é uma questão da própria sociedade. Mas amanhã depois, se eu não tiver uma condição de ter, se eu ver que é uma pessoa saudável e que não vai interferir em nada e não vai saber, eu não vou me incomodar, eu não vejo nada contra (doação de material). “Adoção, ah! sou meio contra. Eu tenho muito receio”. Eu vejo que hoje em dia estão

260

acontecendo muitas coisas. Que os pais estão fazendo o que eles já fizeram, em função dessas doenças, a Aids, por exemplo. A droga, o estresse, os problemas, eu não quero ter uma criança na minha vida, se eu tiver uma criança eu vou criar com amor e vou me dedicar a ela, eu não quero ter uma criança que amanhã ou depois que tiver algum problema, ou alguma coisa, eu acho que eu vou perder um pouco da minha qualidade de vida. Principalmente com uma criança que não é meu filho. Eu tenho certo receio em função dessas doenças, dessas crises e todas as situações que os pais estão passando e que venha a ser problemas dos filhos. Até nelas, numa coisa banal, mas para mim é tão importante, eu pego uma criança aí amanhã depois a mãe era uma gorda, aí ela é também tão gorda, aí chegam aos 14 anos a menina começa te incomodar. E depois porque eu não me animo, eu não me animo em função disso. E depois eu não tenho nenhum problema, então não me passa pela cabeça uma adoção. Então eu acho que a nossa probabilidade é de 99% de ter um filho, porque eu vou me preocupar (entrevista 28, José, casado com Séfora).

b) A

recepção/doação

de

material de

óvulos

ou

espermatozoides é vista com resistência, particularmente em se tratando de material genético masculino. Se o doador de espermatozoide é de fora da relação do casal, o homem antecipa a angústia de, eventualmente, não ser reconhecido como pai do filho que está por nascer. Além disso, esse não é um projeto como os outros, ele deve se concretizar através de uma providência médica, por uma vontade, por meio de uma decisão que intervém para garantir a concepção da criança. Trata-se de uma

rede

de

protagonistas movidos em torno desse objetivo e que aceitam fazêlo. Exige-se,

segundo Jouannet e Thery (2000), conceber o

homem estéril como aquele que procria, tomar isto como uma decisão do seu desejo, do seu projeto, de sua vontade e do seu amor para com a mulher que quer o nascimento de uma criança

261

com espermatozoide do doador. O pai estéril cumpre um

ato

procriador no sentido humano, pois ele está na origem da criação e do nascimento de uma criança. O doador participa, mas com um papel secundário. O espermatozoide do doador é necessário, mas ele pode ser substituído a cada ciclo. Dentro da história da criança, pode-se fazer uma distinção clara entre sua origem, que se inscreve no projeto dos pais, e a identidade do doador, para o qual o anonimato permite que a sua identidade não seja revelada, e para o pai biológico, por causa do vínculo com a mãe, permite que ele não entre em um conflito de paternidade. Nesse caso, o anonimato do doador é garantido por lei na França e no Brasil51,

e o marido, uma

vez dado

o seu

consentimento, será considerado o pai da criança, mesmo que o filho não seja biologicamente seu. Esse fato seria problematizado em qualquer outra

situação em que a exigência do exame de

DNA fosse utilizada para biologizar a paternidade, através de sua atribuição por provas

genéticas, ou para sua negação,

se essas

provas não existissem. Ou se o estatuto do pai doador aparecesse? O pai genético não tem se constituído como figura de linguagem, na relação social e de direito na maioria das legislações porque o pai biológico é engendrado sob a falta genética. Mas o que ocorreria se ele aparecesse como o doador do material reprodutivo? Isso tocaria a quem? Não atingiria necessariamente a filiação, uma vez que procriação, filiação, genitor e parentes não precisam estar juntos 51

No Brasil há uma recomendação do Conselho Federal de Medicina (CFM) sobre o anonimato, aspecto que pareceu ser levado a sério na prática das clínicas.

262

disputando o mesmo

investimento na ordem simbólica, embora

sempre se possa imaginar como estabelecer soluções para o lugar a ser ocupado por dois pais e pelo estatuto de dois homens, ao terem ambos parte no mesmo processo. A problematização garantindo

o veredicto do

biológico

também é relatada por Fonseca (1995), quando estuda sobre a circulação de crianças em vilas populares, em Porto Alegre. Ao contrapor a circulação do

bebê em

situação semelhante à da

adoção, afirma que os direitos e obrigações do adotante e de quem representa o vínculo biológico em relação

a quem adota

se

embaralham, e que raramente não prevalece o vínculo biológico. “A mulher que dá à luz uma criança não é a mesma que cria; mas ambas as mulheres podem reivindicar a identidade social de ‘mãe’, especialmente durante a vida adulta da criança, quando desta se espera o sustento dos ‘pai’.” (FONSECA, 1995, p. 35). Embora o tema relativo à doação/recepção de material, uma vez motivado pelas perguntas, tenha se tornado visível à nossa análise, queremos esclarecer que esse assunto só foi colocado na

situação da entrevista, parecendo mesmo não existir até a

nossa pergunta: [Entrevistadora: Caso você não tivesse tido espermatozoides e precisasse de espermatozoides de um doador, você teria aceitado?] Isso não, falando francamente para ti, eu não teria aceitado. Só para minha mulher ficar grávida não, aí eu adotaria. Ele não seria meu filho, então eu adotaria. [Entrevistadora: E se ela precisasse de doador de óvulo, você aceitaria?] Aí eu acredito que sim. [Entrevistadora: Por que essa diferença?]

263

Aí eu acho que valeria a pena porque ela ficaria grávida, não seria o esperma de outra pessoa. Ela sentiria a gravidez, ela iria sentir como se o filho fosse dela. Parte disso seria dela. Eu iria fecundar o óvulo de uma outra pessoa, mas minha esposa teria parte nisso. Ela estaria ficando grávida, então eu concordaria (entrevista 8, Geraldo, casado com Janete).

Importante observar que os homens, em geral, têm grande resistência à doação e recepção de espermatozoides. Contudo, a aceitação da recepção de óvulos aparece nas respostas da maioria dos entrevistados homens do casal; um exemplo é o diálogo seguinte: [Entrevistadora: E o contrário, sêmen seu e óvulo de outra mulher? Você teria problemas com essas questões?] Não. Isso é melhor que adoção. [Entrevistadora: Por quê?] Porque a mulher vai conseguir, mesmo não sendo geneticamente igual a ela ou ao marido, mas a concepção é dela, ela pariu, ela ganhou a criança. [Entrevistadora: Tu achas isso importante?] É. Ao passo que na adoção você não tem aquela sensação de ver a criança nascer, acho até que você vai gostar de ambos da mesma forma, dizem os que têm. Eu tenho um amigo que tem um menino adotado, não tem diferença entre o filho dele que veio posteriormente e o adotado, até porque o adotado é a cara dele, todo mundo diz que ele fez fora e trouxe pra dentro de casa, mas é a cara, o cabelo, tudo. E o legítimo dele é completamente diferente, ele é moreno, o outro veio branquinho, então aquilo ali é um sarro. Então, ele diz que não tem diferença nenhuma, nenhuma. [Entrevistadora: Você adotaria?] Ah, adotaria. Se não tiver [...], se comprovar que não tem chance nenhuma, porque a gente está fazendo tudo enquanto tem chance, a hora que não tiver chance, parte pra adoção (entrevista 24, Kauli, casado com Tereza).

Para a maioria dos entrevistados homens do casal, como no relato acima, a doação de material equivaleria simbolicamente a um filho fora do casamento, não faria parte da relação corporal e

264

espiritual do casal, e a adoção como prática social seria colocada por vários como a ultima condição. Eu acho que, como a Xuxa lá pegou uma pessoa que convinha pra ela pra fazer, eu acho que aí tudo bem, se ela fosse solteira, ou se a gente tivesse separado, ela assim “eu quero ter um filho”, realiza o lado da mulher de gerar. Agora, o casal, eu acho meio complicado, pra mim eu não [...]. Sinceramente, se ela dissesse assim, “ou vai ou separa”, eu acho que a gente não iria, pode olhar assim, “pô, é egoísmo da tua parte.” Mas também seria egoísmo da parte dela. Não teve o ato, não foi lá, não dormiu com outra pessoa, só que uma coisa assim, estranha, um filho dela com um casamento que não teve. Pra mim particularmente, não daria (entrevista 38/37, Dito casado com Tânia).

Somente um pequeno grupo

estaria

disposto a aceitar

material doado. Esses homens quando perguntados se permitiriam uma inseminação com óvulo da esposa e sêmen de outro homem, responderam: “Se eu não tivesse condições, se os meus não fossem de qualidade, não teria problema.” Entre aceitar receber esperma de doador e adotar há uma preferência pela adoção, no caso dos homens, aspecto que também foi explicitado depois da pergunta: [Entrevistadora: O que você pensa da doação de espermatozóides?] Resposta: Aí, já é meio complicado. Eu acho que é solução quem quer ter assim, mas eu acho meio complicado, eu acho que nesse ponto aí eu ainda estou meio [...]. Eu não sei, hoje em dia é tão complicado, é uma outra pessoa, como é que você vai saber o que vai sair, o que não vai sair, de quem é, de quem não é. Acho uma solução pra quem quer ser independente; pra um casal eu acho meio complicado. Eu não sei, aí eu preferiria mais adotar uma criança, eu acho que seria mais bem criada pelo casal do que numa situação dessa (entrevista 22, Nando, casado com Mônica).

Há uma clara recusa em consentir no uso de material vindo de um terceiro (doador/a anônimo/a) por

parte

dos

265

homens em se tratando de espermatozoide. O que se encontrou por parte dos homens foi um sentimento de medo em relação à sua completa exclusão da reprodução, que vai para além de todo esforço por eles investido para construir o seu lugar de participação na concepção. Os homens apresentaram-se reticentes quanto aos fatos que estariam acontecendo somente no corpo da mulher, com ausência do seu corpo. É difícil para eles se imaginarem criando um filho fruto de uma situação da qual não participaram, nem por relação sexual, nem por material genético, fisicamente falando, mesmo que pareça ser mais fácil para os médicos falarem da possibilidade de utilizar essas práticas. Os homens participam do processo da coleta do material também na perspectiva de garantir que serão pais biologicamente. Há igualmente uma resistência à aceitação de óvulos doados,

embora nesse

da recepção

caso ela seja menor. Em

geral, encontra-se essa aceitação por parte dos homens, aspecto que também só apareceu depois de termos indagado sobre o tema. Essa resistência está presente naquelas mulheres que também não desejam a barriga: “[...] eu não tenho nenhuma vontade de ver minha barriga crescer; se eu pudesse, eu faria num

vidrinho e

colocaria ali pronto”. [Entrevistadora: Você não doaria óvulos? ] Não, eu acho que não, você vai pegar a carga genética de outra pessoa, o filho não nasce teu. O filho é dela. [Entrevistadora: Você não engravidaria de óvulo de outra mulher, a gestação para você não seria suficiente?] Não, eu preferia adotar. Isso não tem sentido; se você está adotando um óvulo, então adote uma criança (entrevista 25, Simone, casada com Armory).

266

De outro lado, ocorre a aceitação da doação de óvulos quando a mulher abre mão do sonho que ela alimentava – “Eu queria ter uma filha parecida comigo” – quando ela desenfoca das qualidades físicas e passa a focar as qualidades psíquicas. Na verdade isso é uma coisa complicada, porque assim, eu sempre tive um sonho de ter uma filha parecida comigo e mais precisamente uma filha, mas assim, hoje eu já tirei isso da cabeça, porque que alguém que está lutando tanto quanto eu pra ter filhos, ainda quer escolher que seja filha, ainda quer escolher que seja parecida comigo. Hoje, com a minha idade, não serve pra muita coisa, mas pra alguma coisa serve, eu penso assim, eu tenho algumas coisas muito boas em mim que eu posso passar pra minha filha, independentemente de ela ter carga genética ou não. Isso pra mim é uma coisa que está superada; se eu tiver que fazer, eu vou fazer (entrevista 23, Tereza, casada com Kauli).

O uso passa

de material genético de uma

terceira pessoa

a ser relativizado por causa do enfoque do discurso médico

sobre as trocas fetais. Eles focam em suas orientações as trocas que vão ocorrer entre o corpo da mãe e do bebê durante nove meses, perdendo relevância, desse modo, o fato de o óvulo ser doado por outra mulher. Mas o Dr. (nome) disse uma coisa pra mim assim, que também me tirou fora de ritmo, ele me disse assim “O óvulo é uma coisa morta, a troca que tu vai ter durante os nove meses com essa criança é muito, mas muito, muito mais do que um óvulo que uma mulher te deu. Então, assim, considerando isso, que eu vou ter um neném na barriga, considerando que vai ter essa troca mesmo, porque se vai ficar nove meses, sangue, um monte de coisa, e considerando que não vai ter outro pai e outra mãe pra perguntar quem é, que eu não tenha que contar, se um dia pode até contar a mamãe não tinha o tal do óvulo, teve que ir lá e pedir pra botar na minha barriga e...pai, daí eu acho que é bem diferente, então, isso assim, pra ti ter uma ideia entre adoção e óvulo-doação, eu sou mais pela óvulo-doação (entrevista 23, Tereza, casada com Kauli).

267

Além disso, a interferência médica pode ter um caráter orientativo, como parece ser o caso, ou pode se constituir em uma interferência constituída em ato de poder, como se pode observar

mais

adiante.

A aceitação

do material genético

espermatozoide pelas mulheres também é encarada com reservas enormes, poderíamos dizer

que é até mesmo

excluída das

possibilidades quase para a maioria, que então prefere a adoção. O filho continuaria sendo meu, porém não seria dele, na minha cabeça era muito estranho. Ai tu vais ter um filho que é teu e não é dele, e ele não tem direito sobre o filho. Acho que isso complicaria a minha cabeça e a relação. diante de uma separação ele vai simplesmente dizer: toma que o filho é teu, eu apenas ajudei a criar, mas não é meu. Agora se você adota a história continua, os dois adotaram, os dois têm que assumir (entrevista 25, Simone, casada com Armory). Ah, mas eu pensei muito. Acho que porque a gente vai lendo muito, vai abrindo essas questões éticas. Tanto é que eu não pegaria assim doador de espermatozoide. Eu fui porque era o meu óvulo e o esperma do meu marido; se eu tivesse que pegar esperma de outro, eu não queria, isso estava muito claro na nossa cabeça. Ou se fosse até um óvulo doado de alguém, também não, eu preferia pegar um [...] adotado pra mim, é muito menos traumático. Também, barriga de aluguel, essas coisas, ou então pegar até pai e mãe desconhecidos, porque não vi isso ainda, mas é mais comum, faziam e pegava e apenas colocava dentro pronto já os embriões, não era isso que eu queria (entrevista 33/34, Anita, casada com Ezequiel).

Filho do próprio sangue, tal qual nas representações masculinas, é elemento facilitador do papel educador do casal. Eu sempre pensei, eu vou ter um filho do meu sangue, e aí eu cuido dele com amor, ele se desenvolve, e eu vou ter que aguentar porque ele é meu filho. Eu vou ter que ajudar. E se ela adotasse uma criança eu ia pensar assim: “Meu Deus por que é que eu fiz isso”. Por que eu vou passar por isso tudo, ele nem é meu filho. Eu pensei que isso poderia ser assim. Eu acho que é mais fácil lidar no futuro com um problema de um filho meu do que com um

268

filho de outro. Eu queria ser mãe, mesmo que fosse... um filho adotivo. Mas eu não pensava em adotar porque eu tinha certeza que eu iria ter um filho. Às vezes eu ficava distante, que eu pensava que iria desistir, mas no fundo eu sabia. Eu achava que isso era possível (entrevista 31/32, Salete, casada com Luiz).

Filho do próprio sangue é importante por razões práticas Ela é importante porque às vezes a criança tem uma doença; a depender da doença, é mais fácil. Eu não assisto muito novela, não, mais eu vi uns capítulos e agora, nestes laços de família [...] Se ela tivesse um irmão do mesmo pai, da mesma mãe, a possibilidade de doação de medula seria fundamental. Então eu não vejo esta parte porque é meu, seria um fator de proteção. Poderia proteger mais nesses termos. Porque se eu tiver este bebê e isto acontecer, ninguém quer mais, pode acontecer, eu não tenho esta escolha. Assim, eu não vou ter a menor chance. Ele não vai ter a do irmão, esta parte eu não queria (entrevista 5, Jadi, casada com Beto).

Além desses aspectos,

há que se considerar, conforme

Delaisi De Parseval e Janaud (1988), que hoje em dia a criança se tornou um “must” dentro do sistema de representação do indivíduo e da família. Símbolo da perenidade da espécie é também o símbolo da integridade sexual, psíquica e de integração social do indivíduo e do casal. No século XX o filho não é mais um valor do capital econômico, como foi nas sociedades pré-industriais. Sobretudo após o acontecimento da contracepção (década de 1950), o filho é um capital narcísico e afetivo,

o que vai ter consequências

radicalmente diferentes, tanto para a vida da criança como para a dos pais. No passado, seria ele que traria a sua força de trabalho e o cuidado para

os seus

pais. Agora

ele é um

bebê

obrigatoriamente desejado, os pais querem tê-lo para ter prazer; então, oficialmente eles não esperam um retorno.

269

c) Embriões: doar/receber, sim

ou

não?

Pensar em

FIV/ICSI é estar diante dos gametas e dos embriões fora do corpo, congelados ou doados, e isso provoca uma perda de referências genéticas e a necessidade da insistência sobre as células que estão congeladas como “nossos filhos”, fala frequentemente encontrada junto aos casais. Desse modo, os casais cruzam a esfera simbólica do nosso conjugal com a esfera biológica das células. Ao mesmo tempo as NTRc conduzem a pensar essas entidades como separadas dos

corpos,

e isso

impede de

arranjá-las definitivamente

dentro das categorias conhecidas. As perguntas dão conta de falar do estranho: “É o embrião nosso filho?”, “Doar esses embriões é a mesma coisa que doar nosso filho?”, “Podemos descartá-los”? Para os homens, um filho não possui ligação direta com o embrião, que pode ser descartado como material sobre o qual a tecnologia está trabalhando, mas não que

um

aceitam a doação,

visto

embrião doado poderá ser transformado em filho. No

entanto, enquanto se mantêm no laboratório, são embriões que imputam responsabilidade ao casal por causa do

seu

destino

(NOVAES; SALEM, 1998), mas ao mesmo tempo abrem novos caminhos em que o próprio embrião pode ser utilizado para muitos fins, tanto

reprodutivos quanto para produzir células,

outros

órgãos, ou para bases em pesquisas experimentais. Embora, como é resultado de um processo que envolveu gametas de homens e de mulheres, ou de mulheres, ele esteja enredado em uma questão de direito que exige um ato de cessão, já que não se pode tirar de um

270

casal o direito sobre os embriões, nem pode servir para fins de comercialização ou de eugenia (TAMANINI, 2008). Para as mulheres, contudo, os sentimentos em relação aos embriões são outros. Os homens tratam o embrião como uma realidade à parte do seu corpo, exterior, e como um material que é depositado no corpo da mulher na esperança de que venha a ser um feto. A mulher, na fala dos homens, pensa no embrião com um valor sentimental de filho. Embriões eu não iria considerar meus filhos, é um material que está lá e pronto. Infelizmente não, eu não consideraria meus filhos. Tanto é que na primeira vez, no bebê de proveta, ela achou que perdeu o neném. Eu não achei que perdi o neném. Para mim ela não perdeu o neném, simplesmente veio a menstruação. Ela chorou pra caramba, se desgastou um monte. Eu simplesmente disse: não te preocupa com isso. Ela disse: “Mas estava fecundado”, eu dizia: “ (nome) não te preocupa com isso, simplesmente foi feito in vitro e pronto”. Talvez, se eu fosse mulher, eu sentiria o que ela está sentindo. Mas eu, como homem, vou ser honesto contigo, se eles dissessem para mim: “Olha (nome), os teus espermas lá vão ser jogados todos fora, eles poderiam jogar tudo fora, eu não iria criar um problema por causa disso, concordaria (entrevista 8, Geraldo, casado com Janete).

O estar fora do corpo não significa para ela não pertencer ao seu corpo. E mesmo que haja por parte da medicina uma tendência a tratar o embrião como fora da mãe, o que observamos da parte das mulheres é um sentido osmótico, visceral muito forte. Elas chegam

a afirmar: “é uma coisa minha”, e o tomam como

responsabilidade própria. Para

a maioria das mulheres, perder embriões é como

perder os próprios filhos, tal é seu envolvimento físico e emocional, de modo que doá-los é como doar os próprios filhos.

271

Isso é uma coisa minha que está ali, são meus filhos de qualquer jeito. Eu encaro como filhos. É que tu acompanhas tudo, desde a hora que eles tiram o óvulo, aí quando tu vais lá com dois dias, tu já vês a evolução deles, que aí está tudo como uma espuminha, aí quando tu vais para colocar ele já está todo redondinho. Aí parece que tu já estás vendo embrião ali dentro. Por isso é muito difícil tu chegares e dizer: eu vou doar, ou vou eliminar. [Entrevistadora: Você viu esses embriões?] Sim. E isso deixa a gente com mais dificuldade ainda para decidir. Se vê todo aquele processo e fica muito difícil (entrevista 25, Simone, casada com Armory).

Mesmo tempo

que os embriões permaneçam uma parte do

sob os cuidados médicos e do laboratório, que poderia

chamar para si a respon- sabilidade sobre o que fazer com eles, a mulher insiste em uma simbolização filial que a marca como a principal protagonista, não apenas para decidir sobre sua sorte, mas, nesse caso, fazendo

deles já seus filhos.

Ela é a “dona”

absoluta do material, estabelece com ele vínculos maternais e busca ao mesmo tempo apoio do marido para esse sentimento. Parece se defender do poder dos outros atores sobre os embriões que estão fora do seu corpo: Mas achei interessante que mais ou menos foram uns três dias que eles ficaram em laboratório fazendo isso, deixando crescer, porque quanto mais tempo há uma chance maior de botar um embrião um pouquinho mais maduro. Aí, achei interessante, assim, porque pra mim já eram os meus filhos mesmo, era bem claro isso na minha cabeça, não eram embriões lá, pra eles eram, claro. Isso é uma coisa muito mecânica, muito técnica, mas pra mim eram os meus filhos. Eles me ligaram duas vezes por dia pra dizer “Nome, os embriões estão lindos, estão crescendo, não estão morrendo, está dando tudo certinho”. Eu nem via como no microscópio, pra mim eram filhinhos lá. Ás vezes, eu pro meu marido “Tadinhos, lá sozinhos, nós aqui”, eu dizia pro meu marido e eu tinha certeza que ia dar. Daí eles me ligavam, “Ah, já cresceu mais, vai dar tudo certo”. Eu assim, por mais que seja uma coisa técnica, mas pra mim

272

não sou tão [...] (entrevista 33/34, Anita, casada com Ezequiel).

Chorar e sofrer o processo da perda como se fossem filhos, mesmo quando sabem que se trata da perda de células, permite a transposição da dor

de um

objeto real para um

imaginário – “meus filhos que estão lá, coitadinhos”. Choram desse

modo

uma

suposta

ausência, a distância dos filhos,

sentimentos que não seriam permitidos em circunstâncias normais da vida. Bom, quando eu perdi, que eu vi mesmo que eu perdi, nem tinha saído, eu tranquei a casa todinha, eu fiquei direto deitado na cama chorando o dia inteiro. E eu chorei, chorei muito, como se fosse um luto. Aí eu dizia assim: “Ai meu Deus, sofri tanto, tomei tanta medicação por nada. Eu me esforcei tanto e não deu certo”. Mas eu sempre pedia: “Dai-me força para superar”. E foi muito bom ter acontecido isso. Pegar e me fechar e chorar bastante e colocar para fora, porque aí eu me limpei. Já pensou, se eu fingisse que estivesse tudo normal, perdi e pronto e deu. Eu acho que eu ia ficar com aquilo guardado. Não, eu botei para fora legal no eu não atendia ao telefone, batiam e eu não atendia. Até o meu marido estava preocupado que eu podia entrar em depressão ou alguma coisa assim. Eu disse não, deixa assim que vai ser melhor para mim. Sabes, quando acontece alguma coisa que tu deves ficar sozinho? (entrevista 5, Jadi, casada com Beto). Eu fiz o exame e deu positivo. Porque dá uma quantidade X de hormônios que diz que você está grávida. E quando fez o outro já deu negativo. Eu estava perdendo. Mas na verdade eu não estava perdendo, ele só estava em evolução. O corpo não aceitou. Só que no dia em que eu fiquei menstruada e que eu fui lá, parecia que eu tinha deixado meus filhos lá dentro. Era uma coisa engraçada. Se eu falar sobre isso hoje eu choro. Isto aparece como se eu tivesse perdido os filhos mesmo. Tanto que eu queria que eu olhava as células nas fotos eu já enxergava meus filhos. E então para mim eu deixei eles lá dentro. Eu saí chorando feito uma louca, feito uma desesperada. E nem tinha dado positivo, era só uma divisão do celular. Eu nunca mais faço isso. Eu sabia que era como uma relação normal. E que aqui eu só estava facilitando as chances. Só que quando eu fiz a

273

fertilização in vitro parecia que eu tinha deixado meus filhos lá. Isto porque eu tinha visto os embriões, tinha visto as fotos, tinha visto eles se formando, eles eram uma coisinha de nada (entrevista 7, Janete, casada com Geraldo).

d) A adoção é a última opção para os casais que se deparam com os insucessos diante das possibilidades oferecidas pelas NTRc. Esgotar todas as chances é a atitude desejada. O casamento até pode acabar, mas o filho se estende para toda a vida. Decidir sobre

tê-lo implica relações

com o futuro, e as

representações apontam para o entendimento de que ter um filho com um pouquinho de cada um, dentro da consanguinidade familiar, facilitaria a vivência de eventuais problemas no futuro. Se o filho nascido da relação do casal “der trabalho”, ele estará amparado por uma rede familiar, e poderá ser dito a ele que é da família, não possuindo o direito de destruir esses vínculos. Por outro lado, as representações expressam a certeza

de que

haveria uma maior

aceitação dos erros por parte dos pais e dos familiares se o filho fosse do “próprio sangue”. Adotar era uma coisa que estava pesando muito. Quando a gente pensava em adotar, a gente dizia que primeiro iria esgotar todas as tentativas, e se depois não desse, a gente adotaria. A gente ainda estava relutante, a gente vê tantos problemas com a adoção. E um filho é para toda a vida. Se tu adotaste, vai ser um filho para sempre, então é irreversível. Por isso a gente estava bastante dividido, a gente não sabia se caso não desse certo, se nós partiríamos para adoção ou não. A gente queria muito um filho, a gente tem sobrinhos, mais pela insegurança do que seria esta criança, vinda de uma outra família. E poderia acontecer no futuro. Porque natural é mais fácil, seja lá o que for acontecer, ela será da família. Seja lá qual for o comportamento, se é natural, é mais fácil de aceitar (entrevista 32/31, Luiz, casado com Salete).

274

A dúvida sobre a adoção parece incidir sobre a insegurança de não saber de onde, de que lugares vem essa criança, já que ela possui pelo menos dois ramos familiares. Não é uma dúvida quanto ao lugar social, é uma dúvida sobre o sangue, sobre as heranças genéticas; “o sangue puxa”, segundo Fonseca (1995). É a introdução de um

sangue

diferente no

seio da suposta

conjugalidade e consanguinidade do casal. São os possíveis comportamentos herdados pelo sangue

que causam

temor. Os

adotantes partem do pressuposto de que a relação consanguínea entre eles é adequada, que eles não herdaram nenhuma “tara” genética, e estariam aptos a ter um filho do seu próprio mundo, do mundo parenteral. É a relação entre o conhecido e o desconhecido que conta prioritariamente, é o que pensam saber sobre si e seus parentes, é o que lhes agrada nessa relação que desejam continuar, mas conta sobremaneira sua consanguinidade e sua história pessoal. De

outra

parte,

no

momento da adoção

eles não

encontrariam o tão buscado “um pouquinho de nós”, “o olhar, e ficar buscando traços meu e dela”. Esse vazio de reconhecimento biológico, genético, fenotípico, implica esforço para construir o reconhecimento social, fato que demanda, da parte do

casal,

maturidade emocional e afetiva para abrir mão daquilo que era “um pouquinho de nós”, ao mesmo tempo em que demanda a cura da ferida narcísica de não ter podido gerar um filho seu. Adotar, segundo a fala abaixo, é desistir dos seus sonhos. É

descon- siderar as forças emocionais e físicas e os recursos

275

econômicos

guardados

para

isso,

além

das

possibilidades

tecnológicas na batalha pelo filho “natural”. Essa relação entre filho adotivo e filho natural é muito incômoda para mim. Ela tinha ido à médica, então ela perguntou: “Vocês nunca pensaram em adotar um filho?” Sim, a gente já pensou, mas só que eu, sinceramente, se eu adotar um filho, eu vou estar desistindo. Para mim vai ser uma desistência, entendeu? Porque eu tenho certeza que a partir do momento em que eu tiver uma criança aqui dentro de casa eu vou esquecer tudo aquilo que me fez batalhar até agora. Então sabia que eu ainda tinha um pouco de forças ainda para fazer um investimento para ter um filho natural, porque ela sabia que para mim era mais importante (entrevista 3, Gilson, casada com Mirna). Porque às vezes adoção também dá um certo problema. Essa menina aí eu fiquei com uma vontade incrível de adotar. Ainda era uma senhora de um orfanato, de uma creche, ela me disse que a menina era loirinha. Que era loirinha de olhos azuis. Depois eu disse para ele, ela está muito próxima, é de uma creche que ele ajuda. Então adoção deveria ser uma coisa muita bem feita para depois não ter o problema de a mãe vir atrás da criança. Eu tenho a amiga da minha mãe que ela adotou. A menina é de cor. Sabe que é adotada, mas agora está dando problema demais. Ela quer saber quem é o pai, quem é a mãe. Ela tem uma vida boa, ela tem tudo o que qualquer pessoa iria querer na vida. Mas agora está dando problema direto. Então tem isso tudo. Não vou dizer que um filho normal não vai dar problemas. Mas também tem esse outro lado. Tem a carga genética também, a gente não sabe que a pessoa traz (entrevista 29/30, Munique, casada com Chico).

Adotar significa constituir um processo inseridor do que é biolo- gicamente estranho, a fim de torná-lo um parente, afetiva e socialmente falando.

Ele

não

se inscreve na

linha

da

consanguinidade ancestral pelo sangue, mas pela ligação social e pela vontade sobre o genético e sobre o biológico (HÉRITIER, 1996). O aspecto legal parece ser o mais simples, porque bem ou mal

encontramos legislação

para

isso, embora alguns

276

estudos apontem as dificuldades legais da adoção. Porém criar, legitimar e naturalizar laços de afeto e de reconhecimento social faz sempre um eco desritmado na sinfonia sincrônica que é a de fazer filhos e a de tornar-se pais na relação com o casamento. Também há o fantasma de que a família alheia pode estar sempre rondando e o medo de que o aparentado genético apareça. A adoção abre um fosso entre a história presente e uma história anterior que não foi vivida pelo casal, cuja experiência de cindimento é apresentada como mais profunda. Tratando-se da mulher, diz respeito à ausência de uma experiência corporal. Quando os homens falam

da adoção,

desistência de ter um filho

eles contrapõem essa decisão

de seu próprio sangue.

à

Quando as

mulheres falam de adoção, elas falam de uma contraposição entre adoção e barriga, como já apontado nas falas sobre maternidade. Adotar é abrir mão do seu corpo grávido, principalmente da barriga e da amamentação. Em relação à adoção, eu sempre senti assim, tem uma parte dessa história que eu não vivi e uma parte extremamente importante, eu acho que toda mãe adotiva sente isso. Por que é realmente uma incógnita pra ti, o que foi o período gestacional, que é extremamente importante, o que foi aquilo ali? É um vazio pra mim (entrevista 37/38, Sonia, casada com Mario).

Em alguns casos, insistir na busca do próprio filho é reforçar a conjugalidade. Eu não tenho preconceito contra criança adotada. A nossa busca se deve ao fato de que nós sempre queríamos ter filhos e o desejo de curtir a barriga; isso aí é que era importante. O fundamental para ter um filho nosso, para dar continuidade, para ter as nossas características. Toda mulher gosta de curtir a barriga, tem todo aquele ritual,

277

e também porque é um filho Munique, casada com Chico).

nosso

(entrevista 29/30,

Adotar um filho exige que o casal seja mais forte;

em

linguagem psicanalítica, requer o reconhecimento da maternidade simbólica, já que não se deu no seu corpo, porque os casais pressupõem que a criança, ao ser adotada, já traz problemas de rejeição. Além de que, em todas as falas a adoção traz embutido no

próprio processo

um

escondimento sobre

um futuro

possivelmente sombrio e de difícil relacionamento. Eu acho que adotar uma criança tu tens que ter maior disponibilidade para dar carinho. Esta criança já vem para ti numa situação difícil. Se tu pegas uma criança para adotar e tu não dás o carinho que ela está na expectativa de receber e é mais difícil do que ter um filho teu. E a Janete não sabia se ia querer adotar. Nós temos a intenção de adotar uma criança não para nossa casa, mas pegar uma criança e ajudar. Pegar uma criança naquela casa e ajudar aquela família, mas não trazer para casa da gente. Se eu, a não ser que eu não ficasse grávida mesmo. O filho da gente já vem amado, o outro a gente tem que aprender a amar (entrevista 7, Geraldo, casado com Janete).

Acrescente-se o fato de que a adoção vem para beneficiar a criança, prioritariamente. muitos

casais,

infertilidade do

Ela

como solução casal.

O

deve para

casal

ser

encarada, conforme

a criança e não

para

a

e sua alteridade devem estar

suficientemente trabalhados. Agora, é claro, a questão da adoção é importante, só que eu não vejo a adoção pra resolver o problema de um casal que não pode ter filho. A adoção, o correto dela, é resolver o problema da criança e às vezes onde a adoção não dá muito certo, que às vezes as crianças ficam revoltadas com os pais adotivos é que eles quiseram resolver o problema deles, eles quiseram tampar um furo deles de não poder ter filhos e aí querem que todos achem que aquele filho é deles, que é do sangue deles e não é por aí. O correto é tu adotar no sentido

278

realmente que aquela criança está precisando de um lar, é claro que vai também vir a massagear um pouco o teu ego em termos de ter um filho, de ter alguém que diga que é meu, porque eu acho maravilhoso, eu acho correto mesmo da adoção é quem tem filho adotar uma criança. Porque é muito fácil dizer “Por que que tu não adota?” Tu tens os teus filhos (entrevista 21, Mônica, casada com Nando).

A resistência à adoção,

em alguns

casos, parece

estar

associada a um certo prestar contas à própria mãe, ao mesmo tempo, no receio de que sua mãe não reconheça o filho adotado como neto. Mas eu acho assim, se eu tenho chance de ter, por que não ter? Será que a minha mãe vai ver como o neto dela se eu adotar? Isso às vezes me passa pela cabeça. Eu gostaria que ela visse. Aí você passa a, aí você vê, porque minha mãe ama criança de paixão. Minha mãe tem loucura por criança, era para ela ter cinco filhos. Ela só teve... Mais uma vez eu brinquei com ela, eu já testei também para saber. Porque às vezes a gente pensa que está fazendo uma brincadeira, mas na realidade você quer testar. Eu falei, mãe, eu tenho um bebê aqui, não sei o quê... Ela reagiu super bem. E, por outro lado, ela disse: “Meu Deus, vocês estão loucos, vocês não compraram nada, o que vocês vão vestir nessa criança?” Depois eu desmenti. Mas por aí você vê que ela estava preocupada. Ela queria saber que estrutura estava dando, como é que eu catei uma criança e não preparei nada. Mas eu acho assim que as pessoas mais velhas são pessoas sábias (entrevista 35, Tânia, casada com Dito).

Diante da relação

impossibilidade de

prever

o

futuro em

aos problemas com a educação, e diante da

imponderabilidade do desejo de ter seu próprio filho, a adoção será uma última escolha. Antes será preciso fazer todo o esforço para não ter que assumir dois fracassos: o de não ter tido seus próprios filhos e o de não ter conseguido educar os adotados. Pois é isso que eu fico pensando muito, e eu me pergunto: será que se eu adotasse uma criança eu não me apegaria do mesmo jeito? Eu adoro cachorro, eu trato como filho, eles

279

dormem na cama comigo e tudo. Então eu me pergunto: será que um filho adotado não me daria a mesma sensação? Isso aí é o que faz mais a gente pensar. Só que eu tenho vários amigos que adotaram, todos os filhos dos meus amigos adotados são problemáticos. A maioria se desvirtua para as drogas, é claro, alguns já têm conserto. Mas isto é muito difícil de ser explicado. Absolutamente todos, sem exceção. Para mim financeiramente é mais fácil adoção. Mas num nível do sentimento, eu me submeteria ainda a tratamento para engravidar. É engraçado isso, né? Parece que a gente pensa que se veio de fora ainda não é filho. Isso é estranho. Parece que se saiba que de dentro é meu, se veio de fora não é. Eu não sei se tu és psicóloga, mas esta é uma relação difícil de ser explicada. Eu acho que o amor seria o mesmo, mas este sentimento é difícil de explicar. Eu penso que tem fazer tratamento até onde der, quando não der mais eu vou fazer adoção (entrevista 29/30, Munique, casada com Chico).

Analisando o material oferecido pelos

entrevistados,

encontram-se ambivalências e ambiguidades que denotam, por um lado, uma visão de mundo centrada no parentesco, entendida tal qual

a tratada anteriormente e a desenvolvida por Héritier. Ela

afirma, com base em Lévi-Strauss, que o parentesco é parte de um dado biológico elementar, que não pode deixar de ter sido invariável desde sempre, que o pensamento humano aperfeiçoou, simbolizou, explorando as possibilidades lógicas de combinações paradigmáticas que este substrato podia oferecer e elaborou os grandes tipos de sistemas de parentescos de que vêm atualmente as formas tal como a história da humanidade as modelou. (LÉVI-STRAUSS apud HÉRITIER, 1989, p. 30).

Essa ambiguidade e essa ambivalência se expressam num grupo de homens, embora não se constituam em maioria, que são a favor de práticas como a de doação e recepção de material e que as preferem à adoção. Porém eles efetivamente nunca estiveram diante da necessidade dessa decisão. Eles falam de algo que escutam ou que supõem poder acontecer. Não ocorreu nenhuma situação em

280

que a carga genética (óvulo ou esperma) não tenha sido do próprio casal. E, nesse sentido, não foram

rompidos os laços da

consanguinidade biológica. O que não significa que essa prática não

tenha efetivamente acontecido, uma

vez que

parece

ser

cotidiana na fala médica, particularmente se levado em conta que hoje é possível fazer filhos via tecnologia com material genético diferente daquele doado pelo casal. A doação de óvulos ou de espermas permite, como afirma Strathern (1992), um parentesco diferente do biológico. Laços de parentesco podem passar

agora

a ser definidos como

sociais,

jurídicos e legais. E o organismo humano continuará sendo um recurso funcional produtor de material genético. No caso desses receptores, o material é ressignificado no interior de uma relação constituída agora sob a “falta” de uma das colunas estruturantes da descendência consanguínea que se desloca para os laços do social: maternidade e paternidade sem carga genética. Nos casais encontra-se uma maior resistência em relação a assumir material genético doado. No limite, se a necessidade de escolher recepção de material se coloca, então, a adoção é a escolha restante. É o desfecho de um processo marcado pelas frustrações e decepções

em

relação

a todo o investimento

tecnológico e econômico pelo qual passaram, mas ocorreu também que casais que já têm filhos adotivos, ainda assim, buscassem por meio das NTRc. Independentemente do dado

empírico, da resistência ao

material genético doado, o contexto biotecnológico e as falas dos

281

médicos, para quem as práticas de doação se desenvolvem, sugerem sua consolidação. Pode-se vislumbrar a possibilidade da transmissão genética com absoluto sucesso, por meio das técnicas de engenharia reprodutiva. A tecnologia, no limite, poderá prescindir do ato sexual e até dos gametas; vide as discussões sobre clonagem. Conforme se observa, são muitos os elementos envolvidos nessas práticas. Elas abrem caminhos novos, que exigem respostas novas. O recurso à doação de óvulos e de espermatozoide, prática perfeitamente viável nas representações dos médicos, esbarra em resistências e conflitos pessoais e relacionais dos casais, podendo mesmo levar à desistência. O problema que existe com certa frequência é que mulheres que chegam no fim de sua potência ovariana e que o ovário começa a entrar em falência e não produz óvulos, daí a gente diz assim: “Olha, com teus óvulos não vale a pena tentar, porque nós vamos perder tempo, vamos gastar dinheiro e tempo e não vai adiantar. A senhora precisa de doação de óvulos e a gente passa para outra etapa, e ela passa a ter uma chance maior com uma mulher mais jovem; é aí que algumas desistem (entrevista 7, Janete, casada com Geraldo).

Os fatores de desistência se devem também ao fato de

que

as tecnologias são representadas, em um primeiro

momento, como aquelas que irão permitir o nascimento de um filho do próprio sangue. E elas o fazem. Elas são assim colocadas tanto pela

prática social

respaldadas por

como

pela

medicina

conhecimentos de senso

e pela

mídia, e

comum, o que

cria

expectativas nos casais. Isto só se complexifica quando as reais dificuldades são avaliadas

no processo

de tratamento e os

empecilhos se apresentam – ou a partir do limite dos gametas, ou a

282

partir da ausência do útero

na mulher. Para

alguns

médicos,

entretanto, transmissão genética e filho do próprio sangue é uma ilusão. Olha, o que existe é uma fantasia de que a pessoa vai ter a sua genética. Se ela não tem a sua genética, daí as pessoas acham que é muito complicado, então não querem. Eu até interpreto, eu explico isso que a genética hoje, não vamos negar aqui, ela tem seu papel importante e a gente não vai escolher o óvulo de uma negra para transportar numa branca, nem uma japonesa numa branca, nem vice-versa, quer dizer, nós, quando alguém precisa, vai precisar de óvulos, nós pegamos a fotografia dela e a pessoa encarregada vai procurar essa pessoa dentro da população que se procura e que são mulheres que também querem engravidar e que precisam de ajuda também, são ajudadas por esses casais, numa associação e essas pacientes então por isso doam uma parte de seus óvulos quando fazem o seu procedimento. Nisto não há envolvimento econômico, dinheiro, não se vende óvulos, não se compra óvulos, pelo menos aqui no... isso não é feito e eu não acredito que em algum lugar do Brasil se faça (entrevista 16, Alcides, médico).

Alguns relatos médicos e das mulheres dão conta de dizer sobre a relativização do uso de material genético (conforme fala abaixo), mas em nosso campo não há casos de doação de material. E o que se observa, de maneira geral, é uma resistência em fazê-lo, particularmente por parte dos homens, quando se trata de material doado por outro homem. Uma grande surpresa, por exemplo, que eu tive quando nós fazemos, isso aí foi surpresa, a inseminação de outro sêmen, heteróloga. Eu sempre pensei que o indivíduo quisesse esconder essa criança, mas ao contrário. Eles entram com essa criança no colo, triunfantes. O sentimento é completamente diferente. Mas, mesmo assim, eles são resistentes. Devias falar com alguém que já teve um fruto de inseminação. Mas é uma coisa que geralmente as pessoas não admitem para os outros. Elas admitem para nós, que somos médicos. Mas a recepção é muito boa. A felicidade deles é impressionante. Agora, é claro, se vai falar com ele antes, ele

283

vai fazer resistência. Ele vai dizer que não, e tal. Essa é a primeira reação. Até que ela o convença. Se ela estiver interessada que ele receba uma doação, ele vai fazer. Se ela não estiver interessada, ele não vai fazer (entrevista 16, Alcides, médico).

Relativizar tão pura e simplesmente, numa atitude quase ingênua, é desconsiderar que talvez a sociedade contemporânea ainda

não

consiga aceitar

espermatozoide de

que

uma

criança concebida por

doadores tenha pais idênticos e paternidades

partilhadas. O que se vê é uma busca infinita por integrar pessoas nos mesmos valores, nos mesmos direitos, até que a sociedade possa fazer outras escolhas dentro das possibilidades de regrar, de reproduzir in vitro os processos celulares da fecundação e do desenvolvimento embrionário, diante da possibilidade de conservar congelados gametas e embriões, de identificar patologias e de poder corrigi-las. Mas talvez ainda não se tenha conseguido responder a questões de fundo, que estão sendo resolvidas pela tecnologia a seu modo. Questões tais como saber o que é uma mãe, um pai, quais as ligações que se estabelecem entre gerações, qual é a parte do biológico nessas ligações, o que é normal e o que é patológico. Por ora, continua-se a legitimar práticas médicas voltadas para a família nuclear e monogâmica. Em algumas entrevistas, os médicos dizem mesmo que precisam se certificar de que esses casais não estejam em crise antes

de começar o tratamento.

Preservar o biológico e o doméstico e construir sobre esses pilares é um componente de segurança e legitimidade da prática. Como diria Mafessoli (2001), é a ligação entre valores tradicionais e aspectos mais avançados do mundo tecnológico.

284

CAPÍTULO 4 TECNOLOGIA, NATUREZA E CULTURA: REMODELANDO A MATÉRIA E INSTITUINDO A HETERONORMATIVA Este capítulo analisa as representações sobre o uso das NTRc, no contexto da experiência com esse vivido para visibilizar sentidos argumentativos em torno da ideia da produção de uma natureza fértil, a partir da tensão entre natural e artificial, e da busca pelo filho do próprio sangue. Apresentam-se os fundamentos éticos discursivos que permitem aos casais e à medicina se utilizarem dessas tecnologias, quase sempre carregadas de fortes associações com a artificialidade e pensadas por muitos como má vontade em relação à adoção, quando fora desse contexto. Busca-se compreender que valores são construídos sobre a natureza, a tecnologia e seus usos, e que legitimam essa demanda, bem teóricas do

como

analisar as tensões

binômio sexo/gênero, atribuído à dicotomia entre

natureza e cultura. Desse

modo,

retomam-se as tensões

que

fundamentaram a construção da categoria analítica gênero, contrapondo-a à interação com

gametas,

útero

e desejo

e

verificando como ela se constituí no contexto das NTRc, sobretudo, a partir do discurso sobre corpos férteis. A categoria gênero revela como as diferenças sexuais, que constituem, por vezes, expectativas sobre

as relações

na

sociedade, são construções históricas e culturais, muitas vezes

285

binárias, duais,

frequentemente carregadas de desigualdades entre

homens e mulheres. Ao fazê-lo desse modo, desestabiliza os determinismos biológicos e analisa a forma como são construídas as desigualdades nas relações de poder que se instituem a partir da leitura sobre a diferença do sexo nos corpos, em contextos diversos, e na variedade de relações sociais. O gênero por sua vez, como atributo da cultura, permite perceber os vários componentes dos diferentes modos como as diferenças sexuais ganham significados e como se estrutura sua base epistemológica de desconstrução. Ainda que,

muitas vezes, carregada do que Nicholson (2000)

chama de fundacionismo biológico, ou da noção de identidade como

porta-casacos, o que,

segundo ela, traz

obstáculos à

compreensão das diferenças entre mulheres e homens, bem como à compreensão das diferenças sobre quem pode ser considerado homem ou mulher, nas dinâmicas que o próprio gênero possui quando olhado no intragênero. Politicamente falando,

a diferença nos corpos,

como

construída em diferentes práticas sociais justificou a desigualdade entre grupos de sexo que, uma vez descobertos, como dois ou mais, foram, posteriormente, tratados como fatos exteriores à ação da sociedade e determinados por seus essencialismos e biologizações. Essas diferenças foram feitas em hierarquias, quando no tratamento diferencial de grupos e/ou indivíduos, e passaram a representar desigualdades, perdendo-se desse modo a dinâmica da própria diferença como uma condição à autonomia dos indivíduos, se esse reconhecimento fosse recíproco. Segundo Delphi (2001) a

286

diferença invocada a respeito das mulheres, mas também dos homossexuais, dos árabes, dos negros, não é recíproca. São eles e elas que são diferentes em relação aos demais. Essa diferença é um estigma. Nesse sentido, estudar gênero e tecnologia conceptiva é perguntar-se pelo modo

como as diferenças estão

sendo

dinamizadas no recolocamento de relações de desigualdade, e o que elas significam em termos de possibilidades emancipatórias nesse modelo de família. Portanto, é preciso ir além da questão de transformar as reivindicações de igualdade em reivindicações de identidade. O grande desafio é buscar a historicidade das diferenças, pensar mulheres e homens como uma complexa rede de características e articular o sentido das palavras nos contextos em que há ambiguidades e nos quais isso tem diferentes consequências políticas. Enfrentar a crença que há em nossa sociedade de que as características físicas são autoportadoras de classificações sociais é parte de uma vontade política necessária à sua correção, quando a problemática se coloca no bojo da dimensão que se estabelece entre igualdade e diferença. É a própria natureza da diferença que se impõe como prática de desvendamento necessária ao desafio político. A luta pela paridade política entre os sexos, todas as reivindicações políticas que o feminismo vem sistematicamente denunciando, esta suposta

naturalidade

está

baseada

em

critérios

da

heterossexualidade bem como vem mostrando que a naturalização da sua prática com as divisões

dos mundos em masculino e

feminino não são resultados nem da fatalidade nem da natureza, mas

287

resultam de muitas ações humanas que comportam posições

e

atitudes mentais, físicas e culturais. Nesse sentido, a própria concepção humana e o ato sexual conceptivo

tomam,

em

laboratório,

um

caminho

de

desnaturalização dos dois pressupostos necessários tradicionalmente à concepção: a sexualidade conceptiva, que foi naturalizada como um fenômeno social de modo seletivo e compreendida como o coito e, além disso, como prática natural, e a concepção, que é realizada em dois corpos. Agora essa relação se desestabiliza porque o coito é editado, controlado, e a concepção humana não é possível no contexto do laboratório, sem a intervenção de outros corpos e de outras demandas, sejam

elas físicas,

tecnológicas, que se façam

sociais,

representar por

uma

especialidades, laboratórios, doadores, gametas, de

úteros

ou

pela

institucionais e variedade de

juízes,

partilha

recombinação de materiais genéticos e

enzimáticos. Muitos, em novas dinâmicas, fazem parte dessa complexidade de decisões reprodutivas. Isso recoloca duas discussões: de um lado, para muitos, a necessidade de reforçar a ideia de que se está modificando a natureza e que, portanto, as práticas precisam ser regradas. O desafio nesse caso é o de restabelecer a natureza dentro do seu direito e de impor interditos ao não natural ou, diante da impossibilidade de fazêlo, colocar-se a questão se isso que fizemos fomos nós ou foi a própria natureza que o fez. Não dizem muitos que a própria natureza produz suas clonagens? Ou que isso faz parte da natureza, ou é da natureza humana querer ser Deus? De outro lado, o desafio é

288

reconhecer que boa parte dos problemas apresentados por essas práticas são desesperadores porque, de uma parte, revelam a necessidade coletiva de manter a função “natural” procriativa e de consolidar a legislação

biologizante. De outra parte, revelam

como indivíduos perseguem sua

própria vontade, situação bem

expressa no caso da sexagem de embriões (TAMANINI, 2006c), em que se faz seleção de espermatozoides para fazer meninas ou meninos em nome do equilíbrio familiar. Essa prática, se de um lado, expõe o grau de intervenção tecnológica sobre a concepção, também recupera os valores

da divisão

sexual

binária e

heterossexual, pelo menos como horizonte sobre o desejo relativo ao sexo dos filhos da parte dos pais. Em se tratando da agonia que esse fazer biomédico traz para as/os guardiães/ãos da natureza, há que se reconhecer que o mundo imaginável na

sexagem é

a

possibilidade de se garantir a

existência de meninos e meninas a partir do sexo heterossexual, por uma decisão de intervenção sobre produtos humanos, o que não garante nenhuma correspondência em termos de gênero, e que também poderia levar a invenções eugênicas com regramento legal ou não. O mesmo não se pode dizer sobre o ato e o modo do fazer conceptivo, porque estes são resultados de processos e de escolhas de vontades sociais, que por sua vez se conformam no conjunto de uma verdade biológica e de parentesco consanguíneo. O que se faz com gametas, células, cromossomos é em si mesmo indiferente ao modo de coabitar e de educar crianças, embora este último possa

289

interferir sobre que tipo de tecnologia ou de prática científica será desenvolvido para fazer crianças, dentro da perspectiva sobre como elas são desejadas, a que capital narcísico devem corresponder, e sobre o modo como se pensa em tê-las e educá-las. Essas práticas laboratoriais ou legais potencializam uma capacidade social de forjar sentidos reconhecidos como úteis e desejáveis, quanto mais próximos eles estiverem da ideia de ordem social, ou imbricados com as brechas morais, culturais e éticas que permitem novas experiências e que, em geral, encontram seu apoio quando se trata de uma

tecnologia conformada nos

sentidos de “cura”

e na

normatização social. Segundo Delphy (2001), não se pode atribuir à natureza entendida como gens, cromossomos uma capacidade de decisão, ou um sentido moral. Essa dimensão é dada pelas configurações sociais e humanas. No contexto do laboratório, o pensamento de Butler (1999) resulta muito útil, porque quando se fala sobre a materialidade ou materialização das diferenças sexuais, necessita-se considerar a remodelação da matéria dos corpos (que é realizada na reprodução assistida). Isso que é um efeito de uma dinâmica do poder, de tal modo

que

a matéria dos

corpos

é indissociável das normas

regulatórias que a governam e a multissignificam. Ao repensar o processo pelo qual uma norma corporal é assumida, apropriada e adotada, conforme Butler, encontra-se que a própria materialidade corpórea não

se configura como uma realidade anterior pré-

discursiva. O que acontece “é um processo de materialização que se estabiliza ao longo do tempo para produzir o efeito de fronteira –

290

daquilo que nós chamamos de matéria” (BUTLER, 1999, p. 163), necessária, nesse caso, à reprodução humana. A refutação de todas as formas de naturalismos permite, portanto, questionar

os

pressupostos

das

hierarquizações

opressivas e o controle sobre os corpos e a natureza. Esses pressupostos devem

ser entendidos em sua variabilidade de

conteúdos e características de gênero e também na variabilidade de agenciamentos cognitivos da categoria sexo segundo as sociedades, bem como no interior da fragilidade das fronteiras estabelecidas entre os sexos (MATHIEU, 2002). A remodelação da matéria dos corpos no campo da reprodução assistida ocorre a partir do entendimento do que é natural para um casal, seja reproduzir-se. O natural é possuir um corpo fértil. E o ato social, laboratorial, engaja-se na dinâmica de remodelar corpos inférteis em corpos férteis como efeito de um poder que visa recontextualizar a fertilidade nos corpos e nas relações preferencialmente heterossexuais. A construção sob a qual há uma diferença sexual e cromossômica baseada em dois sexos é o fundamento material sobre o qual a reprodução assistida atua, porque são necessários corpos sexuados e capazes de oferecer os diferentes gametas ao procedimento. Os gametas, em sua diferença, ainda são indispensáveis à aplicação das tecnologias reprodutivas, até que não sejam postas em prática as técnicas de clonagem ou de gravidez utilizando somente os óvulos femininos. Talvez até que não se continue a considerar a necessidade das diferenças sexuais como pressupostos para a reprodução, até que se siga sem levar em

291

conta os corpos marcados por diferenças sexuais e hormonais não correspondentes à materialidade performativa exigida em relação à produção das condições geradoras dos gametas. “distúrbios”

hormonais

ou

funcionais

O fato de que

comprometam

a

performatividade dos corpos faz já cair por terra a constituição da fixidez do corpo e agrega um questionamento sobre a categoria natureza pronta e inflexível. O sexo biológico, assumido como não questionável, assim o será somente na medida em que os estudos sobre o determinismo genético permaneçam e que não sejam complexificados os seus diferentes níveis, para que se reconheçam as diferenças como dificilmente redutíveis a duas categorias apenas (PEYRE et al., 2002; KRAUS, 2000; OUDSHOORN, 2000). A intervenção médica cotidiana parte do pressuposto de que há necessidade de ajudar

a natureza, devolvendo-lhe sua

capacidade, que é entendida como uma “capacidade reprodutiva” e que

está

lá, em

algum lugar, precisando ser acordada e

potencializada pela ciência. Em um primeiro momento, tem-se a impressão de que se trata de um agir sobre o que está escondido e que precisa vir à tona. Fala-se de uma natureza-biológica, de uma realidade material, do corpo

sexuado, prioritariamente o feminino. Segundo Rouch

(2002, p. 245, tradução da autora): São as mulheres que pagam o preço desse jogo desde que no seu papel específico na reprodução elas tornaram-se objetos de práticas experimentais: manipulação possível na medida em que, enquanto grupo social, elas não têm nenhum controle sobre as modalidades e a evolução das novas tecnologias reprodutivas.

292

A fixação do olhar corpo

sobre

a performatividade desse

permite observar que ele tem uma falha: não pode

procriar. Essa

natureza corporal necessita ser capacitada pela

medicina, que tratará de transformar o corpo “infértil”, dando-lhe uma condição que lhe permita manifestar fertilidade. A questão colocada

é se essa intervenção médica, ao

modificar o corpo para o “capacitar”, não estaria já remodelando a matéria. Observa-se que, ao intervir para

gerar

capacidade

reprodutiva, parte-se do pressuposto de que o corpo como natureza normal é o fértil; se ele não

está

conseguindo manifestar sua

essência, então precisa ser ajudado. Uma vez que ele está falho (anormal), configura-se uma nova materialidade corpórea – que não é a da fertilidade, preconcebida como a de uma natureza normal – que seguirá seu rumo, encarrilhando-se para a reprodução porque foi ajudada a se reencontrar. Mas será uma materialidade corpórea que não se configura como realidade anterior prediscursiva, e sim como um processo de materialização que trará para esse corpo a função reprodutiva, ainda

que

“passageira”, na maioria dos casos. O

“tratamento” não (re)essencializa uma

natureza fértil; apenas

permite produzir um efeito de remodelação que se aproxima do que era considerado natural pela cultura. O que ocorre na verdade é que esse natural é todo construído. Observa-se que para reformular essa materialidade corporal são necessários instrumentos tecnológicos. Desse modo, não só o corpo é formatado, mas também a tecnologia que, por analogia com o próprio corpo ou por metáfora dele, carrega em si o que falta nele.

293

Na ICSI são reproduzidos mecanismos técnicos que penetração dos

permitem a

espermatozoides no núcleo do óvulo, no mesmo

enfoque que sempre foi atribuído ao espermatozoide como penetrador, na relação com a linguagem e a cultura. Desconsiderase na concepção do instrumento tecnológico a interação química entre gametas, tal qual desenvolvida por Martin (1999). Em relação aos hormônios, pode-se

observar os mesmos

mecanismos. Por

exemplo, se o corpo não é capaz de produzi-los, a tecnologia o faz, estimulando-o, através da técnica e da medicação, com a finalidade de lhe devolver uma capacidade reprodutiva, performatando desse modo sua função. A tecnologia médica age no corpo e fora do corpo, mas por similaridade, espelhando-se nas sínteses realizadas pelo próprio corpo.

Ao mesmo tempo, a tecnologia possui uma

realidade

autônoma que lhe possibilita, no limite, romper com sua base restritivamente biológica, o corpo, uma vez que todo o processo hormonal pode ser construído com material sintético, fora do corpo. E a fecundação, resultado dos muitos estímulos hormonais no corpo com materiais sintéticos que agiram no resultado ovulatório produzido, também pode podendo-se mesmo

dar-se

inteiramente fora do corpo,

obter embriões e mantê-los congelados em

laboratório. A questão é: gera-se natureza ou instrumento técnico? Se o ponto de partida for o embrião, se ele mesmo constituir a condição que falta ao corpo para que o útero engravide, então o embrião pode ser o instrumento técnico fundamental à gravidez. Se o embrião for

294

considerado como a natureza que precisa de um lugar para se desenvolver, então o corpo é o instrumento para o desenvolvimento dessa vida “natural”, em latência como ser. Isso confunde natureza e técnica e permite colocar um ou outro em perspectiva, a depender do foco e do que interessa escolher. É a possibilidade de escolhas que está dada, segundo Strathern (1991). A tecnologia pode

instrumentalizar a fecundação que,

realizada in vitro, torna possível o controle do patrimônio genético do embrião, o controle dos embriões, a transmissão dos gens da espécie ou ainda o uso de embriões para pesquisa, segundo Rouch (2002). Isso é o que se observa ser o mais frequente nas trocas de mercado, mas também pode conduzir a pensar os novos produtos como naturezas que necessitam de lugar para se desenvolver, transformando assim sua “artificialidade” em “naturalidade” e invertendo o “natural” corpo

humano, em

uma

relação

toda

construída. Pode levar a encará-lo como o lugar onde o “criado” irá ser colocado para se desenvolver ele próprio como “natural”. Desse modo, há um entrelaçamento entre natural/artificial, natureza/cultura que dificulta separar as fronteiras entre o que é um e o que é outro.

4.1 CAMPO BIOMÉDICO NATUREZA FÉRTIL

E

A

CONSTRUÇÃO

Essas tecnologias se consolidam como concebidas como “naturais”, pois trabalho da

natureza, na

DA

intervenções

são utilizadas para

imitar o

fala dos entrevistados. Quando

consideradas como relação de “ajuda” à natureza sexuada

dos

295

corpos,

elas perdem seu caráter

maléfico

e, capacitando a

espécie humana sem prejudicá-la, ganham em benevolência. Nesse caso, o que fazem é devolver à natureza sua função dentro de uma lógica

liberal, onde

tudo

é possível

se cumpridos alguns

pressupostos. O principal deles é sua capacidade de ajuda no processo de construção do corpo fértil. Porque a gente continua trabalhando com produtos naturais, não é nada artificial. O ovócito dela é ovócito humano, é sempre humano, a gente só dificulta as barreiras, a gente aproxima mais essas duas células, existe uma proximidade. Mas, pra mim, continua sendo natural...Mas, não deixa de ser de forma alguma natural, a gente só está diminuindo o espaço entre o espermatozóide e o óvulo, é só isso que a gente faz (entrevista 15, Marina, bióloga).

Assim,

compreendidas como

forma

de

ajuda,

essas

tecnologias são pouco questionáveis e deixa-se de interrogar sobre o poder que elas dão à ciência médica

de agir sobre a vida.

Nelas há objetos privilegiados, as mulheres, na medida em que as

diferenças fisiológicas reprodutivas

e as diferenças de sexo

requerem a manipulação dos corpos centrada no corpo feminino, embora nos

protocolos médicos as mulheres desapareçam, pois,

segundo Rouch (2002), em seu estudo sobre os relatórios de tratamento, fala-se em estimulação ovariana, em ciclos, mas não em mulheres, situação que também observamos. O entendimento do que é a natureza depende tanto da cultura quanto do contexto de cada período histórico. No ocidente, ele passa de uma concepção benevolente e dotada de intenção, presente no século XVII, para uma concepção indiferente e mutável no

296

século XIX, época em que, na linguagem positivista, os corpos são equiparados a máquinas (LOWY, 1995; VARIKAS, 2000). Nos dias atuais,

no contexto das NTRc, a natureza é

aquela que necessita ser “ajudada” pela tecnologia. É a portadora de uma incapacidade ou de uma falha em materializar um corpo fértil. Se completada pela materialização de gametas, estabelecidos sob os critérios da diferença sexual, é capaz de produzir as condições para a fertilidade que, por sua vez, é transposta para a relação heterossexual, construtora da maternidade e da paternidade. Na fala dos médicos, e, em parte, na dos homens do casal, vê-se o abraço entre a natureza e a técnica que, como entidades que se completam, buscam “normalizar o casal”. Para eles, a tecnologia não muda o “processo” de fazer

um

filho.

Ela

apenas

“acerta” as

condições físicas, conforme depoimento abaixo. Eu acho que não muda nada. Eu acho que o que acontece é que a medicina dá uma mexida, igual a uma cirurgia do coração. A medicina vai ali, toma algumas atitudes, e o filho nasce natural. Ele vem de dentro da barriga da mulher, ele come o que a mulher come. Ele se alimenta do que a gente se alimenta, igual. Eu achava que seria complicado se pegasse e tirasse fora. Se fizesse inteiro numa incubadora. Aí eu ia achar meio estranho. Mas assim não. Mas dentro da barriga eu acho bem normal, eu não acho nada anormal (entrevista 28, Humberto, casado com Solange).

Aqui é a técnica agindo na barriga que torna a natureza fértil,

a barriga é “natural” e manter o bebê na barriga é o que

permite construir a naturalidade do processo

de procriar. O

entendimento é o de que se há algo artificial é só na relação de ajuda ao natural, na medicação, na tecnologia, no fato de que os materiais humanos, antes dispostos na vagina, pelo ato sexual,

297

agora são dispostos por meios médicos; o desenvolvimento do bebê continua sendo no corpo natural. Ele não é autônomo e, nesse caso, pode-se colocar a barriga a seu serviço. É a barriga que está sendo ressaltada para focar a naturalidade do processo. Enquanto ela (o útero) for escolhida como o fundamento do natural, permitir-se-á manter a linguagem centrada na naturalização do processo. A dicotomização de gênero, que se apresentou anteriormente na forma particular de contraposição entre

o útero

e o

espermatozoide, apresenta-se também quando se fala da natureza como uma entidade inscrita tanto no corpo do homem como no da mulher, e que é revelada, por exemplo, nas expressões “usamos materiais humanos”, ou seja, espermatozoides e óvulos. Ao mesmo tempo, essa dicotomização é externa aos gametas, porque engaja sentidos de outra lógica, a de que é natural para uma mulher ser mãe e a de que exercer a maternidade é sua principal função social. A mulher é vista fundamentalmente como mãe biológica, e o homem deve ser pai porque é o marido da mãe. No que tange à identidade sexual, ela é inscrita no corpo a partir da presença ou da ausência de gametas. A marca da diferença entre o que pode vir a constituir um homem, homem, e, sobretudo uma mulher, mulher, ocorre pela presença ou não de materiais reprodutivos. Segundo os médicos, a natureza é capaz de dotar os corpos com uma essência marcada de modos diferentes, mas que pode ser generosa com o homem e perversa com a mulher, quando essa natureza marca a mulher com a incapacidade pela falta de óvulos ou do útero. Já o homem é marcado com uma falha,

298

conforme dizia uma das entrevistadas comentando sobre a fala dos outros a respeito do seu marido: “Eles diziam tu és um falhado”. Neste particular, as tecnologias de reprodução assistida, do ponto de vista dos médicos, são a “ajuda” que vem devolver a capacidade reprodutiva da mulher, de fora para dentro, via medicação. De forma diversa recuperam a falha no corpo masculino – de dentro para fora, via ICSI; “naturalmente” fértil,

o corpo

masculino é concebido como

podendo sua

potencialidade

ser

desenvolvida por meio de uma ajuda tecnológica que vai buscar até mesmo células imaturas, as espermatites, para utilizá-las na ICSI.

O gameta

masculino é preparado e capacitado para ser

recolocado no curso como fértil, portanto potencializado através de um poder biomédico/laboratorial sobre o corpo. A prática médica reforça as concepções culturais de que o homem é sempre fértil, enquanto a mulher é mais necessitada de ajuda tecnológica. Seu corpo, seu útero e seus ovócitos continuam sendo partes imprescindíveis para as NTRc. Mas ela tem que normatizá-los por meio da medicação e da intervenção corporal. Além disso, em relação à mulher, é preciso administrar outra “perversidade” da natureza – a redução do tempo biológico relativo à sua fertilidade. Isto porque, segundo é consenso na medicina, a natureza não lhe deu os mesmos atributos masculinos; ela limitou seu potencial procriador. Marlene, a natureza foi perversa com a mulher. Ela acabou com a repro- dutividade dela aos 45 anos, 40, 45 anos; o homem não, o homem 60, 70, 80, enquanto ele tiver potência ele reproduz. A mulher, a tecnologia vem devolver a ela uma

299

parte de sua fertilidade. O que eu acho é que a tecnologia está favorável a ela (entrevista 7, Salvador, médico).

Conforme se pode

observar nessa

afirmação, a

infecundidade é transferida para a mulher como uma característica do indivíduo; é dela que a natureza “rouba” a fertilidade. Não se faz referência ao fato de que só há infertilidade porque essa mulher está num projeto de conjugalidade, e é nele que se coloca o desejo incomensurável por filhos. Não há aqui discussões sobre o desejo de maternar na condição de celibato. Nesse caso, não é incomum que médicos têm dito mandar essas mulheres para a terapia. Também não se fala sobre a história ovulatória, sequer se faz referência ao fato de que a idade cronológica não é a mesma que a idade dos ovócitos. A busca pelo filho, conforme este estudo, se constrói sempre como imprescindível para a mulher, mas porque ela está casada, e é nessa relação que se constitui a imponderabilidade do desejo. Nenhuma das mulheres disse querer ser mãe solteira, embora essa escolha possa ser realizada; e nesse caso, pode-se recorre a um doador de espermatozoides, não por razões de infertilidade, mas por vezes, pela ausência de um parceiro. Um indivíduo, fora da relação de casamento, pode ser hipofértil ou estéril, sem ser doente (ROUCH, 2002). Sem contar que há outro problema a ser considerado. A maior parte das infecundidades resulta da hipofertilidade de um ou de outro, ou dos dois, e não de sua esterilidade. Por isso as NTRc vêm paliar a esterilidade (BATEMAN, 2000, 2001;

LABORIE, 1993, 1994, 1996, 2000;

ROUCH, 2002;) e não trazer um diagnóstico de infertilidade ou um tratamento “curador”.

300

Segundo os médicos, a tecnologia é capaz de devolver para a mulher o que ela “perdeu ou não tem”, ao mesmo tempo em que potencializa o homem no que ele “tem”, na busca de resultados reprodutivos. Esse é o trabalho da ICSI, que demanda uma escolha dos espermatozoides por parte do especialista. Escolha que se realiza

através

de critérios morfológicos “os que

se

considera os melhores”52 para materializar o embrião. Quando não há espermatozoide, nem no ejaculado e nem no epidídimo, trabalha com

a maturação de espermatite (células

precursoras de

espermatozoides). O avanço tecnológico oferece pra gente recursos para poder trabalhar e oferecer para o paciente maiores oportunidades, então isso é muito bom. Hoje a gente trabalha com [...], antes vinha um paciente que ele não tinha espermatozoide ejaculado, aí ele é azooespérmico. Hoje o paciente vem, se ele tiver nem o ejaculado, mas se ele tiver uma punção de epidídimo, na biópsia testicular, se ele apresentar células precursoras do espermatozoide, a gente faz a maturação dessa célula, que é a espermátite, a gente faz a maturação dessa espermátite, até chegar ao espermatozoide. E até mesmo a injeção de espermátite, de células que estiverem numa fase madura, digamos assim, e a gente consegue embriões e consegue [...], já tem caso relatado de gravidez com essas células, o índice é baixo, mas existe. Então, é um grande avanço isso, que isso oferece pra gente, nós, profissionais da área, que a gente ofereça esses recursos para a população. Porque a gente vê o desespero de um paciente que quer ter um filho, um casal que não consegue, isso começa a afetar na vida dos dois, na vida do casal (entrevista 15, Marina, bióloga).

52

É a divisão celular, que é apontada como o critério fundamental para a escolha dos embriões. São selecionados aqueles que apresentam menos fragmentações, os que obtiveram uma divisão celular adequada ao tempo proposto. Não há como avaliar outros aspectos, por exemplo, os elementos químicos. É por isso que, segundo relatos, mesmo obtendo-se embriões considerados “ruins” pode-se ter sucesso, chegando a uma gravidez.

301

Mas o que chama a atenção nas falas é que em relação ao homem dificilmente aparece

a expressão

“ele é estéril” como

característica dele mesmo. Fala-se em causa de esterilidade, em falhas; os médicos frequentemente falam que ele é azooespérmico ou apresenta hipozooespermia, conforme é exposto a seguir, ou seja, a esterilidade não o nomina nem o define. Há mesmo quem afirme “que todos os problemas masculinos depois da ICSI são passíveis de solução”. A maior causa de esterilidade masculina é a hipozoospermia ou pequeno número de espermatozoides e isso a ICSI resolveu. Então o homem, hoje, o que ele faz, o homem cuida, vê se ele não tem nenhuma doença inflamatória, se ele não tem nenhuma coisa escarada, alguma coisa e demais eles normalmente eles não têm, normalmente o homem pode ter lá uma prostatite, que ele não tenha nada e tem baixo número de espermatozoides e esse casal vai para a ICSI e engravida, ou tem ligadura tipo o Pelé, tem ligadura de deferentes porque não quis mais ter filhos, depois encontra uma mulher, resolve ter filhos e então faz, ou faz reversão, que em geral não funciona, mais depois de alguns anos, e depois passa para a ICSI (entrevista 7, Salvador, médico).

Em alguns casos, embora se constituam em um grupo particular, que é minoria, há casais que têm um entendimento do natural situado no corpo. São casais que cultivam valores ecológicos e entendem esses procedimentos como artificiais; por isso,

se

recusam a fazê-los. Esse aspecto, contudo, na fala dos homens dos casais entrevistados, está muito mais ligado ao primeiro momento, quando ainda também ligado

precisam decidir entre

fazer ou não fazer. Está

ao desconhecimento dos procedimentos e quase

desaparece quando eles se envolvem com os processos, a menos que isso envolva concepções filosóficas, religiosas ou éticas.

302

Eu tenho atendido casais que não aceitam as técnicas, por valorizarem muito [...], terem esses valores como algo muito valioso para eles, “só serve se for natural, se não for assim, nós iremos pra uma adoção, não queremos nenhuma participação artificial”. Eu acho que aí entram valores religiosos, entram valores, não vou chamar de morais, por que não há nada de imoral, mas acho que mais valores religiosos, e talvez valores filosóficos, de pessoas já que têm uma libertação de uma maneira que pra elas nada que tenha agrotóxico, que tenha qualquer substância artificial serve, práticas de lazer que estão mais voltadas pra natureza e não gostam de nada mecânico, não iriam nunca num parque de diversões, numa montanha russa, porque gostam de estar em contato com a natureza. Então, aspectos religiosos e filosóficos, mas isso é minoria, a maioria não questiona (entrevista 11, Santos, médico).

Construir a natureza fértil e conceber as “intervenções” como naturais, como forma de ajuda por parte dos médicos, revela a necessidade de ancorar esses elementos noutros que os legitimem. Eles envolvem a confiança, o afeto, a técnica e o que se pensa sobre o médico, a qualidade do material, a pressão social e familiar e as questões relativas à sexualidade. Todos esses elementos estão carregados de possibilidades e ambiguidades passíveis de interferir na demanda por reprodução assistida, bem como no processo do tratamento convencionado.

a) A confiança – conforme tratada por Giddens (1991,1996), aparece como

um

elemento fundamental, indicando que

um

tratamento proposto por meio dessas tecnologias deverá ser capaz de unir o esforço técnico e a dimensão afetiva em situação de ignorância. A confiança na conduta da medicina e na capacidade das tecnologias como condição para o tratamento está também na fala dos casais. Esse elemento revela traços de funcionalidade para a

303

manutenção da relação de interdependência entre os envolvidos: médicos e casais. Ele é capaz de se contrapor ao chamado “desespero” da mulher (FRANKLIN, 1990), permitindo administrar aquilo que é apresentado como surpreendente ou imponderável pela medicina, quando as expectativas de sucesso criadas a partir da observação do material colhido são frustradas ou quando o embrião não nida. Ainda diante dos impasses e da ignorância sobre o melhor caminho a ser assumido no necessidade de clareza

“tratamento”, ou diante da

na atitude, é a confiança que permite a

continuidade do relacionamento. Esse dilema é revelado na fala abaixo, em que a escolha do procedimento tecnológico e um possível “erro” de avaliação poderiam comprometer o sucesso. Chegou lá, tirou, ele ficou entusiasmadíssimo com os óvulos, porque ele disse que estava de aparência muito boa e o [nome], ele parou de fumar, ele fez algumas coisas assim que ele achou que ele pudesse fazer, pra poder melhorar, e o sêmen dele estava 100 milhões, eu sei que estava assim muito bom. Daí ele assim, o doutor, vamos fazer ICSI porque o sêmen está muito bom e os óvulos estão de aparência boa. Cheguei lá, ele tirou tudo, ficou todo entusiasmado, disse que não ia nem fazer ICSI, porque achava que ia fertilizar normal, porque eram de boa qualidade... Depois disse: tem uma capa dura no teu óvulo que não fertiliza, a aparência era boa, mas dentro no citoplasma era escuro, vamos tentar amanhã, fiz uma ICSI hoje, mas essa ICSI já tinha passado 24 horas, ele mesmo reconheceu que isso seria mais problemático de fazer, porque a ICSI tem que fazer no primeiro dia. Não, conseguiu. E daí ele pegou e disse pra mim que não dava de fazer, no outro dia ele me ligou dizendo que não tinha fertilizado, daí assim, eu na verdade sou uma pessoa extremamente otimista, eu não sou [...], tem mulher que se mata, que chora, que... (entrevista 23, Tereza, casada com Kauli).

Aponta-se para a necessidade de construir um entendimento compreensivo que atenda à ampliação de outros

fatores,

como

304

aqueles associados à abertura para o risco da parte dos médicos e casais e a instrumentalização das dimensões subjetivas e simbólicas que influenciam no modo pouco esclarecido como procedem em sua decisão. Esse impulso que move subjetividades na projeção de um sentido para a vida, por meio da busca pelo filho via tecnologia, faz com que os casais convivam ao mesmo tempo com a alegria de ver seu problema solucionado, e com as dimensões da morte no amplo sentido, advindas da mesma prática. Segundo Giddens (1996), a modernidade institucionaliza o princípio da dúvida radical, e nela todo conhecimento toma a forma de hipótese. Essas hipóteses podem condição de verdade, ainda

ou não ascender à

que, em princípio, sempre estejam

abertas às revisões, e determinados pontos de análise possam ser abandonados.

Elas

formam

parte

dos

sistemas espertos

acumulados e representam, ao mesmo tempo, múltiplas fontes de autoridade, com frequência internamente debatidas e divergentes em suas explicações. Nesse contexto, a confiança é elemento crucial tanto para o desenvolvimento da personalidade como para a potenciação desses aspectos distintivos e específicos em um mundo de mecanismos desmembradores de sistemas abstratos. Em sua manifestação consecução de

genérica, a confiança está um

certo

diretamente referida à

sentido primário de

seguridade

ontológica. Em seus aspectos mais específicos, ela é um meio de interação com os sistemas abstratos que vacinam a vida cotidiana de seu conteúdo tradicional e estabelecem a possibilidade das influências globais.

305

Esses

aspectos

parecem explicar

a forma

como

médicos e casais trabalham suas dúvidas e assumem os riscos de suas escolhas. A confiança nessa forma de tratar a “infertilidade” viabiliza também a constituição dos aspectos técnico-laboratoriais e a partilha de

recursos humanos entre as clínicas. O elo de

confiança, nesse caso, dá-se sob o velcro do nome do médico ou do biólogo que lhe presta assessoria. Isso, por um lado, permite a montagem de um serviço de reprodução assistida que é localmente desejado. Por outro

lado, abre novas frentes

às clínicas

consolidadas, ao mesmo tempo em que oferece um serviço próximo e menos dispendioso do ponto de vista do acesso e da locomoção. Mas deixa sempre no ar uma pergunta, sobre quanto de fato ele trabalha com elementos controlados e confiáveis. Quanto mais o casal confia no médico, maior é o sentimento de que seu problema será resolvido, ainda que nem sempre seja assim (GIDDENS, 1991). Nesse contexto, falar em confiança é um compromisso que deve

ser entendido, conforme definido por Giddens, como um

fenômeno referencial interno: um conjunto de relações tanto com a

pessoa

implicada quanto com as demais. A exigência de

intimidade é entendida como

resultado dos mecanismos de

confiança e forma parte da relação pura. Não se trata de uma reação negativa a um universo despersonalizado, mas da absorção de relações puras, mediadas por sistemas sociais. A vida pessoal e a vida social, os processos e a reapropriação se entrelaçam com expropriações e perdas. Faz parte do processo de reflexividade sobre si mesmo, mesmo se lhe falta, muitas vezes, a informação

306

necessária à reflexividade. A reflexividade afeta o corpo porque ele funciona cada vez mais dentro dos sistemas de referência da modernidade. As tecnologias, nesse sentido, são parte

de processos

mais gerais da transmutação da natureza em um âmbito de ação humana. Ao mesmo tempo, há um

sequestro da experiência,

impossibilitando muitas vezes aos indivíduos tomar contato com o sucesso.

Falar

de confiança é falar

de persistência, sendo

necessário o engajamento dos sujeitos para chegar ao fim, ou seja, a ter um filho em casa.

b) O afeto – o elemento afetivo na relação com as NTRc é fundamental para tratamento.

possibilitar a

Ora

ele

permanência do

é apresentado como

casal

no

compensador da

consciência sobre a falha técnica, ora como “curativo” dos traumas anteriores ao processo da FIV/ICSI, visto que esses procedimentos são sempre o último recurso disponível para

os casais que se

submeteram a muitas outras formas anteriores de tratamento. O coito programado, a medição de temperatura, a estimulação ovariana, até mesmo a inseminação artificial já lhes cansaço

e até

acrescentaram muito

mesmo desesperanças. Menos

invasivos, esses

processos eram experimentados como “mais naturais”, embora não tenham dado resultado positivo e o saldo em tempo investido tenha sido bastante desalentador. Agora

para

eles a FIV

mas também perguntas sobre

traz

ares de possibilidades,

se não seria

um

procedimento

307

excessivo, pois, para a ciência, no âmbito da FIV a ICSI ainda está envolvida no mistério. A FIV/ ICSI, além de ser o último recurso na saga de um casal em busca de um filho, é o mais caro e o mais invasivo, somado ao fato de que é preciso contar com todos os aspectos ligados ao stress do caminho, aos efeitos da medicação e às expectativas que

necessitam ser alimentadas, mesmo

se

conhecidas as falhas. É por isso que, segundo a fala abaixo, o afeto, o apoio e a sensibilidade são fundamentais quando se trata de algo tão importante para o casal, e ele precisa angariar energias para começar e para dar continuidade ao tratamento. Quando se fala da reprodução a partir da parte técnica do laboratório, tudo é técnica ao extremo. Mas isso envolve alguma coisa que para esse casal é tão fundamental que a gente tem que se dar conta e ter sensibilidade em relação a isso. Esse casal precisa da gente, ele precisa de apoio, ele precisa de afeto. Ele precisa que a gente transmita confiança. E eu acho que a gente tem que desempenhar bem este papel, por mais que se tenha psicólogo na equipe. Eu acho que eles precisam deste reforço, eu acho que o primeiro papel é assistencial, desde o diagnóstico até uma condução adequada do caso. Com esse tipo de acompanhamento do paciente, até de carregar no colo se for o caso, isso não é protecionismo. Eu não acho que seja protecionismo. Eu acho que o casal precisa disso. Normalmente são casais que vêm de 5, 10 ou 15 anos de frustração crônica. E então eles precisam deste apoio e deste estímulo. Mas de um estímulo apoiado, se bem que com os pés bem dentro da realidade. E conhecendo que é um procedimento ainda falho. Que a média de sucesso é até 40%. É um procedimento bem falho (entrevista 5, Rosita, médica).

Acredita-se que a insistência no apoio

afetivo

e

emocional se dê mais pela consciência do limite dessa tecnologia a partir de suas taxas de insucesso. Também porque fazer um filho é um sentimento que interage com a imaginação e os fantasmas do

308

médico, homem, porque as médicas não foram associadas

em

algum momento com a maternidade, mas não é incomum que médicos se considerem pai. Tome-se em conta ainda a consciência sobre

os “erros

médicos”, relatada por vários

casais, e que

poderia levantar suspeitas, gerar interrupções do processo e, às vezes até mesmo o desconhecimento e a falta de acesso a um aparato técnico científico potencializador dos resultados 53.

Esses

limites impõem a necessidade de manter o casal sob controle para que

o médico

possa

agir;

controle que

só ocorre

se

circunstanciado pela experiência de confiança absoluta entre as partes.

c) A técnica – é outro

elemento fundamental, porque a

reprodução assistida, entendida aqui a partir da IA, FIV e ICSI, demanda da parte médica outra entrada na vida do casal – fazer um filho a três ou a quatro. A medicina irá decidir quanto medicamento em geral a mulher (embora neste estudo haja relatos de uso de medicação por parte dos homens) irá tomar até o dia da ovulação (do amadurecimento folicular), o que lhe permitirá coletar o material genético para fazer o embrião. Quando se trata de inseminação artificial, já se sabe

que

o que

é manipulado é somente o

espermatozoide, que, uma vez coletado por meio de um ato masturbatório, é entregue ao biólogo a fim de ser preparado para a inseminação que, de todo modo, ainda se dá no útero feminino. No caso da FIV, a manipulação médica 53

Aspectos que discuti em Tamanini (2006d).

atinge

graus de maior

309

sofisticação. Ambos os materiais genéticos são coletados: óvulos e espermas. Ambos, deverão

uma

vez preparados e colocados

oferecer sinais

de probabilidades

in vitro,

embrionárias,

amadurecendo sucessivamente o processo de junção, divisão e crescimento celular. Nesse caso, conserva-se a autonomia do ato de “escolha” que irá se desenvolver do contato entre

óvulo e

espermatozoide no interior do próprio processo.

de outro

Dito

modo, são eles que se escolhem. É o contato entre essas células e essa química a partir do seu próprio potencial reprodutivo que irá determinar as possibilidades da “confecção de um embrião”. É claro

que,

associados

mesmo

nesse

caso,

poderão interferir fatores

ao ambiente, aos produtos químicos utilizados no

tratamento do material54, à mão do manipulador, à qualidade dos folículos, bem como à qualidade dos espermatozoides. Considerando-se a ICSI, o caráter “manipulador” do médico ou do biólogo atinge domínios determinados quase que unicamente por critérios de escolha racional, na medida em que os óvulos e os espermatozoides são manipulados e separados um a um para serem fecundados, igualmente um a um (LABORIE, 2000).

54

Segundo parecer do CFM, relatado por Pedro Pablo Magalhães Chacel, em Brasília, em 2000, correspondente ao processo n. 169/00 – CFM (03/01), o presidente da Comissão Nacional de avaliação dos Centros de Reprodução Assistida propunha os seguintes itens a serem tomados em conta quando da avaliação das clínicas (28) que participavam da Rede Latinoamericana de Reproducción Asistida: registro pormenorizado de gestações, existência e registro de consentimento informado, avaliação dos profissionais, clínicos e de laboratórios, protocolos de limpeza e assepsia; controle de contaminação ambiental; equipamentos, controle de qualidade dos equipamentos, dos meios de cultura, do espaço físico para o trabalho e da capacitação contínua dos profissionais de laboratório; tamanho do centro; eficácia do centro e avaliação geral da veracidade das informações reportadas.

310

Além do aspecto puramente técnico, o proceder médico interfere na intimidade do casal. Ele está presente, como regra, por palavra e orientação, pois ele necessita confiar que a mulher fará o caminho dos procedimentos propostos para que ele possa agir. Ele é um condutor da relação e, na FIV/ ICSI, ele assume “fazer” o filho. Para a ciência, a medicina materializa o concepto a partir do material que lhe é fornecido pelo casal. Na medida em que assume a indução da ovulação, ela assume o controle do ciclo reprodutivo da mulher. Mede e observa, através de ecografias e controles hormonais, o resultado de sua ação e interfere com hormônios e tecnologia para produzir folículos ovulatórios. Se forem produzidos e colhidos óvulos, parte do seu esforço é recompensado. Nesse momento, o médico ou outro técnico sob o seu olhar assume o processo: criam-se as condições de desenvolvimento dos embriões em placas de vidro, no caso da FIV, espera-se para ver o resultado da mistura desse material ou se escolhe, dentre os espermatozoides e óvulos, quais serão adequados para fazer os embriões, no caso da ICSI. Em ambos os processos ele atende a suas expectativas de sucesso e às do casal e exige de si mesmo preparo para viver as frustrações. Dentro da área obstétrica, área gineco-obstétrica é aquela área que a gente lida com embriões, com produto da concepção, tentativa de produzir um concepto, é a área que o médico mais age, porque ele tem que [...], ele é a parte neutra da história de uma coisa que é extremamente [...], de um processo [...], ele é a parte neutra. Então, assim como existe um polo negativo positivo nas relações, tem que existir a parte neutra, e eu acho que é por aí que entra o médico, além do que, com toda a bagagem, toda a experiência dos procedimentos, e a experiência de vida das frustrações, saber lidar com frustrações pra tentar equilibrar

311

o casal, pra manter o risco com expectativa suficiente pra acreditar que possa dar certo, mas não impondo expectativa que possa tirar os pés do chão. Porque caso não dê certo, e a maior parte das vezes não dá certo, estatisticamente, mundialmente falando, a queda pode ser muito grande, então, a gente [...], a queda naquela expectativa, então, a gente procura manter naquele ponto que seja o ponto ideal (entrevista 4, Antony, médico).

Do ponto de vista dos aspectos técnicos, o médico induz o ciclo, faz o acompanhamento clínico através de ecografias, de punções, de coleta de óvulos. O desenvolvimento no laboratório lhe permite avaliar os resultados, e a persistência é o elemento-chave para a gravidez. A medicina parte do pressuposto de que haverá gravidez, a depender da persistência da mulher. O valor econômico, material e emocional das muitas vezes que ela irá fazer o procedimento não conta, uma vez tomada a decisão de fazer. O insucesso, nesse caso, só acontece quando há desistência. Sendo assim, essa tecnologia é vista pela medicina como perfeitamente eficaz ao longo do tempo. Na concepção médica, esquece-se que a maioria dos insucessos ocorre devido ao limite técnico, e que esses envolvem múltiplos fatores, também de ordem emocional, afetiva e social.

Além disso, ao desenvolverem-se esses processos,

no

contexto dos holofotes, e hoje nos sistemas públicos, aguçam-se as lutas no e pelo campo, imbricam-se necessidades de negociações institucionais, clínicas, laboratoriais, e pela hegemonia local. Ao mesmo tempo em que sua divulgação poderia estar articulando recursos econômicos necessários à continuidade do trabalho e do serviço,

ainda

que com grandes dificuldades de torná-lo

312

sempre ético, como é o caso dos serviços que têm uma quantidade incomensurável de casais inscritos, hoje, mas quase não têm infraestrutura, clínica laboratorial, para poder dar suporte a essas esperanças.

d) A qualidade do material – em relação a esse ponto, o que se observou a partir dos entrevistados, ao contrário do desejo de um menor número de folículos, foi a preocupação em obter um número elevado deles, além das expressões “de boa ou má qualidade”, utilizadas frequentemente tanto para falar dos gametas como para falar sobre os embriões. Também há indicadores de outras formas de classificação, mas o número maior de folículos é desejado em todos os relatos. Na fala abaixo o impasse se colocou quanto à coleta dos óvulos. Cheguei lá, olhei o cara estava pra morrer, ele disse que nunca tinha acontecido aquilo com ninguém, o que acontecia? Ele ia tirar o meu óvulo e o meu ovário subia, aí ele conseguiu tirar um, daí ele disse assim “eu não quero nem te enganar, eu acho que é o pequeno lá, que não estava nem maduro, que eu tinha seis, mas eram dois pequenos e quatro bons. Os quatro bons ele não tirou nenhum e ainda estourou, sei que foi [...], eu fiquei bem chateada. Aí ele disse que eu tinha que dar um tempo, daí eu dei um tempo...achou que não era legal, aí deixei, aí eu fui em maio desse ano (entrevista 23, Tereza casada com Kauli).

Outras vezes as dificuldades são apresentadas quanto aos embriões: É que na realidade a gente trabalha sempre com uma chance hipotética. Eu só posso dar uma porcentagem mais fidedigna após ter feito o procedimento e acompanhado a evolução dos embriões na estufa. Veja bem, eu tenho uma paciente jovem que eu acredito que irá responder bem. Mesmo assim eu faço

313

a punção. Eu posso ter sucesso e posso ter insucesso. Mas ao acompanhar a evolução, eu vejo que há um embrião de má qualidade. Ou seja, dividiu precocemente. Os blastômeros não têm o mesmo tamanho. Têm muitos fragmentos. Então isto me traduz o quê? Isto me traduz provavelmente um insucesso. Mas eu não devo desistir, porque na próxima tentativa ela pode liberar ovócito de melhor qualidade (entrevista 2, Prado, médico).

Além disso, há referência ao trabalho sobre uma chance hipotética como parte do próprio processo. Portanto, dizer que essa tecnologia é baseada no método das ciências naturais e dizer que ela é experimental não é uma postura ideológica negativa. É uma constatação. De fato, trata-se de uma tecnologia que trabalha sobre uma chance hipotética. Como não há padrões gerais a priori que possam garantir o sucesso nas diferentes fases do procedimento, e como em cada mulher podem acontecer respostas diferentes, desde ausência de ovulação,

baixa

hiperestimulação levando a

ovulação,

problemas de

um

risco

de

saúde,

graves,

até

aqueles problemas em que a qualidade macroscópica dos embriões pode se apresentar deficiente, há que se manter a expectativa em alta sobre a chance hipotética, o que necessita obrigatoriamente do engajamento das mulheres. A medicina trabalha com a insegurança, embora persiga o sucesso. Como ela não domina todas as variáveis, ela “joga” com as possibilidades técnicas e joga com muito desconhecimento. Por que a gente vai muito pela morfologia do embrião, só que hoje já está saindo pesquisas, trabalhos, não é só a forma de embrião, o número de célula, mas a parte interna, a bioquímica dessa célula que a gente não consegue detectar como que está, se está perfeito, se não está. Então, isso é uma. [Entrevistadora – É uma incógnita?]

314

É uma incógnita, não. A gente sabe que existe, mas como que a gente vai trabalhar isso dentro de um laboratório, dentro daquele embrião. Então, toda a bioquímica, o funcionamento dessa célula, desse embrião, e outra, a gente coloca esse embrião dentro do útero, mas dali pra frente a gente não tem como avaliar, a gente colocou ali (entrevista 15, Marina, bióloga).

Esse desconhecimento faz com

que

as decisões

sejam

tomadas na confiança de que darão certo, contando com o acaso. A dúvida é dirimida pela

atenção

às

respostas

dadas

em

comparações com as experiências anteriores. Há situações em que tudo traduz uma possibilidade de sucesso, e ocorre o contrário, ou vice-versa, é esperado o insucesso e ocorre o sucesso. Mas todas as clínicas têm aqueles casos onde os embriões que parecem ser feios acabam gerando bebês e bebês saudáveis. Porque a gente analisa o potencial macroscópico e não genético. Hoje o que se faz muitas vezes é levar para o estágio de blastócito. Então eles começam a demonstrar o potencial genético de cada um. Quando se trabalha com blastócitos, se trabalha com uma média de 45%, 50% de implantação, daí tu já reduz, tu coloca no máximo três. A tendência, é lógico, quando tu conseguires selecionar tipo assim, este é o embrião, contém realmente um potencial maior de [...] vai ser reduzido o número (entrevista 2, Prado, médico).

Nesse jogo de incertezas e diante do objetivo nobre da busca, mesmo

se sabendo que essas técnicas são hipotéticas e

experimentais, as representações as positivam, e aceita-se fazê-las, na medida em que em geral se afirma serem suas possibilidades superiores às que são dadas pela natureza, pois as chances de sucesso passam de 15% para 35% em cada ciclo, segundo as falas dos médicos e dos sites consultados. No caso da ICSI, isso é um acréscimo significativo nas possibilidades de um casal vir a ter um filho, mas, por outro lado, é um fator estimulador e gerador

315

de demanda. O fato de saber que existe tal tecnologia estimula e alimenta o desejo de ter um filho, não abrindo outras possibilidades à reprodução que não a do laboratório. E essas conexões entre a tecnologia, os valores, as demandas intersubjetivas, reconectam processos tecnológicos com o desejo de homens e mulheres em sua reflexividade e disposição colaborativa. Isso, não elimina situações de risco, como a que acompanhei posteriormente a este trabalho, em relação ao que aconteceu com crianças. Ela com 26 anos, ele com 28, já faziam tratamento para engravidar há algum tempo, quando resolveram fazer reprodução assistida via fertilização in vitro. Na verdade, quando estavam decidindo, eles me procuraram para conversar. Situação que é sempre delicada, o que me impede aqui

de entrar em maiores detalhes. Mas, o fato é que

decidiram, fazer fertilização, mesmo

com todas as orientações

sobre outras possibilidades e conselhos de casais que já haviam realizado ICSI. Soube, posteriormente, que estavam três

bebês.

Três

grávidos de

meninas, contrariando as expectativas da

família, que queria meninos. A gravidez foi levada até o sexto mês sem grandes problemas, mas a partir daí a médica recomendou que a mãe fizesse repouso absoluto porque apresentava contrações e dilatação. Diante da insistência da mãe em voltar para casa, a médica não esclareceu a necessidade de ficar no hospital, o que o casal passou a considerar um erro posteriormente. As bebês nasceram prematuras, vindo a falecer uma das crianças, uma semana após o nascimento. Todas elas foram submetidas a dias de internação e de UTI neonatal. A mãe ficou se deslocando para o hospital, que

316

ficava a 80 Km de sua casa, e o pai, em alto grau de angústia e estresse, acompanhava quando podia. A situação era limite, todas as crianças estavam com risco de vida. A mãe e o pai, e a cidade inteira, estavam

na torcida sobre o resultado desse parto,

embora, seja segredo de todos, a forma como foram concebidos. Conversei com

o casal algumas

vezes, e a maior

preocupação da mãe era: “será que meus filhos terão problemas no futuro com isso tudo?” Em um dia de angústia, durante uma conversa, o pai disse: “se a gente soubesse que isso iria acontecer não teria transferido tudo, mas a gente queria um filho. A médica não orientou”. Em relação ao fato de a mãe não ter permanecido no hospital, o casal avalia posteriormente, como o início de sucessivos erros médicos.

e) A pressão

social e familiar – as NTRc interferem

solucionando os problemas do casal, e a medicina se coloca na função de normalizadora. Essa decisão médica de cumprir com sua função normalizadora não é, no entanto, arbitrária, à vontade do casal. Médicos buscam a gravidez que se configura fora do acaso, ao mesmo tempo em que permitem aos casais tomar uma decisão sobre quanto se envolver ou não. Eles creem que essas tecnologias se constituem num quadro de escolhas e que os indivíduos que as procuram são mais conscientes, diferentes daqueles que se tornam pai e mãe sem o saber. Manter uma relação e sair grávida no natural, ou uma coisa forçada, ou uma pressão familiar, isso tudo eu acredito que fica abolido em função de que as pessoas só vão buscar na

317

fertilização se existe algum problema na tentativa de engravidar, e só vão buscar isso se realmente querem engravidar. Não é uma questão de estar sendo forçado, ou vir por acaso, ou é indesejado, ou é a família que [...] Isso desaparece, porque daí eles estão, espontaneamente, o casal vindo buscar, então muda o contexto todo, então eu acho que um novo segmento, pai e mãe, é diferente do outro quadro, porque está havendo a necessidade, eles estão indo em busca e se elimina todas as outras “pressões” que possam interferir (entrevista 12, Josué, médico).

Além do mais, essas tecnologias vêm para resolver os problemas de desgaste e pressão social sobre o casal, causados pelos

longos

anos sem filhos

e pelos inúmeros tratamentos

infrutíferos. Permitem, desse modo, que ele resgate seu lugar socioparental e supere

o caráter depressivo que

o acompanha

causado pela ausência de filhos. A gente percebe, quando aprofunda um pouco mais, que esses casais, na sua maioria, têm um relacionamento já muito tenso. Eu sempre começo com minha entrevista perguntando como é que eles se sentem sabendo ou... sei lá, que eles já poderiam ter uma criança correndo dentro de casa, como é que eles veem isso. Se eles têm claro porque eles não engravidaram ainda. E como é que eles se sentem nesse período. E aí as coisas vêm. Por outro lado, eles estão muito unidos nessa busca, mesmo quando acaba desgastando o relacionamento. São casais que sempre exibem em relação a isso um perfil um pouco depressivo. Porque eles acabam se sentindo deslocados, socialmente falando. Porque a maioria dos amigos já tem filhos. Então não é incomum você ouvir assim, a gente já nem sabe mais onde vai jantar. Porque normalmente a conversa gira em torno de filhos e a gente fica por fora. A gente fica de fora, os que não têm filhos ainda, a gente não tem experiência para trocar. E outra coisa que a gente vê muito é pressão familiar e social, que pode até nem ser colocada como pressão. Mas aí vem aquela história: “quando é que vocês vão ter filhos?” Ou então a família cobra mais. Imagina os que já estão esperando há cinco anos, quanto tempo ainda eles irão esperar (entrevista 5, Rosita, médica).

As expectativas familiares também pesam sobre o casal.

318

Existe uma torcida muito grande, uma expectativa muito grande da família. Minha mãe tem cinquenta promessas, a (nome) tem mais duzentas, eu disse pra ela: “faz as promessas e me deixa fora” porque, geralmente [...], eu, quando faço promessa, é pra eu cumprir, eles estão fazendo o que vão ter que cumprir, então eu disse ‘me deixa fora’, mas tem muita promessa aí, meu Deus, só de placa de graça alcançada a hora que vier esse filho, eu vou ter que mandar fazer umas quarenta mais ou menos, um caminhão de granito (entrevista 24, Kauli, marido da Tereza).

Em algumas situações há necessidade de driblar a pressão dos amigos ou colegas de trabalho com respostas que, em outras, situações, seriam classificadas como grosseiras, o que demanda um investimento significativo de energia e de adequação às diferentes situações sociais. Eu ouvi de várias pessoas comentários desagradáveis, um dos piores que ouvi, já quando eu fiz a videolaparoscopia, uma pessoa que não tem nada a ver comigo, que trabalha no Colégio, que estava grávida, eu cheguei perto dela e perguntei, por que eu sempre amei barriga, eu acho divino, “como é que tu estás?” Ela era da limpeza, estava carregando aqueles baldes, aquela coisa, ‘cuida um pouquinho, deixa que a outra carrega.’ Ela disse, “eu não vou falar de gravidez contigo, por que eu sei que tu não pode ter filhos”. Eu disse pra ela, “tu estás me dando um diagnóstico que médico nenhum até hoje me deu, muito pelo contrário. Até que me provem o contrário, eu posso, sim, ter filhos”. Então, a sociedade é muito cruel, as pessoas são. Poucas são as pessoas que chegam perto de ti e te incentivam, ou te dizem alguma coisa que pelo menos não te magoe (entrevista 37/38, Sonia, casada com Mario).

No

relato

masculino, as

perguntas sobre

a

sua

infertilidade ou as piadas acontecem em momentos de lazer, em bares ou festas; já as perguntas dirigidas às mulheres acontecem prioritariamente em situações familiares cotidianas, nos locais de trabalho ou quando elas estão junto com o marido. As mulheres dizem que as pessoas parecem querer checar o seu companheiro e

319

obrigá-las a assumir publicamente que há um problema. Porém em relação a elas não foram relatadas piadas. Normalmente, quando é que te cobram sobre os filhos, não é quando tu passas no mercado. Apesar que tem muita gente... sexta-feira agora teve uma amiga, que não é tão minha amiga assim, e que me perguntou quando é que vou ter filhos. Ela me disse, sim e quando é que tu vais te decidir a ter filhos? Normalmente é quando tu estás junto com teu marido que te fazem a pergunta. Ele está ali escutando, é o momento. Então é ele quem se sente na obrigação. Como se dissessem para ele: “olha vê se tu te ligas”. Quando fazem a pergunta fazem sempre para ti, mas ele está ali do lado escutando. É como se a pergunta fosse dirigida para ele. Tem o lado social do homem, se ele não for um reprodutor, ele não é considerado macho. A sociedade não é assim... a sociedade hoje está mais polida e ela não quer mais dizer que pensa desta maneira, mas ainda está lá dentro dela (entrevista 25, Simone, casada com Armory).

Compreende-se que isso se deve ao fato de que em nossa sociedade há uma indissolúvel associação entre ser mulher e ter filhos, e ela os carrega para qualquer lugar. É a mistura do que a sociedade entende como a essência da vida feminina com o que corresponde à sua atividade. Ser mulher e ser mãe é a mesma coisa, o que permite que se fale da maternidade em qualquer lugar. Enquanto para o homem, o trabalho continua sendo marcado pelo público, que não se mistura com situações familiares consideradas privadas. Pelo menos perguntas de cunho pessoal não foram relatadas por eles em situações de trabalho. O silêncio familiar ou de colegas de trabalho é também sentido como forma de pressão no relato da mulher. Só que eles cobravam antes da gente fazer o tratamento, quando a gente estava fazendo eles tinham medo de perguntar. As pessoas tinham medo. Eles deixavam a gente falar, eles não cobravam mais quando eles sabiam que a

320

gente estava fazendo tratamento. As pessoas tinham medo de perguntar, porque podia não dar certo. Ninguém perguntava. Mas esse silêncio... Quando eu via que ninguém perguntava, daí eu falava em que ponto que estava, porque todo mundo ficava torcendo. As pessoas chegavam perto de mim diziam e daí e como é que vai, mas paravam aí não perguntavam mais nada. Aí eu falava que estava acontecendo e explicava para os meus sobrinhos quando me perguntavam (entrevista 31/32, Salete, casada com Luiz).

Esses casais que buscam essas práticas já entram em um campo poluído por coerções e subjetivações e, na maioria das vezes, não evocam a clareza e a liberdade. As escolhas são engendradas no contexto da criação de necessidades tão totalizadoras que acabam por justificar as urgências social e médica em direção às práticas de “cura”. Diria mesmo que, nesse ponto, passa-se da intervenção tecnológica para a dimensão de uma moral, a de ter que se fazer, já que a ausência de filhos na vida desses casais, e mais, da mulher, contitui-se num vazio social e afetivo. Tal vazio não lhes permite vínculos plenos nem com a família de origem nem com os amigos que se reúnem para celebrar o aniversário dos filhos, ou ainda, para se integrarem às datas cívicas e escolares, como o dia dos pais e o dia das mães e aquelas comemoradas na escola ou na Igreja, como disseram. Olhar de tal modo essa questão desperta um sentimento de compaixão e provoca um esforço sistemático e contínuo para dar ao casal o filho que tanto desejam, como muitos médicos expressam. Porém, para compreender o conjunto dessas relações, é preciso

afastar-se

da carga emocional e da

funcionalidade que elas representam, acionando um “faro” bastante mais apurado e evitando cair na armadilha da perda da capacidade

321

de um posicionamento crítico, a qual acaba por desconsiderar o modo como as fronteiras do corpo e da filiação são reescritas em práticas e discursos engendradores de poderes e de modelos normativos (BUTLER, 2003). A informação suficiente e compreensível, por desempenha papel importante nesse quadro, sendo

exemplo, uma das

condições do consentimento informado e de se fazerem escolhas que envolvam riscos. Porém, ou ela ocorre, quase sempre, sem a possibilidade mínima de que o casal possa absorvê-la, em um contexto marcado pelo exíguo

tempo

explicativo do médico e

pela emergência de atingir uma dada performance, ou é ofertada sob o caráter de que há um cliente que compra um produto de foro privado.

f) A sexualidade – deste ponto de vista, essa tecnologia pode diluir o desgaste com o “sexo cronometrado”, se tomados em conta os tratamentos anteriores ligados à reprodução. É absolutamente comum você ouvir que a relação sexual passa a ser meio de procriação. O sexo e o prazer na maioria deles já descolou completamente. Eles focam a relação no período fértil, ponto final. Então o companheirismo, a cumplicidade, a amizade, o dia a dia, às vezes está meio conflituado (entrevista 5, Rosita, médica).

Fala-se claramente aqui de um sexo que não apenas funciona como uma norma, mas é parte de uma prática regulatória e se manifesta como poder de produzir e fazer corpos (FOUCAULT, 1993, 1995, 1990).

322

São duas coisas diferentes, eu falo que existe o sexo reprodutivo e o sexo do prazer. E eu acho que isso começa às vezes a interferir na vida do casal. Eu acho mais um avanço ainda e mais um ponto positivo da reprodução assistida, é justamente nesse ponto, porque a partir do momento que o casal, ele tenta, tenta, então ele vem “hoje eu estou num dia fértil, então tem que ser hoje”, vai hoje, é uma coisa programada, estipulada, tem horário. Então, eu acho que aí sim deixa ser o sexo por prazer e entra o sexo reprodutivo e aí passa ser mais do que uma obrigação, do que o prazer. E quando a coisa acontece naturalmente, quando o casal não tem problemas, a coisa flui, então esquece-se do sexo reprodutivo, daquela obrigação tem que ser hoje, é o sexo da vontade, é o sexo do prazer, é o conhecido como erótico. Agora, a partir do momento que o casal está tentando, tentando, tentando e começa a não existir um resultado, esse resultado começa a ficar longe, então começa a existir aí o sexo reprodutivo e aí começa a interferir na vida do casal. Porque aí tem que fazer, tem que ser naquela hora, porque é o período dela, no dia dela e aí já vem o estresse e aí termina a relação “será que deu certo? Será que eu vou engravidar? Será que não sei o que.” Então, eu acho que quando o casal parte pela reprodução assistida ele foge um pouco dessa [...] (entrevista 15, Marina, bióloga).

Na fala dos casais, e particularmente na fala dos homens, a sexualidade é um dos aspectos que fica absurdamente cindido. Como um conjunto de experiências, ela se reduz, pelo menos durante a fase do tratamento para engravidar anterior à inseminação artificial, à fertilização in vitro e à injeção intracitoplasmática de espermatozoide, ao sexo para fazer filho. E sexo para fazer filho adquire a cara do cronômetro. Essa fase do tratamento, a que chamamos de

sexo

cronometrado, é “brochante”, segundo os

homens do casal, e sempre é relatada como uma péssima experiência. Para os homens entrevistados fazer inseminação ou FIV/ICSI é ruim, mas sexo para engravidar é “perder a tesão”; “pensar em procriação deixa

a cabeça zonza”; “é coisa forçada”; “abate

o

323

psicológico”; “desgasta a relação”. De alguma forma, é associado ao colher material sob pressão. O sexual atrapalha bastante. A relação é o seguinte: sabe, o que é que prejudica quando ela está fazendo tratamento para engravidar. O tratamento para inseminação é uma coisa, mas o tratamento para engravidar o que prejudica é que quando tu vais para a relação tu não vais definido para fazer amor tu vais para engravidar. Tu vais pensando em procriação. Isso aí acontecia na minha cabeça. Chegou uma época que eu ia e ela ia, os dois. Eu sabia que ela estava fértil. A gente falava, ela dizia estou fértil hoje. A gente tentava, mas era uma coisa muito forçada. Era uma dificuldade, o psicológico abate. Um dia que a (nome) me ligou dizendo (nome) tu tens que vir aqui, porque estávamos assim, a doutora disse: olha, vocês fiquem uma semana sem ter relações. Aí ela ligou para mim e disse: tu tens que vir aqui porque estão precisando do teu esperma. Ela ligou da clínica para mim, eu estava com a minha roupa de serviço. Eu estava com minha roupa de trabalho, peguei o carro e fui para lá. Pô, não tinha jeito, meu Deus do céu. Eu já transpiro normalmente, eu transpirava o dobro. Tanto é que quando meu esperma saiu eu disse assim: “meu Deus, que pouquinho”. Eu disse (nome) saiu tão pouquinho. Eu deixei lá e fui embora para o trabalho, e a (nome) ficou lá para fazer a inseminação (entrevista 8, Geraldo, casado com Janete).

O fator que é relatado como mais estressante para o homem é o de que ele se concebe como aquele que precisa ter prazer para ejacular,

mas essa performance fica comprometida pela falta de

tesão, pelos apelos da esposa em horários considerados inoportunos, porque, segundo eles, é muito ruim ter “uma obrigação de comparecer” para fazer sexo. Nós tentamos fazer uma vez, mas como toda a relação, tem que ter prazer, principalmente para o homem; para a mulher, não, mas para o homem é obrigado a ter prazer [...] E a gente já teve que fazer tipo ao meio-dia e é claro que não é a mesma coisa. Mas você tem prazer igual, no fim é bom igual. Não muda muita coisa. Sim, para o homem é prazeroso. É claro que não é igual às outras vezes. Mas sempre tu tens prazer, porque se tu ejaculas tu tens prazer.

324

Depois que tu ejaculas tu tens prazer, não adianta. Eu não tive esse problema com horário programado, eu sempre tive prazer. É difícil fazer uma relação só com aquele intuito, porque não dá, tu vais ter prazer de todo modo. Só para o prazer não é igual como tu fazes de outras vezes, agora tu tens que fazer programado. Mas isso para mim não incomodou em nada. Tem coisas na vida bem mais difíceis do que ter que estar fazendo uma relação programada. Para mim não vejo problema nenhum, isto é até uma solução. Eu faria até mil vezes, e deixaria de fazer um monte de outras coisas (entrevista 28, José, casado com Séfora).

O sexo e o erotismo são submetidos ao imperativo da reprodução da espécie.

Portanto, sem

sexo e sem

sexualidade se desvincula completamente da

erotismo a

reprodução. A

reprodução passa a ser uma construção físico-química a partir de um corpo produzido para fabricar células (óvulos) que, em união com outras (espermatozoides), resultarão na materialização de um embrião que será transferido para o corpo da mãe e nele desenvolvido. O corpo da mãe é “performado” não só pelas normas regulatórias da atividade sexual, como governa

efeitos

materiais

da

mas

também pela

medicação

norma cultural tecnológica que

a materialização dos corpos (BUTLER, 1999). Desse

modo, no caso das mulheres, as dificuldades com a busca do sexo e do prazer persistem também no tratamento com a ICSI e FIV. No começo eu tomei cloromide ou serofene, que contêm a mesma química. Então às vezes dava um estímulo e estimulava os ovários que eu não conseguia nem caminhar de tanta dor. Daí naquele dia eu tinha que ficar deitada e era fraquinho... E para fazer a inseminação injetável é o dobro, o triplo da medicação. É muito, eu tomei 30 injeções na barriga, todo o dia, todo dia, no braço e no bumbum, eu não sei se foi 10 ou 15 no meu braço. Deu vários caroços e hematomas, eu tinha que fazer compressas de água quente. Colocar as bolsas e foi inchando, o corpo foi inchando, a pele mudou, o cabelo, a unha. Transforma a gente, vira outra

325

pessoa. Aí o que acontece? A gente vê o corpo da gente se transformando, estômago, porque é muita medicação, então a mente... A gente o que os olhos vêem, né, e a gente ficava assim... (entrevista 5, Jadi, casada com Beto).

Já os homens, ao tomar uma

decisão

por

FIV/ICSI,

começam a desligar-se da obrigação de manter relações sexuais exigida

anteriormente e, de certo modo, essa decisão alivia as

tensões. Em algumas situações, os entrevistados evitam o sexo porque durante essa fase o relacionamento se encontra conflitado devido

ao desgaste

com o tratamento hormonal exigido pelo

processo de tratamento. Eu evitei relações sexuais para não correr riscos. Não era um tratamento só. Era também uma escolha de sexo. Daí nós evitamos relações. No tempo em que ela fez uso de hormônios como era essa experiência? Foi horrível. Ela já é braba, mas ela ficou mais braba, foi muito difícil. Eu digo ela fica mal-humorada 15 dias antes da menstruação e 15 dias depois. Por problemas de humor. E por problemas, era tudo junto. Um dia antes de ir para São Paulo... nós íamos para São Paulo e lá brigávamos o tempo todo. Ela ficava em São Paulo sozinha, aí o médico precisava colher o material. Aí me chamavam, eu ia. Aí nós brigávamos (entrevista12, Andrei, casado com Mônica).

Em algumas falas, os casais parecem desejar fazer todo o bebê fora do corpo. Nesse caso há mesmo um endeusamento do poder da ciência, menosprezando a lentidão da natureza e exaltando a capacidade tecnológica de interferir de modo

eficaz. Eles

desejariam ter ganho tempo. Consideram que perderam tempo, energia

e dinheiro enquanto não tiveram acesso às NTRc. Ao

mesmo

tempo

os médicos consideram que

essas

tecnologias

também substituem etapas que teriam que ser vividas uma a uma na gestação “natural” – agora a mulher recebe o embrião pronto.

326

Claro que de imediato se trata de maximizar as chances de sucesso. Mas a longo

prazo

tem-se

desmembramento das fases em etapas

a possibilidade de autônomas com seus

respectivos meios, mesmo se desconsideradas as trocas interativas do conjunto. [...] mas a fertilização, a partir do momento que tu consegues em laboratório formar o embrião. Tu consegues fazer com que o embrião seja transferido pra dentro do útero, já sob forma de embrião. Isso te economiza muitos passos dentro do organismo. Na fecundação natural, que é a entrada do espermatozoide, a fecundação na trompa, ocorrer a fecundação, transferir pro útero, toda essa etapa é economizada com a fertilização. Por isso te dá uma chance maior de sucesso. Agora temos 60% de chance de não realizar, temos um longo caminho pela frente (entrevista 12, Josué, médico).

Para a medicina essas tecnologias se apresentam como fatores altamente estimuladores; há uma sensação de estar no campo do moderno,

junto com a possibilidade de estabelecer novas

rotinas que permitam conhecer e acompanhar os desenvolvimentos tecnológicos. É muito legal, é muito interessante, e a bioética que está se estabele- cendo em cima disso também é fascinante e interessante. Você hoje não tem algo tão rígido como se tinha antigamente em relação a algumas condutas. É algo bastante moderno para os médicos, muitas rotinas estão se estabelecendo agora. Em relação a quantos embriões eu vou transferir, se podemos pegar mais de três ou quatro embriões em cada ciclo. Em que tipo de paciente a gente deveria transferir menos embriões? A gente acompanha no ultrassom os resultados dessas gravidezes, isso tudo eu acho muito legal (entrevista 10, José, médico).

4.2 HOMENS EM FACE DA INCERTEZA E DA DECISÃO: SERÁ NATURAL OU ARTIFICIAL?

327

Quando se trata

da fala dos homens no contexto das

NTRc, tal focalização positiva ocorre sobre a possibilidade de participação construída durante o desenvolvimento do processo de reprodução assistida, mesmo

se um

dos

primeiros aspectos

presentes em suas falas é o do relato de como eles as ignoravam no início do tratamento e de como as associavam à artificialidade, e também sobre como questionavam a legitimidade de se fazer um filho em laboratório. Esses aspectos perdem relevância à medida que tomam contato com o saber médico. Desse modo, é comum encontrar- se nas representações dos homens a curiosidade de saber o que seria esse tratamento, ou melhor, em saber como se daria no

seu

caso. Representam frequentemente a ideia

do

inicial

estranhamento e suspeita a respeito do que consideravam antinatural, embora afirmem terem mudado de atitude ao longo do processo. Quem fez o tratamento mudou totalmente de opinião. Eu, quando ouvi falar disso ali, no começo a gente não entendia bem, as primeiras quando se começou a falar nisso, eu achava a coisa mais errada do mundo, onde que já se viu criar um filho num laboratório e ficar lá dois dias um óvulo, um esperma pra fecundar, não muda nada, está lá tão bem tratado, como se fosse um processo natural e depois eles voltam lá pra dentro do útero da [...] (entrevista 22, Nando, casado com Mônica).

Em geral quem conversa sobre essas possibilidades e se decide em primeiro lugar a utilizar desta tecnologia é a mulher, embora existam casos em que os homens dizem terem tomado a iniciativa de marcar a consulta. Na verdade, dentro do universo considerado, houve apenas um homem que diz ter procurado a tecnologia, cujo resultado foi o nascimento de trigêmeos.

328

Quando eles desconhecem essas tecnologias ou só ouviram falar em bebê de proveta

há certa resistência, por haver

o

entendimento de que estariam agindo “contra a natureza”. Essas representações estão devidamente ancoradas ou no biológico ou numa visão religiosa sobre o mundo. Se elas se intensificam no momento da decisão,

pelo tratamento, será preciso

fazer certo

esforço para se envolver nesse procedimento. Só que para mim isto era muito difícil. Porque eu via na televisão um bebê de proveta e eu me apavorava. Por que eu sentia assim: isto não vai acontecer comigo. Não vai acontecer comigo. Tanto é que no dia em que a (nome) chegou para mim e disse nós vamos partir para outra forma. Vamos partir para bebê de proveta. Isto para mim soava como um desastre. O que me passou é que eu estava indo contra a natureza. Eu pensava que de repente não era isto o que nós devíamos fazer. Eu pensava que nós podíamos tentar de outra forma. Aquilo me deixava muito triste, pô. Partir para bebê de proveta era como se daí ele não quisesse vir ao mundo. A primeira resposta que eu dei para (nome) foi não, isso a gente não vai fazer. Depois eu fui pensando melhor. Então o que me levou a fazer foi somente o tempo. Foram cinco anos, com sete anos ela ficou grávida, então foi isso (entrevista 8, Geraldo, casado com Janete).

Segundo os homens, mesmo que a ciência tenha criado outras possibilidades, o biológico é a norma, como sempre foi na história das culturas. É a parte essencializada do corpo feminino que agora sofre uma ruptura na representação, porque a decisão pelo uso da tecnologia soa criar a artificialidade, expressa toda a negatividade do agir contra a natureza. O problema não parece ser a natureza, mas sim o artificial – este é que soa negativo. As tecnologias nessas representações cindem a romantização sobre o natural.

329

A fala acima reporta a um momento imponderável na vida desse homem. Por um lado, encontra-se sua consciência e o seu conhecimento sobre a tecnologia; por outro, suas crenças sobre o estranho e o artificial. Ele relata também a tristeza por ter que se decidir a ter um filho desse modo. Sentia como se o “filho não quisesse nascer”. Sua pergunta é a que paira sobre a maioria dos entrevistados homens: será possível fazer um bebê fora dos padrões convencionais e não pagar o preço dessa escolha? Para os que tomam em conta que uma possível opção no presente poderia comprometer o futuro, a decisão de fazer um filho desse modo não é apenas uma decisão do casal, ela envolve o ser que virá. Ele não fala do corpo natural, mas das relações sociais. Fala sobre a possibilidade de uma paternidade adicional, nos termos de Delaisi de Parseval (2000), realizada, nesse caso, entre ele, a esposa e o médico, sem a presença do doador, o que implica uma escolha que marcará também o futuro, com a necessidade de novas explicações. O natural e o artificial nessas falas opõem dois mundos antagônicos, que precisam fazer as pazes para “conceber um filho”. A fala dos homens revela a necessidade de construir outro entendimento sobre

o natural e o artificial. Desconstruir uma

“verdade” natural sobre um corpo tido como naturalmente fértil em sua representação é assumir que o corpo agora precisa de ajuda. Compreender as responsabiliza quem

NTRc como

“ir

as pratica (aspecto

contra a natureza” ausente na fala dos

médicos) em relação ao futuro de quem irá nascer. Essa é uma

330

decisão de risco tomada no contexto dessas representações que tendem a ser compreendidas como negativas: “bebê de proveta é um desastre”; “isto não vai acontecer comigo”; “o que passou é que eu estava indo

contra a natureza”; “juntar em laboratório era

apavorante”. Além do cunho moral, essa decisão impõe uma fatalidade: não utilizar os recursos significa permanecer sem filhos ou adotar. Decisão tão ou mais dura do que legitimar a incógnita. Sem contar que, na maioria dos casos, o limite da idade materna se impõe, e a mulher insiste em fazer esse tipo de procedimento; nesse ínterim recorre muitas vezes ao médico para esclarecer o marido: “depois tu te tranquilizas e começas a pensar e a falar com a doutora”; “me disse: ‘vai a mesma coisa é tudo certinho, parece uma receita de bolo. Os ingredientes são os mesmos’”. Em muitos casos é só a partir da compreensão dos elementos existentes em suas representações sobre o mundo natural que o homem se tranquiliza. No diálogo com o médico constrói-se uma nova realidade, ancorada nos aspectos por este já conhecidos, mas marcada por uma

linguagem capaz de desfazer

o caráter da

artificialidade (KELLER-FOX, 1999). Noutros casos, mantém-se a convicção de que estão forçando a natureza. Ele é naturalmente forçado, tanto é que mesmo que fosse físico o meu problema, porque eu tinha baixa produtividade de espermatozoide, mas o médico lá disse, “isso aí não é problema, é só dar uma boleta pra ti pra dopar o espermatozoide na hora de manter relação, e o que tu quer, um filho, dois, engravida, pronto, e até é bom”. Mas hoje eu considero que realmente é forçar a natureza; eu não faria,

331

talvez, de novo; não me arrependo, estou satisfeito, mas não faria (entrevista 10, Ray, casado com Gilda55).

Trata-se de forçar a natureza para desencadear o processo que será equilibrado como hipótese que

natural durante a gravidez.

A

parece relevante é a de que os homens necessitam

dessa insistência sobre o natural por estarem com medo de negar a convenção sobre o fundamento natural da

procriação no

corpo

da mulher, desestabilizando assim os pilares dos contínuos e das hierarquizações sociais construídas sobre a ideia de dominação da natureza, conforme Dhavernas (2002). Natural, tu sabes como é. Seguindo a natureza não se vai colocar in vitro. Misturar embriões e óvulos. A natureza está sendo auxiliada. A gravidez é natureza. Em relação a engravidar ou não. Em relação ao esperma é uma coisa, se não dá ali tu põe noutro lugar. Aí, natural não é, porque a fama já diz, né cara, tu tá induzindo, né, a vida, então, já não é natural, natural para mim, por exemplo, a formação da vida vem natural, mas quando uma coisa que venha. Uma coisa que as pessoas querem e vem natural. Mas quando a gente quer muito e não consegue essa indução, todo esse processo não é natural, mas depois que está sendo gerado em ti ele se torna meio natural, então há um equilíbrio. Eu penso mais ou menos isso (entrevista 11, Andrei, casado com Mônica).

Se não há natureza a ser dominada, não há poder. Essa construção sobre a natureza mantém todas as formas de dominação (HÉRITIER, 1996). Ainda é acordo entre os/as estudiosos/as de gênero que são os essencialismos que sustentam todas as formas de dominação (CITELI, 2001; HEILBORN, 55

1998;

LOWY,1995;

LOWY;

Este é o caso cujo tratamento foi pioneiro no Estado; ela ia de avião para São Paulo, praticamente quando o desenvolvimento dessas tecnologias eram bem incipientes também lá. Neste caso em particular, essa concepção de forçar a natureza está associada à mudança de religião, pois antes ele era católico. Ele diz que agora percebe que o que não está escrito não deve ser forçado.

332

GARDEY, 2000;

MATHIEU, 2002; RODHEN, 2000; STOLKE,

1998). Como encarar o corpo

da mulher sem que sua função

reprodutiva seja essencializada? Este é um momento interessante para pensar as rupturas que as NTRc estão provocando no consenso de que o corpo feminino deve ser sempre reprodutivo. No momento em que sua capacidade reprodutiva não se explicita normalmente, está colocada a possibilidade da existência de outros corpos na intervenção. Talvez valesse a pena tomar em conta a sugestão de Dhavernas (2002) para pensar se o grande medo não é o das rupturas das continuidades representadas pela maternidade, já que (ao mesmo tempo) sua manutenção significa subordinação. Não estaria na hora de construir outra concepção sobre o que é o modo natural e assumir sua modificação parcial em proveito da técnica que, neste caso, poderia estar provocando uma mudança no modo “natural de reprodução”? Isto não criaria um atentado ao núcleo constitutivo do humano, já que este núcleo não está dado à concepção, mas se faz no processo. É preciso considerar, segundo a autora, a capacidade de autocriação, de automodificação, para maternidade fixa em um

corpo,

não cair

sempre na

essencializada e biológica. A

concepção não é já o momento de um processo de humanização (embrião não é pessoa),

ele não representa nada a priori; a

concepção não está possibilitando apenas pensar as derivações ideológicas e políticas, mas igualmente as compreensões sobre natureza e cultura. O bebê que nasce de uma concepção in vitro

333

não

pode

mais

ser olhado

“puramente”como “espelho” da

natureza; ele é igualmente o espelho de uma capacidade tecnológica. Logo, representa dois mundos, o da cultura e o da natureza, que operam em fusão procriativa (STRATHERN, 1992). Na verdade, para alguns homens a compreensão de que a natureza e a cultura são faces de uma mesma realidade começa a ser delineada, e eles começam a compreender que ambas estão numa relação

dinâmica, que a tecnologia faz a natureza e vice-versa,

embora em suas representações haja o predomínio da tecnologia para fazer o natural. Eu acho que não dá para separar natural de artificial, eu acho que para se poder usar a tecnologia para fazer as duas coisas para fazer uma coisa natural. Eu acho o seguinte, e se não houvesse uma parte natural não aconteceria fertilização in vitro. É sobre a base biológica da natureza que se trabalha. É a mesma coisa você fazer uma operação com 100 glóbulos brancos; você vai morrer. A natureza tem que agir, você tem que ter anticorpos, tem que ter uma defesa, a cirurgia é artificial, mas se você não tiver a ação da natureza não é possível. O papel do médico é de manipulador de ferramentas. Eu nunca fiquei preocupado com isto, o que o médico colocava ali era meu, é muito piegas, é ter ciúme, é demais, pensando no médico. Eu não sei se é porque a gente entrou tão a fundo nisto que eu não consigo imaginar uma reação tão irracional. O que eu acho é que a partir do princípio que você estabelece os objetivos e já conhece as estratégias para alcançar esses objetivos, ou você entra na brincadeira ou não entra. Se você disse vou brincar, então deve ir, então eu vou, quando eu me decidi, decidi. Neste momento eu não tinha mais dúvidas, eu fui fazer (entrevista 4, Gilson, casado com Mirna).

A associação artificial

com uma

simbólica do processo

de inseminação

cirurugia também aparece

como

um

depoimento no qual o progresso tecnológico, na maioria dos casos, é assumido como dado e irreversível. As mudanças rápidas são

334

positivas e a evolução da medicina e da tecnologia, de modo geral, são bem-vindas. Eu acho que isso aí deveria ser falado mais com naturalidade sobre isso aí. Até o nome inseminação artificial deveria ser trocado. Inseminação artificial... eu não vejo isso como uma coisa artificial, eu vejo isso como algo tão natural igual. A não ser que fizesse em incubadora. Eu vejo que tem que fazer um trabalho mais naturalizador com as pessoas que querem ter filhos, eu vejo isso aí como uma cirurgia. É isso aí, a medicina evoluiu, e faz parte tudo isso aí. Eu não vejo por que a medicina não teria que ajudar nessa parte; afinal, ela ajuda em todas as partes e tudo está certo; por que não nesta? Por que esse não pode? Por isso que eu digo que o nome inseminação artificial deveria mudar. Deveria fazer outra coisa, um tratamento, eu prefiro outro nome. Isso não é artificial, é artificial quando tu botas outro órgão no lugar. Se tu colocasses outro órgão ali dentro do ser humano, ou colocar um útero artificial. Porque não é nada artificial, o teu sêmen não é artificial, o óvulo não é artificial, o útero da mulher não é artificial (entrevista 28, José, casado com Séfora).

Ainda que, como no caso acima, essas tecnologias sejam positivadas dentro de uma compreensão de que não estão no mundo artificial, mas colocadas em contato com a natureza, recuperando seus

potenciais, há situações em que elas provocam medos

e

apreensões. Olha, eu me lembro que ouvi a entrevista com aquela menina de Curitiba, que é o primeiro bebê de proveta do Brasil, e ela me passou uma segurança muito grande pelas ideias dos oito a nove anos. Já sabia que ela havia sido feita por um procedimento deste tipo artificial. Ela não sei, mais acho que quando meu filho tiver 10 anos, sei lá, acho que é mais ou menos a idade de uma criança começar a receber este tipo de informação, e então este negócio é bem complexo. Mas acho que isso aí vai estar meio superado. Acho que isto aí será coisa do passado até. A parte genética, com todas estas coisas de clonagem, me dá um certo receio de pensar sobre isto. Se você conhece, você tem menos medo, porque o risco existe, mas se você o conhece você o domina. Eu acho que a gente tem medo desse tipo de coisa porque a gente desconhece o que pode ser no ano que vem, por

335

exemplo. Elas fabricam um cara aí. Aliás, eles têm tecnologia para isso. Isso aí nós não sabemos, isto causa medo. É justamente o desconhecimento que causa medo na gente, porque nós não sabemos o que pode acontecer amanhã. Pra chegar a um bebê de proveta na clínica do nosso amigo de Curitiba. Eu sinto sinceramente eu me preocupo bastante com este lado assim. O tratamento, sabe, está no contexto em três pontos, porque ciência é uma coisa gigantesca. Então me dá muito receio; pelo principal fato de não conhecer, a gente tem, a gente tenta altíssimas informações, são informações privilegiadas, quem tiver vai ter o poder. Porque hoje é assim. Hoje quem manda no mundo é quem tem informação; há quem diga que as guerras do amanhã serão por água, hoje elas são por informação (entrevista 4, Gilson, casado com Mirna).

Esses medos

são provocados pelo desconhecimento do

processo, particularmente se considerada a liberdade com que a ciência

investe sobre a vida humana. Nesse sentido, essas são

também uma escolha de risco, como afirmam Beck (1996); Douglas; Giddens (1991); Guivant (1998) e Wildaviky (1983). Autores como

Bateman (1999)

apontam para

a

instrumentalização do ato de fecundar, combinada às possibilidades de criopreservação e de diagnóstico genético como

novas

possibilidades reprodutivas que, por sua vez, vêm carregadas de novas exigências éticas que ultrapassam o ato médico e envolvem as decisões da própria sociedade. Segundo ela, é necessário ter presente que em cada escolha técnica, seja na ultrapassagem dos ditames morais,

seja na

construção do ato terapêutico, está-se mexendo com o registro corporal, psíquico e social advindo do sexual. Isso transforma o simbólico, de onde a procriação tira seu sentido e no qual as condições antropológicas são colocadas em jogo cada vez que se trata de fazer uma escolha entre muitas possibilidades técnicas.

336

A

tendência

é

reduzir

os

sintomas

da

esterilidade

exclusivamente ao plano biológico, causa de disfunção e lugar de intervenção, e a restringi-los às intervenções médicas e cirúrgicas, nas quais a ausência da concepção é tratada como doença. São práticas desmentidas pela mulher que engravida antes mesmo de começar o tratamento, ou após uma adoção, ou ainda quando a esterilidade é sintoma de outra coisa, tal qual relatado em estudos psicanalíticos (CHATEL, 1998; DHAVERNAS, 1999; FAUREPRAGIER, 1998, 1999; TUBERT, 1996). Além desses aspectos, considere-se a relação com riscos reais

para mães e bebês descritos nos trabalhos de Laborie

(FELBERG, 1989 apud LABORIE, 1994; LABORIE, 1990-1991 apud LABORIE, 1993; FIVNAT, 1991 apud

LOPES, 1992 apud LABORIE, 1992;

LABORIE, 1992; BROSENS, 1990 apud

LABORIE, 1994; LABORIE, 1994) e nos estudos de Jouannet (2001) sobre a transmissão de mucovicidose e os riscos do uso de espermatite possibilitado pela ICSI, além dos riscos com as crianças que a própria autora deste trabalho acompanhou 56. Considere-se também que inéditas

a tecnologia cria

situações

e até hilariantes, se não se tratasse de algo tão sério.

Através dela podem-se separar as diferentes etapas do processo no espaço

e no tempo, conforme já apontado por vários autores

(LENOIR, 2001; TESTARD, 1987; LABORIE, 1992), aspecto igualmente realçado na fala dos médicos, mas que, nesse caso, é 56

Assuntos que foram desenvolvidos no capítulo VI da tese, intitulado: Etica/bioética feminista: a percepção dos casais e o poder da medicina. Também foram publicados em Tamanini (2006b).

337

positivado como uma sentirem-se únicos

experiência única, que também os faz

em sua busca,

embora fale do processo

intrínseco da técnica, ou seja, de sua divisão em etapas separadas apontada por vários textos da crítica feminista e das preocupações bioéticas. Ela engravidou, eu estando a 10 mil km, o que realmente é difícil de acontecer. Geralmente é difícil fazer um filho com a mulher estando a 10 mil km do marido, risadas. [...]. Isso é um caso bem diferente. Ele é um menino. Eu queria ter mais filhos. Fazer outro. Como assim, fazer outro? Pra mim eu queria ter mais filhos do que um só, eu tenho três que são dela, tenho mais um agora. Mas a gente tem vontade de ter mais um. Além dos quatro. Mais um meu [...].

Trata-se do depoimento do marido de um casal que morava na França no momento da entrevista e que havia trocado de clínica após sucessivas tentativas. Embora sendo ele o único que relata a separação geográfica, essa fala foi mantida como um caso exemplar do que é possível ser realizado com a separação desse processo em diferentes etapas. Esse casal foi entrevistado quando estava de férias no Brasil visitando sua família, e ela estava grávida de 7 meses. Eu tive que recuperar os nove embriões que estavam em Marseille e levar para outro Hospital em Marseille. E isto eu fiz pessoalmente, que foi muito engraçado, porque poderíamos dizer que foi o primeiro homem que carregou seus filhos antes da mulher, da mãe. [Risadas...] é interessante porque eu transportei em recipiente de alumínio, parecido com uma coisa para tirar leite das vacas, um cilindro assim, com uma isolação térmica que eu não sei mais como se chama, que resfria. Então eles estavam ali congelados. Então eu transportei isso com carro, dentro do carro e a pé, e as pessoas me olhando na rua, se perguntando o que eu estava fazendo com isso. O que era isso. Daí eu levei para outro hospital (entrevista 1, Ângelo, casado com Rosa).

338

As representações dos positivas, ainda que alguns

homens sobre

as técnicas são

demonstrem consciência dos seus

limites, principalmente de seu pouco amadurecimento, sua base probabilística, experimental, e dos estágios em que a tecnologia não pode interferir, como é o caso da nidação. Eu acho que o processo, ele é... eu diria que ele é muito incipiente, todo esse processo. Pra você colocar isso, digamos, em linha de produção, então, é um negócio que está muito em estudo, se fosse uma coisa que você fizesse e a possibilidade de acerto é de 99% ou de 90%, então já é uma coisa comprovada, com métodos comprovados que vão dar certo, então eu acho que nesse aspecto nós temos que primeiro avançar nessas pesquisas para que se tenha um processo e procedimentos seguros no sentido de dizer fizeram, tá certo, da mesma forma que é extrair um dente. Agora disseminar essa tecnologia sem um controle adequado, porque o problema não é só colocar na área da saúde pública como, e como é que, vai fazer com todo o resto, todo o excedente de material genético que está por ai, que eles nem... (entrevista 18, Raul, casado com Janete). [Nidação]. Esse é um processo que a medicina ainda não conseguiu, né, só o teu organismo, ele mesmo que vai decidir, né, até então porque eu acho que deve ser induzida e de repente não é, só um pouco dela, tem um pouco de mim que o organismo dela deve sentir, por isso que o fator aborto é bem maior (entrevista 16, César, casado com Tereza).

Essa tecnologia permite ao homem conhecer o seu corpo e lhe dá as chances que a natureza em si mesma não lhe daria. As mulheres relatam que os homens vivem grande emoção ao participar do processo. Só que só dois é que sobreviveram, que foram transferidos, então ficou o espermatozoide lá, então quando chegou pra fazer, que houve o aborto tudo, aí a gente tinha aquela coisa: ah, não tem problema, porque agora é mais fácil, porque tem espermatozoide lá, porque era um problema nosso conseguir espermatozoide, daí os espermatozoides já estavam lá, tudo direitinho, ela mostrou, a gente ficou muito emocionado, eu e o meu marido, quando a gente viu os espermatozoides

339

assim correndo, que a gente imaginava que nem tinha, aí ele viu e ficou até meio inchado – “Meu Deus, isso tudo é meu, ainda está sobrando” (entrevista 21, Mônica casada com Nando).

Em alguns casos, os homens falam sobre como é ruim viver essa expectativa e como em muitos momentos eles interferem limitando a emoção e a crença apresentada pelas mulheres que, na opinião da maioria deles, criam um grau de expectativa maior. Isso porque as mulheres estão, segundo eles, muito mais envolvidas objetivamente com o processo e com o desejo de resultados, porque começaram os tratamentos muito antes que os homens. Como já foi referido, quando o homem entra

no

processo

elas já haviam

procurado ajuda médica, muitas vezes e, não raro, já haviam sido submetidas a muitos exames e muitos medicamentos. O homem em geral entra no tratamento sem a carga de estresse de muitas idas aos consultórios, do uso da medicação e da realização de inúmeros exames. Ele consegue continuar seu trabalho e a normalidade de sua vida sem ter que fazer sucessivos arranjos, sucessivas negociações; esse não é o caso da mulher, que acaba por modificar toda a sua rotina de vida. Tome-se em conta que a maioria das mulheres entrevistadas tem uma carga enorme de trabalho. Para o homem, o tratamento pode se reduzir a alguns momentos, como o da coleta do espermatozoide; para ela, esse processo significa viver uma rotina de 24 horas, durante meses e até anos. “Eu dizia para ela: – não cria expectativas, esquece. Mas para a mulher é muito difícil. Talvez porque a mulher começa antes. Ela nunca se desliga.” “Para o homem são só momentos, para ela é uma continuidade.” “Ela está carregando aquilo.” “O homem vai lá buscar e pagar (risadas).” Eu tenho impressão que os homens trabalham melhor com esses dados que as mulheres, criam mais expectativas [...]. É aquela vontade, aquela ânsia de ser mãe, no caso da..., hoje já melhorou bastante, ela ficava assim [...], por si só ela já é uma pessoa elétrica, é estilo dela, hoje ela já está mais light, ela procurou trabalhar, nós temos vários livros de autoajuda. Eu li livro que eu nunca tinha visto na minha

340

vida, eu trabalho também esse lado, até porque é preciso (entrevista 24, Kauli, marido da Tereza).

Há,

contudo, muitos relatos

percebem angustiados

em

que

os homens se

e preocupados durante todo o tempo do

tratamento. Porque desde o tempo em que a gente fez o tratamento, a gente ficou naquela angústia, fazer exames de sangue para saber se engravidou, acompanhar para ver se algum sangramento que tenha interrompido o processo. E qualquer manifestação é um sinal de alerta. E a angústia cresce. E nós ficávamos nós dois numa angústia bem grande (entrevista 32/31, Luiz, marido da Salete).

O sofrimento durante a fase do tratamento é descrito pelos homens como uma experiência solitária. “A gente sofre demais.” O acompanhar é um ato solitário: “A mulher fazia e eu ficava com o coração na mão”. A relação

com

a gravidez também é de

grande

envolvimento emocional, principalmente pela expectativa quanto ao filho perfeito. Os homens parecem esperar

que a perfeição

criança confirme para eles a necessidade de ter certeza

da

de que

fizeram a coisa certa. Quando eu vi ele na ultrassonografia, perfeitinho, foi fora de série. Ele mexe as perninhas, ele tem dedinhos, ele é todo certinho. Mas eu sempre me preocupei de que ele viesse com defeito mental. Não pelos remédios. Mas eu acompanhei um amigo meu que mora do lado da minha casa, que a mulher teve um neném com síndrome de Down. Então isso era a minha preocupação. E para a minha esposa esta era a maior preocupação, tanto se fosse por inseminação, proveta ou natural. Essa era uma preocupação. Eu tinha essa preocupação. Eu dizia, pô, tomara que ele venha perfeito. Ver o neném perfeito para mim era a maior das alegrias (entrevista 8, Geraldo, marido da Janete).

341

4.3 O QUE IMPORTA.

IMPORTA? CONSTITUIR A MÃE É O QUE

As mulheres entrevistadas raramente manifestam alguma fascinação ao olhar o processo técnico em si mesmo, e também o saber sobre a existência dessas tecnologias não lhes causa o mesmo

estranhamento causado

nos homens. Para elas importa

conhecê-las e olhar para o que elas podem fazer sobre si ou sobre o que os outros fazem sobre elas. O foco são elas próprias ou o casal, para falar do sacrifício, das energias despendidas, dos esforços e do tempo da busca, também sobre quanto custou caro ter esse filho com todo o dinheiro investido nos procedimentos. A construção de suas representações está conectada ao imaginário social sobre a necessidade da maternidade, sobre a cobrança diária dos parentes, sobre a construção da sua família e sobre o desejo de filhos. Outro aspecto é que esse poder médico de lhes fazer um filho está amalgamado no fato, tratado por Tubert (1996), de que em toda sociedade patriarcal a mulher entra na ordem simbólica somente sendo mãe. O próprio desejo de ter filho associa-se à infertilidade como aplicação

um

verdadeiro sintoma situado no corpo; a

das NTRc localiza-se,

portanto, nessa tentativa de

satisfazer a demanda da mulher que manifesta o desejo de ter um filho e não pode. Entretanto, nem sempre a demanda coincide com o desejo. Conforme Tubert (1996, tentando oferecer o objeto

p. 192), “responder à demanda

requerido (a criança), sem maiores

questionamentos, supõe situar a mulher num discurso constituído e

342

imposto, eliminando-a do mesmo

como sujeito

falante,

como

sujeito do desejo”. Para a autora, a partir de um paradigma psicanalítico, a procura pelas novas tecnologias reprodutivas conceptivas não se justifica somente no argumento do desejo de ter filho, mas mascara os aspectos

econômicos, sociais,

históricos e culturais que,

necessariamente, devem ser levados em conta na construção dessa demanda medicalizada. Ela se articula com a dessubjetivação. O nome

do pai aparece

encarnado em um

médico

que

vai

proporcionar um filho à mulher para fazê-la mãe, permitindo-lhe assim encontrar um significante que a represente como sujeito. O encontro entre uma demanda incoercível e a oferta das tecnologias reprodutivas determina que pacientes e médicos se coloquem como ponto de partida de gerações e filiações que até há pouco tempo eram impossíveis. Dá-se origem a um mundo diferente, capaz de pôr em questão não só os fundamentos éticos, jurídicos, filosóficos e culturais da atual

concepção de parentesco, mas também o

estatuto de sujeito. Nesse sentido, ela adverte que tanto a esterilidade quanto a frigidez espelham uma muda resistência a uma função simbólica entendida como natural e, dessa maneira, imposta a uma definição ideológica do gozo, do desejo e dos ideais da feminilidade e da felicidade. A mulher que não é mãe perturba a ordem estabelecida, questiona a base das relações entre homens e mulheres e abala o sistema de exclusões que sustentam a ordem hierárquica, o poder de

343

um sobre o outro. A hipótese dessa autora é que as NTRc estejam respondendo à exigência de impedir que uma

mulher não seja

mãe, de garantir que ela esteja plenamente identificada com sua função reprodutiva supostamente natural, função que a definiria no seu ser. Se todas são mães, teria sido respondida a pergunta sobre a feminilidade. No entanto, se nem todas são mães, o que então é uma mulher? Se a contracepção permite o controle dos nascimentos por

parte da mulher, pode suscitar o fantasma da confusão dos

sexos. Dessa forma, são as NTRc que, por sua vez, restauram a distinção, evitando, ao menos imaginariamente, que uma mulher não se integre na categoria mãe. Nesse caso, o que se teme não é só uma sexualidade feminina descontrolada e voraz, mas também a confusão

dos sexos, com o consequente questionamento das

identidades sexuais estabelecidas, uma vez que, não sendo mãe, a mulher poderia ser confundida com o homem. Além do mais, a prática médica está visivelmente marcada por um cuidado de eficácia que consiste em difundir entre as mulheres o resultado do progresso relativo às tecnologias reprodutivas (BRETIN, 1996). Segundo Becker (2000), tecnologia não é apenas expressão da cultura; é um primeiro exemplo de como consumir cultura, de como pessoas lidam com a relação entre a ordem social e a esfera íntima de suas vidas. Consumir cultura revela o poder individual de dispor sobre sua vida e sobre os recursos identificados na necessidade.

344

Segundo ela, quando consumir cultura gira em torno de objetos específicos de consumação que estão significando reprodução social de identidade, então isso conecta questões sobre como nós necessitamos ou deveríamos viver o que diz respeito ao direito, dirigindo as necessidades ou os desejos dos indivíduos. Mais

do

que

como

contraposição entre

natural e

artificial, essa busca por NTRc se configura também como a última chance de ser mãe, circunscrita na disposição e na escolha de não mais seguir

tratamentos convencionais, relatados como

longos e como fonte de estresse, de modo que a possibilidade de fazer uma inseminação artificial, uma fertilização in vitro ou uma injeção intracitoplasmática de espermatozoide, quando apresentada, ganha contornos de solução para quem já não aguenta mais as idas e vindas frequentes ao consultório médico. Eu tratei quase sete anos, e tomando hormônios, tomando remédios, tomando isso, tomando aquilo. Gastei uma fortuna e poderia ter feito logo uma inseminação. Eu estou com 33 anos, eu tinha 24, 25 anos quando comecei. Nesse tempo todo eu tomei hormônios, tomei serofene, neclodim, clomide, todos bem fortes. Tomei também dimetrose durante seis meses. Com a doutora (nome), porque ela achava que eu tinha endometriose. Eu acho que a pessoa não pode achar, a pessoa tem que saber. A doutora (nome) é que fez o exame. Neste campo a pessoa não pode achar, ela tem que saber. Quando cheguei na doutora (nome), se eu não me engano, que eu já queria fazer a inseminação. Ela disse não, vamos fazer o tratamento. É difícil, porque esse você acha que tem possibilidades, mas faz o exame de prolactina, é alta, faz o exame de progesterona, é baixa, que tem problemas no ovário, a trompa não funciona direito. Faz três, quatro, cinco meses e não dá certo; então, tem que partir para inseminação. Mas fazem muito tratamento, tu tomas muito remédio. E depois tu chegas à conclusão que tens que fazer inseminação. Isso tudo deveria ser mais rápido, eu acho (entrevista 7, Janete, casada com Geraldo).

345

Após este tipo de tratamento, quando a mulher compara a fase anterior com a atual, ou a recente fase antes da gravidez e depois

de

uma

FIV

ou ICSI,

ela se posiciona em

geral

radicalmente contra o tempo que investiu nos longos tratamentos. É uma

posição

contrária às indicações éticas

que em

geral

criticam a vulgarização dessas tecnologias quando são indicadas prematuramente para todos, sem tentar os caminhos convencionais. É essa também uma

das críticas das feministas radicais

(BATAILLE, 1990, 1991, 1993; LABORIE, 1993), quando dizem que as mulheres são conduzidas para casos, sem

essas tecnologias, em muitos

necessidade ou porque o direito a um

filho

se

transforma em um dever (SCAVONE, 1999). É possível que isso venha a acontecer à medida que essas tecnologias se tornarem mais acessíveis. Mas o que se encontra neste estudo são mulheres estressadas pelas muitas tentativas em tratamentos “convencionais nos consultórios” e que desejam dar fim a essa rotina que já lhes tomou anos da vida. Nesse sentido, qualquer proposição que não seja medir temperatura, tomar hormônios para estimular a ovulação e fazer sexo em dia e hora marcada é uma possível solução, muito mais desejada: depois de ter tentado, desde 96 eu estava tentando com a (nome). Eu tomava medicamentos, todo mês eu tinha que ir lá e ela receitava, eu não aguentava mais. Hoje, se eu fosse fazer de novo, eu já não ouviria essa história de me dizer: ‘tu tomas deste medicamento e vais engravidar.’ Eu já iria direto lá, lá ou em outra clínica que tivesse fertilização. Eu queria direto fazer fertilização, o que este negócio de ficar tentando, tentando, e não dá. Isso vai, desgasta muito. Isso cansa muito. Cansa porque eu já estava com vontade de desistir. Eu me acordava, principalmente quando vinha a

346

menstruação, e dizia: eu não vou fazer mais (entrevista 21, Mônica casada com Nando).

As NTRc são, conforme dito

por Strathern (1991), a

expansão das possibilidades tecnológicas. Ao se falar nelas nos consultórios médicos, criam-se as condições sociais de aceitação ao seu

uso.

À

medida que

se dão conselhos médicos e se

aperfeiçoam as técnicas, são circunscritos os caminhos do alargamento das opções e as possibilidades para o seu uso terapêutico, caminho desenvolvido pela

história das

práticas

médicas, segundo Batemam (1999). Strathern (1991, p. 1014) nos diz que até agora [...] considerava-se o domínio do parentesco, e aquilo que tem sido designado a sua base biológica, a nossa constituição genética, como algo que não poderíamos alterar. Consideravase que estas relações pertenciam ao domínio da natureza, que representava tudo o que era imutável,ou intrínseco às pessoas e às coisas [...] no momento o que vemos é que a criança é uma encarnação do desejo dos pais.

Vive-se, segundo ela, num mundo em que terá que ser feita uma opção para qualquer ideia que se possa ter sobre pais e filhos. O que, uma vez desejado também pelas mulheres, ganha caminho de fácil aplicação e, à medida que as desconfianças caem, perde-se gradativamente não apenas seu distanciamento social, mas também a capacidade crítica sobre suas possíveis falhas, bem como sobre as inúmeras questões que carecem

de discussão pública

(IACUB; JOUANNET, 2001) e de legislação (CORRÊA, 2000). Isso, somado ao estresse corporal e ao estresse psicológico e afetivo que são relatados em todas as falas, permite um engajamento na busca de algo que parece oferecer uma solução definitiva – o filho.

347

Estresse: “Por que sofro tanto, meu Deus? Eu não aguento mais”

O estresse corporal está ligado, entre outros fatores, à necessidade de deslocamento territorial para outras cidades, ao uso dos hormônios, ao tempo do relógio biológico, ao tempo da espera em tratamentos convencionais, ao tempo de espera para saber se o resultado será positivo ou não, e ainda à sucessivos tratamentos, ciclo após ciclo, à necessária familiarização com os objetos materiais – aí

inclusos instrumentos

medicais e protocolos de

estimulação ovariana –, à procura e à compra da medicação, à pouca atenção ao seu corpo como um todo. Nesse procedimento o que conta é a interação entre

os óvulos e os espermatozoides,

mediatizada pelas

médicas

mãos

e pelos

laboratoriais. Interação despersonalizada dos

procedimentos

corpos dos homens

pela distância da relação, e particularmente despersonalizada do corpo da mulher, porque reduzida a critérios de normatização e à construção da materialidade biológica como fértil, acirrando-se na desvinculação do seu eu, que só vê o desespero na busca pelo filho biológico. Eu já estava cansada. Porque eu ia sempre na doutora para fazer as tentativas, todos os meses eu ia lá. Estava desesperada. Todo mês eu ia lá, tomava hormônios, não dava, no outro mês eu ia de novo. Daí, próximo do ciclo, tipo uns quinze dias, eu tinha que ir todos os dias na doutora. Às vezes, um dia sim, um dia não. Aí eu ia lá e media o meu óvulo, um dia não estava bom, noutro também não. Aí eu ficava tomando a medicação, mais medicação, mudavam medicação. Isso foi vários, várias vezes, isso conflita a gente. Isso foi tão cansativo que, no final, eu já tinha desistido. Deu, isso era muito angustiante.

348

Ele não, ele dizia: “vamos tentar”. Isso era muito estressante. Tomar hormônios, foi muito tempo durante todos os meses. Era todo mês, todo mês. Eram ultrassons intravaginais. Eu ia na doutora, que me dizia: “amanhã você volta para acompanhar, para ver se está ovulando”. Aí não estava ovulando e eu voltava a tomar medicamento. Quando a gente cansou, a gente falou com ela. A gente deveria ter ido direto para este processo de fertilização, para não ficar passando por este desgaste que a gente passou. Agora, olhando para trás, eu tenho certeza disso (entrevista 31/32, Salete, casada com Luiz).

O estresse psicológico, afetivo, moral, relacional, mesmo que esses aspectos não possam ser rigidamente separados da relação corporal, dá-se no ato de comparação que essas mulheres fazem entre si e as demais mulheres submetidas ao tratamento, consideradas em melhor situação quando engravidam, no medo

de fazer

hiperestimulação ovariana, no investimento de tempo, dinheiro e energia

durante o tratamento; na

expectativa sobre o

desenvolvimento ou não dos folículos, na ansiedade provocada pelas incertezas sobre o sucesso, na cobrança familiar, na vergonha de ter que dizer nas relações de trabalho “eu não tenho filhos”; nas dúvidas e nos medos na hora da transferência embrionária e na espera pelo implante, visto que o processo é todo diferente do ato sexual em uma gravidez normal, na qual as pessoas nem ficam sabendo se vai haver ou não uma gravidez; nas interrupções e retomadas do tratamento. Além disso, há estresse

por ter que

administrar o tempo pessoal e o tempo das decisões médicas; pelo ato de refazer

os exames; pelos diagnósticos colocados

em

dúvida; pelo processo de controle dos folículos e pela mudança de médico por parte da paciente, porque imagina obter maior rapidez do tratamento noutro lugar.

349

Depois dos aspectos ligados mesmo aos procedimentos do tratamento, os fatores causadores de maior estresse estão ligados às relações sociais e familiares, particularmente às decepções pelo insucesso, que devem ser administradas em família. [...] porque eu imaginava que tinha conseguido, depois dá tudo errado, mas tem que tentar. Depois na Clínica também nascia neném à noite, escutava o choro... da família, do marido, nossa, a avó que ficou assim bem mais triste do que eu, tive que dar força depois pra ela. Ele ficou bem triste, eu acho que eu fui até mais forte do que ele. Primeiro porque eu sabia que ele estava até mais triste por mim; então, eu tive que ser forte, que é assim mesmo, vamos tentar de novo, se não der a gente adota, aquela coisa, aquela história, e eu sou bem assim otimista, não é qualquer coisa, que eu fico achando que é só comigo, eu também eu acho que assim, nessa vida, a gente veio pra superar algumas outras vidas, alguma coisa de outras vidas, se não é pra eu ter um filho, é pra eu adotar e depois talvez eu tenho o meu, se não tiver, vai que não era pra ter mesmo (entrevista 21, Mônica, casada com Nando).

Menstruação: benção ou castigo?

A menstruação é uma benção para quem não quer engravidar, mas para quem o quer é um momento de grande decepção, que algumas mulheres relatam como verdadeira tragédia, vivida com sofrimento e choro. A menstruação, nessa situação, é o sinal evidente do fracasso de todo o investimento emocional, afetivo e econômico para materializar um sonho. Mas o problema maior

é que, nesse momento, em geral tão envolvidas estão

com a esperança que depositaram na técnica, que não conseguem olhar criticamente para as não poucas falhas do processo. Tomam o fato como incapacidade pessoal, e esse é um dos fatores de muito peso sobre sua experiência de depressão e baixa estima.

350

Constatar isso

exige

dos

homens também a reelaboração das

motivações e a superação das frustrações. Para eles, a menstruação também é relatada como tragédia. Essa fragilização, a dor e o choro enfraquecem também a capacidade de decidir com autonomia e acabam por permitir grande interferência médica sobre os seus sentimentos. O médico, ao criar hipóteses

explicativas para

o insucesso,

também

veicula

possibilidades de continuidade que, em conluio com o “desejo de maternidade”, possibilitam as muitas tentativas. Eu dizia pro médico: “eu morro a cada mês e eu vou me reconstruindo”, quando vem a menstruação a gente morre, o mundo cai, depois a ovulação vai se aproximando, então é um novo [...], ali a gente começa a se reconstruir. Então, nasce toda a esperança de novo, aí menstrua de novo, morre, sabe, é um eterno renascer e reconstruir, eu queria muito, muito, eu deixei isso bem claro pro médico. Eu tinha certeza, era o que eu queria na minha vida (entrevista 37/38, Sonia, casada com Mario). Eu já não queria mais, era muito difícil ficar três anos, assim, e toda vez que vinha menstruação desabava tudo. Isso arrebentava, quando ficavas um dia com atraso tu já estavas mais aliviada....era um drama, cada vez que vinha a minha menstruação eu chorava. Eu sempre achando que estava grávida, desconfiava todo mês, parece uma coisa, parece que atrasava sempre e daí eu já começava a sentir todos os sintomas, já achava que o busto tinha aumentado, que eu sabia que aumentava o busto, já me olhava diferente, sempre. Aí vinha, era aquela decepção. E fazia exames, vira e mexe, e nunca dava (entrevista 9, Gilda casada com Ray). Cada vez que ela menstruava, eu procurava animá-la dizendo: “nao (nome), vamos em frente”. Eu sempre incentivei, mas eu procurava dizer: – olha (nome), vamos para frente. Maldita menstruação. A gente ficava detonado, meu Deus, como era difícil. Tinha hora que a gente vivia e tinha hora que a gente chorava. (entrevista 8, Geraldo, casado com Janete).

Tratamento: medo e angústia

351

Em relação ao tratamento, destaca-se que as mulheres falam sobre ele como se dominassem todo esse investimento tecnológico. Mais do que de artificialidade, elas falam dele como próximo do seu dia a dia. Elas naturalizam essa condição, que chega a ser absorvida como rotina. Na expressão de uma delas “a gente respira isto dia e noite”. Aquilo que no início se apresentava como tão distante, agora está tão próximo que chega a ser absorvido como rotina, e seu envolvimento é de colaboração e de regramento de si e do cumprimento do cronograma médico. Isso se confirma mesmo que, no caso do depoimento abaixo, a mulher tenha perdido a trompa esquerda por infecção durante o processo de tratamento. Eu tenho um cronograma aqui, esse é o esquema da reprodução, desce a menstruação, depois no 21o tu começa a tomar uma medicação, que seria o lupron, que seria uma injeção por dia, todo dia, e essa injeção é uma injeção bem pequeninha, tipo daquela, menor ainda daquela de insulina, e tu toma 0,1 ml, o líquido eu tenho até ali direitinho, até se tu quisesse levar pra amostra, um vidrinho assim, com um pouquinho de líquido e ali tu fica desde o 21° dia até o 8° dia depois que desce a menstruação. Então, aí tu toma lupron direto, aí desceu a tua menstruação, tu tomando medicamento, desce uma nova menstruação, depois dessa menstruação, o primeiro dia, depois de terminar a menstruação o primeiro dia. Então, do 21° que tu começou a tomar uma medicação, passa-se 14 dias, nesse meio tem que descer a menstruação, depois tu toma uma outra medicação junto com o lupron, que dessa última vez eu tomei puregon, eu tomava três ampolas por dia, das três ampolas eu pegava a medicação das três e diluía numa só, numa ampola só, é intramuscular e pode ser subcutânea também. Depois de estar tomando essa medicação, que desceu a menstruação, no 8° dia tu tens que fazer o teu ultrassom, e aí se já tiver no tamanho normal, tu toma mais uns dois dias, tu toma a medicação que seria a profase, pra madurar esses folículos, e depois tu retira os óvulos. Até se tu quiseres levar esse esquema. Dessa vez, eu

352

respondi bem pior à minha medicação, tive bem menos óvulos, bem menos entre aspas, quer dizer até fazer o ultrassom pra ver a quantidade de folículos, eu tive o seguinte, na primeira vez eu tive assim, folículos de tamanhos que são necessários nos dois ovários; no meu segundo tratamento, eu tive mais no ovário direito, que daí eu não tinha mais a trompa esquerda, tudo indicava que era pra mim ter mais no ovário direito, que tinha trompa, que tinha todos os órgãos necessários. E do terceiro, agora, não respondeu nenhum no ovário direito, todo do esquerdo, e aí em pequenas quantidade...Às vezes eu nem lembro que eu não tenho a outra trompa, quer dizer, eu já tenho problema do meu marido, que já é difícil pra engravidar, eu também já perdi 50% de chance, porque dizem que um mês dá num ovário, um mês dá no outro [...] (entrevista 21, Mônica, casada com Nando).

Elas parecem ter complete domínio sobre os procedimentos de fabricação do ovário reprodutivo. Mesmo que para os médicos o útero seja fundamental como ponto de partida, para as mulheres o foco de preocupação será a estimulação ovariana. Tudo passa a ser focado nos ovários. São eles que devem sair da sua condição de produção de um

único

óvulo/mês para a liberação de muitos

folículos contendo óvulos. A fecundação in vitro gera uma falsa simetria. Fazer sair os óvulos dos ovários é, de certo modo, tratálos como espermatozoides, segundo Laborie (1999). E para levá-los de uma economia de raridade a uma economia da abundância é preciso óvulos, e muitos. Ora, as mulheres não produzem muitos óvulos e não os colocam no exterior. Daí a necessária estimulação ovariana, com os consequentes riscos de hiperestimulação, dores e desarranjos hormonais relatados em nossas entrevistas. A coleta de óvulos é tomada, equivocadamente, como um termômetro para

o sucesso.

O médico

se entusiasma com a

353

quantidade coletada e alerta sobre o número de filhos que o casal poderá vir a ter. Daí, quando chegou à época de tirar os óvulos, tiraram 25 óvulos, fecundaram 22. Eu sei que 16 estavam prontos para injetar. É certo que o doutor tinha ido para o Chile para fazer aquela fecundação de cinco dias, aí ele colocou dois com dois ou três dias, ia colocar mais três com cinco dias. Ele disse que iria colocar oito, quatro e quatro, mas aí ele disse que, como a evolução estava indo muito bem, ele não queria colocar porque sairia uma ninhada. Então ele pegou e diminuiu (entrevista 25, Simone, casada com Armory)

Esse domínio e essa rotinização do procedimento não elimina, contudo, o medo e a angústia. A esperança e o medo estão, no contexto da transformação da natureza ética e existencial, em instrumentos técnicos (ROTANIA DE POZZI, 1999). Esses casais, arrancados do corpo, da personalidade e das relações sociais, são inscritos dentro dos elementos que configuram a FIV, dirigindo essa tecnologia a um todo encadeado em uma variação segundo Kireyczyle (2000), organização clínica

para

quem

de arranjos,

negociações sobre a

e o desenvolvimento da FIV/ICSI envolvem

negociações sobre o gênero e as diferenças culturais, sociais e políticas dos significados envolvidos. O medo e a angústia que são provocados pelos médicos em relação a algumas exigências sobre a necessidade de fazer exames preventivos, constituem-se em fontes de estresse, e na relação com esses investimentos tecnológicos marcam os procedimentos também em relação a outros aspectos. Em alguns casos, os médicos levantam hipóteses sobre os possíveis problemas de saúde

em relação à

criança por causa da idade da mãe, e forçam a mulher que se recusa

354

a fazer uma série de exames que eles consideram preventivos. Esses exames são considerados pela mulher somente como uma forma que o médico encontrou de ganhar mais dinheiro. Ao mesmo tempo, esse medo é acompanhado de certa culpa por não querer se submeter aos exames exigidos pelo médico, o que responsabiliza totalmente a mãe caso essa criança venha a ter problemas. Deve-se

também

esse medo às interrogações sobre se deveriam estar fazendo um bebê in vitro. Parecem sentir como se estivessem ferindo uma lei natural, o que nos dá certos indícios de que, eventualmente, essa escolha não esteja tão livre das possíveis artificialidade ou de medos natureza. É muito difícil eventualmente nem

tudo

ocultos para todas

associações

à sua

sobre a dessacralização da as mulheres encarar que

saiu conforme fora matematicamente

planejado. Olhar o que fizeram como um problema não pode ser suportado, e às vezes as dúvidas persistem durante todo o processo da gravidez, conforme podemos verificar na fala abaixo. Cada vez que ele media lá, na cabeçinha, e no... eu gelava e dizia “será que o meu neném não é perfeito?” Com esse exame, aminiocentesis, eu estava até me preparando psicologicamente. Ele dizia pro (nome) “tu tem que ser delicado, tu tem que ser... tu tem que dar apoio pra ela”. Nisso, eu já estava distorcendo tudo em favor que estava com “alguma criança com problema”. Por que dar apoio, ser forte, falava por código pra mim. Aí, como deu ótimo resultado, eu “Ai que bom. Então, vamos embora’, ele disse, “Não, fazer outro teste”. Ele já sabia o resultado, porque antes de fazer outro teste, ele queria por que queria fazer... Eu disse: “eu não vou fazer, eu já estou com o exame, eu não vou fazer...” aquela angústia, angústia, angústia, eu dizia pro meu marido “será que Deus vai deixar acontecer isso, mas não pode”... mas se o médico está me pedindo isso, ele deve ter visto alguma coisa naquele ecógrafo lá e não quer dizer ainda [...] Fui na Sonotec, fui aqui em Tubarão numa outra clínica, eu já nem acreditava mais nele, achei

355

que o outro médico é que tinha razão... Dai eu disse, “sabe de uma coisa, eu vou deixar as coisas acontecerem”. No dia do meu parto, eu nem podia andar direito [...]. Ninguém quer. Ninguém quer ter um filho assim. Eu olhava assim, será que ele tem algum problema, eu custei a ter coragem de pedir pra médico...O meu filho é perfeitinho? Ela disse: “... é um garotão!” Eu disse: “graças a Deus”. Mas, na hora assim, acho que a gravidez inteira foi terminada aí. Os quatro primeiros meses, eu só pensava que só podia ser, né. Mas depois eu fui deixando a coisa rolar, eu disse, “eu não acredito que se Deus ajudou a dar certo até agora, impossível que seja [...], mas se for [...]” (entrevista 33/34, Anita, casada com Ezequiel).

E os medos

persistem mesmo

depois

do nascimento,

obrigando a mãe a se perguntar: “Será porque foi feito in vitro?” Até no dia da entrevista, a mulher da fala abaixo expressou medos em relação ao fato de ter dúvidas sobre se a filha iria ter problemas de saúde; a menina está com cinco anos e ela continua controlando seu desenvolvimento físico, visto

que ela não se

desenvolveu no tamanho convencionado pelos padrões das crianças da sua idade. Eu tive no final, porque foi assim: até seis meses, até sete meses da minha gravidez, estava tudo normal, depois, no ultrassom, eles começaram a dizer que o perímetro cefálico dela era pequeno. E aí tinha um exame que a gente faz com 52 semanas e dai dá para ver se o feto está todo normal ou não, e esse exame eu não fiz. Esse exame eu não fiz porque passou, a médica não pediu. E aí, quando chegou no sétimo mês, começou isso. Então no sétimo mês até ela nascer foi um tempo muito complicado, que eu fiquei muito apreensiva. Eu não dormi direito, eu não sabia direito o que estava acontecendo, eles só diziam que o perímetro cefálico estava pequeno, mas que o cordão umbilical estava normal, que um líquido estava normal o problema era o perímetro cefálico. Era mesmo... tanto que até depois que ela nasceu até uns quatro meses foi um sufoco, eles diziam sempre que estava anormal. Diziam que o perímetro cefálico era pequeno, muito pequeno, e cada vez que tu ias ao médico ficavam medindo. E cada vez que eu ia no médico eu perguntava se era porque foi feito in vitro. Mas eles também não sabiam (entrevista 25, Simone, casada com Armory).

356

Apesar

disso,

essas

mulheres continuam desafiando a

medicina com sua insistência e reclamam assistência intensiva. A medicina às vezes é solicitada como um herói capaz de corrigir as injustiças da natureza e às vezes é odiada pelo fracasso. Essa equipe pode, ao mesmo tempo em que se encontra fascinada, sentir-se aterrorizada diante da

onipotência dessas

mulheres. Elas, que

desafiam a vida e a morte, agem como se quisessem dizer a todos: “ninguém pode comigo”, tal é a carga de esperança colocada na tecnologia e tal é a subjetivação que soa como sintoma perverso do desejo, conforme tratado por Bordo (1997). Outros medos são devidos

às

possibilidades do fracasso frente

a um limite

representado pela idade, que vem acompanhado do fantasma de ter que decidir pela adoção, aspecto que é superado pela segurança passada pelo médico sobre o poder da tecnologia e sobre sua capacidade de dominar esses percalços (ROTANIA DE POZZI, 1999). Nessa idade eu tinha medo do fracasso, o meu medo é que seria a última tentativa. Porque depois só adoção. Para mim seria a última tentativa de ter um filho meu. O meu medo é de que não desse certo. Inclusive no dia em que nós fomos para Porto Alegre eu fui passando mal, me deu uma enxaqueca brava, na hora que eu conversei com o médico, que ele me passou uma segurança incrível, que eu saí do consultório, eu olhei para ele e disse: estou com fome, vamos comer e vamos embora. Eu não tinha mais nada (entrevista 29/30, Munique, casada com Chico).

Medos que são relatados como de causa psicológica, principalmente pelos

homens. “No

caso

acho

que

ela

não

357

engravidou naturalmente, por bloqueio, ela tinha medo.” “Eu acho que ela queria tanto que acabou bloqueando.” Ainda há relatos sobre os medos causados pelo uso desses medicamentos, por causa da possibilidade das doenças futuras: Ninguém me disse, mas eu lia as bulas dos remédios e fala que pode aparecer, porque se tu leres as bulas dos remédios tu ficas apavorada e não queres tomar, porque diz que tu podes perder rins, tu podes ter câncer, não sei se mais tarde eu vou ter, porque eu tomei remédios mesmo pra tomar [...] No começo até minha família não queria, porque, assim, alguns, minhas irmãs ficaram preocupadas, porque poderia não dar certo e eu ter problemas ainda, mas a gente tem que arriscar, se tu queres. Eu tenho uma colega que fez, que perdeu um rim; então tu ficas com a cabeça a mil, e ele não, ele dizia: “não liga pra essas coisas, que isso aí não vai acontecer”. E eu também tomei os remédios e pensava assim, eu vou tomar e não vai me acontecer nada, tanto que eu não tive efeito colateral, inchar, que poderia dar aquele policístico dos ovários, aquela superovulação, né, que eles falavam, mas nunca aconteceu (entrevista 17, Janete, casada com Raul).

Os medos são sobre os efeitos dos medicamentos e muito pouco sobre a tecnologia e o próprio procedimento. Em algumas situações o ovário não reage e, quanto mais ovula.

Esses

são elementos não

relatados por várias

estimulado, menos

técnicos, mas fundamentais,

mulheres, em que o fato de fazer uso de

medicação forte não permitia a ovulação, provocando um resultado nulo para o fim desejado. A forma de tratar se dá a partir de consensos e o médico não tem instrumentos de controle total do processo,

que pode terminar em hiperestimulação ou em uma

síndrome de bloqueio total.

358

É. Bloqueiam pra ti não ovular, quando duas ou três vezes que eles insistiram que eu tome esse remédio, porque o médico de Curitiba e depois em Porto Alegre, também insistiu e eu também não vou me meter porque né... Tem algum mecanismo em mim, os meus ovários ficam compactos como se tivesse na menopausa... e não produz. Então, daí o que aconteceu bom, não pode usar o lupron, agora o que fizeram, daí a gente [...], daí fiz lá uma tentativa, coloquei três lupron e não fiquei grávida, aí depois fiz outras, porque eles consideram tentativa até o final de transferir o embrião. Foram muitas as tentativas do tipo, daí tu toma remédio vai ali não tem nenhum folículo, ou tem um, ou tem dois de má qualidade, acho que foram umas cinco ou seis tentativas mas, duas até o fim. Duas com transferência de embrião, mas nas duas eu não fiquei grávida. Uma delas eu estava lá pra fazer, de uma noite pra outra eu ovulei, daí, como eu não tenho esse bloqueio da hipófise, a história pra tirar os óvulos tem que ser muito assim, o médico tem que ter [...], pode acontecer de tu ovular e aconteceu, uma das vezes eu estava até no caminho, eu liguei pra ele voltar porque não adiantava ele ir (entrevista 23, Tereza, casada com Kauli).

Permanecer ou desistir?

Por um lado, o confronto com essas práticas dos médicos é gerador de muitos conflitos e de desejos de desistência. Por outro, possibilita a demanda por filhos, alimenta as expectativas, permite assimilar as novas práticas como necessárias e úteis ao objetivo de fazer um filho, que é naturalizado no processo. Mesmo

quando conhecem as

taxas

de

insucesso, as

mulheres e os homens tendem a ver as possibilidades de sucesso. E a ineficácia não modifica em nada esse comportamento, ainda que necessitem construir alguns aportes para superá-la ou suportar o sofrimento vivido em decorrência do processo. “Enquanto eu tiver uma chance eu vou continuar.” Na hora da perda dos embriões, a representação nos fala de um processo violador da natureza.

359

Aparecem as dúvidas sobre o resultado de um procedimento que havia sido tão artificializado, o que é expresso na sequência. Diante da ignorância sobre isso, resta apenas “colocar nas mãos de Deus”. [...] imagina você querer uma coisa, querer muito, aí você vai fazer e está dando tudo certo. A gente fica feliz, né. E de repente, além de perder, a gente tem que colher, colocar num vidro e levar para o laboratório. [...] Então é o que eu falei [...] É um sonho. Poderia acabar com um final feliz ou com um pesadelo. E para mim não foi nem tanto pesadelo, porque, como eu já te falei, eu sou uma pessoa católica. Eu acredito em Deus e botei nas mãos dele. Ele saberia, às vezes vai que ele me poupou até de um sofrimento maior. Como tanta medicação, com tanta coisa, poderia vir uma criança perfeita, como não poderia. Talvez poderia se desenvolver faltando algum órgão. Talvez ele me poupou deste sofrimento. Eu acredito assim, eu botei na minha mente assim, então eu sofri menos. Mas eu já tenho amigas que fizeram e que até hoje são revoltadas. Então a experiência de cada pessoa é diferente (entrevista 5, Jadi, casada com Beto).

Outras práticas são associadas

às NTRc, e são todas

consideradas como formas de ação sobre a natureza: as garrafadas, as posições físicas após a relação sexual, as orações e a procura de centros espíritas. Eu já estava casada há um ano, eu casei em 1985. Esperei um ano, depois de um ano eu comecei a tentar, daí não conseguia, não conseguia. Fiquei aqui em Criciúma, passei por três médicos, sempre com esperança de conseguir. Aí, comecei [...] o que ele mandava eu fazer, eu fazia, tomar garrafada, levantar as pernas depois da relação e tudo que me mandavam eu fazia. Daí não teve jeito, aí fiquei aqui, depois troquei de médico, depois eu fui a Porto Alegre, não consegui. Daí, eu peguei e resolvi, o meu pai viu no Fantástico esse médico. O meu pai é muito descrente, é que nem São Tomé, é ver pra crer, não é qualquer coisa que ele acredita. Então, ele me indicou esse médico, ele não sabia nem o nome dele, eu anotei. Passei um ano, não fui atrás, não fiz nada, na época. Depois de um ano tentei, tentei, nada, frustrada, tudo que me falavam eu fazia, daí fui na telefônica, aqui em Criciúma, procurar o nome desse médico, que eu sabia que era Moacir, alguma coisa assim, procurar alguma

360

clínica, alguma coisa de São Paulo. Aí encontrei essa clínica de Reprodução Humana Roger Abdelmassih... aí liguei pra lá, já marquei a consulta pra mesma semana, aí comecei, isso em 1990. Então, até aí foram quatro anos tentando. Aí fui pra clínica, nós fizemos a consulta eu e o meu marido. Aí, nós fizemos a consulta e eu disse que estava esse tempo todo [...] explicando, ele me deu as sugestões. Daí ele pediu uma bateria de exames e tal, me fez um monte de exames e logo no mesmo dia ele me deu a resposta, aliás no outro dia ele já disse que eu teria chance de engravidar um dia, mas como eu estava há quatro anos tentando e nada, de repente eu ia engravidar “mas não sei quando”, daqui há dez anos ou daqui um ano mesmo eu engravidaria. O que ele aconselharia, que seria mais rápido, um bebê de proveta, o Fivete, se eu não me engano (entrevista 9, Gilda, casada com Ray).

Tratamentos alternativos são associados aos cuidados sobre o útero e à produção dos espermatozoides. Faz-se uma mistura entre práticas de alta tecnologia e produtos extraídos da natureza, de modo que não se dispensam os “aspectos tradicionais” ou religiosos como formas de tratamentos. Eu fiz também, nesse segundo tratamento antes de ir lá, pra fazer lá em Ribeirão e fiz um tratamento alternativo também, mais pra essa área de cuidar do útero, e também na produção dos espermatozoides. Não sei se tu conhece os medicamentos da linha Sunshine. Em Florianópolis tem um representante que me vende esses produtos, são mais considerados complementos nutricionais, é bem, eu sei que eu tomei....Tem os médicos que são homeopatas da linha Sunshine, fica ali perto do Shopping Itaguaçu, tem uma pessoa que tem uma representação, então eu tive uma consulta com um médico do Rio de Janeiro que estava dando uma palestra aqui em Florianópolis, e a minha cunhada conhecia ele, e eu também li uns livros dele, escutei umas fitas dele e ele colocava assim a questão da infertilidade, que tem certos alimentos que respondem, até um dos alimentos que ele colocava era que a pimenta, essa pimentinha de jardim, essa malagueta, e ele deu um exemplo de um caso, de um casal que o homem tomou e aumentou o número de espermatozoides [...] também a gente passou um mês sem ingerir carne vermelha, só carne branca e não tomar café, que é muito estimulante, e várias coisas a gente deixou de se alimentar, passou pra uma alimentação de não comer

361

muitos produtos industrializados e eu vi que deu resultado. Tanto que da outra vez que ele conseguia ter dois, três espermatozoides, dessa vez a gente teve espermatozoide pra congelar, então eu acho que foi válido o tratamento, houve uma produção e eu também respondi bem melhor à questão dos óvulos, que eu não precisei tomar medicação além (entrevista 21, Mônica, casada com Nando).

Às vezes a confiança no conhecimento dos peritos se cinde. Isto ocorre quando a mulher confronta seu saber com o do médico. E o know how da “paciente” exerce certo controle sobre o médico. Isso faz parte da ambivalência da prática, que, segundo Beck (1996), tem grande alcance para o conjunto e o domínio da ação social. Ocorre que, depois de tantos tratamentos, o casal adquire conhecimentos sobre as condutas médicas e já não aceita suas decisões

em todas

as situações. Esse conflito se explicita

sobremaneira quando a mulher já não está mais disposta a investir tanto tempo e dinheiro em tratamentos cuja experiência anterior resultou em fracasso. Quando ela já fez muitos exames e, na troca de médico, ele não aceita

os exames

anteriores com seus

diagnósticos, nesse momento a relação é checada. O casal, ao mudar de médico, o faz porque tem uma esperança de que possa encontrar uma solução rápida junto a outra clínica. Ele programa sua expectativa e seu tempo. Nossa, a primeira consulta realmente cria toda aquela expectativa de novo, cria um estresse também, porque eu já queria chegar lá [...], eu já tinha algum know how, queria já começar a fazer uso dos hormônios. Ai eu me estressei lá com o médico também foram quatro meses, eu agoniada, porque tinha janeiro, fevereiro, as férias da Universidade pra poder fazer e eu comecei em outubro do ano passado, e ele “Não, calma”, “Eu tenho ovários...císticos, eu já sei o

362

diagnóstico”, e ele, “Não, nada disso, vamos fazer tudo”. Eu tinha que fazer exames que eu já tinha feito aqui, exames dolorosos, é ruim, eu já tinha feito em Criciúma, eu disse. “Eu já fiz, o senhor não confia?”. Ele disse: “Não, tem que ser aqui”, aí tudo de novo. Claro que o custo financeiro lá realmente é custo financeiro mesmo, além do que é doloroso, tinha feito aquilo, mas não deu nada. “Nós vamos fazer uma histerografia, uma cirurgia”, uma anestesia geral, ficar internada, tudo. Aí eu disse: ”Vamos fazer agora?” “Não. Primeiro nós vamos fazer (tal coisa).” Em resumo, de outubro eu só fui fazer a transferência em fevereiro, no início de fevereiro, “Ou eu faço agora, ou eu não faço mais” – eu disse pra ele. Porque vão começar as aulas, como é que eu vou ficar sem ir na Faculdade? Eu tinha que ir dia sim, dia não, lá pra Porto Alegre. Aí foram três meses, eu fiz exame pra... não precisava ter feito, porque lá no Moinhos de Vento até pra respirar tu tem que pagar. Tudo o que ele diz tem que fazer, e tu vai pagando, é R$1.500,00 aqui, aí vai lá e não é o dinheiro, o tempo passa, as aulas iriam começar, e também tem coisas que não estavam rendendo. Até que finalmente esse médico entrou em férias, eu disse ”Vai ser agora”. Aí que ele me deu a dosagem, a lista, mandou por fax, nunca tinha dito pra tomar hormônios, mandou buscar tudo, comecei. Aí começa, vai, dia sim, dia não, pra ver o tamanho dos folículos, aí eu fiz a primeira transferência, a retirada mesmo dos embriões, dos óvulos pra fazer a fecundação fora, e aí eu fui. Quando já estava em fevereiro foi que eles fizeram a transferência pro útero, dos embriões já fecundados. E eu tinha certeza, eu vim de Porto Alegre e disse pro meu marido ”Eu tenho certeza que vai dar certo”, e deu mesmo (entrevista 33/34, Anita, casada com Ezequiel).

As exigências do trabalho fazem do recurso a esses meios uma

batalha para

ter um filho

ou filha

dentro de uma

racionalização de cada etapa. Fazer o caminho da busca do filho transforma-se numa prova. Assim, os exames, os tratamentos hormonais, a masturbação necessária à inseminação, as ausências no trabalho, mesmo a gravidez e o nascimento, são etapas complexas que é preciso transpor. Ter um filho nessas condições é uma luta. Ao mesmo tempo, elas dizem que é uma chance que as demais mulheres não têm. É a possibilidade de acessar uma ajuda para a

363

natureza, entregando seu processo reprodutivo para um médico. O discurso dos médicos resgata o valor da maternidade e o coloca em sintonia com a construção da finalidade da tecnologia, construindo possibilidades para o seu agir. O ambíguo, o incerto, o contingente e o contextual tornam-se partes

da reflexão

científica. Conforme

desenvolvido por Beck (1996), as decisões e escolhas são feitas a partir das portas que a disposição em fazer o tratamento já haviam aberto antes. Numa hora, aí já era outro médico, ele já estava botando seis, eu disse, “seis?” Ele assim, “tu tem que pensar uma coisa, tu está com 39 anos, são seis embriões muito bonitos e a gente tem que contar com a chance. Tu não quer ser mãe?” Eu disse, “quero”. “Então, vamos apostar com tudo.” Eu fiquei assim, gelada, eu disse, meu Deus, se os seis não dá, o que eu faço? Por que eu dizia...Vai ter que tirar, pode perder tudo. É preferível segurar um ou dois do que perder os seis. A minha família é extremamente religiosa, eu fui catequista, imagina, né, meu Deus, pra mim já é uma vida. E o médico dizia, “olha, agora tu já pode dizer que tu está grávida, que tu tem seis nenenzinhos aí dentro”, imagina, seis, né. Mas aí tudo bem, se vim, vamos deixar as coisas rolar, eu rezava toda a noite [...] (entrevista 33/34, Anita, casada com Ezequiel).

4.4 QUANDO A TECNOLOGIA ACOMODA A DÚVIDA A esfera tecnológica como dimensão do agir humano possui uma certa orientação que nós podemos formular como a construção dos meios mais e mais apropriados para realizar certos fins. Considerando a questão contextual das NTRc, encontra-se a esfera da ação tecnológica em interação com outras dimensões em nível de valores, como a cultura da maternidade e da família com filhos.

Essas esferas pesam

e estão presentes nas escolhas da

biomedicina e da medicalização do corpo, ao mesmo tempo em que

364

o corpo feminino continua sendo

moldado para a gestação e o

nascimento, conforme tratado por Rodhen (2001), e o discurso médico inclui os sujeitos, ainda que simbolicamente, como pais no processo de fazer um filho, por meio da tecnologia. Ocorre o resgate da necessidade de afirmar que o processo é natural, agora não por referência apenas aos gametas como elementos do corpo humano, mas por referência aos gametas como construção social – eles são do casal. Isto parece se dar em parte também para reafirmar a filiação diante do médico, já que ele é chamado frequentemente de segundo pai. Até o médico dizia assim, eu sou o segundo pai desta criança. Vocês nunca esqueçam de mim. Mas é super natural, foi o meu óvulo. Eu até acho que não é tão natural se tu usas de outra pessoa. Natural meu e dele. No nosso caso foi, porque foi usado o meu óvulo e o espermatozoide dele. Agora eu já não acho tão natural, que tem casos de inseminação que a mulher não tem ovulação. Aí ela tem que pegar óvulos de outros (entrevista 11, Mônica, casada com Andrei).

A natureza é colocada no laboratório para ser potencializada e ajudada. Os elementos unidos em laboratório são o resultado do corpo dos envolvidos, e não há nessas falas a preocupação com a interferência tecnológica. Embora para construa outra

natureza, como

Testart

(1986)



se

materialidade corporal fértil –

“nous começons à engender des corpos dans la culture”–, e ao mesmo tempo a natureza já está em outras esferas de autonomia operatória, para as quais novos valores ainda se construirão no processo, as mulheres e os médicos não consideram assim. O contato sexual, o que levou à fertilização in vitro, são resultados do sexo, de uma certa forma, porque o sexo

365

produz, os meus órgãos sexuais produzem óvulos, o do meu marido, o espermatozoide, então a gente usou material nosso. Agora, quando seja por doação, aí é aquela realização muito pessoal de não ter o rótulo de ter filho adotivo e de ter aquela sensação toda de passar por uma gravidez. Agora, eu no início achei que as pessoas iriam ver assim, a primeira vez que eu fiz, que iriam olhar por outros olhos “Ah, porque foi feito em laboratório”. Não foi feito em laboratório, foi tudo meu, só ficou no laboratório, em vez de eles ficarem direto no útero, eles ficaram dois dias lá pra ver se estava tendo as fases normais que iriam ter dentro da minha trompa até chegar no útero, então eles passam pelo laboratório e depois eles vão pra dentro de mim, quer dizer, tiveram dois dias fora, que antes eles nem estavam no útero, quando é uma gravidez normal eles ficam na trompa até chegar no útero, e leva de dois a três dias da trompa até o útero, às vezes até uma semana, então essa fase é que eles ficam lá (entrevista 21, Mônica, casada com Nando).

Fazer esses procedimentos é natural e conta com o auxílio divino – os próprios médicos revelam

a necessidade de Deus

durante o procedimento. Eu penso que a ciência, a natureza e Deus, porque é aquilo que eu te falei, continuo achando que a palavra final é de Deus, porque os médicos, estatisticamente, eles não entendem como é que uma mulher que tem todas as condições não fica e outra que tem condições muito piores fica. Tanto é que no dia [...], tanto o doutor [...] lá dizia pra rezar e tal, eles têm muito essa coisa de Deus, porque o [...] também, fez a posição da mão na hora que colocou, que eu fiquei 40 minutos lá deitada, fez a posição da mão, acho que rezou ou eu rezei também, então assim, eu penso assim, o homem evoluiu por essas razões, quer dizer, de repente eu resolvi ter filho mais tarde e já a natureza não me favorecia, mas aí eu não acho que seja uma coisa [...], tanto é que eu não tenho nenhum pudor de falar com as pessoas de que eu fiz. Antes mesmo de eu saber que eram três, eu podia...estou grávida e não dizer, eu estou grávida, pode ser mais de um, porque eu fiz fertilização, eu dizia, porque pra mim isso não é um segredo. Porque, assim, se eu estou tentando ter um filho, vai ser meu filho, filho do meu marido, vai ser criado na minha barriga, eu não vejo por que isso não possa ser natural (entrevista 23, Tereza, esposa de Kauli).

366

No centro das discussões sobre as NTRc se encontra uma polarização entre

a técnica e a natureza, que

às vezes é mais

radicalizada, outras vezes aproxima os extremos em torno da ideia de relação de ajuda, categoria sobre a qual agem os médicos e que ao mesmo tempo é absorvida também pelos casais para justificar o tratamento. Tomado o processo de “tratar” para engravidar, observa-se o fato de que, por um lado, o uso das NTRc representa uma perda de

controle do coletivo

para

o individual, constituindo-se em

símbolo de uma sociedade onde interesses coletivos

o individual prima sobre

os

(ROTANIA DE POZZI, 1999). Ao mesmo

tempo, as NTRc são vistas como técnicas que exercem uma ação irresistível sobre os que fazem da busca pelo filho a única saga durante um período significativo de suas vidas. Seu poder de atração é difícil de ser evitado, porque, entre outros fatores, os médicos e outros especialistas da pesquisa, juntamente com a mídia, criam esperanças para as mulheres que se encontram fragilizadas pelo desejo do filho e pelas cobranças sociais sobre o valor da maternidade biológica. Se, por um lado, essas NTRc são práticas médicas, por outro elas também são práticas discursivas. Como práticas, elas podem

servir

aos interesses dos médicos e dos casais. Elas

podem

lhes prestar tanto

um serviço, como um desserviço.

Assim, as técnicas se apresentam como instrumentos nas mãos ou na boca de pessoas ou de grupos que defendem às vezes interesses

367

divergentes. Elas são sempre inseridas dentro de relações de poder que se opõem ou que podem opor diversos grupos entre si. De uma parte, as mulheres ou os casais e os médicos, e de outra, a autoridade da lei, quando ela existe.

Nessa complexa

dinâmica, há um conflito entre duas lógicas: a esfera privada, o lugar da autonomia, e o lugar da dominação dos saberes e do mercado, além dos bancos de esperma das universidades e centros médicos, a conduta das pesquisas e o treinamento, as associações dos médicos, o controle dos serviços, as apólices de seguro, elementos constituidores de uma

longa

lista

de poderes, que,

segundo Beck (2000), jogam com grandes interesses. Essa relação não é imaginária; é uma prática concreta que alcança um objetivo e engaja as pessoas. A intenção anima as pessoas que estão em causa aqui.

Assim,

as tecnologias são

apresentadas como técnicas oferecidas pela medicina às mulheres e aos casais, que as utilizam, nesse caso, para alcançar um objetivo consistente na realização de alguma coisa no casamento – um filho genético.

A indeterminação relativa ao objetivo de alcançar a ajuda da técnica é importante dentro da representação, porque a procriação e o que a dela se acerca – a relação conjugal, as razões do querer procriar – nascem da vida privada, e, segundo os casais e médicos, não podem ser subsumidas à aprovação de qualquer autoridade exterior ao casal. A família nuclear como lugar de procriação social é sancionada, e a retórica da benevolência, unida à carência de

368

avaliação crítica, dá à linguagem um valor material estruturado como expressão das prioridades e da consciência daqueles que as inventam e as utilizam. Se as técnicas são oferecidas, o recurso às técnicas é então uma escolha mediada pelo médico que as acessa. Porém a ação realizada com as NTRc pode assumir características de assistência ou de práticas reificadas, segundo suas condições e segundo o modo de ser do médico. Numa visão bem liberal, os médicos servem às mulheres ou se servem

de sua condição para

reforçar sua

perspectiva de tratá-las para se posicionar em situação de autoridade, gerando significativos impactos sobre

sua saúde,

autonomia e

condição de escolha. As NTRc, como

práticas médicas, comportam uma

ambiguidade ao não colocar o acento sobre a “alta tecnologia”; a tendência atual

consiste, entretanto, em associar

as NTRc ao

progresso e qualificá-las como interessantes. Elas se colocaram, em função

da separação que

representam em relação ao ideal da

procriação, como um ato mais humano do que técnico, e também na separação entre elas e as mulheres, que pode ser medida pela quantidade de intervenções e por seus objetivos sobre o corpo. Ao mesmo tempo em que são algo “penável” para as mulheres, essas técnicas permitem confirmar ou reiterar as ligações com os outros, acrescentando-lhes valor. Essas técnicas agem sobre o desejo de ter uma família, nesse particular, especialmente sobre o desejo dos homens, para quem ter uma família conta mais fortemente, e também são uma expectativa social, apresentadas como

369

um dado natural ou biológico, independentemente do contexto social. Nas

abordagens médicas o instinto biológico é tomado em sua

urgência para se reproduzir independente do social; ele é apresentado como

uma

explanação do desesperado desejo

do infértil para

procriar com sucesso. É o desespero biológico e instintivo da mulher que mediatiza em primeiro plano a intervenção sobre a natureza a ser saciada. Focar o desespero da mulher, particularmente no caso dos médicos, afeta a formação da opinião pública e o debate sobre as NTRc, permitindo a aprovação social, tal qual também estudado por Franklin (1990) nas representações populares inglesas. O sujeito dessas práticas, por um lado, é um sujeito político, livre e autônomo, portador de direitos; por outro, ele é portador de sua fabricação subjetiva por meio de múltiplos dispositivos disciplinares (FOUCAULT, 1990). Esse tema faz sentido somente a partir da teia de significados e relações sociais que o sustentam e que sustentam o contexto das biotecnologias, dos casamentos, das respostas construídas por cada um às questões familiares e sexuais. Além disso, a mulher se subjetiva sobre uma demanda: “quero ser mãe”, demanda que é representada como a essência do seu ser. Nesse caso, ser mãe lhe é inerente, inscrito em si como instinto e energia

vital capaz de

conduzi-la à ação. Isso

se

contrapõe

aos

estudos

contextualizados pela história e pela

sobre

maternidade

antropologia a partir de

370

diferentes sociedades que

apontam para uma relativização das

essências, marcando a construção cultural dessas escolhas. Conforme já se disse, os conceitos de natureza e cultura são as bases sobre as quais se constrói também um entendimento de gênero e sexo como categorias dicotomizadas, na medida em que gênero é uma construção que se dá a partir da cultura, e sexo permanece sendo atributo biológico. Constata-se que essa dicotomização se coloca nas falas sobre maternidade construídas a partir de um natureza como corpo

entendimento da

feminino essencializado no papel

da

reprodução biológica e em que a filiação é construída sobre bases igualmente sanguíneo-biológicas. A dicotomia não significa, contudo, separação radical em duas esferas positivas e negativas estanques. O que se percebe é que o entendimento de corpo reprodutivo normal e natural é o fértil. Isso estabelece uma continuidade de significados sociais, culturais e políticos que amparam a crença

na necessidade de

investimento tecnológico sobre as falhas da natureza, configurada para

os médicos e homens, em particular, como relação de

ajuda. Trabalha-se sobre um padrão conceitual universal de corpo fértil em contextos de corpos de homens e de mulheres que em relação não são férteis, e que também são diferentes entre

si,

estabelecendo, desse modo, a exigência de investimentos diferentes em se tratando de corpos diferentes.

371

Pressupondo a diferença dos corpos

para

os diferentes

tratamentos, eles são tomados como categorias estanques e essencializadas em função do seu papel reprodutivo. Esquece-se que os corpos estão em relação e foca- se o corpo feminino como o prioritariamente dependente de tratamento, ofuscando a condição relacional de gênero,

nascida

exatamente da constatação das

singularidades e diferenças nos tratamentos desiguais dispensados a homens e a mulheres. Desse modo, a categoria da diferença é construída sobre uma lógica essencialista de louvor à função social da maternidade, na medida em que não inclui outras opções para as mulheres em sua relação de mundo. A técnica entra

como prática que reforça

a inabilidade

biológica para a reprodução como uma condição de falta não apenas do corpo,

mas de toda a sociedade, que assim não cumpre sua

funcionalidade reprodutiva. A ciência e a tecnologia médica legitimam-se enquanto tecem uma linguagem de apagamento dos sujeitos,

expressa

no material utilizado. Seja, ele, material

puramente tecnológico, sintético ou material humano (partes

do

corpo das mulheres, como os óvulos, e partes do corpo dos homens, como os espermas), reunidos como peças de órgãos reprodutivos, e ao mesmo tempo elaboram uma linguagem social que fala de ajuda para fazer um filho. Apagam-se também, por um lado, outras

possibilidades

viáveis para o social, como a adoção, e também se desconsideram as diferenças dentro da diferença presentes no desejo e nas práticas

372

sociais, ou seja, os casais que não querem filhos ou os pais gays e mães lésbicas,

somadas à impossibilidade de outras

formas de

parentesco que ficam obscurecidas. Adicionam-se ao social, pressupostos e representações de infertilidade desenhadas sobre a ideia de que outras possibilidades não são naturais e que o biológico não pode ser esquecido. Além disso, a infertilidade é geralmente descrita como desespero e sofrimento, e o tratamento, como alegria e esperança. Mas, por outro lado, esse anteparo sobre o biológico permite a expansão das tecnologias, que, ao falarem sobre outra realidade, não teriam legitimidade social, apresentadose como

artificiais, passíveis

de mudar o genético, caras,

industrializadas e voltadas para o comércio. O desejo de ter uma família passa a não ser apenas mediado pelos níveis

mais

elementares do

desenvolvimento

tecnológico. É concretizado no interior de um exercício de poder insistente sobre o discurso de que o biológico urge e de que o desespero dos casais

precisa

ser sanado para

que cessem as

pressões sociais e sejam felizes. Essa insistência no biológico como forma de legitimização das relações com as tecnologias se constitui sobre

uma

falsa

realidade, não permitindo à sociedade ampliar novas concepções familiares e parentais senão aquelas da consanguinidade, focadas no casal reprodutivo. Esta é uma falsa realidade, se considerado o campo da biotecnologia, onde as consanguinidades já foram superadas pela intervenção tecnológica. Focar sobre o familiar biológico permite a ação das tecnologias sem a explicitação dos traumas e possíveis

373

mudanças genéticas/moleculares já no presente e no futuro das gerações. Outro dilema elementos:

se

a

é o da relação entre reprodução

é

a reprodução e seus

tomada

apenas

como

biológica/genética do casal, todos compartilham do que é conhecido; contudo, se ela introduz novos elementos de fora do casal (doação de

material de

terceiros, por

exemplo) ou

das sínteses

biotecnológicas, isso demanda novas conformações sociais. Para

Vandelac (1996), as descobertas que

permitem

congelar células- tronco, com a perspectiva de as transferir para outros animais, podem abolir as fronteiras da espécie humana e o que foi denominado de natureza humana. Segundo ela, a fecundação in vitro e a inseminação artificial, embora pensadas como práticas relativamente simples ou banais, são responsáveis por milhões de concepções humanas no planeta. Elas já começaram a alterar profundamente a reprodução da espécie humana, pois fazem passar da concepção por relação sexual aleatória com outro humano a uma reprodução programada, tecnicizada, distante da sexualidade,

seguidamente

(espermatozoides e óvulos)

reduzida ou a uma

ao

material

genético

função instrumental de

gravidez (mãe de aluguel ou mãe de gestação). Isso produz outras artificialidades e aberturas perigosas para a espécie humana e para as gerações futuras (LENOIR, 2001; ROUCH, 2000). Esse não é o único nível de mudança possível. A própria materialidade da natureza genética, concebida até aqui como um continuum do corpo, que passa de pai para filho/a ou da mãe para

374

filho/a, é rompida pela entrada de materiais genéticos externos ao casal. O material genético do casal é misturado ao material genético de outra pessoa. A natureza continua sendo humana, mas constituída por materiais vindos de vários corpos – há relatos do uso de espermatozoides de vários homens, no caso da FIV, como forma de potencializar o processo, e essa parece ser uma decisão mais médica do que do casal envolvido. Permite-se, nessas escolhas, que uma criança seja concebida por dois ou vários indivíduos do mesmo sexo masculino, sem explicitar a variedade de atores presentes no ato, e vários indivíduos do sexo feminino. Segundo Vandelac (1996), ao mesmo tempo que, do ponto de vista biológico, as crianças são marcadas por materiais genéticos vindos de corpos diferentes, do ponto de vista social, as crianças de dois seres humanos se encontram marcadas pela diferença de sexo. No caso da reprodução assistida com doador de gameta, se recolhido a milhões de quilômetros e com anos de diferença e estiver

congelado, ele pode

ser tratado, analisado, congelado,

selecionado, comprado e, em seguida,

carregado até o lugar do

seu uso. Considerado o anonimato do processo, pelo segredo sobre de quem é o gameta e de onde veio, inviabiliza-se qualquer possibilidade

de

contatos

futuros.

Esquecem-se mesmo

as

relações entre doador ou vendedor de esperma e óvulos. Como resultado, a metade dos traços

genealógicos da criança são

esquecidos. Então a injustiça é reforçada, segundo Vandelac, pelas metáforas médico-administrativas, que transformam os gametas em

375

medicamentos para

poder

conviver com as cesuras

do tecido

social. Isto não permitirá divulgar, no futuro, a origem genética da criança, embora pensemos que este é um assunto polêmico. Consideramos também que,

ao

introduzir várias

diferenças

corporais no mesmo processo da concepção, estamos interferindo radicalmente no modo como esse ovo ou zigoto foi constituído. As condições da emergência dessas situações corporificam novas possibilidades na materialidade dos corpos subjetivam novos sujeitos,

e igualmente

o que nos permite conhecer outras

racionalizações, marcadas e formadas por outras materialidades e outras práticas discursivas. Isto

faz também confusão

na categoria sexo, pois,

na

medida em que os cromossomos recebidos poderiam estar como numa sinfonia, dançando entre variantes do masculino e do feminino e de suas composições genéticas e hormonais, eles podem comportar eventualmente maiores elementos discordantes (KRAUS, 2000). Muitos poderiam alegar que essa afirmação é loucura, porque mesmo que haja vários espermatozoides, só um fecunda o óvulo. O caso é que então seria

necessário reconhecer que, mesmo

misturando, só o mais ágil poderia atingir a superfície do óvulo, onde

seria apanhado por uma

1999). Desse modo,

armadilha enzimática (MARTIN,

dar-se-ia ainda ao óvulo a passividade de

esperar ser atingido pelo espermatozoide. Ou então não se trata nem

de rapidez, nem

de mobilidade, critérios utilizados pela

medicina para classificar os espermatozoides, e nem de capacidade de penetração, concepção já criticada, segundo a autora

citada.

376

Trata-se de relações entre trocas químicas, relações de trocas mútuas. Nessas trocas químicas, todos estariam interagindo com todos

(poderíamos considerar, inclusive, as trocas entre os

espermatozoides).

As

substâncias

trocadas

ou

simplesmente

presentes falam de outra complexidade e eventualmente de outros “resultados”. Parece que esse espermatozoide apanhado pelo óvulo não é exatamente igual àquele depositado na vagina via ato sexual normal. Também não seria o mesmo se fosse de um único doador, porque, de todo modo, teria estado em contato com outros meios de cultura que possivelmente interagiram com ele. Isso não vai fazer nascer um “Frankenstein”, mas insere um caráter manipulador nessa “natureza” (=gametas). Se isto se der, essa base material geneticamente humana estará elementos vindos

mais

ou

menos

carregada de

de outros meios químicos laboratoriais que não

aqueles gerados pelo corpo humano. Anatureza transforma-se em metáfora da técnica e a técnica (meios de cultura, enzimas) transforma-se em natureza. Segundo Strathern (1992), desse modo

os conceitos de

natural e artificial não se sobrepõem ou interpõem, mas um aparece para alcançar, ou rodear, incluir, cercar, encerrar o outro. A distinção entre máquina e corpo por muito tempo sustentou a diferença entre natural e artificial, segundo a autora, mas a tecnologia não sustenta a mesma distinção. O mesmo ocorre com a cultura, que, para ela, consiste na

forma

analogias entre

através

da

qual

as pessoas estabelecem

os diferentes domínios de mundo. Seja por

377

conexões ou por contrastes, um conjunto de ideais sempre pode ser desenvolvido para representar outros. Para ela, o corpo, mesmo vivo, pode ser conceitualizado como máquina. E a máquina, mesmo marcada pelo trabalho, pode ser conceitualizada como corpo. No século 20, corpo e máquina têm promovido metáforas paralelas para o conceito de cultura. Tudo o que temos é resultado da atividade humana sobre os fatos – há uma tecnologização da natureza. A natureza se torna um departamento da atividade humana e descobre- se que ele nunca foi autônomo. O mundo “natural”, incluindo os fatores da biologia humana, não é no final do século 20 dado como garantido, mesmo que a cultura seja redefinida. Suas características distintivas como atividade humana, trabalhando contra o que é dado como natural, parecem pertencer ao passado. Nesse sentido, segundo Strathern, nada está mais perto da erosão do que o conceito de natureza. A tecnologia aparece não como um serviço

para

trabalho,

mas como a serviço

corpos

a

produção industrial,

fazendo

máquinas de

da reprodução humana, fazendo

viverem. No passado o ser

humano era

considerado

naturalmente fértil, e os atos de procriação eram normalmente considerados naturais. Hoje, se a natureza não pode dar, pode-se “ajudá-la”, como dizem os casais e médicos; consequentemente, doação

de espermatozoides ou óvulos,

estimulação ovariana,

fecundação in vitro, são formas de remediar a natureza, fazendo o corpo. A FIV ajuda a natureza; então, ela não é um domínio autônomo da atividade humana, ela é responsável pelos próprios

378

fundamentos do processo natural. É o desejo humano como escolha sobre o fazer ou não fazer que dará as inúmeras possibilidades ao presente e ao futuro. A natureza auxiliada/assistida compromete a definição de natureza como condição de vida em que ocorre

a ausência de

intervenção. Pergunta- se o que de fato é dado pela natureza e o que é circunscrito pela capacidade tecnológica Esses por

domínios

foram

analogias e eles

corpo

e

máquina.

formalmente conectados, contrastados

provêm diferentes

aspectos da natureza

humana. Esse metafórico status aparece agora como exposto à invasão (STRATHERN, 1992). Como entender gênero se essa base material se apresenta tão fluida (vários homens doaram seus gametas

para fazer um

bebê)? O ponto de partida para gênero não é mais o da natureza essencializada no biológico fixo e imutável. Deverá ser o da natureza fluida, que se constrói e reconstrói em cada movimento do próprio processo,

de modo

que se transforma em níveis variados com

intercâmbios e interstícios. O ponto de partida para gênero são os poderes, e as hierarquias que se constituem na tentativa de expressar a potencialidade masculina diante da inatividade do óvulo, que sempre é penetrado ou perfurado, mesmo se a própria biologia já apresentou outras concepções sobre esse processo, segundo Martin (1999). Desconstruir sinergias,

as trocas

químico entre

esse

entendimento

compreendendo

e as transformações do processo

óvulos e espermatozoides poderia ser

as

físico e útil

para

379

recolocar as práticas em

reprodução assistida numa linguagem

menos de espelho e mais de sinergias mútuas. Se os entendimentos sobre o biológico, o sanguíneo, o genético fossem mais fluidos poder-se-ia quiçá usar o que já existe sobre outras mulheres, ou sobre outros embriões, ou sobre o adotar crianças, e desfocar os apelos ao biológico e ao genético como formas comuns de explicar o processo

no interior de um contexto que já modificou os

pressupostos. Não seria talvez o caso de considerar o que Dhavernas (2002) diz sobre as dificuldades que se tem

de romper com antigas

concepções e aproveitar- se das “novas” realidades para eliminar de uma vez por todas as noções de continuidade? A perenidade existente dentro dos modelos espontâneos é sentida como necessária, e sua evidência no que se refere à maternidade não é desprezível no pensamento patriarcal, lugar da fala em que o feminino é associado à desordem e ao caos e o maternal representa a permanência e a imutabilidade. Ambos coexistem, por sua vez, dentro da essência atribuída às mulheres, e à medida que nos posicionamos contra outras possibilidades, poderíamos, segundo ela, estar mantendo todas as dicotomias, com suas essencializações sobre o corpo. As

características ocidentais

do

masculino não

o

desvalorizam. O status social e simbólico da paternidade se acorda ao do homem, na medida em que ele é atividade e vontade. Desse modo, a dicotomia que é agredida nos avanços da medicina em matéria de procriação é aquela da perda da identidade humana e do seu sentido de continuidade, associada à dicotomia sexual e à do

380

corpo feminino. Colocam-se em

evidência ideias

como a de

desumanização, de perda da identidade humana, e age-se como se

as modificações parciais desses processos de reprodução em

proveito da técnica estivessem colocando em jogo o núcleo constitutivo do humano. Ao criticar esses processos, talvez o que se queira, sob forma de busca de proteção e de evitação dos riscos, seja manter as estabilizações e o senso de continuidade. Segundo Vandelac (1996), recorrer a Lacan poderia permitir entender a especificidade do humano sob os efeitos da linguagem como

uma

via que elimina todos

os biologismos, sem que a

materialidade corporal seja considerada um impasse. Assim talvez se poderia sair da angústia da perda do biológico e do sentimento de identidade humana ameaçada. O biológico, ao mesmo tempo em que está sendo minado pelas biotecnologias, está também sendo invocado pelos casais, e assim

são mantidas as constantes sociais

(NICHOLSON,

2000). Isso parece ser apenas uma necessidade produzida pelas relações sociais e familiares de continuar a olhar e a falar sobre algo de modo funcional, desconsiderando o envolvimento de muitos outros fatores, e eles poderiam talvez incluir exatamente o contrário, as desessencializações, se conduzidos sob outra perspectiva. Então

poder-se-ia concordar com

Stolcke

(1998):

a

dissociação do natural, e portanto universal e imutável, das ordens simbólicas arraigadas na

cultura, por

isso

variáveis, permitiu

conhecer a enorme diversidade histórico-cultural

dos

sistemas

simbólicos de gênero. Porém, ao prestar atenção privilegiada às

381

construções

simbólicas

de

gênero,

colocou-se

a pergunta

fundamental acerca de quais as relações entre elas e as diferenças de sexo. A um nível puramente biológico, as diferenças de sexo são inevitáveis e indissociáveis de uma demarcação discursiva. Porém, ao ser uma dimensão da vida em sociedade, não há sentido em pensá-las

à

margem

dessa sociedade, pois elas adquirem

significados culturais que podem transformar- se em potentes causas de dominação. O entendimento da concepção como natureza que é ajudada pode, ao mesmo tempo que recicla continuidades essencializadas no corpo

feminino, permitir a relativização como escolha

(STRATHERN, 1991), na medida em que ganha muitos outros significados, a depender da cultura. Para

Delaisi De Parseval e

Janaud (1981), a história humana é aquela em que a concepção sobre a natureza se encontra dentro da ordem simbólica e da linguagem. É assim que uma criança não é filha de sua mãe porque ela saiu de seu ventre, mas porque a sociedade assim o faz. A sociedade faz de sua geratriz a sua

mãe.

É

a sociedade que

o faz, como

supremacia da cultura sobre a natureza, o que, para ela, é ainda mais demonstrativo se tomado o caso dos doadores de esperma. Nem a mãe nem o pai têm uma existência puramente institucional ou puramente natural: a função biológica da mãe mascara o seu papel institucional. Acontece o inverso para o pai: o papel institucional do pai mascara o seu papel procriador. E é sempre arbitrário querer

382

reduzir a maternidade ao biológico e descartar a função do pai exclusivamente para o simbólico. O conhecimento biológico e médico é sempre utilizado por

uma cultura em função

dos objetivos ideológicos e

inconscientes que estão envolvidos. É assim que nossa sociedade se serviu dos conhecimentos para fazer da fabricação de uma criança um fazer exclusivamente maternal e feminino, excluindo o pai, presente noutras culturas. Segundo Delaisi De Parseval (1998), para certas populações é a semente paternal que constitui o embrião. São necessárias várias cópulas para permitir o crescimento da criança, fato que às vezes leva ao abortamento espontâneo. A mãe, dentro dessa teoria, não é mais do que um receptáculo. Ela deve receber as relações do pai, ou dos vários pais, para não correr o risco de deixar a criança sem alimento, por isso se fala de vários genitores. Entre os índios Mohave, dois pais se encontram em relação antagônica: um homem casado que fecunda sua esposa, que mantém relações com

outro

homem. Existe,

nesse

caso, um

conflito de paternidades que às vezes é violento, embora os homens Mohave acreditem ser o pai só o homem que habita mais tempo junto de uma mulher grávida (durante seis meses lunares). Aquele que leva a maior quantidade de esperma e o que tem os espermas mais fortes, por isso só ele tem o direito de reclamar paternidade. Ainda

a identidade do pai da criança que irá nascer

não é

determinada pelo coito fecundante, pois a identidade do feto pode ser ela mesma modificada radicalmente se a mulher tem relações regulares, durante os primeiros meses de gravidez,

com outro

383

homem que não aquele que a fecundou. Os Mohave comparam o fornecedor de esperma a um oleiro que molda a argila. Quanto mais ele coloca esperma, mais forma

o embrião, ele o modela

verdadeiramente à sua semelhança. E este será verdadeiramente reconhecido como pai, porque ele nutre a criança. Não

se trata,

portanto, segundo Vandelac (1996),

unicamente das mudanças biológicas, mas

de mutações de

sentido e de finalidade do gerar, da maternidade e da paternidade. Assim, para além da banalização midiática, pela qual os gametas são cercados,

dados,

vendidos ou trocados em seu potencial

reprodutor, isso implica todo um tecido de relações com o vetor de sentido que é a filiação, que não se assemelha ao dom de sangue ou de órgãos. Nesse caso, não cabem somente as paródias e o voluntarismo da generosidade, às vezes pervertida e habitada por fantasmas e pelo poder. Reduzir a gestação

de

um

filho

a

substratos biológicos, e a vida humana potencial a um dom de material, é ignorar a frequência dos enganos psicológicos ligados à filiação e/ou ao não dito. Não apenas para os adultos misturados nesse comércio, mas, sobretudo, para os descendentes, nos quais os dramas psíquicos começam a emergir no momento em que eles estão em idade de procriar. Da mesma forma, há necessidade de considerar os aspectos que dizem respeito à fertilidade humana, não apenas como um fenômeno biológico, mas também como o resultado de um conjunto de elementos que se apoiam no corpo real, que têm sua origem ou implicam registros diferenciados e fazem parte de um conjunto de

384

significantes inconscientes, de acontecimentos simbólicos, de elementos reais ou imaginários que caracterizam a subjetividade. Chatel (1998), que observou as mulheres em tratamento no meio hospitalar em Paris, apresenta a mulher como aquela que frequentemente realiza uma conexão inconsciente com seu pai. Para o homem, o desejo de filhos é mais seguidamente o desejo de encarnar o símbolo do dom

criador, embora seja

necessário

contemplar as particularidades de cada um. Para a mulher, um sintoma surge como réplica de uma palavra ou de um ato médico, mas ele esconde um outro e ainda um outro. Cada sintoma será como uma tentativa, para a mulher, de satisfazer um sonho que ela supõe ser também o do médico. E a maquinaria médica

os trata

do seu modo,

num diálogo

de surdos,

desconsiderando os inúmeros fantasmas que o homem, a mulher e os seus

familiares constroem além

do

contexto da

gravidez,

a

acolhida do bebê ao nascer e a acolhida subjetiva do embrião no útero. Igualmente os estudos a Faure-Pragier (2000) apontam para outras razões subjetivas presentes na “infertilidade corporal”, razões de ordem não orgânica que podem resultar em infecundidade. A medicina da procriação, segundo Chatel (1998), reduz a divisão dos sexos a uma questão de realidade de substâncias e de órgãos. Essa ciência se esforça para ignorar que a identidade sexual é um agenciamento particular que se edifica no discurso de filiação. Se a procriação é pensada em termos de manipulação de

385

substâncias, o desejo é simplesmente apagado dentro dessa lógica, ele é excluído da aventura procriativa. Em termos de vidas individuais, escolhas são feitas, pessoas constroem decisões

sobre

a procriação no contexto de uma

expansão de possibilidades. As arenas de decisão têm proliferado. Há

novos

domínios e novos

atores sociais envolvidos, novas

alianças da medicina com outros atores e leis, para não falhar no mercado. Assim, novos interesses são investidos nos caminhos das pessoas que constroem parentesco. O fato de que as tecnologias estejam focadas sobre o parentesco não quer dizer que estejam focadas sobre valores tradicionais. Médicos falam do desejo de filhos das mulheres, as mulheres falam do desejo de maternidade, os homens querem o filho do próprio sangue

– são falas carregadas de ambiguidades e

contradições. Ao mesmo tempo, são aproximações desesperadas de inclusão nas possibilidades tecnológicas e de garantias para o social de que o desejo é legítimo, de que eles buscam criar uma família, restaurar a harmonia conjugal e sexual, de que terão um filho genético, o que também assegura a diminuição de riscos para as relações societais futuras. Crê-se não apenas que essa insistência sobre o biológico deve-se a uma história passada relativa à maternidade e aos laços consanguíneos, mas também que se recoloca

no campo

das

tecnologias genéticas e moleculares, particularmente, nesse caso, com

tanta

insistência na reprodução assistida. Isso

porque, à

medida que o que foi tomado até agora como fato natural, mesmo

386

que marcado pela desigualdade de gênero, é invadido por essas novas possibilidades. O ser humano antecipa suas certezas de que está

perdendo dimensões que eram importantes para ele e quer

assegurar um nível mínimo de identificação pessoal e social: o biológico, nível sobre o qual sabe falar porque o conhece. Os outros níveis, ligados aos processos genéticos e às tecnologias moleculares, são hierarquicamente dominantes e são prioritários para os eventos

da fertilização, mas marginalizam gradativamente os

corpos dos envolvidos e carecem ainda da construção de novos sentidos capazes de inserir novos valores sobre a família e o fazer filhos. Se os corpos não contam, será difícil para qualquer um que se envolva com essas tecnologias elaborar uma nova dimensão de participação e fazer sentidos novos que não aqueles já conhecidos. Desse modo, pode-se separar

o corpo

em diferentes partes

desconectadas nos procedimentos de fertilização in igualmente pode-se separar

vitro, e

a sexualidade da reprodução, mas

ainda é difícil separar a busca por filhos das ideias que garantem sua prática tecnológica, como

o

reforço

à

família

e

à

maternidade essencializada no corpo da mulher. As narrativas da reprodução assistida como ciência natural a serviço de

uma

família

natural

abrem

reconhecidas

e

tradicionais convenções. Nelas estão imbricadas as instituições e a organização social como

sistemas políticos e econômicos,

influenciando normativamente e tentando limitar e conter as possibilidades metafóricas individuais dos símbolos culturalmente

387

disponíveis que evocam

representações simbólicas enraizadas

em nossa cultura ou hibridizadas nas expectativas vindouras. Segundo Franklin (1995), uma expansão do parentesco é então efetuada como um milagre alcançado pela tecnologia, derivado

de

um número de

contribuições vindas

de

partes

previamente envolvidas na concepção de novas pessoas. Daí o Estado, no caso da Inglaterra, ter um “parental” interesse na origem de todos

os novos

indivíduos nascidos através do uso das

técnicas de reprodução assistida; a clínica torna-se o site dos atos procriativos, e os clínicos, os atores do fazer concepção, mesmo que os significados de maternidade, paternidade e família variem de acordo

com a cultura e com o contexto de diferentes períodos

históricos. Uma

mulher que

entra

num

programa de reprodução

assistida entra na esperança de vir a ser mãe. Uma das condições de implementação da reprodução assistida é a de que o termo maternidade seja usualmente ampliado para designar uma mulher cuja relação primária com a criança é biológica. Assim sendo, segundo Crowe (1990), a FIV é uma tecnologia para a social condição da ausência de crianças, mais do que para a condição biológica

da

maternidade. Com

a FIV

a questão do

social

significado da maternidade é reforçada. Esse reforço pode marcar uma maior dificuldade de vislumbrar ou de realizar potenciais para mudar o lugar das relações com as crianças e com seus parentes ou a responsabilidade sobre os seus cuidados.

388

Essa percepção sobre as mulheres e a falta de crianças é mais visível em um

certo

contexto da familiar nuclear. A FIV

corretamente recomendada para

mulheres casadas

é

– a família

nuclear é o lócus socialmente sancionado e por meio dessa técnica é reforçada. A reprodução assistida reforça

a conceitualização da

ausência da criança em termos de uma ausência biológica para a reprodução. Mas, além desse aspecto associado às necessidades do indivíduo, a sociedade poderia forjar outras apontadas

por

Crowee

(1990),

para

razões, como as a

reprodução.

Em

umacircunstância em que haveria uma ligação da mulher com a responsabilidade do cuidado na comunidade, a mulher poderia se sentir construindo outra norma e subjetividade social, havendo uma criança não restritiva à sua realização, mas à de todos. A

FIV

é

endereçada para

ausência de crianças, além biológica

inabilidade.

do

a

construção social

específico

da

parâmetro da

A situação da infertilidade e fertilidade

exclusivamente com a discussão da relação biológica exemplifica valores dominantes ao redor da família e da sexualidade nuclear. O casamento e a social estrutura da família nuclear estão baseados sobre a ideologia heterossexista, que pressupõe relações entre sexualidade e reprodução na progressão linear da vida, que exige casamento e depois

filhos, e na qual sua ausência implica

infelicidade. Isso, no entanto, não se dá em desconsideração de uma emergente narrativa que descreve e privilegia o genético. A partir do

389

momento em que a vida é objeto de um regramento técnico, ela não pode simplesmente ser esse sagrado que merece respeito absoluto por ser suscetível de racionalização, não menos arbitrária. Por outro

lado, essas mudanças técnicas no campo

inovações tecnológicas “natureza”,

reprodutivas

fragmentaram

das a

provocando uma invasão no corpo e em seus processos

fisiológicos. Desse modo, a destradicionalização e os efeitos da tecnologia misturam-se intimamente (GIDDENS, 1991), à medida que essa natureza é refeita. Ao mesmo tempo a dessacralização do cosmo nos séculos modernos está acompanhada de uma

rápida

desagregação das

estruturas mentais, mesmo que, do ponto de vista da análise e da cultura/social, encontremos elementos de um universo mágico e de um pensamento analógico que nos reportam para um mundo onde a terra-mãe, conforme desenvolvidos por Gélis (1984) era a origem e o fim de todas as coisas. Não se pode manter no presente contextualizado nas explicações tecnocientíficas as explicações e percepções sobre a infertilidade presas à estigmatização, que no limite é ainda sacralizadora da complexidade das relações entre o homem e a mãe primitiva, entre o corpo do homem e o corpo da terra, em relação de correspondências. Desse modo, formar

o conceito casal infértil é também

introduzir instrumentos técnicos adaptados a uma nova natureza, a do corpo masculino, com suas patologias reprodutivas, ainda que só apareçam no híbrido “casal infértil”.

390

Todo grupo humano e toda sociedade têm seu projeto, suas regras, seus interditos sexuais, seus costumes, e eles determinam a maneira de transmitir a vida. Considerando que nada fecundidade

de

uma

população

pode

ser

sobre

a

apreendido

independentemente de sua cultura é que fazemos estas observações. Num contexto em que a tecnologia se propõe a solucionar todos os problemas, continuar estigmatizando é aceitar o limite do processo

de dessacralização. Reconhecer

a

interferência

tecnológica sobre a natureza, que neste caso é representada como aquela que precisa de ajuda, é entrar nas promessas de felicidade oferecidas pela tecnologia. Não se trata, de maneira geral, de um domínio da natureza pela cultura tecnológica, mas de lhe oferecer um auxílio para que ela revele sua potencialidade. [...] Eu diria que reprodução humana assistida é a forma brilhante que o ser humano encontrou pra reparar um problema acarretado pela natureza ou não pela natureza. Nem tudo que a natureza crioué perfeito, às vezes vem com defeito e aí o ser humano, na sua genialidade conseguiu desenvolver métodos pra deixar o ser humano mais feliz (entrevista 4, Antony, médico).

No desenvolver de uma sociedade que politizou, embora não de uma forma ampla e irrestrita, o “lugar do privado”, onde os movimentos

por

direitos

sexuais

e

reprodutivos,

as

lutas

antidiscriminatórias trouxeram à luz as formas de opressão,

é

necessário inovar. Como manter as responsabilidades e as culpabilizações a respeito da infertilidade centradas nos órgãos genitais femininos e tratar o “fenômeno” como próprio apenas da mulher? Assumir o problema desse modo, medicina, é dar

continuidade

para o campo da

às inúmeras práticas médico-

391

científicas que

mantiveram a ignorância sobre

a realidade dos

fenômenos ao longo do tempo. É a negação da própria ideia de progresso e avanço tecnológico, tão cara à modernização pósrevolução industrial.

A

continuidade da crença

tecnológica

implica também sua relação com as concepções de mundo e a cultura que a sustenta. Como se podem gerar tecnologias genéticas e moleculares que pressupõem uma

transformação da própria natureza e

continuar estigmatizando a infertilidade como se ela fosse castigo divino, figueira infértil, mau olhado, elementos comuns a outras épocas

de nosso

presentes ainda

passado, elementos de uma cosmologia rural em nosso imaginário popular? Pensa-se que a

categoria casal infértil permite conectar sentidos do passado com as novas necessidades da ciência e da demanda social e permite passar de uma desigualdade para uma aparente igualdade.

392

CONSIDERAÇÕES FINAIS Os estudos de gênero e as discussões vindas do campo ético/bioético foram fundamentais para compor essas análises, embora os capítulos relativos à bioética que se encontravam na tese não sejam apresentados aqui, devido à extensão temática que eles envolvem. Porém, essas reflexões permitiram consolidar esse livro desses

e, por isso, vale a pena aspectos

como

reflexão

fazer menção à importância e indagação. As teorias de

gênero também possibilitaram analisar muitas articulações entre as relações

estabelecidas pelos

instrumentos

tecnológicos e

laboratoriais no desenvolvimento, produção e exploração dos fatos sociocientíficos, e nos aspectos

referenciadores da maternidade,

paternidade e da filiação, presentes no discurso de casais e médicos. A constituição de um sujeito híbrido, o casal infértil, pela biomedicina, revelou-se fundamental à compreensão e à análise de como

a mulher continua sendo o sujeito privilegiado da

medicalização, ao mesmo tempo em que se mostrou fértil para compreender quando, e em que dinâmicas, ocorre a entrada do homem no campo da saúde reprodutiva e como se desenha um novo modelo de participação masculina. Esse casal infértil, modelo

que configura a entrada do

homem no campo da reprodução assistida, também engloba um projeto de conjugalidade que se expressa na busca pelo filho do próprio sangue,

tanto

para o homem, quanto para

a mulher.

393

Embora, para a mulher, conforme reiterado várias vezes, pareça contar em demasia a experiência com a gravidez, enquanto para o homem trata-se muito mais, do desejo de ter um filho como modo de ultrapassar a si mesmo, e de constituir uma família, aspectos que levam ambos à importantes processos de subjetivação e de concomitantes naturalizações. O esforço aqui empreendido foi no sentido de atender à necessidade de refletir sobre as implicações das novas tecnologias conceptivas, e no intuito de

mostrar como

médicos, cientistas, casais, mulheres, ao se depararem com a busca de fazerem filhos, adentram, ao mesmo tempo, em um leque de novas possibilidades e, no caso do casal, também em um funil diante da imperativa necessidade de sanar o diagnóstico sobre a infertilidade por meio de um filho, portanto, para além do desejo dos envolvidos, em geral médicos e mulheres – mais do que os casais porque a investigação mostrou que o homem entra bem mais tarde nesse processo. Para além da premência de se olhar o sofrimento da busca, que se considera legítima, fez-se necessário compreender de que modo se desenvolve tamanha necessidade e como

as

práticas de cura também reforçam sofrimentos, porque pouco ou nada propiciam fora das escolhas medicalizadas e da oferta da tecnologia, que geram uma série de expectativas e, de fato, novas possibilidades. Ao entrar nesse campo, o homem expõe publicamente seu corpo (coletando espermatozoide em laboratório para fazer um filho), escolhe participar do tratamento e desloca a paternidade da ideia

394

sobre o cuidado dos filhos para a escolha consciente de fazê-lo em laboratório, pagando muito caro por isso. Esse fato traz indicativos da necessidade de ampliar os estudos no campo da paternidade para perceber o que significam essas subjetivações e essas escolhas quando em situação de laboratório e, especialmente, se for o caso de paternidades partilhadas. Situação, onde, impreterivelmente, deverse-ia estar disposto a pelo menos colocar duas perguntas: qual o estatuto do pai biológico, em geral o marido da mãe? E qual o estatuto do doador genético, se fora da relação do casal, ou se inserido na paternidade, como resolveriam

os conflitos

o doador reconhecido? Como se

de paternidades,

se o anonimato

desaparecesse dessa relação e se fosse colocado em foco de fato o direito da criança conhecer sua origem

genética? Esses arranjos

constituídos sobre sintomas de falta, ora biológica, ora emocional ou de direito, poderiam estar

cindindo várias

representações de

paternidade, pensadas a partir do biológico quando em relação com a mãe e com a presença do doador genético. De outro lado, a categoria biomédica casal infértil permite que se fale sobre a infertilidade masculina e se busque tratamento para ela. Supera- se, desse modo, a ausência do homem no campo reprodutivo e ao mesmo tempo

dilui-se a infertilidade como

problema de mulher. Considere-se que ocorre uma transmutação, talvez

ainda

pouco

explicitada, já que,

uma

vez focada a

infertilidade no casal, desaparecem em teoria os indivíduos homens e mulheres. Eles, individualmente, não poderão ser classificados como inférteis, pois é possível que só o sejam nessa relação,

395

podendo não o ser com outra pessoa. Também nesse aspecto consolida-se a conjugalidade da busca, ou seja, trata-se do que se considera um problema para o casal. É necessário fazer o pai e a mãe para que esse casal se torne família, embora o processo de reprodução in vitro seja em grande medida justificado, não por essas razões, mas por causa do entendimento de que se trata do desejo, do instinto e da paixão feminina, e o gestar

e o amamentar sejam apresentados como

marcadores da experiência existencial desigual entre gêneros. Justificar as NTRc pelo desejo de um filho reforça a busca

de identidade feminina. O modo como os casais e os

médicos buscam fazer o filho do próprio sangue está carregado de significações ancoradas na maternidade biológica, expressa na barriga que cresce e no ato de amamentar. Na contraposição entre o útero e o espermatozoide, a mulher é percebida como útero, órgão que a insere na possibilidade reprodutiva; no entanto, o homem não é identificado com o espermatozoide, que é considerado apenas um elemento que se soma e potencializa o processo. O homem assume, sem dúvida, uma nova postura ao ser tratado, porém, concebe tal fato como um apoio para a mulher. Essa participação masculina permite a construção de um projeto de conjugalidade que se aparenta como igualitário. Do ponto de vista da saúde reprodutiva, a entrada do homem nesse campo mostra que as relações conjugais ligadas ao tratamento da ausência de filhos são agora complexificadas. Por um lado,

o tratamento permanece centrado no corpo feminino, em

396

conivência com todas as formas tradicionais de tratar infertilidade. Desse

ponto

de vista,

tradicionalmente exercida sobre

a medicina reproduz a coerção as mulheres, ferindo em grande

parte sua liberdade e autonomia. Por outro lado, o reconhecimento de que grande parte dos problemas de infertilidade se devem a fatores

masculinos permite dirimir a carga

histórica da culpa

feminina quanto à ausência de filhos. A inclusão do homem na questão da saúde

reprodutiva recicla,

de certo

modo, o

conhecimento médico, marcado tradicionalmente pela intervenção sobre o corpo feminino, e obriga a medicina a desenvolver novos aparatos técnico- científicos, médicos e laboratoriais. A ICSI é um exemplo de desenvolvimento tecnológico concebido com vistas a possibilitar o nascimento de um filho para o homem com problemas de fertilidade, na medida em que existem os recursos para a concretização do projeto do casal – ter um filho –, permitindo-se a solução também para o dilema de sua ausência, principalmente quando o caso da infertilidade é masculino, problema antes sem solução. Soluções como o aceite de óvulo doado também podem ser desencadeadas, pois o que importa para o homem em relação à experiência da mulher é o vínculo consanguíneo entre a criança e a mãe, expresso na gravidez, na barriga que cresce. Outras possibilidades de realização do desejo de ter um filho, como a adoção, são recursos aos quais se recorre uma vez esgotados todos os outros mas o fato é que mesmo se quase todos os procedimentos sejam desenvolvidos no corpo feminino, esse aspecto é desfocado para o projeto do casal, operação que, ao mesmo tempo em que

397

desmistifica os estigmas da infertilidade feminina, compatibiliza as novas exigências do contexto da complexidade das tecnologias. A tecnologia é mediada assim por sujeitos concretos, no híbrido casal. A entrada do homem no processo faz dele um sujeito que escolhe se reproduzir e que investe tempo, dinheiro e energia na publicização da busca de solução para uma dificuldade. Um aspecto que sempre é destacado na fala dos homens em relação ao uso dessas tecnologias é que elas permitem a participação masculina no processo de busca por um filho. O homem se considera mais consciente ao fazer um filho via NTRc, pela participação planejada e desejada. Em suas falas, faz sempre a comparação entre ter um filho por vias naturais e buscar através de métodos tecnológicos. Na busca através de inseminação, fertilização in vitro ou ICSI, ele se sente participante, pois é consultado sobre seu desejo. Tanto o poder de fazer um filho quanto a responsabilidade pelo processo passam a ser de ambos: homem e mulher. No nascimento de um filho via processo natural, ele considera que a responsabilidade é praticamente toda da mulher, mas que através das NTRc ele tem que se envolver na decisão. Observa-se que

o modelo

de masculinidade tradicional,

centrado em valores como potência, força física, dureza

nos

sentimentos, ausência de emoções e racionalidade lógica, volatizase nos esforços empreendidos por esses homens na busca pelo filho. Embora misturada e contraditória, há uma nova forma de ser, que é visualizada no medo com que se colocam em relação ao processo consciente de fazer um filho via tecnologia. Da mesma forma,

398

esse medo se expressa na relação com o médico, visto como pai simbólico, e o modo como permitem que ele faça os procedimentos pode

também se constituir em uma invasão

à privacidade e à

intimidade do casal. Talvez esses homens invistam em presença física junto à mulher e em acompanhamento emocional no ato de fazer seu filho biológico sem sexo para garantir seu lugar no projeto de paternidade. Nesse caso, não se trata apenas de mudanças nas práticas cotidianas ligadas ao cuidado para com os filhos, exploradas em outros estudos. Os novos empenhos ocorrem também no modo como

consultam urologistas, fazem exames

clínicos, usam

medicação, acompanham os sucessos e os insucessos do tratamento e no modo como se envolvem com a gravidez. Particularmente, ressalta-se o fato de que se apresentam como apoio e âncora para suas companheiras. Nesse jeito de falar de si, estão reforçados padrões de força emocional e equilíbrio, que, na opinião deles, faltam em suas esposas, entendidas como as que vivem momentos de grande fragilidade e até mesmo de desequilíbrios emocionais. Essa forma

de ser fala de um homem inserido em

um

contexto

tecnológico no qual ele precisa garantir sua participação física com seu material genético. Mas fala também dos fantasmas de troca do material e das relações de sua esposa com o médico. Ele precisa

garantir seu lugar

social no casamento e seu lugar

emocional na relação. Ao mesmo tempo, coexistem as resistências masculinas e a responsabilidade centrada na mulher.

399

Configuram-se, portanto, novas relações de gênero,

na

medida em que não se pode mais falar de ausência masculina em um consultório médico quando se trata de reprodução assistida. Levar em conta

o papel das técnicas e tecnologias de

laboratório no desenvolvimento, produção e exploração dos fatos sociocientíficos e reconhecer que os procedimentos necessários à concepção foram deslocados para a clínica ou laboratório demanda outras formas de controle que não apenas as normas e os valores relativos ao corpo médico ou ao foro das decisões individuais. Esses procedimentos, além de terem um ancoramento técnico- científico, exigem da parte dos envolvidos atitudes de confiança, de afeto, de manutenção das expectativas e de perseverança. Sem a intervenção desses aspectos,

que supõem

envolvimentos afetivos e emocionais além de recursos econômicos, o campo biomédico não encontraria caminho para a sua ação. Assim, a confiança na técnica e no médico funciona como elemento propulsor da realização do tratamento. A persistência do casal é considerada pelos médicos como elemento fundamental ao sucesso. A expressão “qualidade do material” e a preocupação com a existência ou não de folículos marcam as expectativas quanto a resultados

positivos

ou

negativos.

Ao mesmo

tempo

que

caracterizam os riscos de insucesso, constroem decisões sobre como fazer o maior número possível de embriões. Entretanto, esses elementos, em relação a confiança médica que são reforçados durante o tratamento, tendem a ser esquecidos depois. “Depois, eu acho que esta figura some”; “Depois a gente

400

esquece”; “A gente esquece dele”; “É evidente que a gente não vai esquecer que o filho foi gerado daquela forma”. Ao contrário, os médicos, se veem como algo permanente, tal como se pôde observar em algumas clínicas em que eles faziam questão de exibir as fotos dos bebês que ajudaram a nascer, situação que também foi observada nas clínicas francesas. Parece haver um compromisso tácito, para o casal, o de dar uma foto do bebê ao médico, sobretudo porque muitas vezes não

são os mesmos

da fecundação que

acompanham o pré-natal. Será que esse ato de pedir aos pais uma foto do bebê quando ele nascer não seria um modo de continuarem presentes no processo? Além de publicizar, através das fotos dos bebês ali expostas, para quem procura tratamento na clínica, que eles são bons nisso, essas fotos não estariam mostrando que o médico tem um papel de pai simbólico? O movimento do médico é um movimento contrário ao do casal, que quer esquecer o modo como o filho foi concebido, que sente terminar seu compromisso com o médico no dia em que a criança nasce. Segundo os casais entrevistados, o último contato é incluí-lo em suas ligações telefônicas para comunicar o nascimento e enviar uma foto. Parece haver, inclusive, um esforço da parte dos casais para

exorcizar a figura

do médico

como possível pai,

situação que não está presente somente no imaginário dos homens do casal, mas que é reforçada através das piadas constantes de irmãos

e amigos. Piadas

tradicionais ligados

que

falam

muito sobre

valores

à virilidade e à honra masculina, que, se

observados somente no contexto das NTRc desenvolvidas nas

401

clínicas e

laboratórios,

parecem sofrer uma

mudança, porém

persistem na ordem social. A relação homem/médicos é desejada como relação de amizade durante o tratamento. Os homens, em geral, queixam-se de serem tratados como clientes e elogiam o médico quando ele é amigo durante o tratamento: “O dela foi um amigão”; “Tem que começar a tirar aquele negócio, de estar na tua frente, tu é um cliente”. Nesses recortes de fala encontra-se reforçado o ideal de que haja

entre

médicos e paciente uma

atitude colaborativa e de

proximidade respeitosa. Há relatos em que as mulheres lamentam a ausência dos compa- nheiros durante o tratamento, bem como do desligamento deles em relação ao seu processo de busca e ao cuidado com a criança. Embora essas sejam situações minoritárias, que se devem também à dificuldade que é romper com uma história social em que a criança foi relegada aos cuidados da mãe, cabendo ao pai

a

introdução da autoridade. Em geral, o que ocorre nesse contexto, é que o homem luta para permanecer, na ordem simbólica, como pai do filho

que irá nascer

via tecnologia reprodutiva, enquanto a

mulher fixa todos os seus esforços na maternidade biológica, que parece ser a sua eterna busca. Esse desejo, segundo Delaisi de Parseval (1989), é sempre complicado

e contraditório. Para a autora, alguns bebês são

difíceis e só vêm após muita luta e paciência; outros nascem por acaso, outros não chegam por medo e rejeição inconsciente dos pais, outros

nascerão e não terão

seu lugar,

muitos existirão

402

realmente apenas depois de meses da concepção. Segundo a autora, o eu desejado não é o bebê, mas o desejo do bebê, um bebê real ou imaginário, que dificilmente é satisfeito com um bebê real. Constatou-se igualmente, em relação a gênero, que este é um operador empírico no caso da reprodução assistida, que se constrói a partir do dado elementar de que há dois sexos capazes de se reproduzir biologicamente; é a reprodução que ocupa prioridade na representação. Tomando-o na

sua dimensão cultural, menos

atribuída à sua base biológica essencializada no corpo e no sexo biológico, percebe-se que há certa oscilação nas práticas de gênero envolvendo as decisões médicas sobre o tratamento para engravidar via NTRc. A entrada do homem continua, em grande medida, sendo retardada pelos próprios procedimentos médicos, que muitas vezes demoram em demasia para pedir um simples espermograma ou analisam os resultados dos exames

com critérios claramente

marcados pelas representações de gênero, importantes aspectos

não

considerando

fundamentais presentes nesses resultados.

Há consenso, no campo

médico, de que os investimentos em

tratamento para a infertilidade masculina são muito restritos. Durante a confecção deste trabalho, houve uma constante atenção para visualizar o peso das escolhas e quais eram as possibilidades de desconstruir a assimetria e o dualismo de gênero, bem como a oposição entre natureza e cultura no que diz respeito às relações entre homens e mulheres. É impressionante observar como, do ponto de vista teórico, há um acúmulo de esforços

403

para

entender a construção das

desigualdades. Há, estudos de

gênero,

entendimentos sobre

diferenças de gênero

no interior do campo um

esforço

como

interdisciplinar dos

enorme para

constituir

a construção sócio-histórica de

corpo,

natureza, sexo e gênero, um esforço enorme para contextualizar cada um desses conceitos em relação a suas dimensões concretas e históricas. No entanto, a questão da reprodução assistida ultrapassa a reflexão teórica, pois é também uma questão social, política e cultural que envolve as decisões cotidianas e as experiências de vida de homens e mulheres marcados por uma impossibilidade. Impõe- se como um desafio moral e ético de, por um lado, solucionar o problema de quem não tem filhos e deseja tê-los, e, de outro, fazer uma natureza considerada “falhada” se revelar em possibilidade, desafio que vem marcado por instrumentalização da capacidade biológica

formas

de

das mulheres de

procriarem, capacidade que é naturalizada nas desigualdades de gênero. Apesar de reconhecer as imensas rupturas no campo das ciências e nas ideologias de gênero, é necessário constatar ainda a necessidade de ultrapassar as representações que continuam essencializando a mulher como mãe e natureza através

de uma

argumentação sutil, interpretada como busca de felicidade para o casal. Isso apesar do fato de que o homem, em escala muito maior

(quando comparado ao passado),

entra

no campo da

reprodução humana. E também apesar do fato de que a natureza está sendo reconstruída no que é considerado falho, provocando um

404

novo

relacionamento entre natural e artificial e entrelaçando o

masculino e o feminino de modo mais equivalente. A entrada do

homem nas

responsabilidades e escolhas

reprodutivas permite romper (ainda que não de imediato) com a polarização presente nos estudos contemporâneos de gênero, centrados ora no masculino ora no feminino. A falta de uma reflexão que leve em conta os aspectos relacionais nos estudos de gênero é uma das dificuldades apontadas por Piscitelli (1998) em

suas

críticas aos estudos de masculinidade, que, segundo ela, estariam centrados nos homens sem estabelecer a perspectiva relacional pressuposta pela categoria gênero,

isto é, sem relacionar

masculinidades e feminilidades. Em

geral,

esses

estudos

identificam a masculinidade como uma essência dos homens. Costa (2001),

criticando as ciências

da

masculinidade

como um

retrocesso, aponta para os riscos que uma ênfase nos estudos das feminilidades apresenta em termos de uma perspectiva relacional, riscos exaustivamente debatidos nas discussões feministas. Ela afirma

que, ao considerar as

percepções sobre

masculino e

feminino como dependentes e constitutivas das relações sociais, é necessário pensar nos dois corpos, masculino e feminino, quando se trata do campo biomédico. Embora médicos reconheçam que os homens participam mais no presente do que já participaram no passado,

seja tanto

da

educação, da vida dos seus filhos, quanto da decisão de tê-los, eles oscilam entre focar o papel do pai educador, aspecto que parece ter crescido em nossa sociedade nas últimas décadas, e o papel do

405

homem envolvido com o processo

reprodutivo, ele mesmo

participando ou fazendo o tratamento e sofrendo procedimentos em seu corpo. Para os médicos, um grande problema a ser superado é que a ausência de filhos ainda é associada à impotência e fere diretamente a masculinidade. Esse fato, segundo eles, carrega relação com a infertilidade, no

caso

do homem, e necessita de um cuidado

particular. É preciso agir de acordo com certos critérios para não ferir seus brios, além de tomar em conta

que se trata de uma

experiência solitária, do ponto de vista social. A medicina precisa de certo modo normalizar a situação, dizendo, por exemplo, que os problemas

de infertilidade não são exclusivos das mulheres,

apresentando estatísticas, e novos discursos, para poder contar com a colaboração masculina. Observa-se que

os

entrevistados médicos e

médicas

continuam focando os problemas masculinos como se se tratassem de ansiedades a serem administradas, embora apresentem outros dados

durante as entrevistas. Isso, segundo se observou, pode

revelar uma dificuldade pessoal em cuidar do homem, talvez pelo fato de que o campo da medicina partilhe, em grande parte, de uma

visão de mundo marcada por

valores

de competência

masculina, somado ao fato de que o caminho do tratamento feminino é facilitado pela presença constante da mulher nas clínicas ginecológicas. Por

outro

lado, ainda

que o homem tenha

entrado na categoria casal infértil de modo subsumido, essa construção dos médicos permite tratar tanto

o homem quanto a

406

mulher. Essa entidade híbrida, o casal infértil, aproxima-se de uma abordagem relacional das relações de gênero, superando, de alguma forma, o foco histórico sobre o corpo da mulher como procriador. Embora, no que diz respeito à linguagem, no campo da reprodução assistida, a categoria casal infértil inclui o homem sem nomeá- lo, mostrando que na prática a tecnologia está assumindo que a reprodução humana é fruto da complementaridade e das relações entre homens e mulheres. A busca pela natureza fértil permite desenvolver o que os médicos chamam de relação

de ajuda

e todas

as formas

de

intervenção necessárias à constituição dessa relação. Como um continuum entre

o social,

o cultural e o político, as relações

estabelecidas entre médicos, pacientes e laboratórios, pacientes e pacientes, médicos e especialidades, médicos e técnicos, forjam os imbricados caminhos desse processo. Possivelmente, também tendo

em

vista

a

capacidade

manipulatória sobre células e embriões, abrem-se campos novos de intervenção e de descon- tinuidades fundamentais, naquilo que era considerado o tempo linear da vida. Talvez se consiga imaginar uma situação em que pai e filho

se encontrem dentro de uma perspectiva absolutamente

subjetiva, sem a materialidade social, no caso de ser esse filho gerado por um útero artificial, com espermatozoide do pai genético, que poderá

ser qualquer um que o deseje ou o cientista em sua

experiência. Provavelmente a

prática

social não aprovaria tal

situação – sem família, sem expectativa parental, sem maternidade

407

biológica. Mas se, com reticências, podemos ficcionar sobre isso, é porque pode vir a ser de fato uma realidade.

Essa situação funda-se não necessariamente sobre uma estrutura de filiação ou conjugalidade, mas sobre uma articulação específica

da

prática científica/tecnológica, que é embasada na

forma cultural das práticas familiares, mesmo que fazer um filho não seja necessariamente estar inserido em situações familiares ou encontrar-se integrado nelas depois. Veja-se, por exemplo, em O Clone, novela exibida no Brasil pela Rede Globo em 2000, em que o cientista faz um embrião como resultado de uma clonagem e o transfere para o útero de uma mulher – a Deusa – sem que ela o soubesse. Mas tarde a fraude do médico é descoberta e ocorre toda uma discussão sobre de quem o clone é filho, resultando que o recurso ao DNA mitocondrial da mulher, em cujo útero ele foi gestado, passa a ser o critério definidor da filiação. Além desse problema, a personagem sofre muito enquanto busca sem cessar seu lugar no mundo. No final, o seu estar no mundo era uma experiência trágica de estar numa família com a qual ele não se identificava. O mesmo ocorreu com o cientista, identificado como aquele

que feriu

os princípios do seguro e do estabilizado,

introduzindo a confusão nas relações parentais. Buscar no deserto o seu lugar é significativo na medida em que só o lugar árido e vazio do social poderia dar a eles a experiência final do vazio do ser. O lugar

sem crenças,

sem normas, sem exigências externas, sem

identificações, sem lugar. Seria ainda assim?

408

Desse modo, pode-se estar provocando descontinuidades biológicas e sociais; por isso, os envolvidos poderão ser alvo de cobranças futuras, relativas não apenas à segurança ontológica dos seres, mas ao futuro da espécie humana. Poder-se-ia afirmar que os procedimentos em NTRc são básicos, elementares demais para ligá-los a esse quadro mais amplo. O que autoriza a fazê-lo é que fecundar,

pesquisar,

manipular,

acompanhar,

selecionar

o

crescimento celular de um embrião extraútero é um momento fundamental de intervenção biofísica, química e política. Esse fato pode, portanto, gerar muitos novos procedimentos e conhecimentos que, mantidos nessa área ou migrando para outros alimentam todo tipo

domínios,

de disposição e curiosidade científica,

considerando-se também que essas práticas se inserem em escolhas mercadológicas. Percebe-se que não há como abandonar aos cientistas ou aos médicos pura decisões

que

e simplesmente a

responsabilidade de

tomar

não envolvem apenas a integridade corporal ou a

procura de um comportamento responsável por

parte

dos

indivíduos. Essas são decisões sobre os tipos de tratamento e de pesquisa que envolvem os caminhos presentes e futuros da humanidade. Além

disso,

leve-se

em conta

o princípio da

beneficência, da autonomia e da justiça no que diz respeito a mudanças significativas nos modos de conceber os seres humanos e, possivelmente, na sua maneira de ser na relação com o próprio corpo biológico e na sua inserção no mundo. Essas significações

409

ganham, pela intervenção tecnológica, outras questões ligadas à ética/bioética e aos direitos sexuais e reprodutivos. Nesse

aspecto,

pergunta-se quanto essas

NTRc são

realmente tratamento, uma vez que não são acessíveis a todos por razões econômicas. O fato de no Brasil, em sua maioria, as NTRc serem pagas e desenvolvidas, em sua grande parte, no segredo da relação médico/paciente em clínicas privadas diz diretamente ao campo dos direitos sexuais

respeito

e reprodutivos. Da

mesma forma, elas não são igualmente acessíveis a todos por causa das concepções sobre a família e a sexualidade, que se refletem na interdição a mães solteiras e a casais de homossexuais. Problematiza-se o fato de que o querer do casal seja apresentado como legitimador de todas as formas de intervenção e de que o médico insista em manter a neutralidade técnica, embora ele seja a única autoridade a decidir sobre a interrupção ou sobre a continuidade do tratamento. As dificuldades que se impõem para casais e médicos na hora de administrar as frustrações de um ciclo perdido ou diante da constatação de erros nos procedimentos que induziram a insucessos são aspectos importantes que nos desafiam a pensar nas regras de relacionamento entre médicos e casais, aspectos que não podem ser definidos apenas por comitês de ética ou se resumir a regras de experts, devido aos inúmeros conflitos relatados pelos entrevistados. Não contrário

se trata a todas

apenas as formas

de

manter um

posicionamento

eugênicas e racistas,

já tão

denunciadas, mas de escolher responsavelmente a própria forma de

410

viver. Para que isso ocorra, é necessária a ampliação da discussão pública desses fatos biotécnico-científicos (biotecnológicos) e das condições de gênero em que eles são desenvolvidos. É mister fazê-los sair do anonimato para que possam gerar conhe- cimentos partilhados e para prevenir novas culpabilizações, visto que em grande parte

encontram sua legitimidade no desejo

de filhos por parte das mulheres. Denunciar isso em termos de dominação masculina, como fazem algumas vertentes do feminismo, por exemplo, é pouco útil para a necessidade de amadurecimento teórico e social a respeito da pluralidade e da multiplicidade de possibilidades geradas por esse desenvolvimento tecnológico. É possível

que,

além

da

migração de

um

conhecimento

biomédico para a linguagem de um casal, o que substitui as relações sexuais reprodutivas pela tecnologia, estejam acontecendo ainda outras transformações. As NTRc podem estar sendo verdadeiramente ampliadoras de possibilidades técnico-científicas, mas são, ao mesmo tempo, altamente excludentes e geradoras de muitas novas Possibilitar espaços

de explicitação e discussão dessas questões,

parece-nos fundamental. Como provocar reflexão decisões

e não

angústias.

tornar público o modo

sobre

essas

como esses campos

verdadeiramente se constituem (seus riscos, seus interesses e seus custos)? Não conhecer e não considerar essa problemática, que ainda parece ser mascarada com questões como – “Por que esses casais não adotam?” “Por que gastar tanto dinheiro para fazer um filho desse

411

modo?” –, sinaliza que há inúmeras formas de resistência. Essas resistências sociais estão carregadas de conteúdos significativos para que se entendam as escolhas do presente, mas também podem estar impedindo ou limitando a capacidade de reflexão e de entrada em áreas do conhecimento ainda não assimiladas pelo social, mesmo se vivenciadas por muitos. Talvez seja tempo de olhar as diferentes filosofias de vida para progredir na reflexão, nas decisões amadurecidas e participativas. Nesse sentido, as ideias que aqui são apresentadas também são fruto desse momento histórico e trazem em si as possibilidades e os limites contingentes à sua produção. Ora elas reagem àquilo que

outros/as já disseram, revelando-se como problemáticas em

construção, ora se perdem no entrelugar obscuro do “ainda não sei o que dizer”. Anda-se como em uma corda bamba, precisando reconhecer o desenvolvimento científico, o papel do laboratório como lugar da inovação e da permanência cientifica e tomando-se, desse modo, o estatuto das ferramentas,

das

técnicas,

dos

instrumentos

científicos, como criadores e veiculadores do conhecimento Por outro

lado, precisando reconhecer também o comportamento dos

pesquisadores, nesse

caso, dos aplicadores e por vezes,

confeccionadores da pesquisa: os médicos. Não



como

desconsiderar as consequências da

medicalização e da importância social paternidade. Mas

também não

da maternidade e da

há como desconsiderar a

eventualidade da clonagem, do útero artificial, da pré- seleção do

412

sexo e dos estudos para eliminar os fetos portadores de doenças. Eles se constituem, não tão raramente, em estudos e avanços científicos que são realizados sob a justificativa do desejo legítimo de filhos, e ao mesmo tempo

se constituem em ameaça, pois, para muitos,

podem esconder a busca do filho perfeito e sob medida. Essas questões, inseridas no conjunto mais amplo

das muitas

problemáticas reprodutivas, merecem tratamento parte a parte, com os diferentes focos e complexidades que elas envolvem. Outro aspecto que nos parece extremamente relevante é que,

no contexto da invocação dos direitos da pessoa, surge uma

imagem renovada da mulher, aquela que vai em busca do filho, cuja participação é ativa, diferente do passado em que não escolhia, ainda que isso não elimine as sanções e coerções sociais. Essa imagem feminina talvez permita pensar a procriação dentro de um modo mais relacional. Essas complexidades recolocam, portanto, a necessidade de se respeitar a ligação

entre

procriação e sexualidade como

relação que ultrapassa a simples interação/fusão entre gametas e que se insere num campo de relações em que não podem continuar a ser tratadas como forma de exclusão ou de relação sexual reduzida ao sexo procriativo, situação relatada durante todo o trabalho. A possibilidade do exercício da autonomia das escolhas, mesmo se confrontada com os limites impostos pelas dificuldades financeiras e de acesso ao tratamento seguro, necessita encontrar caminho nas práticas coletivas sociais e nas políticas de governo.

413

Sabe-se que a exclusão,

no campo

da reprodução

assistida, não é apenas econômica; ela é também social e sexual. De maneira geral, a exclusão continua acontecendo de forma massiva e inaceitável no Brasil,

e isso dificulta também que se olhe a

reprodução assistida como um direito. Todas as vezes em que se perguntou aos entrevistados se esse tratamento deveria ser realizado no sistema público de saúde, eles responderam que era muito caro e que o Brasil tinha prioridades, embora não negassem a ninguém o direito de ter filhos. Considere-se ainda

que essas tecnologias só estiveram

disponíveis para a maioria desses casais porque eles fizeram grandes economias para realizar o tratamento, ou até porque se desfizeram de algum patrimônio; desse modo, nem sempre estão configuradas no interior de uma relação com a classe privilegiada, problemática frequentemente interposta por quem pergunta sobre quem são esses casais. Outras dimensões ainda dizem respeito não apenas a uma ética de convicção, mas se faz necessária uma vigilância social coletiva. O fato, por exemplo, de que a pesquisa e a tecnociência tenham permitido saber mais sobre doenças graves antes da transferência do embrião, não significa que o casal envolvido esteja preparado para decidir sobre se faz um aborto ou fica com o bebê. Ou se descarta o embrião antes da transferência uterina ou mesmo se já está no útero. O desejo de ter uma criança, o querer muito esse filho parece repousar na sua própria fragilidade. Quem regula os desmandos? Como lidam

com as frustrações? E as crianças

414

podem ser submetidas a esse desejo incontido dos pais por filhos e expostas a uma série de riscos? A relação de ajuda da parte médica tem limites? Quem é capaz de fazer a melhor escolha? São inúmeros os problemas que dizem respeito ao relacionamento entre médicos e casal e aos elementos conflitivos que se estabelecem entre casais, médicos e tecnologias. Essas dificuldades se somam também ao fato de que a formação médica, tal qual realizada no Brasil, na área de reprodução assistida, carece de qualquer formação no campo da bioética que não seja apenas aquela construída pelo olhar dos especialistas, emitida

nos

fóruns

através

de pareceres delimitantes dos

problemas que devem ganhar relevância moral, dada, em geral, na circunstância de suas emergências. Consequentemente, quaisquer decisões sobre questões de vida ou de morte envolverão uma iniciativa que será unicamente dependente da consciência e do profissionalismo dos que a praticam, e cujos contornos são desconhecidos das autoridades de saúde e do público em geral, às vezes até dos casais. Sem falar que nesse contexto desaparece qualquer reflexão que contemple o exercício da cidadania feminina. Tão

cega

está

a mulher no interior das

condições de tratamento, que é realmente impossível tomar em conta sua plenitude, sua autonomia, sua liberdade e integridade corporal. A inclusão da função reprodutiva na cidadania pressupõe dotá-la de sentido ético e político como lugar de responsabilidades sobre os benefícios sociais e como igualdade de gênero; e isso envolve mais do que legislação, envolve até mesmo a justiça.

415

Mesmo que os médicos apresentem dúvidas e resistências à ideia de que a legislação resolveria os problemas envoltos nessa prática, e embora se tenha observado na literatura nacional e internacional consultada um desejo crescente de que se proponham decisões de lei sobre os vários aspectos envolvidos, não se trata, da parte dos médicos, de um envolvimento explícito com os direitos sexuais e reprodutivos nem com a discussão sobre cidadania. Parece haver mais um medo do controle diante dos indícios da necessidade de um quadro legislativo para regulamentar as práticas das clínicas, diante da necessidade de recolher dados para saber mais sobre os problemas presentes no cotidiano dos tratamentos e, de como, de fato, as mulheres e as crianças são afetadas por eles. Sequer se pode afirmar o número exato das clínicas que exercem essas práticas e não há consenso sobre a necessidade ou não de critérios e estandardizados a respeito das formas de tratar a infertilidade. Quando apenas reconhecidos os valores desses recursos, sem a problematização dos seus significados éticos, sociais e culturais, pode-se transformar aspectos perversos, uma vez não publicizados, em situação de milagre. Abandona-se, desse modo, o estatuto de cidadãos para entrar no templo da indústria do ser vivo. Perguntar-se sobre o valor que se quer dar às escolhas e à vida humana determinará o curso das pesquisas nos anos que se seguem,

em que o sonho de uma sociedade clônica será

o

contrário da ordem ditada pela liberação sexual: em vez de “o máximo de sexualidade com o mínimo de reprodução” será “o máximo de reprodução com o mínimo de sexo possível.” Se a

416

reprodução se reduzir a uma

aplicação

técnica, ela poderá

eliminar as relações sexuais entre um homem e uma mulher, além de provocar rupturas nos modelos de filiação. Ao mesmo tempo, os/as descendentes estão mais e mais à procura do antepassado e, para muitos, isso é importante para compor a imagem que cada um faz de si mesmo, permitindo-lhe tornar-se adulto por inteiro. O que se observa é que – proeza para alguns, ameaça para outros – a artificialização da procriação humana ocupa um lugar singular dentro do movimento obscuro das ciências da vida. Cada um pode sentir que está em jogo muito mais do que a esterilidade tubária, ou qualquer outra: são os sentidos de demandas nem sempre identificáveis. São jogos empapados pelos interesses mercadológicos e tecnológicos, que muitas vezes se contrapõem no tabuleiro das escolhas e dos direitos. São interesses que incluem o mercado, com suas trocas e equipamentos, os bancos de esperma, as universidades e centros médicos, as companhias de seguro (caso dos EUA) que mantêm o pagamento, o governo, que promulga as pesquisas. Essa é uma longa lista de interesses que demonstra quanto poder e quanto dinheiro estão em jogo e como as NTRc representam grandes negócios. Ao

pensar sobre

NTRc,

desenvolvimento tecnológico é ponto essas formas

constata-se que

o

fundamental em relação a

de tratar o casal e de constituir família, e pode-se

mesmo dizer que há uma decalagem histórico-temporal entre os avanços

científicos (tome-se

em particular o desenvolvimento

genético/molecular) e as formas

de organização social em

417

famílias

estruturadas

na

consanguinidade

e

na

autoridade

parental. A reprodução assistida está no centro das relações de gênero, atravessadas pelas preocupações contemporâneas sobre a família e as novas formas de parentalidade. Ao mesmo tempo, tem-se a apropriação biomédica de certo número de

procedimentos técnicos que

muitos veem

como

experimentos, ainda, e que, por essa razão, são afetados por uma série de incertitudes sobre os riscos para a saúde, mesmo que o objetivo

anunciado seja o de ajudar

a desencadear o processo

fisiológico da concepção de um ser humano após um processo de diagnóstico de infertilidade. Assim, na fala dos médicos e casais, essas tecnologias existem para se opor com êxito aos defeitos da natureza e para dar ao casal uma chance de ter um filho, ajudando a natureza. Verifica-se na forma como essas clínicas se configuram que há, por

um lado, o desejo médico de satisfação pessoal,

conhecimento e sentido para sua vida profissional e pessoal. Por outro, no cotidiano do consultório, a necessidade pragmática de solução à ausência do filho, que é cobrada por parte do casal que não o tem. Esse casal, ao procurar o médico, espera da medicina uma capacidade curativa, particularmente quando se constata a banalização social feita na hora de apresentar essas possibilidades. Há elementos que precisam ser tomados em conta articulação entre os conteúdos cognitivos e sociais

capazes

na de

cruzar tecnologia e economia, portanto, na circunscrição de uma

418

lógica mercadológica que, segundo Doré e Arand (1995), em suas grandes linhas apela para uma cultura empresarial, na qual:

– o corpo

orgânico tem primazia sobre todas

as outras

dimensões constitutivas do humano; – há certitude de que o primeiro critério para uma execução

boa

das tarefas profissionais é o controle do

conteúdo técnico; – há convicção de que a chave norteadora do sucesso dentro da ação está

na

qualidade dos

meios

(conceitos,

instrumentos, procedi- mentos práticos); – é desejável rejeitar sem cessar os limites do saber; – é necessário acolher

a demanda em serviço como

um dado normal dentro de uma economia de mercado e tratá-la como

uma construção destinada à indústria

biomédica.

Segundo as autoras, essas crenças são partilhadas e se inscrevem dentro de um domínio simbólico cuja característica predominante é a racionalidade tecnocientífica, estreitamente casada com

a racionalidade econômica da sociedade de mercado, e o

principal arquiteto dessa construção simbólica cultural é o/a obstetra/ ginecologista. Observa-se que esses aspectos estão no seio de práticas que incidem diretamente sobre

o gênero,

através

do corpo.

As

tecnologias contraceptivas e conceptivas são desenvolvidas, na maior

419

parte

dos casos, visando ao corpo da mulher, mesmo

que

as

representações oscilem entre falar de tratamento para a categoria híbrida casal, mas que se efetivam apenas no corpo da mulher. Na reprodução assistida o que prevalece como modelo cultural é a dominação e a ajuda para o que é considerado falha na natureza. Intercalam- se, desse modo,

ambas

as esferas, a da

natureza e a da cultura, o considerado natural e o considerado artificial. Trata-se de uma relação de interseção em que ora a técnica se transforma em natureza que gera, ora a própria natureza é utilizada com o sentido de técnica, ou seja, uma faz a outra, como diz Strathern (1999). O conhecimento corporal informa o que se faz e o que se diz

no curso

dos

dias;

informa como

se

constroem os

instrumentos técnicos e o conhecimento cultural; essa informação serve

para

ordenar o corpo e modelar o caminho em que se

carrega a história de gênero que está em cada corpo e pessoa, e que é influenciada pela história cultural. Além do presente e da interface dessa intervenção, a história pessoal não somente faz a urdidura entre o passado e o presente, mas antecipa o futuro. Quando as mulheres antecipam a gravidez e imaginam que cada sensação sutil e nova indica que estão grávidas, elas ativam um modelo de feminilidade culturalmente formado e definido a priori. As pessoas contam sua história e analisam sua situação de vida, e assim geram categorias de compreensão do social por meio do seu gênero/corpo. Quando o homem aprende sobre

sua

420

infertilidade, ele analisa a sua situação no contexto das expectativas culturais sobre sua masculinidade. Segundo Becker (2000), um dos principais aspectos das análises dos caminhos em que as tecnologias reprodutivas afetam e são afetadas pelo gênero que tem sido sugerido por cientistas sociais é o de que as tecnologias estão ligadas por uma operação de gênero que pode reforçar o padrão de poder e autoridade. Isso revela os diferentes vieses que o diálogo cultural a respeito da reprodução reflete e constitui. Embora este estudo tenha sido realizado no Sul do Brasil, as NTRc são um fenômeno global, caracterizado em toda parte pela hierarquia das relações de gênero e pelo poder das constelações empresariais e médicas. Crê-se que, se fosse possível comparar o consumo das novas tecnologias e a política criada para regulá-las em várias partes do globo, poder-se-ia olhar as práticas culturais e o poder dinâmico delas na sociedade e poder-se-ia verificar não somente avanços

médicos internacionais, mas

igualmente

as

implicações sociais desse processo. Considerados esses elementos, é possível afirmar que as representações sobre

as

NTRc

mobilizam a

sociedade e

as

relações entre os casais no contexto da transferência e aplicação dos conhecimentos biotecnológicos, da intervenção, do controle da medicalização e da tecnologização do corpo e dos direitos à vida. Ao mesmo tempo, elas ampliam a percepção sobre as implicações a respeito das decisões humanas.

421

As coisas e os sujeitos se constituem em rede e são ao mesmo tempo marcados por um conjunto de incertitudes. Muitos desses aspectos dependem da relação entre

a tecnologia e os

especialistas, e outros estão ligados a um contexto social mais amplo em torno das possibilidades encontradas pelos indivíduos e de como eles se mobilizam para desenvolvê- las.

É

a

sua

capacidade de reflexividade que, segundo Giddens (1991), está ligada

às

condições e

disponibilidade de

conhecimentos

científicos e não científicos, interpretados e reinterpretados por especialistas, pelo senso comum, pela mídia

e pelo campo

sociofamiliar que constituem as identidades

contemporâneas

fragmentadas. É um exercício

que se supõe estar em parte

marcado pela autonomia, igualdade e diversidade, bem como pela integridade

corporal Ao

mesmo

tempo, tudo

isso



é

ambivalente e contingente, exigindo uma postura reflexiva da parte dos sujeitos da contemporaneidade. As tecnologias estão permitindo o surgimento de novos valores. A mídia

transforma o campo biomédico em senso

comum e, ao mesmo tempo, permite tocar em campos sagrados. Ao apresentar ingenuamente as NTRc como algo mais simples do que são, a mídia

gera muitas vezes falsas expectativas, com

possíveis frustrações. São essas mesmas expectativas que criam demandas nos consultórios médicos. A partir desse fenômeno de publicização das tecnologias, o casal espera do médico uma solução

para o seu

movimento entre

problema. A medicina encontra, nesse

o social e o individual, um campo propício de

422

ação e de transformação da vida. Ao mesmo tempo, há uma escolha sobre os riscos (DOUGLAS; WILDAVISKY, 1983) e a manutenção de um modelo de gênero reforçador da maternidade como essência feminina que se reflete na assimetria das relações homem/ mulher. Trata-se de atender a uma demanda do casal em busca de solução para ter um filho. Trata-se, ao mesmo tempo, de entrar na lógica

das

possibilidades



abertas

pelo

desenvolvimento

tecnológico, pelo uso dos produtos farmacêuticos (medicação) e pela constituição e estruturação das clínicas. Médicos, que desejam

também

manter-se atualizados, a fim de poder oferecer uma

prática mais avançada do que aquelas das abordagens tradicionais, assumem o processo da fertilização in vitro e da ICSI com todos os riscos nele embutidos. Alguns

estão convencidos de que essas

tecnologias são a única forma de tratar a infertilidade daquele casal. Fazer-lhe um filho é devolver-lhe uma capacidade. Pesa nessa decisão o fato de que se apoiam em estatísticas que passam de 15% para 35% por ciclo a chance de sucesso, e isso “é mais do que a natureza faz”. Eles apresentam uma linguagem confiante sobre o sucesso, ainda que considerem os riscos. Outros, mais cautelosos, alertam sobre a necessidade de não gerar falsas expectativas: “Tem que ter um pouco de cuidado do que se passa com esse casal, eu acho que aí é um ponto de ética, de honestidade frente a esse casal que vem ansioso em busca de um resultado e que as coisas não são mágicas”. À medida que o corpo responde com a geração

de base material genética, para que, pela intervenção

423

química, laboratorial e tecnológica, o biólogo ou o médicos junte as condições de desenvolvimento do embrião, configura-se um fazer diferente. Legitima-se também a ideia de que é necessário superar limites, oferecendo algo novo e viável como possibilidade ampliada na busca do filho com referência às formas

tradicionais de

tratamento da infertilidade, com as quais a maioria dos casais entrevistados se manifestava descontente. Essa expectativa sobre

a continuidade dos processos de

reprodução assistida, caros e emocionalmente desgastantes, configura serviços

de reprodução humana como

desejados e socialmente

demandados. Deixa-se contudo a descoberto a vigilância sanitária e biotecnológica, particularmente no nosso estudo, onde dizer “eu pago” pode significar eu “faço tudo o que quiser”. Ao finalizar é preciso dizer que são muitos os enfoques possíveis e

muitas

as

perguntas



formuladas

por

pesquisadores brasileiros e estrangeiros e outras ainda em aberto. Algumas dizem respeito às preocupações com as biotecnologias; outras estão no campo da deontologia médica; umas

abrangem

aspectos mais filosóficos, que dizem respeito às escolhas do presente comprometendo o futuro; outras são relativas à legislação, seus efeitos e seus riscos. E muitas ainda nos remetem para as possibilidades de paternidade, maternidade, filiação, ou seja, para as formas como se constitui o parentesco em diferentes sociedades. Finalmente, as questões ligadas à saúde reprodutiva, aos direitos sexuais e reprodutivos e à bioética parecem-nos fundamentais para

424

futuros estudos, devido à amplitude do tema e de diferentes possibilidades de análise.

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GLOSSÁRIO

Assisted

Haching

– abertura em laboratório de um furo na

membrana glicoproteica (zona pelúcida) que envolve os embriões. Tal procedimento pode facilitar o processo de fixação embrionária no útero.

Azoospermia – ausência de espermatozoides no esperma.

Beta-HCG – Hormônio secretado pela placenta do ovo assim que ele se implanta no útero; é medido através do sangue da mãe; sua presença é sinal de gravidez.

Biotecnologia – palavra formada por três vocábulos de origem grega: bios=vida; técnico=técnica; e logos= estudo. Literalmente, é o estudo das técnicas aplicadas ao estudo da vida. O estudo da técnica e processos biológicos para a elaboração de produtos.

Célula

germinal – célula sexual da qual a multiplicação e a

diferenciação conduzem à formação de gametas; o espermatozoide para o homem e o óvulo para mulher.

464

Célula somática – célula constituída de tecidos e órgãos do corpo,

com

exceção das

células

germinais. Todas as células

somáticas do indivíduo possuem o mesmo conteúdo genético.

Clonagem reprodutiva – criação e desenvolvimento a termo de um embrião por transferência de uma célula somática de um adulto (ou de um embrião) para dentro do óvulo desnucleado. Esse novo indivíduo obtido a partir desse embrião será geneticamente idêntico àquele que foi o doador do núcleo transferido.

Clonagem terapêutica – produção em série de células ou tecidos suscetíveis de poder ser transferidos no caso de uma doença para substituir as células ou tecidos anormais ou deficientes. Essas células podem ser obtidas a partir de células embrionárias ou de células adultas. Para evitar a rejeição, essas células ou tecidos podem ser obtidos após a transferência do núcleo de uma célula somática da pessoa doente dentro do óvulo desnucleado.

DPI

– Diagnóstico pré-implantacional – identificação de uma

anomalia sobre um embrião antes da implantação dentro do útero. O diagnóstico é realizado a partir da análise de uma ou duas células

recolhidas, geralmente, no

terceiro dia

do

seu

desenvolvimento.

DPN – Diagnóstico pré-natal – identificação de uma anomalia sobre o embrião ou um feto ainda no ventre da mãe. O

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diagnóstico pode

ser

realizado por

uma ecografia,

ou

por

recolhimento de células fetais, no nível da placenta, dentro do líquido amniótico.

Espematites – são células precursoras dos espermatozoides

FIV – Fecundação in vitro

– os ovócitos

são recolhidos após

estimulação ovariana, sob anestesia local ou geral. Paralelamente os espermatozoides são selecionados em função

de sua mobilidade

(sinal de sua qualidade). Depois os ovócitos são colocados em contato com os espermatozoides. Os embriões obtidos são transferidos em geral depois de três dias (às vezes mais tarde). A gravidez poderá ser confirmada após 14 dias da transferência por meio de uma dosagem sanguínea do hormônio HCG.

Gene – pedaço

ou unidade funcional da molécula de DNA,

responsável pela transmissão da herança, que se encontra, em geral, no núcleo celular, cuja única finalidade é produzir proteínas. O DNA é o elo entre todos os seres vivos. A vida biológica está contida em uma molécula de DNA.

Genótipo – constituição genética de uma célula ou de um indivíduo.

Inseminação Artificial – trata-se da mais antiga assistência médica à

reprodução. Ela

consiste no

técnica de depósito de

espermatozoides, seja do cônjuge ou de um doador, diretamente

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dentro do

colo

do

útero

(inseminação intracervical), ou

diretamente dentro do útero

(inseminação intrauterina). Isso é

realizado no dia da ovulação, que se dá através de estimulação ovariana. Como a taxa de sucesso é baixa, recomenda-se até três tentativas.

ICSI – Injeção intracitoplasmática de espermatozoide – é uma das técnicas intervenientes dentro da FIV, utilizada para fecundação. Espermatozoides e óvulos não se encontram sozinhos; os biólogos, ou

o médico, injetam o espermatozoide diretamente dentro do

óvulo.

A

esterilidade

técnica é indicada para (ou

espermatozoides). Ela

com pode

homens que

quantidade

muito

sofrem

de

pequena

de

se realizar mediante a retirada de

espermatozoides de dentro dos testículos através de microcirurgia, o eu permite o uso de espermatites.

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