Resenha: GUIMARÃES, Valéria (org.). Transferências culturais: o exemplo da imprensa na França e no Brasil

June 2, 2017 | Autor: Mariana Silveira | Categoria: Intellectual History, Cultural History, Book History, Historia Cultural
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GUIMARÃES, Valéria (org.). Transferências culturais: o exemplo da imprensa na França e no Brasil. Campinas: Mercado de Letras; São Paulo: Edusp, 2012. Buscando evitar notas excessivas, indicaremos, nas referências subsequentes à obra aqui resenhada, apenas a página em que se encontram as citações, sempre com o cuidado de precisar a qual dos textos da coletânea nos referimos.
Ver: GUIMARÃES, Valéria (dir.). Les transferts culturels: l'exemple de la presse en France et au Brésil. Paris: L'Harmattan, 2011.
A esse respeito, ver, entre outros: ESPAGNE, Michel. Les transferts culturels franco-allemands. Paris : PUF, 1999 ; ESPAGNE, Michel ; WERNER, Michael (dirs.). Transferts. Les relations interculturelles dans l'espace franco-allemand XVIII-XIXe siècles. Paris : Éditions Recherches sur les Civilisations, 1988.
ESPAGNE, Michel. Transferts culturels et histoire du livre. Histoire et Civilisation du Livre – Revue internationale. Genebra, v. 5, 2009, p. 201. A tradução é nossa em todas as citações a originais em línguas estrangeiras.
Para balanços recentes sobre essas questões, ver o dossiê "Pourquoi l'histoire globale?", publicado em Cahiers d'Histoire – Revue d'histoire critique, Paris, nº 121, avril-juin 2013; e a coletânea BOUCHERON, Patrick; DELALANDE, Nicolas (dirs.). Pour une histoire-monde. Paris: PUF, 2013. Ver, também, entre outros: WERNER, Michael ; ZIMMERMANN, Bénédicte. Pensar a história cruzada: entre empiria e reflexividade. Textos de história. v. 11, n. 1-2, 2003, p. 89-127; DOUKI, Caroline; MINARD, Philippe. Histoire globale, histoires connectées: un changement d'échelle historiographique?. Revue d'histoire moderne et contemporaine. 2007/5, nº 54-4bis, p. 7-21.
ESPAGNE, Michel. Sur les limites du comparatisme en histoire culturelle. Genèses. n. 17, 1994, p. 112-121.
Cf. ESPAGNE, Michel. Transferts culturels et histoire du livre. Histoire et Civilisation du Livre – Revue internationale. Genebra, v. 5, 2009, p. 202-203.
Pensamos, aqui, na clássica esquematização do "circuito das comunicações" feita em DARNTON, Robert. O que é a história dos livros? In: O beijo de Lamourette. Mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 122-149 (ver, em especial, o quadro da p. 126 e p. 139-148).
Cf. ESPAGNE, Michel. Transferts culturels et histoire du livre. Histoire et Civilisation du Livre – Revue internationale. Genebra, v. 5, 2009, p. 201.
ESPAGNE, Michel. Transferts culturels et histoire du livre. Histoire et Civilisation du Livre – Revue internationale. Genebra, v. 5, 2009, p. 205.
FEBVRE, Lucien; MARTIN, Henri-Jean. O aparecimento do livro. São Paulo: Unesp: Hucitec, 1992, p.13. Grifos nossos.
ROCHE, Daniel; CHARTIER, Roger. Livro: uma mudança de perspectiva. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (orgs.). História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p. 104. Grifos nossos.
LYONS, Martyn; MOLLIER, Jean-Yves. L'histoire du livre dans une perspective transnationale. Histoire et civilisation du livre. Genebra, v. 8, 2012, p. 9-20.
Apenas o último capítulo, de autoria de Valéria Guimarães e voltado para os fait divers nos jornais brasileiros e franceses (p. 135-155), estende-se por parte do século XX, abarcando os anos de 1870 a 1930.
LOUÉ, Thomas. Un modèle matriciel: les revues de culture générale. In: PLUET-DESPATIN, Jacqueline; LEYMARIE, Michel; MOLLIER, Jean-Yves (dir.). La Belle Époque des Revues – 1880-1914. Paris: Éditions de l'IMEC, 2002, p. 57-68.
Cf. ESPAGNE, Michel. Transferts culturels et histoire du livre. Histoire et Civilisation du Livre – Revue internationale. Genebra, v. 5, 2009, p. 204.
Resenha da obra: GUIMARÃES, Valéria (org.). Transferências culturais: o exemplo da imprensa na França e no Brasil. Campinas: Mercado de Letras; São Paulo: Edusp, 2012.

Publicada em: Livro. Revists do NELE – Núcleo de Estudos do Livro e da Edição da Universidade de São Paulo, v. 4, novembro de 2014, p. 371-377.

Mariana de Moraes Silveira
Doutoranda em História Social pela Universidade de São Paulo
[email protected]

A coletânea Transferências culturais: o exemplo da imprensa na França e no Brasil, organizada por Valéria Guimarães, atualmente professora de Teoria da História no campus de Franca da Universidade Estadual Paulista (UNESP), buscou congregar especialistas das áreas de história, literatura e semiótica em torno de uma inquietação comum: o papel da imprensa nos contatos entre os dois países, em especial no que tange à constituição de uma cultura midiática e de circuitos integrados de informação. Publicado originalmente em Francês em 2011 e traduzido para o Português no ano seguinte, o livro reúne os trabalhos apresentados em jornada de estudos realizada em fevereiro de 2009 na Université de Versailles – Saint-Quentin en Yvellines, enquanto Guimarães realizava estágio pós-doutoral junto a tal universidade e à Fondation Maison des Sciences de l'Homme de Paris.
Antes de adentrarmos propriamente na avaliação dessa coletânea, é conveniente nos determos sobre o conceito de "transferência cultural". Endossado desde o título da obra aqui analisada, ele vem, nos últimos anos, ganhando espaço em meio aos estudos historiográficos – por vezes, de forma pouco crítica. Tal noção foi desenvolvida, sobretudo, nos trabalhos do germanista francês Michel Espagne, antigo aluno e hoje professor da École Normale Supérieure (Paris). Nas palavras de Espagne, o termo designa "uma orientação metodológica" que busca "colocar em evidência as imbricações e as mestiçagens entre os espaços nacionais ou, de maneira mais geral, os espaços culturais". Trata-se, assim, de "uma tentativa de compreender por que mecanismos as formas identitárias se podem nutrir de importações". Em sua formulação original, a ideia de "transferência cultural" se voltou à compreensão dos contatos entre a França e a Alemanha, mas ela vem sendo aplicada em estudos acerca das mais variadas latitudes e de diversos períodos – fato de que o volume organizado por Guimarães constitui significativo exemplo.
O forte apelo exercido por esse conceito sobre os historiadores pode ser facilmente compreendido à luz dos crescentes esforços para superar o enquadramento nacional nas pesquisas da área. Muito sob o influxo de questões e problemas colocados pelo presente e, em especial, por um mundo globalizado em que trocas de todas as naturezas se processam em velocidade vertiginosa, diversas propostas têm buscado romper as fronteiras dos Estados nacionais: "história transnacional", "histórias cruzadas", "histórias conectadas", "história global"... Ainda que agrupados sob diferentes nomenclaturas, esses esforços têm como traço comum críticas não apenas a uma história escrita em termos estritamente nacionais, mas também a um comparatismo visto como "tradicional". Quanto ao último ponto, enxergam-se com fortes reservas as comparações que se restrinjam a confrontar dois ou mais casos diversos, mas sempre dentro das fronteiras já traçadas, sem permitir a compreensão de dinâmicas que as ultrapassem.
Não surpreende, assim, que o conceito de "transferência cultural" se tenha tornado tão atraente, na medida em que ele procura, justamente, ser um instrumento de superação dos "limites do comparatismo", para nos apropriarmos do título de um artigo publicado pelo próprio Espagne ainda nos anos 1990. Em tal texto, o autor desenvolve diversas "teses" críticas às comparações, entre as quais destacamos: "o comparatismo coloca em paralelo constelações sincrônicas sem levar suficientemente em conta a sucessão cronológica de suas interferências"; "o comparatismo opõe grupos sociais ao invés de enfatizar os mecanismos de aculturação"; "as comparações acentuam inicialmente as diferenças, antes de considerar os pontos de convergência"; "a noção de comparatismo compreende, por vezes, tendências de pesquisa que nada têm a ver com comparações e que correspondem mais precisamente a uma transferência cultural".
A partir desta última noção, Espagne desenvolve todo um programa voltado à necessidade de colocar em causa não apenas a "exportação" e a "importação" de ideias e de práticas culturais, mas, sobretudo, os caminhos que as tornam possíveis; as formas de recepção, tomadas não a partir de sua aproximação ou de seu distanciamento do "original" (sempre, por sua vez, resultado de uma série de hibridações anteriores), mas sim em sua eficácia própria e a partir de suas reelaborações em outro contexto; as instâncias e os agentes de mediação, que permitem traduções, translações, transformações semânticas. Em lugar das comparações, a tônica passa a ser, em resumo, a preocupação com as interações.
Todas essas inquietações têm encontrado nos estudos sobre os livros e as edições um terreno especialmente fértil para desabrochar. Como os termos que destacamos no parágrafo anterior sugerem, as propostas teórico-metodológicas fundadas nas "transferências culturais" podem ser aproximadas de temas já consagrados entre os historiadores dos impressos, na medida em que tocam diversos pontos do vasto e complexo circuito que conecta autores, editores, impressores, expedidores, livreiros, leitores. É fundamental ressaltar, ainda, e como também Espagne nos lembra, em artigo recente e significativamente intitulado "Transferências culturais e história do livro", que o livro é "por excelência um objeto particularmente móvel, dotado a um só tempo de uma dimensão cultural e de um valor econômico, resultado de uma produção intelectual e de uma fabricação material".
Mesmo se pensado como mercadoria (o que nunca se deve deixar de fazer), ele transcende, assim, esse caráter e engendra dinâmicas culturais importantes, frequentemente não restritas às fronteiras nacionais. Não se pode esquecer, porém, que há limites a tal papel de "intermediários de diferentes culturas" desempenhado pelos livros, uma vez que, "não sendo escritos na língua majoritária, eles estão acessíveis a apenas uma minoria de leitores", ao menos em princípio. É por isso, mais uma vez, que os mediadores e os processos de tradução assumem lugar tão central entre os adeptos da noção de "transferência cultural".
Embora já esteja, de certa maneira, esboçada em perspectivas "clássicas", como quando Lucien Febvre e Henri-Jean Martin falam que as transformações "nos hábitos" e "nas condições de trabalho dos grandes leitores" ocasionadas pelo "aparecimento do livro" ultrapassaram "seu ambiente de origem", ou quando Roger Chartier e Daniel Roche mencionam a "irradiação europeia dos grandes livreiros ou das sociedades tipográficas helvéticas" nos séculos XVII e XVIII, a historiografia do livro e das edições com pretensões de transcender o Estado-Nação permanece um tanto jovem. Entendendo-a no quadro das inquietudes com o nacional e do crescente uso da noção de "transferência cultural" que esboçamos brevemente, devemos ter sempre em mente que os alcances e os limites dessa produção estão, em boa medida, ainda por se estabelecer.
É inegável, porém, que ela se tem expandido e dado origem a algumas empreitadas bastante significativas, entre as quais nos limitaremos a destacar o dossiê (cujo título é, por si só, um programa) "Pour une histoire transnationale du livre", organizado por Martin Lyons e Jean-Yves Mollier e publicado na edição de 2012 da revista Histoire et Civilisation du Livre. No texto introdutório, os dois organizadores se preocuparam em propor uma "história em múltiplos níveis", capaz de, quando necessário, tomar como complementares as dinâmicas global e nacional. Esboçaram, além disso, alguns temas, que podem constituir interessantes vias de pesquisa: além, justamente, das "transferências culturais", as traduções, o direito internacional, as organizações transnacionais, as multinacionais da edição.
É se arriscando por esse terreno marcado por muitas incertezas e tomando como central o conceito cunhado por Espagne que a coletânea Transferências culturais: o exemplo da imprensa na França e no Brasil se desenvolve. Para a publicação em livro, as falas da jornada de estudos foram divididas em dois grandes blocos, "Abordagens metodológicas" e "Os exemplos de transferências culturais entre a França e o Brasil", com quatro textos cada. Completam o volume um prefácio à edição francesa, de autoria de Jean-Yves Mollier, uma introdução assinada por Diana Cooper-Richet e Valéria Guimarães, além de uma breve conclusão da organizadora. A versão brasileira conta, ainda, com um prefácio de Tania de Luca.
Embora isso não seja explicitado no título, o recorte privilegiado é o século XIX, o que constitui uma opção pertinente. Esse é um momento de forte desenvolvimento da imprensa, tanto no Brasil quanto na França. Sobretudo a partir da década de 1850, consolidou-se uma cultura midiática de massas no segundo desses países e lançaram-se as bases para que isso fosse feito no primeiro deles ao longo dos decênios iniciais do século seguinte. Nada casualmente, esses movimentos foram acompanhados por uma intensificação das trocas intelectuais transatlânticas, crescentemente facilitadas por novidades tecnológicas como o telégrafo, a mecanização da imprensa, a industrialização do processo de sua feitura, bem como a profissionalização do trabalho de jornalista.
Dessa maneira, e dentro dos atuais debates da historiografia em geral, e da história dos impressos em particular, o volume organizado por Guimarães tem, certamente, o mérito de se voltar para artefatos talvez ainda mais suscetíveis a propiciar contatos entre territórios distantes no espaço que os livros: os jornais e as revistas. O prefácio de Tania de Luca o sintetiza de maneira emblemática. Segundo essa autora, a imprensa constitui uma "escolha particularmente feliz" para os estudos das "transferências culturais", na medida em que ela é marcada por um "caráter de empreendimento coletivo", vale-se do "fato de seus produtos circularem num espaço transnacional" e está "a cargo de um rol diversificado de mediadores" (p. 11).
Como muitas passagens da coletânea sugerem, a circulação desses produtos editoriais, de fabricação mais rápida e, frequentemente, menos dispendiosa que a dos livros, foi intensa, resultando em contatos múltiplos, não apenas do ponto de vista dos conteúdos, mas também daquele dos formatos, dos projetos editoriais, e mesmo dos gêneros literários. Esta última dimensão é exemplificada de maneira convincente (embora, em alguns momentos, um tanto esquemática) pelo trabalho de Lúcia Granja (p. 115-133), que se voltou à análise das semelhanças e das diferenças entre a seção chronique dos jornais franceses e o que a autora chama de "folhetim-variedades" no Brasil do século XIX. Granja abarca, com este último termo, uma produção extremamente variada feita no rodapé dos jornais brasileiros, distinta dos romances-folhetim, e favorecida por um ambiente de sociabilidades e de funções intelectuais menos diferenciadas que o então em vigor na França (p. 122).
A obra põe em relevo, em seu conjunto, a importância de pensar os órgãos de imprensa dentro de um universo dinâmico, em que trânsitos e diálogos se estabelecem entre diferentes títulos, para muito além dos limites políticos dos Estados. Ela demonstra, assim, a relevância de fugir ao que Thomas Loué, pensando nas revistas de cultura francesas da Belle Époque e num feliz deslocamento da célebre fórmula de Pierre Bourdieu, chamou de "ilusão monográfica". Tal "ilusão" constitui um limite comum de trabalhos voltados à imprensa, que, preocupados em destrinchar a trajetória de algum título específico, perdem de vista sua inserção não apenas em uma tradição do gênero, mas também num ambiente de debates e no universo editorial do seu tempo.
Devemos assinalar, porém, que a obra organizada por Valéria Guimarães se ressente, ao menos até certo ponto, das perplexidades e ambivalências que marcam os usos da noção de "transferências culturais" de maneira mais geral. Isso se expressa de forma especialmente clara nos reiterados empregos de termos como "modelo", "influência", "cópia", herdeiros de uma forma de estudo dos contatos culturais que postula a existência de um polo "originário" e outro de "recepção", estanques e hierarquizados. Tal orientação é, como esperamos ter deixado claro a partir das discussões feitas acimas, contrária à postura metodológica explicitamente reivindicada não apenas no título, mas em incontáveis passagens de Transferências culturais: o exemplo da imprensa na França e no Brasil. Mesmo que se deva reconhecer que o próprio Michel Espagne ressaltou, num diálogo com críticas feitas ao conceito por ele cunhado, ser necessário, por razões de viabilidade da pesquisa, tomar os contextos de "partida" e de "recepção" como, em alguma medida, "unidades estáveis", o uso problemático dos termos que acima elencamos sinaliza a necessidade de refinar a noção de "transferência cultural" e, em especial, suas aplicações práticas. Além disso, Espagne faz igualmente questão de enfatizar que nunca se deve esquecer que tais contextos são sempre, por si sós, híbridos, resultantes de uma série de contatos anteriores.
Especialmente entre os autores brasileiros, problemas quanto a esses aspectos se fazem notar, e certa recorrência em visões essencialistas do nacional acabam por se insinuar nas entrelinhas. Temos essa impressão, por exemplo, quando Valéria Guimarães fala em um "descompasso entre o imaginário da elite" e a "realidade da população", repisando, de certa forma, a velha preocupação com a "adequação" entre "ideias" e "realidade" (como se fosse possível atribuir, em absoluto, nacionalidades a ideias). A autora discorre, também, sobre a "adoção de modelos estrangeiros", e isso logo após descartar a ideia de "influência" (p. 151) – o que resulta, a nosso ver, contraditório. A forte tradição de crítica à "importação" de modelos e de denúncia da "cópia servil" do que é estrangeiro, invocada como discurso das fontes no trecho do manifesto-programa da Revista do Brasil (1916) colocado em epígrafe do prefácio de Tania de Luca, parece, assim, traduzir-se em chave acadêmica e assombrar alguns dos trabalhos.
Esses limites se acentuam por certa irregularidade em sentido mais amplo dos textos, algo não incomum em volumes que se dedicam a reunir trabalhos originalmente veiculados sob a forma de apresentações orais em encontros acadêmicos, ainda mais quando buscam congregar especialistas de diferentes áreas. Neste caso, porém, as contribuições são todas um tanto curtas e exploratórias, o que agrava o problema. Isso se compreende face ao fato de muitas delas se originarem de pesquisas ainda em curso, ou mesmo que se encontravam em fase inicial no momento original de redação dos textos. De qualquer maneira, a leitura não deixa de suscitar uma sensação de incompletude ou uma vontade de que os argumentos sejam melhor explicitados e desdobrados.
Dentre muitos outros que poderiam ser invocados, acreditamos que um tema repetidas vezes enunciado, mas que mereceria um desenvolvimento mais aprofundado, é o da preocupação com os sentidos em que as transferências culturais se deram, com como as apropriações se ligaram aos temas e aos problemas do contexto de recepção. Os trabalhos, em média, apontam contatos entre impressos franceses e brasileiros (e, quase sempre, uma ascendência dos primeiros sobre os segundos) muito mais que desenvolvem e problematizam os resultados dessas trocas. Outra questão interessante que aparece apenas de maneira muito sumária gira em torno das "transferências triangulares", das interações de duas culturas travadas a partir da mediação de uma terceira. Sandra Vasconcelos, sob o instigante título "Uma revista entre três mundos", aponta nesse sentido, ao estudar a Revue des Deux Mondes e a figura do crítico Philarète Chasles como prováveis mediadoras da recepção da literatura inglesa no Brasil (p. 101-113). Isso é feito, porém, muito mais sob a forma de uma hipótese que de uma discussão plenamente demonstrada.
Por outro lado, e especialmente na primeira parte, voltada às discussões de cunho metodológico, alguns textos deixam transparecer certo ar de "bricolagem". A nosso ver, essa marca compromete, sobretudo, os trabalhos de Lise Andries (p. 39-53) e de Jean-François Botrel (p. 55-72), que retomam, de forma nem sempre articulada e em conexão por vezes precária com os propósitos gerais do volume, trabalhos anteriores de sua própria autoria sobre as relações do México e da Espanha, respectivamente, com a França. Em ambos os casos, e igualmente no prefácio de Jean-Yves Mollier, falhas de tradução comprometem a leitura. Também do ponto de vista material, a edição brasileira deixa a desejar, empregando, por exemplo, fontes diferentes e pouco compatíveis entre si esteticamente nas notas e no corpo do texto.
A crítica mais séria que talvez se possa fazer a Transferências culturais: o exemplo da imprensa na França e no Brasil reside, porém, em uma censura de natureza eminentemente política que vem sendo feita ao conceito cunhado por Michel Espagne. As abordagens fundadas na noção de "transferência cultural" tenderiam a obscurecer as assimetrias, questões envolvendo o poder e relações de dominação. Elas dissolveriam, no limite, os conflitos que marcam inevitavelmente os contatos entre diferentes culturas. Dito de outra maneira, nem todos os laços entre povos poderiam ser pensados nos mesmos termos que aqueles estabelecidos entre a França e a Alemanha, países de condição bastante próxima no cenário mundial.
Quanto ao caso aqui analisado, as trocas culturais entre o Brasil e a França no século XIX não foram, certamente, unilaterais, mas está fora de qualquer dúvida que elas foram profundamente desiguais e, mais, marcadas por relações de força que a abordagem das "transferências culturais" tende a retirar de foco. Embora, ao menos do ponto de vista do programa enunciado, os trabalhos reunidos na coletânea organizada por Valéria Guimarães não excluam do seu escopo tais assimetrias, eles acabam por, a nosso ver, minimizá-las, quando se preocupam em reafirmar a possibilidade de observar as trocas também na direção inversa. Paradoxalmente, esse "caminho contrário" virtualmente inexiste no volume: as "trocas" enunciadas no corpo dos artigos se operam quase exclusivamente no sentido da França para o Brasil.
À luz desse fato, encontrar alternativas para fugir ao velho quadro interpretativo do Brasil a partir das "faltas", das "inadequações", das "ideias fora do lugar", sem, para tanto, incorrer nessas perspectivas que dissolvem maleficamente os conflitos, permanece um desafio teórico, metodológico e (por que não?) político em aberto. Se Transferências culturais: o exemplo da imprensa na França e no Brasil acaba por ficar muito longe de resolver a questão, devemos dar-lhe ao menos o crédito de suscitá-la.

REFERÊNCIAS

BOUCHERON, Patrick; DELALANDE, Nicolas (dirs.). Pour une histoire-monde. Paris: PUF, 2013.

Cahiers d'Histoire – Revue d'histoire critique, Paris, nº 121, avril-juin 2013.

DARNTON, Robert. O que é a história dos livros? In: O beijo de Lamourette. Mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 122-149.

DOUKI, Caroline; MINARD, Philippe. Histoire globale, histoires connectées: un changement d'échelle historiographique?. Revue d'histoire moderne et contemporaine. 2007/5, nº 54-4bis, p. 7-21.

ESPAGNE, Michel. Sur les limites du comparatisme en histoire culturelle. Genèses. n. 17, 1994, p. 112-121.

ESPAGNE, Michel. Les transferts culturels franco-allemands. Paris : PUF, 1999

ESPAGNE, Michel. Transferts culturels et histoire du livre. Histoire et Civilisation du Livre – Revue internationale. Genebra, v. 5, 2009, p. 201-218.

ESPAGNE, Michel ; WERNER, Michael (dirs.). Transferts. Les relations interculturelles dans l'espace franco-allemand XVIII-XIXe siècles. Paris : Éditions Recherches sur les Civilisations, 1988.

FEBVRE, Lucien; MARTIN, Henri-Jean. O aparecimento do livro. São Paulo: Unesp: Hucitec, 1992

GUIMARÃES, Valéria (dir.). Les transferts culturels: l'exemple de la presse en France et au Brésil. Paris: L'Harmattan, 2011.

GUIMARÃES, Valéria (org.). Transferências culturais: o exemplo da imprensa na França e no Brasil. Campinas: Mercado de Letras; São Paulo: Edusp, 2012.

LOUÉ, Thomas. Un modèle matriciel: les revues de culture générale. In: PLUET-DESPATIN, Jacqueline; LEYMARIE, Michel; MOLLIER, Jean-Yves (dir.). La Belle Époque des Revues – 1880-1914. Paris: Éditions de l'IMEC, 2002, p. 57-68.

LYONS, Martyn; MOLLIER, Jean-Yves. L'histoire du livre dans une perspective transnationale. Histoire et civilisation du livre. Genebra, v. 8, 2012, p. 9-20.

ROCHE, Daniel; CHARTIER, Roger. Livro: uma mudança de perspectiva. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (orgs.). História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p. 99-115.

WERNER, Michael ; ZIMMERMANN, Bénédicte. Pensar a história cruzada: entre empiria e reflexividade. Textos de história. v. 11, n. 1-2, 2003, p. 89-127.

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