Resistência e direito à cidade: esboço de uma gênese do movimento em Porto Alegre

July 21, 2017 | Autor: Daniel Cunha | Categoria: Marxismo, Junho 2013, Direito à Cidade, Jornadas de Junho de 2013
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[-] Sumário # Edição Especial

EDITORIAL

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ENTREVISTA OS SENTIDOS DA REVOLTA Com Sinal de Menos, por Roger Behrens

7

ARTIGOS RESISTÊNCIA E DIREITO À CIDADE Esboço de uma gênese do movimento em Porto Alegre Daniel Cunha

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O COLAPSO DO ARRANJO BRASILEIRO Joelton Nascimento

27

O GIGANTE QUE ACORDOU – OU O QUE RESTA DA DITADURA? Protofascismo, a doença senil do conservadorismo Cláudio R. Duarte

34

A REVOLTA E SEU DUPLO Entre a revolta e o espetáculo Paulo Marques

55

VISÕES DO MOVIMENTO – PSOL E FRENTE AUTÔNOMA Impressões de Porto Alegre Suelem Freitas

80

A COMÉDIA DA MORAL PACÍFICA André Guerra

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DECIFRA-ME OU DEVORO-TE As jornadas de junho/julho e a luta de classes no Brasil contemporâneo Diego Grossi

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A MOBILIDADE DO INFERNO PROLETÁRIO A vida nos trens da hiperperiferia de São Paulo Cláudio R. Duarte

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EXPEDIENTE

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Resistência e direito à cidade Esboço de uma gênese do movimento em Porto Alegre

Daniel Cunha1 Taking division down to where I shouldn’t be / Turn pockets run aground in the green / New way to see what’s laid plain in front of me / Nothing better than a look at what I shoudn’t see // When you examined the wreck, what did you see? / Glass everywhere and wheels still spinning free / you examined the wreck, what did you see? / Glass everywhere and wheels still spinning free // Accidental, maybe / Restraints too frayed to withhold me / Remember, you told me / You will go where you’re meant to be // This is my wreck, so let it be / Cracked gauges carry messages for me / Calls and responses you can’t see / Calls and responses you can’t see // I know you’d never grasp the possibilities / What would you risk to rescue me? / So turn your back, just drive on past / ‘Cause nothing is better than getting out fast // Taking division down to where I shouldn’t be / Five blocks down in the middle of the green / No messages wash ashore with me / Glass shards reflecting light so I can see // I know you’d never grasp the possibilities / What would you risk to recue me? Jawbox, Motorist2

A faixa de uma das primeiras manifestações dos protestos de junho em São Paulo – “Vamos repetir Porto Alegre” – parece remeter à capital do Rio Grande do Sul como a faísca inicial das revoltas, ainda que não se possa nunca indicar um ponto no espaço e no tempo para o início dos processos sociais (Salvador teve a revolta do Buzu em 2003; Florianópolis viu a Revolta da Catraca em 2004; o Movimento Passe Livre existe desde 2005). Pretendemos aqui fazer uma breve narrativa crítica das lutas sociais em Porto Alegre em 2013. O centro dos acontecimentos que posteriormente se nacionalizaram e expandiram foi o Bloco de Luta pelo Transporte Público3. Aqui analisaremos esse núcleo marcadamente esquerdista que iniciou e liderou as manifestações em Porto Alegre, desde o início do ano. A partir de junho, com a nacionalização e massificação do movimento, houve também nessa cidade alguns elementos proto-fascistas, conforme Este texto não pretende ser uma observação “neutra” a partir de um ponto de vista externo, mesmo que certamente pretenda ser uma reflexão crítica. Participei ativamente tanto do Bloco de Luta pelo Transporte Público quanto de praticamente todos os outros movimentos aqui citados, em maior ou menor grau. 2 Para ouvir: http://www.youtube.com/watch?v=jEmP4lzt1rA 3 Página do Facebook: https://www.facebook.com/pages/Bloco-de-Luta-pelo-TransportePúblico/488875294508389 15 1

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descrito em outros textos desta edição da Sinal de Menos4, mas eles nunca chegaram a ser preponderantes. Antes, porém, entendemos que é preciso determinar todo um contexto, que vai do nível municipal ao federal, e toda uma rede de antecedentes, para que se tenha uma compreensão do que levou à explosão da revolta. Em comum com outras capitais do país, Porto Alegre é uma cidade congestionada devido ao incentivo do governo federal à compra de automóveis – redução de IPI5 – e às obras viárias ligadas à Copa do Mundo; isto é ainda potencializado por uma política de mobilidade urbana que concede prioridade absoluta ao automóvel, com frequentes alargamentos de ruas e avenidas, construção de viadutos, etc. – tudo movido a crédito federal. Para piorar, assim como em muitas outras cidades, em Porto Alegre a passagem de ônibus há anos sobe acima da inflação e o transporte público é comandado por um cartel, com contas sem transparência. A isto se soma a privatização dos espaços públicos (parcerias público-privadas), a higienização social no bairro Cidade Baixa, tradicional reduto boêmio da cidade, e a remoção de famílias pobres devido a obras da Copa. No plano eleitoral, José Fortunati (PDT) acabava de ser eleito em primeiro turno, com mais de 60% dos votos, em grande composição partidária na qual não estava incluído o PT, mas este concorreu com um candidato chapa-branca sem nenhum carisma (contra a vontade de boa parte do partido, que queria aliar-se a Fortunati). A esquerda partidária não soube talhar um discurso coerente de oposição, ficando limitada a um moralismo do “combate à corrupção e aos privilégios” muito parecido com o discurso da direita (PSOL) e ao marxismo tradicional (PSTU) pouco atraente em uma cidade basicamente de serviços como Porto Alegre – para não mencionar a candidata Manoela D’ávila (PC do B), que tentou apresentar-se como “boa gerente” do capital, contou com o apoio da reacionaríssima Ana Amélia Lemos (PP) e escondeu a sua sigla em sua propaganda. Em nosso entendimento, a grande votação de Fortunati se deveu muito mais à descrença de que outros candidatos trariam alguma mudança efetiva do que a uma grande aprovação de seu governo (que ele assumiu na metade devido à renúncia de José Fogaça, do PMDB, para concorrer a governador). Contraditoriamente, portanto, a grande votação não indicou representatividade real. 4 5

Ver os textos de Cláudio R. Duarte e Paulo Marques nesta edição da Sinal de Menos. O prefeito José Fortunati (PDT) poderia usar isto como álibi para o caos urbano, já que além de aumentar a frota de veículos, diminui a arrecadação dos municípios; o álibi se perde, porém, quando a administração de Fortunati assume integralmente (e estimula) a lógica da urbanização carrocêntrica. 16

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Dada a cooptação e incompetência da esquerda, a oposição social efetiva na cidade ficou a cargo de grupos e movimentos não-partidários e anarquistas. Um dos que mais se destacou foi o Defesa Pública da Alegria. Que a “alegria” seja mote de agrupamento político requer uma explicação. Em seu primeiro manifesto, há uma crítica da forma de desenvolvimento urbano da cidade: Estão nos acostumando ao silêncio obrigatório, à onipresença das sirenes, à venda criminosa dos nossos maiores patrimônios públicos. Estão nos acostumando a uma cidade e uma sociedade cinzentas, a um desgoverno municipal que não ouve, impõe, reprime: a população se mobiliza e sua voz cresce, chama atenção para suas reivindicações, mas estas são reduzidas a caso de polícia. (...) Estão nos acostumando a uma sensação de impotência que pesa toneladas. Porto (ex-)Alegre se tornou uma cidade que arranca as pessoas de suas casas em nome de um campeonato de futebol, que esvazia de gente as ruas e praças, que persegue a música e qualquer forma de arte nas ruas e nos bares, que mutila parques e impõe um viaduto na beira do Guaíba – sabia? – em nome da falida cultura do carro, que abandona o transporte público e a bicicleta e orgulha-se de sua ciclovia de 400 metros6 (...) Nossa alegria como uma bandeira, como um direito.7

Ocorre que uma série de ações da prefeitura restringiram o uso dos espaços públicos e os espaços de convivência dos jovens da cidade. O Largo Glênio Peres, espaço tradicional da cidade ao lado do Mercado Público, foi “adotado” pela Coca-Cola, o que resultou em restrições à realização de feiras populares e apresentação de artistas de rua, ao mesmo tempo em que era liberada a sua utilização como estacionamento. O bairro boêmio e estudantil da cidade, a Cidade Baixa, foi alvo de ação de “ordenamento” autoritário. Especificamente, horários de funcionamento de bares e restaurantes foram determinados de forma truculenta, com batidas realizadas com homens fortemente armados, sob o pretexto do horário de silêncio. Havia forte suspeita de que os reais motivos das operações eram relativos à especulação imobiliária (transferência de bares para outra região, com construção de edifícios). O fato de que apenas lugares populares eram fechados levou a acusações de higienização social. Na eleição posterior às operações na Cidade Baixa, a vereadora que fez oposição explícita às intervenções fez mais votos no bairro do que o secretário municipal que a promoveu8, demonstrando a preponderância da rejeição. O grupo Defesa Pública da Alegria foi constituído

Referência a uma ciclovia terrivelmente malfeita, com intenção apenas de “aplacar” os ânimos dos participantes da Massa Crítica (ver adiante). Ver meu texto A guetização dos ciclistas em Porto Alegre: http://vadebici.wordpress.com/2012/09/05/a-guetizacao-dos-ciclistas-de-porto-alegre/ 7 Da página do Facebook: https://www.facebook.com/defesadaalegria, post de 30.09.2012. 8 Fernanda Melchionna (PSOL) e Valter Nagelstein (PMDB), respectivamente. 17 6

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principalmente por estudantes e artistas, como resistência ao ataque da municipalidade aos espaços públicos e de convivência. O grupo chama protestos, manifestações e celebrações. Entre eles, o Largo Vivo, onde a praça central da cidade é tomada por pessoas que realizam atividades lúdicas e culturais (música, teatro, piquenique, malabares, rodas de conversa, etc.). Destacaram-se ainda protestos contra ícones corporativos em espaços públicos, como o mascote inflável gigante da Copa (o tatubola), que foi reprimido com violência extrema pela polícia9 (uma espécie de antecipação do que ocorreria em junho em São Paulo) e a lata de Coca-Cola inflável gigante ao lado do Auditório Araújo Viana, espaço cultural tradicional da cidade, que foi entregue a uma “parceria” público-privada, e que acabou destruída10. Este grupo trouxe à atmosfera da cidade a noção de tomada do espaço público, junto a um certo espírito lúdico e iconoclasta11. Outro movimento social de destaque nos últimos anos é a “Massa Crítica”, movimento internacional onde um grande grupo de ciclistas toma as ruas e pedala em conjunto, interrompendo o fluxo de automóveis por onde passa. De 500 a 1000 ciclistas pedalam pelas ruas da cidade toda última sexta-feira do mês. A forma da manifestação materializa o princípio dialético da transformação da quantidade em qualidade: da fragilidade de uma bicicleta solitária, se passa à força de uma massa compacta de ciclistas, que é capaz de parar o trânsito de veículos motorizados. O protesto/celebração é horizontal e anárquico, com distribuição de funções (os “rolhas” interrompem as vias transversais, com suas bicicletas, para que toda a massa passe nos cruzamentos; escolha coletiva do itinerário). Os participantes são em sua maioria jovens de classe média com interesse em mobilidade urbana sustentável. O atropelamento coletivo de Ricardo Neis durante uma Massa foi um marco12. Foram realizados dois fóruns mundiais da bicicleta na cidade13, com financiamento coletivo pelos próprios participantes e participação de

Ver em http://www.youtube.com/watch?v=4N6L8pXlR3g e http://www.youtube.com/watch?v=YHBy0nu5lj0 10 Ver em http://www.sul21.com.br/jornal/2012/10/fotos-inflavel-da-coca-cola-e-queimado-apos-showde-tom-ze-no-araujo-vianna/ 11 Para um panorama dos movimentos que se inserem na luta político-cultural pelos espaços públicos, ver o texto de Cristiane Cubas, Porto Alegre: espaços de afeto e zonas temporárias de convivência, disponível em http://pontoeletronico.me/2013/05/15/porto-alegre-espacos-de-afeto-e-zonastemporarias-de-vivencia-2/ 12 Ver em http://www.youtube.com/watch?v=6XL3g4vPK30 13 http://www.forummundialdabici.com/ 18 9

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painelistas internacionais como Chris Carlsson, pioneiro do movimento em San Francisco (EUA). Na última eleição, um vereador se elegeu tendo basicamente a bicicleta e as ciclovias como mote14. A Massa Crítica materializa em Porto Alegre a crítica em ato da cultura do automóvel. No contexto do “consenso” político suprapartidário já mencionado, os coletivos anarquistas cultivaram na cidade aquilo que os partidos políticos parecem ter abdicado: espaços de discussão política contestadora e interação sócio-cultural. A Federação Anarquista Gaúcha (FAG) é a organização com mais base teórica (anarquismo especifista), e mantém trabalho social através da Resistência Popular. Em seu Ateneu15, mantém biblioteca e organiza cooperativa de consumo de alimentos orgânicos. No Espaço Deriva16 são realizadas discussões regularmente, e também se mantém uma editora independente; o coletivo Moinho Negro sedia anualmente uma feira do livro anarquista. Uma peculiaridade é que em certos grupos anarquistas há simpatia pelo primitivismo e pelo veganismo. Os anarquistas trouxeram ao espírito do tempo de Porto Alegre a cultura da ação direta, da política de rua e da discussão em forma de círculo, não-hierárquica. O nível de tensionamento político provocado pelos anarquistas pode ser ilustrado pelo fato de que a FAG foi criminalizada tanto pelo governo de Yeda Crusius (PSDB) quanto pelo de Tarso Genro (PT).17 A isso também se soma o assentamento urbano Utopia e Luta, os ecologistas, o movimento contra as remoções de pessoas devido às obras da Copa, que se reveste de elementos racistas e de higienização social, e o OcupaPoa, movimento do tipo “ocupa” que começou em Nova Iorque e se espalhou pelo mundo, que foi um centro de ideias e debates por alguns meses na Praça da Matriz, em frente ao Palácio Piratini (sede do governo estadual). O Utopia e Luta é uma ocupação urbana em Porto Alegre onde boa parte dos residentes é autonomista, exercendo a autogestão coletiva, e se insere de forma militante nos movimentos sociais. O assentamento possui espaço para debates e apresentações artísticas, bem como uma horta comunitária hidropônica no terraço e Marcelo Sgarbossa (PT). http://batalhadavarzea.blogspot.com.br/ 16 http://www.deriva.com.br/?page_id=898 17 Sobre a criminalização de Tarso Genro, ver a notícia em: http://www.sul21.com.br/jornal/2013/06/federacao-anarquista-gaucha-denuncia-invasao-da-suasede-na-cidade-baixa/; e o vídeo http://www.youtube.com/watch?v=AnVmxtk4drI (declaração da FAG). 19 14 15

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realiza oficinas diversas (serigrafia, costura, etc.). O Utopia e Luta caracteriza-se como espaço de resistência e organização das lutas urbanas. Os ecologistas atuaram na resistência às muitas obras viárias e intervenções urbanas que implicavam o corte de árvores e o aumento de fluxo de automóveis. Recentemente alguns foram presos por protestar contra o corte de árvores resultante do alargamento de uma avenida (suspeitase que tenha relação com a Fórmula Indy), em operação policial na calada da noite, juridicamente questionável.18 O contexto da constituição do Bloco de Lutas pelo Transporte Público, portanto, era o de um vácuo da política partidária institucional, gerado pelo contexto aliancista de nível nacional e pela falta de bases e discursos pouco aglutinadores dos partidos à esquerda do PT (PSOL, PSTU), ao lado de um crescente movimento anarquista e apartidário (mas não antipartidário) que lutava por demandas específicas, como a mobilidade urbana por bicicleta, questões ecológicas e a preservação dos espaços públicos. O Bloco de Luta é um grupo heterogêneo que uniu em torno da pauta do transporte público militantes de partidos políticos (PSOL, PSTU, e, minoritariamente, esquerda do PT), anarquistas (Federação Anarquista Gaúcha e outros coletivos e indivíduos, que formaram a Frente Autônoma), trabalhadores rodoviários (a oposição sindical, já que o sindicato é cooptado pelos patrões) e outras organizações e grupos, como o Levante Popular da Juventude, diretórios de estudantes secundaristas e universitários, grupos de teatro libertário, pequenos grupos marxistas revolucionários e outros, além de indivíduos independentes. O método de deliberação são as assembleias horizontais. Pode-se dizer que essa miríade de grupos e coletivos convivem em “tensão equilibrada” – a “Frente Autônoma”, por exemplo, foi organizada entre anarquistas e autonomistas,

para,

entre

outras

coisas,

impedir

que

o

movimento

seja

instrumentalizado por partidos; o Bloco mantém acordo de que cada organização leva apenas duas bandeiras nas marchas, para evitar a “tomada” visual por qualquer dos grupos que o compõe. As lutas sociais em Porto Alegre seguiram uma dinâmica, até o momento, de três ondas. A primeira onda, nitidamente esquerdista, cuja tática foi basicamente as 18

Ver em http://www.sul21.com.br/jornal/2013/05/operacao-prende-manifestantes-e-comeca-aderrubar-arvores-no-gasometro/ 20

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manifestações de rua com interrupção do tráfego, ocorreu de janeiro a abril, e conseguiu cancelar o aumento das passagens de R$ 2,85 para R$ 3,05.19 O nível de consciência política foi alto, e incluiu atos não apenas em frente à Prefeitura, mas também em frente à Associação dos Transportadores de Passageiros (a sede dos empresários do transporte). A segunda onda seguiu a repressão das manifestações de São Paulo, em junho. Aqui, houve uma maior massificação, com manifestações que reuniram de 20 a 30 mil pessoas. Porém, a massa era qualitativamente mais pobre, com grande número de pessoas despolitizadas, portando bandeiras nacionais e do RS, com motes vazios como “contra a corrupção” e equivocados como “contra a PEC 37”. Houve claros sinais de tentativa de cooptação pela direita, como a confecção e distribuição de 10 mil cartazes de alta qualidade e de origem obscura em uma passeata, contendo a pauta conservadora e despolitizante das “cinco causas” do Anonymous.20 Mesmo assim, ao contrário de São Paulo, por exemplo, a direita nunca conseguiu se apropriar do movimento. Duas marchas se dirigiram à RBS (afiliada da Rede Globo), em clara postura crítica à grande mídia corporativa, com forte repressão da polícia comandada pelo PT. A terceira onda se deu com a Greve Geral. Na véspera da greve, o Bloco de Luta ocupou a Câmara de Vereadores. Na ocupação ocorreu experiência de grande significado, autogestionária, que durou oito dias, e que intensificou o já existente sentimento de camaradagem entre os participantes do movimento.21 Além das assembleias, horizontais e com ampla participação, que reuniam cerca de 500 pessoas, formaram-se diversas comissões – Dois vereadores do PSOL entraram com ação judicial que suspendeu liminarmente o aumento da tarifa, o que certamente ocorreu apenas devido às mobilizações de massa nas ruas. Para uma cronologia dos protestos, ver: http://www.sul21.com.br/jornal/2013/04/apos-liminar-da-justica-protesto-contraaumento-da-passagem-vira-festa-no-meio-da-chuva-1/ (final da reportagem). 20 O jornal Zero Hora apresentou a versão de que os cartazes foram financiados por uma “vaquinha” de empresários: http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/geral/noticia/2013/06/vaquinha-online-muniuativistas-de-cartazes-com-reivindicacoes-para-protesto-4181608.html 21 Sobre a importância da camaradagem para os movimentos sociais, ver o texto de Paulo Arantes “Tarifa zero e mobilização popular”, http://blogdaboitempo.com.br/2013/07/03/tarifa-zero-e-mobilizacaopopular/; ver também John Holloway: “A camaradagem é, evidentemente, um conceito com raízes fortes e profundas em toda a tradição comunista, socialista, anarquista e anticapitalista: um conceito essencial, mas que é frequentemente subordinado ou relegado. (...) Mas, se ouvimos os participantes da luta, a ênfase é geralmente diferente: o que eles destacam como a parte mais importante da experiência é o senso de camaradagem e comunidade que se estabeleceu. (...) Camaradagem, dignidade, amorosidade, solidariedade, fraternidade, amizade, ética: todos esse nomes contrastam com as relações mercantilizadas, monetizadas do capitalismo, todos descrevem relações desenvolvidas em lutas contra o capitalismo, e que podem ser vistas como antecipação ou criação de uma sociedade para além do capitalismo” (Fissurar o capitalismo, ed. Publisher, 2013, p. 43-5). 21 19

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como comunicação, alimentação, segurança, educação, jurídica etc. – também horizontais. Essas comissões formadas por voluntários se comunicavam em rede. Formou-se igualmente uma rede externa com sindicatos, MST e indivíduos solidários, utilizando basicamente a internet como via de comunicação (por exemplo, para solicitar alimentos e outras necessidades). Durante dois dias (sábado e domingo) realizou-se seminário com debates, palestras e discussões para a elaboração de dois projetos de lei populares: um de abertura de contas das empresas de transporte público e outro de passe livre para estudantes e trabalhadores desempregados22 (posteriormente, foram incluídos indígenas e quilombolas). A saída da Câmara, dada a força quantitativa e a organização do movimento, o que tornou possível uma visão sensível da juíza responsável, se deu através de conciliação, com os vereadores se comprometendo a votar um dos projetos (abertura de contas) e enviar o outro ao prefeito (que é quem tem competência para, se assim o quiser, encaminhá-lo à Câmara). Este é o estado atual da luta pelo passe livre e abertura de contas do transporte público. Os projetos de lei elaborados podem ser considerados os documentos acabados que revelam o nível de consciência política do movimento e a correlação de forças do embate político atual. Em síntese, eles exigem a abertura total de contas do transporte público, e, baseados na premissa de que os lucros são abusivos, instituem o passe livre para estudantes, desempregados, indígenas e quilombolas, sem compensação. Também é previsto um fundo com impostos cobrados sobre a grande propriedade urbana (especulação imobiliária), para custear a infraestrutura de mobilidade. Caso a prestação de contas anual não siga os requisitos do projeto, este prevê o controle dos trabalhadores e usuários para auditoria. Em suma, o que os projetos preveem é a cogestão social com o capital, ou o controle social do capital. Trata-se, no resultado final dos projetos de lei, de um movimento em direção à cidadania no interior da forma capitalista. Deve-se ressaltar, entretanto, que isso não é pouca coisa num país com elevada ocorrência de patrimonialismo e mandonismo e elevada indiferenciação entre o público e o privado (para satisfazer as elites) como é o Brasil. Cabe mencionar, porém, que nesses projetos não está contemplada a autogestão que se viu na própria ocupação.

Os projetos podem ser https://www.facebook.com/488875294508389/posts/560075117388406

22

lidos

aqui: 22

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Pelo menos em parte há consciência disso, já que várias intervenções durantes os debates falavam em conselhos de trabalhadores e usuários, encampação, estatização, etc. Outro elemento importante da ocupação foi a abertura de debate sobre o papel da grande mídia. A ocupação decidiu em assembleias que apenas a mídia alternativa teria acesso às suas atividades, barrando os meios corporativos, especialmente a RBS (afiliada da Rede Globo, e também editora do jornal Zero Hora). Tratou-se de decisão de forte cunho político e com consciência da natureza estrutural da divulgação midiática distorcida feita pela grande mídia, e que não tinha por objetivo limitar a difusão da informação, já que a mídia alternativa se fazia presente inclusive com transmissões ao vivo. De fato, tal decisão se deveu em grande parte ao tratamento distorcido e preconceituoso que a RBS e outras mídias corporativas deram ao movimento, desqualificando as suas pautas políticas e invariavelmente tratando os manifestantes como “vândalos” e “problema de trânsito”. Mesmo durante a ocupação a grande imprensa tentou criar factoides difamatórios23. Ao que parece o grupo RBS sentiu-se pressionado, já que abriu espaço em seu jornal para especialistas dizerem aquilo que sempre fora negado: que o passe livre é viável – no que foram prontamente criticados pelo prefeito, que sugeriu que o grupo midiático distribuísse jornais gratuitamente24. Que o grupo RBS e o prefeito Fortunati mostrassem discordância pública era fato impensável antes das ações do Bloco, e foi uma demonstração de reconfiguração da correlação de forças. Foi importantíssimo nesse período de existência do Bloco que tenha havido o fluxo de um discurso contra-hegemônico, através de grupos de mídia alternativa25, juntamente com as redes sociais (Facebook). É importante aqui salientar a forma como se deu a unidade da esquerda, inclusive porque os grupos que o formaram tinham histórico de agudos conflitos. Nos parece que a unidade foi possível em grande medida porque se deu a partir de uma pauta única e concreta, “sensível” – o transporte público e, de forma mais imediata, o

Ver análise do Jornalismo B: http://jornalismob.com/2013/07/18/cobertura-do-grupo-rbs-sobreocupacao-da-camara-de-porto-alegre-e-abandono-do-jornalismo/ 24 Ver, respectivamente em http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/geral/noticia/2013/07/especialistasdebatem-custo-do-passe-livre-para-estudantes-e-desempregados-em-porto-alegre-4202444.html e http://fortunati.com.br/zh-gratis-para-todos-a-construcao-do-estado-do-bem-estar-social/. 25 Tais como: Coletivo Catarse, Jornal Tabaré, Sul21, Jornalismo B, Mídia Ninja, entre outros. 23 23

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valor da tarifa e os lucros abusivos dos empresários. Houvesse um programa mais amplo ou detalhado, a construção de coalizão semelhante seria mais difícil, devido às diferenças programáticas e ideológicas entre as diferentes organizações que a compõe. Mesmo a pauta única do transporte foi definida de forma “solta”, como “transporte 100% público”, sem uma definição exata do que seria isso – há grupos que defendem licitação com cláusulas sociais (como os partidos de esquerda ou pelo menos alguns de seus militantes), provavelmente como etapa intermediária para uma estatização, enquanto outros defendem o controle público não-estatal, através de conselhos de trabalhadores e usuários, como os anarquistas. Ou seja, trata-se de uma união tática a partir de estratégias fragmentadas. Destacamos aqui o poder explicativo do conceito de “fissura” de John Holloway para explicar os desdobramentos políticos narrados.26 De fato, ao invés de tomar o poder para então definir políticas sociais, o Bloco de Luta abriu uma fissura no tecido social do capitalismo sem tomar o poder – através do questionamento da mercantilização do transporte público e da exigência do direito à cidade e, nos debates políticos e na ocupação, do questionamento das formas hierárquicas de organização social. Como tal, o transporte público já foi uma confluência de fissuras, já citadas anteriormente. O transporte público, porém, revelou-se uma fissura especialmente explosiva, já que agregou aos estudantes e à classe média progressista o apoio ao menos tácito dos trabalhadores e da periferia – que são os mais atingidos pelas suas mazelas, seja na forma da dificuldade financeira, da extensão brutal da jornada de trabalho ou mesmo na da pura segregação do serviço público.27 No transbordamento da pauta do transporte para questões como saúde, educação e outras pode estar um índice da dialética do todo na parte: a fissura do transporte público e sua forma mercantil e mafiosa abriu possibilidades de outros questionamentos.28 Um momento disso, em nosso capitalismo periférico e cheio de relíquias pré-modernas, é que a roleta ou catraca possui algo da segregação escravocrata, onde apenas os que estão na parte de cima da pirâmide social têm passagem, e os demais são mantidos apartados. Ver o seu Fissurar o capitalismo, op. cit. Quando se manifestou, a periferia o fez de maneira pouco compreendida, inclusive entre os militantes de esquerda. Ver o texto de André Guerra nesta edição da Sinal de Menos. 28 O que também foi acompanhado pela pauta moralista e despolitizante da direita e da grande mídia (contra a PEC 37, discurso anticorrupção descontextualizado, etc.) 24 26 27

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Com isso é possível afirmar, portanto, que o movimento liderado pelo Bloco de Luta foi potencializado por uma confluência de lutas urbanas que se caracterizaram como resistência ao neodesenvolvimentismo dilmista, como rejeição de um ordenamento urbano imposto autoritariamente – uma luta contra a privatização dos espaços públicos, contra a especulação imobiliária, contra a cidade como substrato de lucros para empreiteiras e montadoras de automóveis, que se encontraram na luta pelo transporte público acessível e de qualidade: os jovens e estudantes decidiram desobedecer os sinais de trânsito que apontam para a desintegração do espaço público e desnaturalizar essa forma de urbanização. Talvez a melhor expressão da destrutividade desse neodesenvolvimentismo tenha sido a da presidente da Petrobras, Maria das Graças Foster, que afirmou de forma cínica e grosseira: “Então, que maravilha! Acho lindo engarrafamento! Meu negócio é vender combustível.”29 Temos então um arranjo de urbanização que favorece a valorização dos excedentes de capital pela via das máfias do transporte, das empreiteiras, das montadoras de automóvel, dos produtores de petróleo, dos especuladores imobiliários – uma acomodação de interesses perversa que tende a configurar o espaço urbano à sua imagem e semelhança: como uma cidade privatizada, desumana, entupida, poluída e segregadora, que reserva os seus espaços privilegiados apenas para os que podem consumir, e materializa assim a “organização do consumo pela urbanização”30. O ciclo se completa com um modelo de financiamento de campanhas políticas que permite doação de empresas privadas: os maiores doadores oficiais da campanha de Fortunati foram empreiteiras que fazem intervenções urbanas. Fazendo referência à letra da música do Jawbox da epígrafe desse texto, a política de urbanismo destrutivo aplicada em Porto Alegre e a crescente disfuncionalidade da cidade como espaço público e político tiveram efeito semelhante ao de um acidente automobilístico, no qual subitamente nos vemos de cabeça para baixo, e assim podemos enxergar melhor a verdade de uma urbe invertida e pervertida – onde automóveis têm prioridade em detrimento do transporte público, dos pedestres e dos ciclistas, o privado avança sobre o público, e tudo isso se baseia em um amplo “consenso” político (até então) inconteste. Mas também existe a possibilidade de sermos

Ver em: http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/economia/noticia/2013/04/poder-de-compra-de-veiculosnovos-anima-presidente-da-petrobras-meu-negocio-e-vender-combustivel-4105827.html 30 Tomo a expressão emprestada de David Harvey em O enigma do capital, ed. Boitempo, p. 143. 25 29

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o motorista que passa e acelera para sair da cena o mais rápido possível – se não estivermos presos em um engarrafamento. A força do movimento que se articulou está na frente unificada que foi possível compor a partir de uma pauta concreta única, definida de forma “flexível”, e na sua forma de organização que lembra os melhores momentos do comunismo de conselhos31 (mesmo que possua quadros trotsquistas em sua composição). A sua fraqueza está no fato de ser majoritariamente um movimento de estudantes e de classe média, que, mesmo contando com uma franja mais combativa, ainda é carente de maior apoio ativo e massivo entre os trabalhadores e a periferia. Deste apoio depende o salto qualitativo da luta pela cogestão com o capital (seu controle) para a luta pela autogestão – do transporte público à cidade como um todo. O que reemergiu disso tudo, quaisquer que sejam os resultados imediatos do movimento, foi a potência explosiva das questões urbanas e do direito à cidade nas lutas políticas e econômicas do país e do mundo. Isto não é novidade alguma, se lembrarmos que as intervenções de Haussmann em Paris estiveram na origem da Comuna, assim como o planejamento de Nova Iorque de Moses na do Maio de 68 nos EUA32. A cidade enquanto espaço público e político ou enquanto substrato de valorização do capital, totalmente privatizada e mercantilizada – esta é a disputa neste momento em Porto Alegre.

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Sobre o comunismo de conselhos, ver a Sinal de Menos #3, p. 125-151. Sobre isso, ver David Harvey, op. cit., p. 137-150. 26

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