Resenha de Uma História do Racismo

Share Embed


Descrição do Produto

002176_Impulso_35.book Page 1 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

IMPULSO, Piracicaba, v. 14, n. 35, p. 1-149, set./dez. 2003

00_Inicio.fm Page 2 Monday, April 19, 2004 4:47 PM

Revista de Ciências Sociais e Humanas Journal of Social Sciences and Humanities INSTITUTO EDUCACIONAL PIRACICABANO – IEP

Revisão em inglês: CRISTINA PAIXÃO LOPES

Presidente do Conselho Diretor LUIZ ALCEU SAPAROLLI Diretor Geral ALMIR DE SOUZA MAIA Vice-Diretor GUSTAVO JACQUES DIAS ALVIM

Gráfica UNIMEP Coordenação: CARLOS TERRA Capa: WESLEY LOPES HONÓRIO Editoração eletrônica: CARLA CYNTHIA SMANIOTO Revisão Gráfica: JURACI VITTI

Universidade Metodista de Piracicaba Reitor GUSTAVO JACQUES DIAS ALVIM Vice-reitor Acadêmico SÉRGIO MARCUS PINTO LOPES Vice-reitor Administrativo ARSÊNIO FIRMINO NOVAES NETTO

EDITORA UNIMEP Conselho de Política Editorial / Policy Advisory Committee GUSTAVO JACQUES DIAS ALVIM (presidente) SÉRGIO MARCUS PINTO LOPES (vice-presidente) AMÓS NASCIMENTO ANTÔNIO ROQUE DECHEN BELARMINO CESAR GUIMARÃES DA COSTA CLÁUDIA REGINA CAVAGLIERI DENISE GIÁCOMO MOTTA MARCO POLO MARCHESE NELSON CARVALHO MAESTRELLI

IMPULSO 35 (set./dez. / 2003) “Entre Éticas & Ciências” Comissão Editorial / Editorial Board AMÓS NASCIMENTO (presidente) NELSON CARVALHO MARCELINO TÂNIA MARA VIEIRA SAMPAIO TELMA REGINA DE PAULA SOUZA VALDEMAR SGUISSARDI Comitê Científico / Advisory Board CRISTÓVAM BUARQUE (UnB/DF – Brasil) EUGÊNIO BUCCI (Fundação Cásper Líbero/SP – Brasil) HUGO ASSMANN (UNIMEP/SP – Brasil) IRIS YOUNG (University of Chicago – Estados Unidos) IVONE GEBARA (PUC/SP – Brasil) JOÃO BAPTISTA BORGES PEREIRA (USP/SP – Brasil) MATHIAS LUTZ-BACHMANN (UNIVERSITÄT FRANKFURT – ALEMANHA) PAULO AFONSO LEME MACHADO (UNIMEP e Unesp/SP – Brasil; Universidade de Limoges – França) ROBERTO ROMANO (Unicamp/SP – Brasil) STELLA MARIS BIOCCA (Universidad de Buenos Aires – Argentina) Editor Executivo / Managing Editor HEITOR AMÍLCAR DA SILVEIRA NETO (MTb 13.787) Equipe Técnica / Technical Team Coordenação temática: GABRIELE CORNELLI Secretária: IVONETE SAVINO Apoio administrativo: ALTAIR ALVES DA SILVA Edição de texto: MILENA DE CASTRO

A revista IMPULSO é uma publicação quadrimestral da Editora UNIMEP (São Paulo/Brasil). Aceitam-se artigos acadêmicos, estudos analíticos e resenhas, nas áreas das ciências humanas e sociais, e de cultura em geral. Os textos são selecionados por processo anônimo de avaliação por pares (blind peer review). Para a apresentação dos artigos devem ser seguidas as normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) [veja a relação de aspectos principais no fim da revista]. IMPULSO is a journal published three times a year by the UNIMEP Press (São Paulo/Brazil). The submission of scholarly articles, analytical studies and book reviews on the humanities, society and culture in general is welcome. Manuscripts are selected through a blind peer review process. For the submission of articles, the preferred style guide are the Chicago Manual of Style (English) (Chicago, Chicago University Press) [Please: give city, publisher and year of publication]; and Richtlinien für Manuskripte (German): Duden – Rechtschreibung der deutschen Sprache (Stuttgart, Klett-Verlag, 2001) [Bitte Stadt, Verlag und Erscheinungsjahr angeben]. Aceita-se permuta / Exchange is desired.

Tiragem / issue: 1.000 exemplares Disponibilizada em / available at: Impulso é indexada por / Impulso is indexed by Bibliografia Bíblica Latino-Americana; Hispanic American Periodicals Index (HAPI); Índice Bibliográfico Clase (UNAM); latindex (Sistema Regional de Información em Línea para Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal); Linguistics and Language Behavior Abstracts; Social Services Abstracts; Sociological Abstracts; Sumários Correntes em Educação; e Worldwide Political Science Abstracts. Correspondência Editorial e Assinaturas / Editorial Correspondence and Subscriptions Editora UNIMEP www.unimep.br/editora Rodovia do Açúcar, km 156 – 13.400-911 Piracicaba, São Paulo / Brasil Tel./fax: 55 (19) 3124-1620 / 3124-1621 E-mail: [email protected]

Vol. 1 • N.º 1 • 1987 Quadrimestral/Three times yearly ISSN 0103-7676 1- Ciências Sociais – periódicos CDU – 3 (05)

002176_Impulso_35.book Page 3 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Editorial

DILEMAS ÉTICOS EM NOSSOS DIAS Nada tem sido tão discutido na atualidade, e de modo sobretudo polêmico, quanto a relação entre as concepções de ética e as distintas realidades nas quais elas devem ser aplicadas. Este número da Impulso se dedica justamente à pluralidade de éticas e ciências, além de questões internacionais e as guerras contemporâneas. Quando se trata de ética, são vários os modelos disponíveis – desde Aristóteles, passando pelo pós-modernismo e chegando a códigos específicos de profissões modernas –, os quais têm inspirado as mais diversas posições. Por sua vez, tais modelos se encontram em tensão, por vezes até contradição, entre si, quando confrontados com a prática. Os mesmos desafios se apresentam quando se trata da interação entre os povos, acrescentando maior complexidade à polêmica. É nesse contexto que a presente publicação traz, em distintas seções, várias posições atuais sobre o tema. Na primeira delas, reunindo artigos agrupados sob o tema “Pluralidade Ética”, Luc Brisson retoma as raízes gregas da visão ontológica do ser e da alma, tal como propagada por Platão, enquanto Silvia Vegetti parte das discussões sobre o “bebê de proveta” para chegar a questões sobre o desejo, a liberdade e a responsabilidade, tratadas a partir da psicanálise. A seção é complementada pela comparação entre os estágios evolutivos da ética empresarial e da teoria do julgamento moral de Lawrence Kohlberg, desenvolvida por Margaret Griesse, e, por fim, pela discussão sobre as várias formas de se entender a ética na criminologia (como atendimento aos direitos da pessoa, limitação às técnicas de obtenção de informação, método de investigação e objeto de pesquisa) proposta por Roberto Cornelli. A segunda seção temática, “Dilemas na Pesquisa Científica”, tem como ponto de partida tácito a determinação legal, a partir do governo brasileiro – tal como se deu em vários outros países –, de que as universidades e instituições de pesquisa devam estabelecer comitês de ética para supervisionar a ação da ciência, especialmente quando se trata do envolvimento de seres humanos em experimentos. Em seu artigo, Carmen Tornquist, questiona muitas das acepções impostas por

002176_Impulso_35.book Page 4 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

meio de resoluções legais, mostrando que a partir da antropologia e da etnologia se pode chegar a uma visão muito mais complexa da relação com seres humanos, vistos como objetos de pesquisa. Marise Borba da Silva apresenta, por sua vez, uma temática da mais alta relevância, referente à nanotecnologia, tentando antecipar alguns dos desafios que as pesquisas em escala “nano” trarão para a reflexão ética. Já Walter Matias Lima apresenta as questões trazidas pelo recente interesse na bioética nos comitês de ética e pesquisa nas universidades brasileiras, indicando como tais questões não podem ser resumidas a uma ética científica, mas devem ser tratadas sob o prisma social, humano e cultural. Fechando a seção, Alvaro Valls parte da capciosa pergunta sobre o que é permitido fazer, para promover uma breve revisão histórica sobre as distintas respostas que a filosofia tem dado a esta questão. A seção “Comunicações e Debates” deste número dá seqüência ao espaço que a edição 34 da Impulso dedicou à concepção de Jürgen Habermas sobre religião, publicando agora uma entrevista inédita do filósofo alemão sobre política internacional. Introduzindo o debate, Amós Nascimento apresenta os escritos mais recentes de Habermas e o manifesto firmado por ele e Jacques Derrida em favor de uma democracia global, bem como o texto assinado por Iris Young, criticando a posição do filósofo alemão. Em seu texto, Iris Young afirma que, ao tentar contrapor a hegemonia americana por meio do fortalecimento de uma política internacional européia, Habermas não considera nem inclui o chamado Terceiro Mundo e os países do Hemisfério Sul, não percebendo a importância que as discussões do Fórum Social Mundial podem ter em uma democracia global. Por sua vez, em entrevista realizada no final de 2003 com Eduardo Mendieta, Habermas revê e complementa sua posição. Discute as intervenções militares no Afeganistão e no Iraque, explica a sua iniciativa com Derrida, trata da questão do terrorismo e reage à nova doutrina de segurança nacional proposta por George W. Bush, além de reafirmar a atualidade do projeto moderno e da filosofia de inspiração em Kant. Certamente, o debate aqui registrado dará margem a novas discussões nos próximos números da Impulso. Completando esta edição, a seção “Resenhas e Impressões” registra e comenta uma publicação recente sobre o racismo, complementando de modo peculiar os vários tópicos relacionados acima. Os próximos números deverão dar continuidade aos debates aqui iniciados, dedicando-se a temas como violência, biotecnologia, a filosofia de Kant e outros. COMISSÃO EDITORIAL

002176_Impulso_35.book Page 5 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

............................... Pluralidade Ética Ethical Plurality

Punição como Instrumento de Melhoramento da Alma no Mito ao Final do Górgias Punishment as an Instrument for the Soul Improving in the Myth at the End of Gorgias

LUC BRISSON (Centre National de Recherche Scientifique-CNRS, Paris/França)

11

O Desejo Procriador entre a Liberdade e a Responsabilidade The Procreation Desire between Freedom and Responsibility

SILVIA VEGETTI FINZI (Università di Pavia, Pávia/Itália)

21

Ética Empresarial e Responsabilidade Social Corporativa à Luz da Teoria de Julgamento Moral, de Lawrence Kohlberg Business Ethics and Corporate Social Responsibility in Light of Lawrence Kohlberg’s Theory of Moral Judgment

MARGARET ANN GRIESSE (Global Responsibility Project, Concordia University, Montréal/Canadá)

33

ROBERTO CORNELLI (Università degli Studi di Milano-Bicocca, Milão/Itália)

49

...............................

Dilemas na Pesquisa Científica Dilemmas in Scientific Research Salvar o Dito, Honrar a Dádiva – dilemas éticos do encontro e da escuta etnográfica To Save the Saying, to Honor the Gift – ethical dilemmas of ethnographic encounter and listening

CARMEN SUSANA TORNQUIST (Universidade do Estado de Santa Catarina, SC/Brasil)

63

Sumário

Ethics and Criminology. The “Fear of Criminality” Case

Summary

Ética e Criminologia. O caso “Medo da Criminalidade”

002176_Impulso_35.book Page 6 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Nanotecnologia: considerações interdisciplinares sobre processos técnicos, sociais, éticos e de investigação Nanotechnology: interdisciplinary considerations on technical, social, ethical and research processes

MARISE BORBA DA SILVA (Universidade do Estado de Santa Catarina, SC/Brasil)

75

Bioética e Comitês de Ética Bioethics and Committees on Ethics

WALTER MATIAS LIMA (Universidade Federal de Alagoas, AL/Brasil)

95

Pode-se Fazer Tudo o que se Pode Fazer? May We do Everything That Can Be Done?

ÁLVARO LUIZ MONTENEGRO VALLS (Universidade do Vale do Rio dos Sinos-Unisinos, RS/Brasil)

...............................

101

Comunicações & Debates

Guerra, terrorismo e as relações internacionais

Communications & Debates

War, terrorrism and the international relations

Sumário

Summary

Introdução a um Debate Filosófico Introduction to a Philosophical Debate

AMÓS NASCIMENTO (Universidade Metodista de Piracicaba, SP/Brasil)

109

Descentralizando o Projeto de Democracia Global Decentralizing the Project of Global Democracy

IRIS MARION YOUNG (University of Chicago, Chicago/EUA)

113

Sobre a Guerra, a Paz e o Papel da Europa. Entrevista com Jürgen Habermas, por Eduardo Mendieta On War, Peace, and Europe's Role. Interview with Jürgen Habermas by Eduardo Mendieta

JÜRGEN HABERMAS (Universität Frankfurt a.M., Frankfurt/Alemanha) EDUARDO MENDIETA (State University of New York at Stony Brook, Nova York/EUA)

119

002176_Impulso_35.book Page 7 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

............................... Resenhas & Impressões Reviews & Impressions

Une Histoire du Racisme, des origines à nos jours, de Christian Delacampagne PEDRO PAULO A. FUNARI (Departamento de História, IFCH/Unicamp) 139

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO 143

Sumário

Summary

NOSSOS CONSULTORES (2003) 149

002176_Impulso_35.book Page 8 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

002176_Impulso_35.book Page 9 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Pluraridade Ética Ethical Plurality

002176_Impulso_35.book Page 10 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

002176_Impulso_35.book Page 11 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Punição como Instrumento de Melhoramento da Alma no Mito ao Final do Górgias* PUNISHMENT AS AN INSTRUMENT FOR THE SOUL IMPROVING IN THE MYTH AT THE END OF GORGIAS Resumo Este artigo parte de alguns mitos registrados em diálogos platônicos, em especial o Fédon e Górgias, para voltar à discussão sobre a relação entre corpo e alma, morte e vida na filosofia grega antiga. Discute, inicialmente, duas concepções de alma na filosofia grega, depois mostra como uma delas se tornou mais importante, por considerar a alma como independente do corpo, passível de transformação e de melhoria, mesmo após a morte. Por fim, relata como Sócrates fez uso dessa concepção para indicar que aqueles que o julgavam à morte teriam também suas penas após a morte. A conclusão indica, porém, que esse apelo ao mito do castigo da alma não era mera visão de vingança, mas possuía a importante função de estender o alcance dos preceitos morais para além do corpo e da morte, vendo a punição da alma como uma oportunidade dela se reabilitar.

LUC BRISSON Centre National de Recherche Scientifique-CNRS, Paris/França [email protected]

Palavras-chave CORPO – ALMA – CASTIGO – MORAL – PLATÃO. Abstract The present essay makes use of some myths found in platonic dialogs, especially in Phedon and Gorgias, to reconsider the discussion on the relationship between body and soul, death and life, in ancient Greek philosophy. Firstly, it discusses two conceptions of soul in Greek philosophy and then shows how one of them became more important due to its understanding of the soul as independent from the body and its possibility of being transformed and improved, even after death. Finally, it shows how Socrates made use of such conception to affirm that those who were sentencing him to death would also have their own penalties after death. The conclusion shows that such appeal to the myth of the punishment of the soul was not a mere revenge view; it had the important function of extending the moral precepts beyond body and death, understanding the punishment of the soul as an opportunity for its rehabilitation. Keywords BODY – SOUL – PUNISHMENT – MORALS – PLATO. * Tradução do francês para o português de MYRIAM MAURICE DE BARROS e IVÂNIO CÉSAR DE BARTítulo original: “Le châtiment comme instrument d’amélioration de l’âme dans le mythe de la fin du Gorgias”. Revisão de termos técnicos: ANNA MAGDALENA MACHADO BRACHER (AAI/UNIMEP).

ROS.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 11-19, 2003

11

002176_Impulso_35.book Page 12 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

P

ode-se definir a moral ou a ética como um sistema de costumes ou de condutas aceitas e estimuladas em uma sociedade. Tal definição implica correlativamente que, nessa mesma sociedade, certos comportamentos sejam admitidos e favorecidos, e outros, proibidos e condenados. Na medida em que cabe uma avaliação ética das condutas, ou seja, qualificá-las como bem ou mal, esse sistema leva à idéia de punição. Por que, de fato, colocar em prática tal comportamento admitido ou, ao contrário, privar-se de tal conduta condenada? Porque resultará ao agente, cuja meta é atingir a excelência (areté, em grego antigo), uma vantagem ou um inconveniente sobre um plano ou sobre outro. Avaliação e sanção não se resumem, portanto, nelas mesmas, pois pressupõem uma representação prévia do que é um ser humano.

1. É A ALMA, E NÃO O CORPO, QUE DEFINE O SER HUMANO Se restringirmos o agente moral a um corpo vivo, vantagens e inconvenientes se reduzirão para o corpo no estabelecimento e na manutenção de um Estado de bem-estar ou na sua colocação em perigo, e, em última análise, na continuidade desse corpo em vida ou em morte. Esse princípio governa a seleção no mundo animal e mesmo no mundo humano, ao menos em certo nível. Nesse contexto, trata-se para um indivíduo de consegui-lo o mais rapidamente possível na idade adulta e de se manter nisso o maior tempo possível, nas melhores condições para ele mesmo e para o grupo ao qual pertence. No plano do corpo, a punição é puramente biológica. Considerando as coisas de um ponto de vista sociológico ou político, e situando o agente humano em uma sociedade organizada, seria conveniente levar em conta a opinião pública e o aparelho judiciário. Assim faz Protágoras: no diálogo que leva seu nome, ele invoca noções como aidós e díke. Aidós é esse sentimento de respeito de si e de obrigação recíproca que assegura o máximo de solidariedade, manifestando-se tanto no interior de um único grupo humano quanto entre vários. E nesse sentimento de obrigação diante de si e dos outros, cria raiz, a díke, a qual, manifestando-se sobretudo na decisão judiciária, assegura a ordem dentro do grupo.1 Mais primitivo que a díke, o aidós parece, além disso, uma aplicação mais ampla, pois engloba as relações de um grupo com outro que lhe é estranho. Nesse caso, a punição é social ou política.2 Mas pode-se procurar a boa reputação e os bens aparentes ao preço da enganação, sem nenhuma preocupação do verdadeiro bem, e conseguir escapar a toda condenação judiciária. Essa é a promessa da retórica, que, além do mais, dá os meios de se obter sucesso, notadamente na Assembléia, e 1 2

GERNET, 1968, p. 180-181. A melhor descrição para Atenas clássica é a de DOVER, 1974.

12

Impulso, Piracicaba, 14(35): 11-19, 2003

002176_Impulso_35.book Page 13 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

escapar a toda perseguição sobretudo no Tribunal. De maneira a tornar o subterfúgio e a enganação, se não impossíveis, ao menos difíceis nessa área, pretendeu-se definir o ser humano não somente pelo seu corpo, mas também pela sua alma.3 E ainda é preciso determinar o que se entende por alma. Na época de Platão, duas concepções de alma se opunham; pode-se constatar que, no início de Fédon, Platão opõe duas tradições míticas: os poemas homéricos, que veiculam a concepção tradicional, e as religiões mistéricas,4 as quais colocam em primeiro plano uma concepção “minoritária”. Interlocutor rude no diálogo, Cebes evoca ironicamente a atitude comum diante da morte: Tudo isso, Sócrates, me parece muito bem exposto; mas o que você diz da alma suscita uma grande descrença nos homens: talvez devamos temer, pensam eles, que a alma, uma vez separada do corpo, não exista mais em nenhum lugar, não esteja destruída e não pereça no dia em que morre o homem; a partir do momento da separação, em que ela sai dele, talvez se dissipe como um sopro ou uma fumaça, e, assim voando, não é mais nada em lugar nenhum?5

Parece que Cebes faz menção ao conceito tradicional, o mesmo encontrado na Ilíada e na Odisséia. Escrevendo essas linhas, Platão devia pensar mais precisamente na passagem da Ilíada em que, durante a noite anterior aos funerais do guerreiro morto, a alma de Patrocle vem se entreter com Aquiles, que dorme. Quando esse último quer pegá-lo, a alma, parecida com um vapor, foge e se enfia sob a terra, soltando um pequeno grito,6 como um morcego. Nessa ótica, a morte constitui para o indivíduo um aniquilamento quase total, mesmo se al3 Sobre o assunto, cf. capítulo sobre Fédon, de Platão, in BRISSON & MEYERSTEIN, 1995. 4 Cf. BURKERT, 1985, cap. VI. 5 Fédon, 69e-70a. 6 Ilíada, XXIII, p. 100-107. Essa mesma passagem encontra-se citada no livro III da República (386b), em que Platão propõe censurá-la, pois lhe parece injuriosa em relação às coisas do Hades.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 11-19, 2003

guma coisa sobrevive dele. De maneira transitória, ele se prolonga no corpo de seus filhos, que recolheram seu capital genético, como também na memória de seus próximos e da sociedade na qual vive; mas ele mesmo prossegue sua existência somente na forma de uma entidade mais ou menos evanescente, mais ou menos durável, que se eleva aos ares ou se encaminha sob a terra. Essa entidade, já chamada psukhé (alma) na Ilíada e na Odisséia, divide seu status de realidade não sensível com outros: os deuses e os demônios. Mas todas as entidades são imaginadas a partir do mundo sensível. Deuses, demônios e almas são representados como vivos sensíveis, dotados, contudo, de poderes maiores e faculdades mais potentes; embora dividam até certo ponto a aparência e, especialmente, os defeitos. Reduzida ao estado de uma imagem débil do defunto, a alma parece, exceto a de Tirésias, o adivinho por excelência, perder a faculdade de pensar. Por conseguinte, com sua sobrevida limitada, ela se encontra praticamente privada de toda individualidade, não podendo, portanto, se inserir em um sistema de retribuição, destinado a corrigir num outro mundo as injustiças aqui sofridas ou cometidas. Aliás, nos poemas homéricos, somente são evocadas as punições dos grandes criminosos, entregues a sofrimentos exemplares. Várias passagens do Fédon reaproveitam a mesma idéia. De acordo com a concepção tradicional, a alma não está assegurada de uma sobrevida eterna, perdendo sobretudo o que constitui a sua individualidade, a sua memória e, portanto, o seu pensamento. Confrontado a essa perspectiva lúgubre, o sentimento que surge e domina é o medo, citado muitas vezes no Fédon. Platão evoca a atitude dos condenados à morte, que recusam beber o veneno, e ficam bravos com o escravo que os exorta a fazê-lo, ou que buscam ganhar tempo e aproveitar aquilo que lhes resta, comendo, bebendo e fazendo amor.7 Atitude muito natural, se temermos que a alma não se dissolva rapidamente depois de deixar o corpo, sendo a 7

Fédon, 116e-117a.

13

002176_Impulso_35.book Page 14 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

morte apenas o prolongamento provisório e sob uma forma diminuída da vida física. A essa concepção tradicional se opõe uma outra, que parece ser tirada dos ensinamentos de movimentos religiosos com certa audiência na época de Sócrates, mas que os especialistas não conseguem identificar e sobre as quais há outras informações encontradas somente em Platão: Coloquemos o problema mais ou menos nesses termos: as almas dos mortos existem no Hades, ou são elas desprovidas de existência lá? Segundo uma antiga tradição que temos na memória, as almas que deixam o corpo depois da morte têm uma existência no Hades e inversamente, renascendo daqueles que morreram, essas almas voltam ao nosso mundo. Se é assim, se os vivos renascem dos mortos uma única conclusão é possível: nossas almas devem de fato existir, quando elas se encontram lá.8

Seguindo essa nova maneira de ver as coisas, a alma separada do corpo, no qual tinha encarnado e vivido uma existência independente, desce no Hades, de onde, depois de um certo lapso de tempo, volta a encarnar num outro corpo. A noção de alma imortal e indestrutível levou tempo para se difundir,9 na medida em que recusava a clara separação estabelecida entre homens e deuses, traço fundamental da religião grega arcaica. Se a sua alma é imortal e, sobretudo, indestrutível, o homem fica parecendo com a divindade, a qual deve buscar assimilar, assimilação essa que constitui o ideal filosófico de Platão. Foi preciso, por conseguinte, esperar que tal separação pudesse conceber-se de maneira menos absoluta, a fim de que a idéia de imortalidade e indestrutibilidade da alma se desenvolvesse e expandisse.

2. O CASTIGO COMO MEIO DE TORNAR A ALMA MELHOR No final de Górgias (521c-d), Sócrates, recusando recorrer à retórica, pois faz questão de 8 9

Fédon, 70c. Sobre o assunto, cf. meu artigo, em BRISSON, 1999, p. 23-61.

14

dizer a verdade e não se resignar a fazer uso da verossimilidade destinada a produzir essa persuasão que assegura o sucesso na Assembléia e no Tribunal, se vê forçado a reconhecer que, como o ameaçou Cálicles, ele se defrontará com a incapacidade de defender-se ao longo de um processo. E, desde então, correrá o risco de morte: aí, com toda a evidência, há uma alusão ao processo cujo desenrolar é contado em Apologia de Sócrates.10 Evocando um julgamento mais importante do que todos os que dizem respeito aos vivos, aquele que espera a alma depois da morte, Sócrates quer mesmo justificar sua condenação da retórica.

O Recurso ao Mito11 Para esse proceder, ele conta um mito: “Escute, então, como dizemos (phasi) um discurso muito bonito (mála kaloû lógou), que tu pensarás, creio eu, ser um mito (mûthon), mas eu penso ser um discurso conferível (lógon), assim, te contarei (léxo) o que vou te dizer (légein) como se ele tratasse de coisas verdadeiras (alethê ónta)”.12 Reencontra-se, nessas poucas linhas, um condensado de características do mito, segundo Platão.13 Primeiramente, nos achamos em um contexto lingüístico. Recorrendo à fórmula habitual indicada pelo phasi, Sócrates anuncia que contará um mito e pede aos ouvintes para lhe dar atenção. Cálicles rebaixa esse discurso ao nível de um mito e, portanto, a uma história de mulher velha,14 ao passo que Sócrates reivindica para esse mesmo discurso o status de verdade.15 O mito apresenta, em seguida, dois traços: uma narrativa, e não um discurso argumetado, em que não pode pretender dizer a verdade, pois aborda um assunto que nem o intelecto nem os sentidos conse10

Platão escreveu Górgias e Apologia depois da morte de Sócrates e, portanto, após o seu processo. Assim, trata-se aqui de uma profecia ex eventu. Sobre isso, cf. PLATÃO, 1997. 11 Górgias, 523a1-524a7. 12 Ibid., 523a1-3. Utilizei o seguinte sistema de transliteração: êta = e; oméga = o; dzèta = z; thèta = th; xi = x; phi = ph; khi = kh; psi = ps. O iota subscrito é adscrito (por exemplo, ei) e, quando se trata de um alfa, esse alfa é longo = ai. O espírito rude é notado h e o espírito dócil não. Todos os acentos estão anotados. 13 Ibid., 523a-527e. 14 Redescobre-se aí todos os elementos do mito. Cf. BRISSON, 1995. 15 Eis por que me permiti parafrasear o último lógos, traduzindo-o por discurso plausível.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 11-19, 2003

002176_Impulso_35.book Page 15 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

guem pegar. Daí ocorre, falando claramente, o mito encontrar-se do lado do infalsificável, e não do da verdade. Mas na medida em que segue o mesmo sentido do discurso do filósofo, o mito pode, num segundo plano em que a adequação ao real cede o passo em conformidade a uma doutrina, ser qualificado de verdadeiro. Examinemos agora as particularidades dessa passagem. O objeto do mito em definitivo é a alma e, no caso presente, a alma humana que anima o corpo durante certo número de anos, antes de ter se separado dele na morte. Para Sócrates – mas aparentemente não para Cálicles –, a alma pode gozar, durante determinado tempo, de uma existência separada. Mesmo assim, a alma humana guarda a sua individualidade fundada na persistência do que há de melhor no ser humano: o pensamento. Dotada dessa potência de agir e de sofrer, ela se lembra do passado, tem receio do presente e pode, até mesmo, se projetar no futuro. Conservar sua faculdade de pensar,16 daí, portanto, suas lembranças permitirem-lhe subsistir em sua individualidade.17 É com essa única condição que um sistema retributivo pode ser posto em prática, possibilitando, sem dificuldade, corrigir as injustiças impunes18 num outro mundo, onde os virtuosos são recompensados e os maus, punidos. Uma vez que a alma persevera no ser mais tempo que o corpo por ela habitado provisoriamente, é nela que se situa a verdadeira personalidade de um ser humano. Contudo, uma concepção desse gênero leva forçosamente Platão a evocar uma retribuição ligada à alma, e não ao corpo, no quadro de vários mitos sobre o destino da alma depois da morte.19 O mito contado no final de Górgias apresenta certo número de características relativas às associações da alma com o corpo, não aparecendo mais no resto da obra de Platão. 16

Fédon, 70a-b. Ménon, 81b-d. Fédon, 63b-c. 19 O mito contado no final de Fédon e o mito de Er, referido no final da República. 17 18

Impulso, Piracicaba, 14(35): 11-19, 2003

As Lições do Mito O mito contado no Górgias começa com uma evocação aos dois últimos reinados divinos, segundo Hesíodo: o de Cronos e o de Zeus. Platão não diz nada sobre a revolta de Zeus contra seu pai,20 que culmina na sua tomada do poder. Também não cita a revolta dos Titãs, que, depois de longo combate, são precipitados no Tártaro, por Zeus.21 Isso provavelmente para não colocar em evidência os conflitos entre os deuses, condenados nos livros II e III da República.22 Mas é claro que nós nos achamos sob o reinado de Zeus, não sob o de Cronos. Contudo, depois de vencer os Titãs, Zeus dividiu as regiões do universo entre ele e seus dois irmãos. Reservou para si o ceú, entregou a Posêidon o mar e a Hades o subsolo.23 Essa referência possibilitou ainda a Platão dar um pano de fundo cosmológico à sua narrativa sobre o destino da alma depois da morte. Uma definição da morte como separação da alma – A morte, para o homem, é definida como uma separação da alma com relação ao corpo que ela move.24 Após a morte, a alma daquele que viveu na justiça e na piedade encaminha-se às ilhas dos bem-aventurados,25 ao passo que aquela vivida na injustiça é jogada na prisão chamada Tártaro. Essa orientação resulta de um julgamento associado à lei de Cronos.26 Desde o tempo de Cronos, até mesmo no começo do reinado de Zeus, os juízes eram os vivos que julgavam outros vivos e pronunciavam seu julgamento no dia exato em que os homens iam morrer.27 Mas os julgamentos eram mal executados, pois era diante dos juízes ainda vivos que os homens compareciam vivos, ou seja, com o seu corpo: podiam 20

Relatada por Homero, em Ilíada (XVI, p. 203), e por Hesíodo, em Teogonia (p. 629). 21 Conforme Homero, em Ilíada (VIII, p. 478ss). 22 Cf. em especial República (III, p. 377c-378b). 23 Tal repartição, a mesma do universo, é citada no início do Timeu. Sobre o assunto, cf. PLATÃO, 1992 e 2001. 24 Para uma definição similar, cf. Fédon, 64e. 25 As ilhas dos bem-aventurados são a morada da raça dos heróis de Hesíodo (Os Trabalhos e os Dias, p. 166ss) e dos homens bons de Píndaro (Olímpicos, II, p. 68ss). PLATÃO (República, VII, p. 540b). 26 Para uma descrição do reino de Cronos, cf. o mito em PLATÃO, 2003. 27 Nenhum testemunho em toda a Antiguidade clássica corrobora o que Platão diz aqui.

15

002176_Impulso_35.book Page 16 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

mostrar a nobreza de sua origem, sua beleza e a riqueza de suas vestes, e colocar a própria família para intervir, além de testemunhas. Isso impressionava os juízes, que se encontravam na mesma condição.28 Eis por que Zeus ordena aos humanos serem julgados mortos por juízes também mortos e pergunta a Prometeu sobre tirar dos homens a faculdade de conhecer o momento de sua morte.29 Separada do corpo que a envolvia como uma roupa, a alma se encontra nua.30 Daí segue que o julgamento depois da morte torna-se radicalmente diferente daqueles desenrolados com os vivos. Logo após a morte, as almas passam por um julgamento diante de Minos, Radamante e Éaco.31 Esses dois últimos são instituídos juízes e dão o seu veredicto às almas nuas, desprovidas do corpo e de tudo ligado a ele. Minos supervisiona. As almas boas são enviadas às ilhas dos bemaventurados, ao passo que as almas más, com as marcas de suas faltas, são punidas no Tártaro, onde pagam por seus erros. As almas más que podem ser curadas se vêem purificadas da injustiça pelo sofrimento. Ao contrário, as almas incuráveis sofrem eternamente as aflições maiores, em punição a suas faltas, para servir de exemplo às demais. Por conseguinte, viver nesse mundo de maneira virtuosa ou não gera graves conseqüências no outro mundo. Contudo, como a personalidade de um ser humano é ligada não a seu corpo, mas a sua alma, o julgamento que precisará sofrer após a morte revela-se mais importante que todos aqueles confrontados pelo indivíduo durante a vida. A nudez da alma após a morte (524a8525a7) – Mesmo falando de almas nuas, despro28

Pode-se achar, nessa crítica, um pararelo com a Apologia (p. 38d-39a). Junto a Ésquilo, Prometeu insinua ter agido de um certo jeito, por sua própria iniciativa (Prometeu Acorrentado, p. 248ss). 30 Para a mesma idéia, cf. Crátilo, p. 403b5. 31 Esses três juízes, aos quais acrescenta-se Triptálemo, em Apologia (41a), são todos filhos de Zeus. Minos é um rei de Creta, que mantém ligações particulares com Zeus (Odisséia, XIX, p. 178) e continua a exercer seu poder no mundo dos mortos (Odisséia, XI, p. 568). É o filho de Zeus e Europa que se casa com Pasiphaé, filha de Zeus. Radamante é parecido com Minos e apresentado como rei e juiz (Pindare, Olímpicos, II, p. 75ss). É sempre considerado como justo (Píndaro, Píticos, II, p. 73ss), daí sua função de juiz junto aos mortos. Filho de Zeus, Éaco é o rei de Égine e continua a ser juiz no Hades (Ilíada, XXI, p. 189). Triptoléme é o filho de Céleo de Elêusis (Apollodoro, I 5,2; Pausânias, I 14, p. 2). Déméter o inicia nos mistérios de Eleusis. 29

16

vidas de todo corpo, Platão não consegue descrever sua natureza moral, nem pensar mais concretamente nos castigos fora do corpo. No início, Sócrates parece ter muita dificuldade em conceber a alma num contexto em que faça totalmente a abstração do corpo. A princípio, ele declara: “Assim que ela se despe (gumnothêi), desprovendo-se do corpo, podemos ver todos os seus traços naturais, como as impressões por ela recebidas, impressões estas tais e quais segundo o modo de vida do homem que a tenha possuído e em cada circunstância a teve a prova”.32 Eis por que os juízes podem ter diante dos olhos o espetáculo de uma alma “marcada de golpes de chicote (diamemastigoménen), cheia de cicatrizes (oulôn mestèn) deixadas pelos perjúrios e pela injustiça, marcas impressas sobre a alma (exomórxato eis tèn psukhén) desse homem por cada uma de suas ações”.33 Nota-se que o chicote era reservado aos escravos; no que concerne às cicatrizes, é necessário considerar que elas não constituem nesse contexto marcas de glória. Percebe-se, enfim, que o verbo exomórgnumi conjugado no meio dá idéia de uma marca deixada sobre um tecido, ao se enxugar as mãos, por exemplo. A permanência desses traços descritos de maneira concreta constitui, portanto, a garantia de que o julgamento ao qual a alma se submete corresponderá bastante à realidade. Sócrates prossegue afirmando que, depois de julgá-las, Radamante marca as almas pérfidas de um sinal,34 indicando se elas são incuráveis ou não.35 Então, a alma boa é enviada às ilhas dos bem-aventurados enquanto a má é precipitada no Tártaro, para lá sofrer. Nota-se, além disso, que esses dois lugares situam-se no interior do universo. O Tártaro é um abismo, uma espécie de túnel atravessando diametralmente a Terra e necessariamente representado como esférico. No mais, Platão parece não situar as ilhas dos bem-aventurados nem nos infernos, como no caso de Homero, nem no Sol 32 33 34 35

Górgias, 524d5-7. Ibid., 524e5-525a2. Para a mesma idéia, cf. República (X, p. 614c). Górgias, 526b.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 11-19, 2003

002176_Impulso_35.book Page 17 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

e na Lua, como faziam os pitagóricos (posteriores), e sim na superfície da Terra.36 Também no Tártaro, as almas suscetíveis de cura são confrontadas com os exemplos das incuráveis, que sofrem castigos descritos de maneira muito concreta: Mas há muitos outros homens que tiram proveito do fato de vê-los sofrer perpetuamente (páthe páskhontas tòn aei khrónon), em punição a suas faltas, os sofrimentos mais graves, mais dolorosos, mais assustadores. Pois esses homens que se vê lá, no Hades, agarrados às paredes de sua prisão (anerteménous ekeî en Haidou en toî desmoteríoi), são, para todo homem injusto que chega, um assustador exemplo, ao mesmo tempo que um horrível espetáculo e uma advertência.37

Nesse suplício será condenado Arquelau, cujos crimes são citados por Polo38 e que no mito de Er tem como equivalente Ardieu.39 Os que, assim, servem de exemplo são quase todos homens que desenvolveram ação política: Tântalo,40 Sísifo,41 Tityos;42 no dizer de Sócrates, só Aristide, filho de Lisímaco, escapa à regra. Em contrapartida, os criminosos que tinham agido por questões particulares, mesmo com seus crimes atrozes, como no caso de Tersites,43 não eram 36

Sobre esses dois lugares, cf. PLATÃO, 1991. Górgias, 525c4-8. 38 Ibid., 471a-c. 39 Cf. República (X, p. 615c-e). 40 Tântalo era filho de Zeus, rei de Lídia ou de Frígia. Não se sabe que erro cometera, mas seu castigo era memorável. Em Odisséia, conta-se que ele era afligido de sede e de fome permanentes, embora tenha sido mergulhado na água e que um galho carregado de frutos pendia acima de sua cabeça (Odisséia, XI, p. 582-592). 41 Tendo provocado a ira de Zeus, Sísifo, rei de Corinto, teria sido atingido por um raio e precipitado no Tártaro para sofrer o castigo de empurrar uma enorme pedra numa subida. Assim que a pedra alcançava o topo, ela tornava a descer e o trabalho precisava ser recomeçado (Odisséia, XI, p. 593-600). 42 Tityos, rei da Eubéia, era um gigante, filho de Zeus, que a deusa Hera, cega pelo ciúme, lançou contra Leto, sua rival. Zeus o atingiu com um raio e lançou-o ao Tártaro, onde duas serpentes ou duas águias devoraram seu fígado, que renascia segundo as fases da Lua (Odisséia, XI, p. 575-581). 43 Tersites era o mais feio e o mais covarde dos gregos. Aleijado, torto, corcunda e careca, teria sido morto por Aquiles, por ter arrancado os olhos de Amazona, Pentesiléia, que o herói acabara de matar em combate (Ilíada, II, p. 211ss). No mito de Er, escolheu reencarnar como macaco (República, X, p. 576ss). 37

Impulso, Piracicaba, 14(35): 11-19, 2003

considerados incuráveis. Dito isso, os castigos destinados aos grandes criminosos, todos eles homens políticos,44 são descritos como se tratassem de castigos físicos. Pode-se pensar no mesmo para as almas passíveis de ser curadas. Nessas duas ocasiões, quando de seu julgamento e castigo, a alma, mesmo desprovida do corpo, aparece como uma cópia dele. A situação é capaz de se explicar também pelo fato de que, mesmo separada do corpo, a alma resta sempre no universo. Embora estando as almas desprovidas de todo corpo, Platão não consegue pensar nas faltas nem nos castigos sem utilizar imagens a ele vinculadas. Daí a hipótese neoplatônica de uma alma que, mesmo separada de seu corpo terrestre, é dotada de um veículo.45 Dito isso, os castigos sofridos por todas as almas, curáveis ou incuráveis, não são eternos. É preciso interpretar a expressão tòn aei khrónon num sentido restritivo, como de um ciclo de dez mil anos, por exemplo, em Fedro.46 Na Antiguidade tardia, a doutrina da punição eterna para uma falta limitada constituía um escândalo. Em resumo, ao longo do mito contado em Górgias, a alma se encontra representada com a ajuda de características corporais. Originária de regiões particulares na Terra, ela evolui em certas partes do universo e submete-se ao reinado da temporalidade. O castigo como instrumento de melhoramento da alma (525b1-526d2) – Entre as almas precipitadas no Tártaro, algumas podem ser curadas e outras não. No primeiro caso, o sofrimento infligido é destinado a permitir à alma aperfeiçoar-se, tirando, desse modo, proveito da pena; de fato, não é possível livrar-se da injustiça de outra maneira que não seja o sofrimento. Por outro lado, as aflições das almas incuráveis são relegadas como exemplo para as outras almas; elas lhes possibilitam o aperfeiçoamento. Nos dois casos, portanto, a punição não é considerado uma 44

Uma vez que eles são responsáveis por um grande número de homens, e seu poder é grande, o mal por eles causado é forçosamente maior do que aquele gerado por um indivíduo qualquer. 45 Essa hipótese baseia-se em três passagens do corpus platônico: Fédon (p. 113c), Fedro (p. 247b-c) e Timeu (p. 41d-e). 46 Sobre o assunto, cf. PLATÃO, 2002.

17

002176_Impulso_35.book Page 18 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

vingança, mas um instrumento de melhoramento,47 para si e para os outros. No entanto, que sentido dar à idéia de melhoramento? É então que a reencarnação, não explícita nesse mito, parece dever desempenhar aí um papel. Platão não diz ao certo nada sobre o que acontecerá depois da cura de uma alma má. Não encontramos em Górgias nenhuma alusão à possibilidade de ela voltar num outro corpo. Mas como poderia ser de outro modo, se a cura é a meta da punição? Referindo-se a esse mito, Sócrates prova a Cálicles que, para permanecer justo, ele não tem medo de enfrentar a morte; e acaba devolvendo a ameaça contra aquele que o intimida. Realmente, o julgamento que o tribunal humano pode efetuar pouco representa aos olhos daqueles que serão pronunciados por Radamante, Éaco e Minos no outro mundo, dirigidos à alma colocada a nu. A retórica torna possível, por meio do recurso do supostamente verdadeiro, dar socorro nesse mundo a um acusado, mas revela-se impotente no outro mundo, onde apenas a bondade moral poderá pleitear em favor da alma. Diante do fato de que Polo, Górgias e Cálicles, embora se achem os mais hábeis entre os gregos, não puderam demonstrar (apodeîxai) ser preciso viver outra existência do que aquela recomendada, Sócrates pretende persuadir-nos, median47

Cf. SAUNDERS, 1991, p. 196-211.

te um mito, de que a felicidade está ligada à justiça, tanto nessa vida quanto na outra.

CONCLUSÃO (526d3-527e7) Encontramos, nas últimas páginas de Górgias, temas que atravessam toda a obra de Platão. A morte é concebida como a separação da alma com relação ao corpo. É na alma que se situa a verdadeira personalidade de um ser humano. E como a alma sobrevive mesmo deixando o corpo que habitava anteriormente, ela será julgada por seres mais poderosos que os homens. Na maior parte dos casos, esses seres lhe infligirão castigos, tendo em vista o seu melhoramento ou o das outras almas. Diferentemente dos demais mitos escatológicos, aquele relatado no final de Górgias permanece bem concreto. A alma aparece nele como uma cópia do corpo, deslocando-se no espaço e no tempo de nosso universo. Mas por descrever as peregrinações da alma, Platão deve recorrer ao mito, como é especificado no final de Fédon e da República, em Fedro e mesmo no Banquete. Opondo-se aos mitos, na medida em que propõem como modelo um sistema de valores não correspondente àquele que a filosofia procura instaurar, Platão nunca hesita, contudo, em valer-se deles, quando, ao tratar da alma como situada entre o sensível e o inteligível, ele não pode mais recorrer nem à opinião nem à ciência.

Referências Bibliográficas BRISSON, L. “La réminiscence dans le Ménon (80e-81e) et son arrière-plan religieux”. In: SANTOS, J.T. (org.). Anamnese e Saber. Lisboa: Editora José Trindade Santos/Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa/Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1999, p. 23-61. BRISSON, L. [1982] Platão, les mots et les mythes. Paris: La Découverte, 1995. BRISSON, L. & MEYERSTEIN, F.W. Puissance et Limites de la Raison. Le probleme des valeurs. Paris: Les Belles Lettres, 1995. BURKERT, W. [1977] Greek Religion Archaic and Classical. Trad. J. Raffan. Oxford: Blackwell, 1985. DOVER, K.J. Greek Popular Morality. In the time of Plato and Aristotle. Oxford: Blackwell, 1974. GERNET, L. [1951] “Droit et prédroit en Grèce ancienne”. In: ______. Anthropologie de la Grèce Antique. Paris: Maspero, 1968. PLATÃO. Le Politique. Apresentação, tradução e anotações de Luc Brisson e Jean-François Pradeau. GF 1156, Paris: Flammarion, 2003.

18

Impulso, Piracicaba, 14(35): 11-19, 2003

002176_Impulso_35.book Page 19 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

PLATÃO. Phèdre. Apresentação, tradução e notas de M. Dixsaut. GF 489, Paris: Flammarion, 1989, 2002. PLATÃO. Timée/Critias. Apresentação, tradução e anotações de Luc Brisson. GF 618, Paris: Flammarion, 1992, 2001. PLATÃO. Apologie de Socrate, suivi de "Criton". Introdução e traduções inéditas de Luc Brisson. GF 848, Paris: Flammarion, 1997. PLATÃO. Phédon. Apresentação, tradução e notas de M. Dixsaut. GF 489, Paris: Flammarion, 1991. SAUNDERS, T.J. Plato’s penal code. Tradition, controversy, and reform in Greek penology. Oxford: Clarendon, 1991. Dados do autor Especialista em estudos clássicos, tradutor de Platão ao francês e diretor de Pesquisas do Centre National de Recherche Scientifique (CNRS), Paris/França. Recebimento artigo: 17/jun./03 Consultoria: 28/ago./03 a 19/set./03 Aprovado: 23/set./03

Impulso, Piracicaba, 14(35): 11-19, 2003

19

002176_Impulso_35.book Page 20 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

20

Impulso, Piracicaba, 14(35): 11-19, 2003

002176_Impulso_35.book Page 21 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

O Desejo Procriador entre a Liberdade e a Responsabilidade* THE PROCREATION DESIRE BETWEEN FREEDOM AND RESPONSIBILITY Resumo A partir das discussões sobre o “bebê de proveta”, este artigo chega a questões atuais da bioética. Concentra-se nas mudanças sociais e tecnológicas que hoje possibilitam a procriação alternativa, independente do casamento e das relações sociais ou sexuais, já que o que conta são os “filhos da ciência” com paternidade e maternidade comprovadas pelo DNA. A autora ressalta, porém, que essas mudanças tecnológicas não conseguem tematizar a dimensão do desejo, a relação filial nem outros aspectos sociais e humanos. Assim, as perguntas da bioética levam à discussão sobre o desejo, a liberdade e a responsabilidade, tratadas a partir da psicanálise. O papel da psicanálise, nesse caso, é denunciar a existência de um desejo narcisista que, ao invés da relação com outros, busca a autogeração e a auto-suficiência. Palavras-chave PSICANÁLISE – DESEJO – PROCRIAÇÃO – BIOÉTICA – PROCRIAÇÃO. Abstract On discussing the “test-tube baby”, the article approaches the contemporary issue of bioethics. It focuses on the social and technological changes that allow alternative procreation, independent from marriage and social or sexual relations, since the major issue is the “children of science” with DNA-proved parenthood. The author emphasizes, however, that these technological changes are not able to approach the dimension of desire, the filial relationship and other social and human aspects. Thus, the issues on bioethics lead to the debate on desire, freedom and responsibility, which can be dealt with from a psychoanalytical view. In that case, the role of Psychoanalysis is to denounce the existence of a narcissistic desire that, instead of pursuing the relationship with the other, seeks selfgeneration and self-sufficiency. Keywords PSYCHOANALYSIS – DESIRE – PROCREATION – BIOETHICS. * Traduzido do italiano para o português por NUNO COIMBRA MESQUITA. Título original: “Il desiderio procreativo tra libertá e responsabilitá”.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 21-32, 2003

21

SILVIA VEGETTI FINZI Università di Pavia/Itália www.silviavegettifinzi.net

002176_Impulso_35.book Page 22 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Uma pessoa não será aquilo que deve se não for aquilo que pode. GOETHE

A

partir de 1978, data de nascimento de Louise Brown, a primeira “menina de proveta”, as intervenções técnicas sobre a fecundação humana foram rapidamente se afirmando em todo o mundo. Contrariamente a todas as expectativas, as propostas de fecundação artificial não encontraram, por parte da opinião pública, as reações de desconfiança e de medo que poderíamos esperar de um acontecimento assim desconcertante. Na Itália, apesar da pesada condenação da Igreja Católica, o evento passou quase despercebido, como se fosse uma possibilidade obviamente oferecida pelo progresso científico. Haveria aí muito o que se dizer sobre esperanças suscitadas pelo positivismo, quando a cura das doenças e das disfunções parecia um progresso irresistível, resultado de um saber cumulativo e de uma técnica cada vez mais aperfeiçoada. Mas se a ciência não reconhece os próprios limites, acaba por terminar com a magia. A medicina, que perseguia um conhecimento objetivo e racional do homem e do mundo, realmente suscitou nos seus frutos atitudes mágicas e salvadoras. Na medida em que a ciência insere-se numa perspectiva messiânica, espera-se que o mal de viver, que aflige o corpo e a mente do homem, seja, num futuro próximo, debelado. Para o imaginário, de fato, não existem limites. É só uma questão de tempo e de modo, mas, afinal, cada problema encontrará a sua solução. Compreende-se, portanto, como a esterilidade, defaillance da natureza, constitui um desafio para a medicina, para a onipotência que lhe vem indevidamente atribuída. Sabemos que é difícil definir como terapia orgânica as intervenções biotecnológicas que procuram combater as condições de esterilidade, porque o corpo, também quando submetido a condições de procriar, permanece substancialmente estéril. Entretanto, quem se submete a essas intervenções, ainda que não readquira integridade e funcionalidade, pode alcançar um propósito vital, inscrito no corpo e na mente, um objetivo capaz de tornar-se essencial para a definição ou a confirmação da identidade pessoal e do casal.1 No entanto, ao privilegiar a dimensão psicológica da fecundação artificial, devemos prestar a máxima atenção à relação terapêutica. Freqüen1

Cf., nesse sentido, BOCCIA & ZUFFA, 1998.

22

Impulso, Piracicaba, 14(35): 21-32, 2003

002176_Impulso_35.book Page 23 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

temente, nesse âmbito, a relação médico-paciente, investida de desejos exagerados, indiferentes ao limite e à medida, incapazes de aceitar a injustiça e o infortúnio, demonstra-se de alto risco. Uma vez que a demanda pela fecundidade não se limita ao obstáculo orgânico, mas coloca em jogo o sentido de existência, o valor de si e a própria realização, o direito à felicidade acaba envolvendo toda a esfera psíquica, consciente e inconsciente, racional e irracional. E o inconsciente, como se sabe, é infantil, onipotente, intransigente, seguro de obter tudo aquilo que pede. Um regime de alta perturbação emotiva existe em toda a medicina, mas incide particularmente sobre a fecundação induzida, na medida em que o ginecologista intervém no misterioso e emocionante procedimento da vida sexual. O médico, preso ao jogo espetacular dos desejos, tenta de toda maneira responder, com uma criança, à mulher, que quer um filho a todo custo.2 Entretanto, as dinâmicas do desejo desaparecem pelo esmagamento da demanda sobre a necessidade. O ginecologista traduz, de fato, um pedido complexo, difícil e contraditório no registro médico da doença e da cura. O silêncio do sujeito sobre o seu desejo determina uma série de delegações: do paciente ao médico, do médico às técnicas. Introduz-se, assim, em toda a sua complexidade, o tema mais desconhecido da medicina e da reflexão bioética: o do desejo.

O termo desejo é o mais enigmático de toda a psicologia humana. Etimologicamente desiderium significa ter parado de contemplar as estrelas com intentos desejosos. Nesse sentido, remete-se a um processo histórico de laicização progressiva da vida e do destino. “O homem mostra-se lançado na distância que o exila da ordem do cosmo, da salvaguarda das constelações, do mito de uma natureza benévola que rege os modos do acontecer.”3

Uma vez que se deseja somente aquilo que não se tem mais e não se possui ainda, o desejo situa-se entre o passado e o futuro, e, como tal, consiste na ausência. Não se trata, contudo, de carência de um objeto, como acontece com a necessidade, inscrita na seqüência linear causa-efeito, e sim de uma falta do ser, de ausência de si a si. Enquanto a necessidade, por exemplo, a sede, pode ser satisfeita com uma ação específica, beber, e com um objeto determinado, a água, o desejo, não saturável num agir ou numa coisa, exprime sobretudo o desejo de ser reconhecido como expressão de um sujeito desejoso. O desejo coloca-se, portanto, na dialética com o outro, na lógica especular da reciprocidade; a demanda de reconhecimento funda, ao mesmo tempo, a identidade e a modificação, duas faces da mesma moeda. Para a psicanálise, o desejo pertence à dimensão do inconsciente e alimenta-se pela marca mnêmica de uma satisfação remota, pré-histórica. Protótipo de toda satisfação é a unidade mãe-filho, quando, no período neonatal, o menino é a mãe. Ser indistinto, sem falhas, sem defeitos, exemplar do uno, de tudo o que o indivíduo, separado da matriz, aspira a retornar.4 O motor do desejo está, então, no passado, numa condição perdida para sempre, inalcançável e, por isso mesmo, telos de toda tensão desejosa. A relação dual mãe-filho situa-se no período préedipiano, antes do tempo e do espaço, antes que um sujeito diga “eu”. Só posteriormente a unidade originária, que não conhece conflito, aparece realmente separada da proibição do incesto, representada pelo pai. Como escreve Racamier, “O Eu, depois da primeira infância, antes ainda de surgir, e até a morte, renuncia à posse total do objeto, realiza o luto de uma união narcisista absoluta e de uma constância do ser indefinida, e, a caminho desse luto, funda suas próprias origens, opera a descoberta do objeto e do Si e inventa a interioridade”.5

2

4

O DESEJO FEMININO ENTRE A LIBERDADE E A RESPONSABILIDADE

3

Cf., nesse sentido, FINZI, 1990. VEGETTI, 1998, p. 74.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 21-32, 2003

5

FREUD, 1977. RACAMIER, 1993, p. 39.

23

002176_Impulso_35.book Page 24 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Graças ao negativo da interdição, o absoluto positivo se rompe e, na sua densidade, insinuase a falta. O binômio especular, apoiado no narcisismo, articula-se na triangulação edipiana – pai, mãe, filho –, na qual cada um se define pela distância, pela diferença, pela falta. Triangulação imóvel, se no seu interior não continuasse a trabalhar a capacidade desestruturante da proibição. Em virtude notadamente da proibição do incesto é que o triângulo edipiano se desmancha, deixando decorrer as energias que o animavam até o exterior, o não familiar, o estranho, o outro. Passa-se, assim, do regime endogâmico da infância ao exogâmico da maturidade, resultado de uma dupla proibição: aquela relacionada à mãe, “Não reintegrarás o teu produto”, e a associada ao filho, “Não casarás com a mãe e não matarás o pai”. O desejo de um filho é, por conseguinte, efeito de um regime contraditório, do ser e do não-ser. O primeiro consiste na memória de uma satisfação sem limites; o segundo, na imposição de um limite sem satisfação. Ligado inicialmente à mãe pré-edipiana, o desejo destina-se a nunca encontrar o objeto procurado, impossibilitado pela proibição do incesto. No vazio criado entre a mãe e o filho, toma forma, invocada pelo desejo de ambos, aquela imagem de gerado que denominei criança da noite.6 A ausência do filho precede a sua imagem e, num certo sentido, o evoca.7 Para a mulher, trata-se de passar da fantasia de dar uma criança à mãe à fantasia de pedir um filho ao pai. E se dá aquilo que se tem, enquanto se pede aquilo que não se possui. Entre as duas posições, interpõe-se a proibição do incesto, não apenas separando o filho dos seus objetos de amor, das pessoas mais próximas a ele, mas também o dividindo de si mesmo, impedindo-o de sustentar-se na auto-suficiência narcisista. O su6

Para o tratamento desse tema no imaginário individual e cultural, remeto ao já citado Il Bambino della Notte (FINZI, 1990). Para a dimensão evolutiva da imagem, cf. FINZI, 1995, p. 147-190. 7 Para uma representação visível da criança da noite, remete-se à pintura renascentista em que, ao lado do Menino Jesus, aparece a sua cópia, João Batista, retratado mais como uma criatura selvagem, com longos cachos escuros e o corpo envolvido por peles de animais ferozes.

24

jeito, mediante o luto da própria integridade originária, se abre à demanda e, por isso mesmo, ao reconhecimento do outro. Por séculos a geração tem pedido a união, vale dizer, o abandono da fantasia infantil de partenogênese, substituída pela humilhante admissão de que ninguém basta a si mesmo e de que, para procriar, são necessários dois seres. No plano da realidade, tal admissão continuará válida até quando não forem disponíveis processos de clonagem e de gestação extracorpórea. Entretanto, sobretudo para as mulheres, a redução do parceiro a material de geração – como ocorre na doação anônima de esperma – parece realizar a imagem inconsciente da partenogênese. Nascer de si e gerar de si são duas faces da mesma moeda, expressão da onipotência reinante nos alvores da vida psíquica e que nunca vem abandonada do todo. Nesses últimos anos, a fantasia da autogeração manifesta-se publicamente no pedido (elitista, mas amplamente difundido como mensagem expressa por estrelas do cinema, da televisão e da música) de ter um filho sem empenhar-se na relação sexual, sem pedir nada a ninguém. Independentemente dos limites tecnológicos, no pensamento comum a procriação, automatizada não só da união conjugal, como também da relação sexual, está se tornando uma variável autônoma concebida pelo Eu como manifestação de si, como modalidade de auto-realização.

UNIÃO CONJUGAL E GERAÇÃO: DISSOLUÇÃO DE UM BINÔMIO HISTÓRICO Ainda alguns anos atrás, a filiação apresentava-se como conseqüência do casamento. Uma vez casados, os dois cônjuges tornar-se-iam, automaticamente, pai e mãe dos seus eventuais filhos. Enquanto os matrimônios representavam uma escolha, a geração não, porque, havendo optado pelo regime conjugal, a procriação vinha automaticamente. Dessa forma, faltando um âmbito de reflexão e decisão, não se punham em ordem ao gerar problemas particularmente morais; conflitos e contradições ficavam latentes.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 21-32, 2003

002176_Impulso_35.book Page 25 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Somente quando, com a contracepção, a sexualidade separou-se da procriação e, com a fecundação artificial, a procriação se fez independente da sexualidade, tornou-se possível escolher se, quando e como tornar-se genitores. Emergiram, então, perturbações do desejo gerador, deixando problemático o campo da genealogia humana. “Quem é filho de quem?” é a pergunta subjacente às transformações produzidas pela mutação das relações familiares e da difusão das biotecnologias. Enquanto os pais podem ser dois – genético e social –, as figuras maternas podem ser três – genética, biológica e social. Até agora, a identificação da mãe verdadeira baseia-se, pela nossa legislação, sobre a evidência do parto. Cabe à gravidez e ao nascimento fornecer a autenticação da relação mãe-filho. No momento em que tudo, na nossa sociedade, está se revelando cada vez mais abstrato e simbólico, enquanto as relações se reduzem a mensagens informáticas, e mesmo o corpo parece se dissolver na multiplicidade das próteses que substituem e ampliam as suas funções, a maternidade permanece juridicamente ancorada ao cordão umbilical, último vínculo que o indivíduo moderno mantém com o seu componente natural, orgânico da origem. Ao contrário, o pai aparece cada vez mais freqüentemente apenas na certidão de família, uma presença ausente, que as mulheres aprenderam a substituir, assumindo para si ambas as funções de genitor.8 De um lado, então, um resíduo material, a mãe, colo, de outro, um formalismo abstrato, o pai, nome, estritamente no cruzamento corpoLei. A tentativa é preservar, na dissolução dos vínculos biológicos e sociais, as figuras parentais de manter a triangulação edipiana como ponto de referência da identidade de cada recém-nascido. No entanto, a introdução do divórcio modificou profundamente a estrutura familiar e, é claro, sobretudo nas novas gerações a ligação conjugal está acabando, ainda que possa durar a

vida toda, ao passo que o núcleo permanente é representado pelos genitores. Pode-se sempre deixar de ser marido e mulher ou de constituir um casal, mas a relação genitores-filhos é para sempre.9 A defasagem entre os tempos da união conjugal (no papel ou não) e o dos genitores, tornando difícil coordenar as funções parentais, sobretudo em regime de separação, faz com que seja sempre mais desejável um filho próprio, uma criança crescendo numa família monoparental, seja ela constituída pela mãe ou pelo pai. Se, em determinada época, o filho criado apenas pela mãe era um filho ilegítimo ou precocemente órfão, agora a sua condição não é necessariamente provocada por um destino negativo, por uma privação dolorosa. Pode ser o êxito de um desejo forte e vital, expressão da raiz narcisista do Eu que convém reconhecer e analisar. Nesses casos, não se anula somente o pai, como também a posição paterna na triangulação edipiana; o esquema familiar contrai-se de três a dois lugares. As novas famílias, compostas ainda originalmente pela mãe e filho/a e, no futuro, pelo pai e filho/a, são os êxitos extremos de um processo de desagregação cujas principais etapas, como vimos, são a separação: da sexualidade da procriação, da procriação da sexualidade, dos genitores da união conjugal. Tais cisões se referem, ao mesmo tempo, à sociedade, ao casal e ao indivíduo. Muda, de fato, também a geometria da mente, sempre menos organizada em torno da base do complexo edipiano.10 Também as figuras interiores, consideradas por Freud universais e perenes, não estão destinadas a desaparecer assim rapidamente, podendo-se prever um período longo de dissonância entre o mundo interno e o externo.

A INDEFINÍVEL RELAÇÃO GENITOR-FILHO: FILHO DE SANGUE OU DE NOME? No que se refere à procriação humana, existem atualmente dois vetores com tendência a 9

8

Cf., nesse sentido, ZOJA, 2000.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 21-32, 2003

10

BERNARDINI, 1995. PRETA, 1999.

25

002176_Impulso_35.book Page 26 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

unir e a incentivar o fato. Por parte do desejo individual: um filho próprio, não conjugado, partenogênico. Por parte da ciência: uma criança perfeita, produto de alto nível da engenharia genética. Será difícil, no futuro, resistir à oferta de uma criança extremamente saudável, linda e inteligente. Está realmente em jogo a felicidade, o futuro dos genitores e sabe-se que eles dificilmente resistem à possibilidade de ver realizadas todas as suas expectativas. Observa-se, além disso, que quanto mais o produto da geração vem separado da figura do genitor, mais ele se torna susceptível às manipulações melhoradoras. É significativa, nesse sentido, a utopia platônica da República, em que a educação em comum dos recém-nascidos, precedida por uma rígida seleção, é perseguida por meio de uma manipulação rígida do corpo e do espírito. Quanto a isso, escreve Patrizia Pinotti: “estratégia perseguida pelo pai do discurso para obter uma ótima geração: romper a ligação entre a criança e a mãe biológica, deflagrando essa última em uma pluralidade de figuras, a cada uma das quais compete, respectivamente e hierarquicamente, um segmento de todo o processo gerativo”.11 Vimos de que maneira a família contemporânea, apresentada como estrutura complexa, tem se afirmado sobre o forte núcleo da relação genitorfilho. Mas aquela que se evoca como baluarte da identidade humana ameaçada é, ao contrário, a família imaginária, transmitida pela tradição como estrutura capaz de organizar socialmente e individualmente a anarquia impulsiva. Tradicionalmente, o desejo inconsciente, que urge até objetivos anárquicos, foi canalizado na triangulação familiar, moldado pelo seu sistema de incentivos e proibições, de modo que, como observam Deleuze e Guattari, “não ultrapassa as muralhas domésticas para inundar a sociedade”.12 Uma vez inscrita no circuito da transmissão entre gerações, a onipotência narcisista encontra automaticamente as suas mediações. En11 12

PINOTTI, 2000, p. 493-510. DELEUZE & GUATTARI, 1973.

26

tretanto, bem examinada, também a família tradicional reveste apenas formalmente uma estrutura estável e evidente, pois, no seu interior, revelam-se falhas e contradições que colocam em crise o sistema de cooptação. Ainda que definida aristotelicamente como célula natural da sociedade, a família paradoxalmente assinalou, mesmo aos filhos naturais, uma posição marginal e estranha. A consangüinidade, embora constitua um traço da natureza, não basta sozinha para atribuir o estatuto de filho. Nas sociedades tradicionais, o verdadeiro filho não é o natural, nascido da mãe núbil ou adúltera, fruto de um amor proibido, de um impulso sexual incontrolado, e sim o certificado, vindo ao mundo no espaço protegido pelo matrimônio e pela casa dos avós. Assim, o pai autêntico é o pai social, que legitima com o seu nome o produto da relação conjugal segundo o pacto solidário entre corpo e Lei, até agora em vigor, ainda que o novo direito de família tenha, para todos os efeitos, equiparado o filho reconhecido, seja ele nascido dentro ou fora do casamento. À luz das contradições da família tradicional, a criança nascida da fecundação artificial com sêmen de um doador resulta menos extravagante do que o previsto. Coloca-se, de fato, a meio caminho entre o imaginário e o simbólico, entre o segredo e a evidência, entre a natureza e a cultura. De um lado, é produto do material genético proveniente de um doador desconhecido, do qual não se conhecem nem a generalidade nem as motivações; do outro, é filho de um desejo personalizado, a ponto de justificar-se, mas não de realizar-se. No cruzamento entre um corpo não simbolizado (o doador) e um símbolo incorpóreo (o pai social) insere-se a criança tecnicamente induzida. Para muitos observadores, os filhos nascidos da fecundação artificial constituem, no que diz respeito à postura do genitor, um recuo moral em relação aos valores de comunidade e solidariedade expressos nos anos 70, quando o projeto de adoção parecia assinalar o fim da prioridade atribuída na família às relações de propriedade e às ligações de consangüinidade. O motivo que instiga

Impulso, Piracicaba, 14(35): 21-32, 2003

002176_Impulso_35.book Page 27 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

a maior parte dos casais ao longo do percurso difícil da fecundação dita heteróloga é notadamente a esperança: “Que a criança seja pelo menos parcialmente nossa, que reproduza as nossas características, que seja semelhante a pelo menos um de nós”. A consangüinidade parece, assim, constituir um valor prevalecente quanto à disponibilidade afetiva e à relação social. Assistimos, atualmente, a uma proposta de Lei que consente a cada nascido, atingida a maioridade, a recuperação de seus dados de registro civil: o conhecimento da mãe e eventualmente dos pais naturais. Se, pouco tempo atrás, o segredo da origem endossava a suficiência da família adotiva e protegia a sua intimidade, o cancelamento dos dados de nascimento mudou improvisadamente de significado e aparece, então, como uma violência perpetrada às perdas da identidade pessoal. Mas é verdade que o pai e a mãe adotivos não bastam à definição de si? É necessário conhecer, salvo raros casos de doenças hereditárias, quem os transmitiu o patrimônio biológico que os distingue?13 Não se corre o perigo de, multiplicando as figuras dos genitores, acabar deslegitimando todos eles? A redefinição da condição de genitor, do primado social ao biológico, foi tão rápida que não tivemos tempo nem mesmo de analisá-la. Desde o momento em que se possibilitou o filho da ciência (oferecido pela biotecnologia), o filho da sociedade (proposto pela adoção) regrediu à segunda instância, válida no caso de falha da primeira hipótese, pelo menos na maioria dos casais estéreis. A probabilidade de reintegrar a fecundidade deu, evidentemente, expressão a um nível impulsivo, a um desejo corpóreo, que a incurabilidade da esterilidade tendia a remover a favor de escolhas mais racionais. Mas a criança adotada não é imediatamente filha. Torna-se tal somente por intermédio de um trabalho de elaboração de luto, de aceitação da impossibilidade, de admissão da necessidade recíproca de amor, graças ao reco13

BELLONI, 2001, p. 5.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 21-32, 2003

nhecimento cruzado da condição de genitor e filiação. A atração, suscitada no casal, da eventualidade de um filho próprio, talvez só parcialmente próprio, entretanto, gerado em si e para si, responde, ao contrário, a uma outra lógica, ao emergir do componente inconsciente da psique à prioridade da dimensão imaginativa em relação à realidade. O genitor aspirante que pede um filho ao hospital, ao invés de solicitá-lo ao Tribunal, reativa a expectativa da criança da noite, a fantasia de autogeração da infância. A escolha revela o quanto é importante a gestão do desejo inconsciente, na definição de si, do próprio papel paterno e materno. Não esqueçamos, porém, que o filho da ciência, analogamente ao adotivo, não é fruto da relação sexual do casal de genitores. Na fecundação induzida, ocorre menos um fator simbólico essencial para o reconhecimento da reciprocidade. Em certo sentido, o contato ausente dos corpos materno e paterno prefigura o nascimento de um só genitor, a objeção à condição de cônjuge que sabemos subsistir no inconsciente. O pai, no caso da doação de esperma, representa um adotante que, posteriormente, substitui o fato consumado. Na realidade, com o projeto gerador tem início um envolvimento afetivo e fantástico, alimentando-se, em seguida, no curso da gestação vivida em sintonia e do parto emotivamente partilhado. Se também a criança não é geneticamente um filho, a capacidade humana de atribuir sentido e significado ao acontecimento o restitui como tal. Para constituir um casal de genitores, na falta de coito fecundo, é necessário que as duas mentes coordenem-se e cada membro do casal relativize a própria posição em relação à do outro. A autogeração foi sempre entendida, até em Aristóteles, como uma ameaça para a sociedade, por manifestar a conotação narcisista, autárquica e anárquica do desejo inconsciente. Tanto a superação da geração tradicional, em que o filho é produto do útero materno fecundado pelo pai social, quanto a supressão da ideologia igualitária, pela qual uma criança é igual a outra, e o que conta é a disponibilidade psico-

27

002176_Impulso_35.book Page 28 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

lógica e social à afiliação, fazem conseqüentemente emergir um cenário psíquico mais móvel e complexo, trazido à tona pela tentativa do inconsciente. Uma criança nascida do próprio corpo é, ao mesmo tempo, um desejo remoto e novo. O que muda, pelas obras das biotecnologias, é a passagem do espaço mental ao social. Com freqüência, as pessoas que gostariam ou já realizaram uma fecundação prescindindo da relação de casal justificam-se, alegando uma série de impossibilidades: é sempre mais difícil viver juntos, os dois sexos não se toleram mais, pretendem evitar ao filho o sofrimento da separação familiar. Mas privilegiando as motivações defensivas, desconhecem as raízes vitais de seus desejos, os seus componentes impulsivos e os seus conteúdos imaginários. A tentativa do inconsciente, ao contrário, dá voz às razões do corpo e liga a anatomia e a fisiologia a figuras latentes, a precognições instintivas que organizam e orientam os impulsos, assim como acontece com os animais. Com a diferença de que, no homem, o instinto é sempre condicionado por interdições e exortações culturais. O desejo de um filho vem, assim, arrancado da unidimensionalidade da re-produção e introduzido na complexa relação estabelecida entre a identidade consigo mesma e com o outro que, ao mesmo tempo, a constitui e a ameaça. O inconsciente diz: “Gostaria de viver sem depender dos outros”; e a razão: “Não posso viver sem os outros”. Entre autonomia e dependência, abre-se o espaço existencial da mediação. Ao cogito ergo sum cartesiano, a psicanálise contrapõe um desidero ergo sum. Aquilo que na substituição se perde é a própria fundação certa e garantida da identidade, a resposta dada, de uma vez por todas, à questão “Quem sou eu?”. A equação estática do Eu consigo mesmo revela-se impossível, dá lugar a uma construção inexausta de si, a uma narração da subjetividade destinada a permanecer inconclusa e a abrir novos cenários do imaginário, das relações interpessoais e da sociedade.

28

No momento histórico em que a técnica estende, às figuras do inconsciente, o braço temporal de suas realizações, impõe-se com urgência uma nova tarefa: compreender a dinâmica do desejo, governar a sua harmonia caótica, traduzir a sua força plástica e as suas energias transformadoras em projetos racionais, coerentes e, se possível, voltados ao benefício individual e à utilidade social.

DESEJO E RESPONSABILIDADE Freud é claro a esse respeito: a liberdade do indivíduo consiste na expressão incondicional dos impulsos sexuais e agressivos.14 A prevaricação do outro é, assim, uma lei da natureza, que abandonamos contra a nossa vontade, somente porque preferimos a segurança à felicidade. Dado que, no imaginário inconsciente, o impulso sexual representa os próprios objetivos procriadores de forma egoísta, devemos sustentar que o pacto entre os genitores seja uma conquista da civilização. Isso prevê, de fato, um empenho contrastante a longo prazo com o imediatismo da satisfação impulsiva. Então, o desejo de gerar por meios partenogênicos, próximos à autarquia dos animais inferiores, exprime, de certo modo, uma aspiração pré-cultural, o retorno a um tempo pré-histórico, anterior ao pacto social. O pensamento de um produto gerador egoísta recebe um pedido de trabalho mental provindo do corpo: é o corpo que tenta fazer valer a própria autarquia. Só que, até ontem, suas imagens permaneciam no inconsciente individual e no imaginário social, em que vigora a convenção desresponsabilizante de considerá-las irreais: “é de mentira, não é verdade”.15 Mas o imaginário não é, em si, ininfluente nem irrelevante, possui uma potencial eficácia operativa, tanto que, hoje em dia, suas figuras transformaram-se em agir efetivo, comportamentos concretos, conseqüências irreversíveis. “Enquanto algumas das nossas mais duradouras esperanças e dos nossos temores de superar as limitações do corpo se fazem reali14 15

FREUD, 1978. FINZI, 1990.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 21-32, 2003

002176_Impulso_35.book Page 29 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

záveis”, pergunta-se J. Turney, “talvez seja demais pedir para reconhecer que a invenção de histórias sobre o futuro é uma atividade séria?”.16 Diante do fato de a fantasia estar invadindo a existência, assumem-se de costume dois movimentos polares: um da negação, da condenação, da interdição; outro caracterizado pelo entusiasmo pelo progresso e pela satisfação pela liberdade dos limites do corpo e dos vínculos da Lei. Mas se pode falar de liberdade num regime de individualismo anárquico, quando as razões dos outros não contam? A liberdade é tal apenas se for definida de forma resídua, descartadas todas as prevaricações que ela possa provocar em si mesma e nos outros. Como escreve Giovanni Berlinguer, “É claro que a disponibilidade do corpo nas relações sexuais e a liberdade procriadora (que compreende também a liberdade de não procriar) implicam também deveres. Esses são entendidos como a responsabilidade em relação à própria dignidade, em relação a um sistema de associações entre as pessoas dotadas de exigências próprias e, sobretudo, em relação a quem nasce”. O que a psicanálise pode dizer a esse respeito? Em primeiro lugar, denunciar, como tentamos fazer, a existência de um desejo inconsciente narcisista, onipotente e indiferente à relação, ao limite e à medida. Uma vez que o seu ponto de vista não é moral, ao invés de condenar, convém compreender. Percebemos, então, que o desejo de procriar compõe-se de duas dimensões, ainda que distintas, combinadas depois na vida de cada um. A primeira, profunda, impulsiva, corpórea, possui uma extensão mais ampla em relação ao indivíduo e à sua vida. Representa um plano transindividual, que atravessa o sujeito, mas transcende seus limites somáticos e mentais. Amparado na biologia da época, Freud introduz uma diferença radical entre o soma, destinado a morrer, e as células germinais (óvulos e espermatozóides), ao contrário, potencialmente imortais. Segundo ele,

O indivíduo conduz efetivamente uma vida dupla, como fim de si mesmo e como anel de uma corrente da qual é instrumento, contra ou de algum modo independentemente do seu querer. Ele considera a sexualidade um dos seus próprios fins; mas, de outro ponto de vista, ele mesmo é apenas um apêndice do seu plasma germinal, à disposição do qual coloca as próprias forças em troca de um prêmio de prazer. Ele é veículo mortal de uma substância virtualmente imortal.17

Essa é uma dimensão gerativa que o homem compartilha com os animais pluricelulares, mas existe uma outra, tipicamente humana, que corresponde não a um processo impessoal de reprodução, e sim à procriação de um filho. Nesse caso, há uma dimensão pessoal e uma continuidade biográfica do todo desconhecido à dinâmica precedente. Escreve Freud: Se consideramos a atitude dos genitores particularmente afetuosa em relação aos seus filhos, devemos reconhecer que tal atitude é o renascimento e a reprodução do próprio narcisismo ao qual os próprios genitores renunciaram há tempos. (...) A criança deve apagar os sonhos e os desejos irrealizados de seus genitores (...). O amor parental, assim comovente e no fundo infantil, é apenas o narcisismo dos genitores retornado à nova vida; transformado em amor objetual, revela sem fingimentos a sua antiga natureza.18

O produto da fecundação transforma-se num filho somente ao se inscrever na história dos genitores, acolhendo as suas projeções, tornando-se parte de seus próprios narcisismos. E, dessa maneira, garantindo a eles um tipo de sobrevivência individual. Enquanto a reprodução biológica tem por meta a continuação da espécie, a procriação humana tende inconscientemente à perpetuação de si. 17

16

TURNEY, 2000, p. 287.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 21-32, 2003

18

FREUD, 1975, p. 448, e 1977, p. 230ss. Idem, 1975, p. 460-461.

29

002176_Impulso_35.book Page 30 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Aqui está então a dupla vida que o homem conduz quando gera. Uma duplicação que perturba o seu desejo, espremendo-o entre a harmonia impessoal da espécie e a consonância personalíssima da própria biografia, entre o tempo cósmico da natureza e o cronológico da cultura. Se o indivíduo gera apenas porque é dominado pela necessidade impessoal da espécie, e não se arrisca a atribuir ao nascido o estatuto de filho, a relação de genitor aparece rechaçada como imprópria. Assim acontece, ainda que de modo diverso, no aborto voluntário, no abandono do neonato, no desconhecimento da paternidade. Se, ao contrário, salta a doação de valor e de sentido, a projeção do amor de si sobre o próprio produto biológico, o projeto filho, toma corpo e desenvolvimento. É nesse momento que o casal de genitores confronta-se com a existência de um terceiro, com as necessidades e os desejos que nascem deles próprios, sem, no entanto, coincidir. Nesse ponto, coloca-se a questão: seria menos lícito privar o recém-nascido de uma de suas figuras de genitores? Atualmente, a figura do pai tem sido a mais anulada, mas, no futuro, os dois sexos poderão igualar-se nesse âmbito. Ao nos referirmos ao saber psicológico, pertencente, entretanto, sempre ao passado, devemos dizer que não conhecemos nenhum sujeito que não tenha inserido na própria mente o mapa edipiano, com as suas três posições: pai, mãe, filho. Uma vez que se trata de posições relativas, a falta de uma influencia todas as outras. Embora Freud haja sempre sustentado que o complexo edipiano, base do inconsciente, é eterno e universal, não somos obrigados, todavia, a aceitar dogmaticamente essa opção de princípio. As mudanças iniciadas, no século passado, no arranjo da família externa e interna, autorizam a assumir uma posição mais aberta à dúvida e à investigação analítica. Talvez seja possível que a passagem da família às famílias, de um modelo único e normativo a uma pluralidade de configurações, comporte uma nova ordem da mente e, conseqüentemente, subjetividades inéditas.

30

Já observei como essa possibilidade constitui a condição para a abertura do cenário utópico, contudo, até agora, não conseguimos imaginar um palco psíquico e social diferente. É verdade que sempre existiram crianças crescidas de um só genitor, mas esse conserva, ainda que vazia, a posição do outro. E, como sabemos, a ausência pode ser mais determinante do que a presença. A perda acontece, ao contrário, ante o eventual cancelamento do terceiro, na declaração “O filho é meu e eu o gero”, em que a concretização de eu e meu parece interditar os processos necessários de autonomia do recém-nascido. Se a desagregação familiar chegará a corroer a relação de genitor, atualmente constitutiva do núcleo permanente, deveremos, de algum modo, prestar contas dos efeitos de uma monopaternidade radical não eventual. Para impedir ao genitor único fechar-se na auto-suficiência, e assegurar à criança duas figuras de referência, se terminará provavelmente com o prescindir do estabelecimento da dupla pai-mãe sobre a relação sexual, assim como daquele atestado social do certificado de matrimônio ou da convivência. Uma possível solução é representada por uma aliança entre genitores, na qual dois adultos concordam em acolher como filho um nascituro, sem que isso comporte uma relação sexual, como, ao contrário, presume-se nos casais oficiais ou de fato. O empenho diante da comunidade se limitaria, então, a garantir responsavelmente à criança funções paternas e maternas. A sexualidade permaneceria, assim, um fato privado, não dizendo respeito à sociedade. Isso se daria conforme as novas identidades de gênero: mutáveis, complexas, individuais, não necessariamente definidas pelo tipo de parceiro a que se dirigem.19 É difícil, senão impossível, entender todas as conseqüências das mudanças que mesmo Berlinguer, contrário a cada hipérbole, define como de época. Porém, os indícios apontam que as coisas, queiram ou não, caminham nessa direção. 19

HARAWAY, 1995; FINZI, 2000.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 21-32, 2003

002176_Impulso_35.book Page 31 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Trata-se de refletir responsavelmente por que a realização do desejo não é inibida, por que ela comporta um esgotamento das fontes vitais e das potencialidades criativas. Mas nem mesmo imediatamente equiparada à liberdade, porque se arrisca a negar necessidades, desejos e direitos dos outros. Se é verdade que a civilização rege-se, como sustenta Freud, sobre o sacrifício impulsivo, a que devemos renunciar para que a geração mantenha-se humana, não obstante o crescimento das intervenções técnicas? A técnica, assim como a geração dirigida à continuação da espécie, procede de modo neutro, impessoal, necessário. O encontro com o desejo, ligado à responsabilidade moral, confere ao ser humano uma dimensão subjetiva, colocando-o, em relação à natureza, na posição de pertenci-

mento e transcendência que o distingue. Fica ainda difícil demonstrar âmbitos de subjetividade no que se refere ao estímulo do impulso e à urgência da ação. Se existe uma possibilidade, ela consiste na administração do desejo, função intermédia entre o corpo e a mente, entre a razão e a paixão, entre o imaginário e o simbólico, entre o eu e o outro. A complexidade reconhecida da realidade psíquica e a evidente fragmentação da realidade social representam, portanto, um desafio para a criatividade humana. Não se pedem, de fato, uma adaptação no sentido passivo, e nem mesmo no da refutação do empenho, mas no de utilizar as capacidades imaginativas, ao mesmo tempo cognitivas e afetivas, para configurar um novo arranjo das relações que o indivíduo mantém consigo mesmo e com os outros.

Referências Bibliográficas BELLONI, E.“Le premesse incerte della terapia genica”.Tempo Medico, ano XLII, n. 1, 18/jan./01. BERNARDINI, I. Finchè Vita non ci Separi. Milano: Rizzoli, 1995. BOCCIA, M.L. & ZUFFA, G. L’Eclissi della Madre. Milano: Pratiche Editrice, 1998. DELEUZE, G. & GUATTARI, F. L’Antiedipo. Milano: Einaudi, 1973. FINZI, S.V. “The Body Machine and Feminine Subjectivy Subjectivity”. Journal of European Psychonalysis, 2000. . ______. “Paradossi della maternità e costruzione di un’etica femminile”. In: BUZZATTI, G. & SALVO, A. Corpo a Corpo: madre e figlia nella psicoanalisi. Roma/Bari: Laterza, 1995. ______. Il Bambino della Notte. Milano: Mondadori, 1990. FREUD, S. [1929] “Il disagio della civiltà”. In: ______. Opere. Torino: Boringhieri, 1978, v. 10. ______. [1922] “L’Io e l’Es”.In: ______. Opere, v. 9. Torino: Boringhieri, 1977a. ______. [1920] “Al di là del principio di piacere”. In: ______. Opere. Torino: Boringhieri, 1977b, v. 9. ______. [1914] “Introduzione al narcisismo”. In: ______. Opere. Torino: Boringhieri, 1975, v. 7. HARAWAY, D.J. [1989] Manifesto Cyborg. Milano: Feltrinelli, 1995. PINOTTI, P. “Dal ‘Frankenstein’ di Mary Shelley alla ‘Repubblica’ di Platone. Storie permesse e storie proibite sulla paternità asessuata e sui figli della scienza”.Materiali per una storia della cultura giuridica. Torino: Edizione di Comunità, 2000, v. XXX, n. 2. PRETA, L. Nuove geometrie della mente. Roma/Bari: Laterza, 1999. RACAMIER, P. – C. Il Genio delle Origini. Milano: Cortina, 1993. TURNEY, J. Sulle tracce di Frankenstein. Scienza: genetica e cultura popolare. Torino: Edizioni di Comunità, 2000. VEGETTI, M. La Fine della Storia. Saggio sul pensiero di Alexandre Kpjève. Milano: Jaca Book, 1998. ZOJA, L. Il gesto di Ettore. Preistoria, storia, attualità z scomparsa del padre. Torino: Bollati Boringhieri, 2000.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 21-32, 2003

31

002176_Impulso_35.book Page 32 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Dados da autora Escritora italiana, formada em pedagogia, com especialização em psicologia clínica. Trabalhou como psicoterapeuta para problemas da infância, família e escola. Desde 1975 é docente de psicologia dinâmica no Departamento de Filosofia da Università di Pavia/Itália. Ex-membro do Comitato Italiano di Bioetica. Recebimento artigo: 2/set./03 Consultoria: 3/set./03 a 22/set./03 Aprovado: 23/set./03

32

Impulso, Piracicaba, 14(35): 21-32, 2003

002176_Impulso_35.book Page 33 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Ética Empresarial e Responsabilidade Social Corporativa à Luz da Teoria de Julgamento Moral, de Lawrence Kohlberg BUSINESS ETHICS AND CORPORATE SOCIAL RESPONSIBILITY IN LIGHT OF LAWRENCE KOHLBERG’S THEORY OF MORAL JUDGEMENT Resumo Este ensaio trata da relação entre a ética e as ciências econômicas. Para tanto, discute o interesse na ética empresarial e a evolução da preocupação com a responsabilidade social corporativa, tomando por base as teorias de Swift e Zadek. A seguir, apresenta a teoria do julgamento moral de Kohlberg, comparando os estágios evolutivos nela definidos com as categorias das discussões sobre ética empresarial. Mostra também a necessidade de se reconhecer que a responsabilidade social corporativa surgiu em resposta às reivindicações da sociedade. Indica que a ação da maioria das empresas ainda corresponde aos estágios mais elementares de desenvolvimento moral e que as expectativas quanto ao seu papel, como fundamental para reverter o quadro de pobreza global e a degradação ambiental dificilmente, poderão ser cumpridas por cada uma delas, isoladamente. Conclui sobre a necessidade de maior comunicação e colaboração entre os vários setores da sociedade para desenvolver uma ética econômica e empresarial aplicada à transformação social. Palavras-chave ÉTICA EMPRESARIAL – RESPONSABILIDADE SOCIAL CORPORATIVA – JULGAMENTO MORAL. Abstract This paper deals with the relationship between ethics and economic sciences. It discusses the interest in business ethics and the evolution of the concept of corporate social responsibility as outlined in the theories of Swift and Zadek. Next, it presents Kohlberg’s theory of moral judgement and compares the evolution of moral stages to the categories of business ethics. In addition, it shows the need to acknowledge that corporate social responsibility came as a response to societal demands. That most of the actions of businesses still correspond to elementary stages of moral development indicates that the expectation that business play a fundamental role in reversing the present context of global poverty and environmental degradation cannot be met in isolation. In conclusion, communication and collaboration is needed among the various sectors of society in order to develop an economic and business ethics whose application could result in social transformation. Keywords BUSINESS ETHICS – CORPORATE SOCIAL RESPONSIBILITY – MORAL JUDGMENT.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 33-48, 2003

33

MARGARET ANN GRIESSE Global Responsibility Project, Concordia University, Montréal/Canadá [email protected]

002176_Impulso_35.book Page 34 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

The nature of modern economics has been substantially impoverished by the distance that has grown between economics and ethics. AMARTYA SEN

INTRODUÇÃO

A

economia moderna, na condição de ciência, é geralmente caracterizada por uma vasta área de pesquisas empíricas e teóricas sobre temas como econometria, contabilidade, administração, comércio e marketing, entre outros, que raramente tratam de questões morais. Recentemente, porém, ao avaliar sobretudo processos de tomada de decisões e seu impacto global, essa área tem se aberto a discussões ambientais, sociais e particularmente éticas, mostrando que o diálogo entre ética e economia é possível.1 As empresas, entendidas como unidades fundamentais no contexto global, são cada vez mais desafiadas a aplicar princípios éticos e a responsabilizar-se por atos relacionados direta ou indiretamente com os problemas da sociedade. Em casos como esses, elas não podem se limitar a uma visão rígida e estreita de seus interesses particulares, e sim desenvolver critérios específicos fazendo jus à sua realidade, isto é, considerando não somente fatores econômicos, mas também os contextos políticos, os impactos sociais e ambientais e vários outros aspectos associados às suas atividades. Com base nessas considerações práticas, surge, cada vez mais, e com maior apelo, a ênfase no conceito de ética empresarial.2

O NOVO INTERESSE

NA ÉTICA EMPRESARIAL A discussão recente sobre ética começou a ganhar força na década de 1980, provocando uma série de mudanças de comportamento nas empresas.3 Pesquisa realizada pelo Bentley College Center for Business Ethics, nos Estados Unidos, com 244 multinacionais, apresenta dados concretos sobre tais transformações. Em 1990, 46% delas afirmaram estar expandindo suas ações no sentido de incorporar a ética como uma questão institucional, ao passo que, em 1984, somente 19% haviam tomado iniciativas nessa área. Por outro lado, 49% já tinham adotado algu1 Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia em 1998, tem sido um dos mais importantes defensores desse diálogo. Cf. SEN, 1987. 2 A expressão ética empresarial é utilizada aqui em sentido amplo, ainda que em alguns estudos ela se refira mais ao comportamento interno da empresa, ou seja, à maneira como os funcionários resolvem problemas éticos de seu trabalho no dia-a-dia. 3 A preocupação com questões éticas nas relações econômicas e comerciais tem antecedentes de longa data, desde o Código de Hamurabi, passando pelas associações profissionais da Idade Média, chegando às iniciativas hoje em dia consideradas paternalistas, como as ações filantrópicas de Ford e Carnegie, nos Estados Unidos, no século XX. Cf., por exemplo, BAUTIER, 1971; SWARD, 1972; GIES & GIES, 1972; BARBOSA, PEDRON & CAFFARATE, 2003.

34

Impulso, Piracicaba, 14(35): 33-48, 2003

002176_Impulso_35.book Page 35 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

ma forma de treinamento no âmbito da ética em 1990, apontando um avanço substancial com relação a 1984, quando esse índice foi de 35%.4 As razões para essas mudanças são várias. Uma delas é que as expectativas da sociedade civil aumentaram com respeito à atuação das empresas, ao mesmo tempo em que a confiança da sociedade para com essas instituições diminuía. Para lidar com essa situação, elas começaram a desenvolver – após um período de negação de sua responsabilidade perante a sociedade – projetos pró-ativos, destinados a evitar o julgamento social negativo sobre suas atividades. Particularmente as transnacionais, sensíveis a possíveis denúncias, passaram a incorporar programas de ética empresarial e organizaram códigos de desempenho ético para seus funcionários, criando setores e recrutando recursos humanos para esse fim.5 Além disso, há uma percepção generalizada de que o Estado nacional não tem tido condições para responder às necessidades de suas populações. Mesmo nos países onde os benefícios do Estado são maiores – nos chamados welfare states ou Estados sociais democráticos –, a crise do Estado tem tornado difícil ao poder público proporcionar uma vida digna a todos os cidadãos e cidadãs. Em resposta a essa situação, surgiram outras tentativas de providenciar tais benefícios, tendo em vista o bem comum. No Brasil, por exemplo, empresas, organizações civis e várias instâncias do Estado envolveram-se em alianças que têm redundado no desenvolvimento de novos modelos de atuação para os setores público, privado e também para o chamado terceiro setor.6 Outra explicação para o interesse na ética empresarial pode estar relacionada, em parte, a um projeto internacional, delineado pela ONU e por outras organizações supranacionais, com os objetivos de reduzir a pobreza no mundo, defender o meio ambiente e promover o desenvolvi4

WEISS, 1994, p. 3. Para uma análise histórica e evolutiva da reação das empresas às denúncias ambientais, cf. HOFFMAN, 2001. 6 Cf. FISCHER & FALCONER, 1998; FERNANDES, 1994; FORSTATER, MACDONALD & RAYNARD, 2002.

mento sustentável. O Pacto Global foi uma iniciativa do secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, lançado formalmente em 2000. Ele solicita às empresas que explicitem sua adesão a nove princípios universais, relativos a direitos humanos, normas trabalhistas e questões ambientais. Nas palavras de Kofi Annan: “Vamos nos decidir por unir as forças do mercado com a autoridade de ideais universais. Resolvemos reconciliar as forças criativas da iniciativa privada com as necessidades dos desfavorecidos e as demandas das gerações futuras”.7 Aliado a isso, a ética empresarial pode ser vista como parte de uma resposta às situações com as quais somos atualmente confrontados: preocupações com o crescente número de pessoas vivendo em condições de miséria, a percepção generalizada de que a integridade do meio ambiente não pode ser mantida com os atuais níveis de degradação, o alarmante avanço da pandemia de aids no continente africano, os crescentes conflitos internacionais e a ampliação do impacto do terrorismo, além da globalização e do aumento na concorrência internacional. Também devem ser mencionadas questões que afetam mais diretamente as empresas, entre elas, as exigências e a crescente desconfiança das sociedades quanto à ação empresarial, incluindo as denúncias de organizações internacionais e da sociedade civil, assim como o desenvolvimento de tecnologias de comunicação a permitir a rápida divulgação de informações que podem afetar o desempenho, a visibilidade, a respeitabilidade e o valor de mercado de determinada organização. Todos esses pontos podem ser encarados como razões para o renovado interesse na discussão sobre o papel da empresa na sociedade. Ao levar em conta esse amplo contexto, podemos concluir que o interesse pelo tema da ética empresarial não é um fenômeno puramente endógeno, nascido dentro das empresas e depois ampliado para esfera social. Pelo contrário, ele não pode ser visto de modo isolado, mas também como uma

5

Impulso, Piracicaba, 14(35): 33-48, 2003

7

UNITED NATIONS Global Compact: , jan./03 [essa e todas as traduções a seguir são da própria autora].

35

002176_Impulso_35.book Page 36 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

reação à situação econômica paradoxal em que nos encontramos.

DA ÉTICA EMPRESARIAL À RESPONSABILIDADE SOCIAL CORPORATIVA As razões aqui colocadas não explicitam o conteúdo das iniciativas, nem como a ética empresarial poderia ser definida. Tampouco dizem, mais especificamente, como ela é implementada dentro das empresas. Recentemente, expressões como responsabilidade social corporativa, filantropia, cidadania empresarial, marketing empresarial, ética empresarial, terceiro setor e balanço social, entre outras, entraram no vocabulário econômico e ganharam aceitabilidade nos discursos sociais, empresariais e políticos, sem muita reflexão anterior sobre seu significado ou suas conseqüências. Em artigo bem-humorado, Solomon comenta que o problema referente à ética empresarial não é mais a “ignorância”, pois tanto as universidades quanto as empresas e organizações civis são conscientes dos discursos e estão se envolvendo com o assunto. O problema diz respeito a “uma confusão muito mais sofisticada” sobre o que devemos esperar do tema e como a teoria sobre ética poderia ser útil nas práticas empresariais.8 De forma resumida e geral, Weiss propõe definir a ética empresarial como “a arte e a disciplina de aplicar princípios éticos para examinar e solucionar dilemas morais complexos”.9 Mais analiticamente, e tomando a perspectiva das teorias micro e macroeconômicas, podemos notar também duas vertentes gerais nessa discussão. Por um lado, teorias macroéticas sobre ética empresarial englobam o direito, a filosofia sociopolítica e a economia, tratando, por exemplo, os mecanismos de distribuição de bens dentro do mercado livre, os direitos à propriedade e as políticas públicas. Por outro, teorias microéticas sobre ética empresarial focalizam o indivíduo no interior da corporação, e o seu papel e comporta-

mento dentro e fora da empresa, ao passo que, na corporação particular, poderiam discutir a relação dela com funcionários e membros da comunidade, no que diz respeito a discriminação, assédio sexual, qualidade do produto, relações trabalhistas e outros.10 Visto por outra ótica, o discurso sobre ética no mundo empresarial e nas organizações civis tem enfatizado a idéia de responsabilidade diante das expectativas da sociedade e dos complexos dilemas morais que nos confrontam em vários níveis. O termo preferido na literatura empresarial para caracterizar essa questão tem sido responsabilidade social corporativa. São várias as suas definições e múltiplas as dimensões subentendidas: desde a tentativa de definir o compromisso das empresas com seus próprios empregados e clientes, passando pela normatização de seus procedimentos internos e chegando ao compromisso com a sociedade, com os direitos humanos, com a preservação do meio ambiente e com o desenvolvimento sustentável. No Brasil, o Instituto Ethos, criado, em 1998, como uma associação de empresas com o objetivo de disseminar a prática de responsabilidade social nas organizações brasileiras, num processo de avaliação e aperfeiçoamento contínuo, relata a sua visão quanto à participação delas da seguinte forma: As empresas, adotando um comportamento socialmente responsável, são poderosos agentes de mudança para, juntamente com Estados e sociedade civil, construir um mundo melhor. Este comportamento é caracterizado por uma coerência ética nas suas ações e relações com os diversos públicos com os quais interagem, contribuindo para o desenvolvimento contínuo das pessoas, das comunidades e de suas relações entre si e com o meio ambiente.11 10

8

SOLOMON, R.C. “Corporate Roles, Personal Virtues: an Aristotelian approach to business ethics”, in: WINKLER & COOMBS, 1993, p. 202. 9 WEISS, 1994, p. 6.

36

SOLOMON, R.C. “Corporate Roles, personal virtues: an Aristotelian approach to business ethics”, in: WINKLER & COOMBS, 1993. Cf. também SOLOMON & HANSON, 1985. 11 INSTITUTO ETHOS: , 2003.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 33-48, 2003

002176_Impulso_35.book Page 37 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

No quadro internacional, o Conselho Mundial de Negócios para o Desenvolvimento Sustentável (World Business Council for Sustainable Development-WBCSD) chegou a propor, após pesquisar as tendências regionais, nos vários continentes, durante dois anos, a seguinte definição geral de responsabilidade social corporativa: “compromisso das empresas em contribuir para o desenvolvimento economicamente sustentável, trabalhando com funcionários, suas famílias, a comunidade local e a sociedade em geral para melhorar sua qualidade de vida”.12 Entre outras tentativas de definir o compromisso empresarial com a responsabilidade social, essas foram usadas como base para o desenvolvimento de vários códigos e guias, de modo a orientar as empresas a desenvolver ações e medidas que, em seu conjunto, são entendidas como indicadores de sua responsabilidade social corporativa. Por exemplo, partindo de sua visão global, o Instituto Ethos publicou uma lista de indicadores para que a empresa possa avaliar o seu desempenho nas seguintes áreas: valores e transparência, público interno, meio ambiente, fornecedores, consumidores e clientes, comunidade, governo e sociedade.13 Outra iniciativa em âmbito mundial é a Norma de Responsabilidade Social SA8000, lançada em 1997 e revisada, pela Social Accountability International (SAI), em 2001. A SA8000 consiste num código para a auditoria de condições trabalhistas básicas, apoiado nas normas da Organização Internacional de Trabalho, na Declaração dos Direitos Humanos e na Convenção para os Direitos da Criança. Abrange nove temas: trabalho infantil, trabalho forçado, segurança e saúde no trabalho, liberdade de associação e direito à negociação coletiva, discriminação, práticas disciplinares, horário de trabalho, remuneração e sistemas de gestão.14 Esse sistema de certificação é similar ao esquema internacional de Avaliação da 12

HOLME & WATTS, 2000, p. 10. 13 INSTITUTO ETHOS: , 2003. 14 Cf. SOCIAL ACCOUNTABILITY International: , ou , 2003; e CICCO, 2002.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 33-48, 2003

Conformidade por Organismos Certificadores de Sistemas de Gestão da Qualidade (ISO 9000) e ao Sistema de Gestão Ambiental (ISO 14000).15 A Global Reporting Initiative (GRI) é uma instituição dedicada a desenvolver e disseminar as Sustainability Reporting Guidelines, diretrizes voluntárias organizadas de acordo com as dimensões econômicas, ambientais e sociais. A GRI foi desenvolvida em colaboração com o Programa de Meio Ambiente da ONU e o Pacto Global. Essas diretrizes ou guias medem não o desempenho, mas as formas de elaboração de relatórios (reporting), para que a divulgação de informação sobre a organização esteja em conformidade com os princípios de globalidade, transparência, inclusividade, auditabilidade, relevância e contexto de sustentabilidade por meio de um processo multistakeholder.16 Essas são algumas das inúmeras iniciativas lançadas nos últimos anos. Podemos observar, de modo geral, a tendência de reivindicar a aplicação concreta dos princípios universais, já aceitos em grande parte, pela comunidade internacional, como a Declaração dos Direitos Humanos e as recomendações para a diminuição dos níveis de agressão contra o meio ambiente. A responsabilidade social é vista, assim, como um veículo para a transformação social, desde que a empresa vá além de seus interesses próprios estritamente definidos, posicionando-se como ator importante na comunidade, no contexto nacional e até em relação aos processos internacionais. Voltando a Solomon, podemos concluir que somos atualmente confrontados por uma confusão sofisticada ao tentar relacionar as diferentes definições de ética empresarial e de responsabilidade social corporativa. Tal confusão ocorre não somente por haver concepções de ética empresarial segundo a micro e a macroeconomia, mas também em razão de diretrizes, guias e 15 ISO-International Organization for Standardization (Organização International de Standarização) é uma organização não-governamental e a maior organizadora de códigos voluntários para organizações e empresas do mundo. Os códigos mais conhecidos são ISO 9000, sobre gestão de qualidade, e ISO 14000, que lida com gestão do meio ambiente. Para maiores informações, cf. . 16 GLOBAL REPORTING INITIATIVE, 2002.

37

002176_Impulso_35.book Page 38 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

indicadores distintos para definir e operacionalizar o que se entende por responsabilidade social corporativa. Além disso, as expectativas são grandes e trazem consigo várias questões. Em alguns casos, as empresas são vistas como catalisadores e transformadores do contexto global. Porém, que condições elas têm de atender a esses anseios? Trata-se de uma intrincada situação, que nos leva a indagar: até que ponto podemos relacionar esse fenômeno com outras conceituações sobre ética e sua aplicação a dilemas morais complexos?

AS GERAÇÕES EVOLUTIVAS DA RESPONSABILIDADE SOCIAL CORPORATIVA Para dar sentido e sistematização às várias definições e experiências apresentadas, tornamos ao trabalho de Tracey Swift e Simon Zadek.17 Eles partem da análise da situação de empresas no mercado europeu para concluir que as iniciativas na área de responsabilidade social corporativa permanecem limitadas, quando não são incorporadas em estratégias e políticas mais amplas. Argumentam que, até agora, o foco tem sido a empresa particular (microética) e a forma como ela reage a novas situações e desenvolve políticas de responsabilidade social, ao passo que o novo desafio seria a possibilidade de operacionalizar uma política em conjunto com outros setores da sociedade (macroética).18 Para atingi-lo, as empresas precisariam desenvolver um entendimento mais sofisticado sobre responsabilidade social corporativa. Swift e Zadek delineiam três estágios ou gerações de responsabilidade social corporativa, tomando por base suas pesquisas sobre a evolução do pensamento ético dentro das empresas. O primeiro é o estágio básico. Nele, a empresa considera a responsabilidade social corporativa como mera obrigação de cumprir com as leis referentes 17

SWIFT & ZADEK, 2002. Esse estudo foi organizado por The Copenhagen Centre (TCC), centro autônomo de reconhecimento internacional estabelecido pelo governo da Dinamarca, e AccountAbility, organização não-governamental localizada em Londres e uma das primeiras entidades a lidar com a questão da responsabilidade social corporativa. Simon Zadek é diretor-presidente da AccountAbility e Tracy Swift é diretor de Pesquisa dessa organização. 18 Ibid., p. ii.

38

a impostos, segurança e saúde, direitos trabalhistas, direitos do consumidor, regulamentação sobre meio ambiente e outras normas vigentes. Para ser considerada boa e responsável, ela deve simplesmente atuar de acordo com as regras do jogo. Esse estágio não significa necessariamente uma política de responsabilidade social, e sim o mínimo a se esperar de uma empresa em termos de comportamento moral, pois cumprir as leis não seria necessariamente uma grande virtude, mas o simples exercício de uma cidadania que visa a que suas ações não sejam consideradas criminosas. Mais além desse estágio inicial, Swift e Zadek definem a primeira geração da responsabilidade social corporativa (low-level business case),19 em que a empresa percebe a importância de evitar riscos ou crises e, para tanto, implementa processos de risk-management de curto prazo, ações pró-ativas e doações filantrópicas. A expressão business case trata de uma justificativa apoiada nos benefícios que poderiam melhorar o funcionamento da empresa, e não em qualquer princípio ético além do interesse próprio. Já na segunda geração (responsabilidade social corporativa estratégica), a empresa incorpora tal responsabilidade em sua estrutura, criando-lhe uma gerência geral. Isso ocorre quando ela percebe, por exemplo, que pode agregar valor a seus produtos e serviços, ao relacioná-los com programas sociais e benefícios e, assim, atrair e manter funcionários talentosos. Com uma estratégia de constante diálogo a longo prazo com a comunidade, a empresa pode desenvolver sensibilidade às necessidades do consumidor ou usuário e criar produtos de acordo com elas. Nessa condição, a responsabilidade social corporativa é vista como uma boa estratégia empresarial e há a tentativa de sistematizar a questão ética em todos os setores da empresa.20 Por fim, na terceira geração (reformulação das vantagens competitivas), a responsabilidade social corporativa é vista não quanto ao comportamento exemplar de algumas empresas particu19 20

Ibid., p. 13-14. Ibid., p. 14-15.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 33-48, 2003

002176_Impulso_35.book Page 39 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

lares, mas como parte do tecido da economia. Isso inclui o desenvolvimento de um modelo de participação generalizada de múltiplos stakeholders, parcerias, construção de instituições e políticas públicas.21 Esse modelo teria de incluir, necessariamente, um processo de diálogo e comunicação entre os vários setores do país e até mesmo as organizações internacionais. Entre as discussões que poderiam ser levantadas nessa geração está, por exemplo, se os códigos de responsabilidade social teriam como favorecer as empresas multinacionais e prejudicar as microempresas. Na mesma linha, no âmbito do comércio internacional, a adoção dos preceitos de responsabilidade social poderia beneficiar os países mais ricos, que têm os recursos para desenvolver e implementar produtos que adquirem um prêmio intangível.22 Num mundo globalizado, onde muitos países pobres dependem particularmente do desempenho de organizações menores, os códigos poderiam aumentar os problemas sociais, ao invés de solucioná-los. Swift e Zadek vêem a resposta a esse dilema no desenvolvimento de clusters de responsabilidade social, ou seja, na cooperação entre empresas, sindicatos, ONGs e as várias instâncias do poder público. Argumentam que uma organização mais sistemática e eficiente de responsabilidade social no âmbito da economia seria capaz de aumentar a competitividade de toda uma nação. Já há tentativas brasileiras nesse sentido, por exemplo, os projetos PPP (Parcerias Público-Privado),23 envolvendo a iniciativa privada e o Estado na construção de infra-estrutura. Porém, de modo geral, esse estágio – tanto no Brasil quanto na Europa – ainda está para ser criado. É por meio dessa análise evolutiva que se pode avaliar mais precisamente a maneira como o conceito de responsabilidade social está sendo implementado na empresa e no mundo. De acordo com os estudos de Swift e Zadek, a maioria das instituições atualmente envolvidas com responsabilidade social corporativa encontra-se na pri21 22 23

Ibid., p. 15. Ibid., p. 18. CONCEITO de PPP, 10/08/03.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 33-48, 2003

meira geração, havendo, porém, um número cada vez maior chegando à segunda geração. Entretanto, nossa preocupação principal não é necessariamente registrar a ampliação no uso desse conceito em si, mas questionar de que modo relacionar as práticas econômicas com a concepção de ética, para melhor definir o que é ou não ética empresarial. A visão da responsabilidade social corporativa segundo estágios oferece uma boa base para realizar esse intento, pois podemos compará-los com os estágios do desenvolvimento moral e ético, sobre os quais existe ampla literatura ainda não utilizada extensivamente para tratar esse tema. Consideramos, então, necessária uma avaliação da atuação da empresa, com base em teorias mais abrangentes, como os estudos empíricos e as reflexões teóricas desenvolvidas por Lawrence Kohlberg.

A TEORIA DE JULGAMENTO MORAL, DE LAWRENCE KOHLBERG Kohlberg preocupou-se em definir os níveis de consciência moral dos indivíduos, 24 tendo por base os estudos de Jean Piaget. Julgamento moral refere-se aqui à maneira como uma pessoa resolve dilemas e chega a decisões valendo-se de um fundamento ético. Portanto, mantemos a definição inicial de Weiss, da ética como a arte e a disciplina de aplicar princípios éticos, enquanto entendemos ser a moral o julgamento diante de um problema concreto. A moral refere-se, assim, a uma contextualização ou à praticabilidade da ética. Kohlberg baseia seu trabalho numa definição de justiça, proposta na filosofia moral de Kant, que a entendeu como um conceito ético fundado em princípios universais e em pressupostos racionais, cognitivos e formais. Apesar de suas raízes obviamente ocidentais e de ser considerada muito abstrata, a concepção de princípios éticos universais tem sido incorporada em documentos internacionais, como nas várias declarações referentes aos direitos humanos, apresentando, portanto, uma validade não apenas formal, mas também política e social. Além de funda24

KOHLBERG, 1981 e 1987.

39

002176_Impulso_35.book Page 40 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

mentar seu trabalho nesse conceito, Kohlberg também o complementou com estudos empíricos, envolvendo grande contingente de pessoas estudadas durante mais de 20 anos. Por isso, consideramos a sua teoria atual e válida para a nossa discussão, sendo sempre citada como referência obrigatória no debate atual sobre o tema.25 O ponto de partida para a teoria sobre ética e julgamento moral, de Kohlberg, são os estudos piagetianos de estágios de desenvolvimento.26 De acordo com a epistemologia de Piaget, a criança não nasce inteligente ou com uma moralidade, mas desenvolve suas capacidades por meio de um processo de construção cognitiva em interações com o meio ambiente. Nesse processo, a criança passa por estágios que consistem em sistemas completos de pensamento, pelos quais se organiza a informação, de acordo com as estruturas e os padrões do sistema. Mediante processos cognitivos de assimilação e acomodação, a criança avança de uma estrutura mais simples para outra maior de pensamento, que incorpora os estágios prévios em um sistema mais complexo e abrangente. Kohlberg, por sua vez, incorpora o construtivismo de Piaget, mas o modifica significativamente no que diz respeito à teoria moral. De acordo com Kohlberg, os estágios morais representam esquemas cognitivos qualitativamente diferenciáveis, seqüenciais, integrados hierarquicamente e considerados universais. O indivíduo teria de passar seqüencialmente pelos distintos níveis, integrando as estruturas prévias de pensamento num sistema mais complexo. E Kohlberg argumenta que tais estruturas de pensamento moral são comuns a todas as pessoas, independentemente da cultura. Para sistematizar esses aspectos distintos, ele desenvolveu uma teoria de desenvolvimento moral que incorpora três níveis: pré-convencional, convencional e pós-convencional, cada um deles constituído por dois estágios. Assim, chegou a um total de seis estágios progressivos de desenvolvimento moral. 25

Cf. as referências a Kohlberg em HABERMAS, 1993; APEL, 1994; GILLIGAN, 1982; e a crítica de Sung, em ASSMAN & SUNG, 2000. 26 PIAGET, 1932.

40

O primeiro nível, pré-convencional, referese ao desenvolvimento normalmente encontrado em crianças até aproximadamente os nove anos de idade, fase em que a moralidade é considerada algo externo, imposto por uma figura autoritária. A pessoa raciocina como um indivíduo que ainda não se coloca como membro de uma sociedade. No primeiro estágio desse nível, ela age cegamente à autoridade externa – a moralidade é imposta pela autoridade por meio de ameaças de punição. Também nessa fase o indivíduo é egoísta e não tem a capacidade de tomar a perspectiva do outro. Já no segundo estágio desse primeiro nível, a pessoa pensa e age de acordo com os próprios interesses, mas consegue perceber que outros podem ter anseios diferentes. Para lidar com essa situação conflitante, ela se envolve em acordos, apoiados na idéia de troca e seguidos na medida em que satisfazem os desejos pessoais. Se, no primeiro estágio, a ameaça de punição prova que algo é errado ou imoral, no segundo, o interesse próprio indica o que vale como moral, ao passo que a punição é vista simplesmente como algo a ser evitado. No segundo nível, convencional, o indivíduo considera-se membro de um grupo maior e tem uma noção da importância das normas sociais. Tende a identificar-se com as normas e acreditar na moralidade como o que é definido pela sociedade. Tem-se aqui o terceiro estágio, no qual a pessoa preocupa-se em possuir características consideradas boas, comportar-se de acordo com as expectativas da família ou do grupo e desenvolver sentimentos como amor, lealdade, empatia, gratidão etc. Os sentimentos compartidos e os papéis sociais a serem desempenhados ganham mais importância do que os interesses individuais. Passando-se, porém, para o quarto estágio – ainda como parte do nível convencional –, a pessoa entende-se como membro da sociedade e preocupa-se em cumprir seus deveres e manter a ordem e o bem-estar geral. Enquanto a moralidade do terceiro estágio é definida mais pelos laços de família, grupo social ou comunidade local, a do quarto estágio envolve a organização, instituições e responsabilidades com o sistema social maior.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 33-48, 2003

002176_Impulso_35.book Page 41 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

No terceiro nível, definido por Kohlberg como pós-convencional, o indivíduo é capaz de ir mais além e olhar a sociedade de uma perspectiva exterior, realizando julgamentos sobre como ela deveria organizar-se, valendo-se de fundamentos previamente determinados. Diferentemente do quarto estágio, no qual se dá a preocupação em manter a ordem vigente, a pessoa no quinto estágio apóia a ordem social apenas quando essa tem sua base num contrato social, processos democráticos e direitos fundamentais. As leis são avaliadas quanto à sua coerência com os princípios de justiça. No sexto estágio, tais princípios são entendidos como transcendentes a sociedades ou culturas e devem ser apoiados independentemente das leis, normas ou convenções. Nesse nível, segue-se a própria consciência – por sua vez, altamente desenvolvida – para determinar a moralidade de uma ação, em vez de firmar a decisão ou ação em convenções. Kohhberg admitiu que poucas pessoas conseguem chegar a esse último estágio e acabou por desconsiderá-lo, deixando-o somente como uma possibilidade teórica de seqüência na evolução moral. Em suas pesquisas empíricas, Kohlberg colocou cada indivíduo diante de um dilema moral e pediu para que justificasse sua opinião sobre como ele deveria ser resolvido. Não se preocupou com as respostas quanto à definição de ação certa ou errada, mas com as justificativas e os argumentos, indicativos do nível de julgamento moral do entrevistado. Por meio de exaustivas pesquisas longitudinais e interculturais, Kohlberg apresentou evidências com relação às suas teses. É importante novamente enfatizar que Kohlberg baseia a sua análise nas justificativas, e não nas respostas afirmativas ou negativas. Por exemplo, a resposta de que alguém ou alguma empresa deveria obedecer à lei pode receber distintas justificativas, de acordo com os diferentes níveis. No pré-convencional, a lei deveria ser obedecida por ter sido imposta por uma autoridade ou porque a negligência no respeito a ela poderia resultar em punição. No nível convencional, obedecendo a lei, a pessoa ou empresa receberia uma boa avaliação da comunidade ou estaria fazendo o seu dever

Impulso, Piracicaba, 14(35): 33-48, 2003

na sociedade, mantendo a ordem social. Finalmente, o argumento no nível pós-convencional resultaria da análise sobre a correspondência entre a lei e os princípios universais. Questões a serem respondidas antes da tomada de decisão seriam: nesse contexto particular, há conexão entre obediência à lei e apoio dos fundamentos? Os princípios fundamentais requerem uma ação que inclui a lei, mas, ao mesmo tempo, vai além dela? A teoria de Kohlberg tem sido discutida por vários autores e autoras, levando a uma série de debates sobre a fundamentação e a universalidade dos princípios éticos. Por exemplo, a ética do cuidar (caring), desenvolvida por Carol Gilligan, defende que o conceito de ética proposto por Kohlberg é limitado. Gilligan afirma que as mulheres têm uma tendência a desenvolver sua ética na consideração para com o outro, na necessidade de cuidar e de fazer intervenções na vida do outro.27 Nesse sentido, reclama do conceito de justiça de Kohlberg como demasiado abstrato, por não incluir essa dimensão. A ética do discurso, de Jürgen Habermas e Karl-Otto Apel, incorpora os estágios de Kohlberg. De acordo com Habermas, o discurso e a ação comunicativa dentro de uma estrutura democrática possibilita a pessoas, grupos, instituições e organizações internacionais chegarem ao consenso sobre responsabilidade, moralidade, justiça ou ética. Na sua concepção, a teoria de Kohlberg confirma a prática da ética discursiva.28 Nesse esquema, Habermas se interessa sobretudo pelo nível pós-convencional, argumentando que o discurso permite a construção de meios e estruturas, tendo em vista a comunicação democrática. Apel, por sua vez, considera que a teoria de Kohlberg vale como descrição empírica da evolução moral, ao passo que a ética do discurso assume o papel de fundamentação filosófica pragmático-transcendental do princípio normativo da ética.29 Tanto Habermas como Apel incluem a dimensão da comunicação e do discurso como a instância capaz de ajudar a resolver o problema de definir a 27 28 29

GILLIGAN, 1982. HABERMAS, 1983, p. 185ss. APEL, 1994, p. 224.

41

002176_Impulso_35.book Page 42 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

ética pós-convencional em termos de princípios universais, sem, contudo, submetê-la ao plano exclusivamente ocidental ou puramente masculino. Por sua vez, Dussel, em sua ética da libertação, critica Kohlberg, Habermas e Apel por não incluírem um princípio ético-crítico em suas teorias.30 Tomando a vida como princípio ético fundamental e discutindo os problemas da globalização econômica, Dussel afirma que a opção ética preferencial deve ser dada às pessoas excluídas da comunidade de comunicação. Enquanto Kohlberg se recusa a discutir conteúdos nos estágios de desenvolvimento moral, Dussel chama a atenção para a necessidade de se construir uma ética apoiada nas vítimas do processo de exclusão social e econômica. “O juízo de fato crítico (a partir do marco material da ética) é enunciado como a possibilidade da produção, reprodução, e desenvolvimento da vida dos sujeitos reais do sistema, e como ‘medida’ ou critério dos fins do mesmo: se a vida não é possível, a razão instrumental que se exerce em torná-la impossível é eticamente perversa”.31 De acordo com a ética de libertação, de Dussel, é pela organização crítica de uma comunidade de vítimas que a perversidade ética de um sistema evidencia-se. A responsabilidade consiste precisamente no diálogo com as vítimas e na transformação da sociedade, objetivando a sua inclusão e a promoção de suas vidas. Não é nossa intenção resolver essa discussão sobre ética e julgamento moral, mas somente mostrar a importância da teoria do julgamento moral, de Kohlberg, especialmente sua definição de vários estágios. Por outro lado, também consideramos que as teorias aqui colocadas já nos providenciam alguns marcos referenciais gerais para o debate acerca da ética e da responsabilidade social da empresa. Obviamente, empresas não são, nem devem ser, consideradas como indivíduos, que desenvolvem pensamentos ou moralidade. Nossa intenção não é encaixar rigidamente a teoria de Kohlberg ou 30 31

DUSSEL, 2000, p. 427-431. Ibid., p. 529.

42

as dos outros na discussão sobre responsabilidade e ética empresarial, mas utilizá-las como instrumentos a guiarem a nossa reflexão.

ESTÁGIOS MORAIS E GERAÇÕES DE RESPONSABILIDADE SOCIAL CORPORATIVA Como podemos relacionar os estágios de julgamento moral, de Kohlberg, com as gerações de responsabilidade social corporativa? Swift e Zadek não fizeram, de forma alguma, referência a princípios éticos ou morais; porém, a descrição deles mostra uma evolução de como a empresa se porta diante da questão ética. É esse desenvolvimento que nos interessa e que gostaríamos de analisar.

Estágio Básico Quanto à aplicação da teoria de Kohlberg à avaliação de Swift e Zadek, o estágio básico referido por esses dois últimos autores poderia ser comparado, grosso modo, com o nível pré-convencional estabelecido pelo primeiro. Esse é o nível no qual a moralidade impõe-se por uma autoridade exterior e, no caso da empresa, ocorre quando ela se submete ao sistema jurídico/legislativo do país. Para muitos estudiosos, inclusive Swift e Zadek, essa fase não deveria ser considerada como parte de um programa de responsabilidade social corporativa, pois não há necessariamente um senso de responsabilidade próprio da empresa, ou seja, uma ética internalizada. Por outro lado, muito do material sobre o tema de responsabilidade social da empresa corresponde a esse nível de discussão. Há um número crescente de organizações não-governamentais dedicadas ao trabalho de vigilância com relação ao respeito da empresa às leis. O desrespeito a elas normalmente aparece na forma de escândalos, quando se descobre executivos ou funcionários de determinada instituição envolvidos conscientemente em atividades ilegais ou que propositadamente obscureceram informação, como ocorreu, recentemente, nos relatórios financeiros da Enron,32 nos Estados Unidos, ou no desastre 32

CLARK & DEMIRAG, 2002.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 33-48, 2003

002176_Impulso_35.book Page 43 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

ecológico causado pela indústria de papel Cataguases, no Brasil, por conta da falta de manutenção e inspeção correta de um reservatório de resíduos químicos tóxicos.33 Outro exemplo é a denúncia de trabalho infantil e escravo no Brasil, identificando particularmente as empresas agrícolas que praticam esse tipo de infração das leis trabalhistas.34 Organizações como Greenpeace, Corpwatch, Anistia Internacional, Global Exchange, Social Accountability International, Transparência Internacional – para nomear somente algumas – dedicam-se, entre outras atividades, a denunciar ocorrências de fraude e corrupção no mundo empresarial. Acerca das justificativas encontradas pelas empresas para obedecer a lei, Donaldson argumenta que a adesão às normas ambientais e trabalhistas pelas empresas na Noruega é mais um resultado da pressão exterior dos sindicatos e das organizações civis do que uma reflexão dos executivos sobre a ética empresarial.35 Machado Filho e Zylbersztajn36 argumentam que, em sua pesquisa, a responsabilidade social corporativa parece ser motivada mais por pressões dos consumidores e órgãos financeiros – entre eles, o Banco Mundial, o BNDES e as normas regulatórias restritivas impostas pelo Estado – do que por razões altruístas. Esses casos mostram que, mesmo quando as empresas obedecem a regras avançadas referentes a direitos trabalhistas e a cuidados ao meio ambiente, como na Noruega, não o fazem por possuir um código de ética avançado, mas por causa das pressões externas. Do ponto de vista da teoria de Kohlberg, isso indica um nível baixo de evolução moral, além da importância do papel das organizações da sociedade civil em regulamentar o comportamento das empresas. Por outro lado, seguir a lei nem sempre corresponde a respeitar regras definidas e óbvias. Às vezes, há ambigüidades sobre a lei ou sobre qual das leis a empresa deve respeitar. O fato de 33

GENTILE, 2003. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2003. DONALDSON, J. Key Issues in Business Ethics. New York: Academic Press, 1989, citado em BULL, 2003. 36 MACHADO FILHO & ZYLBERSZTAJN, 2003. 34

35

Impulso, Piracicaba, 14(35): 33-48, 2003

todas as organizações mencionadas acima serem entidades de alcance internacional indica a preocupação com a conduta consistente das empresas no âmbito global. A mão-de-obra barata nos países menos desenvolvidos economicamente tem atraído corporações a desenvolver atividades de produção nessas áreas, abrindo, assim, uma questão ética menos definida, não podendo ser vista como o simples respeito às autoridades políticas e às leis locais. Por exemplo, a permissão conseguida pelas fábricas contratadas pela Nike – como forma de incentivo –, por parte do governo do país onde se instalaram, para oferecer salários abaixo do estabelecido como mínimo estimulou discussões e denúncias internacionalmente. As fábricas não estavam, tecnicamente, desrespeitando a lei, no entanto a Nike havia utilizado o seu poder de lobby para conseguir vantagens que resultavam em salários abaixo do necessário à sobrevivência (living wage).37 Exemplo semelhante se dá com as leis ambientais. Quais delas deveriam ser respeitadas por uma empresa que atua em rede mundial? E como a empresa deveria proceder quando se cria um produto novo, para o qual ainda não foi concebida qualquer regulamentação, como no caso de organismos transgênicos? Essas ocorrências levantam questões que dificilmente poderiam ser ponderadas, de forma adequada, no nível préconvencional ou mesmo no convencional, pois exigem uma reflexão sobre princípios para além das regras convencionais de um contexto particular. Portanto, o nível básico de funcionamento do sistema capitalista, definido por Swift e Zadek, de obedecer às leis requer, na verdade, um sistema desenvolvido de informação e regulamentação pela sociedade civil e pelo poder público, como também um espaço para refletir sobre casos ainda não totalmente definidos. Tal atividade tem exigido uma grande dedicação de tempo e energia de várias entidades e, por isso, corresponde a uma área de responsabilidade e ética empresarial significativa. 37

CLEAN CLOTHES CAMPAIGN, 1999.

43

002176_Impulso_35.book Page 44 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Primeira Geração A primeira geração corresponde aproximadamente ao segundo estágio de desenvolvimento moral, pois a empresa considera a responsabilidade social de acordo com os seus próprios interesses, particularmente como uma troca, e não uma forma de seguir uma ética maior ou melhorar a situação social ou ambiental. Esse tipo de comportamento, caracterizado pelo ato de oferecer doações filantrópicas insignificantes ou envolver-se em atividades sociais com a finalidade única de evitar danos ou punição, tem também sido motivo de denúncia pelas organizações não-governamentais. Ele corresponde a uma atitude defensiva, de proteção, e não de engajamento social. Por exemplo, o termo Greenwash foi cunhado para se referir às empresas que fazem campanhas de marketing sobre responsabilidade social, especialmente ambiental, sem ter realmente projetos significativos na área, ou que os utilizam para desviar a atenção de outras atividades que desrespeitam a natureza ou que exploram os trabalhadores ou fornecedores.38 Por outro lado, analisada do prisma da teoria do desenvolvimento moral, essa primeira geração significa um pequeno avanço no sentido de que a empresa reconhece, embora de forma limitada ou enganosa, a importância de lidar com o aspecto social e ambiental.

monstrado pelos funcionários ou executivos por um assunto particular, sendo essa uma oportunidade para que elas mostrem um lado bom perante a comunidade, ou também a convicção de que isso pode oferecer benefícios mútuos para si e os outros stakeholders. Programas de treinamento e benefícios para atrair e manter funcionários talentosos e investimentos em projetos ambientais e sociais de impacto mercadológico são exemplos de ações de responsabilidade social nessa geração. A chegada a essa geração significa uma ampliação na capacidade da empresa de ver sua atuação além do nível técnico ou do simples aumento de lucro. Implica uma abertura para as necessidades da sociedade e a possibilidade de chegar a soluções em conjunto. Nas palavras do World Business Council on Sustainable Development, para qualquer empresa, dar alta prioridade à RSC não é mais visto como algo que represente um custo não produtivo ou desperdício de recursos, mas como um meio de melhorar sua reputação e credibilidade perante os stakeholders – algo do qual o sucesso ou mesmo a sobrevivência dependam. Entender e tomar conta das expectativas da sociedade é simplesmente interesse próprio esclarecido dentro do mundo interdependente de hoje.39

A segunda geração representa uma fase com potencial de muita atividade e criatividade entre empresa, poder público e organizações civis. A maioria das ações caracterizadas como de responsabilidade social poderia ser considerada resultado dessa geração. Corresponde, grosso modo, ao nível convencional de julgamento moral, sobretudo ao terceiro estágio, no qual a empresa se situa como um ator numa sociedade com vários setores e com interesse em gozar de boa reputação e ser bem-vista pela comunidade. A maioria das empresas nessa geração desenvolve uma série de atividades de acordo com o interesse de-

A justificativa das empresas para se envolver em programas de responsabilidade social nessa geração corresponde ao modelo win-win, no qual tanto a sociedade quanto a empresa se beneficiam com a interação. A organização econômica do capitalismo contemporâneo dificulta e quase proíbe uma empresa de chegar a níveis de decisões morais além desse, convencional. Mesmo assim, indicações da existência de princípios éticos universais que vão além do que podemos encontrar na sociedade convencional aparecem nos discursos de empresas e representam, pelo menos, o reconhecimento da relevância deles. Kenneth Goodpaster cita uma carta escrita por um alto executivo, demons-

38

39

Segunda Geração

GREER & BRUNO, 1996.

44

HOLME & WATT, 2000, p. 7.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 33-48, 2003

002176_Impulso_35.book Page 45 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

trando suas justificativas por apoiar a ação afirmativa da empresa. Freqüentemente me perguntam porque essa [ação afirmativa] é uma prioridade tão alta em nossa empresa. Há, por suposto, a resposta óbvia de que é de nosso maior interesse buscar e empregar pessoas boas de todos os setores da sociedade. E há a resposta que o interesse próprio esclarecido nos diz que mais e mais pessoas jovens, as quais devemos atrair como futuros funcionários, escolhem uma empresa tanto por seus indicadores sociais quanto por suas perspectivas nos negócios. Mas a razão principal para essa ênfase é porque é correto fazer isso. 40

É interessante notar que, nessa carta, as justificativas óbvias são aquelas que se referem ao interesse próprio, relativo aos níveis pré-convencional e convencional, indicadores do comportamento esperado no funcionamento normal da empresa. O executivo precisa fazer quase uma apologia para usar princípios que vão além desses níveis. Porém, esse documento mostra uma exceção, não a regra.

Terceira Geração A terceira geração dificilmente se encaixa na teoria de Kohlberg, a não ser com a ampliação sugerida por Habermas e Apel. Nessa geração, a empresa reconhece ter deveres sociais, afora os seus próprios interesses de lucro e crescimento. Mas, além disso, esse reconhecimento significa uma mudança no conceito sobre o papel da empresa na sociedade, pois o centro deixa de ser a empresa rodeada pelos stakeholders, sendo essa posição ocupada por ela em conjunto com os outros setores, na tentativa de construir uma sociedade saudável. Iniciativas desse tipo são, por exemplo, as parcerias entre organizações civis e o poder público para melhoria na infra-estrutura, adoção de escolas, organização de fóruns sociais e desenvolvimento de políticas públicas que incentivem a cooperação entre os vários segmen-

tos. Essa fase implica o diálogo entre os diversos setores da sociedade. A teoria discursiva de Habermas e Apel é necessária para complementar o conceito de moralidade nessa fase, pois ele não poderia ser alcançado pela empresa sem estruturas de participação e comunicação comunitária. Por razões de clarificação teórica, as gerações da responsabilidade social corporativa foram comparadas com os níveis de julgamento moral, como se a empresa passasse por elas em sua íntegra. Na prática, mesmo que as empresas representem um conjunto organizacional com uma certa cultura empresarial, não se pode esperar que elas possuam uma organização cognitiva sistêmica, como se fossem pessoas. É mais provável que algumas áreas da empresa se comportem de maneira diferente com relação a outras. De fato, várias das empresas denunciadas por práticas corruptas tiveram programas de ação social exemplares.41 Na verdade, uma empresa tem inúmeros níveis e áreas de atuação e, em cada um, poderia apresentar um nível distinto de comportamento ético. Sem um programa de integração da responsabilidade social, a empresa dificilmente alcança uma uniformidade ética. Por outro lado, isso indica a complexidade da empresa e o desafio presente de encontrar modelos para desenvolver uma ética empresarial. Finalmente, observamos que, sem pressão, colaboração e parceria dos outros setores da sociedade, a empresa pouco consegue implementar a ética empresarial. Em outras palavras, a ética empresarial é uma questão de incluir a participação de outros setores, e não meramente instituir uma iniciativa corporativa.

CONCLUSÃO Devemos reconhecer, primeiramente, que a aproximação entre ética e economia é um reflexo da condição global de desequilíbrios sociais crescentes, degradação da natureza e falta de um desenvolvimento sustentável. A exclusão de uma grande parcela da população humana também tornou necessária uma nova organização e arti-

40

GOODPASTER, K. “Business Ethics and Stakeholder Analysis”, in: WINKLER & COOMBS, 1993, p. 241.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 33-48, 2003

41

UTTING, 2003.

45

002176_Impulso_35.book Page 46 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

culação social, mesmo que de forma precária, e resultando em ações voltadas a aliviar sua situação. Devemos concordar com Dussel ao ele afirmar que o dilema complexo moral, nesse período da história, é a preocupação com a vida – seja ela humana seja no sentido mais amplo, o meio ambiente. E essa é a principal justificativa encontrada nas declarações sobre a ética empresarial e sobre a responsabilidade social da empresa. Como parte de uma resposta a essa situação, as empresas e organizações civis, além do poder público e das entidades internacionais, têm proposto um novo papel para as empresas, fazendo-as assumir responsabilidades para reverter esse quadro e desenvolver uma ética sustentável e socialmente responsável. As propostas daí advindas chamam a atenção para uma ética apoiada nos princípios universais de direitos humanos e de respeito à vida, aplicada também às relações econômicas. Embora esse desenvolvimento seja positivo, nossa análise de Swift e Zadek e a comparação com Kohlberg mostraram que a maioria das atividades relacionadas a esse tema se concentra em níveis éticos bastante elementares. Mesmo sendo um avanço com referência ao passado, a exigência de respeitar a lei, ou de reconhecer os interesses de outros setores, não é considerada por muitos como parte de um programa ético, mas como simples observância às convenções vigentes: cumprir com aquilo que todo mundo deveria fazer. Portanto, é válida a descrição realística de Howard Bowen, de 1953, sobre o que se pode esperar da responsabilidade social corporativa: “Responsabilidade social é a obrigação dos em-

presários de seguir as políticas, tomar as decisões ou seguir as linhas de ação desejáveis aos objetivos e valores da sociedade”.42 Bowen posiciona a responsabilidade social diretamente no nível convencional de moralidade, obrigando as empresas a incorporar os objetivos e valores da sociedade. Desse modo, o apelo para que elas incorporem princípios éticos capazes de transformar a sociedade parece-nos ser uma expectativa longe do seu alcance. É necessário um sistema de interação mais global para fazer transformações significativas. Para a empresa ir além do princípio do lucro e do interesse próprio, de modo sistemático, há que ter o apoio institucional da sociedade, do poder público e de outras empresas para transformar o tecido cultural e a forma de se entender a ética nos negócios. O princípio da comunicação, proposto por Habermas e Apel, é um elemento fundamental a essa mudança, pois a dimensão comunicativa é essencial ao desenvolvimento e à evolução dos níveis morais em direção a estágios ou gerações mais avançadas. Significa que a responsabilidade social corporativa deve ser comunicativa e cooperativa, incluindo a participação dos outros setores da sociedade, sem limitar-se à ação individual ou desenvolvida em isolamento. Nesse sentido, pode-se concluir que a condição para que as empresas possam transformar a sociedade é a sua articulação em conjunto com outros setores, objetivando a promoção da vida e tornando possível o diálogo entre ética e economia. 42

Citado em BATTEMAN, 2003 (grifos acrescidos).

Referências Bibliográficas APEL, K.-O. Estudos de Moral Moderna. Petrópolis: Vozes, 1994. ASSMANN, H. & SUNG, J.M. Competência e Sensibilidade Solidária. Petrópolis: Vozes, 2000. BATEMAN, T. “Thinking about Corporate Social Responsibility”, The Integra Venture. . Acesso em: 7/abr./03. BARBOSA, F.; PEDRON, Q. & CAFFARATE, V.M. “Evolução histórica do direito do consumidor”. Procon. . Acesso em: 2003. BAUTIER, R.-H. The Economic Development of Medieval Europe. Harcourt Brace Jovanovich, Inc. 1971.

46

Impulso, Piracicaba, 14(35): 33-48, 2003

002176_Impulso_35.book Page 47 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

BULL, B. “Corporate social responsibility: the Norwegian Experience”. Apresentado ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (Iniciativa sobre Ética e Desenvolvimento, 19/mar./03), e incluído na biblioteca digital da Iniciativa Interamericana de Capital Social, Ética e Desenvolvimento . Acesso em: 12/set./03. CLARK, W. & DEMIRAG, I. Enron: the failure of Corporate Governance. Journal of Corporate Citizenship 8, Winter Greenleaf Publishing, 2002. CLEAN CLOTHES CAMPAIGN. 1999 . Acesso em: 16/08/03. CICCO, F. “SA 8000: um sistema de certificação de âmbito mundial para monitorar a reponsabilidade social das empresas SP”. QSP. 2002 . Acesso em: 21/set./03. “CONCEITO DE PPP é adotado em pelo menos 50 países há 10 anos”.OESP on-line, . Acesso em: 10/ago./03. DONALDSON, Th. The Ethics of International Business. New York: Oxford University Press, 1989. DUSSEL, E. Ética da Libertação na Idade da Globalização e da Exclusão. Petrópolis: Vozes, 2000. GENTILE, C. “Director arrested for Brazilian disaster“. UPI Latin America Correspondent. . Acesso em: 4/jul./03. GREER, J. & BRUNO, K. Greenwash: the reality behind corporate environmentalism. Penang/New York: Third World Network/The Apex Press, 1996. FERNANDES, R.C. Privado Porém Público – o terceiro setor na América Latina. Rio de Janeiro: Civicus/Relume Dumará, 1994. FISCHER, R.M. & FALCONER, A.P.“Desafios da parceiria governo e terceiro setor”.Revista de Administração da USP, v. 33, n. 1, 1998. FORSTATER, M.; MACDONALD, J. & RAYNARD, P. Business and Poverty: bridging the gap. London: Prince of Wales International Business Leaders Forum, 2002. GIES, J. & GIES, F. Merchants and Moneymen: the commercial revolution 1000-1500. New York: Thomas Y. Crowell Company, 1972. GILLIGAN, C. In a Different Voice. Cambridge/London: Harvard University Press, 1982. GLOBAL REPORTING INITIATIVE (GRI).“Introducing the 2002 Sustainability Reporting Guidelines 2002”. . Acesso em: 14/set./03. HABERMAS, J. Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln. Frankfurt: Suhrkamp, 1983. HOFFMAN, A.J. From Heresy to Dogma: an institutional history of corporate environmentalism. Standford: Standford University Press, 2001. HOLME, R. & WATTS, P. Corporate Social Responsbility: making good business sense. Geneva: World Business Report for Sustainable Development, 2000. KOHLBERG, L. Essays on Moral Development. Cambridge: Cambridge University Press, v. 1-2, 1981. KOHLBERG, L. & COLBY, A. The Measurement of Moral Judgment. Cambridge: Cambridge University Press, 1987. MACHADO FILHO, C.A.P. M. & ZYLBERSZTAJN, D. “Responsabilidade Social Corporativa e a Criação de Valor para as Organizações“. Extr@to”, v.1., n. 1, 2003. . Acesso em: 11/ set./03. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DE TRABALHO (OIT). “Combate ao Trabalho Escravo: estatísticas”. . Acesso em: 25/set./03. PIAGET, J. The Moral Judgment of the Child. London: Kegan Paul, 1932. SEN, A. On Ethics and Economics. New York: Basil Blackwell, 1987. SOCIAL ACCOUNTABILITY INTERNATIONAL. . Acesso em: 25/set./03.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 33-48, 2003

47

002176_Impulso_35.book Page 48 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

SOLOMON, R.C. & HANSON, K.R.. It´s Good Business. New York: Atheneum, 1985. SWIFT, T. & ZADEK, S. Corporate Reponsability and the Competetive Advantage of Nations. London: The Copenhagen Centre/Accountability, 2002. SWARD, K. The Legend of Henry Ford. New York: Atheneum, 1972. UNITED NATIONS GLOBAL COMPACT. . Acesso em: jan./03. UTTING, P. “The potential and limits of corporate social and environmental responsibility”. Dossier Transnational Corporation and Human Rights, CETIM (Centre Europe/Tiers Monde). . Acesso em: 28/jul./03. WEISS, J.W. Business Ethics: a managerial, stakeholder approach. Belmont: Wadsworth Publishing Company, 1994. WINKLER, E.R. & COOMBS, J.R. Applied Ethics: a reader. Cambridge/Oxford: Blackwell Publishers, 1993.

Dados da autora PhD em educação e desenvolvimento internacional pela Universidade de Frankfurt/Alemanha, é membro do Grupo de Pesquisa sobre Responsabilidade Social de Empresas na Concordia University e desenvolve projetos sobre estudos de gênero e direitos humanos no Brasil, Estados Unidos e Europa. Recebimento artigo: 9/set./03 Consultoria: 10/set./03 a 18/set./03 Aprovado: 23/set./03

48

Impulso, Piracicaba, 14(35): 33-48, 2003

002176_Impulso_35.book Page 49 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Ética e Criminologia. O caso “medo da criminalidade”* ETHICS AND CRIMINOLOGY. THE “FEAR OF CRIMINALITY” CASE Resumo O presente artigo trata de várias formas de se entender a ética na criminologia, concentrando-se nas estatísticas sobre o “medo da criminalidade”. Entre as dimensões freqüentemente relacionadas, ao se abordar ética e criminologia, estão o atendimento aos direitos da pessoa, a limitação das técnicas de obtenção de informação, os procedimentos do método de investigação, ou a definição do objeto de pesquisa. Porém, este texto se concentra em dois aspectos: 1. o ponto de vista ético aplicado para se colher e utilizar os resultados de uma pesquisa empírica, e a paradoxal relação entre medo e criminalidade que tais dados geram; 2. a ética como objeto de pesquisa, especialmente ao se ver como são elaborados os discursos que têm o medo como tema e que projetam determinado modelo de sociedade. A distinção entre esses dois planos permite entender melhor o papel dos discursos sobre a criminalidade e definir critérios para sua elaboração. Palavras-chave CRIMINOLOGIA – MEDO – ESTATÍSTICAS – SEGURANÇA PÚBLICA – DISCURSOS. Abstract The present article approaches the many ways of understanding ethics in criminology, focusing on the statistics on the “fear of criminality”. When approaching ethics and criminology, frequently related dimensions are: serving the person’s rights, the restriction of techniques for gathering information, the methods of investigation or the definition of the research object. Nevertheless, this text focuses on two aspects: 1. the ethical view applied to collecting and using the results of an empirical research, and the paradoxical relation between fear and criminality that such data generate; 2. ethics as a research object, especially when analyzing the elaboration of discourses that approach the issue of fear and that devise a certain model of society. The distinction between these two plans makes it possible to better understand the role of the discourses on criminality and define the criteria for its elaboration. Keywords CRIMINOLOGY – FEAR – STATISTICS – PUBLIC SAFETY – DISCOURSES.

*Traduzido do italiano para o português por NUNO COIMBRA MESQUITA. Título original: “Etica e criminologia. Il caso ‘paura della criminalità’”.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 49-59, 2003

49

ROBERTO CORNELLI Università degli Studi di Milano-Bicocca, Milão/Itália [email protected]

002176_Impulso_35.book Page 50 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

INTRODUÇÃO

E

tica é um termo encontrado freqüentemente nos textos de criminologia, sobretudo nas seções dedicadas à metodologia da pesquisa. As questões éticas normalmente citadas referem-se à modalidade com a qual se obtêm informações e dados dos autores do delito, das vítimas, do sistema de justiça criminal, dos operadores sociais ou do público em geral. Assim, sobre a base de algumas diretrizes elaboradas, sobretudo no âmbito sociológico e médico-psicológico, afirmam-se os princípios da não exposição dos sujeitos que fornecem informações de riscos ou danos, de confidencialidade, de respeito às pessoas envolvidas na pesquisa e de transparência, que implica a concessão de um consentimento informado da parte do entrevistado. Mas se pode falar de ética e criminologia de, pelo menos, outras duas formas: 1. pontos de vista éticos, relativos ao uso dos resultados da pesquisa e ao impacto dela sobre a sociedade; 2. ética como objeto de pesquisa. 1. Os resultados das pesquisas criminológicas muito freqüentemente vêm sendo utilizados pelos policy makers, algumas vezes, como argumento para reformar instituições ou práticas e, outras, simplesmente para legitimar intervenções de política criminal. O estudioso encontra-se forçado a confrontar-se com o ingresso dos resultados de suas pesquisas na arena política e com possíveis distorções de seus significados. Essa conexão entre a pesquisa criminológica e a política gera problemas posteriores de natureza deontológica, referidos mais à correção dos procedimentos adotados durante a pesquisa, que podem evitar mal-entendidos ou manipulações políticas. Além disso, o próprio estudioso, no momento em que escolhe o objeto de pesquisa (e, talvez, também as modalidades com as quais investigá-lo), tende a pressupor o possível impacto de seus resultados no debate social e político e que, de algum modo, o condicionam. Ao fazê-lo, adota critérios éticos de valorização do próprio trabalho de pesquisa, capazes de estabelecer se aquilo que está fazendo é justo e leva a efeitos sociais desejáveis, além de orientá-lo no seu prosseguimento. Pesquisar exige uma contínua referência aos valores e a permanente reorientação do trabalho de investigação, de modo a tornálo eticamente sustentável. 2. A ética, do ponto de vista antropológico, pode ser definida como o conjunto de valores que caracterizam a cultura de certa sociedade em determinado período. Nesse sentido, nas suas conexões com a cultura, a ética pode constituir um objeto de estudo criminológico, numa perspectiva que visa ir além da descrição dos fatos sociais, para observar os processos culturais que os acompanham.

50

Impulso, Piracicaba, 14(35): 49-59, 2003

002176_Impulso_35.book Page 51 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

O medo da criminalidade é, já há alguns anos, tema de interesse criminológico e parece ser um bom instrumento para exercitar a observação das possíveis conexões entre ética e criminologia. Até mesmo nas origens, o estudo do medo da criminalidade foi ligado a exigências políticas, levando alguns estudiosos a duvidar da correção das modalidades com que estiveram envolvidas as primeiras pesquisas e sondagens de opinião. Nessa primeira fase emerge, portanto, a questão ética na forma de correção dos processos de pesquisa. Mas, já aí também, começa a surgir uma posição crítica de alguns especialistas, resultando, em seguida, na formulação de novos critérios para investigar o assunto, prontos a produzir o conceito de medo da criminalidade não manipulável pelo poder político. Nessa segunda etapa, a questão ética considera as possíveis manipulações políticas dos conteúdos das pesquisas e requer maior atenção ao uso dos termos e à apresentação dos resultados da pesquisa fora do ambiente universitário. Os estudos antropológicos e sociológicos sobre o risco apontam, hoje em dia, uma modalidade diferente da perspectiva do estudo do medo da criminalidade, que abrange aspectos políticos do conceito desse tema. Visto dessa ótica, é central a análise das orientações socioculturais que fazem o medo da criminalidade ser um dos principais itens do debate social e político. A ética, que pode ser entendida como a visão particular do mundo expressa por essas orientações socioculturais, torna-se, ela mesma, tema de estudo para se compreender como nasce o discurso público sobre o medo da criminalidade e que efeitos sociais ele produz. As implicações ético-políticas dessa visão diferente do medo da criminalidade serão abordadas na conclusão deste artigo.

1. DÚVIDAS SOBRE A CORREÇÃO DOS PROCEDIMENTOS E INSTRUMENTOS DE INVESTIGAÇÃO As pesquisas sobre o medo da criminalidade surgiram, pela primeira vez, nos Estados Uni-

Impulso, Piracicaba, 14(35): 49-59, 2003

dos, na metade dos anos 60, no apoio à guerra contra o crime, programa de ponta do governo americano. A guerra contra o crime, segundo a interpretação dominante nos dias de hoje, serviu, sobretudo, para desviar a atenção do público de uma guerra desagradável e impopular no exterior, a do Vietnã, para os problemas da política interna. A comissão presidencial encarregada, em 1967, de estudar os aspectos ligados à vitimização (Comissão Katzenbach) parou de impulsionar os estudos sobre o medo da criminalidade no âmbito da pesquisa da vitimização. Assim, uma parte da primeira investigação da vitimização americana (National Crime Survey), conduzida, em 1972, pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos, foi inteiramente dedicada ao medo do crime, objetivando comparar a amplitude do fenômeno com o risco efetivo de sofrer um delito. A partir daquela data, as pesquisas multiplicaram-se e mostraram que a maioria dos americanos temia ser vítima da criminalidade. É sobre a base dos materiais da Comissão Katzenbach, dos dados do National Crime Survey e de algumas sondagens de opinião anteriores ao National Crime Survey que foi se construindo, no início dos anos 70, o conceito de medo da criminalidade como aquele ocorrido em conseqüência de um ato criminal. A origem das pesquisas sobre o tema, portanto, sofreu com a proximidade das exigências político-governamentais da época, tanto que alguns autores sustentam que “existem boas razões para acreditar que a efetiva preparação dos questionários de opinião pública, que medem o medo do delito, não tenham sido imparciais”.1 Não obstante, boa parte das pesquisas sobre o medo da criminalidade desenvolveu-se sobre o modelo das primeiras investigações americanas. Trata-se de uma pesquisa do tipo descritiva, que mede o nível de medo da criminalidade num dado território, freqüentemente identificando a posteriori as características sociodemográficas das pessoas inseguras. 1 QUINNEY, R. Criminology. Boston: Little Brown and Company, 1979, apud LYNCH, 1991.

51

002176_Impulso_35.book Page 52 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Outros estudos, a fim de individualizar as causas do medo da criminalidade, tentaram explicar por que algumas pessoas são mais inseguras que outras, por que em algumas regiões o nível de medo da criminalidade é mais alto do que em outras e por que o nível desse medo aumenta em alguns momentos e diminui em outros. O estudo das causas da criminalidade levou a resultados importantes. De um lado, mostrou como era fraca a ligação entre a vitimização e o medo da criminalidade (e, portanto, quão arbitrário era considerar os medos e as preocupações das pessoas como fruto da soma da criminalidade). De outro, contribuiu para o surgimento da questão da correção dos instrumentos de investigação do assunto utilizados. Vejamos especificamente os resultados desse esforço de pesquisa. O senso comum sugere (também aos pesquisadores) que sofrer um delito é uma experiência que condiciona o movimento da pessoa, incutindo o medo de sofrer outro. Mas nem sempre os resultados da pesquisa estão de acordo com o senso comum. A relação entre vitimização e medo da criminalidade parece ser, de fato, mais complexa e os resultados apresentados na literatura são freqüentemente contrastantes. Em 1967, a comissão Katzenbach estabeleceu que a conseqüência mais danosa de um crime violento é o medo dela derivado. Assim, ao contrário, ter sofrido um crime violento é causa do medo de sofrer um delito. Tal afirmação constitui assunto para muito tempo. Já os primeiros resultados das investigações sobre o medo da criminalidade começaram, entretanto, a colocar em dúvida a solidez do tema. Os jovens do sexo masculino da classe trabalhadora mostravam-se menos preocupados em sofrer um delito, em comparação a mulheres e idosos, mesmo sendo mais atingidos por atos criminosos. Considerando esses resultados, alguns autores levantaram a hipótese da existência de um paradoxo nas pesquisas sobre o medo da criminalidade:2 as pessoas mais velhas e as mulheres são menos expostas a atos

criminosos, menos vitimizadas, no entanto, possuem mais medo de sofrer um delito. Os pesquisadores tomaram vários caminhos para solucionar tal “paradoxo”. Todos esses caminhos levam a entender, como complexa, a ligação entre vitimização e medo da criminalidade. Alguns negaram a existência do paradoxo, sustentando não existir nenhuma discrepância entre risco e medo. Stafford e Galle, analisando os dados de algumas pesquisas realizadas em Chicago, levantaram a hipótese de que nem todas as pessoas são igualmente expostas ao risco de sofrer um delito: episódios criminais ocorrem com muito mais freqüência fora de casa, sobretudo na rua ou em outros espaços públicos.3 Elas passam diferentes períodos de tempo fora de casa e algumas ficam, assim, mais expostas ao risco de vitimização do que outras. A probabilidade de estar fora de casa se dá em razão do estilo de vida. Diferentes estilos de vida são ligados a diversos períodos de exposição ao risco.4 O raciocínio é linear: os jovens passam mais tempo fora de casa e, por isso, sofrem mais delitos do que os idosos; se, entretanto, forem considerados os números de delitos sofridos pelos jovens e pelos idosos durante o mesmo período de tempo em que jovens e idosos estão fora de casa, os idosos seriam mais atingidos pela criminalidade do que os jovens. O medo deles torna-se, assim, mais compreensível. Stafford e Galle propuseram, então, utilizar, no cruzamento com o nível de medo da criminalidade, não a taxa de vitimização convencional, e sim uma de vitimização ajustada à exposição ao risco. O resultado demonstrou que, para boa parte dos grupos da população, entre eles, os idosos, há um nível de correspondência entre a taxa ajustada de vitimização e o medo da criminalidade. Esse resultado implica que esse medo seja estreitamente ligado à experiência de vitimização, mediada, entretanto, pelo estilo de vida. Diferentemente de Stafford e Galle, outros pesquisadores procuraram resolver tal contradição introduzindo novos fatores explicativos do 3

2

STAFFORD e GALLE, 1984.

52

4

Ibid. Ibid., p. 174.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 49-59, 2003

002176_Impulso_35.book Page 53 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

medo da criminalidade, entre os quais, a vulnerabilidade. As mulheres são mais vulneráveis à vitimização do que os homens, pois conseguem, em menor grau, fugir ou resistir às agressões físicas e porque estão mais sujeitas a crimes violentos, como a violência sexual (tanto que, repetidamente, o medo da criminalidade coincide, nas mulheres, com o de sofrer violência sexual).5 Portanto, segundo essa interpretação, as mulheres reagem aos mesmos níveis de risco com mais medo, em relação à reação dos homens. Além disso, a maior atenção das mulheres, resultante de sua maior vulnerabilidade, influi na percepção dos riscos. Elas percebem mais situações como risco, comparado aos homens, e essa percepção diferente do risco leva também a um nível diferente de medo. Numerosos estudos sugeriram que os idosos igualmente se consideram mais débeis e vulneráveis, e valorizam com maior preocupação as conseqüências de sofrer um delito. LaGrange e Ferraro forneceram uma interpretação ainda mais diferente do paradoxo vitimização-medo.6 O maior nível de medo da criminalidade dos idosos seria por conta de um erro de avaliação derivada do uso incorreto dos indicadores para medir esse medo. O estudo dos dois autores confrontou a relação entre idade e gênero, de um lado, e medo da criminalidade, de outro, adotando o indicador de medo da criminalidade do National Crime Survey (NCS) e outros 13 indicadores alternativos, incluindo os de percepção de risco e os de medo de delitos específicos. Como imaginado pelos autores, a análise produziu resultados contraditórios. Quando confrontadas com a pergunta do ncs (“Quão seguro você se sente ou se sentiria de estar fora sozinho, no seu bairro, à noite?”), as mulheres mais idosas 5 SMITH & TORSTENNSSON (1997) analisaram a literatura sobre o medo e as mulheres e propuseram quatro hipóteses explicativas para os altos níveis de medo da criminalidade entre elas: 1. taxa real de vitimização – se a verdadeira taxa de vitimização das mulheres fosse conhecida, seria mais alta do que a dos homens e explicaria os mais altos níveis de medo entre as mulheres; 2. generalização – as mulheres transferem o medo de um contexto a outro, e de um tipo de vitimização a outro, com mais facilidade que os homens, generalizando, assim, o medo; 3. vulnerabilidade (já descrita no texto); 4. neutralização – os homens neutralizam ou escondem os medos de si mesmos e dos outros muito mais que as mulheres. 6 LAGRANGE e FERRARO, 1989, p. 713-715.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 49-59, 2003

disseram ter muito mais medo do que as mais jovens; quando são usados os indicadores alternativos relativos a medos específicos, os adultos mais idosos dizem ter menos medo do que os mais jovens. Além disso, os indicadores de percepção de risco e os de medo da criminalidade não geram resultados equivalentes. Os níveis de percepção de risco são mais elevados do que os de medo da criminalidade. Como se pode notar também nessa breve resenha, o paradoxo vitimização-medo induziu, por um lado, à pesquisa de novas causas do medo da criminalidade (além do estilo de vida e da vulnerabilidade, podem ser citados o nível de controle social do bairro, a informação da mídia, a presença de desordem e má educação e a confiança nas instituições) encarregadas de explicar a discrepância entre a taxa de criminalidade e o nível de medo da criminalidade. Por outro lado, mais recentemente, abriu-se caminho para a crítica dos instrumentos tradicionais da percepção do medo da criminalidade.7 Realmente, como observam alguns autores, os resultados contrastantes na análise dos fatores do medo da criminalidade são mais fruto da confusão das metodologias empregadas nos estudos empíricos e, em particular, da falta de clareza do termo fear of crime (medo da criminalidade).8

2. A ATENÇÃO ÀS MANIPULAÇÕES POLÍTICAS: A QUESTÃO TERMINOLÓGICA Até hoje, os principais problemas verificados nas pesquisas sobre o medo da criminalidade dizem respeito aos instrumentos de medição utilizados. Em geral não se mede o medo, mas outros estados de ânimo (preocupação, ansiedade, valorização do risco); da mesma forma, não se mede o medo referente à criminalidade, e sim uma ansiedade genérica, apontada por alguns como formless fear (medo sem forma), isto é, um sentimento genérico de mal-estar na vida cotidiana, não necessariamente determinado por se ter sido vítima de um delito. A pergunta “Quão se7 8

Ibid., 1989. HALE, 1996.

53

002176_Impulso_35.book Page 54 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

guro você se sente ou se sentiria de estar fora sozinho, no seu bairro, à noite?”, usada nas pesquisas de vitimização americana e em muitas outras, não deve ser um indicador do medo da criminalidade, pois omite a referência à criminalidade. Como sugerem alguns autores, o entrevistado poderia ter medo do ataque de um cão, de ser atropelado por um carro ou, simplesmente, do escuro.9 Dada a confusão sobre o conceito de medo da criminalidade na literatura criminológica, alguns autores procuraram recuperar o significado do termo medo nas ciências humanas e sociais e aplicá-lo ao medo da criminalidade, mediante a especificação do contexto em que surge o medo.10 Nessa linha, o medo da criminalidade foi definido como uma emoção nascida da percepção de uma ameaça iminente medida num ato de outra pessoa e que provoque uma reação psicofísica. Em outras palavras, um indivíduo experimenta o medo da criminalidade quando, numa certa situação, percebe estar em perigo, porque se sente ameaçado pelo comportamento de outro e, portanto, reage, aumentando o batimento cardíaco e a pressão sangüínea, enfraquecendo a respiração e enrijecendo os músculos. Enquanto isso, os sentidos estão em alerta e a mente se concentra em rememorar episódios semelhantes, com a finalidade de encontrar soluções e comportamentos úteis para evitar o perigo. Essa definição específica de medo da criminalidade permite diferenciá-lo de outros estados de ânimo. A ansiedade difere do medo, na medida em que não é gerada por um sinal concreto de perigo (mesmo se isso, num segundo momento, resultasse não real ou não efetivo). Ela é um tipo de inquietude contínua, sustentada pelo pressentimento, sem base em sinais externos concretos de que alguma coisa desagradável e perigosa está para acontecer. A preocupação é um sentimento fundado na percepção da realidade mediada pelos valores e pelo juízo pessoal sobre ela. Quando se está preocupado com alguma coisa, não aconte-

cem mudanças psicofísicas, nem mesmo ocorrem pressentimentos negativos, mas normalmente há algum problema ocupando a mente e os pensamentos. Brodeur clarifica a diferença entre preocupação e medo de uma maneira muito sugestiva: os moradores de Quebec podem estar preocupados com o problema da fome no Terceiro Mundo, mas, seguramente, não têm medo de sofrer a fome eles mesmos.11 A valorização do risco, por fim, relaciona-se com o juízo da probabilidade de um evento (delito) acontecer e não necessariamente provoca o medo de que ele ocorra. Um estudo recente, desenvolvido sobre a realidade da região de Trento e da Emília-Romanha, em curso de publicação,12 na mesma linha proposta por LaGrange, Ferraro e Hale,13 demonstra o quanto os indicadores do medo da criminalidade normalmente utilizados medem, na verdade, de maneira confusa diferentes estados de ânimo e sugerem algumas hipóteses para aferir corretamente a emoção medo da criminalidade. Sugerimos esse estudo para o aprofundamento dos aspectos metodológicos. Importa aqui sublinhar que, embora nas ciências humanas e sociais (particularmente no âmbito da psicologia cognitiva14 e da filosofia15) o conceito de medo seja utilizado normalmente sem demasiadas discussões em relação ao seu significado, há em criminologia a tendência de isolar, sem motivo, a definição de medo da criminalidade, presumindo que ele difere de outros medos, como o de um acidente de automóvel ou o de um dano à saúde.16 Por que o medo da criminalidade deveria ser diferente de outros medos? Por que ele aparece como um conceito pega-tudo,17 tão amplo e cheio de significados que torna a sua utilidade insignificante? A utilização ampla, não específica e evocativa do termo medo da criminalidade sugeriu a hipótese de que, até hoje, como talvez tenha acon11 12 13 14 15

9

WILLIAMS, MCSHANE & AKERS, 2000. 10 Cf. CORNELLI, 2003.

54

16 17

Cf. DEPARTMENT OF JUSTICE CANADA, 1995. CORNELLI, 2003. LAGRANGE & FERRARO, 1989; e HALE, 1996. Cf. FRJIDA, 1986. Cf. MAGRI, 1999. Cf. WARR, 2000. Cf. PAVARINI, 1994.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 49-59, 2003

002176_Impulso_35.book Page 55 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

tecido na metade dos anos 60, nos Estados Unidos, esse tema seja utilizado por políticos e pela mídia conivente (além dos pesquisadores) para ofuscar as mentes das pessoas, desviando-as de perigos bem mais graves, ou para legitimar políticas de caráter repressivo. Portanto, o termo medo da criminalidade, segundo essa perspectiva, seria empregado de modo impreciso e “onicompreensivo” tanto na mídia quanto nas pesquisas científicas, com o fim de supervalorizar a sua importância aos olhos do público, sempre que as exigências políticas o pedem. Com referência a essas possíveis instrumentalizações, alguns autores tentaram recuperar o significado específico de medo da criminalidade. Mas essa tentativa, relevante apenas no âmbito dos estudos da dimensão individual do medo da criminalidade, arrisca ocultar uma dimensão política. O medo da criminalidade é igualmente um fato social e estudado, portanto, também porque emerge na comunicação social e política: pela sua penetração nos discursos públicos e pela pluralidade de significados adotada nesses discursos.

3. O MEDO DA CRIMINALIDADE COMO FATO SOCIAL A interpretação de que o tema medo da criminalidade é usado instrumentalmente pelo poder torna-se útil quando são analisados alguns casos específicos (como fez Quinney, com primeiras pesquisas americanas), mas arrisca-se, como afirmação geral, em exemplificar excessivamente o que acontece em situações nas quais o discurso sobre o medo da criminalidade permeia a vida social. Os estudos sobre o pânico moral, vale dizer, sobre aquelas situações em que se difunde, em amplos estratos da sociedade, um estado de alarme não justificado, marcado pela hostilidade a grupos de pessoas marginais, mostraram como a sua difusão é efeito não só de campanhas provocadas pelas classes dominantes, com o objetivo de desviar a atenção do público de fatos graves, como a recessão econômica, e de manipulação das classes médias, que empregam o pânico social para obter o acolhimento de pedidos por parte

Impulso, Piracicaba, 14(35): 49-59, 2003

das instituições estatais. Mas que ele resulta, também, do emergir espontâneo e difuso da preocupação entre a população por motivos ideológicos e morais.18 Efetivamente, observando a proliferação dos discursos sobre o medo da criminalidade em vários contextos da vida em sociedade, fica-se convencido de que as pessoas na família, nos escritórios ou nas empresas, nas associações, em grupos, comitês ou instituições formais não são simplesmente espectadoras, mas, pelo contrário, contribuem de maneira decisiva à circulação do medo da criminalidade na sociedade. Esse tema, às vezes, emerge de baixo, quando grupos de cidadãos se reúnem para pedir maior segurança a políticos e administradores. Outras vezes, aflora no diálogo entre as instituições formais, como quando os sindicatos pedem mais fundos para a segurança ao governo nacional ou esse, por sua vez, solicita que a Justiça Penal seja mais sensível às exigências de segurança da sociedade. Ainda outras vezes, surge de modo casual, ou melhor, nos percursos difíceis de reconstruir, envolvendo diversos contextos e atores sociais. Nesse sentido, o medo da criminalidade não é apenas uma emoção individual manipulável do poder constituído. No momento em que se torna terreno de choque político, de confronto entre as instituições e de reivindicações sociais, por meio das quais criam-se novos agregados sociais, instituições e modalidades comunicativas, o medo da criminalidade assume necessariamente uma conotação política. Tudo isso implica que, além de estudado no plano individual como medo do indivíduo confrontado com um ato criminoso, mensurável, e sobre o qual se deve agir intencionalmente, o medo da criminalidade deve ser analisado também nos seus aspectos políticos, que consideram, em outras palavras, as modalidades de regulação da vida em comum das pessoas (da res publica). A literatura existente não é de grande ajuda na análise dos aspectos políticos do medo da criminalidade. Assim como os estudiosos de percepção 18

Cf. BARBAGLI, 1999.

55

002176_Impulso_35.book Page 56 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

do risco se ocupam, há tempos, somente da capacidade cognitiva do indivíduo diante do risco, sem reconhecer a politicidade do conceito de risco,19 atualmente os pesquisadores do medo da criminalidade se esforçam para ver além das suas dimensões individuais, de modo a concentrar-se nos processos: 1. de afirmação do medo da criminalidade como tema político; 2. de que essa afirmação se insere nas relações sociais. Para começar a observar o primeiro item (o surgimento do medo da criminalidade como tema político), é útil ver os resultados da literatura sobre a percepção de risco, em particular, a perspectiva conhecida como teoria cultural, enunciada por Douglas e Wildavsky. Os estudos sobre a percepção do risco, desde os anos 70, demonstraram que as pessoas não valorizam os riscos em relação à sua efetiva periculosidade. Diante de uma gama de perigos diferentes, elas tendem a superestimar os casos incomuns e espetaculares e a subestimar os comuns.20 Esses resultados foram interpretados à luz do conceito de disponibilidade cognitiva (cognitive availability). Sobre a base de estudos psicológicos, acerca do papel dos modelos heurísticos no decision-making, revelou-se que os perigos mais dramáticos e espetaculares são também mais facilmente lembrados e essa sua disponibilidade cognitiva mais elevada poderia, portanto, explicar por que são superestimados em relação a outros perigos. Tais observações são úteis para tentar explicar o surgimento do medo da criminalidade no plano individual e a sua autonomia quanto à efetiva pressão da criminalidade, abrindo caminho para a pesquisa dos fatores que influem na capacidade cognitiva dos indivíduos.21 No entanto, 19

Por politicidade do conceito de risco entende-se a sua dependência de diferentes visões de mundo, que subentendem estruturas diversas de conhecimento e sistemas variados de valor, os quais determinam as modalidades com que diferentes grupos confrontam experiências comuns de eventos e ações perigosas. Para aprofundar a literatura sobre a percepção de risco, cf. DOUGLAS, 1986. 20 LICHTENSTEIN et al., 1978, p. 551-578. 21 Efetivamente, trata-se de uma área que ainda fornece muitos argumentos para o estudo dos fatores que influenciam a percepção da criminalidade. Para uma análise rápida dos principais fatores estudados em relação à percepção do risco, cf. BOHOLM, 1998, p. 135-163.

56

ainda não são suficientes para explicar por que o medo da criminalidade toma relevância não só como fato individual, mas como discurso público.22 Um argumento a mais é oferecido por estudos antropológicos sobre o risco. Como observa Douglas, as conclusões de grande parte da pesquisa antropológica indicam que os indivíduos, quando se vêem forçados a calcular a probabilidade de um evento que comporta graves conseqüências (como o desastre ambiental), são já embebidos de suposições e orientações adquiridas culturalmente.23 Tais suposições e orientações, segundo a teoria cultural, têm a ver com a forma das relações sociais mantidas pela pessoa, com os preconceitos culturais, entre eles, os valores compartilhados e as crenças (incluindo, portanto, a visão do mundo e das relações sociais), e com as estratégias comportamentais preferidas. É como se o indivíduo, no momento em que age na realidade, por exemplo, observando-a, fosse dotado de mapas cognitivos,24 que o ajudam na seleção de coisas a ver e interpretar. Assim, convém estudar essas suposições e orientações culturais comuns a largas faixas da população, mais que as modalidades de percepção do indivíduo, para compreender como um certo fenômeno, entre os tantos possíveis, torna-se um perigo temido por toda a coletividade, a ponto de criar alarme social. É necessário, como sugere Roché, considerar como central a questão da seleção social e política do risco.25 E estudar as orientações socioculturais que contribuem para a construção de um fenômeno como risco a ser temido. A literatura sociológica vem ajudar a compreender algumas dessas orientações. De Leonardis sublinha a tendência à privatização dos serviços primários à pessoa e, mais em geral, à redução da intervenção pública nos campos tradicionalmente ocupados pelas políticas do welfare state.26 Na área da ordem e se22

Como lembra Pitch, realmente desde Durkheim, sabemos que não é lícito somar percepções e valorizações individuais para explicar e compreender situações sociais. Cf. PITCH e VENTIMIGLIA 2001, p. 38. 23 DOUGLAS, 1992, p. 67. 24 DE LEONARDIS, 2001, p. 52-59. 25 ROCHÉ, 1996. 26 DE LEONARDIS, 1998.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 49-59, 2003

002176_Impulso_35.book Page 57 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

gurança pública, está acontecendo um duplo processo de privatização:27 1. privatização da demanda de segurança – o Estado não é mais o coletor das demandas de segurança da sociedade: cidadãos e empresas assumem diretamente o ônus (e a responsabilidade) de pedir e pagar serviços de segurança; 2. privatização da oferta de segurança – o Estado não é mais, nem mesmo, o único fornecedor de serviços de segurança: empresas e indivíduos os organizam e os fornecem, tanto para o setor privado quanto para o público. O Estado está perdendo a centralidade que o caracterizou por cerca de um século, diante das tendências econômicas globalizantes, com as suas cargas de incerteza e capacidade destrutiva, e perante um enfraquecimento do instrumento político, a lei, à qual tradicionalmente se deu forte valor simbólico.28 A tendência à privatização se entrelaça com a da individualização, de um lado, e à pesquisa de identidade em comunidades homogêneas, de outro. Giddens trouxe à tona como, nesse clima, as pessoas são condenadas a fazer escolhas incessantes sobre bases incertas, sozinhas e com uma sobrecarga de responsabilidades subjetivas.29 Bauman sublinhou que, num ambiente de constante precariedade (entendido como insegurança do próprio status social, incerteza do futuro e sensação de não ser dono do presente), a tendência dominante, também na organização dos espaços de vida, é refugiar-se na idéia de comunidade como espaço purificado e separado da sociedade.30 Essas tendências – que podemos definir como desinstitucionalizantes31 e que chegam a fascinar uma sociedade privada de mediações e com os nervos à flor da pele, na qual as instituições, patrimônio de inteligência coletiva, se deterioram a favor do imediatismo das relações sociais – favorecem as percepções (também emotivas) dos problemas individuais: cada um vive a própria ansiedade sozinho, segundo Bauman, tentando en27 28 29 30 31

BAYLEY & SHEARING 2001; LOADER, 2000. CHIODI, 1996. GIDDENS, 1994. BAUMAN, 2001. DE LEONARDIS, 2001.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 49-59, 2003

contrar soluções pessoais às contradições sistemáticas.32 Assim, a criminalidade também não surge como problema social de se confrontar com ações coletivas, mas como problema individual. O perigo e o dano do crime sobre a pessoa (tanto o furto quanto o homicídio) são considerados em termos exaustivos. Não há mais preocupação em gerir a questão da criminalidade confrontando politicamente as condições estruturais que podem garantir maior segurança; a vítima em potencial tem medo de ser atingida pela criminalidade e tende a agir individualmente para afastar os fatores de risco. E é próprio desse medo individual, mais que da criminalidade, o fato de querer falar e discutir em público. O medo da criminalidade torna-se terreno de encontro entre as pessoas e de desencontro político e institucional, instrumento para fazer avançar pedidos de mudança, fator de legitimação de novas instituições, saberes e figuras profissionais, oportunidade para afirmar novos setores empreendedores e pretexto para esconder insucessos políticos ou recessões econômicas, para aumentar o nível de controle e de restrição da liberdade e para definir quem está dentro e quem está fora, decretando a exclusão daqueles que, de fora, apertam o cerco à comunidade compacta. O discurso público sobre medo da criminalidade torna-se, então, aquele que constrói novas identidades, cria novas referências culturais e novos valores e redefine os equilíbrios na sociedade. Desse modo, chegamos também ao segundo tema abordado: quais as conseqüências produzidas pelo discurso sobre o medo da criminalidade? Como cada prática discursiva, o medo da criminalidade vem utilizado a critério ético e político de interpretação da realidade e, ao mesmo tempo, termo de referência para transformar a realidade: dá vida a novas classificações, das quais brotam novos modos de pensar e agir, novas formas e novos objetos. O caso de City Walk, descrito por Lopez,33 é um exemplo macroscópico dessa força geradora do discurso sobre o medo da criminalidade. Trata-se de um complexo nos arredo32 33

BAUMAN, 2001; BECK, 1986. LOPEZ, 1994.

57

002176_Impulso_35.book Page 58 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

res de Los Angeles, situado entre o centro comercial e o parque de diversões, que oferece aos visitantes (o bilhete de ingresso custa 15 dólares) a possibilidade de passear em uma Los Angeles livre da violência e da criminalidade. O medo da criminalidade torna-se critério para pensar, projetar e realizar a vida em comunidade.

NOTAS CONCLUSIVAS: AS POLÍTICAS DE SEGURANÇA COMO MENSAGENS ÉTICAS Estudar os aspectos políticos do medo da criminalidade, assumindo uma perspectiva que coloque como central a dimensão cultural e ética da vida social, permite distinguir dois planos: o da pessoa que vive uma situação geradora de medo e o da sociedade que fala difusamente de medo da criminalidade, e, ao fazê-lo, a descontextualiza e a aplica a diversas funções (coesão social da comunidade, afirmações de poder, atribuição de responsabilidade a grupos marginais etc.), produzindo, ao mesmo tempo, novos modos de pensar, de agir e, portanto, de entender as relações sociais. Essa distinção de planos permite olhar a política de segurança de uma ótica diversa da habitual. As instituições falam de medo da crimina-

lidade por meio de caminhos políticos contidos nos atos que emitem. As políticas de segurança constituem, por conseguinte, parte integrante do discurso sobre o medo da criminalidade e desempenham papel importante (ainda que nem sempre determinante) no fornecimento de critérios para (re)pensar a vida social. Se, dessa forma, as políticas têm, de um lado, a finalidade evidente de reduzir os medos das pessoas (diminuindo os delitos e a desordem social, aumentando a assistência às vítimas, requalificando as áreas urbanas, adotando sistemas de videovigilância etc.), de outro, exprimem necessariamente uma visão ideal da sociedade e das relações sociais sobre a base na qual caracterizam-se as necessidades de intervenção. As políticas podem ser vistas, assim, como recipientes que veiculam mensagens à coletividade acerca daquilo que é justo fazer para adequarse a um modelo de sociedade a que implicitamente se adere. Estudar os conteúdos, antes de tudo éticos, dessas mensagens permite ter maiores informações sobre a direção pretendida pelas instituições de fiscalização. E, talvez, permita a todos nós refletir, com mais atenção, sobre as características da sociedade que estamos construindo.

Referências Bibliográficas BARBAGLI, M. Egregio Singor Sindaco. Bologna: Il Mulino, 1999. BAUMAN, Z. Voglia di comunità. Bari: Edizioni Laterza, 2001. BAYLEY, D.H. & SHEARING, C.D. The New Structure of Policing: description, conceptualization, and research agenda. Washington DC. Department of Justice/National Institute of Justice, 2001. BECK, U. Risikogesellschaft. Auf dem Weg in eine andere Moderne. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1986. Trad. it. La Società del Rischio. Roma: Carocci, 2000. BOHOLM, A.“Comparative studies of risk perception: a review of twenty years of research”.Journal of Risk Research, v. 1, n. 2, 1998. CHIODI, G.M.“Giurisdizione ed equità regolativa”. In: BRUTI LIBERATI, E.; CERETTI, A. & GIASANTI A. Governo dei giudici. La magistratura tra diritto e politica. Milano: Giangiacomo Feltrinelli Editore, 1996, p. 31-48. CORNELLI, R.“Cos’è la paura della criminalità e quanto è diffusa”.L’Inchiesta, 2003 [no prelo]. DE LEONARDIS, O. Le Istituzioni. Come e perché parlarne. Roma: Carocci Editore, 2001. ______. In un Diverso Welfare. Milano: Feltrinelli, 1998. DEPARTMENT OF JUSTICE CANADA. Fear of Crime in Canada, rapporto reperibile sul sito web . 1995. DOUGLAS, M. Risk And Blame. London/New York: Routledge, 1992. Trad. it. Rischio e Colpa. Bologna: Il Mulino, 1996.

58

Impulso, Piracicaba, 14(35): 49-59, 2003

002176_Impulso_35.book Page 59 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

______. Risk Accettability According To The Social Science. New York: Russel Sage, 1986. Trad. it. Come Percepiamo il Pericolo: antropologia del rischio. Milano: Feltrinelli, 1991. FRJIDA, N. H. The Emotions. Cambridge: Cambridge University Press, 1986. GIDDENS, A. Le Conseguenze della Modernità. Bologna: Il Mulino, 1994. HALE, C.“Fear of crime: a review of the literature”.International Review of Victimology, n. 4, 1996, p. 79-150. LAGRANGE, R.L. & FERRARO, K.F.“Assessing age and gender differences in perceived risk and fear of crime”.Criminology, v. 27, n. 4, 1989, p. 698-701. LICHTENSTEIN, S. et al. “Judges frequency on lethal events”. Journal of Experimental Psychology (Human Learning and Memory), n. 4, 1978. LOADER, I.“Plural policing and democratic governance”.Social & Legal Studies, v. 9, n. 3, 2000, p. 323-345. LOPEZ, R.“Deliri di autodifesa a Los Angeles”.Le Monde Diplomatique, 4/maio/94. LYNCH, M.J.“Percezione del reato da parte del pubblico”. In: FERRACUTI, F.Trattato di Criminologia, Medicina Criminologica e Psichiatria Forense. Milano: Giuffrè Editore, v. 4, 1991, p. 208-220. MAGRI, T.“Ridare cittadinanza alle emozioni”.In: ______. Filosofia ed emozioni. Milano: Feltrinelli, 1999, p. 7-10. PAVARINI, M.“Bisogni di sicurezza e questione criminale”.Rassegna di Criminologia, n. 4, 1994, p. 435-462. PITCH, T. & VENTIMIGLIA, C. Che genere di sicurezza. Milano: Franco Angeli, 2001. ROCHÉ, S.“L’insécurité: entre crime et citoyenneté”.Déviance et Société, v. 15, n. 3, 1996, p. 301-313. SMITH, W.R. & TORSTENNSSON, M. “Gender differences in risk perception and neutralizing fear of crime”. British Journal of Criminology, v. 37, n. 4, 1997, p. 608-628. STAFFORD, M. & GALLE, O. “Victimization rates, exposure to risk, and fear of crime”.Criminology, v. 22, n. 2, 1984, p. 173-185. WARR, M.“Fear of crime in the United States: avenues for research and policy”.Measurement and Analysis of Crime and Justice. US Department of Justice, v. 4, 2000, p. 451-489. WILLIAMS, F.P.; MCSHANE, M.D. & AKERS, R.L. “Worry about victimization: an alternative and reliable measure for fear of crime”.Western Criminology Review, n. 2, 2000.

Dados do autor Doutor em pesquisa em criminologia, desenvolve atividades de pesquisa sobre temas de segurança urbana e justiça criminal. Colabora com atividades didáticas e de pesquisa da cátedra de Criminologia da Università degli Studi di Milano-Bicocca, Milão/Itália. Recebimento artigo: 5/set./03 Consultoria: 8/set./03 a 17/set./03 Aprovado: 23/set./03

Impulso, Piracicaba, 14(35): 49-59, 2003

59

002176_Impulso_35.book Page 60 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

60

Impulso, Piracicaba, 14(35): 49-59, 2003

002176_Impulso_35.book Page 61 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Dilemas na Pesquisa Científica Dilemmas in Scientific Research Impulso, Piracicaba, 14(35): 49-59, 2003

61

002176_Impulso_35.book Page 62 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

62

Impulso, Piracicaba, 14(35): 49-59, 2003

002176_Impulso_35.book Page 63 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Salvar o Dito, Honrar a Dádiva – dilemas éticos do encontro e da escuta etnográfica TO SAVE THE SAYING, TO HONOR THE GIFT – ETHICAL DILEMMAS OF ETHNOGRAPHIC ENCOUNTER AND LISTENING Resumo A preocupação com a ética da pesquisa não é nova na antropologia e tem sido atualizada constantemente, na medida em que acompanha o desenvolvimento da disciplina. O encontro e a escrita etnográfica, bem como as dimensões subjetivas e políticas do conhecimento têm sido alvo de intensa problematização por parte dos antropólogos. No Brasil, a resolução 196/96, do Ministério da Saúde, que normatiza as pesquisas com seres humanos, recolocou a questão em outros termos, por exemplo, a necessidade de formalização do consentimento informado pelos pesquisados, trazendo problemas adicionais à sempre complexa relação antropólogo/nativo, temática recorrente na reflexão teórico-metodológica da disciplina. Neste artigo, propõese pensar a ética da pesquisa no âmbito da teoria da reciprocidade, tendo por foco a posição ocupada pela antropologia na sociedade brasileira, na qual, historicamente, as diferenças têm sido fonte de desigualdade e exclusão social. Palavras-chave ÉTICA – ENCONTRO ETNOGRÁFICO – RECIPROCIDADE. Abstract The concern with ethics in research is not new to anthropology. It has been constantly updated as this discipline develops. Ethnographic encounter and listening, as well as subjective and political dimension of knowledge, have been extensively reviewed by anthropologists. In Brazil, Resolution 196/96, from the Health Ministry, that regulates research on human beings, positions the issue in other terms – for example, the need of a formally informed consent by potential subjects. That brings additional problems to the complex relationship between anthropologist/native, a recurring theme in the discipline’s theoretical-methodological reflection. In this article, the author approaches ethics in research within the scope of reciprocity theory, focusing on the position of anthropology position within Brazilian society, in which differences have been historically the source of inequality and exclusion. Keywords ETHICS – ETHNOGRAPHIC RELATIONSHIP – RECIPROCITY.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 63-74, 2003

63

CARMEN SUSANA TORNQUIST Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) [email protected]

002176_Impulso_35.book Page 64 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

E

m 1996, foi aprovada, pelo Ministério da Saúde, a Resolução 196/96, intitulada Normas para a Pesquisa com Seres Humanos, que regulamenta as pesquisas realizadas fundamentalmente no campo da saúde. Essa resolução foi fruto de um longo processo de discussão, do qual participaram entidades profissionais, organizações nãogovernamentais e agências estatais, reunidos em comissão específica, tendo em vista normatizar essa delicada questão na sociedade brasileira. Desdobramentos muito controversos a partir da aprovação e operacionalização dessa resolução não tardaram a ser vivenciados: pesquisadores acostumados a realizar suas pesquisas em saúde coletiva e saúde em geral, tanto no nível institucional (postos de saúde, hospitais etc.) quanto no domiciliar, viram-se constrangidos a elaborar verdadeiros dossiês contendo projeto de pesquisa, aprovação de instituições envolvidas, declarações diversas, documentos institucionais e, ainda, um formulário intitulado consentimento livre e esclarecido ou informado. O argumento maior de todo esse esforço institucional e legal era eminentemente ético e estava embalado por discussões contemporâneas de ponta, geradas sobretudo por empreendimentos como o Projeto Genoma. Pesquisadores e profissionais da área da saúde, pressionados por um contexto favorável à reivindicação de direitos humanos, deram-se conta de que a dimensão ética da produção de saber envolvendo seres humanos era premente e não poderia ser mais decidida unicamente por critérios corporativos ou estritamente acadêmicos, mas também políticos e extra-acadêmicos. Embora aparentemente restrito a pesquisas da área biomédica, os efeitos de tal resolução transbordaram esse campo de pesquisa e passaram a dizer respeito à antropologia. Primeiro, porque vários antropólogos têm se dedicado ao estudo da saúde de diferentes grupos da população (incluindo aí a saúde indígena), passando, portanto, a dispor de mais um instrumento de controle e regulamentação de seu métier, quando já possuem seu próprio código, formação que inclui essa discussão e fóruns específicos para tratá-la. Segundo, porque os antropólogos fazem falta no refinamento desse debate, dada a profundidade de sua experiência e reflexão no que diz respeito à ética da pesquisa. A questão da ética na pesquisa e na profissão de antropólogo não é nova; pelo contrário, é mesmo constitutiva da disciplina, se pensarmos na própria origem e no desenvolvimento dela ao lado de agentes coloniais e práticas de conversão de sociedades não-ocidentais, desde o século XX. Embora tenha sempre estado presente, a reflexão ética emerge com grande força nos anos 80. Nela, a crítica dessa colaboração com o colonialismo é rechaçada, passando a tornar-se congênita à prática antropológica.1 É bom lembrar que o Código de Ética da Associação Brasileira 1

MENEZES BASTOS, R. “Antropologia como crítica cultural e como crítica a esta: dois momentos extremos de exercício da ética antropológica (entre índios e Ilhéus)”. In: LEITE, 1997, p. 100.

64

Impulso, Piracicaba, 14(35): 63-74, 2003

002176_Impulso_35.book Page 65 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

de Antropologia (ABA) data justamente desse período, embora tenha existido de modo informal anteriormente, conforme relata um dos fundadores da entidade, Roque Laraia.2 A preocupação com os destinos das pesquisas antropológicas é bem anterior: veja-se o caso de Franz Boas, que, em 1919, foi crítico intransigente da participação de antropólogos em planos de espionagem dos EUA na América Central, dividindo a opinião dos pesquisadores da Associação Americana de Antropologia. O caso levanta dilemas que não deixarão de atormentar a vida de antropólogos até hoje: quais os limites do fazer ciência e da intervenção política?, quais as fronteiras entre o dever cívico e o compromisso com o que Boas define como a verdade científica?3 A postura weberiana de Boas, marcando a necessária separação entre o juízo de valor da verdade empírica, ajuda-nos a pensar que ética profissional e participação política são coisas diferentes; no entanto, sabemos que suas fronteiras são sempre incertas e instáveis. Sobretudo quando o contexto sociohistórico é de ausência de direitos humanos básicos, como nos países de Terceiro Mundo restringir-se a salvar o dito4 significa testemunhar o extermínio de populações, registrar e dar notícias desses fatos. A complexidade é grande, mas um aspecto parece ter se tornado consensual nos últimos anos: a necessidade de transparência das ações e intenções dos pesquisadores em campo, como forma de garantir os direitos humanos dos povos/grupos anfitriões. Nesse sentido, posturas francamente incômodas à corporação dos antropólogos, como as do projeto Camelot e de Ruth Benedict durante a Segunda Guerra Mundial, estudando um suposto inimigo da democracia, parecem ter sido abandonadas definitivamente. Tanto o mestre quanto a aprendiz viveram na pele, e em posições opostas, os dilemas do antropólogo cidadão que fazem parte do cotidiano dos antro2 LARAIA, R. “Ética e antropologia: algumas questões”. In: LEITE, 1997, p. 90. 3 MOONEN, 1998. 4 A expressão foi cunhada por Geertz, ao argumentar que a descrição etnográfica é sempre interpretativa e que essa interpretação busca inscrever o discurso nativo, portanto, salvar o dito (GEERTZ, 1989, p. 31).

Impulso, Piracicaba, 14(35): 63-74, 2003

pólogos brasileiros de modo bastante candente. Voltarei a essa questão no final deste texto; por ora priorizarei a dimensão da ética profissional, pensada no plano da comunidade de antropólogos com valores e regras legitimadas e, em alguns pontos, normatizadas formalmente. O propósito deste artigo é discutir a premência de uma participação à altura da trajetória da antropologia nessa questão, tendo em vista seu método clássico (aquilo que restou como distintividade do antropólogo, como sugere James Clifford),5 ou, mais do que isso, aquele método visceralmente intrínseco à antropologia, segundo têm argumentado vários antropólogos diante das críticas pós-modernas. O trabalho de campo, hoje em dia, após a consciência hermenêutica e o barulho dos pós-modernos, mostrou-se alargado o suficiente para incluir relatos de viajantes, cronistas, imagens, fotografias, filmes e ciberespaço, entre outros. No entanto, a questão ética, na forma como será pensada aqui, tratará a etnografia clássica, legitimada por Malinowski e transformada em ritual de iniciação do antropólogo preocupado com a compreensão do ponto de vista dos nativos.

NOSSA AVENTURA TEM MÉTODO Na medida em que a antropologia legitimou a prática etnográfica como uma experiência necessária à formação do etnógrafo, a questão do encontro etnográfico passou a ser alvo de reflexões e recomendações acerca do como fazê-la adequadamente. Há que se considerar que os critérios atuais referentes aos chamados procedimentos inerentes à prática científica, para usar os termos do Código de Ética da ABA, não correspondem àqueles princípios orientadores da antropologia no começo do século XX – se aqui estamos em tempos de consciência hermenêutica, lá vivia-se a necessidade de objetividade científica em moldes positivistas. Com tal preocupação, reponta em Malinowski a idéia de mostrar ao leitor 5

CLIFFORD, 1998, p. 20.

65

002176_Impulso_35.book Page 66 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

como ele obteve seus dados, tal qual um cientista natural: Antes de proceder ao relato do kula, será melhor descrever os métodos usados na coleta do material etnográfico. Em qualquer ramo do conhecimento, os resultados da pesquisa científica devem ser apresentados de maneira absolutamente imparcial e honesta. Ninguém ousaria fazer uma contribuição experimental às ciências físicas ou químicas sem relatar, detalhadamente, todos os arranjos experimentais, sem descrever com exatidão a aparelhagem utilizada, o modo pelo qual as observações foram conduzidas, o número de observações realizadas e o tempo dedicado a isto. (...) Infelizmente, na etnografia, onde uma apresentação franca destas informações se faz mais ainda necessária, estes dados não tem sido oferecidos com suficiente generosidade e muitos autores não recorrem ao farol da sinceridade metodológica para iluminar os fatos, que são apresentados como que surgidos do nada.6

as ou dos costumes sexuais das nativas diante dos estrangeiros), em virtude de sua condição de homem, antropólogo e branco. Evans-Pritchard, outro antropólogo de reconhecidas preocupações estéticas e talento autoral, também preocupa-se em tecer considerações acerca do trabalho de campo, visto como misto de talento e preparo, rendendo tributo a Malinowski em vários aspectos (necessidade de dominar a língua, de viver intensivamente com os nativos por um período significativo e de estabelecer com eles vínculos psicológicos). Ele defendia a necessidade da tradução do idioma e dos conceitos nativos para a língua do pesquisador, ao contrário de Malinowski, que, diante de alguns termos como notadamente o kula, evitava forçar uma tradução que traísse o sentido original do termo. Além disso, sublinha que o antropólogo deve construir os fatos etnográficos, selecionando e interpretando o que observa, e que tal processo é marcado pelas idiossincrasias de cada um: Si bien créo que los diferentes antropólogos sociales que estudien a un mismo pueblo registrarán hechos similares en sus cuadernos de notas, también créo que los libros que escribirían serían muy distintos. Dentro de los límites impuestos por su disciplina y la cultura que están investigando, los antropólogos se guián por intereses diferentes para la elección de los temas, la seleción y las disposiciónes de los hechos que los ilustren, para escoger aquello que resulta importante dentro del conjunto. Esto se refleja en las variaciones de personalidad, educación, status social, opiniones politicas, convicciones religiosas, etc.7

Ao propor essa forma de descrição etnográfica, Malinowski está preocupado em mostrar que tal aventura tem método – e, portanto, pode ser ensinada e aprendida. Um etnógrafo deve ser treinado para vivê-la de maneira adequada – e ele, já em Os Argonautas do Pacífico Ocidental, traça vários desses procedimentos: domínio da língua, isolamento proposital e radical dos demais brancos, participação no cotidiano da aldeia, registro detalhado em um diário de campo, incluindo eventos extraordinários e ordinários da vida – a imponderabilia da vida cotidiana, para usar seus próprios termos –, a capacidade de suportar períodos difíceis, a necessidade de ir a campo com questões, além da já citada importância de explicitar as condições em que foi feita a pesquisa. Ele mesmo faz referências a essas condições, chamando a atenção para informações a que não teve acesso (no caso, o que seria o paradoxo das teorias da concepção e práticas sexuais dos nativos/

Para ele, o antropólogo teria um toque de gênio e sua produção, uma dimensão propriamente artística, articulando, ao mesmo tempo, a tarefa de escrever livros sobre a vida social da comunidade o mais corretamente possível, mas sem eliminar sua personalidade, já que o caráter desse profissional faria parte intrínseca de seu contato

6

7

MALINOWSKI, 1986, p. 26 (grifos acrescidos).

66

EVANS-PRITCHARD, 1975, p. 99.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 63-74, 2003

002176_Impulso_35.book Page 67 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

com o outro. Evans-Pritchard, que não parece ter jamais posto em dúvida sua autoridade, embora buscasse sua diferenciação dos missionários, viajantes e agentes coloniais, não estava preocupado nem com os fins de suas pesquisas, nem mesmo com a sinceridade no que tange aos nativos. Nesse ponto, o diálogo com um dos nuer, relatado no início de seu livro, é emblemático do que atualmente chamaríamos de falta de ética profissional – ele, literalmente, mentiu para o nativo, que, de seu lado, não parece ter abandonado suas desconfianças, já que também classifica o antropólogo como branco e colonizador: Cuol: – Você quer saber o nome de minha linhagem? E-P: – Sim. Cuol: – O que você vai fazer com ele se eu disser? Você vai levá-lo para seu país? E-P: – Eu não quero fazer nada com ele. Eu só quero saber, já que estou vivendo em seu acampamento. Cuol: – Ah bom, nós somos lou. E-P: – Eu não perguntei o nome de sua tribo. Isso eu já sei. Eu estou perguntando o nome de sua linhagem. Cuol: – Por que você quer saber o nome de minha linhagem? E-P: – Eu não quero saber. Cuol: – Então por que está me perguntado? Dê-me um pouco de tabaco.8

O diálogo mostra a tensão da negociação entre as partes, inevitável no trabalho do autor, sobre a qual ele se refere como produtora de uma nuerose, mas entendida como necessária para haver reciprocidade – tabaco em troca de informações e desconfiança mútua. Hoje em dia, podem parecer banais as observações de Evans-Pritchard, já que, num contexto pós-moderno, a dimensão autoral e a subjetividade do pesquisador em campo são consideradas inevitáveis, uma vez que dão o tom e o limite também das relações intersubjetivas do campo e sua tradução para a escrita. Nesse caso, ao contrário dos clássicos, sabemos estar conde8

Idem, 1999, p. 21.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 63-74, 2003

nados a fazer interpretações de segunda mão – o que não impede o projeto antropológico de procurar aproximar-se o melhor possível de como pensam os nativos.9 No entanto, como bem colocam Tereza Caldeira, Wilson Trajano Filho e Mariza Peirano, entre outros autores, a crítica dos pós-modernos aos temas aqui apontados pode nos levar equivocadamente a abandonar a boa tradição da etnografia, ou seja, a realização de trabalho de campo e a reflexão sobre a especificidade do encontro etnográfico. Mesmo que as dimensões enfatizadas contemporaneamente tenham de ser consideradas, já que podem ser vistas como refinamento do debate.

O ENCONTRO ETNOGRÁFICO TEMPOS PÓS-MODERNOS

EM

Luís Eduardo Soares argumenta que esses autores têm o mérito de revitalizar o debate sobre o encontro etnográfico, radicalizando a reflexão sempre necessária e dilemática da experiência etnográfica, embora com ênfase especial na textualidade dos relatos.10 A preocupação deles com a realização de experimentos sobre o que Soares chama de dimensão existencial, e menos sobre a dimensão epistemológica do encontro, atenta para aspectos políticos e éticos envolvidos na tradução da relação intersubjetiva para textos dirigidos ao público especializado e mesmo leigo. As reflexões sobre a escrita etnográfica adquirem, então, um peso significativo, levando vários autores a buscar formas polifônicas de escrever, opondo-se veementemente, nesse particular, à tradição monográfica e autoral da antropologia. Segundo Caldeira,11 embora alguns deles, com especial ênfase, recuperem a dimensão política e ética do encontro e da escrita, não têm considerado os aspectos mais amplos que envolvem inevitavelmente a profissão, restringindo-a uma micropolítica 9 Geertz, em sua conhecida reflexão acerca das chamadas interpretações de primeira e segunda mão, diz que “somente os nativos podem fazer interpretações de primeira mão”, cabendo ao antropólogo a tarefa de registrar as interpretações nativas (GEERTZ, 1989, p. 25). 10 SOARES, 1994. 11 CALDEIRA, 1988, p. 24.

67

002176_Impulso_35.book Page 68 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

textual em sentido estrito. Isso sem refletir de forma mais ousada acerca dos condicionantes macropolíticos do próprio contexto estadunidense e suas relações com antigas colônias, onde boa parte das etnografias é feita. Além do mais, careceriam de uma auto-reflexão sobre o campo científico do qual são filhos heréticos, segundo Néstor García Canclini.12 Essas propostas envolvem dimensões éticas e políticas mais amplas e, na medida em que envolvem explicitamente pesadas críticas ao colonialismo, cabe fazer as mediações e comparações devidas com a antropologia produzida nos países coloniais ou nas ex-colônias. O contexto brasileiro é efetivamente diferente, marcado por uma comunidade de antropólogos que, segundo a sugestiva análise de Marisa Peirano,13 é atravessada por uma dupla alteridade – subalterna na comunidade acadêmica internacional, mas hegemônica quanto aos seus conterrâneos, constituindo uma relação de engajamento e comprometimento político significativos, que, junto com a tradição ensaística, parecem fazer parte da história da antropologia no País. É bom lembrar que tal postura de engajamento passou de um paternalismo inicial, como aquele praticado pelo indigenismo tradicional, a outros termos de engajamento com movimentos indigenistas protagonizados pelas próprias nações indígenas, significativo nas três últimas décadas, mas que manteve outros elos de articulação. A recuperação da subjetividade dos antropólogos homens vem estimulando pesquisas acerca das peculiaridades do trabalho de campo feito por suas mulheres, em geral visto como menor ou subsidiário; às vezes elas são verdadeiras co-autoras dos trabalhos, sugerindo uma especificidade da escrita feminina e da própria relação entre mulheres e nativos. A consciência hermenêutica consolidada na disciplina, nas últimas décadas, levou a reflexões mais detalhadas (e não apenas como curiosidade biográfica) sobre o lado até então oculto da ex12 13

CANCLINI, 1993, p. 26-33. PEIRANO, 1991.

68

periência existencial do antropólogo. Entre outros trabalhos, O Diário Secreto, de Malinowski, Os Tristes Trópicos, de Lévi-Strauss, Afrique Fantôme, de Leiris, as cartas de Margareth Mead e as memórias de Ruth Landes14 acerca de sua marginalização no trabalho de campo, além do seu livro, têm alimentado reflexões importantes, que passam cada vez mais a fazer parte da própria formação do antropólogo e de sua sinceridade metodológica. Trata-se de um esforço fundamental de relativizar o próprio conhecimento produzido, mas, ao mesmo tempo, sem abandonar os objetivos propriamente científicos da disciplina. Miriam Grossi acentua que a presença da subjetividade no trabalho de campo sempre esteve presente, mas na qualidade de curiosidades ou de não-ditos do fazer científico, e que atualmente coloca-se como fundamental na análise dos dados, uma vez que a relação pesquisador-pesquisado é decisiva no trabalho de campo.15

ALÉM DA INTERSUBJETIVIDADE A magia do antropólogo de ter visitado ilhas e praias distantes é vista como um mito fundador da antropologia moderna. Mesmo com o alargamento do campo de trabalho da antropologia para além desses lugares longínquos, incluindo cada vez mais o estudo da própria sociedade ocidental, de seus grupos, suas tribos e seus guetos, a mística permanece: o antropólogo é uma espécie viajante on the road, disposto a passar por todas as agruras de ser hóspede de desconhecidos e viver na própria pele e psique o impacto dessa experiência, um sujeito corajoso e sem preconceitos ou, pelo menos, disposto a colocar em cheque os seus preconceitos. Ao estudar seus vizinhos e seus pares, e não mais necessariamente as tribos distantes, esse eterno viajante depara-se, então, com a tarefa de construir a alteridade lá onde ela não está explícita, não está dada. Não que não seja preciso fazer o mesmo com sociedades não 14

O caso Landes é recuperado por Vagner da Silva, em seu trabalho com pesquisadores de religiões afro-brasileiras, chamando atenção para os imbróglios políticos internos ao campo cientifico, envolvendo, no caso, nítidas discriminações de gênero (SILVA, 2000, p. 81). 15 GROSSI, 1992, p. 8.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 63-74, 2003

002176_Impulso_35.book Page 69 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

ocidentais, mas aqui o esforço parece redobrado. Transformar o exótico em familiar inverte-se, sendo preciso estranhar o que é conhecido, ou seja, o visceral, o estomacal de DaMatta,16 procedendo a uma série sucessiva de objetivações e questionamentos das categorias de entendimento. Obviamente, a comparação com aquelas sociedades distantes será parte desse processo de estranhamento e eis aí a importância da estratégia comparativa na antropologia. A antropologia urbana, significativa na história da antropologia brasileira mais recente, criou instrumentos próprios para lá onde ela parecia inexistente ou muito tênue. As mesmas diretrizes clássicas da aventura antropológica se fazem presentes nesses estudos, tanto entre os grupos mais distantes dos universos simbólicos dos pesquisadores quanto daqueles dos quais fazem parte. O esforço de estranhar relativizando passa a ser uma tarefa não dada nesses contextos – é preciso construir a alteridade, procedendo ao que Lévi-Strauss dizia ser uma das contribuições mais importantes de Marcel Mauss em termos metodológicos, como se esse autor, mais uma vez em seus insights sugestivos, tivesse pensando a singularidade da antropologia, repousando antes sobre o seu método, o seu olhar, e não sobre o seu objeto. É o encontro com outras pessoas, diferentes entre si, e com as quais o antropólogo terá de necessariamente envolver-se, dialogar, estabelecer relações intersubjetivas suficientemente densas para que se possa compreender a forma como os nativos pensam. Esse encontro ocupa um lugar decisivo, e é de sua intensidade que depende, em grande parte, o sucesso do empreendimento. As mudanças de temáticas, de estratégias e de técnicas no decorrer do trabalho de campo, justamente por isso, fazem parte dessa atividade empírica, muito mais do que em outras ciências sociais, pois o que se pretende é escutar o “Outro” e a escuta implica recolocar as questões. Essa capacidade de adaptação ao campo (e aos nativos) é constitutiva da etnografia moderna.

O encontro etnográfico é sempre complexo, intransferível, incerto, tenso e instável. Nessas condições, a dimensão artesanal e mágica exige efetivamente uma sensibilidade diferente do necessário polimento do olhar do antropólogo, construído com base numa formação específica.17 O antropólogo nunca sabe, de fato, se realmente será recebido, que dirá bem recebido, e mesmo que metodologicamente já saiba que, embora não o sendo, poderá observar e participar do ponto de vista existencial-subjetivo, não é fácil lidar com esse encontro. A dimensão existencial do encontro, assim como sua dimensão epistemológica, envolve questões éticas. Mas se, nesse caso, a ética encerra outros atores implicados na pesquisa (a comunidade acadêmica, os agentes financiadores e também os nativos), é no plano da dimensão existencial que a ética parece assumir um tom mais dramático. Isso porque o encontro etnográfico é um encontro entre pessoas, premeditado, de um lado, e espontâneo, de outro. Ao obrigar-se a ser aceito pelo grupo/sociedade em que pretende permanecer, observar e participar, o antropólogo vê-se envolvido com questões nada epistemológicas, que o aproximam dos nativos de forma muito imediata – classificado por DaMatta como momento prático seguido do existencial. É quando o pesquisador arruma a sua mochila, prepara seus adereços e seu equipamento, arma a sua barraca e coloca-se, enfim, como um igual – um ser humano como outro qualquer, e não um pesquisador com capital cultural, legitimidade acadêmica, assepsia profissional. A vulnerabilidade desse momento pode e deve ser objeto de atenção e análise, pois há um impacto psíquico nesse encontro das diferenças simbólicas entre as culturas a que pertencem ambos os lados da relação. A análise desse impacto – já sugerida por Evans-Pritchard – faz parte de nosso dever do ofício. A aceitação pelo grupo anfitrião, mais precisamente pelas pessoas de carne e osso (lembremos da ênfase nessa dimensão dada por Malinowski), e

16

17

DAMATTA, 1974, p. 25.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 63-74, 2003

LEITE, 1997, p. 42.

69

002176_Impulso_35.book Page 70 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

as relações que se sucedem após a desejável e arquitetada acolhida inauguram um circuito de reciprocidade. Sem ela não haverá nem trabalho de campo nem escrita etnográfica. Alguém já disse que não haverá observação participante rentável que não se apóie profundamente nessa participação. Esse tipo de observação envolve partilha, trocas, intersubjetividade, face-to-face e tête-à-tête e, justamente por isso, viabiliza a riqueza das análises – com todos os dramas e dilemas que acarretam. Sabemos que existem controvérsias quanto à ênfase na participação ou na observação. Elas parecem apontar divergências epistemológicas, nas quais ora se pensa segundo uma perspectiva hermenêutica, sendo, então, a subjetividade uma convidada bem-vinda do trabalho de campo, ora se postula que essa subjetividade deve ser minimizada ao máximo, num ideal de naturalidade axiológica. Mas, em campo, esses limites são tênues: sobretudo aquelas ocasiões envolvendo situações limites, como as de vida ou de morte, colocam o desafio aos antropólogos de escolher entre a intervenção ou a não intervenção. O caso relatado por Alba Zaluar,18 de que o seu professor Max Gluckman revela ter intervido ativamente em campo para evitar a morte de uma criança, é um entre infindáveis exemplos reveladores dos dilemas éticos e existenciais do trabalho de campo, e relacionados com a própria natureza do encontro etnográfico. É com base na teoria da reciprocidade que pretendo analisar, agora, os dilemas éticos do encontro etnográfico.

UMA DÁDIVA SOLICITADA No seu clássico e inspirador “Ensaio sobre a Dádiva”, Marcel Mauss lembra que o dom supõe um contra-dom, e que a dádiva não é algo que se dá por dar;19 há uma expectativa de contrapartida implícita cuja temporalidade não está senão obscurecida pela incerteza da relação. Ao recuperar a lógica da reciprocidade, Bourdieu su18 19

ZALUAR, 1993, p. 150. MAUSS, 1974.

70

blinha que a dádiva requer um tempo de espera que não pode ser explícito. Essa espera implícita, portanto, é decisiva, pois, se houvesse explicitação das regras interiorizadas, romper-se-ia o circuito da reciprocidade. Além disso, segundo ele, a reciprocidade implica assimetria, trocar envolve poder, desigualdade, subalternidade: Quando se estabelecem condições que excluem a possibilidade de contrapartida, a própria esperança de uma assimetria durável revela uma reciprocidade ativa. Condição de uma verdadeira autonomia, são de natureza a criar relações de dependência duráveis, variantes eufemizadas (...). Tendem a se reinscrever nas dobras do corpo, sob forma de crença. Confiança, paixão, qualquer tentativa de transformá-las pela consciência e pela vontade se chocam com as resistências ocultas dos afetos e com as injunções tenazes de culpabilidade.20

É interessante pensar no encontro etnográfico apoiado nessas relações de poder e na culpabilidade que aparece envolvida nesses intercâmbios. O pesquisador fala de um lugar social, muitas vezes mais prestigioso que seus informantes. Mas na dádiva do encontro, na qual o antropólogo quer escutar o outro e não espera receber gratuitamente o prazer da escuta, ele precisa solicitar ao informante o seu consentimento. Não há espontaneidade nesse pedido; há intencionalidade plena. O consentimento do informante (e não o consentimento informado) é obtido de formas diversas, valendo-se de contatos de temporalidade instável, que dependem da empatia e das negocia-ções estabelecidas entre antropólogo e nativos. Doação de tempo, informações confidenciais, depoimentos, pedaços da vida dos nativos são dádivas conquistadas pelo antropólogo ao longo do estar em campo, junto com o Outro – e podem se dar de maneiras tão diversas quanto correr da polícia junto com os praticantes das rinhas de galo, ceder tabaco, doar remédios, participar de muti20

BOURDIEU, 1996, p. 15.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 63-74, 2003

002176_Impulso_35.book Page 71 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

rões, auxiliar na confecção de um abaixo-assinado, participar do baile de carnaval, escrever a memória de um grupo, defendê-lo diante de autoridades e tantas outras, que possam viabilizar a construção de uma fusão de horizonte na prática. A confiança é uma conquista do devir da relação. Cada vez mais, os nativos são ativos, recusando-se a ocupar o lugar de objetos passivos: eles igualmente nos classificam em suas categorias prévias e também querem trocar – participam do espírito da dádiva que concedem. Compreender qual ou quais os contra-dons esperados a partir do consentimento do informante tornou-se mais uma dimensão a ser pensada em campo e nos momentos de escrita e socialização da pesquisa. Perceber os implícitos das relações intersubjetivas, as expectativas, as frustrações de ambas as partes e seus condicionantes sociológicos é parte intrínseca do nosso esforço de entender os pontos de vista dos nativos. Se, de um lado, sabemos que explicitar os não-ditos pode romper com a reciprocidade, de outro, começamos crescentemente, em razão de conflitos teóricos, a pensar se não é da negociação transparente dos termos do trabalho etnográfico que a tensão po-de ser incorporada na própria escrita do texto. A proposta de Gadamer, recuperada por Crapanzano,21 de que deveríamos investir no diálogo de tipo engajado, no qual as tensões e os conflitos fazem definitivamente parte, parece apontar nesse sentido, embora seja, talvez, um dos planos mais difíceis de estabelecer as negociações. A própria existência de conflitos pode, e quem sabe deva, fazer-se presente no diálogo e na escrita; a conversa espontânea e efetiva traz implicações, já que, para ambos os lados, exige o sujeito efetivamente. Mas trata-se, muitas vezes, de uma conversa entre pólos assimétricos – o antropólogo norte-americano e o marroquino fazedor de telhas, no caso de Crapanzano, a intelectual e os pobres da favela, em Zaluar – e a consciência dessa assimetria, sobretudo no momento da escrita da monografia, parece dar o tom das preo21

CRAPANZANO, 1991.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 63-74, 2003

cupações éticas daqueles que estiveram lá, de passagem. A ruptura radical entre o trabalho de campo (a vida na rua) e o momento da escrita (a reclusão da casa) é apontada como um momento difícil por vários antropólogos, como aqueles escutados por Vagner da Silva.22 Nessa passagem radical, as pessoas de carne e osso tornam-se personagens de um texto, desencarnadas e frias, ainda que os saberes da escrita possam inscrevê-las em narrativas mais ou menos vibrantes. Mesmo trazendo para o interior dos textos monográficos ou polifônicos esses sujeitos, agora, sim, inevitavelmente transformados em indivíduos sociológicos (objetivados), os desencontros dos antropólogos têm sido grandes, muitas vezes identificando-se com um sentimento de culpa, uma dívida a ser saldada.23 Há efetivamente um luto a ser feito: se a experiência foi mesmo impactante, do ponto de vista psíquico/afetivo, e se o encontro ou o diálogo mostrou-se efetivo por parte do antropólogo que agora, diante dos seus deveres acadêmicos, deverá recuperar – caso tenha abandonado por um tempo – sua função de escritor, pensador, analista e intérprete.24 Manifestações de desagrado e decepção quanto aos resultados da pesquisa não raro são expressas diante das boas intenções dos agora autores em socializar os resultados, como o depoimento da mãe de santo reclamando da frieza do texto em que figura como personagem: eu estive num encontro da Unesco, e me senti assim, tão do outro lado da jaula, que eu disse ao Sérgio Ferreti – Olha, vocês têm que ver como lidam com o pesquisado, porque às vezes a pessoa que é 22

SILVA, 2000. Janaína Amado fala da culpa nossa de cada dia, presente no trabalho dos historiadores que atuam com história oral e memórias de vida, acentuando que somente a participação para além dos textos, na esfera política propriamente dita, pode dar conta de mitigar essa culpa (AMADO, 1997, p. 154). 24 Mariza Peirano considera que duas dimensões importantes do trabalho de campo e do encontro deveriam ser aprofundadas: o impacto psíquico e a relação de transferência e o fenômeno da conversão religiosa, explorado por Vagner da Silva, com base nos estudiosos das afro-religiões (PEIRANO, 1995). 23

71

002176_Impulso_35.book Page 72 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

pesquisada, quando vê exposto aquilo que falou ou que o outro falou, se sente um mico dentro de uma jaula. (...) Eles estão pesquisando gente, sabe? Eu não sou um braço. Acho que se eu estivesse ali como um objeto de medicina e me falassem – este abdome hoje entrou para uma cirurgia, eu haveria de ficar muito triste, porque não sou um abdome, sou uma pessoa. Ou ele entrou numa casa e pesquisou tal segmento, tal setor, e tal o que. Isto choca. Ficamos irritados com este modo frio, não como o pesquisador nos trata, mas como a pesquisa é apresentada. Sei que é necessário uma série de coisas que nós não sabemos, mas, que diabos, sejam mais amáveis, principalmente se o pesquisado estiver sentado perto.25

Às vezes, a própria questão do anonimato, vista como ponto chave na negociação com os informantes, é motivo de frustração, pois muitas pessoas querem dar seu nome, como freqüentemente acontece em pesquisas feitas com grupos populares. O consentimento informado, obrigatório segundo a Resolução 196/96, e o Código de Ética da ABA prevêem o anonimato como forma de preservar a intimidade, provavelmente partindo-se de um entendimento de que nem sequer os pesquisadores têm controle total sobre os destinos da pesquisa – esse é um ponto delicado da questão. São muitos os casos paradigmáticos dessa falta de controle sobre os destinos da produção e os limites do anonimato, chamando-nos atenção para cuidados adicionais na preservação dos informantes quando na presença da mídia, sedenta de assuntos picantes e nem sempre atenta aos princípios éticos que deveriam também orientá-la. Numa antropologia marcada pelo engajamento direto com seus nativos, como é a brasileira, há que pensar se a reciprocidade não tem transcendido mesmo o seu circuito tradicional, já que as assimetrias sociais entre antropólogos e nativos, em geral, são incorporadas nas negociações e no engajamento durante o próprio traba-

lho de campo. Salvar o dito e dar testemunho das trajetórias de vida de indígenas, negros, mulheres, crianças, pobres e marginais, num contexto como o nosso, vem permitindo que a participação dos antropólogos como tal nos embates e debates (políticos, jurídicos, sociais) em terras brasileiras possa fazer diferença. As delicadas questões éticas envolvem, historicamente, menos as relações entre comunidade de antropólogos e populações estudadas, e mais as complexas ligações entre esses profissionais e agências estatais, essas últimas espaços em que até os preceitos constitucionais de inspiração liberal-iluminista não são compartilhados por todos. Um bom exemplo nesse sentido é o estudo de Gilberto Velho,26 que evitou divulgar sua pesquisa nos anos 70 em razão do contexto político no Brasil de então. Igual é a situação daqueles que trabalham com questões indígenas ou de grupos populares, alvo de violências institucionais comuns em países onde os direitos de cidadania são muito frágeis, como sublinha Caldeira: “Antropologias nativas como a nossa, que sempre estudaram sua própria sociedade, são claramente um caso à parte: o processo de entender um outro que faz parte de nossa cultura conduz quase que inevitavelmente a pensar criticamente sobre a nossa relação com ele e sobre o seu lugar na sociedade”.27 Instalados nessa desconfortável posição – porém, profícua – de dupla alteridade, muitos antropólogos brasileiros têm assumido para si essa dívida eterna do Estado brasileiro para com os deserdados da terra. Podem ser vistos como pequenos presentes de espera, carregados desse hau do encontro etnográfico, envolvendo livros, vídeos, os ditos salvos e inscritos em leis, políticas e resoluções. A crítica cultural, dever de ofício do antropólogo, tem feito a diferença lá onde tem podido estar presente, cada vez mais, não em nome do outro que se estuda, e sim ao lado do outro com quem se convive. Salvar o dito, nas nossas aldeias, tem significado honrar essa dívida. 26

25

MEDEIROS, S. apud SILVA, 2000, p. 140 (grifos acrescidos).

72

27

VELHO, 2000. CALDEIRA, 1988, p. 145.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 63-74, 2003

002176_Impulso_35.book Page 73 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Referências Bibliográficas AMADO, J.“Culpa nossa de cada dia: ética e história oral”.Projeto História, n. 15, São Paulo, PUC/SP, 1997, p. 145-155. BIOÉTICA. Brasília, Conselho Federal de Medicina, v. 4, 1996 (suplemento). BOURDIEU, P. “Marginalia: algumas notas adicionais sobre o dom”. Mana-Estudos de Antropologia Social, v. 2, n. 2, Rio de Janeiro, Museu Nacional, 1996, p. 7-20. CALDEIRA, T.P. “A Presença do Autor e a Pós-Modernidade em Antropologia”. Novos Estudos Cebrap, n. 21, jul./88, p. 16-132. CLIFFORD, J. (org.). A Experiência Etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1998. CÓDIGO DE ÉTICA DA ABA. Associação Brasileira de Antropologia, s/d. CRAPANZANO, V. Tuhami-Portrait of a Marroccan. Chicago: University of Chicago Press, 1989. ______.“Diálogo”.Anuário Antropológico 90, Brasília, Editora da UnB, 1991. DAMATTA, R.“O ofício do etnólogo ou como ter anthropological blues”.Publicações do Programa de Antropologia Social do Museu Nacional, Rio de Janeiro, 1974. EVANS-PRITCHARD, E.E. [1940] Os Nuer. São Paulo: Perspectiva, 1999. ______.“Trabalho de campo e tradição empírica”.Antropologia Social, Madrid: Afrontamento, 1975. GARCÍA CANCLINI, N. “Os antropólogos sob a lupa ou como falar das tribos quando as tribos são eles mesmos”. Ciência Hoje, v. 15, maio/93, p. 26-33. GEERTZ, C. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989. GROSSI, M. (org.) “Trabalho de campo e subjetividade”. Florianópolis, Programa de Pós Graduação em Antropologia Social/UFSC, 1992. [Mimeo.]. LEITE, I.B. (org.). Ética e Estética na Antropologia. Florianópolis, PPGAS/CNPq, 1997. MALINOWSKI, B. [1922] “Introdução: O assunto, o método e o objetivo desta investigação”. In: ______. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1986, p. 24-48. MAUSS, M. [1950] “Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas”.Sociologia e Antropologia, v. II, São Paulo, EPU, 1974, p. 37-184. MOONEN, F. Antropologia Aplicada. São Paulo: Ática, 1998. [Série Princípios]. PEIRANO, M. A Favor da Etnografia. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995. ______. Uma Antropologia no Plural. Brasília: Editora da UnB, 1991. SILVA, V. O Antropólogo e sua Magia. São Paulo: Edusp, 2000. SOARES, L.E. “Luz baixa sob neblina”. In: ______. O Rigor da Indisciplina. Ensaios de Antropologia Interpretativa. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994. TRAJANO FILHO, W. “Que barulho é este, o dos pós-modernos?” Anuário Antropológico, n. 86, Brasília, Editora da UnB, 1988, p. 133-141. VELHO, G. Nobres e Anjos: um estudo sobre tóxicos e hierarquia. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2000. ZALUAR, A. “Relativismo cultural na cidade”. Anuário Antropológico, n. 90, Brasília, Tempo Brasileiro, 1993, p. 137155.

Dados da autora Mestre em sociologia política e doutoranda em antropologia social (UFSC). Professora da

Impulso, Piracicaba, 14(35): 63-74, 2003

73

002176_Impulso_35.book Page 74 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Faculdade de Educação da UDESC e pesquisadora do Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (NIGS), do Laboratório de Antropologia Social da UFSC, onde atualmente desenvolve pesquisas relacionadas a parto, maternidade e feminismo. Recebimento artigo: 1.º/jul./03 Consultoria: 28/ago./03 a 12/set./03 Aprovado: 23/set./03

74

Impulso, Piracicaba, 14(35): 63-74, 2003

002176_Impulso_35.book Page 75 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Nanotecnologia: considerações interdisciplinares sobre processos técnicos, sociais, éticos e de investigação NANOTECHNOLOGY: INTERDISCIPLINARY CONSIDERATIONS ON TECHNICAL, SOCIAL, ETHIC AND RESEARCH PROCESSES Resumo O presente texto visa refletir sobre o caráter epistemológico e metodológico do tema nanotecnologia, sociedade e ética, mediante a contribuição das disciplinas oferecidas no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas, da Universidade Federal de Santa Catarina. A leitura e a discussão de textos e livros de expressivos estudiosos das ciências naturais e humanas, concomitantemente à participação de professores de distintas disciplinas, promovem a possibilidade de uma formulação interdisciplinar dessa temática, pondo em relevo o desafio de dinamizar a relação entre nanotecnologia, sociedade e ética, ao considerar as suas implicações legais, políticas e sociais. Tal desafio é ainda inédito no Brasil e constitui a indagação central de um estudo a ser aprofundado e repensado. Palavras-chave TÉCNICA MODERNA – NANOTECNOLOGIA – NANOMÁQUINA – ÉTICA. Abstract The present text aims at eliciting the epistemological and methodological character of reflections on nanotechnology, society and ethics through the contribution of disciplines that integrate the Interdisciplinary Post-Graduation Program in Human Sciences of the Federal University of Santa Catarina. The reading and discussion of texts and books of expressive scholars of the human and natural sciences, together with the participation of professors of several disciplines, allow an interdisciplinary formulation of the theme in question. It highlights the challenge of dynamizing the relationship between nanotechnology, society and ethics when considering its legal, political and social implications. This challenge is still unpublished in Brazil and is the central question that must be deepened and rethought. Keywords MODERN TECHNOLOGY – NANOTECHNOLOGY – NANOMACHINE – ETHICS.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 75-93, 2003

75

MARISE BORBA DA SILVA Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) [email protected]

002176_Impulso_35.book Page 76 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

INTRODUÇÃO

N

os fins dos anos 60, na década de 70 e parte da de 80 do século passado, quando o Brasil era marcado por profundas transformações no seu sistema de ensino e influenciado por um novo modelo de crescimento e modernização, é interessante recordar que, na formação do biólogo, sobretudo na do graduando em ciências biológicas, não eram tão latentes e graves as restrições éticas e legais ligadas às práticas de investigação, por exemplo, os problemas em relação à ética ambientalista ou quanto a questões tecnológicas. Prevalecia, na época, uma preocupação maior com as questões ambientais associadas à preservação e à conservação do meio ambiente, destinadas prioritariamente a estabelecer limites e visões de futuro para essa área, ao passo que a idéia de uma ética de vida global não era ainda um campo de reflexão. Havia, no ensino das disciplinas curriculares – zoologia, botânica, anatomia, fisiologia, genética, embriologia, histologia, física, química etc. –, a impregnação da ciência experimental, predominando a idéia de que o mundo é observado com base no real, no observável e no controle prático da natureza. Assim, era comum e necessária a vivência da metodologia de investigação pautada na capacidade do pesquisador de problematizar a realidade, formular hipóteses sobre os problemas suscitados pela observação dos fenômenos, planejar metodicamente e executar as investigações para desvendar as causas ou os efeitos dos fenômenos, mensurar e analisar dados, estabelecer críticas e fechar o ciclo com suas conclusões. O método positivista das ciências biológicas, sem entrar no mérito das suas contribuições à ciência, sobretudo no que diz respeito a “fornecer explicações dignas, bem fundadas e sistemáticas para numerosos fenômenos”,1 contribuía para o pesquisador, em sua formação inicial, colocar-se diante de um mundo predeterminado, com suas características físicas, biológicas e sociais a serem por ele decifradas. Esse mundo, no entanto, regido por leis externas e independentes da intervenção subjetiva do pesquisador, dificultava, desde então, uma aproximação entre as ciências naturais e as humanas, e tal distanciamento entre elas aliado ao método positivista representavam limitações para a análise de novas questões. A biologia, por exemplo, tinha por objeto estudar os seres vivos, a relação entre eles e o meio ambiente, cuidando dos processos e mecanismos reguladores da vida e de seus fenômenos decorrentes. Os profissionais formados na área eram, assim, capacitados especificamente para atuar nas questões que diziam respeito ao conhecimento da natureza. Não se cogitava, portanto, ao estudar tal conhecimento, a hipótese de uma necessária interface entre ciências duras (as formais, como física, química e 1

NAGEL, 1979, p. 18.

76

Impulso, Piracicaba, 14(35): 75-93, 2003

002176_Impulso_35.book Page 77 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

matemática, e as naturais clássicas) e as brandas (as sociais e humanas), pois, de certa forma, essa conexão tornaria opaca ou diluiria os limites próprios de cada ciência, podendo incorrer no aparecimento de questões de investigação inéditas, com as quais não se saberia lidar fora da especialidade. À história do desenvolvimento dessas ciências, contudo, veio somar-se, no final do século passado e no início deste, a história das técnicas. A essência da técnica moderna transformou de tal modo a natureza em algo diferente do que era anteriormente, introduzindo ações de magnitude bastante diversas, com objetos e conseqüências tão novos, que o marco da ética anterior não poderia mais abarcá-los.2 Hans Jonas sugere que, pela enormidade de suas forças, a técnica moderna impõe à ética uma nova dimensão de responsabilidade,3 que não pode igualar-se à ética da época de Kant, uma vez que essa não era pensada para levar em conta as condições globais da vida humana, do futuro remoto e, sobretudo, a própria existência da espécie. Na ordem atual das coisas, o avanço das modernas técnicas de manipulação de material biológico humano, o fato de a vida e a civilização humana nada poderem dizer por si só, sem levar em conta a artificialização4 da natureza pela cultura (ou a desnaturalização do mundo), e a constatação de que a ciência não é infalível, nem livre de custos e lucros, e seu mau uso depende de quem a utiliza, apenas muito recentemente demandaram para os biólogos, entre outros profissionais formados nas ciências duras, a necessidade de novas abordagens científicas naturais, sociais e humanas. É importante destacar que essa artificialização da existência suscitou novos desafios éticos e culturais, que passaram a depender da mobilização das ações individuais e coletivas. 2

JONAS, 1995. Ibid. 4 Sobre isso, cf. BATESON (1997, p. 23). A autora observa que a rotulação de determinados objetos e materiais, de comidas a fibras e moléculas, como naturais ou não naturais gera um domínio desvirtuado do natural. Considera a natureza como algo que não acaba ou é substituído e que, na verdade, tudo é natural, pois, se não o fosse, não existiria. De acordo com Bateson, “As coisas são assim: naturais”. 3

Impulso, Piracicaba, 14(35): 75-93, 2003

Assim, com a demarcação do campo da bioética, no final da década de 70,5 surgiu essa nova disciplina como capaz de possibilitar a passagem para uma melhor qualidade de vida. No Brasil, ela consolidou-se nos anos 90. Desde então, foram criadas diferentes associações (como a Sociedade Brasileira de Bioética) e a bioética foi gradativamente incorporada nos currículos das graduações e pós-graduações, em especial da área da saúde, com um triunfo construído de forma acrítica em seu processo de afirmação, lacuna essa repensada atualmente por estudiosos, entre eles, alguns indicados neste estudo. Embora tenha se processado verdadeira reviravolta no campo das ciências naturais, com a introdução crescente das tecnologias modernas, a possibilidade mediadora de dilemas éticos nas ciências biológicas demandou, em princípio, um tempo mais demorado de adaptação às novas orientações bioéticas, no que se refere a reduzir os riscos ambientais e, ao mesmo tempo, manter os benefícios tecnológicos. O próprio Código de Ética do Profissional Biólogo6 não menciona o termo bioética em seu texto, referindo-se apenas às normas éticas. A discussão sobre a que veio a bioética é fundamental. Saber melhor sobre o surgimento desse campo não tem tanto a preocupação de dar uma resposta ou alternativa à crise própria do niilismo, mas corre o risco de ser uma das suas mais completas expressões.7 Esse impasse pode representar uma ponte entre as ciências naturais e as sociais e humanas, vislumbrando, com isso, a possibilidade de integração entre seus diferentes aspectos, o aprofundamento de temas relativos à sobrevivência da humanidade, da dignidade e da liberdade humanas e uma discussão interdisciplinar séria diante dos desafios dos avanços tecnológicos emergentes. Os recentes avanços da técnica, como também alguns progressos científicos, têm gerado fortes intervenções na vida humana, de forma 5

DINIZ & GUILHEM, 2002. Conselho Federal de Biologia. Resolução n. 2, de 5/mar./02: “Aprova o Código de Ética do Profissional Biólogo”. 7 . Acesso em: 27/ out./03. 6

77

002176_Impulso_35.book Page 78 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

que “os âmbitos da técnica e da natureza começam a se confundir”.8 Não obstante, reconhecendo a vida como um valor humano ou social, agora numa condição em que se interpenetram técnica e natureza, é alvo inédito dessa preocupação nada menos que a inteira biosfera do planeta.9 Cresce a necessidade de reflexão sobre o poder da técnica moderna e seus efeitos, na tentativa de prever seus benefícios ou malefícios e, também, avaliar suas novas possibilidades à luz de considerações de ordem ética, que impliquem responsabilidade e conhecimento do significado do destino do homem sob controle ou não da manipulação tecnológica. Muitos pensadores vêm fazendo, há algum tempo, contundentes críticas às mudanças ocorridas nos caminhos tomados pela ciência e pela técnica, embora o façam fundamentados na experiência negativa de ambas. Seus recados, contudo, têm contribuído para o aniquilamento do discurso tecnocrata sobre a suposta neutralidade científica e sobre o emprego da técnica e dos saberes como se não exigissem reflexão ou estudo mais aprofundados. Os críticos clássicos da modernidade e da técnica, como Heidegger, Foucaut, Nietzsche, Jonas, Arendt e Freud, entre outros, demonstram que a técnica moderna é uma criação do homem e que o seu poder sobre a natureza, como nenhum outro, mudou irreversivelmente os pressupostos da condição humana de maneira tal que se torna imprescindível à mais entusiasmada confiança posta na técnica, em nossa época, não se deslumbrar e perder de vista seu sentido ético e sua relação com a natureza. Não se trata de negar a técnica, e sim de repensar a relação que com ela mantemos. Como expressão do poder humano e da potência ordenadora da natureza, a técnica é um fenômeno essencial dos tempos modernos, capaz de suplantar, como bem o fez, as técnicas de outras épocas. A tecnologia, em geral apoiada nos conhecimentos da física e da química, e por suas ligações com a biologia e a comunicação, contri-

buiu para produzir grande desenvolvimento nessas áreas, suscitando um espaço de reflexão que não tem sido suficientemente aprofundado: a separação entre as ciências da natureza e as do homem. Essa cisão precisa ser superada, se quisermos efetivamente progredir nas noções especializadas por meio de um conhecimento unitário integrado, não apenas estudando de longe o impacto das tecnologias, a exemplo das mais avançadas, como a biotecnologia e a nanotecnologia, cada uma em seu reduto. É preciso considerá-las conjuntamente, debruçando-se sobre o funcionamento dessas novidades na sociedade (como no caso dos transgênicos), analisando a reação dos diferentes meios sociais à sua chegada e penetração, às transformações por elas produzidas e as condições de aceitação e de recusa verificadas nesse processo.

8

10

9

KESSELRING, 1992, p. 34. JONAS, 1995.

78

RESPONSABILIDADE ÉTICA E INTERDISCIPLINARIDADE Tomando como referência as considerações feitas até aqui, parece mais evidente que a ciência moderna assume outro aspecto quando concebida como algo mais humano, o que permite pensar que ela é humana, pois é nossa obra, e mesmo o moderno pode se quebrar.10 Nesse sentido, importa às ciências sociais rever sua posição quanto à distância que mantêm da biologia, fortalecendo-se, do mesmo modo, uma convergência epistemológica entre as ciências da natureza e as sociais e humanas. Tal aproximação torna-se uma necessidade ao incremento e aparecimento de objetos de pesquisa de interesse comum, a exemplo das criações nanotecnológicas, influenciando a obrigatória mudança das ciências para além de suas fronteiras e preocupações com valores herdados, que restringem, muitas vezes, o seu horizonte a um sentido predeterminado. Os séculos XVII, XVIII e XIX foram marcados, sobretudo, pelo desenvolvimento das ciências naturais e, a partir do século XX, consagraram-se as conquistas científicas e tecnologias exDe acordo com a expressão de LATOUR (1994), aliás, de muita propriedade.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 75-93, 2003

002176_Impulso_35.book Page 79 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

traordinárias, especialmente no campo da biotecnologia e da nanotecnologia. Essa última representa uma das grandes inovações tecnológicas dos últimos tempos, uma nova manifestação da potência humana em sua capacidade criadora, tanto de objetos quanto de condições de vida. Operando numa escala equivalente à manipulação da matéria no nível molecular, as aplicações nanotecnológicas visam à criação de novos materiais, substâncias e produtos, com uma precisão de átomo a átomo, esperando que essa revolução na natureza da própria estrutura da matéria traga profundas transformações também às relações dos homens entre si e com o mundo, como jamais houve. Estamos a caminho de nos tornar menos dependentes da tecnologia na macroescala (na qual operamos normalmente e que não nos espanta tanto) com o advento da tecnologia na micro e na nanoescala. Considerando as raízes lingüísticas da palavra nanotecnologia, ela deriva do prefixo nano e é uma medida de grandeza usada na ciência para designar um bilionésimo. Assim, um nanômetro (símbolo nm) é relativo à escala nanométrica. Um milímetro, como sabemos, é muito pequeno, mas podemos enxergá-lo até numa régua. Já um micrômetro (1 µm = 1 x 10-6) corresponde a um milionésimo do metro e a um milésimo do milímetro e, por sua vez, um nanômetro (1 nm = 1 x 10-9 m) equivale à bilionésima parte de um metro, ou seja, a um milionésimo de milímetro ou, ainda, a um milésimo de mícron. O mundo nano, portanto, não se trata de algo naturalmente assimilado por todos nós. É possível afirmar, com segurança, que sobre essas tecnologias tão pequenas, ínfimas, praticamente o mundo sabe muito pouco. Elas não são construídas na escala comum em que percebemos o mundo e, segundo a qual, desenvolvemos a visão das coisas que nos rodeiam, nos dizem respeito ou nos acostumamos a pensar a relação entre natureza e cultura. Convém lembrar, porém, que esse novo surgiu com a modernidade, tal o avanço da física quântica e da biologia molecular, marcando nossas vidas, por inaugurar dimensões de ver o mundo além daquelas de épocas anteriores,

Impulso, Piracicaba, 14(35): 75-93, 2003

ou seja, a biotecnológica, a nanotecnológica e a informática (tecnologias de informação), avanços científicos de importância ímpar para o homem e para a sociedade. Mas quais são as novas possibilidades que despontam com a aplicação da biotecnologia e da nanotecnologia? Que desafios parecem se apresentar? Quais dilemas éticos podem ser apontados na esteira de seu desenvolvimento? Seriam os mesmos sentimentos negativos sobre nanotecnologias, sem fundamento preciso, como aconteceu com a preocupação pública a respeito dos transgênicos? As aplicações dessas tecnologias do pequeno à dimensão humana estão, certamente, num estágio muito inicial. No entanto, evidências de seu desenvolvimento apontam-nas como dominantes nas próximas décadas. Além disso, se a possibilidade de manipular os átomos já é para o cientista algo extraordinário, imaginemos o que isso significa para os leigos, pois uma coisa é poder ver os átomos e outra, bem diferente, até há pouco inimaginável, é poder agora manipulá-los! É natural, portanto, que essa inovação venha envolta em visões especulativas, magias e críticas de todo tipo, por exemplo, a manifestada por grupos de pressão ambientalistas em relação à biotecnologia e, com eco muito mais forte, à nanotecnologia. Outros argumentos ainda discutíveis, tratando-se desse assunto, colocados pela mídia, são de que as nanotecnologias poderão nos brindar com a imortalidade, possibilitando congelar o corpo humano após a morte e utilizar robôs moleculares capazes de reverter os danos celulares que a ocasionaram. Mas, por certo, a mais atônita de todas essas notícias, suponho, é a de que essas máquinas nanotecnológicas serão capazes de se auto-reproduzirem incontrolavelmente, com a perspectiva de destruir a atmosfera, aniquilar o planeta e outras ameaças afins.11 Tal fenômeno é conhecido como o fantasma da gray goo (popularmente denominada gosma, meleca ou praga 11

Cf. considerações feitas por REGIS (1997), que, com muita habilidade, apresenta as idéias de Eric Drexler a respeito desse fenômeno.

79

002176_Impulso_35.book Page 80 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

cinzenta), que teria assombrado Bill Joy12 num de seus famosos artigos para a revista Wired,13 em 2000. Sobre as considerações de caráter alarmante ou pessimista similares a essas, faço algumas ponderações. A nanotecnologia não é algo fictício ou criado pela fértil imaginação humana. Todos os organismos vivos possuem nanomáquinas extremamente complexas e especializadas; basta lembrarmos das células que se reproduzem, das enzimas que catalisam reações químicas e dos anticorpos que combatem doenças, entre outras estruturas. Greg Bear,14 em algumas de suas obras, analisa o futuro das nanomáquinas, fazendo uma analogia com um DNA motorizado, como se elas fossem verdadeiros robôs em escala molecular, a exemplo da estrutura do ácido desoxirribonucléico. A estrutura molecular do DNA, descoberta por James Watson e Francis Cricky, é um modelo vivo e precursor do caminho para a melhor compreensão do mecanismo de uma nanomáquina (ou nanocriação), entendida numa dimensão ínfima, mas tão complexa quanto as nossas células e o nosso organismo em sua dinâmica, com suas reações moleculares num nível atômico, cuja precisão ainda não temos o domínio total. Todo processo celular característico da vida está associado a dois tipos de macromoléculas – DNA e RNA – e com a maioria dos demais processos envolvendo proteínas. Se deixadas num meio apropriado, essas macromoléculas têm a espantosa propriedade de construir e depois produzir cópias exatas – ou quase – de si mesmas. Dennett explica que as capacidades de auto-replicação, mutação incessante, crescimento e reparo das estruturas dessas moléculas são atividades caracterizadas como nanotecnologia, pois tais operações obedecem a um propósito e são sistemáticas, com complexidade suficiente para realizar ações, em vez de permanecer submetidas a efeitos. “Seus 12

Co-fundador da Sun Microsystems e um dos pioneiros da internet; também tem responsabilidade direta na criação da linguagem Java. . Acesso em: 15/out./03. 14 Greg Bear é autor dos livros Rainha dos Anjos (1990) e Marte se Move (1993).

sistemas de controle não são apenas eficientes no que fazem; eles são apropriadamente sensíveis às variações, oportunistas, engenhosos e dissimulados. Podem ser enganados, mas apenas por novidades não encontradas regularmente por seus ancestrais.”15 Ora, é nessa engrenagem biológica (que nada tem de mecanicista, de linear, como num encadeamento determinista) que se baseou a engenharia genética, em suas manipulações dos genes. Modificar um gene ou substituí-lo por outro significava modificar o DNA, base molecular da vida, programação que controla as células do corpo.16 Tratava-se de uma intervenção humana na ordem natural das coisas, tentando-se simplesmente “realizar feitos similares com intenção e planejamento”.17 Por mais estranho e antinatural que pareça, tal empreendimento é um fenômeno que acontece o tempo todo na natureza, por exemplo, quando um vírus reproduz a si mesmo e quando pensamos a diversidade de funções encontradas nas enzimas, máquinas biocatalizadoras que são, em sua grande totalidade, moléculas de natureza protéica. As enzimas podem quebrar determinadas moléculas, formando moléculas menores, e modificar proteínas de modo a desenhar novas estruturas moleculares, processos de manufaturas naturais no nível micro, bio e nanotecnológicos. Além disso, as enzimas incrementam velocidade a certas atividades biológicas dos seres vivos, que seriam irrealizáveis sem a interferência delas, e muitos dos processos vivos tornar-se-iam extremamente lentos. Essas poderosas estruturas vivas vêm, há milhares de anos, evoluindo e atingindo uma fabricação cada vez mais perfeita de seus produtos químicos, alcançando, na maioria dos casos, os limites da perfeição. E, desse modo, a vida tem se mantido. Imitando tais modelos, do DNA e das enzimas (entre outros, como os hormônios, o RNA e os anticorpos), as nanotecnologias, inteligentemente construídas pelo homem, permitem me-

13

80

15 16 17

DENNETT, 1997, p. 26-27. REGIS, 1997. Ibid., p. 48.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 75-93, 2003

002176_Impulso_35.book Page 81 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

lhor compreender que, comparada à escala da ação humana, a ação da natureza é de uma lentidão infinita.18 As enzimas e o DNA, espécie de máquinas biológicas denominadas nanotecnologias úmidas (por estarem vinculadas ao mundo líquido do ser vivo), assim como as nanotecnologias chamadas secas (criadas pelo homem) e a possível combinação entre ambas, representariam a capacidade de construir e recombinar produtos cada vez menores, controlando, ainda, o ritmo de reconstrução. São nanomáquinas. No caso das duas últimas, além da miniaturização de dispositivos, seria expressivo o êxito econômico, por exemplo, com a eliminação de grande parte dos custos gerados nas fundições e soldaduras industriais. É importante recordar que as propriedades dos diferentes produtos manufaturados das sociedades industriais, resultantes até hoje, dependem da forma com que os átomos são dispostos na constituição dos materiais. Nos reportemos, então, ao que pode surgir com a fronteira do conhecimento, que se move muito rapidamente, fundindo-se com áreas de futuro, como a nanotecnologia, a biotecnologia e os novos materiais. Basta pensar que o rearranjo nanotecnológico dos átomos de carbono na grafite de um lápis resulta na produção de um diamante; com os átomos de silício de grãos de areia pode-se fabricar microchips de computador e, indo mais além, poder-se-ia pensar na recombinação dos átomos da sujeira, da água e do ar poluídos, produzindo, por exemplo, outras coisas menos problemáticas e mais salutares. As possibilidades são virtualmente infinitas para a realização das pesquisas na direção da miniaturização, sobretudo em torno da fabricação das menores máquinas possíveis, do tamanho de moléculas, de sistemas eletrônicos nanoparticulados, nanopartículas, materiais nanoporosos, novas formas de arranjos de carbono, supramoléculas, sensores biológicos e outros eventuais produtos com forte conteúdo nanotecnológico. 18 LÉVY (1998) oferece interessante e entusiasmada abordagem sobre as técnicas de domínio da matéria (mecânicas, quentes e frias).

Impulso, Piracicaba, 14(35): 75-93, 2003

A definição da nanotecnologia reveste-se de uma infinita multiplicidade, que possibilita a sua aplicação a todos os setores. Falar em nanocomputadores, por exemplo, abre caminhos para pensar concretamente em andróides, inteligência e vida verdadeiramente artificiais, mais precisamente em controle planejado e reflexivo da natureza pelo conhecimento da íntima estrutura molecular. Constitui-se rapidamente uma rede inédita já concentrada no desenvolvimento de novos materiais e de alternativas inovadoras, direcionadas ao conhecimento de ponta. Admite-se que a nanotecnologia, reconhecido o limitado acesso a essa informação, tem apresentado forte impacto na área da saúde e uma verdadeira revolução na forma de fabricação de uma infinidade de produtos. Além do surgimento de novos computadores (menores e mais rápidos, baratos e poderosos), projeta-se o desenvolvimento de automóveis, componentes metálicos e não-metálicos, equipamentos para uso aéreo e espacial, instrumentos de proteção do meio ambiente, aplicações no campo da energia, da óptica e da ciência dos materiais. Também não esqueçamos que, na medicina e na farmácia, o seu emprego já é amplamente favorável a avanços de todo tipo, além, é claro, da produção de medicamentos potentes, de creme anti-rugas, entre tantos outros produtos comerciais beneficiados. Nesse aspecto, importa destacar, particularmente, a proposição que consta no documento de trabalho da Comissão da Indústria, do Comércio Externo, da Investigação e da Energia do Parlamento Europeu,19 de que seja introduzido o conceito de materiais estruturais e inteligentes em lugar de materiais inteligentes. 19 Trata-se de documento sobre a decisão do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao Programa-Quadro Plurianual 2002-2006, da Comunidade Européia, de ações em matéria de investigação, desenvolvimento tecnológico e demonstração, destinadas a contribuir para a realização do Espaço Europeu da Investigação.. Acesso em: 24/dez./04.

81

002176_Impulso_35.book Page 82 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Manipulando átomo por átomo Vale ainda mencionar que a eletrônica já trazia em seu arsenal as idéias de tratar o muito pequeno. A nanotecnologia é, portanto, perfeitamente compatível com as leis da física. Embora, na década de 1930, Arthur Von Hippel tenha exposto idéias semelhantes, o termo nanotecnologia foi proposto pela primeira vez em 1959, por Richard Feynman, destacado físico americano e prêmio Nobel de Física, em 1965. Em seu artigo “There’s Plenty of Room at the Bottom”,20 ele deixa claro que nada, nas leis da física e da mecânica quântica, impede a existência de máquinas do tamanho de moléculas. Basta manipular as coisas, átomo por átomo! Em 1959, Feynman chamava a atenção para o fato de que, na dimensão atômica, se está trabalhando com leis diferentes e, assim, devem ser esperadas coisas diversas: novos tipos de efeitos e novas possibilidades. Os estudos sobre a nanotecnologia, porém, reapareceram com mais vigor em junho de 1992, com o físico K. Eric Drexler, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, EUA), e esse assunto encontra-se especialmente abordado em sua obra Engenharia da Criação, editada em 1987. Outro nome notável, que não pode ser esquecido aqui, é o do físico Richard W. Siegel, um dos pioneiros mundiais na investigação, fabricação e promoção dos materiais nanoestruturados. De lá para cá, o processo de miniaturização avançou muito, tornando-se indispensável considerar as escalas que fogem dos nossos padrões sensoriais, ao sermos tomados de surpresa pelos rumos que a nanotecnologia pode adotar. Teria sido, quem sabe, bem menos problemático o advento do mundo microscópico, da biotecnologia, dos transgênicos, se medidas de grandezas adequadas à sua compreensão tivessem sido mais popularizadas. Ainda é quase impossível ao leigo orientar-se por uma dimensão equivalente à bilionésima parte do metro. Qualquer tecnologia situada fora das magnitudes com que estamos acostumados em nossa vida diária, e com as quais 20

A tradução desse título, em inglês no original, é “Há muito espaço no fundo”.

82

nossos órgãos sensoriais são capazes de lidar, ainda assombra e apavora! Por que o pequeno demais ou o grande demais nos assustam tanto? O que na verdade nos aterroriza? Certamente, tais temores estão relacionados ao que desconhecemos. Por isso, é bastante apropriada a consideração de Arthur C. Clarke, numa de suas leis, de que qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da mágica.21 Também merece destaque a recomendação de Cylon Gonçalves da Silva, de que as pessoas, desde a educação infantil, deveriam entrar em contato com medidas de grandezas fundamentais (peso, comprimento, tempo, volume, área, temperatura), inclusive as relativas a propriedades atômicas.22 Tal iniciativa os americanos já vêm tendo, segundo esse professor, para facilitar a compreensão de fenômenos somente situados mediante o conhecimento de grandezas muito pequenas. Ainda de acordo com ele, a nanotecnologia é interessante para o Brasil porque está ainda em desenvolvimento inicial e, sendo uma atividade de ponta, exigirá das empresas brasileiras grande investimento em tais processos, de modo a que não corram o risco de ficar defasadas das demais. As repercussões da nanotecnologia – questão ainda complicada e difícil de avaliar – avançam em diversas frentes. Certamente se farão notar em todas as áreas, sobretudo na indústria, na medicina,23 na farmacológica e no setor da informática, refletindo-se na vida cotidiana. Contudo, ainda que a introdução dos materiais nanomanufaturados revolucione essas esferas, as maiores implicações quanto ao desenvolvimento dessa 21 Cf. CLARKE (1977), em que o célebre autor de ficção científica inglês estabelece leis e formula alguns julgamentos de valor sobre o mundo tecnológico do futuro. 22 Essa consideração foi apresentada na palestra “A revolução nanotecnológica”, no auditório do Centro de Convenções da Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina (FIESC), em Florianópolis (25/ out./03). Doutor em física pela Universidade da Califórnia, Berkeley, Cylon Gonçalves da Silva é professor da Unicamp. 23 Por exemplo, na construção de dispositivos diminutos que, em quantidade suficiente, poderiam percorrer o corpo humano, detectando precocemente doenças que ainda vitimam muitas pessoas, entre elas, o câncer, ou na introdução de máquinas-enzimas específicas, que depositariam no lugar apropriado a quantidade mínima e adequada de medicamentos, potencializando os benefícios terapêuticos, sem afetar o resto do organismo.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 75-93, 2003

002176_Impulso_35.book Page 83 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

tecnologia são esperadas no setor produtivo e, conseqüentemente, na economia, partindo-se do princípio de que será possível fabricar qualquer tipo de coisa com precisão e qualidade insuperável a um custo acessível. Isso faz lembrar Ferry,24 que, muito provocativamente alerta para a impossibilidade de ignorar os desafios lançados pelas ciências duras, aqui já mencionadas. Tal debate instigado por esse filósofo ilustra o que se pretende alcançar com este ensaio. Entretanto, se a discussão não foi tão contundente com relação à micro e à biotecnologia, não há de arrefecer agora. Trata-se de colocar bem o dedo numa ferida criada pela pretensão humanista em defesa dos interesses humanos e com sentido apenas no contexto da vida humana, além de que é preciso cicatrizá-la, para fazer voltar o interesse por outras coisas do mundo que requerem responsabilidade, afora o próprio homem. Exemplifico a responsabilidade pelas coisas da natureza, denominadas inanimadas – há que se ter com elas, também, extremo zelo! A nanotecnologia é uma realidade da qual não se pode fugir e seus rebatimentos serão consideráveis. Imaginemos o significado, para a humanidade, de mexer na intimidade da matéria, de manipular átomo por átomo, atividade essa sem precedentes, num trabalho de nanoengenharia que compreende a poderosa “habilidade de se trabalhar no nível molecular, ou mesmo átomo por átomo, para criar estruturas complexas com controle de sua organização em dimensões de bilionésimos do metro”.25 Imaginemos a concretização das potenciais realizações: síntese de materiais e manufaturamento, produção de nanoeletrônica e de nanotecnologia computacional, medicina e saúde, aeronáutica e exploração espacial, ambiente e energia, biotecnologia e agricultura, segurança nacional, ciência e educação, competitividade econômica e outras tantas aplicações. 24

COMTE-SPONVILLE & FERRY, 1999, p. 67. Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Edital 01/01. “Chamada de Convocação para Apresentação de Propostas de Projetos Inter e Multidisciplinares Visando a Formação de Redes Cooperativas de Pesquisa Básica e Aplicada em Nanociências e Nanotecnologia”. 25

Impulso, Piracicaba, 14(35): 75-93, 2003

Se essas pretensões se realizarem, toda a visão da humanidade mudará. Essa nova materialidade representa verdadeiro desafio à idéia que temos de comportamento humano, comportamento moral, ética do trabalho26 e educação, abalando a estrutura fragmentária que tornou irreconciliáveis a esfera natural, a artificialidade, o biológico, o social, o histórico e o ambiental. Logo, o problema implícito nas predições feitas até agora, e nas apostas já consolidadas por cientistas pesquisadores das nanotecnologias e governos interessados, não é somente traçar os avanços da tecnologia. É também marcar outras conquistas e transformações na sociedade por algum tempo, assim como outras inovações anteriores representaram avanços sociais e assinalaram o tempo de determinada sociedade. Daí a importância das ciências sociais (e humanas) de estudar as conseqüências sociais, éticas e legais das nanotecnologias, oferecendo novas possibilidades para projetar pesquisas e conclusões. Afinal, haverá uma notável diferença para a humanidade, ao passar a conviver entre dois mundos, o macro e o nanoscópico. Surgirão, com as criações nanotecnológicas, fenômenos na dimensão da nanoescala, inexistentes no macromundo, a exemplo da peculiaridade atômica, da precisão humana necessária com modos de ações finos, direcionados, precisos, rápidos, econômicos, qualitativos, discretos, calculados e aplicados com mais exatidão, apontados por Lévy,27 materializando-se um viver sem equivalente no mundo do grande. Desde o início de suas pesquisas, e longe de ser profético, Drexler falava do surgimento da nanotecnologia.28 Foi, inclusive, avesso ao uso 26

Não é essa a ética que nos rege, uma ética fundamentada no determinismo do trabalho físico, como se estivesse o homem programado para executá-lo? Sobre essa questão, cf. COMTE-SPONVILLE & FERRY, 1999, p. 127-156. Cf. também ETGES (1996) e sua análise das contradições resultantes das transformações da revolução tecnológica, desemprego e o valor do trabalho reproduzido no período pós-industrial. São textos essenciais para imaginar uma era em que o trabalho físico não mais será necessário. 27 LÉVY, 1998. 28 Bacharel em ciências interdisciplinares, mestre em aeronáutica e astronáutica, e doutor em filosofia, no campo da nanotecnologia molecular, pelo Massachusetts Institute of Technology, teve o primeiro grau de doutoramento no assunto concedido em todo o mundo. Cf. REGIS, 1997.

83

002176_Impulso_35.book Page 84 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

desse termo no sentido de “glamourizar a produção de besteiras em nanoescala”.29 Optou por outro novo termo, na tentativa de manter o significado distinto desse entendimento: nanotecnologia molecular. Diferentemente das reações ao projeto genoma (e depois aos transgênicos), de acordo com esse cientista, os propósitos de tais iniciativas não eram “mudar a natureza humana, mas alterar os resultados finais corrigindo os desvios da norma naturalmente induzidos, pensando na possibilidade de o homem passar pelas próximas centenas de anos em perfeita saúde e juventude perene, o tempo todo imerso em condições inauditas de abundância material”.30 O que aqui nos interessa é sobretudo a análise das questões econômicas e sociais feitas por Drexler, em sua obra, considerada incomum, Engines of Cration,31 e expressivamente trabalhadas por Regis e por Lampton,32 embora com direcionamentos diferenciados – o primeiro apresenta a nanotecnologia de forma mais sedutora, ao passo que o segundo parece brincar, falando sério, de uma inevitável aventura nanotecnológica que teremos de viver, expondo conquistas que virão com ela. A respeito do fenômeno da gosma cinzenta e seus efeitos de destruição do planeta, Drexler é otimista ao considerar a possibilidade de se construir sistemas confiáveis, como têm acontecido ao longo da existência viva com as nanomá-quinas naturais – as enzimas e o DNA –, preocupando-se, contudo, não somente com as coisas vivas, incluindo animais e plantas, o planeta e toda a biosfera. Entre os benefícios sociais por elas gerados, aponta o que alguns clássicos pensadores já haviam vislumbrado acerca da libertação do trabalho físico escravizante,33 que seria transferido às máquinas nanotecnológicas. 29

Ibid., p. 262. Ibid., p. 144. O livro Engines of Creation: the coming era of nanotechnology, de Eric Drexler, encontra-se disponível para download no site do Foresight Institute: , com permissão para cópia. 32 Cf. REGIS, 1997. A mesma idéia se encontra em LAMPTON, 1994. 33 Cf. ETGES, 1996. O autor lembra que o notável clássico Hegel indica, em suas obras, a trajetória e os meios pelos quais a lógica do trabalho levará os homens, reportando-a a um juízo de passagem, em termos hegelianos. Lembra também que Marx analisa as modificações no trabalho humano que constituem ruptura com o que se apresentaria como formas determinantes, situando-as lógica e historicamente em movimento. 30

De certa maneira, esse contexto não nos é novo. Já temos a experiência com a introdução da micro e da biotecnologia, em que a revolução no mundo do trabalho gera desemprego, trabalhadores excedentes e crises, liquida e faz nascer novas profissões, novos trabalhadores e novas exigências de conhecimento e habilidade, com suas conseqüentes necessidades. Como será com as nanomáquinas ainda não é possível afirmar nada. James Albus, pesquisador em robótica, afirma que “Não há uma quantidade fixa de trabalho. Mais trabalho pode ser criado”.34 Ele nos ajuda a pensar que a própria inteligência artificial pode criar novos empregos – o que já está acontecendo. Na sua visão de economista, Friedman,35 numa palestra sobre nanoconferência,36 considerou que enquanto a tecnologia aumentou a produtividade e criou mais riqueza, concedendo às pessoas mais tempo livre, a nanotecnologia levaria isso ao extremo. Porém, ele não foi bem-sucedido ao discorrer acerca das conseqüências econômicas e comerciais da nanotecnologia, tampouco sobre o que com ela mudaria para as pessoas, exatamente por não ter dominado o grau de extensão da matéria, o que o impediu de romper com o passado da tecnologia ao falar de uma inovação sem precedentes. Dois anos depois dessas colocações polêmicas de Friedman, Mac Gellivray,37 a convite do mesmo patrocinador – NSG/MIT –, fez uma intervenção que ressoou como um raio irrompendo entre os pessimismos tradicionais direcionados ao novo, buscando indicar novos caminhos. Concebeu mudanças profundas nos valores humanos e no próprio materialismo, que seria bastante afetado, uma vez que os bens materiais se tornariam mais acessíveis em troca de quase nada. Postulou que o dinheiro perderia sua reverência como símbolo de status social e que o desempre-

31

84

34

REGIS, 1997, p. 169. Ibid., p. 170. David M. Friedman, economista da universidade de Chicago, é filho de Milton Friedman, prêmio Nobel de ciência econômica. Uma de suas obras mais conhecidas é The Machinery of Freedom:guide to a radical capitalism. 36 Essa palestra foi patrocinada pelo Nanotechnology Study Group (NSG), do MIT, e proferida em jan./87. 37 Sobre essa questão, cf. REGIS, 1997, p. 176-178. Jeff MacGillivray é doutor em física no MIT. 35

Impulso, Piracicaba, 14(35): 75-93, 2003

002176_Impulso_35.book Page 85 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

go seria extremo, porém, não representaria um problema, por não se ter de trabalhar para viver, pois o trabalho mundial seria realizado pelas nanomáquinas. Disse que haveria uma sociedade do entretenimento, e não da informação, em que as pessoas se dedicariam ao conhecimento, ao lazer e às atividades artísticas. Quanto a Drexler, tido por muito tempo como louco e alvo das mais variadas críticas, ele conservou aparente calma, frieza e prudência com relação ao assunto nanotecnologia,38 mesmo diante dos seus bons prenúncios – final do envelhecimento, adiamento radical da morte, amplas condições de abundância e riqueza, ausência de fome e de outras necessidades – possíveis com a construção dos primeiros montadores operacionais, que trabalhariam em nanoescala pela manipulação molecular sem fronteiras. Simultaneamente, porém, o cientista manifestava suas preocupações com essa mudança paradigmática, tendendo a pensar os riscos que poderiam surgir da nova forma de lidar com a economia mundial, quanto à produção de bens materiais sem limites e com custo praticamente zero. Ele inquietava-se também com o destino das grandes corporações, o desemprego em massa diante da plena automatização, o sentido que as pessoas dariam às suas vidas na falta do que fazer, uma vez liberadas do trabalho físico, a possibilidade da saúde e da juventude eterna, e assim por diante. Não ignorava, da mesma forma, a possível ameaça proveniente do mau uso das criações nanotecnológicas por pessoas de intenção duvidosa e sem propósitos satisfatórios previstos para os indivíduos e a sociedade. Drexler é convicto ao dizer que os perigos físicos já são enfrentados pela sociedade há muito tempo e considera muito mais sérios os riscos sociais e psicológicos, merecedores de maior atenção. Afinal, perigos físicos sempre existiram para as pessoas, como o simples fato de viver, de submeter-se à velhice, às doenças e à morte, e, sobretudo, às guerras, ao crime, à carnificina e a todo

tipo de ações violentas e malévolas. Nesse caso, os riscos sociais e psicológicos seriam mais fortes, pelo fato de os indivíduos passarem a dominar por completo a matéria, o que jamais fizeram. Considero esse o patamar, em que se colocam as questões mais complexas, não só filosóficas, mas também sociológicas, antropológicas, psicológicas e psicanalíticas, entre outras, de modo a refletir sobre o quanto vale à pena concretizar a nanotecnologia, manipular o ínfimo da matéria e dispor de uma natureza mais condescendente e maleável, na qual o próprio ser inanimado não mais ofereça resistência à ação humana, tornando-se uma continuidade dela. Também acredito que seria um problema, para Clifford Geertz,39 um dos mais originais e instigantes antropólogos de sua geração, a questão do tempo livre e o que fazer com ele, uma vez que muito trabalhou o impacto do conceito de cultura sobre a concepção de homem, como também o crescimento da cultura e a evolução da mente. No cenário antropológico, como ficaria a redefinição da cultura? Com que noções lidariam os antropólogos? Até mesmo os psicanalistas poderiam apresentar indicativos de impasses, ao ter de cogitar a idéia de substituição total do homem pela máquina, além de analisar as conseqüências da ociosidade gerada e as possibilidades de aumentar a recorrência à bebida alcoólica, às drogas e aos quadros de loucura ou depressão, passando, talvez, a questionar a natureza da loucura, a ética ou a liberdade, por força de novos comportamentos, de novas opções morais e estéticas. Como se pode notar, são inúmeras e complexas as implicações da nanotecnologia e da nanociência, sem nenhuma resposta precisa, nem a certeza do que parece ser suficientemente razoável. Convém, enfim, fazer as mesmas perguntas que as de Regis, ao final de seu livro: “Mesmo com todos os seus aspectos desconhecidos, mesmo com todos os seus perigos e riscos, quem diria não à nano?”.40 E arrisco acrescentar, nessa mesma direção: que poderá acontecer, se disser-

38

A contribuição de REGIS (1997) foi essencial, por demonstrar claramente o posicionamento de Drexler, ao relevar a nanotecnologia em meio a um contexto de zombarias e acusações que teve de enfrentar.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 75-93, 2003

39 40

GEERTZ, 1989. REGIS, 1997, p. 288.

85

002176_Impulso_35.book Page 86 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

mos não à era nano?, sobre qual parte recairia o ônus dessa indiferença? Certamente restam ainda outras perguntas. Duas delas mais se pode deixar como subsídios para manter acesa a necessidade de continuar tal discussão: o que faz determinadas tecnologias serem consideradas mais avançadas do que outras? O que faz uma moderna tecnologia parecer tão surpreendente ou fantástica? A evolução na nanotecnologia ilustra que passamos de uma visão molar41 do mundo para uma visão molecular.42 Isso está acontecendo com a biotecnologia (precisão gene por gene, molécula por molécula) e com a nanotecnologia (precisão átomo por átomo), campos ainda explorados por alguns poucos eleitos com maior domínio das grandezas escalares ínfimas e fora do nosso conhecimento comum. É preciso, então, ingressar no mundo desse pequeno, no mínimo sabendo um pouco mais de grandezas escalares, de física e de matemática, pois trata-se agora de algo ainda muito novo, para além da escala humana: o mundo da tecnologia molecular, da nanotecnologia. Explorar os domínios no nanomundo assinala a possibilidade de manipular individualmente os átomos e as moléculas de qualquer ser vivo, de qualquer ser humano, de qualquer coisa. Fazer a relação entre o macro e o nanomundo suscita pensar uma nova concepção de universo, de matéria, de mundo, de sociedade, de homem, de natureza. Enfim, refletir sobre uma relação tecnológica de grande abrangência e repercussão sem precedentes na história, não apenas formas e comportamentos imprevisíveis e incontroláveis, mas também de modo a interpretar quais deles são naturais ou de origem técnica, se continuam sempre naturais ou se são ambas as coisas, sem nenhuma fronteira rígida.

As nanotecnologias, portanto, exigem, por natureza, uma operação interdisciplinar, pois têm o potencial de revolucionar amplamente vários campos e trazem consigo maiores chances de êxito para dar um salto por cima das aparentes fronteiras que dividem as ciências e fazê-las consilientes,43 reuni-las num todo complexo segundo princípios e terminologias idênticos, desde a física, a química, a matemática e as ciências naturais até as mais reticentes ciências sociais e humanas, procurando conjugar enfoques e tradições distantes sobre a realidade contemporânea. Já em 1975, no Colóquio da Unesco, acentuava-se que um dos problemas mais importantes em todo o mundo residia no fato de as ciências sociais e humanas não progredirem no mesmo ritmo das ciências naturais e biológicas. Com efeito, durante muito tempo aquelas ciências ignoraram, de modo geral, a necessidade de reajustar seus próprios sistemas de valores em razão das estruturas da sociedade moderna, assistindo muito mais atônitas, do que as ciências duras, os acontecimentos mais revolucionários da vida humana, por exemplo, o uso dos transgênicos e das novas tecnologias reprodutivas conceptivas. Isso limitou a capacidade delas de influir mais incisivamente nos sistemas éticos, legais, políticos e sociais, e, conseqüentemente, na direção e aplicação do desenvolvimento tecnológico. Por sua vez, o potencial inovador das nanotecnologias demanda um esforço colaborativo de estudiosos de diferentes disciplinas das ciências formais, naturais, sociais e humanas, com coragem e determinação para pesquisar conjuntamente o que pode representar, para o destino do homem, do universo, da cultura, da vida, enfim, o controle absoluto da estrutura da matéria. E, somado a isso, uma maior consciência da dimensão desse domínio incomparável em todos os tem-

41

43 Tal expressão, um pouco estranha, é do entomólogo americano Edward O. WILSON (1999), que a utiliza originalmente para referirse à necessária unidade das ciências. A consiliência desempenha um papel epistemológico importante, no sentido de ser um elemento dinâmico de referência a uma maior proximidade entre diferentes classes de fenômenos explicados de maneira distinta, como uma tentativa de dispor de um princípio integrador de todos os nossos conhecimentos.

Tecnologias com base na transformação da matéria em grande quantidade, manejando os objetos em massa; são maciças e quentes, usadas nos últimos cem anos, em geral com alto custo energético, poluindo, desperdiçando e esgotando energias. 42 Tecnologias ultrafinas que se afastam da massificação; são ultra-rápidas, bastante precisas e agem na escala ínfima, sobretudo, da micro, da bio e da nanoestrutura, com dispêndio mínimo de energia, reduzindo ao mínimo os desperdícios e as rejeições.

86

Impulso, Piracicaba, 14(35): 75-93, 2003

002176_Impulso_35.book Page 87 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

pos, mostrando em que medida as nanotecnologias colocam um novo desafio ético, legal, político, social e econômico para o Brasil, analisando se o País está ou não preparado para essas tecnologias emergentes. É importante não esquecer que, embora não seja uma temática muito freqüente no cotidiano, essa tecnologia está aí com todas as suas implicações e complicações, e, por se tratar de uma área em pleno avanço, a nanotecnologia traz perguntas até há pouco impensáveis, cujas respostas estão vindo paulatinamente ou ainda inexistem. Os problemas complexos não têm soluções simples e, para essa inovação, poucas são as respostas satisfatórias que se pode dar à sociedade, a fim de que as pessoas optem conscientemente entre as várias possibilidades apresentadas pelas nanotecnologias e opinem sobre os riscos e potencialidades a elas vinculados.

DISCUSSÕES E REFLEXÕES METODOLÓGICAS E EPISTEMOLÓGICAS A expectativa é de que a nanotecnologia terá, no cotidiano das pessoas, efeitos muito maiores do que os microeletrônicos, que possibilitaram o surgimento dos microcomputadores e revolucionaram as telecomunicações, e do que a própria biotecnologia, processo tecnológico que permite a utilização de material biológico e a manipulação genética, produzindo organismos geneticamente modificados e revolucionando o caráter genético da própria vida. Difícil é pensar nessa temática sem lembrar, também, da relação atual entre ciência, tecnologia e inovação, entre nanotecnologia e biotecnologia, avaliando o significado de uma pesquisa que avança no setor tecnológico industrial e traz uma série de aplicações anteriores e de produtos e melhoramentos resultantes de soluções tecnológicas no que diz respeito à inovação de materiais ou processos técnicos em geral e ao desenvolvimento de novos materiais44 com propriedades impossíveis de se obter de outra maneira. Não sabemos, no entanto, com segurança até que ponto existe uma preocupação com a compatibilidade entre o uso dos no-

Impulso, Piracicaba, 14(35): 75-93, 2003

vos meios de controle técnico do homem e da sociedade e o devido respeito à pessoa humana. Interessa aqui notar que, para tratar essa problemática emergente, surgem de imediato duas questões bastante imbricadas e que não dizem respeito apenas ao círculo dos cientistas e eticistas: o advento das nanotecnologias repercutindo nas mais distintas áreas e a disposição de abordá-las mediante trabalhos de pesquisa, vinculando todas as questões envolvidas no seu desenvolvimento. Discorrer sobre isso é, inegavelmente, procurar ao mesmo tempo possíveis interlocuções entre as ciências naturais e as humanas, de forma a contornar as esquinas e sair do labirinto. No contexto das incertezas éticas, vale ressaltar que não é preciso um conhecimento rigoroso da técnica, mas a compreensão da nova trajetória humana, incluindo ao lado do bem-estar dos seres humanos o dos outros seres vivos e a mesma preocupação com o meio ambiente e o cosmo. De certa maneira, isso representa um rito de passagem, ao transitar de uma condição a outra, sem lugar e posição determinados. Ou, no dizer de Abelés,45 entender que pesquisa das nanotecnologias está em mil lugares na compreensão de um universo novo, destinada a alcançar uma nova visão do homem e da sociedade no movimento que nos leva para fora de nosso próprio mundo e acaba por nos trazer para mais dentro dele, onde contam nossas origens culturais e intelectuais. Além disso, coloca-se uma condição de estranhamento, não porque necessariamente a antropologia sustente ser preciso estranhar o que já nos é familiar, mas para ter clareza de que o objeto de estudo não é simplesmente dado, nem necessariamente conhecido.46 Esse objeto é construído mediante relações interativas sobre alguma coisa investigada, dela constituindo-se o contexto total de conhecimen44 Trata-se dos denominados metamateriais, com propriedades e comportamentos específicos, fisicamente impossíveis a materiais naturais e convencionais e que podem nem existir na natureza, projetados com propriedades próprias para quebrar leis de natureza inconveniente. Uma aplicação desses metamateriais é a construção de antenas para telecomunicações e sinais de satélites altamente sensíveis, dadas as formas de ajuste, e também o aperfeiçoamento de lentes óticas. 45 ABÉLÈS, 2002. 46 DAMATTA, 1981, p. 159.

87

002176_Impulso_35.book Page 88 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

tos, o princípio que governa a interdisciplinaridade. O estranhamento é também necessário para permitir a revelação de algo que não é mais apenas nem da ordem do eu, nem da ordem exclusiva do outro. É algo da ordem do sujeito do conhecimento, possibilitando também não perder a confiança na objetividade, como propõe Cupani, ao referir-se à necessária adequação do sujeito ao objeto pesquisado.47 Essa adequação não representa, no entanto, a imposição total dos fatores pessoais, da paixão pelo assunto e de interesses individuais que possam gerar um caminho tendencioso aos resultados de uma pesquisa. Tampouco se deve recair num subjetivismo exacerbado ou negar a intervenção do sujeito. O estudo de qualquer problemática vinculada à nanotecnologia insere-se, desde o início, numa polêmica reconhecidamente forte, tanto por suas conseqüências quanto pelo que afeta a relação entre natureza e cultura. As implicações sobretudo no campo do debate ético, legal e social são de tal relevância, que o estudo da intervenção das nanotecnologias representa, por si só, um desafio que não apavora, mas atrai, por seu ineditismo. O questionamento ético da nanotecnologia consiste numa problematização, que é o seu fundamento, e conduz diretamente a discussões filosóficas e políticas contemporâneas, por não ter surgido repentinamente, mas, ao contrário, se constituído em relação a uma série de desenvolvimentos tecnológicos precedentes. O mesmo ocorreu com a aplicação da energia nuclear, a constatação da contaminação do ambiente, as inovações e manipulações biotecnológicas e as modernas tecnologias de informação e comunicação, que deram e ainda dão lugar à reflexão e a análises em distintas áreas de interesse ético. Muitas delas pressupõem algum conhecimento das discussões em história, filosofia, antropologia, sociologia (já temos a filosofia da ciência, a antropotecnologia e a sociobiologia em ação), assim como dos processos legais. Sobre esses últimos, vale ressaltar alguns aspectos ligados à questão nanotecnológica, fornecendo funda-

mentos para a avaliação da legislação vigente, dinamizada sobretudo com o uso dos transgênicos, e para o futuro desenvolvimento de instrumentos legais adequados e suas possíveis relações. Considerando tal iniciativa, cabe refletir que, na velocidade com que sopram os ventos tecnológicos, as restrições a esse desenvolvimento são antes éticas, morais, legais e políticas do que técnicocientíficas e econômicas, no que se refere ao uso da tecnologia moderna, podendo denominar-se, com mais propriedade, de ética da tecnologia.48 Considerando as dimensões escalares das nanotecnologias, os objetos nanométricos parecem compartilhar características próprias dos objetos grandes ou clássicos e dos moleculares, mas, sobretudo, de novos atributos muito próprios. Nesse mundo de construções híbridas, as investigações que não fogem dos nossos padrões sensoriais podem deparar-se com limites, pois muitos dados e resultados serão da ordem do pequeno e tratados formalmente como simples perturbações no macromundo. Entretanto, fora dele, deve-se ter clareza de que essas perturbações poderão ser tão importantes quanto o fenômeno principal. Resta aqui definir as grandes questões envolvidas na avaliação das perspectivas científicas e nas conseqüências políticas, legais, éticas e sociais aportadas pelas nanotecnologias à sociedade brasileira. Existe a hipótese de que as nanotecnologias, em seu alto poder tecnológico e de transformação, não dispõem ainda de uma base mais firme para consolidar-se no País quanto a legislação adequada, princípios éticos condizentes e avanços sociais convenientes com sua receptividade. Comparando-se com a direção da inovação biotecnológica, torna-se importante conhecer o que o Brasil deseja e como reage, para que possa se desenvolver economicamente, com tecnologia de ponta, a exemplo das nanotecnologias. E também pensar se a nanotecnologia produz uma forma de conhecimento compatível com outras ciências, em qual escala possibilita uma interdisciplinaridade e quais as possibilidades das universidades, ou seja,

47

48

CUPANI, 1990.

88

GARCIA et al., 1996, p. 218.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 75-93, 2003

002176_Impulso_35.book Page 89 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

se elas estão ou não preparadas para uma cultura interdisciplinar sobre essa inovação. Nesse contexto, a abordagem das implicações das tecnologias mais avançadas deve, atualmente, apoiar-se numa reflexão metodológica e epistemológica, na medida em que indique olhar o mundo de forma antes não cogitada pelas ciências biológicas, nem sequer compartilhadas com a física, a química e a matemática ou pelas ciências sociais e humanas em geral. É possível buscar sistemas conceptuais e recorrer à diversidade metodológica, propondo novas formas de conceber o mundo até então ignoradas, pois, ainda que as teorias de distintas ciências não apresentem uma estrutura comum, elas tampouco duram para sempre, podendo ser descartadas por razões teóricas. Da mesma forma, segundo Feyerabend, “El descubrimiento científico no está sujeito a método fijo”.49 Ainda no rumo do pensamento desse filósofo, é possível que, no estudo de seus objetos, em virtude dos problemas enfrentados, as ciências possam recorrer a um método ou a outro, não querendo dizer, porém, que se esteja afirmando que tudo vale na investigação científica. O estudo de um problema de pesquisa não só depende de algumas teorias determinadas, mas há problemas que só podem ser resolvidos quando se produzem num contexto formado por um conjunto de teorias, incomensuráveis ou compatíveis. Isso permite dispor de uma coleção de métodos e de um novo marco teórico, mediante o qual se possa assumir a divergência metodológica entre teorias rivais e transitar por distintas questões que não dizem respeito somente a campos específicos. O papel dos envolvidos nesse trabalho interdisciplinar suscita autores, como Tornquist e Abelés,50 entre outros, a esclarecer questões éticas resultantes da transposição do pesquisador para outra cultura, ressaltando a alteridade no processo de pesquisa e ilustrando o espaço do campo, construído pela interferência do referencial teórico do pesquisador e das circunstâncias 49 50

Cf. ECHEVERRÍA, 1999, p. 230. TORNQUIST, 2001; e ABÉLÈS, 2002.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 75-93, 2003

advindas dos seus pares e colaboradores. Nesse processo, não se pode ignorar que os atos de comunicação são marcados pela tensão de valores e comportamentos representando contextos socioculturais diferenciados e que nem tudo pode ser negociado. Tais categorias reportam à ética na pesquisa, especialmente às negociações estabelecidas, por exemplo, entre pesquisadores e entre pesquisador e pesquisado, podendo resultar num tranqüilo ou tenso processo. A tarefa exigirá exercitar uma visão interdisciplinar efetiva e desenvolver um olhar pluridimensional. No primeiro caso, já é bastante evidente que a complexidade crescente da realidade social caminha no sentido contrário à compartimentalização do conhecimento. No segundo, o trabalho em distintas áreas, por diversos profissionais, vem demonstrando há anos que a compreensão e as explicações unidimensionais da realidade são muito pouco fidedignas. Do mesmo modo, não é mais possível desintegrar subjetividade e objetividade, na abordagem dos objetos de estudo das ciências naturais, formais, sociais ou humanas. Objetividade, subjetividade e intersubjetividade são condições para se compreender o homem. Recentemente, a filosofia passou a estudar os problemas emergentes da mudança na forma de pensar a ciência, a técnica, a ética e a política, produzindo transformações também nos seus referenciais de pesquisas. A descrença no progresso e a desconfiança dos rumos tomados pela ciência motivaram igualmente nos antropólogos a percepção do indivíduo e a consideração desse como sujeito da história. Coube-lhes os desafios da convivência metodológica interdisciplinar na investigação de novos temas que se oferecem ao olhar antropológico, com ênfase à intersubjetividade, com o diálogo entre pesquisador e pesquisado, assumindo o lugar da mera descrição mecânica do homem, da sociedade e da cultura. Tal desafio exige não apenas para a antropologia, mas também para a sociologia, desvendar os significados novos imbricados nas relações sociais e a certeza de que não é preciso manter uma distância cultural e geográfica como forma de garantir o

89

002176_Impulso_35.book Page 90 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

encontro com o outro, realidade materializada pelos avanços tecnológicos. Da mesma forma, num olhar historiográfico, a negação das estruturas estáveis do ser, característica do pensamento moderno, orientando a perspectiva dita pós-moderna, aponta para uma multiplicidade de histórias, situando o homem no contexto histórico-cultural do qual fazem parte os indivíduos. Não se pode pensar no ato comunicativo, implícito numa pesquisa de qualquer natureza, sem levar em conta a saga da busca pelo outro (a exemplo do outro do nanomundo), entendendo a presença da intersubjetividade como co-construção, co-autoria, compartilhamento e como representação das grandezas e dos limites de nossa espécie. Eis um desafio com o qual, desde o século passado, os estudiosos (psicólogos, sociólogos, antropólogos, historiadores, psicanalistas, cientistas políticos, filósofos, engenheiros, biólogos, físicos ou químicos) vêm lidando: a compreensão da intersubjetividade, do diálogo possível, da construção da identidade e dos laços sociais em face de uma nova realidade, que se instaura quando a técnica passa a tornar-se uma questão de ética, de valores e de responsabilidade. Isso porque, mais do que nunca, é necessário avaliar as ações da perspectiva das conseqüências que possam vir e integrar a sua dimensão na construção do saber e das práticas sociais, em especial aquelas apoiadas em técnicas que potenciam de tal modo o agir humano a conferir efeitos incalculáveis aos próprios agentes, pondo em risco a vida da espécie humana ou as condições de vida na Terra, por conta de ações irrefletidas e irresponsáveis, no contexto da moderna tecnicização. A história tem sido um lugar fundamental para conhecer o ponto de vista de uma época, para tomar dela significados, como disse Bertaux, em Les Récits de Vie,51 pertinentes ao objeto de investigação e assumindo o status de indicadores, de modo a compreender os aspectos culturais e os contextos políticos imbricados. Isso, sem esquecer que também entra em jogo, ao falar no de-

senvolvimento do homem tecnizado, o que esse historiador assinala como as duas escalas temporais, referindo-se ao tempo histórico coletivo e ao tempo biográfico, seguindo juntos, e as conexões entre esses dois níveis da dimensão socioespacial apontando a interação entre pólos que se interinfluenciam constante e mutuamente. Como lembra Braudel, criam-se fluxos de comunicação gerados nos intercâmbios levados a cabo entre os países que intervêm na reconstrução da história no mundo inteiro,52 sobretudo numa sociedade de forte impregnação ocidental, que buscou por séculos o seu próprio desenvolvimento e avançou rumo a grandes descobertas na ciência e na tecnologia, em que a cientifização marcou época, transformando as realidades sociais e chegando à nanotecnologia. É fundamental destacar que história e sociologia são ciências humanas, sem razão de ser se não estudam e acompanham as sociedades em seu processo de desenvolvimento. Apresentar os principais conflitos éticos, legais, políticos e sociais advindos das nanotecnologias exige muitas reflexões e discussões, nas mais diversas áreas do conhecimento, sobre essa intervenção do ser humano no mundo (ou no cosmo) do qual é parte integrante, recorrendo-se a perspectivas de diferentes posições e à disponibilidade de documentos de tipos distintos, buscando decifrar o alcance da técnica moderna. Nesse aspecto, a nanotecnologia e a (bio)ética, em sua mais estreita relação, podem unir diferentes visões de ciência.

51

52

BERTAUX, 1997.

90

CONSIDERAÇÕES ÚLTIMAS Apesar dos vários aspectos positivos da nanotecnologia, cresce o debate sobre o que essa inovação representa para o futuro das pessoas, da sociedade e da natureza. A técnica e a ciência têm proporcionado uma potência ao ser humano, até um tempo atrás considerada pouco importante, cujos fenômenos dela derivados, posso dizer, não são mais peculiares apenas à maneira de estar no mundo ocidental. Essa é uma questão epistemológica importante a ser considerada, uma vez que BRAUDEL, 1989.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 75-93, 2003

002176_Impulso_35.book Page 91 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

é preciso pensar a simultaneidade do local e do global propiciada pelas tecnologias mais recentes. Criaram-se modernos e eficientes sistemas nacionais de ciência e tecnologia que incentivam a pesquisa básica, mas, simultaneamente, facilitam as soluções tecnológicas emergentes para assegurar, conseqüentemente, o desenvolvimento socioeconômico de determinados países e sua relevância competitiva, atingindo muitos outros, num circuito decorrente da expansão desse desenvolvimento. A história recente da nanotecnologia e de uma nanociência ainda pouco definida demonstra, nos países em desenvolvimento, o incentivo e o financiamento das pesquisas científicas ou tecnológicas nesses campos, mediante planos e programas que estão sendo impulsionados. Por sua vez, a sociedade tem se relacionado com a ciência e com os seus avanços de forma muito mais rápida e integrada que em outros tempos, provocando discussões sobre as implicações éticas em vários campos científicos. Mas não basta o consenso de que uma política técnico-científica deva ser orientada para a inovação apenas como modo de garantir competitividade nos mercados nacional e internacional. É necessário pensar os critérios que devem nortear tal política. A universidade, nesse cenário, pode contribuir fundamentalmente às novas gerações na formação intelectual, científica e tecnológica e nas discussões sobre as conseqüências éticas na mais ampla dimensão. Outra ação de extrema importância consiste em fortalecer um imediato, inten-

so e empenhado diálogo entre as ciências da natureza, as engenharias e as ciências sociais e humanas. Para não fugir dos entrelaçamentos que busco fazer, ao abordar a necessidade de um trabalho interdisciplinar, concluo que as nanotecnologias colocam o homem diante de decisões, da mesma forma como ele se via, nos primórdios de sua existência, no que se refere a um fundamento objetivo: a vida! A avaliação das significações éticas, das implicações tecnológicas, políticas e sociais subjacentes à introdução das nanotecnologias no Brasil e de seus desafios na legislação, na política e na ética, bem como a análise de suas oportunidades e possibilidades requerem a superação de obstáculos amparados no dogma da diferença epistemológica e metodológica entre as ciências humanas e as naturais. Assim, manifestam-se promissoras oportunidades de realizar uma abordagem da técnica moderna verdadeiramente interdisciplinar. De início, é possível contar com áreas que já tenham alguma contribuição a dar nesse sentido, uma vez que oferecem análises sobre os efeitos das tecnologias na vida do homem, no que diz respeito aos seus métodos e enfoques, e com base nos princípios de formação dos conceitos apropriados, que permitam capturar o significado desejado, sem a preocupação do que seja a natureza da teoria científico-social e da teoria das ciências naturais, em sua aparente irreconciliação.

Referências Bibliográficas ABÉLÈS, M. “Le terrain et les sous-terrain”, in GHASARIAN, C. (org.). De L’Ethnographie à L’Anthropologie Réflexive: nouveaux terrains, nouvelles pratiques, nouveaux enjeux. Paris: Armand Colin, 2002. BERTAUX, D. Introduction in Les Récits de Vie. Perspectives ethnosociologiques. Paris: Nathan, 1997. BATESON, M.C.“Sobre a naturalidade das coisas”. In: ______. As coisas são assim: pequeno repertório do mundo que nos cerca.São Paulo: Companhia das Letras, 1997. BENTLEY, P. J. Biologia Digital: como a natureza está transformando a tecnologia em nossas vidas. São Paulo: Berkeley, 2002. BRAUDEL, F. El Mediterráneo: el espacio y la historia. México: Fondo de Cultura Económica, 1989. CLARKE, A.C. Perfiles del Futuro: una investigación de los limites de lo posible.Barcelona: Caralt, 1977.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 75-93, 2003

91

002176_Impulso_35.book Page 92 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

COMTE-SPONVILLE, A. & FERRY, L. A Sabedoria dos Modernos: dez questões para o nosso tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. COSTA, S. & DINIZ, D. Bioética: ensaios. São Paulo: Letras Livres, 2001. CUPANI, A.“Objetividade científica: noção e questionamento”. Manuscrito, Florianópolis, v. 13, n. 1, p. 25-54, 1990. DAMATTA, R. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Petrópolis: Vozes, 1981. DENNETT, D. Tipos de Mentes: rumo a uma compreensão da consciência. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. DINIZ, D. & GUILHEM, D. O que é Bioética. São Paulo: Brasiliense, 2002. ECHEVERRÍA, J. Introducción a La Metodología de la Ciencia: la filosofía de la ciencia en el siglo XX. Madrid: Catedra, 1999. ESPOSITO, C. A preocupação bio-ética no tempo do niilismo. Boletim do Núcleo Fé e Cultura, PUC-SP, 8/out./ 01.. Acesso em: 27/out./03. ETGES, N. J. “Sociedade do Trabalho sem Trabalho: desemprego estrutural e emergência do novo”. Revista Perspectiva,Florianópolis, n. 26, p. 13-38, jul.-dez./96. FOUCAULT, M. “La ética del cuidado de si como practica de la libertad”. In: ______. Hermeneutica del Sujeto. Buenos Aires: Ed. de la Piqueta, 1991. GARCIA, M.I.G. et al. Ciencia, Tecnologia y Sociedade: una introducción al estudio social de la ciencia y la tecnologia. Madrid: Tecnos, 1996. GEERTZ, C. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. JONAS, H. El Principio de La Responsabilidad: ensayo de uma ética para la civilización tecnológica. Barcelona: Herder, 1995. KESSELRING, T. “O conceito de natureza na história do pensamento ocidental”.Revista Ciência & Sociedade, Santa Maria, v. 3, n. 5, p. 19-39, jul-dez/92. LAMPTON, C. Divertindo-se com Nanotecnologia: construindo máquinas a partir de átomos. São Paulo: Berkeley, 1994. LATOUR, B. Jamais Fomos Modernos: ensaios de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. LEITE, M. “Ciência em dia: moratória para a nanotecnologia”.Folha Online, 23/fev./03. . Acesso em: 15/out./03. LÉVY, P. A Inteligência Coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São Paulo: Loyola, 1998. NAGEL, E.“Ciência: natureza e objetivo”. In: MORGENBESSER, S. Filosofia da Ciência. São Paulo: Cultrix, 1979. PARLAMENTO EUROPEU. Documento de Trabalho n. 4. Relator: Gérard Caudron, 27/jun./01. . Acesso em: 24/dez./04. PESSINI, L.Problemas Atuais de Bioética. 4. ed. São Paulo: Loyola, 1997. REGIS, E. Nano – a ciência emergente da nanotecnologia: refazendo o mundo molécula por molécula. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. SILVA, C.G.“A hora da nanotecnologia: rumo ao nanomundo”.Revista Ciências Hoje, São Paulo, v. 33, n. 193, p. 6-11, maio/03. TORNQUIST, C.S. “Salvar o dito, honrar a dádiva: dilemas éticos do encontro e da escuta etnográfica”. Processo de Qualificação – 2001/2. Florianópolis, 2001 WILSON, E.O. A Unidade do Conhecimento. Rio de Janeiro: Campus, 1999.

92

Impulso, Piracicaba, 14(35): 75-93, 2003

002176_Impulso_35.book Page 93 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Dados da autora Doutoranda do Programa de Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas (DICH) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e professora de curso de Graduação e Pós-Graduação a Distância da Universidade do Estado de Santa Catarina. Recebimento artigo: 10/jul./03 Consultoria: 28/ago./03 a 12/set./03 Aprovado: 23/set./03

Impulso, Piracicaba, 14(35): 75-93, 2003

93

002176_Impulso_35.book Page 94 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

94

Impulso, Piracicaba, 14(35): 75-93, 2003

002176_Impulso_35.book Page 95 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Bioética e Comitês de Ética BIOETHICS AND COMMITTEES ON ETHICS Resumo Esta comunicação visa a provocar discussões em torno da bioética e dos comitês de ética em pesquisa. Parte da tese de que as questões e a prática da bioética passam de través a constituição de qualquer comitê de ética e de que a bioética traduzse, muito mais do que os preceitos morais ou deontológicos, como uma prática cultural que regulamenta a atividade de um pesquisador ou de um grupo de pesquisa. Palavras-chave BIOÉTICA – PESQUISA – CIÊNCIA. Abstract The present text aims at provoking debate on bioethics and the Committees on Ethics Research. The thesis is that the issues regarding bioethics and its practice the constitution of any committee on ethics and also that bioethics, more than the moral or deontological precepts, is a cultural practice that regulates the activity of a researcher or a research team. Keywords BIOETHICS – RESEARCH – SCIENCE.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 95-100, 2003

95

WALTER MATIAS LIMA Universidade Federal de Alagoas (UFAL) [email protected] [email protected]

002176_Impulso_35.book Page 96 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

N

ossa perspectiva consiste em traçar alguns aspectos da discussão sobre a bioética e a importância de um comitê de ética na pesquisa. Pretendemos provocar o debate, muito mais que apontar definições ou assertivas peremptórias, as quais, no fundo, impedem uma interlocução ampla ou a confluência de posições diferentes, pois o importante é diminuir as posições dogmáticas que minam práticas sadias e destroem a digni-

dade das pessoas. Partimos da idéia de que o âmbito da bioética não envolve só a responsabilidade dos médicos, cientistas e biotécnicos, mas também as decisões e o destino de cada homem, as responsabilidades políticas e culturais da coletividade e, por isso, vai além do âmbito da deontologia pura profissional e da ética médica. A bioética não é uma ética da ciência, nem uma ética científica. A ética da ciência, mesmo estritamente ligada à bioética, não a esgota. Se fosse fundada na ética científica, a bioética seria reduzida a um prontuário, um sistema de normas regulares em linha de princípio e em abstrato de todas as situações problemáticas cuja solução estaria dedutivamente contida nas premissas. A bioética, fundada na racionalidade prática, ao contrário, é aberta, não deduz os comportamentos e as decisões das normas gerais, mas, inspirando-se nessas e nos valores, encarna as situações e chama o indivíduo particular à difícil e insubstituível característica de pessoa. No agir moral e, em especial, na prática da bioética, aplicar não é adaptar. Compreender as situações particulares não significa justificá-las. A justificação das situações comportaria a negação dos princípios éticos. Na ação moral concreta, os valores se realizam na situação, que se compreende e encontra seu sentido no horizonte dos preceitos morais. Portanto, a ética não pode constituir-se independentemente das situações históricas, dos casos particulares, do próprio tempo, e deve elaborar sua estratégia entre os princípios e os meios para não desembocar no cinismo e na desmoralização, pois o caráter específico da exigência moral está em sua possibilidade de animar uma ação que não tem possibilidade de vitória. Assim, em sua prática, a bioética deve ajudar a consciência moral do homem a discernir, inventar, o próprio modo de agir numa dada situação, em conformidade aos princípios e valores morais. A bioética é uma ética aplicada que complementa e complexifica a ética científica e a ética na pesquisa. Com essa nova aplicação dos princípios, aparece a exigência de coerência no agir ético. Não a coerência do ato em si, mas a dos seus efeitos últimos com a permanência do agir humano no futuro. O homem tornou-se um dos objetos da tecnologia e uma maneira de minimizar essa tendência é a premência de novas regras éticas, destinadas a evitar a neutralização axiológica em curso pelo próprio homem e a afirmar a objetividade da verdade. Essas novas exigências do agir moral põem em evidência a necessidade de pensar os princípios instauradores da ética e de pesquisar não só o bem do homem, como

96

Impulso, Piracicaba, 14(35): 95-100, 2003

002176_Impulso_35.book Page 97 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

também o bem das coisas extra-humanas, uma vez que os fins em si estão para adiante da esfera do homem em sua singularidade, e, por fim, de fazer com que o bem desse inclua a responsabilidade por tais fins. É dessa ótica que entendemos a prática da bioética e dos comitês de ética na pesquisa. Um comitê de ética na pesquisa é transversalizado por questões que o ultrapassam, mas não o abandonam: a consistência da pessoa, o valor do conhecimento, as relações entre ética do indivíduo e a da coletividade, ética e normas de comportamento profissional, ética e educação etc. Assim, um comitê não pode conceber-se como uma simples comissão de especialistas, pois deve efetivar a dimensão pública da pesquisa – sem confundir esfera pública com esfera privada –, esforçando-se por trabalhar com os parceiros mais diversos, expor os seus pareceres à crítica de todos, incitar a participação da sociedade civil na discussão das questões, envolver a passagem da ética ao direito e à lei e desenvolver atividades pedagógicas tendo em vista a elaboração de uma cultura bioética. A prática da bioética que encontra ressonância em um comitê de ética em pesquisa combate a comercialização do corpo humano em qualquer condição em que essa seja possível. Portanto, um comitê de ética em pesquisa transdisciplinar age propedeuticamente para que decisores e cidadãos entrem em confluência com os conhecimentos e a cultura que permitem a compreensão da responsabilidade social dos cidadãos com o corpo humano e o dos animais. Dizemos isso por não restar dúvidas de que alguns profissionais, como médicos, juristas ou filósofos, precisam conhecer, no que diz respeito à bioética, os textos oficiais, as problemáticas clássicas e as jurisdições. Mas guardar esses conhecimentos é uma postura deveras limitada ante a exigência da reflexão ética e importa projetar-se para assumir as responsabilidades correspondentes, pois, sem a discussão pluralista e a experimentação das noções e dos princípios apoiados nas situações concretas, não existe formação ética que valha a pena.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 95-100, 2003

Nesse sentido, fazer do comitê de ética em pesquisa um lugar apenas para reunião de pareceristas, em que se discute somente a aprovação ou não de determinado projeto ou procedimento é, no mínimo, desconhecer o seu significado. Por conseguinte, a atividade científica, como toda ação humana, regula-se por normas e orienta-se por valores. Finca-se nos valores coletivamente compartilhados, que definem tanto os comportamentos apropriados na produção do conhecimento quanto os relativos à incidência da investigação nos indivíduos e na sociedade. A tarefa dos comitês de ética é elucidar os valores em jogo na investigação científica e tecnológica e expor os seus resultados a consideração e discussão públicas. Desse modo, os comitês de ética são uma instância de argumentação crítica fundada na transversalidade de diversos saberes sobre questões relevantes à sociedade, à integridade e ao desenvolvimento dos sujeitos envolvidos no processo de pesquisa, e, ao mesmo tempo, à integridade e ao desenvolvimento da ciência. Caracteriza, dessa forma, uma instância que pode promover novos diálogos, tanto no âmbito da produção científica e da transmissão de seus resultados como entre a ciência e outras dimensões da sociedade. Em outras palavras, na ciência e na tecnologia, a ética é uma categoria que abarca a responsabilidade social da ciência: não é um instrumento para impor ditames ou repúdio a projetos de investigação. O investigador transita por uma área de conhecimento, reconhecido como tal por seus pares e pela sociedade, e pertence a instituições cuja operação se ajusta a regras específicas. Por sua competência, tem responsabilidade sobre o saber no qual atua, sobre as instituições científicas e sobre suas próprias práticas: a produção de conhecimento, o exercício de pesquisador, de docente, amigo e avaliador do trabalho de seus pares. O desenvolvimento da ciência e a sua importância no mundo contemporâneo têm estendido a responsabilidade na produção de conhecimentos e levado a incluir os efeitos sociais da pesquisa e a construção permanente de vínculos de confiança entre as diversas instâncias da sociedade e os pes-

97

002176_Impulso_35.book Page 98 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

quisadores. A integridade da prática científica só será mantida se afastarmos as pretensões de impunidade que poderiam estar presentes na comunidade acadêmica. Confiança e verdade não são apenas aspectos do trabalho científico, mas também exigências éticas. A constituição de um comitê de ética deve espelhar-se nas diversas experiências nacionais e internacionais para evitar o erro de atribuir a seus integrantes o caráter de representantes de grupos de interesses, como também a adesão a determinadas crenças religiosas ou a certas instituições corporativistas. O comitê de ética não é o lugar para a negociação de interesses corporativos, empresariais ou profissionais e essa é uma condição fundamental para a sua constituição em um país como o Brasil. O comitê deve definir critérios inequívocos para aceitar ou repudiar os estudos de casos que lhe cheguem. E concentrar-se em questões relacionadas com a integridade da ciência e de suas instituições, a dignidade dos sujeitos envolvidos no processo da pesquisa e os efeitos, sobre a sociedade, dos resultados da investigação. Ele não é um tribunal de ética, nem uma instância de apelação de decisões tomadas por outros, salvo no que se refere à vulnerabilidade de princípios éticos. Deve abster-se de expedir sobre interpretações estatutárias da carreira do investigador, de auditorias administrativas ou, ainda, possíveis delitos de ordem penal cometidos no âmbito acadêmico. Pode tratar casos concretos que suscitem controvérsias éticas e suas conclusões têm por objetivo elaborar recomendações de ordem geral, úteis para casos similares; salvo quando um projeto de pesquisa, por exemplo, suscite a perda da dignidade dos sujeitos nele envolvidos. A ética pode ser entendida como um modo de enfocar os problemas e as condutas da sociedade. Para cultivar esse procedimento, é preciso construir a capacidade de considerar criticamente as circunstâncias em que os sujeitos estão inseridos. A ética é capaz de conduzir à definição de normas morais e até legais, quando essas gozam de consenso e são admitidas ou estimuladas pela sociedade ou por seus grupos. As normas éticas

98

exigem responsabilidade na relação intersubjetiva, mas não coerção. Não se deve confundir norma ética com lei, pois essa última necessita da aprovação formal dos órgãos legislativos e cria obrigações externas mediante, muitas vezes, coerção física, além de apresentar menos universalidade, pois obriga as pessoas a cumprir o ordenamento jurídico do país em que vivem. No entanto, podem ocorrer comportamentos não condenáveis penalmente, mas reprováveis do ponto de vista ético. O importante, diante dessas questões, é manter a preocupação com a criação de uma cultura da bioética que prime pela confluência dos saberes e das práticas, integrando a pesquisa acadêmica com as demandas sociais. A bioética nasceu das práticas sociais que lhe deram demanda, o que a caracteriza como responsabilidade partilhada, e não apenas disciplina ensinada. Não podemos nos contentar em dizer que a ética em nosso tempo se realiza simplesmente por disposições regulamentares, e sim por iniciativas transformadoras. Para todos os profissionais de saúde que não a tratam como puro custo ou lucro, a cultura da bioética leva a encarar essa esfera como exigência de dignidade a ser promovida. A prática da bioética não apenas anuncia novos procedimentos, mas denuncia todos aqueles moralmente inadmissíveis, utilizados nas instituições acadêmicas e nas empresas. Só assim os valores esboçados nos tratados internacionais e nas resoluções nacionais (por exemplo, na Resolução 196/96, no Brasil, que institui a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa) poderão frutificar em dimensão universal da consciência social, irrigando novas instituições públicas pluralistas, adaptadas ao necessário seguimento dos problemas. Assim, a bioética, escapando à sua estreiteza biologista, torna-se uma ética do mundo do homem, ou seja, da pessoa compreendida como societária do gênero humano exigindo iniciativas civilizadas em que se esboça uma nova visão da política. Isso porque a bioética também pode ser compreendida como uma eticização da cidade: o seu futuro e o da pesquisa científica é o futuro de todos nós.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 95-100, 2003

002176_Impulso_35.book Page 99 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Portanto, para uma relação mais coerente entre ética (eticidade) e pesquisa, é decisiva a pluralidade de critérios de gestão de pesquisas científicas e de conflitos morais. E, salientamos, urgente o exercício de um comitê de ética em pesquisa como prática ética para aumentar a responsabilidade pública dos pesquisadores. Trabalhar para promover tal responsabilidade é o mínimo a ser feito por um grupo coerente de pessoas envolvidas com a pesquisa que garanta a dignidade de todos os sujeitos nela envolvidos. Se ainda há como confiar no projeto moderno de desenvolvimento da humanidade, a ética na pesquisa e a bioética reclamam uma cultura da autodeterminação. Nesse caso, ética consiste a busca por justificar nossas escolhas (de ser ou de perder-se no nada) entre necessidades e desejos, entre ser e ter, pois é preciso encontrar práticas de promover a dignidade humana e a qualidade de vida. Nesse sentido, a ética na pesquisa científica, diante do progresso e do domínio tecnocientífico, exige uma prática de responsabilidade e competência moral, o que requer a existência de um sujeito consciente, ou seja, do pesquisador ou cientista não submetido às ideologias tecnológicas (apologias irrestritas da técnica). Por conseguinte, trata-se de construir os meios para ensejar o desenvolvimento técnico-racional – no âmbito da pesquisa –, pautado por éticas que esclareçam

normativamente o que deve ou não ser feito, o que se pode ou não, diante das possibilidades da investigação científica. Nesse ínterim, é importante, para um comitê de ética em pesquisa interessado na construção de uma cultura da bioética, permear suas discussões pela racionalidade, entendendo-se aqui por racionalidade a razoabilidade. A legitimidade nasce na confluência da vida da razão com as razões da vida. Assim, a razoabilidade aparece como a racionalidade humana de maneira teleológica, de maneira a tornar a razão razão do homem, pelo homem e a serviço de todo homem, respeitando as diferenças, sem confundi-las com desigualdade. Isso atrai para o comitê de ética em pesquisa a necessidade de manter coesa a inter-relação entre os protocolos metodológicos das pesquisas clínicas e o acesso aos melhores diagnósticos e terapêuticas existentes, sem que tal inter-relação seja minimizada em favor de práticas contextualistas que excluam nações ou mantenham a vulnerabilidade (individual e coletiva) daquelas consideradas pobres ou mesmo de certos grupos internos a elas. A ética e a bioética, nos dias de hoje, são importantes oponentes às práticas tirânicas e totalitárias, assim como se opõem às manipulações espúrias do corpo humano e dos animais, reificando-os e transformandoos em mercadorias.

Referências Bibliográficas BEAUCHAMP, T.L. & CHILDRESS, J.F. Princípios de Ética Biomédica. São Paulo: Loyola [no prelo]. BIOETHIC TOPICS. . Acesso em:10/ago./02. DRANE, J. Clinical Bioethics. Kansas City: Sheed and Ward, 1994. DUSSEL, E. Ética da Libertação: na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis: Vozes, 2000. ENGELHARDT JR., H.T. Fundamentos da Bioética. São Paulo: Loyola, 1998. ______. Bioethcs and Secular Humanism: the search for a common morality. Filadélfia: Trinity Press International, 1991. GRECO, D.“Ensaios clínicos em países ‘em desenvolvimento’: a falácia da urgência ou ética versus pressão econômica”.Doutor! O jornal do Médico, n. 83, p. 3, 17/jul./99. MIFSUD, T. El Respecto por la Vida Humana (Bioética). Santiago: Paulinas/CIDE, 1987. PESSINI, L. & BARCHIFONTAINE, C.P. “Bioética: do principialismo à busca de uma perspectiva latino-americana”. In: COSTA, S.I.; GARRAFA, V. & OSELKA, G. (orgs.). Iniciação à Bioética. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1998.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 95-100, 2003

99

002176_Impulso_35.book Page 100 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Dados do autor Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Alagoas. Recebimento artigo: 17/jun./03 Consultoria: 28/ago./03 a 17/set./03 Aprovado: 23/set./03

100

Impulso, Piracicaba, 14(35): 95-100, 2003

002176_Impulso_35.book Page 101 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Pode-se Fazer Tudo o que se Pode Fazer? MAY WE DO EVERYTHING THAT CAN BE DONE? Resumo O artigo resume a história da ética no Ocidente, com o objetivo de mostrar como surgiu a bioética diante dos desafios postos pela biotecnologia. Parte da pergunta geral sobre o que é permitido fazer, para mostrar como várias vertentes do pensamento ocidental tentaram respondê-la e, a partir daí, às distintas respostas que a filosofia contemporânea tem dado a tal questão. Palavras-chave HISTÓRIA DA ÉTICA – BIOÉTICA – PRUDÊNCIA – PRINCÍPIOS UNIVERSAIS.

Abstract The article summarizes the history of Western ethics, with the aim of showing how bioethics emerged in the face of biotechnological challenges. The author shows how the several lines of Western thought have tried to answer a general question: What is permitted? Then, the author goes on to show the different answers the contemporary philosophy has given to the same question. Keywords HISTORY OF ETHICS – BIOETHICS – PRUDENCE – UNIVERSAL PRINCIPLES.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 101-106, 2003

101

ÁLVARO LUIZ MONTENEGRO VALLS Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), São Leopoldo/RS [email protected]

002176_Impulso_35.book Page 102 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

O

s antigos filósofos gregos, inventores da ética como ciência (episteme, conhecimento certo, garantido, relacionado ao universal e fundamentado em razões), aproximavam a práxis ao esforço artístico: viver constituía uma arte, cuidado de si, busca da perfeição do ideal do belo e do bom, e a vida deveria ganhar a forma de uma obra de arte construída ao longo dos anos. O que caracterizava a vida ética eram as virtudes, intelectuais e morais. No teatro trágico, a catársis ou purificação era produzida pela identificação com um herói nobre, mas não perfeito, que na trama se deixava levar ao erro, em parte pelo destino e em parte por engano pessoal, e, no desenlace (catástrofe), vinha a ser castigado por um erro de que não era totalmente culpado. Pela identificação com esse herói, o espectador passava pela experiência do terror (fobia) e da compaixão e se reconhecia no papel de homem, ser limitado, finito, que deve evitar a hybris (as atitudes desmedidas) e colocar as barbas de molho para tentar ser melhor do que fora, tentar ser mais virtuoso, desenvolvendo aquelas forças que estavam nele. Os gregos são os fundadores da ética em dois sentidos. Esboçaram quase todas as doutrinas possíveis – hedonismo epicurista, estoicismo, eudaimonismo aristotélico, racionalismo, ceticismo, cinismo – e redigiram alguns dos principais livros até hoje lidos e respeitados, como os Diálogos, de Platão, e Ética a Nicômaco, de Aristóteles. O gosto pelo estudo sobre os gregos foi muito forte no século XIX e Nietzsche deve muito de sua fama à filologia clássica. Quando a Grécia, cativa, dominou intelectualmente Roma, seu pensamento se espalhou por todo o Império. Com os séculos, as teorias foram se misturando, os argumentos se embaralhando e a tendência ao ecletismo baixou o nível da teoria e da prática. Num canto obscuro do Império, surge, há cerca de dois mil anos, um novo ensinamento existencial que, graças aos apóstolos e mártires, ao viajante Paulo de Tarso e depois ao imperador Constantino, acabou avançando de seita de pobres a religião oficial. A doutrina básica do carpinteiro de Nazaré era a do amor fraterno e do perdão dos pecados. Doutrina depois deturpada quando a Igreja, de militante na Terra, assume o papel de triunfante. Com a ruína de Roma, foi na figura dos papas e nos mosteiros que um certo poder misturando espiritual, temporal e alguma coisa do melhor pensamento se conservou. A Idade Moderna é a idade das ciências empíricas e matemáticas e traz em seu bojo o movimento da Aufklärung, o Esclarecimento. Conforme Galileo Galilei, o mundo foi escrito em linguagem matemática e era preciso aprender a ler essa linguagem. A razão cartesiana é matematizada, abstrata e universalizadora, e dominou a política cultural européia a partir da corte de Versalhes. Os alemães, melhores na teoria do que na política, refletem sobre o mundo e sobre o agir humano, de modo que pensadores como Kant e Hegel são incontornáveis para qualquer estudioso sério dos problemas da ciência e da moral. Hegel acreditou que a

102

Impulso, Piracicaba, 14(35): 101-106, 2003

002176_Impulso_35.book Page 103 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

filosofia deveria transformar-se em saber universal e sistemático, Wissenschaft. Sua tentativa de sistematizar todos os conhecimentos disponíveis na época não deu certo e parece que, já desde Leibniz e Lessing, essa era uma tarefa superior às forças humanas. Os anglo-saxônicos, no Velho e no Novo Mundo, buscavam, então, em seu pragmatismo típico, respeitador da empiria e dos costumes tradicionalmente estabelecidos, investigar as bases mais sólidas de um agir que tornasse o mundo um pouco melhor e buscasse o maior bem possível para o maior número de seres humanos. Eles fundaram teorias utilitaristas ou conseqüencialistas, preocupadas, em primeiro lugar, com os resultados práticos da ação humana, pois sabiam que, como diria Max Weber, o agir tem de ser responsável até o fim, uma vez que, na vida em sociedade, das boas intenções muitas vezes surge o mal. Weber cunhou o termo Zweckrationalität, traduzido corretamente como racionalidade dos meios em razão de um fim, às vezes estabelecido por outros e não refletido pelos agentes. O século XX assombrou o mundo pelos efeitos do divórcio entre o agir moral e o agir técnico. Práxis e téchne, que, em Aristóteles, formavam uma trilogia com a theoría, isolam-se, perdem o contato. O homem antigo, ao atacar ou defender-se com seu machado, enfrentando cara a cara o adversário, ainda se deixava influenciar pelas emoções, pelas tradições e tinha tempo de refletir sobre a justiça ou não de suas ações. Nas trincheiras e nos ataques aéreos ou submarinos da Primeira Grande Guerra, e depois de Hiroshima e Nagasaki, o homem percebeu ter perdido o controle ético de suas ações. Um alemão que executava, em obediência jurada ao Führer e à constituição vigente, as operações que buscavam racionalizar ao máximo a solução definitiva para os judeus, ou, mais recentemente, os pilotos dos bombardeiros que lançavam Napalm no Vietnã são também vítimas do divórcio entre o que o homem é capaz de fazer e aquilo que deveria fazer: divórcio entre os dois sentidos, em nosso idioma, do verbo poder, pois em verdade não se pode fazer tudo o que se pode, não é lícito realizar toda e qualquer ação

Impulso, Piracicaba, 14(35): 101-106, 2003

só porque somos capazes tecnicamente de leválas a cabo. A bioética surgiu como área de conhecimento e prática científicos, de base filosófica, mas essencialmente interdisciplinar, e se concentrou sobre dois pólos principais: meio ambiente e saúde. Hoje em dia, com o Projeto Genoma, falase até de um ramo da bioética que se poderia apelidar gen-ética. É um ramo da bioética entendido como ciência da responsabilidade, de acordo com a visão de Potter e Jonas, surgido da consciência do problema do divórcio entre o que tecnicamente já somos capazes de fazer e aquilo que talvez deveríamos fazer ou deixar de fazer. Portanto, da consciência de que o homem já tem nas mãos poder suficiente para o suicídio coletivo, liquidando o planeta.

* Convém afastar um preconceito. Muitos se preocupam por que o homem, nas últimas décadas, estaria querendo brincar de Deus. Uma visão imparcial nos mostrará que ele faz isso desde sempre. Se o Deus bíblico ordenou a Adão e Eva “Crescei e multiplicai-vos e dominai a Terra”, os homens captaram a parte final do mandamento e os séculos testemunham como eles vão arrancando a um destino impessoal os poderes concedidos pelo Pai. Hoje em dia, apenas chegamos a uma nova fronteira, a dos genes, ou dos cromossomos – mas estruturalmente o problema ético não difere de quando a humanidade inventou a luz elétrica (e disseram que Deus fizera a noite para dormirmos) ou ainda o motor (e afirmaram que Deus criou os bovinos e os muares para a tração dos veículos) ou criou métodos de controle da concepção (e disseram que o amor era obrigado a manter-se sempre aberto para o que desse e viesse). É claro que há na natureza mecanismos de autocontrole para evitar e anular os excessos e, por muitos milênios, milhões de mortes de crianças e mães equilibraram os milhões de nascimentos, atualmente defendidos por medidas de saúde pública. Poderíamos dizer, inversamente, que os milhões de espermatozóides apresentados a cada ejaculação são a defesa da vida contra os poderes

103

002176_Impulso_35.book Page 104 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

insidiosos da morte, assim como o padre representado por Gianfrancesco Guarnieri, no filme O Quatrilho, reflete que, quando uma mocinha da colônia sente sua idade avançar e decide mostrar ao namorado as vacas do fundo do quintal, não está sendo arrastada pela concupiscência da carne, mas pela ânsia da vida de não se deixar derrotar pela morte. Todos entendem que intervenções apressadas sobre processos milenários da natureza acarretam, a curto prazo, desequilíbrios que, com o acúmulo de poderes nas mãos dos cientistas e dos fabricantes, podem ser fatais para muita gente. Por isso, uma das virtudes aristotélicas volta ao primeiro plano, a prudência, ligada à experiência acumulada e à reflexão que compara meios e fins, e, como toda virtude, consistiria num justo meiotermo em relação ao homem. Como a coragem não era pólo oposto à covardia, mas meio-termo entre o defeito da covardia e o excesso da temeridade, assim também a prudência não pode ser apenas um freio de mão sempre puxado. Em ambientes de pesquisa, seria importante lembrar que a prudência do pesquisador não deve ser sinônimo de covardia, nem de omissão. O medo de pesquisar novos processos pode ser responsável pela fome de muitos, e o de experimentar novas tecnologias é capaz de levar ao esgotamento de outras. Citando livremente Millôr Fernandes, perguntaríamos: quando a população do planeta chega a seis bilhões de humanos, surge a questão sobre o que é pior agora – matar ou desmatar? Desmatamentos podem significar a morte ou a proibição de vida a milhões ou bilhões de descendentes nossos. Eis aí uma nova discussão da bioética: o direito dos que (ainda) não existem. Se os filósofos tenderam a ignorar os que não mais existiam ou ainda nem existem, e a concentrar-se sobre o próximo no sentido físico, natural (a população presente), agora não mais podemos adotar tal perspectiva, pois, dependendo de nossas decisões no hoje de nossa vida e de nosso trabalho, é possível que muitos nem cheguem à existência ou venham a ter péssima qualidade de vida. Os mecanismos de controle, ou de defesa, invenção da própria na-

104

tureza em sua evolução, quem sabe até precondição da evolução, e aperfeiçoada pelo próprio processo natural, devem, nos dias de hoje, ser completados conscientemente pelo próprio ser humano, individualmente e/ou em equipe. Em especial pelo cientista, que, ao precisar incluir em sua reflexão também os fins, próximos e últimos, de sua atividade, e não só os meios e recursos, torna-se um verdadeiro filósofo. Aliás, o problema não é novo, pois já Aristóteles perguntava se era correto deixar aos médicos a manipulação dos venenos, de onde provêm muitos medicamentos. A solução por ele encontrada era a de deixar aos médicos a responsabilidade moral, mesmo por falta de alternativas melhores. Quem, com efeito, sem o conhecimento técnico, pode ditar em sã consciência o procedimento melhor àquele que conhece o como, o quanto, o quando e o em que condições? Na falta de opção viável, há que se apostar na formação moral dos que trabalham na área da saúde ou na pesquisa em favor da vida. Quem sabe caiba aqui contribuir com algumas indicações no terreno da reflexão moral. Incumbido de pensar eticamente pari passu com suas pesquisas tecnológicas, e consciente de haver uma coisa chamada ética profissional, que não regula apenas níveis salariais e coisas semelhantes, o cientista pode pedir ao filósofo alguns lineamentos gerais para esclarecer e acelerar o progresso de suas considerações nesse campo por muito tempo negligenciado. Não é fácil ao bom cientista ter a humildade de dar a palavra ao chamado eticista. Afinal, que podem ter esses generalistas (especialistas em generalidades?) amantes de obviedades acacianas a dizer, se não vivem nos laboratórios e não participam dos congressos científicos? Essa seja talvez uma vingança merecida por séculos de predomínio das chamadas ciências dos sentidos, como a teologia, o direito ou a filosofia, sobre as chamadas exatas e as da natureza. Mas a simples inversão entre oprimido e opressor não serve ao bem comum. Duas saídas imediatas seriam viáveis: a formação de pesquisadores anfíbios, treinados para se movimentar nos dois âmbitos, e a criação de comitês interdisciplinares, em que gente de várias especialidades, até

Impulso, Piracicaba, 14(35): 101-106, 2003

002176_Impulso_35.book Page 105 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

mesmo movida pela lei da simpatia desenvolvida em grupos específicos, acaba aprendendo a dialogar de modo objetivo, senão fraterno.

* Algumas sugestões. No âmbito da ética profissional, o cientista e o técnico ou o profissional da área de pesquisa da vida deve encarar suas atividades como uma vocação, e não apenas ganha-pão. E também considerar-se um funcionário do bem comum, consciente de ter o privilégio de executar tarefas que nitidamente fazem sentido, carregadas de um significado ideal. Precisa, pois, executar as tarefas do dia-a-dia com afinco e interesse, com um certo amor e uma grande paixão por fazer aquilo sempre melhor. Mas a problemática ética não se esgota no nível da relação profissional. Há uma dimensão específica e uma dimensão política. Um profissional dessa área deve procurar ter suas opiniões a respeito da política mais geral do setor. Pois opinião é isso, um saber que talvez esteja certo, mas que pode a qualquer momento ser corrigido por outra melhor. Opiniões são convicções ainda não demonstradas e não devem ser defendidas com fanatismo, mas mesmo com pouca certeza pode se estar na verdade, e aí teremos o que Platão chamava de opinião certa ou opinião melhor. Portanto, o profissional da área deve dispor-se a opinativamente pesar e sopesar os prós e contras dos métodos, procedimentos e tecnologias a serem utilizados. Por exemplo, citado o mais rapidamente possível: quais os prós e contras do uso de produtos transgênicos, e quais, por outro lado, os prós e contras do não uso deles? Enfrento, enfim, a questão mais geral dos princípios éticos ou morais do trabalho de pesquisa e aqui precisarei ficar num nível talvez bastante etéreo, embora espere que algumas coisas tenham lá o seu proveito. O que a ciência da ética nos pode auxiliar no dia-a-dia? Uns dois pontos já foram mencionados: levar em conta finalidades últimas, e não apenas refletir de maneira imediata sobre os meios e objetivos de curtíssimo prazo; voltar a recorrer à reflexão, buscando uma certa prudência, já definida, como regra do agir. Cabe-

Impulso, Piracicaba, 14(35): 101-106, 2003

ria agora acrescentar que um pesquisador que tem em suas mãos, de alguma maneira, a saúde da população, pode aprender bastante das tradições éticas da área médica com os princípios da beneficência e não-maleficência, da justiça e outros semelhantes. Ou seja, o próprio juramento de Hipócrates poderia ser estudado e meditado por gente dessa área. Mas dos moralistas é possível aprender mais alguma coisa. Um tópico fundamental da filosofia moral kantiana, mais uma vez em grande relevo na atual ética do discurso, defendida por pensadores como Jürgen Habermas e Karl-Otto Apel, é o chamado princípio da universalização ou, se quiserem, da universalizabilidade. Antes de me decidir por uma ação, devo refletir sobre se essa máxima que pretendo seguir é digna de ser universalizada. Eu poderia, em sã consciência, desejar que todos os homens, numa situação semelhante à minha, fizessem o mesmo que estou pretendendo fazer? Isso vale em todas as esferas, vale para o que quer torturar, o que quer sonegar, o que quer escapar de um aperto por meio de uma mentira, para o que se pergunta se pode prometer algo que sabe que não pretende cumprir, e assim por diante. Numa palavra que todos entendemos: o princípio da universalização é antípoda da chamada Lei de Gérson, em que busco sempre tirar vantagem de qualquer situação e a qualquer preço, a ser pago obviamente pelos outros. Tal princípio, Kant sempre aplicava junto com outro aspecto, que dizia pertencer ao mesmo preceito: o do respeito pela dignidade do ser humano. Saramago, em palestra na UFRGS, formulou a questão nos seguintes termos: “Se não podemos pretender que todos os homens se amem uns aos outros, poderíamos ao menos lutar para que nos respeitássemos mutuamente”. Kant diz que sempre é preciso tratar a humanidade, em nós mesmos ou nos outros, também como um fim em si, e jamais apenas como um meio. Mantido o princípio da universalização, pois na ética se faz o que é geral, é possível levar em conta outras reflexões, como a ação do duplo efeito (em que se busca um bem maior, precisando aceitar uma conseqüência menos positiva que

105

002176_Impulso_35.book Page 106 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

acompanha o resultado), ou o princípio do mal menor (quando somos obrigados a agir escolhendo entre dois resultados negativos), ou o do custo e benefício (nascido na economia e transplantado para os setores administrativos) e o da separação das decisões macro e micro (a direção geral se responsabiliza pelos investimentos básicos e as instâncias inferiores administram, da melhor maneira possível, os recursos disponíveis). Formulação superior à do mal menor é, obviamente, a do bem maior, ligada à chamada regra de ouro, de fazer aos outros o que queremos que façam em nosso proveito, base do contrato social, seja esse princípio articulado de maneira positiva seja de forma negativa. A via dos princípios tem sido seguida tradicionalmente e não sei até que ponto é proveitosa.

Mas princípios éticos são instrumentos para reflexões grupais e particulares. Acredito nos grupos de reflexão, em que se se exerce e se aprende a exercer a reflexão ética. A comunidade dos pesquisadores é um sujeito digno, no campo da epistemologia. Também no plano da moral, tal comunidade é um sujeito sério, mas aí talvez fosse preciso atentar para o fato de que, idealmente, deveria incluir, de alguma forma, todos os sujeitos concernidos. Porque, quando pesquiso sobre coisas que atingem a vida e a saúde de muitos ao meu redor, não posso considerar-me a instância última das decisões (no máximo uma instância próxima). Os desastres de Chernobil, Bopal e tantos outros sugerem humildade à comunidade dos pesquisadores e técnicos. Mas também os praticantes da filosofia têm de ser humildes.

Dados do autor Doutor em filosofia pela Universidade de Heidelberg, desenvolve pesquisas sobre Adorno e Kierkegaard. Atua nas áreas da estética, ética e bioética. Tradutor e professor na Unisinos, é pesquisador do CNPq, membro de comitês de ética em pesquisa e autor de O que é Ética (Brasiliense). Recebimento artigo: 11/set./03 Consultoria: 12/set./03 a 22/set./03 Aprovado: 23/set./03

106

Impulso, Piracicaba, 14(35): 101-106, 2003

002176_Impulso_35.book Page 107 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Comunicações & Debates Guerra, terrorismo e as relações internacionais

Communications & Debates War, terrorism and the international relations Impulso, Piracicaba, 14(35): 101-106, 2003

107

002176_Impulso_35.book Page 108 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

108

Impulso, Piracicaba, 14(35): 101-106, 2003

002176_Impulso_35.book Page 109 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Introdução a um Debate Filosófico INTRODUCTION TO A PHILOSOPHICAL DEBATE

O

ano de 2003 testemunhou uma série de debates sobre temas como terrorismo, a guerra no Iraque, a situação das Nações Unidas e questões relativas às relações internacionais. Esta seção de debates apresenta as posições de Jürgen Habermas sobre tais temas, bem como a reação de Iris Young a um manifesto firmado pelo filósofo alemão e Jacques Derrida relativo à Guerra no Iraque. E é fechada por uma entrevista inédita de Habermas a Eduardo Mendieta, na qual contesta e esclarece uma série de questões, inclusive as levantadas por Iris Young. Habermas, professor emérito da Universidade de Frankfurt, é um dos mais importantes herdeiros da teoria crítica da sociedade e autor de obras como Strukturwandel der Öffentlichkeit (Mudança Estrutural da Esfera Pública, 1962), Erkenntnis und Interesse (Conhecimento e Interesse, 1968), Theorie des kommunikativen Handelns (Teoria da Ação Comunicativa, 1981), Faktizität und Geltung (Direito e Democracia, 1992), e Die Zukunft der menschlichen Natur (O Futuro da Natureza Humana, 2001). Destaca-se há cinqüenta anos – desde a publicação de um artigo criticando Heidegger, em 1953 – como um intelectual atuante no âmbito da esfera pública, sempre intervindo por meio de entrevistas e artigos em jornais como um defensor do “projeto da modernidade” nos mais importantes debates filosóficos, políticos e culturais. Isso se vê desde o pósguerra na Alemanha, passando pelo movimento estudantil e pela crítica ao neoconservadorismo, chegando às discussões atuais sobre biotecnologia e relações internacionais. Já no final de 2002, Habermas havia publicado uma “Carta à América” no jornal The Nation, na qual afirmava que os Estados Unidos não deveriam invadir o Iraque sem o consentimento das Nações Unidas. Após as várias manifestações contra a iminente invasão, ocorridas em todo o mundo no dia 15 de fevereiro de 2003, Habermas insistiu nos pronunciamentos sobre o tema. Em 17 de abril desse mesmo ano, publicou o artigo “Was bedeutet der Denkmalsturz?” (O que significa a queda do monumento?) no jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung, no qual reflete sobre as ambigüidades do ato de destruição de um monumento a Saddam

Impulso, Piracicaba, 14(35): 109-111, 2003

109

AMÓS NASCIMENTO UNIMEP, Piracaba/SP [email protected]

002176_Impulso_35.book Page 110 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Hussein em Bagdá. Mais do que a queda de um ditador, aquele ato denunciava, para Habermas, a “domesticação do direito internacional” e a “violação dos direitos humanos” por uma política internacional neoconservadora, liderada por Wolfowitz nos Estados Unidos. O monumento a cair seria, portanto, a autoridade normativa e a legitimidade política dos Estados Unidos no âmbito internacional. Em 31 de maio, o jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung e o jornal francês Libération publicaram simultaneamente um manifesto contra a invasão do Iraque, firmado por Habermas e Derrida. Ambos conclamavam a Europa a se unir em oposição à guerra e ao modelo estadunidense, tomando como exemplo as manifestações internacionais de 15 de fevereiro, e propondo uma esfera política internacional alternativa. Outros intelectuais, como Umberto Eco, Gianni Vattimo e Richard Rorty, apoiaram essa posição. Porém, muitos viram tal iniciativa como surpreendente capitulação do pós-modernismo ao projeto moderno, além de identificarem traços eurocêntricos nas posições de Habermas e Derrida, que já vinham mantendo posições similares em uma série de encontros e em entrevistas a Giovanna Borradori sobre terrorismo, publicadas sob o título Philosophy in a Time of Terror (Filosofia em um Tempo de Terror, 2003). É nesse momento que temos a reação de Iris Young. Como destacada representante do pensamento crítico contemporâneo nos Estados Unidos, tem liderado os debates sobre feminismo, justiça social, defesa das minorias e o diálogo internacional. Em Throwing like a Girl and other Essays in Feminist Philosophy and Social Theory (Arremessando como uma Menina e outros Ensaios em Filosofia Feminista e Teoria Social, 1987) ela apresenta um tom bastante crítico ao tratar do corpo e do comportamento humanos, mostrando como as mulheres são educadas para certos comportamentos culturais – andando, sentando e jogando bola “como meninas” – que levam à objetificação do corpo feminino. No premiado livro Justice and the Politics of Difference (Justiça e a Política da Diferença, 1990), Iris amplia sua visão,

110

partindo de Derrida para analisar múltiplos conceitos de justiça e advogar a necessidade de uma concepção plural, inclusiva, participativa e não homogênea da alteridade, concluindo com a proposta de tratamento diferenciado a grupos sociais distintos. Em Intersecting Voices: dilemmas of gender, political philosophy and policy (Vozes em Intersecção: dilemas em gênero, filosofia política e políticas públicas, 1997), ela debate os dilemas do feminismo desde Simone de Beauvoir até as posições recentes de Luce Irigaray e vai mais além, ao integrar discussões atuais sobre gênero – envolvendo mulheres e homens – ao debate sobre comunicação e cidadania. Mais recentemente, em Inclusion and Democracy (Inclusão e Democracia, 2002), Iris Young trata do multiculturalismo e das formas de participação de grupos sociais nos processos democráticos, enfatizando processos diferenciados de comunicação, especialmente no nível de uma sociedade civil global. Nesse ponto já se vê sua crítica as concepções habermasianas “ação comunicativa” e “esfera pública”, pois a pensadora estadunidense as considera abstratas demais para poder incluir os “outros concretos” [concrete others], geralmente esquecidos nos debates políticos. Atualmente Iris Young finaliza o livro On Female Body Experience (Sobre a Experiência do Corpo Feminino) e atua como membro do Comitê Científico da revista IMPULSO, mostrando crescente interesse sobre a situação social no Brasil. Sua reação ao que denomina um certo eurocentrismo da parte de Habermas e Derrida, e a falta de diálogo com países do hemisfério sul, é conseqüente com o desenvolvimento de sua posição teórica, descrita acima. Foi discutida e apresentada em vários locais – inclusive no Congresso Mundial de Filosofia realizado em Istambul em 2003) – e comentada em vários jornais nos Estados Unidos, Itália, Alemanha e outros países. É agora publicada em português nesta seção. Habermas não respondeu diretamente às críticas de Young. Porém, após receber o Prêmio Príncipe de Asturias em novembro de 2003, na Espanha, juntamente com o presidente Luís Inácio “Lula” da Silva, Gustavo Gutiérrez e ou-

Impulso, Piracicaba, 14(35): 109-111, 2003

002176_Impulso_35.book Page 111 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

tros líderes sociais, concedeu em dezembro de 2003 entrevista a Eduardo Mendieta, na qual reflete retrospectivamente sobre os vários temas acima mencionados. Mendieta, professor na State University of New York at Stony Brook, estudou com Habermas em Frankfurt e é hoje um dos expoentes da teoria crítica nos Estados Unidos. Traduziu e editou em inglês vários textos de Habermas, Karl-Otto Apel e Enrique Dussel, além de publicar The Adventures of Transcendental Philosophy. Karl-Otto Apel’s semiotics and discourse ethics (As Aventuras da Fi-

losofia Transcendental. A semiótica e a ética do discurso de Karl-Otto Apel, 2002), Religion and Rationality. Essays on Reason, God and Modernity (Religião e Racionalidade. Ensaios sobre a Razão, Deus e a Modernidade, 2002) e vários artigos sobre teoria crítica e globalização. Nessa entrevista, Mendieta levanta uma série de questões que remetem a vários pontos dos debates mantidos por Habermas em 2003, permitindo ao filósofo alemão que complemente e esclareça suas posições.

Dados do autor Filósofo e assessor para Assuntos Internacionais na UNIMEP, foi aluno tanto de Iris Young como de Jürgen Habermas. Recebimento artigo: 11/set./03 Consultoria: 12/set./03 a 22/set./03 Aprovado: 23/set./03

Impulso, Piracicaba, 14(35): 109-111, 2003

111

002176_Impulso_35.book Page 112 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

112

Impulso, Piracicaba, 14(35): 109-111, 2003

002176_Impulso_35.book Page 113 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Descentralizando o Projeto de Democracia Global* DECENTRALIZING THE PROJECT OF GLOBAL DEMOCRACY Resumo Neste texto, a autora reage a uma declaração co-assinada por Jürgen Habermas e Jacques Derrida, na qual eles conclamam os Estados e cidadãos da Europa a desenvolver uma política internacional que estabeleça um ponto de equilíbrio com relação aos Estados Unidos. Embora concorde com a necessidade de relações mais equilibradas no cenário internacional, a autora argumenta que a declaração revela-se eurocêntrica e não reconhece os esforços feitos em prol de uma democracia global a partir do Hemisfério Sul, especialmente nas reuniões do Fórum Social Mundial. Com base nessa constatação, enfatiza a necessidade de um diálogo Norte-Sul, ao invés de se colocar os destinos das relações internacionais nas querelas do Norte, entre a Europa e os Estados Unidos. Palavras-chave JÜRGEN HABERMAS – JACQUES DERRIDA – DEMOCRACIA GLOBAL – EUROPA – ESTADOS UNIDOS – DIÁLOGO NORTE-SUL. Abstract This text reacts to a declaration co-signed by Jürgen Habermas and Jacques Derrida, in which they make a call for the need of a consensual European international politics to counterbalance the hegemony of the United States. While agreeing with the need to establish more balanced relations at the global level, the declaration remains Eurocentric and does not recognize the efforts towards a global democracy, which are being made in the Southern Hemisphere, especially in the meetings of the World Social Forum. On this basis, the text concludes by stressing the need of a North-South dialogue, instead of putting the destiny of international relations on the North-North disputes between Europe and the United States. Keywords JÜRGEN HABERMAS – JACQUES DERRIDA – GLOBAL DEMOCRACY – EUROPE – UNITED STATES – NORTH-SOUTH DIALOGUE.

* Escrito para apresentação em um painel sobre o tema “Diálogo Norte-Sul”, no Congresso Mundial de Filosofia em Istambul (ago./03). Versão em alemão publicada sob o título “Europa, leere Mittelpunkt,” no Frankfurter Rundschau, (22/jul.03): ; versão em italiano publicada como “Europa, provincia del mondo”, em Il Manifesto (7/ago./03): ; versão em inglês publicada na revista online Open Democracy: . Tradução do inglês para o português de AMÓS NASCIMENTO.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 113-118, 2003

113

IRIS MARION YOUNG UNIVERSITY OF CHICAGO, Chicago/EUA [email protected]

002176_Impulso_35.book Page 114 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

E

m uma declaração importante, co-assinada por Jacques Derrida e publicada no Frankfurther Allgemeine Zeitung, no dia 31 de maio de 2003, Jürgen Habermas conclama os Estados e cidadãos europeus a forjar uma política externa européia comum para poder estabelecer um ponto de equilíbrio com relação ao poder hegemônico dos Estados Unidos. Segundo ele, os europeus deveriam forjar uma identidade política limitada à identidade européia para, assim, resistir ao poder hegemônico norte-americano. Porém, tal identidade estaria aberta aos ideais de uma democracia cosmopolita. Reconheço a iniciativa desses influentes filósofos ao chamarem à responsabilidade pública, naquele momento histórico em que Estados Unidos e Reino Unido estavam prontos para ocupar o Iraque indefinidamente, e os EUA ameaçavam outros Estados da mesma forma. Também dou boas-vindas a esse chamamento para que a Europa seja mais independente dos Estados Unidos, avaliando seus próprios interesses e aqueles internacionais mais amplos. Além disso, concordo que uma posição européia unida e diferencial poderia servir de contrapeso à arrogância da política externa estadunidense. Porém, me pergunto sobre quão cosmopolita é, de fato, a posição apresentada nessa declaração. Do ponto de vista de outras partes do mundo, sobretudo da ótica dos Estados e das pessoas no Hemisfério Sul, tal apelo lançado por esses filósofos pode parecer mais uma tentativa de recentralização da Europa do que um clamor por uma democracia global inclusiva. Habermas inicia o documento citando os eventos de 15 de fevereiro de 2003, encarando essa data como um dia histórico, “que pode ficar para a posteridade como o sinal para o nascimento de uma esfera pública européia”.1 Naquele dia, segundo ele, milhões de pessoas se reuniram para se opor à Guerra no Iraque, em cidades pela Europa, incluindo Londres, Roma, Madri, Barcelona, Berlim e Paris. É a simultaneidade coordenada dessas demonstrações, sugere Habermas, que se apresenta como precursora de uma esfera pública européia. Mas tal interpretação distorce os fatos históricos. Naquele mesmo fim de semana, houve também demonstrações em massa em várias outras cidades, em todos os demais continentes – Sidney, Tóquio, Seul, Manila, Vancouver, Toronto, Cidade de México, Tegucigalpa, São Paulo, Lagos, Johannesburg, Nairobi, Tel Aviv, Cairo, Istanbul, Varsóvia e Moscou, entre várias centenas de outras, diversas delas nos EUA. De acordo com as pessoas com quem falei, a coordenação mundial dessas demonstrações foi planejada no III Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, em janeiro de 2003. A ampla coordenação mundial dessas demonstrações pode sinalizar o aparecimento de uma esfera pública global, da qual as manifesta1

HABERMAS, J. & DERRIDA, J. In Frankfurther Allgemeine Zeitung, Frankfurt, 31/maio/03.

114

Impulso, Piracicaba, 14(35): 113-118, 2003

002176_Impulso_35.book Page 115 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

ções públicas européias podem ser consideradas as asas, mas cujo centro se encontra no Hemisfério Sul. O apelo dos filósofos aqui citados sugere que a Europa tem uma obrigação especial nesse momento histórico: promover a paz e a justiça por meio do direito internacional, agindo, assim, em oposição à política estadunidense, que contradiz tal internacionalismo. A Europa deve ser a locomotiva, propalando os cidadãos do mundo em uma viagem com destino à democracia cosmopolita. Utilizando as instituições internacionais das Nações Unidas, as grandes cimeiras econômicas, como as reuniões do G-8 e da Organização Mundial de Comércio, do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, os países do chamado Núcleo-Europa deveriam “exercer a sua influência, moldando o desígnio de uma democracia global para um futuro próximo”.2 Certamente a Europa deveria mostrar a sua influência, especialmente contra os esforços dos Estados Unidos em utilizar subterfúgios para tomar atalhos e contornar ou desconsiderar as linhas mestras que definem a tênue conexão internacional, oriundas de políticas internacionais surgidas na última metade do século XX. A imagem que deduzo dessa proposta de adotar alguns fóruns públicos como a ONU, a OMC, o FMI e as cimeiras econômicas implica, porém, somente reuniões entre os Estados industriais mais avançados do Hemisfério Norte que se opõem uns aos outros. Nessa imagem, a maioria das pessoas do mundo assiste os rivais estadunidenses e europeus do Norte se debatendo e alguns outros países entrando na discussão, temporariamente, de um lado ou de outro. Mas do ponto de vista da maioria, a confrontação entre Europa e Estados Unidos mais parece uma rivalidade entre irmãos. Se a hegemonia estadunidense deve ser confrontada, e caso se proponha exercer uma oposição a ela, o que é realmente desejável, por que não recrutar, desde o princípio, os esforços dos povos da África, Ásia e América Latina, além da Europa?

Para que a Europa leve a cabo a sua missão global como máquina do trem cosmopolita, Habermas afirma que os europeus têm de forjar um senso mais forte de identidade européia, que transcenda o sentido paroquial de uma identidade nacional. Muitas das instituições e dos valores originados nesse continente, como o cristianismo, o capitalismo, a ciência, a democracia e os direitos humanos, de acordo com ele, proliferaram para além do território europeu. Uma identidade européia, nos dias de hoje, pode ser proveniente do modo distintamente reflexivo como as sociedades européias responderam aos problemas gerados pela modernidade, pelo nacionalismo e pela expansão capitalista. Nos Estados europeus caracterizados pelo bem-estar social, desenvolveuse uma solução às desigualdades geradas pelo capitalismo, conseguindo-se manter tais padrões diante das fortes pressões econômicas globais para que essa situação fosse alterada. Os europeus também começaram já a superar os perigos agressivos do nacionalismo, ao instituir a União Européia. Sem dúvida, esses sucessos podem e devem servir de exemplo para o mundo todo. Porém, uma identidade européia não pode existir sem que haja outras, das quais ela se diferencie. O chamado para que se abrace uma identidade particularista européia pode ser, então, um meio para construir uma nova distinção entre os insiders e os de fora, os estrangeiros. A preocupação principal de Habermas é distinguir uma identidade européia da americana. “Para nós, é difícil imaginar um presidente que abre suas reuniões diárias com uma oração pública e relaciona as suas decisões mais importantes como uma missão divina”.3 Outros, no Leste e no Sul, são vistos como outros externos, que permanecem nas sombras, reunidos talvez nas extremidades desse playground onde os meninos grandes brincam e xingam uns aos outros. E quanto àqueles outros, que, na verdade, estão dentro da brincadeira? Uma identidade européia seria expansiva o suficiente para incluir os milhões de crianças asiáticas ou de descendência africana, cujos pais e

2

3

Ibid.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 113-118, 2003

Ibid.

115

002176_Impulso_35.book Page 116 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

avós migraram para a metrópole? Como muitos estadunidenses, muitos europeus reagiram a recentes conflitos globais, distanciando-se daqueles identificados como estrangeiros. Ao invocar uma identidade européia, seguramente se inibe a tolerância com os de dentro e a solidariedade com os de fora. E aqui eu temo que Habermas possa estar simplesmente reaplicando a lógica do Estado-Nação no âmbito da Europa, ao invés de transcender esse modelo. Em The Invention of America, Enrique Dussel conta a história da modernidade como baseada no projeto colonial europeu.4 Depois de gastar séculos lutando contra os muçulmanos e os forçando para o Leste, e descobrir os tesouros, o poder e a inovação técnica dos impérios no chamado Extremo Oriente, a Europa se encontrou nas extremidades do mundo. A imaginação européia inventou a América, afirma Dussel, como um dos meios para se colocar no centro da história. Por sua vez, o apelo dos filósofos não parece uma tentativa de recolocar a Europa no centro? Na visão desse autor, a Europa se posicionaria entre o poder dos Estados Unidos e os interesses de uma ordem global inclusiva, amainando os ímpetos do primeiro e, ao mesmo tempo, colocando-se como liderança para os demais. Concordo que a hegemonia estadunidense deve ser confrontada e resistida, e os eventos recentes mostraram que europeus unidos em resistência têm o potencial de contribuir para um maior equilíbrio de poder. No entanto, a Europa não pode nem deve se envolver em tal confrontação em nome das outras partes do mundo, e sim em parceria com elas. O apelo apresentado em defesa de uma política externa européia termina com a proposta de se recorrer a uma relação entre os países europeus e o Hemisfério Sul em escala global. Lembremonos do passado imperial da Europa! Há cerca de cem anos, as grandes nações européias experimentaram um florescimento do poder imperial. 4 DUSSEL, E. The Invention of America. New York: Continuum, 1995.

116

Desde então, esse poder foi declinando e os europeus experimentaram a perda de seus impérios. Tal experiência de declínio, segundo Habermas, permitiu a eles desenvolver um processo reflexivo. “Foi possível aprender, partindo da perspectiva dos derrotados, para, então, perceber o papel duvidoso de vencedores, chamados à responsabilidade pela violência de um forçoso e desarraigado processo de modernização.”5 Nessa reflexão, vejo que Habermas convida a sua audiência a adotar, valendo-se de suas imaginações, a visão daqueles colonizados antigamente pelos outros e, assim, aprender a olhar para a Europa e para os europeus desse outro ponto de vista. Certamente, a iniciativa de tal exercício é melhor que a perspectiva centrada em si mesma, como a que se pode observar com relação aos Estados Unidos e muitos estadunidenses. Mas não seria melhor ter reais discussões com pessoas e Estados do Sul e do Leste, compartilhando uma base comum, de modo que elas pudessem falar aos europeus (e estadunidenses) o que esses podem não desejar ouvir, por exemplo, sobre os seus preconceitos e suas responsabilidades? Em que fórum a Europa participou para receber a legitimação de seus direitos e deveres quanto a essas questões? Recorrer ao colonialismo e ao imperialismo como um processo desarraigado de modernização leva a pensar que a herança colonial é apenas um subproduto infeliz, entre os muitos resultados presumidamente positivos do projeto universalista e iluminista conduzido pela Europa, estabelecendo os princípios dos direitos humanos, a universalização da lei e a ampliação da produtividade. Entretanto, o colonialismo não somente foi um processo vicioso de modernização, como também um sistema de escravidão e exploração do trabalho. Quais são os sinais dados por pessoas e Estados europeus como resposta ao chamado à responsabilidade, indicando gestos de contrição e reparação? 5

HABERMAS & DERRIDA, op. cit.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 113-118, 2003

002176_Impulso_35.book Page 117 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Como estadunidense, eu e outros como eu temos responsabilidades distintas para resistir às políticas unilaterais do governo dos Estados Unidos e forçar uma mudança positiva. Cidadãos de Estados europeus possuem as suas próprias obrigações para com seus Estados e políticas da União Européia. Em lugar de depositar na Europa o papel de jogador central nas políticas globais, porém, creio que o projeto progressivo deveria ser, na frase de Dipesh Chakabarty, provincializar a Europa (como também os Estados Unidos). Indivíduos de todas as partes do globo, especialmente daquelas partes cujas pessoas são, na maioria, excluídas e dominadas pelos movimentos de capital conduzidos por norte-americanos e europeus, deveriam poder participar desse processo em condições de igualdade, ter o reconhecimento das suas particularidades e trabalhar juntos nas soluções dos problemas globais. Os fóruns propostos por Habermas para a Europa poderiam mostrar a sua influência contra a perigosa visão unilateral imposta atualmente pela política externa norte-americana e que tende a privilegiar o Norte global e dominar o Sul global. A estrutura do Conselho de Segurança das Nações Unidas privilegia os cinco países sócios permanentes. As constituições do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial dão mais poder e influência aos países ricos do que aos pobres que a eles recorrem. Muitos povos do Hemisfério Sul sofrem as conseqüências de uma esmagadora dívida externa e a coerção microeconômica impostas por algumas dessas instituições internacionais, em nome da responsabilidade fiscal e da estabilização de mercados em moeda corrente. Um projeto destinado à ampliação da democracia cosmopolita não deveria perguntar-se sobre como reformar ou abolir tais instituições? As desigualdades globais não são apenas um legado do colonialismo, mas também resultado de processos estruturais contínuos, que diariamente ampliam a abertura entre aqueles que nada têm e os que vivem com abundância e privilégios. Enquanto até mesmo o país mais pobre

Impulso, Piracicaba, 14(35): 113-118, 2003

tem as pessoas mais ricas, e países com recursos abundantes têm pessoas pobres, a maioria que pode ter acesso a recursos e conforto como modo de vida mora no Norte das Américas e da Europa. Sem dúvida, os países europeus realizam a justiça social melhor que os Estados Unidos, ao prover transferências significativas de recursos para reparar desigualdades. Porém, mesmo essa generosidade da Europa quanto à transferência de recursos tem um impacto minimamente considerável e, como no caso dos Estados Unidos, suas contribuições ao exterior vêm diminuindo desde 1990. Os privilégios de riqueza, ordem social, direitos de consumidor, infra-estrutura bem desenvolvida, capacidade para financiar a atividade de governo e cultura da solidariedade colocam os Estados e cidadãos europeus em boa posição para assumir a liderança de um projeto tendo em vista o fortalecimento do direito internacional e à resolução pacífica de conflitos, além da instituição de mecanismos para a redistribuição da riqueza global. Certamente, eles deveriam exercer sua influência para pressionar, constranger e encorajar os Estados Unidos e seus cidadãos a integrar tal projeto. Porém, não estaremos dando nenhum passo em direção à democracia cosmopolita, se os vários outros povos do mundo não tiverem assentos influentes na mesa de negociações, ao lado dos poderosos e responsáveis pela pobreza e pela possibilidade de influenciar, de fato, a situação em regiões menos afluentes. O fim de semana de 15 de fevereiro de 2003 sinalizou uma esfera pública global existente antes desse tempo e que persistiu. Muitos europeus e estadunidenses que participam da sociedade civil global tiveram de olhar para os ativistas em países como Brasil, Quênia, Índia ou Sri Lanka para buscar sua perspicácia e liderança. Uma política externa européia democrática deveria abrir mão de pretender ocupar o centro e escutar, mais além desse centro vazio, a essas e a outras vozes do Sul, sentando-se com elas em um verdadeiro círculo de igualdade.

117

002176_Impulso_35.book Page 118 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Dados da autora Professora no Departamento de Ciência Política na University of Chicago, se dedica à pesquisa sobre filosofia política e estudos de gênero. Entre outras obras, publicou Justice and the Politics of Difference (Princeton University Press, 1990), Intersecting Voices: dilemmas of gender, political philosophy, and policy (Princeton University Press, 1997) e Inclusion and Democracy (Oxford University Press, 2000). Recebimento artigo: 10/set./03 Consultoria: 11/set./03 a 22/set./03 Aprovado: 23/set./03

118

Impulso, Piracicaba, 14(35): 113-118, 2003

002176_Impulso_35.book Page 119 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Sobre a Guerra, a Paz e o Papel da Europa. Entrevista com Jürgen Habermas* ON WAR, PEACE, AND EUROPE'S ROLE. INTERVIEW WITH JÜRGEN HABERMAS

E

duardo Mendieta – Professor Habermas, deixe-me iniciar congratulando-o pelo Prêmio espanhol Príncipe das Asturias e também pela Medalha de Ouro da Fundação Madrilenha de Belas Artes. O senhor deve ter pegado muitos espanhóis de surpresa, os quais, assim como eu, não conheciam sua admiração por Miguel de Unamuno e Miguel de Cervantes, autores espanhóis apaixonadamente existencialistas. Jürgen Habermas – Essa admiração vem desde a minha época de escola e de universidade. Naquele momento, logo após a Segunda Guerra Mundial, o que dominava nosso ambiente eram as peças literárias de franceses como Sartre, Mauriac e Claudel, executadas nos teatros de porão – o existencialismo permitiu a expressão de nosso sentimento de vida. Um livro do filósofo de Tübingen, Friedrich Bollnow (que, aliás, também completaria 100 anos de idade em 2003, assim como Adorno), me chamou atenção, naquele momento, para o “Don Quixote” de Unamuno. De modo semelhante, também fui levado na direção de Kierkegaard, do Schelling tardio e do Heidegger à época de Ser e Tempo. O fato de eu logo haver me distanciado da perspectiva do Ser e me voltado, de modo mais enfático, para questões relativas às teorias sociais, políticas e jurídicas tem uma razão simples: em um país, a República Federal da Alemanha, que se encontrava mental e moralmente desacreditado e tratava de lidar com o que Jaspers denominou situações-limite [Grenzsituationen], era mais pertinente valer-se e discutir nos termos da linguagem de Marx e Dewey do que ter de se debater com o jargão da autenticidade.

*Entrevista finalizada em dezembro de 2003 e traduzida do alemão por AMÓS NASCIMENTO (UNIMEP).

Impulso, Piracicaba, 14(35): 119-135, 2003

119

JÜRGEN HABERMAS Universität Frankfurt a.M., Frankfurt/Alemanha EDUARDO MENDIETA State University of New York at Stony Brook, Nova York/EUA [email protected]

002176_Impulso_35.book Page 120 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Mendieta – Para voltar à oportunidade do Prêmio recebido recentemente, poderia nos dizer algo sobre o fato de que, entre os demais homenageados, também estavam Susan Sontag, Gustavo Gutierrez e o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva – ou seja, figuras inequivocamente da esquerda e que se expressaram em alto e bom tom contra a Guerra no Iraque? Habermas – Esse prêmio desfruta de uma publicidade surpreendente no âmbito de fala hispânica. Quando se reflete um pouco, essa coincidência pode ser mais do que um acaso. Na Espanha, de qualquer maneira, os protestos nas ruas contra a política de Aznar e seu apoio à Guerra no Iraque foram ainda mais imponentes do que nos demais países europeus. Mendieta – O senhor também foi muito crítico das guerras conduzidas pelos EUA no Afeganistão e no Iraque. Mas durante a crise no Kosovo, apoiou o mesmo unilateralismo e justificou uma forma de humanismo militar, para usar a expressão de Chomsky. Como se pode diferenciar esses casos – o Iraque e Afeganistão, de um lado, e Kosovo, de outro? Habermas – Sobre a intervenção no Afeganistão, expressei-me de modo bastante reservado, em uma entrevista com Giovanna Borradori. Depois de 11 de setembro, o governo Taliban se recusou veementemente a retirar o seu apoio ao terrorismo da Al Qaeda. Até então, o direito internacional não havia perpassado tais situações. As objeções que levantei naquele momento não eram, porém, de natureza legal, como o foram no caso da campanha no Iraque. Independentemente das manobras e mentiras utilizadas pelo governo atual dos Estados Unidos a partir de setembro de 2002, reveladas nesse meio tempo, essa última Guerra no Golfo era uma óbvia oposição de Bush às Nações Unidas, bem como uma ameaça pública e um desrespeito ao direito internacional. Nenhum dos dois possíveis fatos justificáveis, os quais legitimariam uma intervenção, poderia ser observado naquele momento: nem uma correspondente resolução do Conselho de Segurança da ONU, nem um ataque ou invasão iminente por

120

parte do Iraque. E isso tem sua validade, independentemente do fato de se encontrar ou não armas de destruição em massa – atômicas, biológicas e químicas – no Iraque. Não existe nenhuma justificação para algo como um ataque preventivo: ninguém pode iniciar guerras com base em suspeitas. Aqui se vê o contraste com a situação no Kosovo, quando o Ocidente se viu forçado a decidir, sobretudo depois das experiências acumuladas na Guerra da Bósnia – pensemos aqui no desastre de Sebrenica! –, se assistiria mais uma vez a outro processo de limpeza étnica por parte de Milosevic ou se faria uma intervenção – sem que tivesse, nesse caso, ao menos aparentemente, interesses particulares para tanto. De fato, o Conselho de Segurança ficou bloqueado. Ainda assim, havia duas razões legitimando a intervenção, uma formal e outra informal, mesmo que elas não pudessem necessariamente substituir o consentimento do Conselho de Segurança, como estabelecido na Carta da ONU. Por um lado, poder-se-ia apelar ao erga omnes – direcionado a todos os Estados – como ordem de apoio de emergência, no caso de um genocídio ameaçador, princípio esse que representa um sólido componente do direito internacional consuetudinário. Por outro, pode-se também pesar na balança a circunstância de que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) representa uma aliança de Estados liberais, cuja construção interna se apóia nos princípios da Declaração dos Direitos Humanos promulgada pela ONU. Basta comparar isso com a coalizão dos dispostos (Coalition of Willing), que levou à divisão do Ocidente e envolveu Estados que desrespeitam os direitos humanos, como o Uzbekistão e a Libéria de Taylor. Tão importante quanto esses fatos é a perspectiva de que os países da Europa continental, como França, Itália e Alemanha, justificaram sua participação na intervenção em Kosovo naquele momento. Na esperança de aprovação adicional pelo Conselho de Segurança, entenderam tal ação como antecipação de um direito cosmopolita efetivo, um passo partindo do direito internacional clássico em direção ao que Kant definira como

Impulso, Piracicaba, 14(35): 119-135, 2003

002176_Impulso_35.book Page 121 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

condição cosmopolita, a qual concederia também aos cidadãos de um Estado o direito de proteção com relação aos crimes de seu próprio governo. Já naquela época, em 29 de abril de 1999, em um artigo para o jornal Die Zeit, estabeleci uma diferença característica entre as duas iniciativas, a européia continental e a anglo-saxã: “Uma coisa é quando os EUA seguem os rastros de sua admirável tradição política e assumem, instrumentalizados nos direitos humanos, o papel de fiador hegemônico da ordem. Outra coisa é quando nós fazemos a transição ainda precária de uma clássica política de poder para uma condição cosmopolita (...) entendo-a como comum processo de aprendizagem a ser a administrado mutuamente. A perspectiva mais abrangente também requer uma precaução maior. A auto-autorização da NATO não pode se transformar em regra”.1 Mendieta – Em 31 de maio de 2003, o senhor e Jacques Derrida publicaram um tipo de manifesto com o título “O 15 de fevereiro ou: o que une os europeus – defesa de uma política internacional comum – primeiro no Núcleo-Europa”. No prefácio, Derrida explica que assinou o artigo escrito pelo senhor. Como é que dois dos mais importantes pensadores atuais – que se olharam com suspeita durante as duas últimas décadas, consideraram de forma cautelosa o que um ou o outro fazia mais além da outra margem do Reno, e têm sido vistos por muitos como totalmente distintos e não compreendidos um pelo outro –, de repente, se entendem e decidem publicar juntos um documento tão importante? Isso é simplesmente uma questão política ou o texto assinado em conjunto é também um gesto filosófico? Uma suspensão, um cessarfogo, uma reconciliação, um presente filosófico? Habermas – Não tenho qualquer idéia sobre como Derrida responderia a essa pergunta. Para o meu gosto, você exagera um pouco na importância do assunto com tais formulações. Primeiro, é claro que se trata de um posicionamento político, com o qual Derrida e eu concordamos, o que, aliás, tem ocorrido freqüentemente nos úl1

HABERMAS, J. Die Zeit, 29/abr./99.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 119-135, 2003

timos anos. Depois do encerramento formal da Guerra no Iraque, quando muitos temiam que os governos pouco dispostos a colaborar com Bush se ajoelhariam perante ele, eu e Derrida – assim como Eco, Muschg, Rorty, Savater e Vattimo – fomos convidados por carta a nos envolver em uma iniciativa relativa ao tema (Paul Ricoeur foi o único que não participou, apoiado em considerações políticas, ao passo que Eric Hobsbawm e Harry Mulisch não puderam fazê-lo por razões pessoais). Derrida não estava em condições de escrever seu próprio artigo, pelo fato de estar passando por uma série de exames médicos, um tanto desconfortáveis, naquele momento. Mas gostaria de estar envolvido com a idéia e me propôs o procedimento, que colocamos em prática. Eu fiquei bastante contente com isso. Havíamos nos encontrado, pela última vez, em 11 de setembro de 2002, em Nova York. Já tínhamos retomado nosso diálogo filosófico havia alguns anos e nos encontrado em Evanston, Paris e Frankfurt. Portanto, não há necessidade de nenhum grande gesto agora. Na ocasião em que recebeu o Prêmio Adorno, Derrida fez um discurso altamente sensível na Paulskirche, em Frankfurt, manifestando de modo bastante impressionante a relação de similaridade, no que diz respeito à mentalidade, entre ele e Adorno. Algo assim não deixa ninguém intato. Mais além de aspectos políticos, é a referência filosófica a um autor como Kant que me conecta com Derrida. O que nos separa, porém, é o Heidegger tardio – já que temos aproximadamente a mesma idade, mas histórias de vida bem distintas como pano de fundo. Derrida se apropria do pensamento de Heidegger inspirado na visão judaica de um Levinas. Eu me deparei com Heidegger como um filósofo que falhou e silenciou como cidadão – em 1933 e, acima de tudo, depois de 1945 –, mas também como filósofo que se tornou suspeito a mim, já que, nos anos 30, absorveu o pensamento de Nietzsche exatamente como os novos gentios (Neuheiden) que, como ele, estavam em voga na época. Diferentemente de Derrida, que empresta à memória (Andenken) um caráter afeito ao espírito da tra-

121

002176_Impulso_35.book Page 122 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

dição monoteísta, considero a forma pervertida com que Heidegger pensou o Ser (Heideggers vermurkstes “Seinsdenken”) como nivelamento daquele limiar epocal da história da consciência humana, denominado por Jaspers de tempo axial (Achsenzeit). Segundo minha compreensão, Heidegger comete uma traição àquele momento de cesura, expresso de modo distinto tanto pelas palavras profético-despertadoras no Monte Sinai quanto pelo esclarecimento filosófico de Sócrates. Na medida em que Derrida e eu conseguimos entender mutuamente essas distintas motivações como pano de fundo, nossa diferença no que diz respeito às versões não significa, necessariamente, nenhuma divergência quanto aos fatos. De qualquer forma, cessar-fogo ou reconciliação provavelmente não são as expressões adequadas para caracterizar o contato amigável e aberto que mantemos. Mendieta – Por que o senhor deu o título “15 de fevereiro” ao texto, e não, como proporiam alguns americanos, “9 de setembro” ou “9 abril”? O 15 de fevereiro foi uma resposta histórica ao 9 de setembro – em vez das campanhas contra o Taliban e Saddam Hussein? Habermas – Esse é um número grande demais. A redação do jornal Frankfurt Allgemeinze Zeitung, aliás, publicou o artigo com a seguinte manchete: “Nossa renovação. Depois da guerra: o renascimento da Europa”, talvez querendo demonstrar e jogar com o significado das demonstrações ocorridas em 15 de fevereiro. A indicação dessa data deveria fazer lembrar as demonstrações maiores ocorridas em cidades como Londres, Madri e Barcelona, Roma, Berlim e Paris, ao fim da Segunda Guerra Mundial. Tais demonstrações não eram nenhuma resposta ao ataque de 11 de setembro, as quais levaram imediatamente a uma impressionante reação de solidariedade por parte dos europeus. Mas, pelo contrário, trouxeram a expressão da revolta furiosa e impotente de uma grande variedade de cidadãos, muitos dos quais nunca, até então, haviam participado de demonstrações nas ruas. O apelo dos que se opuseram à guerra voltava-se inequivoca-

122

mente contra as políticas mentirosas e inaceitáveis perante as leis internacionais, colocadas em prática por seus próprios governos ou por governos aliados. Não considero esse enorme protesto uma pequena amostra de antiamericanismo, do mesmo modo que, em outro momento, as manifestações contra a Guerra no Vietnã não o foram – somente com a triste diferença de que não pudemos nos aliar aos impressionantes protestos ocorridos, entre 1965 e 1970, nos Estados Unidos. Por isso, fiquei muito feliz quando meu amigo Richard Rorty espontaneamente tomou a iniciativa intelectual, de 31 de maio, de participar desse processo, ao escrever um artigo que, política e intelectualmente, foi o mais preciso entre todos os publicados sobre o tema. Mendieta – Continuando a questão referente ao título original do artigo, que conclama a uma política externa européia comum, incorporada primeiramente no Núcleo-Europa, ele sugere a existência de um centro e de uma periferia – algo que é insubstituível e algo que não é. Para alguns, essa expressão soou como um tímido eco da diferenciação feita por Rumsfeld entre a Europa velha e a Europa nova. Estou seguro de que, tanto para Derrida quanto para o senhor, a atribuição de tal semelhança e afinidade pode trazer dores de cabeça. Vocês lutaram vigorosamente em favor da constituição da União Européia, na qual tais gradações geopolíticas não têm lugar algum. O que o senhor quer dizer com Núcleo-Europa? Habermas – Núcleo-Europa é, em primeiro lugar, uma expressão técnica, introduzida pelos peritos em políticas internacionais do partido alemão União Democrática Cristã (Christiche Demokratische Union-CDU) Schäuble e Lamers nas discussões durante os anos 90, quando o processo de unificação européia tornou-se moroso, para fazer lembrar aquele momento em que seis dos iniciadores da Comunidade Européia haviam adquirido um papel pioneiro. Tanto naquela época como hoje em dia, tratava-se de realçar a França, os Estados do Benelux, a Itália e a Alemanha como a força motriz na fundação das instituições da União Européia. Enquanto isso, a decisão ofi-

Impulso, Piracicaba, 14(35): 119-135, 2003

002176_Impulso_35.book Page 123 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

cial tomada na cimeira dos chefes de Estado da União Européia, reunida em Nizza, optou até mesmo pela cooperação reforçada entre os membros individuais quanto a questões políticas específicas. Esse mecanismo é agora conhecido pelo nome de cooperação estruturada e foi adotado no esboço da Constituição Européia. Alemanha, França, Luxemburgo, Bélgica e, mais recentemente, a própria Grã-Bretanha fizeram uso dessa opção no plano comum para o estabelecimento das forças armadas européias. O governo dos EUA se utiliza admitidamente de considerável pressão sobre a Grã-Bretanha para tentar evitar a construção de quartel-general europeu, que seria apenas associado da NATO e nada mais. Nesse aspecto, o Núcleo-Europa já é uma realidade. Por outro lado, é claro que, nos dias de hoje, existem muitas associações com o que Rumsfeld e seus consortes propositadamente definem como uma Europa dividida e debilitada. A idéia de uma política internacional e de segurança desenvolvendo-se de modo comum no Núcleo-Europa, e ampliando-se para além dele, desperta medos, especialmente numa situação em que a União Européia torna-se dificilmente controlável, após a sua ampliação em direção ao Leste europeu – acima de tudo, quando se trata de países que, por razões históricas compreensíveis, lutam contra uma integração continuada. Muitos dos Estados-membros querem se agarrar a seus campos de ação política no âmbito nacional. Estão mais interessados no modo já existente de decisões intergovernamentais do que na consolidação de instituições supranacionais com decisões da maioria sobre campos políticos cada vez mais amplos. Assim, os países coligados, oriundos do Centro e do Leste europeu, estão mais preocupados com soberania nacional há pouco alcançada, ao passo que a Grã-Bretanha teme danificar a sua relação especial com os EUA. A política estadunidense de divisão encontrou dois ajudantes dispostos em Aznar e Blair. Essa afronta completa deparou-se com o que ficou conhecido na Europa como a linha de fratura, latente havia muito tempo, entre os integracionistas e seus oponentes. O Núcleo-Europa é uma

Impulso, Piracicaba, 14(35): 119-135, 2003

resposta a ambos – à desgastante disputa internoeuropéia relativa à finalidade do processo de unificação, totalmente independente da Guerra no Iraque, como também à corrente motivação externa que leva a esse contraste. As reações na palavra-chave Núcleo-Europa são ainda mais nervosas quanto mais se considera a pressão externa e a interna sobre essa questão. O unilateralismo hegemônico do governo dos EUA demanda virtualmente que a Europa finalmente aprenda a falar de política internacional a uma só voz. Mas em virtude do aprofundamento bloqueador representado pela União Européia, somente poderemos aprender a fazer isso quando dermos um passo inicial a partir do centro. França e Alemanha já adotaram freqüentemente esse papel no curso das últimas décadas. Dar continuidade, nesse caso, não significa necessariamente excluir. As portas estão francamente abertas a todos. A crítica severa, expressa acima de tudo pela Grã-Bretanha e pelos países do Centro e do Leste europeu à nossa iniciativa, pode também ser explicada por uma circunstância provocante, ou seja, de que o impulso para a tomada de posição em favor de uma política internacional e de segurança comum ao núcleo europeu deu-se num momento oportuno, quando, em toda a Europa, a grande maioria da população recusou uma participação européia nas aventuras de Bush no Iraque. Esse elemento provocante me ocorreu com a nossa iniciativa de 31 de maio. Infelizmente, não se desenvolveu nenhuma discussão fértil desde então. Mendieta – Nós sabemos claramente que os Estados Unidos também utilizaram o jogo entre a nova e a velha Europa para denotar a influência deles sobre a NATO. O futuro da União Européia está conectado mais a uma redução ou a um aumento do poder desse organismo internacional? A NATO pode ou deve ser substituída por alguma outra coisa? Habermas – Ela desempenhou um papel positivo durante a Guerra Fria e também posteriormente – mesmo quando se trata de evitar que uma saída unilateral, como a ocorrida no caso da

123

002176_Impulso_35.book Page 124 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

intervenção em Kosovo, não se repita periodicamente. Porém, a NATO não terá nenhum futuro, se for considerada não tanto como uma aliança com funções consultivas, mas, cada vez mais, o instrumento de uma política de poder internacional unilateral, voltada a interesses nacionais próprios. A força particular da NATO poderia consistir justamente no fato de ela não se esvaziar na função de um poderoso exército aliado, mas de seu poder e efetividade militar estarem conectados ao valor agregado (Mehrwert) de uma dupla legitimação. Vislumbro uma justificativa de sua existência somente como uma aliança de Estados indubitavelmente liberais, podendo atuar apenas se estiver declaradamente de acordo com a política de direitos humanos das Nações Unidas. Mendieta – “Os americanos são de Marte e os europeus, de Vênus”, afirma Robert Kagan, num ensaio que recebeu muita atenção por parte dos discípulos neoconservadores de Strauss e de membros do governo Bush. Pode-se entender esse ensaio, que originalmente deveria ser intitulado “Poder e fraqueza”, até mesmo como o manifesto então trabalhado por Bush para desenvolver sua doutrina da segurança. Kagan distingue os americanos dos europeus, caracterizando os primeiros como hobbesianos e os segundos como kantianos. Os europeus entraram realmente no paraíso pós-moderno kantiano de uma paz perpétua, ao passo que os americanos permanecem do lado de fora no mundo do poder político, de cunho hobbesiano, para poder atuar como guardas das muralhas que não podem ser defendidas por europeus, os quais somente se aproveitam das benesses disponíveis? Habermas – A comparação filosófica não leva muito longe. Kant foi, em certo sentido, um discípulo leal de Hobbes; de qualquer modo, descreveu o modo compulsório como o direito moderno se impõe e o caráter de dominação do Estado de forma tão sombria quanto o fez Hobbes. No que se refere à maneira de um curto-circuito exagerado como Kagan tenta conectar esses dois pólos, ao relacionar tradições filosóficas, de um lado, e mentalidades nacionais e políticas, de outro, é melhor que a deixemos de lado. As diferen-

124

ças de mentalidade, que alguém estaria tentado a determinar valendo-se de uma tomada de distância entre anglo-saxões e europeus continentais, refletem experiências históricas de longo prazo, mas não vejo nenhuma relação entre elas e as mudanças político-estratégicas de curto prazo ocorridas atualmente. Na tentativa de separar os lobos das ovelhas, Kagan recorre, porém, a alguns fatos: o reinado de terror dos nazis apenas foi superado pelo uso de força militar e, enfim, pela intervenção dos EUA. Durante a Guerra Fria, os europeus somente conseguiram garantir o desenvolvimento e a reforma do Estado de bem-estar social por conta da proteção atômica dos EUA. Na Europa, e especialmente nas populações das classes médias mais abastadas, espalharam-se as convicções de caráter pacifista. Enquanto isso, os países europeus apenas poderiam se opor ao poderio militar estadunidense por meio de palavras vazias, já que dispunham de um orçamento comparativamente pequeno e de forças armadas mal equipadas para qualquer confronto. Por tudo isso, a interpretação caricaturesca, feita por Kagan, desses fatos leva-me ao seguinte comentário: • a vitória por sobre a Alemanha nazista também se deu em razão das lutas e grandes perdas do Exército Vermelho; • constituição social e peso econômico são fatores relativos a um poder brando e não-militar, que dão aos europeus uma influência no equilíbrio de forças globais, o qual não deve ser subestimado; • hoje em dia, na Alemanha, também como conseqüência de uma reeducação promovida pelos Estados Unidos, domina um pacifismo sempre bem-vindo, que, entretanto, não impediu a República Federal da Alemanha de participar de intervenções lideradas pela ONU em regiões como Bósnia, Kosovo, Macedônia, Afeganistão e, finalmente, de se envolver no oeste da África; • e são os próprios EUA que pretendem se contrapor aos planos de construção de

Impulso, Piracicaba, 14(35): 119-135, 2003

002176_Impulso_35.book Page 125 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

uma força européia independente da NATO. Com essa troca de acusações, porém, não nos colocamos no nível correto de um debate. O que considero incorreto é a forma unilateral um tanto estilizada da qual Kagan caracteriza a política dos EUA no século passado. A luta entre o realismo e o idealismo em políticas internacionais e de segurança não se dá necessariamente entre os continentes, mas no interior da própria política estadunidense. Sem dúvida, a divisão bipolar da estrutura do poder mundial, entre 1945 e 1989, levou a uma política de equilíbrio fundada no poder de aterrorizar. Durante a Guerra Fria, a competição entre os dois sistemas de armas nucleares constituiu o pano de fundo para Washington impor uma crescente influência da escola realista nas relações internacionais. Mas não podemos esquecer nem o impulso dado pelo presidente Wilson, após a Primeira Guerra Mundial, à fundação da Liga das Nações, nem a influência dos advogados e políticos americanos depois da retirada do governo estadunidense da Liga das Nações, em Paris. Sem os EUA, não se chegaria ao Pacto BriandKellog, ou seja, à primeira iniciativa de direito internacional proscrevendo as guerras por razões unilaterais. Acima de tudo, porém, as políticas do vencedor introduzidas por Franklin D. Roosevelt, em 1945, atrapalham o quadro beligerante que Kagan deseja pintar como o único papel dos EUA. Em seu discurso não realizado, o Undelivered Jefferson Day Address, de 11 de abril de 1945, Roosevelt exigiu que o mundo deve buscar não somente o fim da guerra, mas o fim do começo de toda e qualquer guerra. Nesse período, o governo estadunidense havia se assentado no topo do novo internacionalismo e tomado a iniciativa de fundar as Nações Unidas, em São Francisco. Os EUA foram a força motriz por trás da ONU, que, não por mera casualidade, tem sua sede em Nova York. Eles foram responsáveis por trazer à vida as primeiras convenções internacionais em defesa dos direitos humanos, lutaram para garantir a supervisão global, e também a prossecução judicial e militar dos que desrespeitassem tais direitos, e le-

Impulso, Piracicaba, 14(35): 119-135, 2003

varam os europeus, primeiro contra a resistência dos franceses, a aceitar a idéia de uma unificação política da Europa. Esse período de um internacionalismo sem precedentes causou uma onda de inovações no direito internacional nas décadas seguintes, iniciativas admitidamente bloqueadas durante a Guerra Fria, mas, ainda assim, parcialmente realizadas após 1989. Naquele momento, a única superpotência que restara ainda não tinha se decidido entre duas possibilidades: se voltaria a exercer seu papel de liderança, no sentido de levar ao caminho de uma ordem mundial cosmopolita, ou se assumiria o papel de um poder hegemônico imperial, que se pretende mais além do direito internacional. George Bush, pai do presidente atual, teve outra visão da ordem mundial, embora de forma vaga, que as esboçadas por seu filho. A ação unilateral do governo atual e a reputação de seus influentes membros e conselheiros neoconservadores têm, certamente, alguns precedentes, como a recusa em assinar o Protocolo de Kyoto, o acordo para a não proliferação de armas atômicas, biológicas e químicas, a Convenção das Minas Explosivas e o protocolo relativo às chamadas crianças-soldado, entre outros. Mas Kagan sugere uma falsa continuidade. A negação definitiva do internacionalismo permaneceu sob reservas para o recém-eleito governo de Bush: a recusa em aceitar a Corte Criminal Internacional já não poderia ser mais vista como uma ofensa de cavaleiro. No entanto, a marginalização ofensiva das Nações Unidas, assim como o desprezo indelicado ao direito internacional, do modo com que esse governo deixa transcorrer, não devem ser considerados como expressões consistentes de algo que valha como constante na política internacional estadunidense. Esse governo, que perdeu obviamente de vista a sua meta declarada de dar maior atenção aos interesses nacionais internos, pode ser reeleito ou não. Por que, então, não separar essa administração já em 2004 daquela visão de governo que Kagan penaliza com mentiras? Mendieta – Nos Estados Unidos, a guerra contra o terrorismo transformou-se em uma guer-

125

002176_Impulso_35.book Page 126 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

ra contra liberdades civis e a infra-estrutura jurídica que torna possível uma cultura democrática viva foi contaminada. O Ato Patriótico, de Orwell, é uma autodestrutiva vitória pirrônica, na qual nós somos os perdedores junto com nossa democracia. Essa guerra contra o terrorismo chegou a afetar a Europa de maneira semelhante? Ou a experiência com o terrorismo dos anos 70 fez com que os europeus se tornassem imunes a uma desvalorização de liberdades civis, em favor de um Estado de segurança nacional? Habermas – Não creio que isso ocorra. Na República Federal da Alemanha, as reações ocorridas no outono de 1977 foram suficientemente histéricas. Além disso, nós conhecemos outro tipo de terrorismo nos dias de hoje. Eu não sei o que teria acontecido se as Torres Gêmeas tivessem desmoronado em Berlim ou em Frankfurt. É claro que, após as experiências de 11 de setembro, também fomos submetidos a pacotes de segurança, mas não na extensão estranguladora e de tamanha inconstitucionalidade como se vê nas regras surpreendentes impostas nos EUA, analisadas e atacadas pelo meu amigo Ronald Dworkin de modo inequívoco. Se há, nesse sentido, diferenças de mentalidade e práticas entre um lado e outro do Atlântico, eu as veria muito mais com relação ao pano de fundo de suas respectivas experiências históricas. Talvez o choque bastante compreensível resultante dos atentados de 11 de setembro por lá seja realmente maior do que poderia ocorrer em um país europeu acostumado com guerras – mas como ter certeza disso? Certamente, os êxtases patrióticos que se seguiram ao choque tiveram um caráter bem estadunidense. Mas eu buscaria a chave para entender as razões à restrição de direitos, por você mencionada – desrespeito à Convenção de Genebra, em Guantânamo, à criação do Ministério de Segurança Nacional (Department of Homeland Security) etc. –, em outras considerações. De fato, se vê a militarização da vida dentro e fora do país, a política belicista deixando-se contaminar pelos métodos dos presumidos oponentes e, com isso, a evidência do Estado hobbesiano no palco mundial, em que a globalização dos mercados pa-

126

rece forçar o elemento político completamente para a periferia. A população dos EUA politicamente esclarecida não teria respondido e aceitado nada disso com o aval da grande maioria, se o governo não houvesse reagido ao choque de 11 de setembro com pressão, propaganda inescrupulosa e exploração das incertezas de modo manipulador. Para um observador europeu e um gato escaldado como eu, a intimidação sistematicamente dirigida e a indoutrinação impressa nos meses de outubro e novembro de 2002, quando eu me encontrava em Chicago, incomodaram bastante. Essa não era mais a minha América. Meu pensamento político se alimenta dos ideais estadunidenses do final do século XVIII desde quando eu tinha 16 anos de idade, graças a à perspectiva de uma razoável política de reeducação (reeducationpolicy), implementada pela ocupação da Alemanha no pós-Guerra. Mendieta – Em sua conferência para a seção plenária do Congresso Mundial de Filosofia, ocorrido em 2003, em Istambul, o senhor disse que a segurança internacional é ameaçada atualmente de maneira nova, sob as condições da constelação pósnacional, por três lados: o terrorismo internacional, os Estados que desrespeitam as leis internacionais, e as novas guerras civis que originam Estados desintegrados. O terrorismo é algo contra o qual os Estados democráticos podem declarar uma guerra? Habermas – Democrático ou não, normalmente um Estado pode declarar guerra somente contra outros Estados, entendendo-se essa palavra num sentido preciso. Quando, por exemplo, um governo aplica sua força militar contra rebeldes, esse método nos faz lembrar uma guerra, mas tal iniciativa possui outra função – o Estado tem a prerrogativa de zelar pela ordem e pela paz, dentro de seus limites territoriais, quando os órgãos da polícia não estiverem em condições suficientes de fazê-lo. Apenas quando a tentativa de uma pacificação forçosa falha, e o próprio governo sucumbe à luta interna entre várias partes em conflito, é que se deve falar de guerra civil. Essa analogia lingüística com relação à guerra entre Estados é correta, porém, somente num sentido

Impulso, Piracicaba, 14(35): 119-135, 2003

002176_Impulso_35.book Page 127 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

– ao se tratar da dissolução da autoridade estatal e da desintegração do executivo, a simetria entre adversários políticos em disputa é similar ao caso normal de conflito bélico entre Estados. Não obstante, falta aqui o sujeito próprio das ações e negociações: a organização coercitiva do poder estatal. Perdoe-me por essa conceitualização pedante. Entretanto, no caso do terrorismo internacional, que atua mundialmente e se espalha por meio de células operacionais em grande parte descentralizadas e conectadas unicamente de modo solto, deparamo-nos com um novo fenômeno, que não devemos tentar assimilar apressadamente como algo simples e conhecido. Sharon e Putin podem se sentir encorajados por Bush, porque ele considera tais diferenças como farinha do mesmo saco. Como se Al Qaeda não fosse algo distinto da luta partidária por determinados territórios, como a levada a cabo por movimentos terroristas de independência ou de resistência na Irlanda do Norte, na Palestina, na Tchechenia etc. A Al Qaeda também difere do que se entende por grupos terroristas e grupos tribais mantidos por corruptos senhores da guerra, que atuam sobre as ruínas de processos frustrados de descolonização, além de ser algo diverso do governo criminoso de Estados que conduzem à guerra, a fim de promover limpezas étnicas e genocídios contra sua própria população ou, ainda, como no caso do regime Taliban, que apoiou o terrorismo mundial. Com a Guerra no Iraque, o governo dos EUA não apenas empreendeu uma tentativa ilegal, mas também incompetente de substituir a concepção de uma guerra assimétrica entre Estados pela assimetria entre um Estado de tecnologia altamente sofisticada e uma rede terrorista intangível, que, até então, atuava à base de facas e explosivos caseiros. As guerras entre Estados são assimétricas, quando um agressor objetiva não a vitória de forma convencional, mas a destruição de um regime, com base na presunção a priori do equilíbrio transparente de forças. Pensemos na movimentação de tropas ocorrida durante meses, ao longo das fronteiras do Iraque: não é preciso ser nenhum especialista em terrorismo para reconhecer que isso não destrói a in-

Impulso, Piracicaba, 14(35): 119-135, 2003

fra-estrutura de uma rede, as logísticas da Al Qaeda e as suas bases escondidas, nem afeta o ambiente no qual um grupo com essas características vive. Mendieta – Juristas defendem, com base no direito internacional clássico, a opinião de que o jus ad bellum traz consigo uma limitação inerente ao jus in bello. Já nos ordenamentos sobre as guerras entre países, elaborados de modo detalhado pela Corte Internacional de Haia, busca-se limitar a violência exercida sobre a sociedade civil e contra soldados prisioneiros de guerra, o meio-ambiente e a infra-estrutura da sociedade em questão. As regras da guerra também têm o objetivo de tornar possível um acordo de paz aceitável por todas as partes. Mas a disparidade monstruosa no equilíbrio da força tecnológica e militar entre os Estados Unidos e seus respectivos oponentes – no Afeganistão ou no Iraque – torna quase impossível aderir ao jus in bello. Os EUA não deveriam ser acusados e julgados pelos crimes de guerra que têm cometido de modo óbvio no Iraque, mesmo que em seu próprio território essas questões estejam sendo totalmente ignoradas pela população? Habermas – O Ministério de Defesa dos Estados Unidos estava, exatamente com relação a essa questão, orgulhosamente entusiasmado pela utilização de armas de precisão, que – presumidamente – iriam fazer com que as perdas na população civil fossem mantidas no menor nível possível. Porém, quando, em 10 de abril de 2003, se lê uma reportagem, na edição vespertina do New York Times, sobre as vítimas civis no Iraque, e nela o relato de uma regra segundo a qual Rumsfeld assume as mortes da população civil como meras casualidades, a alegação de que a população estaria protegida pela precisão das armas já não oferece nenhum consolo: “Os comandantes da aeronáutica deveriam se reportar ao secretário de Defesa, Donald L. Rumsfeld, e obter sua aprovação, caso qualquer ataque pudesse resultar em mortes de mais de 30 civis. Foram feitas mais de 50 propostas para operações desse tipo e todas elas foram aprovadas”.2 Não sei o que a Corte In2

New Yok Times, Nova York, 10/abr./03.

127

002176_Impulso_35.book Page 128 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

ternacional de Haia diria sobre esse acontecimento. Mas considerando as circunstâncias de que esse tribunal não é reconhecido pelos EUA, e de que o Conselho de Segurança da ONU não pode tomar nenhuma decisão contra um de seus membros com direito a veto, toda essa pergunta provavelmente deve ser feita de modo diferente. Estimativas conservadoras assumem já haver cerca de 20 mil iraquianos mortos. Esse número monstruoso, comparado com perdas ocorridas nas próprias frentes, jorra luz sobre a verdadeira obscenidade moral que experimentamos por meio das telas de televisão, com imagens selecionadas e até mesmo controladas tão cuidadosamente, revelando-nos essa guerra como um evento militar assimétrico. Essa assimetria das forças militares teria outro significado se refletisse não tanto a relação entre força superior e a impotência entre dois oponentes em uma guerra, e sim o poder de polícia de uma organização mundial. Às Nações Unidas é dada atualmente, segundo sua Carta, a função de garantir a manutenção da paz e da segurança internacional, bem como a implementação da proteção aos direitos humanos individuais. Se considerarmos de modo contrafactual a possibilidade de essa organização ter assumido mesmo tal função na situação atual, ela teria de cumpri-la unicamente sob a condição de dispor do poder de sanção não-seletiva contra os atores e Estados que desrespeitassem as regras, aplicando a intimidação por meio de sua superioridade. Nesse caso, a assimetria das forças teria tido outro caráter. A transformação infinitamente árdua e ainda improvável, levando a possíveis ações de caráter policial autorizadas pelo direito internacional, ao invés de guerras criminosas e seletivas, exige mais do que uma corte imparcial para decidir sobre as penas adequadas, necessárias a determinadas ofensas. Nós também precisamos aprimorar o jus in bello para transformá-lo num direito de intervenção, fazendo o direito penal no âmbito interno dos Estados nacionais funcionar de modo semelhante à ordenação da Corte de Haia, que, todavia, trata as ações de guerra, e não as formas civis de adscrição de penas ou do sistema pe-

128

nal. Graças ao fato de a vida de outros inocentes também estar em jogo, sempre no caso das intervenções humanitárias, a força necessária deveria ser regulada de maneira estreita para que ações ostensivas de uma polícia mundial percam o caráter de pretexto e, assim, ganhem aceitação mundial. Um bom teste são os sentimentos morais dos observadores globais – não para ver se formas de lamentos ou piedade tendem a desaparecer, e sim como testemunha da revolta espontânea perante algo obsceno, que muitos de nós sentimos ao assistir, durante semanas, os ataques de mísseis sob o céu iluminado em Bagdá. Mendieta – John Rawls vê a possibilidade de as democracias realizarem guerras justas contra estados criminosos (unlawful states). Mas o senhor vai ainda mais longe em seu argumento, afirmando que mesmo os Estados indubitavelmente democráticos não teriam o direito de decidir por suas próprias medidas e arbítrio sobre o início de uma guerra contra um Estado que fosse, presumidamente, déspota, ameaçador da paz ou criminoso. Em sua conferência, em Istambul, o senhor diz que os julgamentos imparciais nunca podem chegar a agradar um só lado. Por essa razão cognitiva, deve-se abandonar o unilateralismo de alguma parte que se afirme como a hegemonia da legitimidade, mesmo a mais bem-intencionada: “Essa falta não pode ser resolvida com a constituição democrática baseada no intento de uma hegemonia bondosa”. O jus ad bellum, que caracteriza o núcleo do direito internacional clássico, não se torna obsoleto também no caso de uma guerra justa? Habermas – O último livro de Rawls, Law of Peoples, já foi bastante criticado, e com razão, porque, em certo sentido, afrouxa os rígidos princípios da justiça, a serem satisfeitos pelos Estados democráticos constitucionais para que haja uma relação e um trânsito com Estados autoritários ou meio-autoritários, e põe a proteção desses preceitos reduzidos nas mãos de Estados democráticos específicos. Nesse contexto, Rawls cita, com aprovação, a doutrina de guerra justa proposta por Michael Walzer. Ambos consideram a justiça entre nações desejável e possível, mas se

Impulso, Piracicaba, 14(35): 119-135, 2003

002176_Impulso_35.book Page 129 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

contentam em deixar a execução e implementação da justiça internacional ao julgamento e à decisão de certos Estados soberanos. Com isso, Rawls parece pensar, assim como Kant, em uma vanguarda liberal da comunidade de Estados (Staatengemeinschaft), ao passo que Walzer considera que isso remete às nações envolvidas em cada caso, independentemente de suas respectivas constituições internas. Diferentemente do proposto por Rawls, a desconfiança de Walzer com relação aos procedimentos e às organizações supranacionais tem motivação em suas considerações comunitaristas. A proteção da integridade das formas de vida e do ethos de uma comunidade organizada de modo estatal deve ter prioridade por sobre a implementação global de abstratos princípios de justiça, contanto que isso não leve a genocídios e a crimes contra a humanidade. É mais fácil refletir e esclarecer a questão subjacente à concepção de Walzer do que considerar a defesa indiferente que Rawls fez do direito internacional. Desde o Pacto de Briand-Kellog, de 1928, as guerras de invasão estão proscritas do direito internacional. A aplicação de força militar só deveria ser permitida quando se trata da autodefesa. Assim, o jus ad bellum foi abolido, em sua compreensão segundo o direito internacional clássico. Mas como as instituições estabelecidas pela Liga das Nações, após a Primeira Guerra Mundial, foram consideradas muito débeis, depois da Segunda Guerra Mundial as Nações Unidas passaram a ser implementadas com a autoridade para realizar operações destinadas à manutenção da paz e para executar sanções, tendo pagado o preço de dar o direito a veto às grandes potências mundiais de então, de modo a obter a cooperação por parte delas. A Carta da ONU fixa a prioridade do direito internacional por sobre os sistemas jurídicos nacionais. A articulação da Carta com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e com a autoridade ampla desfrutada pelo Conselho de Segurança, segundo o capítulo VII, causou uma onda de inovações jurídicas, que, embora não utilizadas de modo efetivo até 1989, foram compreendidas corretamente como um processo de

Impulso, Piracicaba, 14(35): 119-135, 2003

constitucionalização do direito internacional (Konstitutionalisierung des Völkerrechts). A organização mundial, incluindo, nesse meio tempo, 192 Estados-membros, tem uma verdadeira constituição que fixa os procedimentos segundo os quais as infrações internacionais são determinadas e penalizadas. Desde então, não há mais nenhuma guerra justa ou injusta, apenas guerras legais ou ilegais, ou seja, guerras justificadas no direito internacional ou guerras sem justificação. É necessário ter em mente esse impulso da evolução do direito para poder reconhecer a ruptura radical impressa pelo governo Bush – tanto por meio de sua doutrina da segurança nacional, ignorando as condições prévias legais atuais para o propósito de qualquer intervenção com o uso de força militar, como também mediante seu ultimato ao Conselho de Segurança, para que abençoasse a política agressiva dos Estados Unidos com relação ao Iraque ou se tornasse inútil e sem sentido. No nível retórico da legitimação, não se tratava, de maneira alguma, de uma redenção realista das idéias idealistas. Ainda que Bush tivesse o interesse de alijar um sistema injusto e democratizar a região do Oriente Médio, os objetivos normativos ou prescritivos não estariam em desacordo com o programa das Nações Unidas. O que torna a sua iniciativa discutível não é a possibilidade de justiça entre nações, mas a maneira de implementá-la. De modo ad acta, e com apelos morais, o governo Bush descartou o velho projeto de regulamentação jurídica das relações internacionais (Verrechtlichung der internationalen Beziehungen), proposto há mais de 220 anos por Kant. O comportamento do governo estadunidense somente admite a conclusão de que, na sua concepção, o direito internacional, como meio para a solução de conflitos internacionais e para a implementação da democracia e dos direitos humanos, foi manipulado. Esses objetivos fazem com que a potência mundial afirme, pública e declaradamente, o conteúdo de uma política fundada não mais no direito, e sim em seus valores éticos e convicções morais particulares, impondo, assim, suas próprias justificativas normativas, ao

129

002176_Impulso_35.book Page 130 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

invés de seguir os procedimentos jurídicos. Porém, uma coisa não substitui a outra. A renúncia à utilização de argumentos jurídicos sempre significa uma desconsideração das normas gerais reconhecidas previamente. Partindo-se da visão limitada da própria cultura política e do próprio entendimento do mundo, mesmo o poder hegemônico bem-intencionado não pode sempre ter a certeza de que entende e leva em conta a situação e os interesses das demais partes do processo. Isso vale tanto para os cidadãos de uma superpotência fundada democraticamente quanto para os políticos que a governam. Sem a inclusão de ações legais contemplando todas as partes envolvidas e considerando as suas respectivas tomadas de posição, não se constrange a parte superior a deixar a perspectiva central de um grande império para se envolver pela descentralização de suas perspectivas de interpretação, como exige o ponto de vista cognitivo da apreciação de todos os interesses. Mesmo um poder ultramoderno como o dos EUA acaba caindo novamente no falso universalismo dos velhos impérios, quando substitui o direito positivo por moralidades e éticas, em questões relativas à justiça internacional. Na perspectiva de Bush, os “nossos” valores valem tanto quanto os universais, devendo ser aceitos da melhor maneira possível por todas as demais nações. O falso universalismo nada mais é do que uma ampliação do etnocentrismo. Não há nenhuma relação entre ele e uma teoria da guerra justa, derivada de tradições teológicas ou do direito natural, mesmo quando assume hoje o vestuário comunitarista. Não digo que as razões oficiais do governo estadunidense com a Guerra no Iraque ou as convicções religiosas expressas oficialmente pelo seu presidente sobre o bem e o mal cumpram os critérios estabelecidos por Walzer para justificar uma guerra justa. Como jornalista, Walzer não deixou nenhuma dúvida quanto à sua própria oposição. Mas como filósofo, ele define seus critérios, independentemente do fato de serem racionais ou não, com base unicamente em princípios morais e considerações éticas, e, portanto, não no marco de uma teoria do direito, que

130

relaciona o julgamento sobre guerra e paz com procedimentos imparciais de produção e aplicação de normas aceitáveis. Nesse contexto, interessa-me apenas uma conseqüência de tal posição: os critérios de julgamento sobre uma guerra justa não foram traduzidos no âmbito jurídico. Somente assim pode-se tratar de uma sempre controversa justiça material e verificar como as guerras podem ser julgadas em sua legalidade. Os critérios de Walzer para uma guerra justa são, mesmo quando encontrados no direito internacional habitual, de natureza essencialmente ético-política. Sua utilização em casos específicos escapa à verificação por tribunais internacionais de justiça, já que tais situações ficam sob a jurisdição da esperteza (Klugheit) e do senso comum de justiça de cada Estado nacional. Mas por que o julgamento imparcial de conflitos deveria ser salvaguardado apenas num Estado valendo-se dos meios legais? Por que sua validez não deveria ser aplicada também às disputas internacionais? Trata-se de algo trivial: quem deveria determinar, no plano supranacional, se os nossos valores realmente merecem o reconhecimento universal ou se nós verdadeiramente empregamos, de modo imparcial, os princípios reconhecidos universalmente? Isto é: se nós, de fato, não atuamos de modo seletivo numa situação discutível, ao invés de meramente considerar o que nos é relevante. Esse é o grande sentido dos procedimentos jurídicos inclusivos, os quais articulam as decisões supranacionais à condição da tomada de perspectiva envolvendo as distintas partes e seus interesses. Mendieta – Mas, para honrar o seu projeto kantiano, o senhor assume o papel de advogado de um humanismo militar? Habermas – Não sei o contexto exato dessa expressão, mas suspeito que ela aluda ao perigo de se tentar um reducionismo das oposições ao processo de moralização cultural (Moralisierung). Exatamente quando se trata do plano internacional, a demonização do lado oposto – pensemos no eixo do mal – não contribui em nada para a solução de conflitos. Hoje em dia, o fundamenta-

Impulso, Piracicaba, 14(35): 119-135, 2003

002176_Impulso_35.book Page 131 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

lismo cresce por todos os lados, tornando os conflitos insolúveis – no Iraque, em Israel e em outros lugares. Com esse argumento, incidentemente, Carl Schmitt também defendeu um conceito de guerra não-discriminatório durante toda a sua vida. O direito internacional clássico, de acordo com o argumento de Schmitt, considerava a guerra sem maiores necessidades de justificação como método legítimo para a solução de conflitos entre Estados, mas, com isso, servia, ao mesmo tempo, de importante precondição para a civilização de confrontações bélicas. Por sua vez, a criminalização dos ataques bélicos, que se dá a partir do Tratado de Versalhes, fez com que a própria guerra fosse vista como crime, causando uma dinâmica de desfronteirização de limites (Entgrenzung). Isso porque, assim, o oponente sentenciado moralmente transformava-se num inimigo a quem se devia aversão e se buscava destruir. Quando, nesse processo de moralização, as partes contrárias não se consideram mais merecedoras de respeito – justus hostis –, as guerras, até então restritas, se degeneram em guerras totais. Até mesmo quando a guerra total se volta logo para uma mobilização nacionalista em massa e para o desenvolvimento de armas atômicas, biológicas e químicas, de destruição em massa, não se pode dizer que tal argumento seja falso. Porém, isso referenda a minha tese de que a justiça entre as nações não pode ocorrer por meio de uma moralização, e sim pela regulamentação jurídica (Verrechtlichung) das relações internacionais. O julgamento discriminatório é contrário à paz somente quando uma das partes reivindica, com base em seus próprios padrões morais, o julgamento da outra como tendo cometido um crime. Não podemos confundir tal julgamento subjetivo com a condenação legal de um governo comprovadamente criminoso, por meio de um processo jurídico ocorrido diante dos foros e de uma comunidade supranacional constituída por Estados (Staatengemeinschaft). Tal procedimento amplia a proteção legal também para uma parte que, embora acusada, tem sua inocência validada até que se prove o contrário.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 119-135, 2003

A diferenciação entre moralização cultural e regulamentação jurídica das relações internacionais não teria, de forma alguma, agradado a Carl Schmitt, pois, para ele e seus contemporâneos fascistas, a luta existencial fundamental sobre a vida e a morte possuía uma aura decididamente vitalista. Por isso, Schmitt considera que a substância do político ou a auto-afirmação da identidade de um povo ou de um movimento não podem ser domesticadas normativamente, além de afirmar que cada tentativa de se domar algo juridicamente deve ser reagida de maneira selvagem, valendo-se da cultura moral. Se o pacifismo legal pudesse ter sucesso, ele nos roubaria o meio essencial para a renovação da autêntica existência. De qualquer modo, não precisamos nos deter mais sobre esse confuso conceito. O que devemos tratar, nesse ponto, é o emprego de uma suposta premissa realista, defendida por hobbesianos de esquerda e de direita: o direito, mesmo na forma moderna do Estado constitucional democrático, sempre é unicamente o reflexo e a máscara do poder econômico ou político. Sob essa condição prévia, o pacifismo legal, que quer estender o direito ao estado natural como condição para a relação entre os Estados, aparece como pura ilusão. De fato, o projeto de Kant objetivando uma constitucionalização (Konstitutionalisierung) do direito internacional se ressente de um idealismo sem ilusões. A forma do direito moderno tem, como tal, um núcleo moral que não dá margem a dúvidas, afirmandose e se fazendo notar a longo prazo como civilizador gentil (gentle civilizer, de Koskenniemi) – uma força suavemente civilizatória –, em que o meio jurídico é aplicado como um poder amoldado à constituição (eine verfassungsgestaltende Macht). De qualquer modo, o universalismo igualitário, inerente ao direito e a seus procedimentos, deixou rastos empiricamente verificáveis na realidade política e social do Ocidente. A idéia do tratamento igualitário, investido pelo direito tanto às pessoas quando aos Estados, somente pode ser vista como cumprindo uma função ideológica, quando entra em jogo, ao mesmo tempo, como

131

002176_Impulso_35.book Page 132 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

um padrão para a crítica da ideologia. Por isso, os movimentos de oposição e de emancipação, no mundo inteiro, utilizam atualmente o vocabulário dos direitos humanos. Mesmo quando a retórica dos direitos humanos se presta aos fins da opressão e da exclusão, tal abuso pode ter o seu antídoto ao se lançar mão dessas mesmas palavras. Mendieta – Justamente como um defensor incorrigível do projeto kantiano, o senhor deve ter ficado profundamente desapontado com as maquinações maquiavélicas que freqüentemente dominam a prática das Nações Unidas. O senhor mesmo já percebeu e discutiu a seletividade monstruosa com a qual se tratam casos que chegam ao Conselho de Segurança para que ele tome alguma iniciativa prática. O senhor fala da prioridade sem vergonha desfrutada pelos interesses nacionais diante das obrigações globais. Como as instituições das Nações Unidas devem ser alteradas e reformadas para que essa organização não seja mais vista como uma defensora dos interesses e objetivos unilaterais pró-ocidentais, e sim como uma ferramenta efetiva para a busca e a garantia da paz? Habermas – Esse é um tema amplo. Não se conclui tudo com as reformas institucionais. São importantes as ações como a composição do Conselho de Segurança proporcional à mudança nas circunstâncias e relações de poder atuais, discutida nos dias hoje, e a restrição ao direito de veto por parte dos grandes poderes. No entanto, elas não são suficientes. Deixe-me selecionar alguns pontos de vista sobre esse complexo, em que o todo não é muito transparente. A organização mundial apóia-se corretamente na inclusão completa. Ela é aberta a todos os Estados comprometidos com as formulações do texto da Carta e as declarações relativas ao direito internacional propostas pela ONU – independentemente da correspondente extensão da aplicação prática, de fato, desses princípios no âmbito doméstico. Considerada em relação às suas próprias bases prescritivas, existe – apesar da igualdade formal entre os membros – uma tendência comum quanto à legitimação, que une os liberais, os quase-autoritários e, às vezes, até mes-

132

mo os Estados despóticos membros da organização. Isso chama a atenção, por exemplo, quando um Estado como a Líbia assume a presidência do Comitê de Direitos Humanos. John Rawls teve o mérito de advertir sobre o problema fundamental da legitimação por níveis distintos. A vantagem na legitimação, a ser exercida pelos países democráticos, e no que Kant já havia colocado toda a sua esperança, não pode ser formalizada. Mas poderiam ser desenvolvidos hábitos e métodos que a levassem em conta. Desse mesmo ponto de vista, torna-se clara a necessidade de reforma do direito a veto dos membros permanentes do Conselho de Segurança. O problema mais urgente é, certamente, a limitação da ação de uma organização mundial, que não dispõe de nenhum monopólio de poder e necessita do apoio ad hoc de seus membros mais poderosos, sobretudo em casos de intervenção e processos de construção de nações. O problema não se dá, porém, na ausência do monopólio de poder e de força – a diferenciação entre o poder constitucional e o Poder Executivo também pode ser observada em outras situações, como na União Européia, em que o direito dela rompe com os direitos nacionais, ainda que os Estados nacionais possuam os métodos alojados para o exercício legítimo da força militar. Além de sua condição financeira subdimensionada, as Nações Unidas sofrem, acima de tudo, com a sua dependência de governos, que não apenas buscam os seus interesses nacionais, mas também dependem do voto e do consentimento de suas respectivas populações. Até que venham a ocorrer mudanças no nível sociocognitivo, já que, em sua autopercepção, os Estados-membros se entendem, desde sempre, como protagonistas soberanos, devemos refletir sobre como alcançar um desacoplamento relativo (relative Entkoppelung) dos níveis de decisão. Os Estados-membros poderiam, por exemplo, manter certos contingentes militares à disposição permanente da ONU, sem, no entanto, restringir seus direitos nacionais de manter suas próprias forças armadas. De modo realista, contudo, a meta ambiciosa de uma política internacional integrada, sem

Impulso, Piracicaba, 14(35): 119-135, 2003

002176_Impulso_35.book Page 133 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

governo mundial, apenas pode ser pensada, como projeto, sob a condição de que a organização mundial se limite a suas duas funções mais importantes – a manutenção da paz e a implementação global dos direitos humanos –, deixando a outros sistemas e instituições de negociação, de nível intermediário, a coordenação política nas áreas da economia, meio-ambiente, transporte, saúde e outras. Porém, no momento atual, esse nível de global players capazes de atuar politicamente e negociar entre si para chegar a acordos só pode ser ocupado por algumas instituições, como a Organização Mundial do Comércio. Uma simples reforma bem-sucedida das Nações Unidas não causaria nada se os Estados-nação não se unissem, em cada continente distinto, em regimes continentais segundo o modelo da União Européia. Para isso, existem atualmente algumas iniciativas modestas. É aqui, e não na reforma da ONU, que se dá o elemento utópico de uma condição cosmopolita. Sobre a base de uma divisão de trabalho no interior de um sistema global com seus vários níveis, poder-se-ia cobrir, de modo parcialmente democrático, a demanda por legitimação necessária a uma ONU decididamente capaz de ações eficientes. Em outras palavras, uma esfera pública global como essa que se deu, pelo menos até agora, apenas em ocasiões de grandes eventos históricos mundiais, como o 11 de setembro. Graças às mídias eletrônicas e aos sucessos surpreendentes de organizações não-governamentais com operações mundiais, entre elas, a Anistia Internacional e a Human Rights Watch, é possível, porém, constituir uma infra-estrutura mais sólida da esfera pública, que um dia poderá ganhar maior continuidade. Sob tais circunstâncias, não estaria tão longe o dia em que seja realidade a idéia de se estabelecer um Parlamento da Cidadania Global ao lado da segunda câmara da Assembléia Geral das Nações Unidas ou, ao menos, acrescentar uma representação dos cidadãos à já existente câmara de representantes dos Estados. Com iniciativas desse tipo, a evolução do direito internacional, que já vem ocorrendo há muito, teria sua expressão simbólica e uma correspondente amarra-

Impulso, Piracicaba, 14(35): 119-135, 2003

ção institucional. Porque nesse ínterim, não somente os Estados, mas também os próprios cidadãos transformaram-se em sujeitos do direito internacional: como cidadãos cosmopolitas, todos também podem clamar por seus direitos, fazendo-os valer, se necessário, até mesmo contra seus próprios governos. Decerto o pensamento sobre a idéia abstrata de um parlamento cosmopolita causará fraudes fáceis. Mas, considerando as funções limitadas das Nações Unidas, devemos ter em conta que os deputados desse parlamento representariam populações não necessariamente interconectadas por meio de densas tradições, como se dá com os cidadãos de uma comunidade política. Em vez da solidariedade cívica, bastaria um acordo negativo, isto é, a revolta comum contra iniciativas de guerra e o desrespeito aos direitos humanos por parte de grupos criminosos e governos, ou mesmo o horror comum com relação aos processos de limpeza étnica e genocídios. Porém, as resistências e recaídas a serem superadas no caminho de uma constitucionalização completa são tão grandes que o projeto só terá sucesso quando os EUA se colocarem novamente, como em 1945, na condição de locomotiva à frente desse movimento. Isso não é tão improvável como talvez pareça no atual momento. Por um lado, trata-se de um golpe de sorte da história mundial que a única superpotência seja, ao mesmo tempo, a democracia mais antiga na Terra e, por isso, diferentemente do que Kagan nos quer fazer crer, apresenta afinidades, de fato e desde sempre, com a idéia kantiana de regulamentação jurídica das relações internacionais. Por outro lado, é do próprio interesse dos Estados Unidos fazer com que a ONU se torne capaz e efetiva, antes que outra grande potência, menos democrática, transforme-se numa superpotência. Os impérios vêm e vão. Finalmente, a União Européia chegou há pouco a um acordo quanto aos princípios de uma política de segurança e defesa internacionais (Sicherheits- und Verteidigungspolitik) em oposição ao ataque antecipado (pre-emptive strike) e propôs o engajamento preventivo (preventive engagement), tornando-se, com isso, ca-

133

002176_Impulso_35.book Page 134 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

paz de influenciar a formação da opinião na esfera pública política de seus aliados americanos. Mendieta – O desprezo do governo dos EUA pelo direito internacional e pelos pactos internacionais, o seu uso brutal da força militar e sua política da mentira e da extorsão levaram a um antiamericanismo não injustificado, pelo menos quando aplicável ao presente governo dos Estados Unidos. Como a Europa deveria tratar esse sentimento generalizado e tentar prevenir que o antiamericanismo mundial se degenere em ódio contra o Ocidente? Habermas – O antiamericanismo é um perigo na própria Europa. Na Alemanha, ele sempre se uniu com os movimentos mais reacionários. Então, é importante para nós, como na época da Guerra do Vietnã, poder fazer frente às políticas do governo americano lado a lado com uma oposição interna dos próprios americanos a seu governo. Se pudermos nos relacionar com um movimento de protesto dentro dos Estados Unidos, a acusação contraprodutiva de um antiamericanismo aqui encontrada seria nula. Outra coisa é a emoção antimodernista contra o mundo ocidental. Nesse sentido, carece implementar uma defesa autocrítica das realizações da era moderna ocidental, mas, ao mesmo tempo, sinalizando a franqueza e a abertura para aprender, dissolvendo, acima de tudo, a identificação idiota da ordem democrática e da sociedade liberal com o capitalismo selvagem. Devemos, por um lado, estabelecer um limite inequívoco com relação ao fundamentalismo, inclusive com o cristão e o judeu, e, por outro, reconhecê-lo também como fruto de uma modernização desarraigadora (einer entwurzelnden Morenisierung), em cujo desenvolvimen-

to os disparates de nossa história colonial e a descolonização frustrada desempenharam papel crucial. Em oposição às estupidezes fundamentalistas, podemos sempre colocar claramente que, afinal de contas, a crítica justificável ao Ocidente se apóia nos padrões dos discursos desenvolvidos ao longo de dois séculos de autocrítica ocidental. Mendieta – Recentemente, foram praticamente rasgados dois planos políticos desde os impulsos oriundos da guerra e do terrorismo: o chamado “roteiro de percurso” (roadmap), que levaria à paz entre israelenses e palestinos, e o cenário imperialista de Cheney, Rumsfeld, Rice e Bush. O script para o conflito em Israel deveria ter sido escrito junto com um programa para a reconstrução de todo o Oriente Médio. Mas as políticas dos Estados Unidos amalgamaram o antiamericanismo com o anti-semitismo. Nos dias de hoje, o antiamericanismo se aproxima de velhas formas de um anti-semitismo assassino. Como se pode desativar essa bomba com uma mistura explosiva? Habermas – Esse é um problema especialmente na Alemanha, onde atualmente as eclusas se abrem para um contato narcisista com as suas próprias vítimas, depois de certa censura, imposta ao longo de décadas, tanto às conversas informais (Stammtische) quanto à opinião oficial sobre o assunto. Mas essa mistura, que você descreve corretamente, nós somente conseguiremos colocar em acordo, se tivermos sucesso em separar convincentemente a questão da crítica legítima à visão fatal de Bush sobre a ordem mundial dos exageros de ações antiamericanas. Assim que a outra América possa ser vista em contornos visíveis, a base que serve para acobertar o anti-semitismo também cederá. Dados do entrevistado

Professor doutor emeritus da Universidade de Frankfurt, o filósofo alemão JÜRGEN HABERMAS é o maior representante da teoria crítica da sociedade. Entre seus títulos mais significativos, traduzidos ao português, encontram-se Conhecimento e Interesse, Direito e Democracia e A Inclusão do Outro. Sua obra mais importante é Theorie des kommunikativen Handelns (1981), ainda não publicada no Brasil. Em 2003 recebeu, juntamente com o presidente Luís Inácio “Lula” da Silva, o Prêmio Príncipe de Asturias, na Espanha.

134

Impulso, Piracicaba, 14(35): 119-135, 2003

002176_Impulso_35.book Page 135 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Dados do entrevistador EDUARDO MENDIETA estudou filosofia com Jürgen Habermas em Frankfurt, havendo traduzido e editado textos de Habermas, Karl-Otto Apel, Enrique Dussel e de vários outros autores em inglês. Entre suas recentes publicações encontram-se The Adventures of Transcendental Philosophy. Karl-Otto Apel‘s Semiotics and Discourse Ethics (Rowman & Littlefield, 2002), Religion and Rationality. Essays on Reason e God and Modernity (MIT Press, 2002), além de vários artigos sobre teoria crítica e globalização. Recebimento artigo: 11/set./03 Consultoria: 12/set./03 a 22/set./03 Aprovado: 23/set./03.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 119-135, 2003

135

002176_Impulso_35.book Page 136 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

136

Impulso, Piracicaba, 14(35): 119-135, 2003

002176_Impulso_35.book Page 137 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Resenhas & Impressões Reviews & Impressions Impulso, Piracicaba, 14(35): 119-135, 2003

137

002176_Impulso_35.book Page 138 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

138

Impulso, Piracicaba, 14(35): 119-135, 2003

002176_Impulso_35.book Page 139 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Une Histoire du Racisme, des origines à nos jours, de Christian Delacampagne Paris: Librairie Générale Française, 2000 288p. ISBN 2-253-90575-5

C

hristian Delacampagne, filósofo francês e estudioso das letras, professor em universidades americanas, é bem conhecido do público brasileiro por sua História da Filosofia no Século XX (Rio de Janeiro, Zahar, 1997) e por A Filosofia Política Hoje (Rio de Janeiro, Zahar, 2001), ambos bastante utilizados nos cursos de filosofia e de ciências humanas, em geral. Seu doutoramento, publicado em 1983, tornou-se um clássico sobre a Invenção do Racismo: Antigüidade e Idade Média. Este novo volume condensa suas reflexões sobre o racismo, desde seus começos, até a atualidade, num esforço de fôlego que merece ser lido com atenção, a começar por sua definição mesma do racismo: “o racismo é o ódio do outro enquanto outro. O ódio do negro porque negro, do policial porque policial, do homossexual porque homossexual” (p. 12). Distingue o racismo do etnocentrismo e da xenofobia, pois, em teoria, um indivíduo pode mudar de categoria e evitar tais discriminações, ao passo que o racismo impossibilita tal mudança. Embora não haja fundamento para as definições racistas, pois não se baseiam em qualquer critério objetivo, por isso mesmo são incontornáveis. O livro apresenta-se como uma reflexão engajada na luta contra o racismo. Delacampagne começa por tratar da Antigüidade e por lembrar que gregos e romanos não diferenciavam as pessoas pela cor da pele, como já mencionava Aristóteles (Metafísica, 1.058a-b). Remonta o antisemitismo ao período helenístico e localiza no filósofo grego (384-322 a.C.) um discurso racista, na medida em que procura dar às desigualdades sociais uma justificação na natureza, acompanhada de referências explícitas a elementos biológicos. Justifica-se pela natureza a submissão da mulher e dos escravos, assemelhados aos animais domésticos (Aristóteles, Política, 1, 5, 6-9). Já na Idade Média, era destacada a caracterização dos judeus como distintos e inferiores, com traços físicos particulares, como nariz adunco, lábios espessos, mau cheiro, descendentes do demônio, uma tara hereditária que nem mesmo o batismo poderia superar. Em

Impulso, Piracicaba, 14(35): 139-141, 2003

139

PEDRO PAULO A. FUNARI Departamento de História, IFCH/Unicamp [email protected]

002176_Impulso_35.book Page 140 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

1233, o bispo de Lincoln, na Inglaterra, preocupava-se com a contaminação que podiam causar e, em seguida, começaram a ser expulsos de diversos reinos. A ‘pureza de sangue’, de origem medieval, distinguirá e discriminará os descendentes de judeus, muçulmanos e de outros grupos, oficialmente até o século XIX. Relata o caso paradigmático dos ‘cagots’, grupo inventado de supostos descentes de leprosos, conhecidos como agotes na Península Ibérica, até o final do século XX discriminados na Espanha e em Portugal. A destruição dos índios da América liga-se ao ideal medieval de reconquista da Palestina e do desaparecimento dos infiéis, na linha do cristianismo mata-mouros. O objetivo dos conquistadores, mais que o extermínio, era a conversão ou a escravidão para os renitentes. A escravidão dos africanos, iniciada pelos portugueses no século XV, fundava-se em um racismo cristão de origem antiga, já que os negros foram considerados descentes do personagem bíblico Cam, pai de Canaã, raça maldita destinada a ser escravizada (Gênesis, 9, 25: “maldito seja Canaã, ele será escravo dos escravos de seus irmãos”). Os racismos de caráter mágico-religioso passam por grande transformação com o racionalismo iluminista. O surgimento da história natural inaugura o conceito científico, que está conosco até hoje, de ‘raça’, originário de ratio, “ordem das coisas, categoria, espécie, descendência”, como se racismo e racionalismo fossem, por natureza, uma única noção. O conceito moderno, racionalista, de raça só surge em fins do século XVII, com as duas raças da França, o sangue nobre e azul da nobreza (os francos) e o sangue vermelho do povo (os gauleses). Lineu (1707-1778) distingue quatro raças humanas: europeus, americanos, asiáticos e africanos, em ordem decrescente de capacidades intelectuais e morais. A craniologia, conosco também até hoje no século XXI, inicia-se com Pierre Camper (1722-1789) e culminará com a suposta superioridade dos dolicocéfalos sobre os braquicéfalos. Cria-se o mito da raça superior. Gobineau publica seu ensaio sobre a desigualdade das raças

140

(1855) e suas características. É em Gobineau, lembra o autor, que se encontra a tese, ainda hoje a circular no estudo dos nossos indígenas, que as sociedades ‘primitivas’, ‘selvagens’, seriam sem história, simples, sem complexidade. A biologia tudo determinaria. Surge o conceito de línguas indo-européias e povo superior ariano, por oposição aos semitas e a todos os outros povos. Nesse contexto, Delacampagne trata do genocídio dos armênios no início do século xx e, depois, de judeus e ciganos, durante o regime nazista. Retrata, ainda, o antisemitismo na França após a Segunda Guerra e o racismo contra negros e árabes. Conclui o volume com um balanço sobre o racismo no mundo desde 1945, com diversos estudos de caso. Mostra como o genocídio dos tutsis pelos hutus, em Ruanda, foi possível pelo uso de categorias racistas de origem européia, como se os puros bantus autóctones e sedentários (os hutus) tivessem sido dominados por uma elite semita de comerciantes. O massacre resultante fundava-se em um racismo europeu ‘científico’. No epílogo, Delacampagne conta como, passado um quarto de século de pesquisas sobre o racismo, o autor, confrontado com os documentos analisados, mudou de opinião. De início, considerava que as discriminações contra os jovens, as mulheres, os homossexuais não eram racismo. Ao cabo, toma a posição contrária: “toda forma de ódio do outro em si, fundado não no que o outro faz, mas pelo que se considera que seja (jovem, mulher, homossexual, muçulmano, cristião), é racismo” (p. 278). Suas ponderações partem de dois argumentos. Já que não existe ‘raça’ de forma objetiva, não há porque não usar racismo para o ódio contra grupos ou subgrupos humanos. Em seguida, pondera que quase todas os ódios, como o religioso, adotam contornos racistas, assimilados a um grupo humano particular. A pertinência da obra de Delacampagne, em princípios do século XXI, é muito clara. Assistimos, nos últimos anos, a uma crescente caracterização de grupos humanos como inferiores, elimináveis. Políticas de estado são adotadas a partir de tais critérios racistas e indivíduos, escorados por tais políticas, levam a cabo assassinatos

Impulso, Piracicaba, 14(35): 139-141, 2003

002176_Impulso_35.book Page 141 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

de um índio, porque índio (como o caso de Galdino, em Brasília), ou de um homossexual porque homossexual (como em caso famoso em São Paulo), no Brasil e no mundo. No campo da ciência, conceitos essencialistas continuam a caracterizar inteiras populações como menos sofisticadas (como se houvesse grupos mais sofisticados do que outros). Delacampagne mostra a impor-

tância de uma abordagem bem inserida no contexto social da História da Ciência, na esteira de seus mestres Foucault, Sartre e Poliakov, para compreender como conceitos culturais adquirem foros de ‘ciência’ e justificam, tantas vezes, a opressão. Leitura importante para lembrar que nada menos natural, neutro e inofensivo, do que as certezas do discurso científico moderno. Recebimento artigo: 15/set./03 Consultoria: 16/set./03 a 22/set./03 Aprovado: 23/set./03

Impulso, Piracicaba, 14(35): 139-141, 2003

141

002176_Impulso_35.book Page 142 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

142

Impulso, Piracicaba, 14(35): 139-141, 2003

002176_Impulso_35.book Page 143 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

REVISTA IMPULSO NORMAS PARA PUBLICAÇÃO PRINCÍPIOS GERAIS 1. A Revista IMPULSO publica artigos de pesquisa e reflexão acadêmicas, estudos analíticos e resenhas nas áreas de ciências sociais e humanas, e cultura em geral, dedicando parte do espaço de cada edição a um tema principal, a partir das seguintes seções: “Temática”, apresentando os artigos temáticos; “Conexões Gerais”, para ensaios não temáticos; “Comunicações & Debates”, para textos curtos e fora dos padrões acadêmicos mais tradicionais; e “Resenhas & Impressões”, para críticas, resenhas e comentários em geral. 2. Os artigos podem ser desenvolvidos através dos seguintes tipos de trabalho: • ENSAIO (12 a 30 laudas) – reflexão a partir de pesquisa bibliográfica ou de campo sobre determinado tema; • COMUNICAÇÃO (10 a 18 laudas) – relato de pesquisa de campo, concluída ou em andamento; • REVISÃO DE LITERATURA (8 a 12 laudas) – levantamento crítico de um tema, a partir da bibliografia disponível; • COMENTÁRIO (4 a 6 laudas) – nota sobre determinado tópico; • RESENHA (2 a 4 laudas) – comentário crítico de livros e/ou trabalhos acadêmicos. Obs.: cada lauda compreende 1.400 toques, incluindo-se os espaços entre palavras. 3. Os artigos devem ser inéditos, vedado o seu encaminhamento simultâneo a outras revistas. 4. Na análise para a aceitação de um artigo serão observados os seguintes critérios, sendo o(s) autor(es) informado(s) do andamento do processo de seleção: • adequação ao escopo da revista; • qualidade científica, atestada pela Comissão Editorial e por processo anônimo de avaliação por pares (blind peer review), com consultores não remunerados, especialmente convidados, cujos nomes são divulgados anualmente, como forma de reconhecimento; • cumprimento das presentes Normas para Publicação. 5. ETAPAS de encaminhamento dos artigos: (a) apresentação de três cópias impressas do artigo, devidamente padronizado conforme estas Normas, para submissão à Comissão Editorial da Revista e aos seus consultores, constando de uma delas os dados completos do(s) autor(es) e, das outras duas, apenas o título da obra (sem identificação); fornecer também brevíssimo currículo do(s) autor(es); (b) um dos membros da Comissão e dois nomes externos a ela são designados como pareceristas, estes dois últimos por processo blind peer review; (c) recebidos de volta tais pareceres, eles são analisados em outro encontro da Comissão, chegando-se a uma avaliação final: “indicado para publicação”, “indicado com ressalvas” ou “recusado”; (d) em carta ao(s) autor(es), são fundamentadas tais decisões e devolvidos os originais com anotações dos pareceristas; (e) se indicado para publicação “com ressalvas”, o artigo deve ser novamente submetido à Editora: os trechos alterados devem ser realçados por cor ou sublinhados; essa nova versão será entregue em papel (uma cópia) e em arquivo eletrônico, acompanhada do texto original apreciado pelos pareceristas; (f) eventuais ilustrações devem ser encaminhadas separadamente, em seus respectivos arquivos eletrônicos em suas extensões originais; (g) antes da impressão, o(s) autor(es) recebe(m) versão final do texto para análise. 6. Os artigos devem ser encaminhados ao editor da IMPULSO, em três cópias, constando de uma os

Impulso, Piracicaba, 14(35): 143-147, 2003

143

002176_Impulso_35.book Page 144 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

dados do(s) autor(es) e das outras duas apenas o título do artigo (portanto, sem identificação de autoria), acompanhadas de ofício com: • cessão dos direitos autorais para publicação na revista; • concordância com as presentes normatizações; • informações sobre o(s) autor(es): titulação acadêmica, unidade e instituição em que atua, endereço para correspondência, telefone fax e e-mail. 7. Uma vez aceito o artigo, cabe à revista a exclusividade em sua publicação. 8. Os artigos podem sofrer alterações editoriais não substanciais (reparagrafações, correções gramaticais, adequações estilísticas e editoriais). 9. Não há remuneração pelos trabalhos. O(s) autor(es) recebe(m) 1 (um) exemplar da revista e 10 (dez) separatas do seu artigo. Ele(s) pode(m) ainda adquirir exemplares da revista com desconto de 30% sobre o preço de capa, bem como a quantidade que desejar(em) de separatas, a preço de custo equivalente ao número de páginas e de cópias delas.

ESTRUTURA 10. Elementos do artigo (em folhas separadas): a)IDENTIFICAÇÃO • TÍTULO (e subtítulo, se for o caso), em português e inglês: conciso e indicando claramente o conteúdo do texto; • nome do(s) AUTOR(ES), titulação, área acadêmica em que atua e e-mail; • SUBVENÇÃO: menção de apoio e financiamento eventualmente recebidos; • AGRADECIMENTO, se absolutamente indispensável. b)RESUMO E PALAVRAS-CHAVE • Resumo indicativo e informativo, em português (intitulado RESUMO) e inglês (denominado ABSTRACT), com cerca de 150 palavras cada um; • para fins de indexação, o(s) autor(es) deve(m) indicar os termos-chave (mínimo de três e máximo de seis) do artigo, em português (palavras-chave) e inglês (keywords). c)TEXTO • deve ter INTRODUÇÃO, DESENVOLVIMENTO e CONCLUSÃO. Cabe ao(s) autor(es) criar os entretítulos para o seu trabalho. Esses entretítulos, em letras maiúsculas, não são numerados; • no caso de RESENHAS, o texto deve conter todas as informações para a identificação do livro comentado (autor; título; tradutor, se houver; edição, se não for a primeira; local, editora; ano; total de páginas; e, se houver, título original e ISBN). No caso de trabalhos acadêmicos a serem resenhados, segue-se o mesmo princípio, no que for aplicável, acrescido de informações sobre a instituição na qual foi produzida. d)ANEXOS • Ilustrações (tabelas, gráficos, desenhos, mapas e fotografias). e)DOCUMENTAÇÃO NOTAS EXPLICATIVAS: serão dispostas no rodapé, remetidas por números sobrescritos no corpo do texto.1 CITAÇÃO com até três linhas: deve vir no bojo do parágrafo, destacada por aspas (sem itálico), após as quais um número sobrescrito remeterá à nota de rodapé com as indicações do SOBRENOME do autor, ano da publicação e página em que se encontra a citação.2 1

Essa numeração será disposta após a pontuação, quando esta ocorrer, sem que se deixe espaço entre ela e o número sobrescrito da nota. Como o empregado nas Referências Bibliográficas, nas notas de rodapé o SOBRENOME dos autores que tenham sido citados deve ser grafado em maiúscula, seguido do ano da publicação da obra correspondente a esta citação. Ex.: CASTRO, 1989. 2 FARACO; GIL, 1997, p. 74-75.

144

Impulso, Piracicaba, 14(35): 143-147, 2003

002176_Impulso_35.book Page 145 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

CITAÇÃO igual ou maior a quatro linhas: destacada em parágrafo próprio com recuo de quatro centímetros da margem esquerda do texto (sem aspas) e separado dos parágrafos anterior e posterior por uma linha a mais. Ao fim da citação, um número sobrescrito remeterá à nota de rodapé, indicando o SOBRENOME do autor, ano da publicação e a página em que se encontra esta citação.3 Os demais complementos (nome completo do autor, nome da obra, cidade, editora, ano de publicação etc.) constarão das REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, ao fim de cada artigo, seguindo o padrão abaixo. A lista de fontes (livros, artigos etc.) que compõe as Referências Bibliográficas deve aparecer no fim do artigo, em ordem alfabética pelo sobrenome do autor e sem numeração, aplicando-se o seguinte padrão:

LIVROS SOBRENOME, N.A. (pré-nomes do autor abreviados, sem espaçamento entre eles; até três autores: separar por “;”, mais de três: registrar o primeiro deles seguido da expressão “et al.”). Título: subtítulo. Número da edição. Cidade: Editora, ano completo, volume. Ex.: ROMANO, G.“Imagens da juventude”. In: LEVI, K. (org.). História dos Jovens. São Paulo: Atlas, 1996. EHRLICH, E. [1913]. Grundlegung der Soziologie des Rechts. 4. ed. Berlim: Duncker & Humblot, 1989. GARCIA, E.E.C. et al. Embalagens Plásticas: propriedades de barreira. Campinas: CETES/ITAL, 1984. RAMOS-DE-OLIVEIRA, N.; ZUIN, A.A.S.; PUCCI, B. (orgs.) Teoria Crítica, Estética e Educação. Piracicaba/Campinas: Editora Unimep/Editora Autores Associados, 2001.

• SOBRENOMES CUJA FORMA COMPOSTA É A MAIS CONHECIDA e SOBRENOMES ESPANHÓIS. Ex.: MACHADO DE ASSIS, J.M.; EÇA DE QUEIROZ, J.M.; GARCÍA MÁRQUEZ, G.; RODRÍGUEZ LARA, J. • MAIS DE UMA CITAÇÃO DE UM mesmo autor: após a primeira citação completa, introduzir a nova obra da seguinte forma: ______. Empregabilidade e Educação. São Paulo: Educ, 1997. • OBRAS sem autor definido: Manual Geral de Redação. Folha de S.Paulo, 2. ed. São Paulo, 1987.

PERIÓDICOS NOME DO PERIÓDICO. Cidade: Órgão publicador. Entidade de apoio (se houver). Data. Ex.: REFLEXÃO. Campinas: Instituto de Filosofia e Teologia. PUC, 1975. • ARTIGOS DE revista: AUTOR DO ARTIGO.4 “Título do artigo”. Título da revista (abreviado ou não), local de publicação, número do volume, número do fascículo, páginas inicial-final, mês5* e ano. ESPOSITO, I. et al. “Repercussões da fadiga psíquica no trabalho e na empresa”.Revista Brasileira de Saúde, São Paulo, v. 8, n. 32, p. 37-45, out.-dez./1979.

• ARTIGOS DE jornal: AUTOR DO ARTIGO.* “Título do artigo”.Título do jornal, local de publicação, dia, mês** e ano. Número ou título do caderno, seção ou suplemento e página inicial e final do artigo. 3

FARIA, 1996, p. 102. Em caso de autoria desconhecida, a entrada é feita pelo título do artigo, colocando-se a primeira palavra toda em caixa maiúsculo. 5 * Os meses devem ser abreviados de acordo com o idioma da publicação. Quando não houver seção, caderno ou parte, a paginação do artigo precede a data. 4

Impulso, Piracicaba, 14(35): 143-147, 2003

145

002176_Impulso_35.book Page 146 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

OLIVEIRA, W.P. de. “Judô: educação física e moral”.O Estado de Minas, Belo Horizonte, 17/mar./1981. Caderno de esporte, p. 7.

• DISSERTAÇÕES E TESES AUTOR. Título: subtítulo. Ano de apresentação. Número de folhas ou volumes. Categoria (Grau e área de concentração). Instituição, local. RODRIGUES, M. V. “Qualidade de vida no trabalho”. 1989. 180f. Dissertação (Mestrado em Administração). Faculdade de Ciências Econômicas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

FONTES ELETRÔNICAS A documentação de arquivos virtuais deve conter as seguintes informações, quando disponíveis: • sobrenome e nome do autor; • título completo do documento (entre aspas); • título do trabalho no qual está inserido (em itálico); • data (dia, mês e/ou ano) da disponibilização ou da última atualização; • endereço eletrônico (URL) completo (entre parênteses angulares: < >); • data de acesso. Exemplos: Site genérico LANCASHIRE, I. Home page. 13/set./1998. . Acesso em: 10/dez./1998.

Artigo de origem impressa COSTA, F. Há 30 anos, o mergulho nas trevas do AI-5. O Globo, 6.12.98. . Acesso em: 6/dez./1998.

Dados/textos retirados de CD-rom ENCICLOPÉDIA ENCARTA 99. São Paulo: Microsoft, 1999.Verbete“Abolicionistas”.CD-rom.

Artigo de origem eletrônica CRUZ, U.B.“The Cranberries: discography”.The Cranberries: images. Fev./1997. . Acesso em: 12/jul./1997. OITICICA FILHO, F. “Fotojornalismo, ilustração e retórica”. . Acesso em: 6/dez./1998

Livro de origem impressa LOCKE, J. A Letter Concerning Toleration. Translated by William Popple. 1689. .

Livro de origem eletrônica GUAY, T. A Brief Look at McLuhan’s Theories. Web Publishing Paradigms. . Acesso em: 10/dez./1998. KRISTOL, I. Keeping Up With Ourselves. 30/jun./1996. . Acesso em: 7/ago./1998.

Verbete ZIEGER, H.E.“Aldehyde”.The Software Toolworks Multimedia Encyclopedia. Vers. 1.5. Software Toolworks. Boston: Grolier, 1992. “Fresco”. Britannica Online. Vers. 97.1.1. Mar./1997. Encyclopaedia Britannica. 29/mar./1997. http://www. eb.com:180.

E-mail BARTSCH, R. “Normas técnicas ABNT - Internet”.13/nov./1998. Comunicação pessoal.

146

Impulso, Piracicaba, 14(35): 143-147, 2003

002176_Impulso_35.book Page 147 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

Comunicação sincrônica (MOOs, MUDs, IRC etc.) ARAÚJO, C.S. Participação em chat no IRC #Pelotas. . Acesso em: 2/set./1997.

Lista de discussão SEABROOK, R.H.C. “Community and Progress”. 22/jan./1994. . Acesso em: 22/jan./1994.

FTP (File Transfer Protocol) BRUCKMAN, A. “Approaches to Managing Deviant Behavior in Virtual Communities”. . Acesso em: 4/dez./1994.

Telnet GOMES, L. “Xerox’s On-Line Neighborhood: A Great Place to Visit”. Mercury News. 3/maio/1992. telnet lamba.parc.xerox.com 8888, @go #50827, press 13. Acesso em: 5/dez./1994.

Newsgroup (Usenet) SLADE, R. “UNIX Made Easy”. 26/mar./1996. . Acesso em: 31/mar./ 1996.

11. Os artigos devem ser escritos em português ou espanhol, podendo, contudo, a critério da Comissão Editorial, serem aceitos trabalhos escritos em outros idiomas. Os trabalhos devem ser digitados no EDITOR DE TEXTO WORD, em espaço 1,5, corpo 12, em papel branco, não transparente e de um lado só da folha, com páginas numeradas. 12. As ILUSTRAÇÕES (tabelas, gráficos, desenhos, mapas e fotografias) necessárias à compreensão do texto devem ser numeradas seqüencialmente com algarismos arábicos e apresentadas de modo a garantir uma boa qualidade de impressão. Precisam ter título conciso, grafados em letras minúsculas. (a) TABELAS: editadas em Word ou Excel, com formatação necessariamente de acordo com as dimensões da revista. Devem vir inseridas nos pontos exatos de suas apresentações ao longo do texto; não podem ser muito grandes e nem ter fios verticais para separar colunas; (b) FOTOGRAFIAS: com bom contraste e foco nítido, sendo fornecidas em arquivos em extensão “tif” ou “gif”; (c) GRÁFICOS e DESENHOS: incluídos nos locais exatos do texto. No caso de aprovação para publicação, essas ilustrações precisarão ser enviadas em separado, necessariamente em arquivos de seus programas originais (p. ex., em Excel, CorelDraw, PhotoShop, PaintBrush etc.); (d) figuras, gráficos e mapas, caso sejam enviados para digitalização, devem ser preparados em tinta nanquim preta. As convenções precisam aparecer em sua área interna.

Impulso, Piracicaba, 14(35): 143-147, 2003

147

002176_Impulso_35.book Page 148 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

148

Impulso, Piracicaba, 14(35): 143-147, 2003

002176_Impulso_35.book Page 149 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

NOSSOS CONSULTORES 2003

ALCIDES HECTOR BENOIT

JOSÉ LIMA JÚNIOR

AMÓS DA SILVA NASCIMENTO

JOSÉ LUIS NOVAES

ANA LÚCIA SABADELL DA SILVA

JOSÉ MARIA DE PAIVA

ANTÔNIO ÁLVARO SOARES ZUIN

JOSIANE MARIA DE SOUZA

ANTONIO CARLOS SARTI

LADISLAU DOWBOR

ANTONIO FERNANDO GODOY DIMITRI DIMOULIS DOROTHEE SUSANNE RÜDIGER

LEONILDO SILVEIRA CAMPOS LUIZ ANTONIO CALMON NABUCO LASTÓRIA MÁRCIO DANELON

EDIVALDO JOSÉ BORTOLETO NABOR NUNES FILHO ELIAS BOAVENTURA ERCÍLIO ANTONIO DENNY FERNANDA KLEIN GABRIELE CORNELLI

PEDRO GOERGEN PEDRO PAULO FUNARI ROSA GITANA KROB MENEGHETTI

GESSÉ MARQUES

SÁVIO CARLOS DESAN SCOPINHO

HUGO ASSMANN

SILVIO DONIZETTI DE O. GALLO

JORGE HAMILTON SAMPAIO

TÂNIA MARA VIEIRA SAMPAIO

JORGE LUIS MIALHE

TELMA REGINA DE PAULA SOUZA

JOSÉ CARLOS BARBOSA

YARA MONTEIRO

Impulso, Piracicaba, 14(35): 149-149, 2003

149

002176_Impulso_35.book Page 150 Wednesday, April 14, 2004 3:33 PM

150

Impulso, Piracicaba, 14(35): 149-149, 2003

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.