Reserva legal e conservação dos domínios ecológico-florísticos brasileiros: argumentos biológicos e jurídicos para uma análise crítica da jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais

July 27, 2017 | Autor: Luciano J. Alvarenga | Categoria: Direito Ambiental, Fragmentação florestal, CIENCIAS FLORESTAIS
Share Embed


Descrição do Produto

Reserva legal e conservação dos domínios ecológico-florísticos brasileiros: argumentos biológicos e jurídicos para uma análise crítica da jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais

RESERVA LEGAL E CONSERVAÇÃO DOS DOMÍNIOS ECOLÓGICO-FLORÍSTICOS BRASILEIROS: ARGUMENTOS BIOLÓGICOS E JURÍDICOS PARA UMA ANÁLISE CRÍTICA DA JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS Revista de Direito Ambiental | vol. 51 | p. 166 | Jul / 2008 DTR\2008\378 Luciano José Alvarenga Mestrando em Ciências Naturais no Programa de Pós-Graduação em Evolução Crustal e Recursos Naturais, Departamento de Geologia, Escola de Minas, Universidade Federal de Ouro Preto. Assessor no Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Área do Direito: Constitucional; Ambiental Resumo: Embora a reserva florestal legal tenha significativa relevância para a conservação de ecossistemas, sua efetivação ainda encontra resistência nos tribunais brasileiros. Não são raras decisões contrárias aos percentuais florestais mínimos exigidos pelo Código Florestal e à obrigatoriedade legal de averbação. Este texto analisa a questão a partir da Biologia da Conservação, do princípio da função social e ambiental da propriedade rural, do direito constitucional a um meio ambiente dignificante, de preceitos da Política Nacional do Meio Ambiente e da Política Agrícola. Adicionalmente, traz notas críticas à decisão expressa no Acórdão 1.0000.00.279477-4/000(1) (rel. Des. Orlando Carvalho, j. 25.06.2003), do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Por fim, apresenta proposições gerais para a construção jurisprudencial relativa ao tema. Palavras-chave: Direito Ambiental - Código Florestal - Reserva florestal - Conservação Abstract: Despite the significant relevance of the legal forest reserve for the conservation of ecosystems, its accomplishment still finds resistance amongst Brazilian courts. It is not rare to find decisions contrary to the legal compulsoriness of docket or to the minimal percentage of forests that is demanded by the Forest Code. The present paper aims at analyzing the question taking into account Conservation Biology, the principle of the social and environmental role of the rural property, the constitutional right to a dignifying environment, the principles of the Environmental National Policy and the Agricultural Policy. Besides, one makes critical notes on the decision expressed in the Sentence 1.0000.00.279477-4/000(1) of the State of Minas Gerais Supreme Court. Finally, one presents general propositions for the building of jurisprudence, which is relevant to the topic. Keywords: Environmental Law - Forest Code - Forest reserve - Conservation Sumário: 1.Tema-problema e objetivo - 2.Notas críticas - 3.Síntese e proposições - 4.Referências bibliográficas 1. Tema-problema e objetivo Ano 1711. O jesuíta André João Antonil (1976, p. 112) escrevia em seu tratado descritivo da economia brasileira: "feita a escolha da melhor terra para a cana, roça-se, queima-se e alimpa-se, tirando-lhe tudo o que podia servir de embaraço". Quase trezentos anos depois, a percepção ambiental que orientava esse comportamento, representativo do padrão colonial de ocupação do território brasileiro, atualiza-se, não raramente, em práticas sociais e institucionais no país. A paisagem tropical ainda é vista como "embaraço" ao crescimento econômico, falaciosamente assentado no pressuposto da produtividade ilimitada. O que levou Pádua (2003-2004, p. 7), em alusão ao progressivo assolamento do mosaico de ambientes naturais brasileiros, a afirmar que: "Em poucos países do mundo o peso do passado é tão intenso quanto no Brasil". Um passado que deixou suas marcas nos fundamentos da cultura brasileira. Capaz de influenciar, por sua força, até mesmo decisões de órgãos administrativos e jurisdicionais, que, por princípio e vocação, deveriam se comprometer à construção de uma nova realidade, fundada num acordo responsável com a natureza (SERRES, 1991) e na promoção do direito à vida num ambiente dignificante (arts. 1.º, III, 5.º, caput, e 225, caput, CF/88 (LGL\1988\3)). O fado do Direito Ambiental encerra, portanto, seus traços e motivos históricos. Página 1

Reserva legal e conservação dos domínios ecológico-florísticos brasileiros: argumentos biológicos e jurídicos para uma análise crítica da jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais

Reduzir à herança colonial brasileira as causas da crise socioambiental por que o país está a passar seria tão fácil quanto leviano. As incongruências ecossistêmicas da monocultura extensiva e escravista não eram percebidas pela maioria dos atores sociais e políticos de então, embora já houvesse quem as questionasse (PÁDUA, 2004). Como observa Pádua (2008, p. 2), uma colônia de exploração "é sempre um empreendimento brutal e imediatista", e seria ingênuo esperar, no caso do Brasil, que os colonizadores se orientassem por um modelo de desenvolvimento em longo prazo, próprio "da idéia de nação, do ideal de continuidade histórica de uma comunidade política". O que se está a questionar na contemporaneidade, portanto, não é mais o passado colonial brasileiro, mas sim a renitência do modelo que o determinou ao longo da história do país independente, inclusive nos dias atuais. Como pontifica Pádua (2008, p. 2): "O que pode ser considerado lógico no contexto de uma colônia de exploração não deve sê-lo no processo de construção de uma verdadeira nação. Este último requer uma nova lógica, fundada no cuidado e na conservação das bases ecológicas, sociais e culturais da existência coletiva, mesmo que isso signifique mais trabalho, mais estudo e a aceitação de critérios menos imediatistas e superficiais para avaliar o progresso econômico". A legislação ambiental brasileira é uma ferramenta importante para a "construção de uma verdadeira nação" a que alude Pádua. Não por acaso o ordenamento jurídico pátrio tem vindo a reconhecer, com crescentes ênfase e amplitude, a relevância da conservação dos diferentes domínios ecológico-florísticos brasileiros (Amazônia, Cerrado, Mata Atlântica, Caatinga, Campos Sulinos, entre outros), procurando reverter o processo histórico de devastação dos ecossistemas que compõem a Terra Brasilis. Nesse caminhar, tem-se constatado, entretanto, que a efetividade de instrumentos legais de proteção ambiental, como a Área de Preservação Permanente (APP) e a Reserva Legal (RL), não advém diretamente de sua consagração jurídico-normativa. Focalizando as áreas de RL, Schneider, Rochadelli & Bonilha (2005, p. 495) observam, em linhas gerais, que sua implementação é significativamente influenciada pela conjuntura política, social e econômica. Ademais, práticas e omissões contrárias às RL têm sido recorrentes, seja no âmbito administrativo, seja no judiciário. Investigando a situação das reservas em nove municípios da região amazônica, Fidalgo e outros (2003, p. 876), p. ex., constataram que "nenhum município apresenta o porcentual mínimo de remanescentes estabelecido para manutenção de reserva legal (80%). Os municípios estudados do Pará apresentam sua área de remanescentes um pouco superior a 60%. No Maranhão, os municípios estudados apresentam valores mais baixos, inferiores a 50%, chegando a 6,46% em Itinga do Maranhão". Dados apresentados por Salomon (2008) não são menos desanimadores. Nascimento, Lingnau & Stolle (2007, p. 4086), analisando as áreas de RL e APP na Estação Experimental Canguiri, verificaram, de outra perspectiva, que elas se distribuem isoladamente no território, "não cumprindo com a função pela qual foram designadas conforme a legislação, que visa à conservação da biodiversidade genética". Com foco na atividade dos tribunais, por outro lado, não são escassas decisões contrapostas à RL. Exemplo típico é encontrado na ApCív 1.0000.00.297454-1/000 (rel. Des. Carreira Machado, j. 28.11.2002), do TJMG. Segundo o decisum, a obrigatoriedade da averbação da reserva não se aplicaria a áreas de Cerrado, cujas formas de vegetação ("arbustos enfezados, de galhada tortuosa") não seriam amparadas pelo Código Florestal. Ora, a decisão parte de uma imagem distorcida de aspectos ecológicos, fitogeográficos e jurídicos da realidade (ALVARENGA & RIBEIRO, 2008). Distorcida devido à desconsideração do Cerrado, apesar de toda a sua riqueza florística e biodiversidade, como eco-região protegida pelo sistema normativo brasileiro. Como observa Walter (2006, p. 35), áreas facilmente reconhecidas como florestais (p. ex., Amazônia, Mata Atlântica) "despertam no grande público muito mais interesse que qualquer outra vegetação". As savanas, ao contrário, são tomadas como vegetações de importância menor. "Isso é um erro!" - afirma o doutor em Ecologia. "Savanas naturais são um fato biológico, e são importantes por cobrirem vastas superfícies do planeta, podendo ser tão ricas quanto as mais ricas florestas tropicais; como é o caso do Cerrado brasileiro". Alberto Caeiro tinha razão: "Não basta abrir a janela / Para ver os campos e o rio / Não é bastante não ser cego / Para ver as árvores e as flores" (PESSOA, 2005, p. 157). Extrai-se outro exemplo do MS 1.0000.00.279477-4/000(1), também do TJMG. Nessa decisão, prevaleceu o entendimento de que a RL "não deve atingir toda e qualquer propriedade rural, mas somente aquelas que contêm área de florestas", de sorte que o condicionamento dos atos notariais necessários ao pleno exercício do direito de propriedade (art. 5.º, XXII, CF/88 (LGL\1988\3)) "somente está autorizado quando existir floresta no imóvel". Essa visão, além de se opor ao Código Florestal, descuida da relevância biogeográfica (conservação in situ de flora e fauna) da RL, reconhecida pela própria codificação (art. 1.º, § 2.º, III). Página 2

Reserva legal e conservação dos domínios ecológico-florísticos brasileiros: argumentos biológicos e jurídicos para uma análise crítica da jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais

Decisões como essas obstruem uma proteção mínima dos domínios ecológico-florísticos brasileiros, conforme as taxas fixadas pela legislação, e, de outro ângulo, distanciam-se de parâmetros ideais de conservação, recomendados pelas Ciências Ambientais. Este texto promove uma análise de conteúdo (GUSTIN & DIAS, 2006) e critica, sob os olhares da Biologia e do direito objetivo brasileiro, o entendimento subjacente ao MS 1.0000.00.279477-4/000(1), do TJMG, reiterado em vários julgados posteriores deste tribunal. Para isso, além de considerar proposições ecológicas para uma conservação adequada das áreas de RL, sugeridas por J. P. Metzger (2002), desenvolve argumentos baseados nos seguintes referenciais normativos: (a) o princípio da função socioecológica da propriedade rural (arts. 5.º, XXIII, 170, III e 186, II, CF/88 (LGL\1988\3)); e (b) o direito à vida num ambiente dignificante (arts. 1.º, 5.º, caput, III, 225, caput, CF/88 (LGL\1988\3)); e (c) diretrizes da Política Nacional do Meio Ambiente (art. 2.º, II, IV e VIII, Lei 6.938/81) e da Política Agrícola (arts. 3.º, III e IV e 19, parágrafo único, Lei 8.171/91). 2. Notas críticas 2.1 O entendimento jurisdicional em foco A Corregedoria-Geral de Justiça de Minas Gerais editou os Provimentos 50/2000 e 92/2003 que, ao replicarem a regra do art. 16 do Código Florestal, determinavam aos oficiais do registro imobiliário do referido Estado a averbação da RL. Entrementes, em 2003, a Corte Superior do TJMG apreciou o MS 1.0000.00.279477-4/000(1), pelo qual o conteúdo dos provimentos era questionado. Na decisão resultante, entendeu-se que: (a) o condicionamento dos atos notariais à prévia averbação da reserva extrapolaria a regra do art. 16 do Código Florestal e violaria o direito constitucional de propriedade (CF/88 (LGL\1988\3), art. 5.º, XXII); (b) o art. 16, § 8.º, da codificação não exigiria a prévia averbação da RL, e tampouco condicionaria a prática de outros atos notariais; (c) as exigências relacionadas à reserva não se aplicariam a toda e qualquer propriedade rural, mas tão-somente às densamente florestadas e susceptíveis à exploração; e (d) o pleno exercício do direito de propriedade, por implicar a execução de atos cartoriais, não poderia ser condicionado à prévia averbação da RL. Em vista disso, a Corregedoria editou o Aviso 30/GACOR/2003, suspendendo os efeitos dos mencionados provimentos. Isso significou, ulteriormente, a perda do objeto da lide, impedindo que o acórdão proferido no curso do MS 1.0000.00.279477-4/000(1) transitasse em julgado. No entanto, foram os argumentos insertos nessa decisão que acirraram o debate jurídico, notadamente em Minas Gerais, sobre o alcance das exigências correlativas à RL. O entendimento em questão foi condensado na seguinte ementa: "Reserva legal - Interpretação do art. 16 do Código Florestal - Condicionamento de atos notariais à exigência prévia de averbação da reserva - Falta de amparo legal - Direito líquido e certo de propriedade - Garantia constitucional Segurança concedida. A interpretação sistemática do art. 16 do Código Florestal nos conduz ao entendimento de que a reserva legal não deve atingir toda e qualquer propriedade rural, mas apenas aquelas que contêm área de florestas. Logo, tem-se que o condicionamento dos atos notariais necessários ao pleno exercício do direito de propriedade previsto no art. 5.º, XXII, da CF/88 (LGL\1988\3), à prévia averbação da reserva legal, somente está autorizado quando existir floresta no imóvel, o que não é o caso dos autos, pelo que se impõe a concessão da segurança requerida. V.V. Mandado de segurança - Averbação prévia da área de reserva legal à margem da matrícula de imóveis rurais - Provimento 50/2000, da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais Exigência imposta com amparo legal - Ordem denegada. Legal é a exigência de prévia inscrição à margem da matrícula de imóveis rurais nas hipóteses de transmissão do imóvel a qualquer título, de desmembramento ou retificação de área contida no Provimento 50, de 07.11.2000, da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais, harmônica às normas pertinentes, máxime as contidas no § 2.° do art. 16, §2.º, da Lei 4.771/65, na redação da Lei 7.803 de 1989. Ordem mandamental que se denega". Acórdãos recentes do TJMG partem da mesma óptica desvirtuada da realidade. Nos termos do MS 1.0283.06.004492-4/001(1) (rel. Des. Belizário de Lacerda, j. 22.05.2007), p. ex., lê-se que: "Obrigar o proprietário a averbar no registro imobiliário área florestal sem que área de floresta exista na propriedade é o mesmo que obrigar aquele a fazer o impossível". De modo similar, no MS 1.0694.06.031433-3/001(1) (rel. Des. Albergaria Costa, j. 29.03.2007), considerou-se que: "Havendo o art. 16 do Código Florestal considerado a possibilidade de exploração de florestas e outras formas de vegetação nativas de propriedade rural privada, fazendo, para tanto, a exigência de delimitação de reserva legal, fica evidente que a obrigação de averbação desta reserva legal, prevista no § 8.º, Página 3

Reserva legal e conservação dos domínios ecológico-florísticos brasileiros: argumentos biológicos e jurídicos para uma análise crítica da jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais

pressupõe a existência de floresta ou outra forma de vegetação nativa a ser desmatada". 2.2 Argumentos biológicos para a conservação da RL Em junho de 2002, J. P. Metzger, renomado Professor do Departamento de Ecologia da Universidade de São Paulo (USP), publicou um instigante artigo na revista Ciência Hoje, informativo científico da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). No estudo, intitulado "Bases biológicas para a 'reserva legal'", o biólogo criticava o reducionismo comum às discussões sobre as medidas mais adequadas para as RL. Naquele momento, os debates envolviam tão-somente argumentos políticos. De um lado, ouviam-se clamores dos movimentos sociais ambientalistas; de outro, bradavam vozes a defender a expansão das fronteiras agrícolas, em nome do mito, ecologicamente antinômico (ALVES, 2007a), do progressivo e contínuo aumento da produtividade. Na visão de Metzger, para além da bipolaridade político-discursiva de então, as discussões deviam ser orientadas por critérios científicos, baseados no repertório cognitivo da Biologia da Conservação. Nesse sentido, duas questões centrais precisavam ser enfrentadas: "1. existe uma extensão ideal de reserva legal, que ao mesmo tempo proteja a biodiversidade e permita o desenvolvimento de atividades agrícolas?; 2. existe uma disposição espacial ideal das reservas legais, que otimize a proteção da biodiversidade?" (METZGER, 2002). Para o estudioso, o emprego de alguns princípios da teoria da percolação1 à Ecologia daria resposta à primeira das indagações. Simulações baseadas nessa teoria seriam capazes de determinar a quantidade mínima de vegetação para manter a conectividade biológica, ou seja, a possibilidade de uma espécie atravessar a paisagem de uma ponta a outra, sem transitar por um ambiente externo. Pois bem. Após uma série de simulações em computador, chegou-se à conclusão - precisa, segundo Metzger - de que são necessários 59,28% da cobertura vegetal nativa de determinada área, no mínimo, para manter a conectividade biológica in situ. De acordo com o estudo, paisagens cuja vegetação ocupa um percentual superior a esse, têm baixo grau de fragmentação e alta conectividade biológica. "Por conter grandes áreas de vegetação, tais paisagens podem suportar populações com maior número de indivíduos e com menor risco de extinção" (METZGER, 2002). Numa situação oposta, áreas com mata nativa remanescente inferior à taxa recomendada sofrem perdas quanto à referida conectividade. Diante disso, o Professor da USP sugeriu que as RL ocupem 60%, pelo menos, 2 da área total das propriedades rurais, mantendo, entre si, grau máximo de agregação (em todos os biomas). 3 E destacou: "Tais argumentos biológicos baseiam-se na função principal das reservas legais: a conservação e o uso sustentável da biodiversidade" (METZGER, 2002). Sob a óptica interdisciplinar, 4 essas conclusões não colocam um ponto final, de modo algum, no debate. A avaliação das metragens ótimas para as áreas de RL há de considerar, em várias escalas, as especificidades dos diferentes biomas e ecossistemas brasileiros. Como apregoa Ab'Sáber (2003, p. 10), a utilização não predatória do ambiente terrestre requer o (re)conhecimento das "limitações de uso específicas de cada tipo de espaço e paisagem". Ademais, outros fatores - geológicos, fitogeográficos, sociais, políticos, econômicos, etc., todos interdependentes, embora com diferentes pesos e implicações - devem ser levados em conta nessa investigação. Todavia, os indicadores apresentados por Metzger encerram uma virtude de origem: fundamentarem-se em referenciais biológicos de conservação, os quais refletem, em parte, as condições de sustentabilidade dos ambientes naturais que o Direito preconiza resguardar (CF/88 (LGL\1988\3): art. 225, caput). Como sói acontecer, muitos acusarão as proposições do estudo de serem utópicas e, por isso, infactíveis. Compreensível... Como diria o poeta T. S. Eliot, citado por Alves (2007b): "Numa terra de fugitivos, aquele que anda na direção contrária parece estar fugindo". No aforismo, o caminhar oposto ao sentido habitual é a metáfora e tradução poética da essência da utopia: a crítica à realidade. Especialmente de uma realidade cuja sensatez, só aparente, deriva da mera repetição. Tem razão Santos (2000, p. 324) em afirmar que: "Enquanto nova epistemologia, a utopia recusa o fechamento do horizonte de expectativas e de possibilidades e cria alternativas; enquanto nova psicologia, a utopia recusa a subjetividade do conformismo e cria a vontade de lutar por alternativas". Página 4

Reserva legal e conservação dos domínios ecológico-florísticos brasileiros: argumentos biológicos e jurídicos para uma análise crítica da jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais 5

O que mais importa numa utopia não é, portanto, o que ela diz sobre o futuro, mas a crítica, com sentido profundamente transformador, que ela promove do presente. No âmbito das discussões sobre a proteção das bases ecológicas, sociais e culturais da existência coletiva, a utopia inspira e entusiasma a gestação de novos cenários e modos de interação com o ambiente, a despeito do paradigma dominante e da "mente monocultural", historicamente voltados para a exploração inconseqüente do território (SANTOS, 1987; PÁDUA, 2003-2004, p. 10). 6 Opondo-se à visão e à práxis recorrentes, os resultados do estudo em foco desempenham, assim, uma função questionadora. Num patamar aprofundado de abordagem, colocam em xeque as medidas espaciais que a lei atribui às RL. Isso porque, à exceção das áreas de reserva biogeográfica situadas na Amazônia Legal, que devem ocupar 80%, pelo menos, das glebas, e das situadas nos enclaves de Cerrado lá existentes, 7 cuja taxa obrigatória de conservação atinge 35%, as metragens mínimas para as reservas não ultrapassam 20% das propriedades rurais (Código Florestal: art. 16, III e IV), proporção territorial evidentemente muito inferior à sugerida por Metzger. De outro ângulo, tais resultados demonstram o quanto algumas práticas jurisdicionais distam de parâmetros ideais para conservação dos domínios ecológico-florísticos brasileiros. Se a Biologia recomenda a conservação de 60%, no mínimo, da vegetação nativa das propriedades rurais (em todos os biomas), quaisquer argumentações ou decisões contrárias à observância das medidas legais básicas para a reserva biogeográfica (35% para os enclaves de Cerrado na Amazônia, 20% para as demais fisionomias vegetais do território brasileiro) perdem consistência. Ora, que razões objetivas seriam bastantes para justificar a não conservação de 20% ou 35% da mata nativa de determinada gleba, a título de RL, se o repertório cognitivo das ciências da conservação biológica recomenda que a aludida reserva ocupe, pelo menos, 60% da área das propriedades rurais? Sob a ótica ecológica, as exigências da legislação florestal são, de fato, mínimas. Discussões científico-biológicas à parte, para a Ciência do Direito, a incidência dos preceitos relativos à RL independe da vontade ou opinião dos seus destinatários. Trata-se, deveras, de normas cogentes, cuja observância, antes de ser objeto de debates acadêmicos, é uma questão de legalidade. Existem na órbita jurídica, com efeito, princípios e regras que infirmam o entendimento subjacente ao MS 1.0000.00.279477-4/000(1), como se passa a demonstrar nos itens seguintes. 2.3 Caracterização teórico-normativa do Código Florestal O Código Florestal em vigor, que sucedeu ao de 1934, foi instituído no Brasil pela Lei 4.771, de 15.09.1965. Para Medeiros (2006, p. 52), seus objetivos seguiram a linha da codificação anterior. No entanto, a lei de 1965 criou quatro novas modalidades de áreas protegidas: parque nacional, floresta nacional, APP e RL. 8 "Estas duas últimas, uma tipificação de dispositivos existentes na versão de 34, eram uma clara tentativa de conter os avanços sobre a floresta. A primeira declarando intocável todos os espaços cuja presença da vegetação garante sua integridade (serviços ambientais) e, a segunda, transferindo compulsoriamente para os proprietários rurais a responsabilidade e o ônus de proteção (Brasil, 1965)" (MEDEIROS, 2006, p. 52, grifo nosso). Recepcionado e revigorado pela Constituição Federal de 1988, o atual Código Florestal se situa no ordenamento jurídico brasileiro como lei em sentido estrito. Trata-se de coleção de normas gerais sobre conservação de florestas e outras fisionomias vegetais, na perspectiva da defesa do meio ambiente e do patrimônio paisagístico nacional (art. 24, VI e VII, CF/88 (LGL\1988\3)), que a União fixou no exercício de sua atribuição legislativa concorrente (art. 24, § 1.º, CF/88 (LGL\1988\3)). Essas normas estabelecem diretrizes nacionais sobre o tema, mas "podem ser aplicadas indireta e mediatamente às relações e situações concretas a que se destinam" (MOREIRA NETO, 1988, p. 160-161). No sistema constitucional vigente, os Estados-membros e o Distrito Federal têm legitimidade para suplementá-las (art. 24, § 2.º, CF/88 (LGL\1988\3)). Os Municípios, por sua vez, podem estabelecer pormenorizações legislativas de aplicabilidade local, considerando peculiaridades e necessidades socioecológicas verificadas no âmbito de seus respectivos territórios (art. 30, I e II, CF/88 (LGL\1988\3)). No regime da competência concorrente limitada, as normas suplementares e locais, instituídas por Estados-membros ou Distrito Federal e municípios, respectivamente, não podem violar as diretrizes da União. Do contrário, o método constitucional de repartição de atribuições (art. 24, CF/88 (LGL\1988\3)) e, em última análise, o próprio princípio federativo (art. 1.º, caput, CF/88 (LGL\1988\3)) são desrespeitados. Com efeito, esse método preconiza resguardar, justamente, a unidade dos Página 5

Reserva legal e conservação dos domínios ecológico-florísticos brasileiros: argumentos biológicos e jurídicos para uma análise crítica da jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais

entes federados quanto a objetivos comuns ao território brasileiro como um todo (p. ex., conservação do mosaico paisagístico e do acervo florístico nacionais). Por isso, no que diz respeito, p. ex., à RL, os Estados têm atribuições jurídico-normativas para suplementar a legislação federal, ou seja, "podem acrescentar normas mais severas, mas não podem exigir menos do que a norma federal" (MACHADO, 2002, p. 704). Não é sem razão, portanto, que o Estado de Minas Gerais, p. ex., exige que a RL seja "representativa do meio ambiente natural da região" (Lei 14.309/2002: art. 14, caput). Trata-se de uma lógica normativa similar à que deriva do princípio do nível elevado de proteção ecológica, aplicável no âmbito do Direito Constitucional Europeu do Ambiente. 9 2.4 Demarcação e averbação da RL: norma geral e "densificação" de preceitos cardeais do direito brasileiro Para toda a amplitude territorial da Federação vigora a diretriz (norma geral) de que a RL deve ser averbada à margem da inscrição de matrícula do imóvel rural, no registro de imóveis competente, sendo defesa a alteração de sua destinação, nos casos de transmissão, a qualquer título, desmembramento ou retificação da área (Lei 4.771/65, com redação dada pela MedProv 2.166-67/2000: art. 16, § 8.º). 10 Em Minas Gerais, a Lei 14.309, de 19.06.2002 (Política Estadual Florestal e de Proteção à Biodiversidade), suplementar à codificação federal, também determina a conservação da reserva biogeográfica, nas hipóteses de negócios jurídicos transmissivos da propriedade ou posse de imóvel rural (art. 16, § 2.º). Sob o ângulo do direito constitucional substantivo, a RL se insere no rol dos espaços especialmente protegidos (art. 225, § 1.º, III, CF/88 (LGL\1988\3)), porções de território dedicadas "à proteção e manutenção da diversidade biológica e dos recursos naturais e culturais associados" (IUCN, 1994, p. 7). Decerto, tais espaços, na terminologia constitucional, não se reduzem às unidades de conservação instituídas pela Lei 9.985, de 18.07.2000 (MEDEIROS, 2006, p. 41), sendo correto afirmar que "toda unidade de conservação constitui um espaço territorial protegido, muito embora a recíproca não seja verdadeira" (FERREIRA, 2007, p. 241). Do ponto de vista principiológico, o instituto consiste em "densificação" (CANOTILHO apud ESPÍNDOLA, 1998, p. 233) 11 do preceito da função socioecológica da propriedade (arts. 5.º, XXIII, 170, III, e 186, II, CF/88 (LGL\1988\3)), intimamente relacionado ao fenômeno a que Benjamin (2007, p. 71) chama de "constitucionalização do ambiente". O emprego da locução "socioecológica" deriva da visão, através da lente constitucional, de que a observância da função ecológica da propriedade é condição para o cumprimento de seu papel social (MACHADO, 2002, p. 685; BRAGA & SANTIAGO, 2007, p. 13). Por certo, o reconhecimento de valores ecológicos pela Constituição Federal de 1988 "teve o intuito de, a um só tempo, instituir um regime de exploração limitada e condicionada (= sustentável) da propriedade e agregar à função social da propriedade, tanto urbana como rural, um forte e explícito componente ambiental" (BENJAMIN, 2007, p. 72). No direito brasileiro, a funcionalidade socioecológica é inerente ao direito de propriedade (SILVA, 1995, p. 273). 12 Sem ela, o exercício desse direito não tem legitimidade frente à Constituição Federal de 1988 (arts. 5.º, XXII e XXIII, 170, III, e 186). 13 Justamente por isso, o Código Florestal alude às ações ou omissões contrárias às regras que ele positiva como usos nocivos da propriedade (art. 1.º, § 1.º). Essa codificação contém exigências de extensão geral que, em nome do interesse coletivo, quanto à conservação da flora brasileira, condicionam o próprio exercício do direito em foco (ALVARENGA & VASCONCELOS, 2005, p. 35-36). A esse respeito, assim pontificou o Tribunal de Justiça do Paraná, ao julgar o AgIn 328.732-1 (rel. Des. José Marcos de Moura, j. 26.06.2007).: "A função sócio-ambiental da propriedade é inerente ao exercício do direito de propriedade, não esvaziando o conteúdo econômico da área rural as restrições impostas ao particular, com base no desenvolvimento sustentável". Em suma, as funções social e ecológica configuram a própria estrutura do direito de propriedade, cujo exercício somente é válido se tais funções forem efetivamente cumpridas (PACCAGNELLA, 1997, p. 7). A RL também é expressão concreta do direito fundamental a um ambiente dignificante, isto é, capaz de contribuir para a promoção da dignidade humana (ALVARENGA, 2006). A definição pelo Poder Público de espaços territoriais especialmente protegidos (CF/88 (LGL\1988\3): art. 225, §1.º, III) não tem seu foco restrito à proteção de ecossistemas e processos ecológicos tomados isoladamente. De uma perspectiva atenta às condições socioecológicas mínimas para uma vida humana digna (art. 1.º, III, art. 5.º, caput, CF/88 (LGL\1988\3)), trata-se, em última análise, "de instrumento para a concretização do próprio direito fundamental ao meio ambiente, direito intergeracional de usufruto de Página 6

Reserva legal e conservação dos domínios ecológico-florísticos brasileiros: argumentos biológicos e jurídicos para uma análise crítica da jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais

estados ecológicos essenciais" (AYALA, 2007, p. 273). De fato, como lembra Pádua (2006, p. 413): "O que está vivo na idéia do desenvolvimento é justamente o direito da humanidade, em suas diferentes expressões, melhorar suas condições de vida e realizar suas potencialidades". Ademais, considerando-se o aspecto diacrônico (histórico-evolutivo) do sobredito direito fundamental, as paisagens devem ser vistas como heranças que se materializam em conjuntos paisagísticos de longa e complexa elaboração fisiográfica e ecológica. Tem razão Ab'Sáber (2003, p. 10) em afirmar que: "Mais do que simples espaços territoriais, os povos herdaram paisagens e ecologias, pelas quais certamente são responsáveis, ou deveriam ser responsáveis. Desde os mais altos escalões do governo e da administração até o mais simples cidadão, todos têm uma parcela de responsabilidade permanente, no sentido da utilização não-predatória dessa herança única que é a paisagem terrestre". 14 Destarte, a visão de que o condicionamento dos atos notariais à averbação da RL extrapolaria a regra do art. 16, § 8.º, da Lei 4.771/1965 e violaria o direito constitucional de propriedade (art. 5.º, XXII, CF/88 (LGL\1988\3)) não tem consistência jurídica. Tampouco sustentação biológica, como demonstrado no item 2.2. Por encontrar suas causas finais na efetivação da função socioecológica da propriedade rural e do direito à vida num ambiente dignificante, essencialmente transindividual (ALVARENGA, 2006), a exigência de averbação é um fator de legitimação do exercício do domínio perante a coletividade, titular do aludido direito fundamental. Como ensina Derani (2001, p. 253), a propriedade "mostra um conteúdo mínimo instrumental para a realização dos sujeitos concretos, através da função de assegurar a realização dos interesses individuais e agora também sociais. O que legitima a propriedade é o exercício de sua função social [e ecológica]". A averbação obrigatória da reserva é, enfim, manifestação tangível do princípio da função socioecológica da propriedade e do direito fundamental e transindividual à vida num ambiente dignificante. A exigência se fundamenta, portanto, em preceitos cardeais do direito brasileiro. Não por acaso, o TJMG, ao julgar a ApCív 1.0694.06.033664-1/001 (rel. Des. Dárcio Lopardi Mendes, j. 23.08.2007), exprimiu a compreensão de que: "A questão da averbação da reserva legal demanda análise de vários princípios fundamentais do ordenamento jurídico pátrio, tais quais o direito à propriedade, a função social da propriedade, a defesa ao desenvolvimento econômico do país por meio da produção e a proteção ao meio ambiente". Sob o ângulo da relação lei-ecologia, a RL tem a desempenhar relevantes serviços ecossistêmicos. Como reconheceu o legislador, trata-se de espaço territorial cuja função é contribuir para o uso sustentável dos recursos naturais, a conservação e reabilitação dos processos ecológicos, a conservação da biodiversidade e o abrigo e proteção de fauna e flora nativas (Lei 4.771/1965, com modificações introduzidas pela MedProv 2.166-67/2001: art. 1.º, § 2.º, III). Poggiani & Oliveira (1998) estão certos, assim, ao categorizarem as áreas de RL como possíveis núcleos de vida silvestre, destinados à proteção de espécies indígenas da flora e da fauna, em ambientes submetidos a diferentes tipos de usos do solo. 2.5 Dissociação entre averbação da RL e presença de vegetação nativa conservada na gleba O sistema jurídico-normativo brasileiro ampara parcelas significativas e representativas de todos os domínios ecológico-florísticos existentes no Brasil, com seus variados tipos e fisionomias de vegetação, em que pese a incompletude específica do art. 225, § 4.º, da CF/88 (LGL\1988\3). 15 A Constituição Federal de 1988, ao fixar hipótese de competência comum (administrativa) entre União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios, obriga-os à proteção da flora (art. 23, VII, CF/88 (LGL\1988\3)), termo esse alusivo a todo o acervo de formas de vegetação ocorrentes na extensão territorial do país. Além disso, a Constituição de 1988 atribui ao Poder Público o dever de proteger a fauna e a flora, sendo vedadas "práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submeta os animais a crueldade" (art. 225, § 1.º, VII, CF/88 (LGL\1988\3)). "Por conseguinte" - já escreveram Alvarenga & Vasconcelos (2005, p. 18) - "pode-se afirmar que a Constituição Federal (LGL\1988\3) de 1988protege todas as formações vegetais brasileiras, não obstante algumas dessas formações (caatinga, Cerrado etc.) não encontrem referência explícita no texto constitucional em vigor". Alguns contra-argumentarão que essa interpretação é demasiadamente extensiva, que a CF/88 (LGL\1988\3) não se reporta a todas as fitofisionomias distribuídas nos diferentes domínios ecológico-florísticos brasileiros (Amazônia, Mata Atlântica, Cerrado, Campos Sulinos, etc.), mas Página 7

Reserva legal e conservação dos domínios ecológico-florísticos brasileiros: argumentos biológicos e jurídicos para uma análise crítica da jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais

tão-somente aos ambientes tipicamente florestais. Entretanto, regras situadas no patamar infraconstitucional, ao refletirem as normas de escalão superior, permitem que a imagem constitucional se revele com nitidez... Assim é que, ao espelhar os contornos principiológicos e detalhar essa imagem, a legislação brasileira dissocia a averbação da RL da presença de cobertura arbórea densa e de alto porte na gleba. Primeiro, porque o art. 1.º, § 2.º, III, da Lei 4.771/65, acrescentado pela MedProv 2.166-67/2001, ao definir a RL, refere-se à " área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural", e não apenas à vegetação ali distribuída. 16 Segundo, devido ao art. 16, caput e III, da mesma lei, alusivo a outras formas de vegetação nativa (arbustiva, herbácea, rasteira, rarefeita etc.) típicas dos diversos biomas que compõem o território nacional. Terceiro, porque o inc. IV do dispositivo em comento exige a conservação de 20% da composição vegetal em área de campos gerais (localizada em qualquer região do país), ambiente natural em que fitofisionomias reconhecidamente florestais são incomuns. Em suma, a Lei 4.771/61 contém regras destinadas à conservação de parcelas representativas de todos os domínios ecológico-florísticos e tipos de vegetação nativa ocorrentes no Brasil, e não apenas dos espaços densamente florestados. Áreas naturalmente cobertas por vegetação arbustiva, herbácea, rasteira ou rarefeita também compõem o mosaico fitogeográfico brasileiro e são dignas, tanto quanto as tipicamente florestais, de proteção legal, administrativa e jurisdicional. Não é à toa que, no âmbito do Estado de Minas Gerais, o artigo 14, caput, da Lei 14.309/2002 exige que a RL seja " representativa do meio ambiente natural da região". Portanto, a proteção legal não abrange somente áreas cuja cobertura arbórea seja densa e de alto porte, e sim todas as formas de vegetação nativa ocorrentes no território mineiro. Como se não bastassem tais argumentos, o art. 44 do Código Florestal, com redação determinada pela MedProv 2.166-67/2001, é categórico em exigir do proprietário ou possuidor de imóvel rural a recuperação ou compensação da RL, se a cobertura vegetal apresentar, in situ, extensão inferior às posturas normativas mínimas. Deveras, o fato de o atual proprietário ou possuidor do imóvel rural tê-lo assumido com a reserva de mata nativa já degradada não o exime de recuperá-la. Como observam Mantovani & Bechara (1999, p. 148), essa obrigação se caracteriza como propter rem. Ou seja, ela "acompanha a coisa independente de quem seja o seu titular e independente do fato de este titular ter ou não ter contraído, ele próprio, a obrigação. Dessa forma, o adquirente de propriedade sem Reserva Legal, ou cuja Reserva Legal tenha sido desmatada, fica obrigado a praticar a sua recomposição (e a ressarcir-se, posteriormente, com o autor do desmatamento)". Nas palavras de Führer, citado por Paccagnella (1997, p. 12): "As obrigações reais, propter rem (em razão da coisa), ou in rem scriptae (gravadas na coisa), situam-se numa zona cinzenta, entre o direito real e o direito obrigacional. Surgem como obrigações pessoais de um devedor, por ser ele titular de um direito real. Mas acabam aderindo mais à coisa do que ao seu eventual titular... Todas essas dívidas, além de não largarem o devedor originário, sob o aspecto obrigacional, vão também acompanhando sempre a coisa, sob o aspecto real, até que sejam satisfeitas, não importando se o devedor originário já foi substituído. Por isso se diz que são dívidas em razão da coisa (propter rem)". Seguindo essa linha de pensamento, o STJ, ao julgar o REsp 195.274-PR (rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ 20.06.2005), que versava sobre a RL, expressou a compreensão de que a responsabilidade por dano ambiental é objetiva (Lei 6.938/81: art. 14, § 1.º), "devendo o proprietário, ao tempo em que conclamado para cumprir obrigação de reparação ambiental, responder por ela". No mesmo acórdão, aquela corte referiu que o novo adquirente do imóvel rural "é parte legítima para responder ação civil pública que impõe obrigação de fazer consistente no reflorestamento da reserva legal, pois assume a propriedade com ônus restritivo". Mais incisivo, no julgamento do REsp 217.858-PR (rel. Min. Franciulli Netto, DJ 19.12.2003), o STJ concluiu que: "Aquele que perpetua a lesão ao meio ambiente cometida por outrem está, ele mesmo, praticando o ilícito. A obrigação de conservação é automaticamente transferida do alienante ao adquirente, independentemente deste último ter responsabilidade pelo dano ambiental". Por se basearem nas mesmas razões, também podem ser mencionados os acórdãos, igualmente do STJ, proferidos nos REsp 343.741-PR (rel. Min. Franciulli Netto, DJ 07.10.2002), 263.383-PR (rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ 22.08.2005) e 927.979-MG (rel. Min. Francisco Falcão, DJ 31.05.2007). Página 8

Reserva legal e conservação dos domínios ecológico-florísticos brasileiros: argumentos biológicos e jurídicos para uma análise crítica da jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais

Portanto, a averbação obrigatória da RL no registro imobiliário, além da conservação de parcelas significativas dos domínios ecológico-florísticos brasileiros, preconiza a recuperação de formações vegetais típicas da gleba (de alto porte, arbustiva, herbácea, rasteira etc.), representativas, in situ, dos referidos domínios. Ora, se o próprio legislador previu hipóteses em que o proprietário ou possuidor do imóvel rural deve recuperar a área de RL, logicamente, a exigência da averbação independe da presença de mata nativa conservada in loco. A insistência, ou quiçá renitência, em compreensão oposta, além de desrespeitar a CF/88 (LGL\1988\3) e o Código Florestal, contrapõe-se à Lei 6.938/81, que fixou as normas gerais da Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA). Isso porque essa política objetiva "a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no País, condições ao desenvolvimento socioeconômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana" (art. 2.º, caput). Além disso, a PNMA visa à racionalização do uso do solo, do subsolo, da água e do ar, à proteção dos ecossistemas, com a preservação das áreas representativas e, em destaque, à recuperação das áreas degradadas (art. 2.º, II, IV e VIII). 17 Ademais, as faltas de averbação e conservação da RL contrariam a Lei 8.171/91, que dispõe sobre a Política Agrícola. Essa, coerente com os objetivos da PNMA, tem como escopos "eliminar as distorções que afetem o desempenho das funções econômica e social da agricultura" e "proteger o meio ambiente, garantir o seu uso racional e estimular a recuperação dos recursos naturais" (art. 3.º, III e IV). Na mesma linha, a referida lei preceitua que a fiscalização e o uso racional dos recursos naturais são também "de responsabilidade dos proprietários de direito, dos beneficiários da reforma agrária e dos ocupantes temporários dos imóveis rurais" (art. 19, parágrafo único). 3. Síntese e proposições 1. Estudo baseado na Biologia da Conservação recomenda que a Reserva Legal (RL), com vegetação nativa conservada, ocupe pelo menos 60% da área total da gleba, para assegurar, in situ, a conectividade e diversidade biológicas. Esse indicador demonstra como são mínimos, sob a ótica científico-biológica, os percentuais de conservação atualmente exigidos pelo Código Florestal. Ademais, evidencia o quanto algumas práticas jurisdicionais distam de parâmetros ideais para a conservação dos domínios ecológico-florísticos brasileiros. 2. A obrigatoriedade de averbação da RL consiste em "densificação" do princípio da função socioecológica da propriedade rural e do direito fundamental à vida num ambiente dignificante (arts. 1.º, III, 5.º, caput, 225, caput, CF/88 (LGL\1988\3)), cuja titularidade é coletiva. A observância do comando normativo é uma das condições de legitimidade da propriedade (ou posse) rural perante a Constituição Federal de 1988 e a coletividade. A exigência é expressão tangível de preceitos cardeais do direito brasileiro. 3. A Lei 4.771/65 contém regras destinadas à conservação de parcelas significativas e representativas de todos os domínios ecológico-florísticos ocorrentes no Brasil (Amazônia, Mata Atlântica, Cerrado, Caatinga, Campos Sulinos, etc.), com seus diferentes ecossistemas e formas de vegetação nativa, e não apenas dos ambientes densamente florestados. Áreas naturalmente cobertas por vegetação arbustiva, herbácea, rasteira ou rarefeita também integram o mosaico fitogeográfico - brasileiro e são dignas, tanto quanto as reconhecidamente florestais (ex.: Amazônia, Mata Atlântica), de proteção legal, administrativa e jurisdicional. Sendo assim, a ausência natural ou artificial de agrupamentos arbóreos densos e de alto porte numa determinada gleba não constitui argumento juridicamente válido, nem ecologicamente fundado, diante da obrigatoriedade de demarcação, averbação e conservação da RL. 4. Referências bibliográficas 4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AB'SÁBER, A. N. Os domínios de natureza no Brasil: potencialidades paisagísticas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. ALVARENGA, L. J. O aspecto imaterial e a transindividualidade do direito a um meio ambiente dignificante como justificativas teóricas para o reconhecimento do dano ambiental coletivo extrapatrimonial. In: 11.º Congresso Internacional de Direito Ambiental, 2007, São Paulo. Anais... São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007. v. 2, p. 423-431. Página 9

Reserva legal e conservação dos domínios ecológico-florísticos brasileiros: argumentos biológicos e jurídicos para uma análise crítica da jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais

______; RIBEIRO, S. P. Argumentos jurídicos e fitogeográficos para a conservação das áreas de reserva legal no contexto ambiental do Cerrado brasileiro. In: 12.º Congresso Internacional de Direito Ambiental, 2008, São Paulo. Anais... São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008. v. 2, p. 495-508. ______; VASCONCELOS, A. S. Introdução ao Código Florestal Brasileiro: Lei 4.771, de 15 de setembro de 1965. In: AZEVEDO, M. G. L. et al (Org.). As leis federais mais importantes de proteção ao meio ambiente comentadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. ALVES, R. Cuidados paliativos. Aprendiz. Disponível [http://aprendiz.uol.com.br/content/spuphothed.mmp]. Acesso em: 14.08.2007a.

em:

______. Gandhi. 07.08.2007b.

em:

Disponível

em:

[http://www.rubemalves.com.br/gandhi.htm].

Acesso

______. Se eu pudesse viver minha vida novamente... Campinas: Verus, 2004. ANTONIL, A. J. Cultura e opulência no Brasil por suas drogas e minas. São Paulo: Melhoramentos, 1976. ARAGÃO, A. Direito constitucional do ambiente da União Européia. In: CANOTILHO, J. J. G.; LEITE, J. R. M. (Orgs.). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007. AYALA, P. A. Deveres ecológicos e regulamentação da atividade econômica na Constituição brasileira. In: CANOTILHO, J. J. G.; LEITE, J. R. M. (Orgs.). Direito constitucional ambiental brasileiro . São Paulo: Saraiva, 2007. BENJAMIN, A. H. Direito constitucional ambiental brasileiro. In: CANOTILHO, J. J. G.; LEITE, J. R. M. (Orgs.). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007. BOFF, L. Crise: oportunidade de crescimento. Campinas: Verus, 2002. BRAGA, F. A.; SANTIAGO, A. F. Áreas de preservação permanente e reserva legal: apontamentos jurídicos e ecológicos. In: ABREU, M. H. N. G. (Org.). Ciências ambientais: uma abordagem multidisciplinar. Belo Horizonte: Silveira Editora Gráfica, 2007. CONSERVAÇÃO INTERNACIONAL (BRASIL). Hotspots: as regiões biologicamente mais ricas e ameaçadas do planeta. 1999. Disponível em: [http://www.conservation.org.br/publicacoes/files/capa_hotspots.pdf]. Acesso em: 18.07.2007. DERANI, C. Direito ambiental econômico. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2001. ESPÍNDOLA, R. S. Conceito de princípios constitucionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. FERREIRA, H. S. Política ambiental constitucional. In: CANOTILHO, J. J. G.; LEITE, J. R. M. (Orgs.). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007. FIDALGO, E. C. C. et al . Mapeamento do uso e da cobertura atual da terra para indicação de áreas disponíveis para reservas legais: estudo em nove municípios da região amazônica. Revista Árvore, Viçosa, v. 27, n. 6, nov./dez. 2003, p. 871-877. GUSTIN, M. B. S.; DIAS, M. T. F. (Re)Pensando a pesquisa jurídica: teoria e prática. 2. ed. rev., atual. e ampl. pela BBR 14.724 e atual. pela ABNT 30.12.2005. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. LEFF, E. Epistemologia ambiental. São Paulo: Cortez, 2001. MACHADO, P. A. L. Direito ambiental brasileiro. 10. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2002. MACHADO, R. B. et al . Estimativas de perda da área do Cerrado brasileiro. Relatório técnico Conservação Internacional do Brasil, Brasília, 2004. 11f. MANTOVANI, M.; BECHARA, E. Reserva legal à luz da Medida Provisória 1.736. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, v. 4, n. 16, out./dez. 1999, p. 144-152. Página 10

Reserva legal e conservação dos domínios ecológico-florísticos brasileiros: argumentos biológicos e jurídicos para uma análise crítica da jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais

MARTINS JR., P. P. Epistemologia fundamental: um estudo introdutório sobre a estrutura do conhecimento e a aplicação prática da epistemologia na pesquisa científica. Programa Ciência e Realidade. Ouro Preto: UFOP - DEGEO/CETEC, 2000. Apostila. MEDEIROS, R. Evolução das tipologias e categorias de áreas protegidas no Brasil. Ambiente & Sociedade, Campinas, v. 9, n. 1, jan./jun. 2006, p. 41-64. METZGER, J. P. Bases biológicas para a "reserva legal". Ciência Hoje, Rio de Janeiro, v. 31, n. 183, jun. 2002, p. 48-49. MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 4. ed. São Paulo: Cortez; Brasília/ DF: UNESCO, 2001. MOREIRA NETO, D. F. Competência concorrente limitada; o problema da conceituação das normas gerais. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 25, n. 100, out./dez. 1988, p. 127-162. NASCIMENTO, L. A.; LINGNAU, C.; STOLLE, L. Diagnóstico da reserva legal e área de preservação permanente em uma propriedade rural Estação Experimental Canguiri da Universidade Federal do Paraná. In: XIII SIMPÓSIO BRASILEIRO DE SENSORIAMENTO REMOTO, 2007. Florianópolis. Anais... Florianópolis: INPE, 2007. p. 4.081-4.087. Disponível em: [http://marte.dpi.inpe.br]. Acesso em: 05.08.2007. PACCAGNELLA, L. H. Função socioambiental da propriedade rural e áreas de preservação permanente e reserva florestal legal. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, v. 2, n. 8, out./dez. 1997, p. 5-19. PÁDUA, J. A. A herança predatória e sua superação. [http://brasilsustentavel.fase.org.br/downloads.htm]. Acesso em: 13.02.2008.

Disponível

em:

______. A "mente monocultural" e a ocupação autoritária do território brasileiro. Proposta, Rio de Janeiro, n. 99, dez./fev. 2003-2004, p. 6-12. ______. Dilemas entrecruzados. Estudos avançados, São Paulo, v. 20, n. 57, maio/ago. 2006, p. 409-414. ______. Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista, 1786-1888. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. PARKHURST, G. M. et al . Aglomeration bonus: an incentive mechanism to reunite fragmented habitat for diversity conservation, Ecological Economics, n. 41, 2002, p. 305-328. PESSOA, F. Poesia completa de Alberto Caeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. POGGIANI, F.; OLIVEIRA, R. E. Indicadores para conservação dos núcleos de vida silvestre. Série Técnica IPEF, Piracicaba, v. 12, n. 31, abr. 1998, p. 45-52. RIGONATTO, C. A.; NOGUEIRA, J. M. Política ambiental: uma avaliação da eficácia da reserva legal. Disponível em: [http://www.alasru.org/cdalasru2006/14%20GT%20Claudinei%20Antonio%20Rigonatto.pdf]. Acesso em: 16.11.2007. SALOMON, M. Com estímulo oficial, floresta vira capim. Folha de S. Paulo, Cad. Ciência, 13 jan. 2008, p. A 31. SANTIAGO, A. F. Reserva legal. Revista de Direito Agrário, Brasília, a. 19, n. 18, 2006, p. 45-63. SANTOS, B. S. Um discurso sobre as ciências. Porto: Afrontamento, 1987. ______. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2000. SCHNEIDER, A. V.; ROCHADELLI, R.; BONILHA, R. M. Impacto socioeconômico decorrente da implementação da reserva florestal legal: um estudo de caso. Floresta, Curitiba, v. 35, n. 3, set./dez. 2005, p. 495-499. Página 11

Reserva legal e conservação dos domínios ecológico-florísticos brasileiros: argumentos biológicos e jurídicos para uma análise crítica da jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais

SERRES, M. Contrato natural. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991. SILVA, J. A. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 1995. IUCN. Guidelines for protected area management categories. Disponível em: [http://www.unep-wcmc.org/protected_areas/categories/eng/index.html]. Acesso em: 08.01.2008. WALTER, B. M. T. Fitofisionomias do bioma Cerrado: síntese terminológica e relações florísticas. Brasília, 2006. 389f. Tese (Doutorado em Ecologia) - Departamento de Ecologia, Instituto de Ciências Biológicas, Universidade de Brasília, 2006.

1. Essa teoria, originária da Física, "procura explicar e predizer os processos que levam à condutividade (ou conectividade) de um elemento através de espaços bidimensionais. [...] Princípios derivados dessa teoria têm sido utilizados hoje em ecologia, com base em uma analogia entre a passagem de eletricidade (conectividade ou percolação elétrica) e a passagem de um indivíduo através de uma paisagem (conectividade ou percolação biológica)" (METZGER, 2002). 2. Não se questiona a atual redação do art. 16, I, do Código Florestal, determinada pela MedProv 2.166-67/2001. A atribuição de 60% como percentual mínimo para a extensão da RL, com base nas investigações de Metzger, não significa, de modo algum, que os atuais 80% exigidos para as reservas localizadas na Amazônia Legal sejam inadequados. 3. No que toca à distribuição espacial ótima das áreas de RL, Metzger (2002) relembrou discussão ocorrida nos anos 70 e 80, conhecida pela sigla SLOSS (do inglês "single large or several small?"), e destacou que, do ponto de vista da conservação, é preferível uma grande área de vegetação nativa a vários fragmentos de cobertura vegetal desconectados entre si. Quanto maior a fragmentação, maior o risco de extinção de espécies. Confirmando essa conclusão, Parkhurst e outros (2002) observaram que a interligação das paisagens ecológicas amplia o potencial de sua conservação. Em Minas Gerais, a Lei 14.309, de 19.06.2002, replica norma geral do Código Florestal (Lei 4.771/65: art. 16, § 4.º, V, com redação determinada pela MedProv 2.166-67/2001) e reconhece a relevância ecológica da máxima agregação possível dos espaços territoriais especialmente protegidos (art. 225, § 1.º, III, CF/88 (LGL\1988\3)). Segundo o art. 16, § 1.º, da lei mineira, a RL deve ser demarcada "em continuidade a outras áreas protegidas, evitando-se a fragmentação dos remanescentes da vegetação nativa e mantendo-se os corredores necessários ao abrigo e ao deslocamento da fauna silvestre". 4. Sobre essa forma de abordagem, ver, p. ex., Martins (2000), Leff (2001) e Morin (2001). 5. Na visão de Boff (2002, p. 33), uma utopia tem função semelhante às estrelas. "Elas estão dependuradas lá no alto do firmamento. Não podemos nunca alcançá-las. Mas elas iluminam a noite. Servem de orientação para quem navega em navios e aviões. Enchem de reverência o espírito humano. Semelhantemente a utopia. Ela é, por definição, inalcançável nos quadros da história presente. Mas ela incita as práticas humanas e impede que a história se congele nos fatos atuais. Ela mantém a esperança aberta para cima e para a frente. Como as estrelas". "Que seria de nós" indagaria Valéry, citado por Alves (2004, p. 148) - "sem o socorro das coisas que não existem?". Para Benjamin (2007, p. 58-59): "a ecologização do texto constitucional traz um certo sabor herético, deslocado das fórmulas antecedentes, ao propor a receita solidarista - temporal e materialmente ampliada (e, por isso mesmo, prisioneira de traços utópicos) - do nós-todos-em-favor-do-planeta". 6. Pádua (2003-2004, p. 7) observa que o Brasil não nasceu como uma nação ou país, mas sim "de um arquipélago de projetos de exploração ecológica". Isto está indicado no próprio nome "Brasil", que "sinaliza a exploração direta do mundo natural como fundamento da apropriação e ocupação social do território. Um processo exploratório que se expressou mais diretamente no que já foi chamado de tripé maldito da colonização: a escravidão, o latifúndio e a monocultura". 7. Como explicam Machado e outros (2004, p. 2), "existem encraves de vegetação de Cerrado em outros domínios de vegetação, como as áreas de Cerrado no Estado de Roraima, Amapá, Amazonas (Campos de Humaitá), Rondônia (Serra dos Pacaás Novos), Pará (Serra do Cachimbo), Bahia Página 12

Reserva legal e conservação dos domínios ecológico-florísticos brasileiros: argumentos biológicos e jurídicos para uma análise crítica da jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais

(Chapada de Diamantina) e para o sul do Estado de São Paulo e Paraná". 8. Schneider, Rochadelli & Bonilha (2005, p. 496) lembram que a denominação "reserva legal", que sucedeu à expressão "reserva florestal legal", advém das alterações promovidas no Código Florestal pela Lei 7.803, de 18.07.1989. 9. Para Aragão (2007, p. 38), essa lógica significa que, "existindo normas de Direito Comunitário a regular uma determinada matéria jus-ambiental, o legislador nacional estará obrigado, por força do princípio do nível elevado de protecção ecológica, a consagrar internamente uma protecção pelo menos igual a esse nível". 10. Paccagnella (1997, p. 11) lembra que o Código Florestal de 1934 previa uma "reserva legal" na proporção de 25% das terras da gleba, que não podia ser desmatada (Dec. 23.793/1934: art. 23). Entrementes, naquela época, a exigência visava a assegurar uma quantidade mínima de madeira, e não à proteção da biodiversidade (RIGONATTO & NOGUEIRA, 2007). 11. Canotilho citado por Espíndola (1998, p. 233) esclarece que: "Densificar uma 'norma' significa preencher, complementar e precisar o espaço normativo de um preceito constitucional, especialmente carecido de concretização, a fim de tornar possível a solução, por esse preceito, dos problemas concretos". 12. Para Santiago (2006), a integração da função social à estrutura do direito de propriedade tem reconhecimento normativo "em dispositivo pouco lembrado, o art. 12 do Estatuto da Terra, que, ao determinar caber à propriedade privada da terra ' intrinsecamente uma função social' consagrou o entendimento de que a função social é elemento interno do conceito jurídico de propriedade". 13. Para Benjamin (2007, p. 59), as inovações da CF/88 (LGL\1988\3) quanto à proteção ambiental não significaram simples "reordenação cosmética da superfície normativa, constitucional e infraconstitucional". Essas inovações implicaram, p. ex., "o enfraquecimento da separação absoluta entre os componentes naturais do entorno (o objeto, na expressão da dogmática privatística) e os sujeitos da relação jurídica, com a decorrente limitação, em sentido e extensão ainda incertos, do poder de disposição destes (= dominus) em face daqueles (= res)". 14. Visualizadas como heranças, as paisagens terrestres (algumas, em especial, por suas características fisiográficas, biogeográficas e de ocupação humana) podem ser reconhecidas como integrantes do acervo histórico-cultural brasileiro, sob a perspectiva do art. 216, V, da CF/88 (LGL\1988\3), que alude aos sítios de valor paisagístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico como bens constitutivos do patrimônio cultural do país. Deveras, ambientes reconhecidamente naturais (p. ex., Cerrado) podem ter, sim, um significado cultural-jurídico relevante, porquanto portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos diversos grupos formadores da sociedade brasileira (art. 216, caput, CF/88 (LGL\1988\3)). 15. A redação atual do art. 225, § 4.º, da CF/88 (LGL\1988\3) pode suscitar um equívoco, o de que Cerrado e Caatinga, entre outras eco-regiões ou ecossistemas, não são dignos de amparo jurídico tanto quanto a Floresta Amazônica, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal e a Zona Costeira. Em se tratando de Cerrado, o conflito entre sistema jurídico-normativo e repertório científico fitogeográfico é sobremodo evidente. Despreza-se a inclusão do bioma na lista dos hotspots para conservação da biodiversidade, regiões que combinam alta diversidade por metro quadrado, mas que se encontram altamente ameaçadas, principalmente pela ação humana (CONSERVAÇÃO INTERNACIONAL, 1999). 16. Pode-se afirmar que o Código Florestal considera as interações sistêmicas entre os diversos tipos de vegetação e os domínios fitogeográficos em que eles podem ocorrer (AB'SÁBER, 2003). Ou seja, a lei é compreensiva das relações entre cobertura florística e diferentes feições de relevo, tipos de solo, aspectos geomorfológicos, condições climático-hidrológicas, etc. Não é à toa, pois, que a Lei 4.771/65 emprega o termo "área" ao conceituar a APP e a RL. Ao fazê-lo, a lei protege a paisagem como um sistema, e não apenas a flora nela existente. Em coerência com essa visão, a Lei 8.171/91, que dispõe sobre a Política Agrícola, preceitua que: "O solo deve ser respeitado como patrimônio natural do País" (art. 102, caput). Página 13

Reserva legal e conservação dos domínios ecológico-florísticos brasileiros: argumentos biológicos e jurídicos para uma análise crítica da jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais

17. Como densificação dos aludidos princípios da PNMA, o Dec. 5.975, de 30.11.2006, que regulamenta o art. 16 do Código Florestal, incentiva a reposição florestal da RL, ao preceituar, no texto do art. 19, que: "O plantio de florestas com espécies nativas em áreas de preservação permanente e de reserva legal degradadas poderá ser utilizado para a geração de crédito de reposição florestal".

Página 14

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.