Resenha \"Um teste de resistores\" de Marília Garcia

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Revista Colóquio / Letras nº 190 - Lisboa, setembro 2015

Marília Garcia

um teste de resistores Rio de Janeiro, Editora 7Letras / 2014

Como ler o que está escrito? Como escrever o que percebemos e pensamos? Essas me parecem ser as questões fundamentais deste último livro de Marília Garcia, ler e escrever a superfície e não o sentido que estaria por trás das palavras. Conseguir manter-se nesse registro de contato com a linguagem não é tarefa simples, nem para o escritor nem para o leitor, e na maioria das vezes fracassamos. Talvez seja isso um teste de resistores, referência direta ao livro do poeta francês Emmanuel Hocquard, Um teste de solidão (1998), onde é questionada a maneira de suportar estar sozinho em meio às palavras, «sozinhos dentro da gramática, sozinhos literalmente»1, e, a partir deste distanciamento e da perda de si, encontrar outra coisa: a linguagem e seus mecanismos de funcionamento, mas também alguma maneira de furar esse aprisionamento. Hocquard se refere por sua vez ao poeta objetivista norte-americano George Oppen, que se interessava pela imagem 277

encontrada na experiência percetiva — diferente da criação metafórica baseada na construção retórica — e é nesse encontro da vida — perceção — com a linguagem que se daria um teste de sinceridade, um teste de convicção, que seria para ele uma rara e verdadeira qualidade poética. A exigência e a experiência poética estariam conjugadas neste estado de alerta à própria perceção, conjugada sempre em ato com a linguagem: solidão, sinceridade ou lucidez, para dizer o ser da linguagem, por meio do qual «o poeta se perde e se endereça»2. Daí a preferência destes poetas objetivistas pela filosofia, ou melhor, pelo método de Wittgenstein, que, a partir dos enunciados encontrados na linguagem comum, vai refletindo e progressivamente deduzindo sobre sua natureza e pertinência. Podemos entender, assim, o gosto de Hocquard pela pequena anedota, pelas situações cotidianas em que se dá a linguagem, e também o gosto por mostrar, evidenciar, elucidar como um detetive, o uso — a construção — que está sendo feito no próprio ato de escrita, seguindo o princípio da «literalidade (o texto diz o que diz dizendo-o)»3. É comum em sua poesia a citação de amigos, a narrativa de algumas situações de sua vida tanto no presente quanto no passado. Para ele, esse material, ou seja, esses objetos privados precisam ser transformados em conceitos, e para isso é preciso afastá-los da metáfora, da figura de estilo ou do simples uso enquanto memória individual. O que lhe interessa em sua infância, por exemplo, é a linguagem, os pedaços de passado que já estão entretanto no presente, daí a prática do deslocamento e da cópia, pois ao copiar produz-se a liberação do «pedaço de linguagem» de qualquer apropriação privada, pelos furos produzidos na linguagem contínua e linear: «abstraído de seu contexto de origem (a conversa de idiotas entre Emmanuel, 278

Olivier e Pierre sobre a cor do vestido de Pascalle), deixa ali um furo»4. Comecei a ler o livro de Marília Garcia na pista deixada pelo próprio título, um teste de resistores, e também por acompanhar a trajetória da autora desde seu primeiro livro, Encontro às Cegas (2001), publicado na coleção «Moby Dick» da 7Letras, uma das principais editoras brasileiras dedicadas à poesia, onde Marília, aliás, trabalhou por quase uma década, se dedicando também à edição da revista Inimigo Rumor em parceria estreita com o poeta Carlito Azevedo, um dos mais reconhecidos do Brasil. Em 2007 publicou 20 poemas para o seu walkman5 pela prestigiada Coleção «Às de colete», organizada por Carlito numa coedição Cosac Naify e 7Letras. Em seu penúltimo livro, também publicado pela 7Letras, Engano Geográfico (2012), ocorre uma importante virada em sua poesia resultante do intenso diálogo com a poesia de Emmanuel Hocquard, objeto de sua tese de doutorado e de várias traduções. Ressalto ainda seu trabalho atual como coeditora da revista Modo de Usar & Co. que, de certa maneira, vem substituindo a Inimigo Rumor em seu anseio pelo diálogo com poetas contemporâneos e pelo seu importante trabalho de tradução. Percebe-se, assim, a sólida trajetória de Marília Garcia e sua centralidade na cena de certa poesia brasileira contemporânea. Hocquard, em seu texto Ma Vie privée (1995)6, cujo título aliás é bastante irónico — ele quer justamente evitar contar sua pequena vida privada —, pretende sair da Literatura, por um processo de singularização da linguagem, visando fissurar a «máquina literária produtora de leitores e autores» que procede sempre escondendo a maneira como isso é engendrado. Já Marília expõe parte de seu percurso na poesia, algumas relações, insights, com obras de cineastas, artistas, poetas, a partir de detalhes (zooms e cortes) interessantes com os

quais ela vai criando seu livro, objetivando, desta forma, certas imagens; porém, acaba caindo na exposição de sua vida privada, onde se coloca na cena literária brasileira e internacional de maneira bastante institucionalizada, quase naturalizada. Os pequenos desconfortos que introduz como que a limpar um pouco, a disfarçar um certo gozo em brincar no parque de diversão da arte e da poesia contemporâneas — como a viagem à Bélgica para participar como poeta convidada da Europália, que é adiada, mas que se realiza; a ida, perturbada pelo incidente narrado ao final do livro, mas que também se realiza, ao Centro Universitário Maria Augusta da USP, a mais prestigiada universidade brasileira, e a São Paulo, que a acolhem tão bem, com «delicadeza» — não são bastantes para problematizar a poesia e seu lugar; ao contrário, ela efetivamente reforça esse lugar institucionalizado. Este conforto atravessa o livro e pode ser sentido com mais força na sexta parte da obra, onde é narrada a anedota de um convite que recebeu: um dia estava com a diana no café maya em laranjeiras e meu telefone tocou atendi e era [o mariano me convidando para participar da noite [de abertura da exposição dos poetas marginais no instituto Moreira Salles […] aceito o convite contente de poder [encontrar os amigos e de me aproximar da poesia dos anos 70 mas já pensando e rindo dos comentários e críticas que viriam não só aos poetas marginais mas também a quem aderisse ao festejo incluindo a mim mesma claro (71)

Diante da constatação desse impasse, ou seja, de como institucionalizar uma

poesia que se queria marginal à máquina literária, uma poesia que se debatia com a censura durante a ditadura militar brasileira, Marília vai adiantando sua reflexão, repetindo argumentos disseminados na crítica literária e possíveis conversas sobre o tema. A meio do poema, ela elenca todos os poetas que iriam participar da homenagem, e, em seguida, o argumento de Marília se encaminha para o paradoxo, pois se afirma que é bom os marginais terem sido publicados em edições luxuosas e de grande tiragem, possibilitando um maior acesso ao público leitor, termina o poema pela epifania que se dá a partir do contato com a poesia de Zuca Sardan, através de um livro raro transformado em objeto aurático confraternizado entre os poetas em culto redentor: «escrevi esse texto de uma só vez / no domingo dia 18 de agosto / depois de ler o livrinho aqueles papéis de zuca sardan / edição de 1975 grampeado e com a capa desenhada à mão / livro tão raro de ser lido porque fora de catálogo / porque nunca esteve em catálogo / porque edição artesanal / e que pude ler graças à sorte de ganhar de presente / do mariano […]» (76-77). Como se pode notar por esse trecho, a situação de linguagem que parte de uma anedota da vida cotidiana envolvendo amigos aqui não se transforma em conceito, em material de linguagem, mas permanece como narrativa de uma vida privada que se torna pública via institucionalização. O poema funciona também como uma espécie de romance à clef, deixando-nos em estado de alerta para a necessidade de identificar os diversos nomes citados sem o sobrenome, restando ao leitor tentar decifrar essas pistas, pois há enfraquecimento do poema sem esse conhecimento, enquanto na situação anedótica de Hocquard a sua transformação em conceito é operada via esvaziamento das personagens. 279

A poeta optou pela utilização, em todo o livro, de versos livres, onde se percebem furos em alguns versos, como faz George Oppen a partir de seu livro Seascape: Needle’s Eye (1972). Constrói, assim, um movimento agradável, um andamento muito bem executado, com pequenas contorções e paradas, pelo efeito dos furos e também da repetição, tanto no início — a anáfora que nos faz lembrar o célebre poema de Carlito Azevedo onde é repetido o nome da poeta argentina Liliana Ponce — quanto ao fim da frase, e que funcionam, algumas vezes, como cópias deslocadas. Entretanto, falta algo que leve seu tom melancólico e feliz a uma radicalidade advinda do humor, de uma dose maior de sinceridade, como quer Oppen, para conseguir escrever, com um distanciamento indiferente, o que realmente percebemos e pensamos, nesse contato intenso com a linguagem, para lá de uma manufatura acostumada aos jogos de estilo. Como diz Emmanuel Hocquard a propósito de Fernando Pessoa em seu livro Um Teste de Solidão, «sua indiferença não é uma pose, nem uma atitude. / Ela é a expressão de uma inteligência sempre alerta»7. Masé Lemos Notas 1 Gilles A. Tiberghien, Emmanuel Hocquard par Gilles A. Tiberghien, Paris, Seghers, 2006, p. 103. 2 Idem, ibid., p. 103. onde Vão os Cães», 3 Jean-Marie Gleize, «Para aonde trad. Masé Lemos, Inimigo Rumor, São Paulo/Rio de Janeiro, n.º 16, jan. 2004, p. 44. 4 Emmanuel Hocquard, «Ma vie privée», Revue de littérature générale, n.º 1, Paris, POL, 1995, p. 233. 5 Interessante notar que o poeta português Manuel de Freitas publica, com José Miguel Silva, também em 2007, um livro intitulado Walkmen (& etc), referindo canções das bandas Tuxedomoon e Pop dell’Arte. 6 Emmanuel Hocquard, ob. cit. 7 Apud Gilles A. Tiberghien, ob. cit., p. 242.

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