Resenha: O que é o virtual? (LÉVY, Pierre).

May 26, 2017 | Autor: Mateus Bento | Categoria: Internet Studies, Virtualization, Comunicacion Social, Tecnologías de la información
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Descrição do Produto

Universidade Federal do Amazonas - Ufam
Instituto de Ciências Humanas e Letras - ICHL
Departamento de Comunicação Social – Decom
Curso de Relações Públicas

Disciplina: Produção textual para meios eletrônicos e digitais
Professora: Maurília Gomes
Discente: Mateus da Silva Bento

RESENHA
LÉVY, Pierre. O que é o virtual? Trad. de Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1996.

Pierre Lévy é um reconhecido pesquisador das tecnologias da inteligência e investiga as interações entre informação e sociedade. Mestre em História da Ciência e Ph.D. em Comunicação e Sociologia e Ciências da Informação pela Universidade de Sorbonne, é um dos mais importantes defensores do uso do computador, em especial da internet, para a ampliação e a democratização do conhecimento humano.
Nesta obra, Pierre Levy analisa o movimento geral de virtualização que afeta não apenas a informação e a comunicação, mas também os corpos, o funcionamento econômico, os quadros coletivos da sensibilidade e o exercício da inteligência. O autor defende a hipótese de que entre as evoluções culturais em andamento neste início de século, exprimi-se uma busca pela hominização. Neste cerne, é importante que façamos um esforço de apreender, de pensar, de compreender a virtualização em toda a sua amplitude, antes de temê-la, condena-la ou lançar-se às cegas em sua direção. Desse modo, Levy não se contenta em definir o virtual como um modo de ser particular, mas analisa um processo de transformação de um modo de ser num outro.
No capítulo 1, o autor define os conceitos de virtualidade, realidade, possibilidade, atualidade e utilizadas no decorrer da obra, além da análise da desterritorialização. O real é semelhante ao possível, faltando a este apenas a existência. Quando o possível se realiza, nada em sua determinação ou natureza muda.
A palavra virtualidade vem do latim medieval virtualis, derivado de virtus, força, potência. No cotidiano, o virtual é empregado para significar a ausência de existência. De fato, o virtual se atualiza sem ter passado à concretização efetiva ou formal. O termo seria da ordem do "terás", ou da ilusão, enquanto o real seria a ordem do "tenho".
Contudo, o virtual não se opõe ao real, mas ao atual. Ele não é estático e constituído, mas é um nó de tendências ou forças que acompanha uma situação, um acontecimento, um objeto ou entidade qualquer, e que pressupõe um processo de resolução: a atualização. O atual responde ao virtual e a atualização é uma criação, uma invenção de uma forma a partir de uma configuração dinâmica de forças e finalidades, a solução de um problema.
A virtualização é o movimento inverso da atualização; passa de uma solução dada a um problema, uma mutação de identidade. Por exemplo, a virtualização da empresa consiste em fazer do espaço-tempo do trabalho um problema sempre repensado e não uma solução estável. Por isso, a virtualidade se desprende do aqui e do agora. A sincronização substitui a unidade de lugar, e a interconexão, a unidade de tempo.
Quando alguém ou algo se virtualiza, torna-se "não-presente", se desterritorializa. Entretanto, não estar "presente" não impede a existência. O aumento da comunicação e a generalização do transporte rápido contribuem para essa tensão de sair de uma "presença", isto é, para a virtualização da sociedade. Nesse processo, há a passagem do interior ao exterior e do exterior ao interior, o efeito "Moebius".
No capítulo 2, Levy disserta sobre a virtualização do corpo. Nossa vida física e psíquica passa cada vez mais por uma "exterioridade" na qual se misturam circuitos econômicos, institucionais e tecnocientíficos. A virtualização dos corpos que experimentamos hoje é uma nova etapa na aventura de autocriação que sustenta a nossa espécie.
Assim, algumas funções somáticas são tratadas por Levy para desmontar o funcionamento do processo contemporâneo de virtualização do corpo, a começar pela percepção. Hoje, podemos quase reviver a experiência sensorial de outra pessoa por meio dos dispositivos que virtualizam os sentidos, como o telefone, a televisão etc.
O autor ressalta que os sistemas de realidade virtual transmitem mais do que imagens: uma quase presença. Essa projeção da imagem do corpo é geralmente associada à noção de telepresença, mas esta é mais do que a simples projeção da imagem. A telepresença permite que os corpos atuais (visíveis, audíveis e sensíveis) se multipliquem e se dispersem no exterior, tornando a pele virtualizada, permeável. No entanto, o corpo exterior (coletivo) acaba por modificar o corpo primário, interior. Logo, cada corpo individual torna-se parte integrante de um imenso hipercorpo híbrido e mundializado.
A reação à virtualização dos corpos traz consigo o esforço de ultrapassar limites, de conquistar novos meios, de intensificar as sensações, de explorar outras velocidades manifestadas numa explosão esportista (geralmente marcada por esportes individuais que não precisam de grandes equipamentos coletivos) característica de nossa época.
No capítulo 3, é discutida a virtualização do texto. Desde as suas origens, o texto é um objeto virtual, abstrato, independente de um suporte específico. Ao interpretar (dar sentido a) um texto, o leitor leva adiante uma cascata de atualizações. O espaço do sentido não existe antes da leitura; ele é atualizado conforme o percorremos e o fabricamos. Essa ação de hierarquizar e selecionar áreas de sentidos, tecer ligações entre essas zonas, conectar o texto a outros documentos, arrimá-lo a toda uma memória que forma como que o fundo sobre o qual ele se destaca e ao qual remete, refere-se a uma função do hipertexto informático.
O hipertexto é uma matriz de textos potenciais, sendo que alguns deles vão se realizar sob o efeito da interação com um usuário. Em uma abordagem simples, o hipertexto é um texto estruturado em rede, constituída por nós (elementos de informação, parágrafos, imagens etc.) e ligações entre esses nós (referências, notas, indicadores etc.).
A digitalização permite associar na mesma mídia e mixar sons, imagens animadas e textos. Segundo essa primeira abordagem, o hipertexto digital seria definido como uma coleção de informações multimodais disposta em rede para a navegação rápida e "intuitiva".
Os leitores podem não apenas modificar as ligações, mas também acrescentar ou modificar nós (textos, imagens etc.), conectar um hiperdocumento a outro e fazer assim de dois hipertextos separados um único documento. Levy enfatiza que não se deve falar de imagens virtuais para qualificar as imagens digitais, mas de imagens possíveis sendo exibidas. O virtual só eclode com a entrada da subjetividade humana no circuito.
Um ato de leitura é uma atualização das significações de um texto, atualização e não realização, pois a interpretação comporta uma parte eliminável de criação. O suporte digital permite novos tipos de leituras (e de escritas) coletivas. O texto é transformado em problemática textual a partir do momento em que se produz, de um texto inicial, uma reserva textual e instrumentos de composição graças aos quais um navegador poderá projetar uma quantidade de outros textos.
Nesse processo, o computador torna-se um operador de potencialização da informação, pois quando ramificado no hiperespaço pode recorrer às capacidades de memória e de cálculo de outros computadores da rede, bem como a diversos aparelhos distantes de captura e de apresentação de informação. Todavia, no limite, há hoje apenas um computador, sem limites e cujo cento está em toda parte e a circunferência em nenhuma, um computador hipertextual, disperso, inacabado, virtual: o ciberespaço.
No capítulo 4, Levy aponta que a economia contemporânea é uma economia de desterritorialização ou da virtualização, visto que a humanidade jamais dedicou tantos recursos a não estar presente, a comer, dormir, viver fora de casa, a se afastar de seu domicílio. Os traços distintivos da virtualização são vistos na invenção e no desenvolvimento da moeda (e dos instrumentos financeiros mais complexos). Aliás, a moeda, objeto virtual, é mais fácil de trocar, partilhar e existir em comum que entidades mais concretas como terra ou serviços.
As informações e os conhecimentos passaram a constar entre os bens econômicos primordiais. Por ser virtual, o consumo de uma informação não é destrutivo e sua pose não é exclusiva. Já o conhecimento é fruto de uma aprendizagem, ou seja, resultado de uma virtualização da experiência imediata. Nesse contexto, a força de trabalho do assalariado (uma queda de potencial, uma realização) dá lugar à competência, um saber-ser que tem a ver com o virtual, pois a competência não se consome quando utilizada.
O ciberespaço abre um novo mercado, no qual os papeis de consumidores, produtores e intermediários se transformam profundamente. A produção de valor agregado se desloca para o consumidor e a própria noção de consumo é substituída pela de coprodução de mercadorias ou serviços interativos. Assim, uma classe de profissionais intermediários da informação (jornalistas, professores, médicos etc.) ou da transação (comerciantes, banqueiros etc.) tem seus papeis habituais ameaçados.
No capítulo 5, Levy propõe pensar o movimento contemporâneo como a busca de uma hominização continuada, uma retomada da autocriação da humanidade. O autor assinala três processos de virtualização fizeram emergir a espécie humana: o desenvolvimento das linguagens, a multiplicação das técnicas e a complexificação das instituições. As linguagens virtualizam um "tempo real" que mantém aquilo que está vivo prisioneiro do aqui e agora.
Enquanto isso, o surgimento das ferramentas não responde a um estímulo particular, mas materializa parcialmente uma função genérica, cria um ponto de apoio para a resolução de uma classe de problemas. A ferramenta é mais do que uma extensão do corpo; é uma virtualização da ação. E o objeto técnico é um operador de virtualização.
Na esfera das relações sociais, há um processo contínuo de virtualização de relacionamentos que forma aos poucos a complexidade das culturas humanas: religião, ética, direito, política, economia.
No capítulo 6, Levy evidencia o núcleo invariante de operações elementares presentes em todos os processos de virtualização, a saber: a gramática (saber ler e escrever corretamente), a dialética (saber raciocinar), e a retórica (saber compor discursos e convencer). Nos processos concretos de virtualização, essas operações são simultâneas. De modo geral, a gramática separa elementos e organiza sequências, a dialética faz funcionar substituições e correspondências, e a retórica separa seus objetivos de toda combinatória, de toda referência, para desdobrar o virtual como um mundo autônomo.
Nos capítulos 7 e 8, o autor examina a virtualização da inteligência. Para isso, traz uma visão renovada da inteligência coletiva em vias de emergência nas redes de comunicação digitais e apresenta uma construção do conceito de objeto (mediador social, suporte técnico e nó das operações intelectuais).
No tocante à inteligência coletiva, três temas são entrelaçados: a parte coletiva da cognição e da afetividade pessoal, a questão do coletivo pensante enquanto tal e a inteligência coletiva como utopia tecnopolítica.
Os coletivos humanos são espécies de megapsiquismos, não apenas por serem percebidos e afetivamente investidos por pessoas, mas porque podem ser adequadamente modelados por uma topologia, uma semiótica, uma axiologia e uma energética mutuamente imanentes.
Levy define a inteligência coletiva como uma inteligência distribuída em toda parte, continuamente valorizada e sinergizada em tempo real. Para ele, não podemos exercer nossa inteligência independentemente das línguas, linguagens e sistemas de signos que herdamos através da cultura e que milhares ou milhões de outras pessoas utilizam conosco. A dimensão social da inteligência está intimamente ligada às linguagens, às técnicas e às instituições, diferentes conforme os lugares e as épocas.
Nessa concepção, o sujeito não é outra coisa senão seu mundo; ele se desdobra para fora do espaço físico. E o mundo percebido está sempre mergulhado no elemento do afeto. O virtual se atualiza por meio dos afetos, cujas qualidades são dependentes também das qualidades do ambiente, do meio exterior que oferece novos objetos, novas configurações práticas e estéticas de modo constante.
Sobre o objeto, Levy entende que ele sustenta o virtual, traça a situação, transporta o campo problemático, o nó de tensões ou a paisagem psíquica do grupo. Em um suporte objetivo, essa virtualidade atualiza-se em acontecimentos, em processos sociais, em atos ou afetos da inteligência coletiva. No entanto, o objeto também pode, em vez de conduzir atos, degradar-se em coisa, em sujeito ou em substância.
No capítulo 9, o autor sistematiza os conhecimentos tratados na obra e esboça o projeto de uma filosofia capaz de acolher a dualidade do acontecimento e da substância que é examinada em todo o trabalho. Nesse sentido, a virtualidade é composta por dois movimentos complementares: subjetivação e objetivação. Sujeitos e objetos não são substâncias, mas nós fluentes de acontecimentos que se interfaceiam e se envolvem reciprocamente.
Por fim, o epílogo convida o leitor a uma arte da virtualização, considerada uma dinâmica do mundo comum, aquilo através do qual compartilhamos uma realidade. A arte pode intervir ou interferir nesse processo de virtualização que participamos às cegas e contra nossa vontade, tornando-o perceptível aos nossos sentidos e emoções. O papel da arte é restabelecer o equilíbrio entre o possível e o virtual, entre substância e acontecimento.
Diante do exposto, a obra de Pierre Levy aborda a virtualização em suas dimensões mais amplas. O autor se coloca perante um desafio que perpassa a filosofia (com o conceito de virtualização), a antropologia (quanto à relação entre o processo de hominização e a virtualização) e o campo sociopolítico (ao buscar compreender a mutação contemporânea para poder atuar nela). Porém, a reflexão tecida pelo autor é recomendada a estudantes, pesquisadores e profissionais dos mais variados campos de conhecimento das ciências humanas e sociais.



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