RESSIGNIFICAÇÃO PARÓDICA E MODERNIDADE LITERÁRIA EM MACHADO DE ASSIS E CAMILO CASTELO BRANCO

June 2, 2017 | Autor: Greicy Bellin | Categoria: Literary Theory, Portuguese Literature, Brazilian Literature
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RESSIGINIFICAÇÃO PARÓDICA E MODERNIDADE LITERÁRIA EM MACHADO DE ASSIS E
CAMILO CASTELO BRANCO

Greicy Pinto Bellin (doutora) - UFPR

Camilo Castelo Branco e Machado de Assis são escritores de fundamental
importância para a constituição das literaturas portuguesa e brasileira,
tendo veiculado, cada um à sua maneira, uma visão crítica em relação ao
fazer literário de suas épocas. Ambos os escritores viveram um momento de
transição entre diferentes tendências literárias, entre elas o Romantismo e
o Realismo, buscando um distanciamento dos modelos literários que buscavam
parodiar em seus romances. Com base nestas ideias, o objetivo deste artigo
é analisar alguns pontos de contato entre Coração, cabeça e estômago, de
1862, e Memórias póstumas de Brás Cubas, de 1881, procurando percebê-los
como construções paródicas que tinham por objetivo criticar o modelo
romântico convencional que já apresentava sinais de desgaste em 1862 e mais
ainda em 1881.
O uso da paródia constitui-se como um inegável indicativo de
modernidade, uma vez que permite a construção de um novo significado a
partir do uso da ironia como estratégia textual primordial. Linda Hutcheon,
em Teoria da paródia (1985), afirma que o emprego de elementos parodísticos
pode ser interpretado como uma forma de auto-reflexividade, tendo em vista
que, ao promover um desvio em relação às normas estéticas estabelecidas
pelo uso, estimula o desenvolvimento de percepções críticas relativas não
só ao texto parodiado, mas também ao papel do leitor e do produtor nas
relações de intertextualidade. (HUTCHEON, 1985, p. 35). Ainda na visão de
Hutcheon, a paródia teria estreita correlação com a intenção autoral,
transformando-se em um relevante elemento para investigação das possíveis
posturas críticas sustentadas por um determinado escritor. Quanto ao
leitor, Rosana Harmuch argumenta que há, "na chamada modernidade, uma
consciência aguda da linguagem que, ao atingir o pólo oposto, o leitor,
quase que o obriga a abandonar uma postura passiva diante do texto."
(HARMUCH, 2013, p. 144). Isso é o que se observa nos romances de Camilo e
Machado, que, a partir do recurso à paródia, tendem a tirar o leitor da sua
zona de conforto, obrigando-o a interagir de forma crítica e produtiva com
os fatos narrados.
Na visão de Peter Gay (2008), o escritor moderno se caracteriza por
possuir o "fascínio da heresia", materializado em uma postura de ataque,
sela ele aberto ou velado, contundente ou sutil, às convenções sociais,
culturais e literárias de sua época. A paródia e a ironia podem ser
interpretados como formas de exercer este fascínio, o que nos conduz a uma
reformulação do lugar de Camilo no âmbito da historiografia literária. Na
visão de Antonio Augusto Nery, a obra camiliana ainda é apresentada, pelo
menos aos "leitores de primeira viagem", como ultrarromântica, o que se
afigura como extremamente questionável se atentarmos para a veia crítica do
escritor, manifesta no anticlericalismo presente em obras como Amor de
perdição. (NERY, 2013, p. 154). Bastante instigante nesse sentido é a
reflexão de Rosana Harmuch, segundo a qual "as leituras historiográficas e
biográficas não dão do modo como lemos as obras de Camilo, ao menos
contemporaneamente. Do mesmo modo, a já clássica divisão em novelas
sentimentais e satíricas também diz muito pouco do alcance que as criações
de Camilo atingem." (HARMUCH, 2013, p. 138). Algo semelhante se observa em
relação a Machado de Assis, cuja recepção crítica também oscila entre os
pólos romântico e realista, distinção esta que vem sendo largamente
questionada pelos seus estudiosos.
O reposicionamento do lugar de Camilo dentro do cânone literário
português vem sendo empreendido pela crítica das últimas décadas,
considerando que estudiosos como Jacinto do Prado Coelho e João Soares
Carvalho apresentavam uma visão um tanto redutora dos romances do escritor.
Tal visão se torna evidente no seguinte trecho de Carvalho:


Camilo não tem obras de grande profundidade (...). Tendo de escrever
para viver, não teve tempo para fazer uma boa e desejável observação
das pessoas e das coisas, usando apenas a sua genial imaginação,
subordinada a temas corriqueiros, folhetinescos, que ia repetindo, numa
lamentável monotonia. (CARVALHO, 2003, p. 389).


Opiniões como a exposta acima estão sendo questionadas por reflexões
como a de Luciene Pavanelo, que aponta para a necessidade de:


questionar a imagem cristalizada da ficção de Camilo Castelo Branco,
usualmente polarizada em passional-satírico, lágrima-riso, sério-
cômico, ou, em termos camilianos, coração-estômago, procurando mostrar
que romances de classificações distintas podem ter mais semelhanças do
que aparentam. (PAVANELO, 2008, p. 7).


A essa onda de revisão crítica junta-se o fato de que as relações
entre Camilo e Machado são muito pouco exploradas pela crítica literária,
especialmente no que se refere à faceta moderna destes autores. De acordo
com Paulo Franchetti, "Camilo é sempre o escritor do passado e cultor da
língua castiça, enquanto Eça e a geração de 70 subsumem em si toda a
modernidade da segunda metade do século XIX." (FRANCHETTI, 2011). Ainda de
acordo com Franchetti, o jogo com as instâncias autorais, bastante
perceptível tanto na escrita de Camilo quanto na de Machado, confere
"modernidade surpreendente ao texto camiliano, poucas vezes reconhecida
pela crítica." (FRANCHETTI, 2011). A tendência parodística, pelo contrário,
é largamente comentada e analisada pelos estudiosos de ambos os autores,
sendo interpretada como a via através da qual eles teriam exercido a auto-
reflexividade à qual se refere Linda Hutcheon. José Edil de Lima Alves, em
sua pesquisa a respeito da paródia em novelas camilianas, afirma que este
recurso é de fundamental importância para a compreensão da obra do autor,
sendo por meio dela que ele trouxe à literatura portuguesa a sua maior
contribuição. (ALVES, 1990, p. 45). Para Luciene Pavanelo, Camilo foi
crítico literário de fina argúcia e seguro sentido estético, sendo que o
exercício dessa crítica se manifesta por meio da paródia, da ironia e da
metalinguagem. (PAVANELO, 2008). A obra machadiana é também reconhecida
pela sua tendência a parodiar os discursos correntes, sendo que, para Sônia
Brayner, "é a partir de Machado de Assis que se observa o aparecimento
sistemático da ironia e da paródia como princípios de composição."
(BRAYNER, 1979, p. 103). A autora sintetiza desta forma o uso da paródia na
obra de Machado, em uma descrição que poderia ser também aplicada à obra
camiliana:


A paródia é a ironia em ação na escalada do muro da propriedade,
agredindo o primeiro dono para se servir dele segundo sua nova
orientação. Distância e hostilidade, luta entre duas vozes, o caminho
para a narração moderna é o da ironia e da paródia: dialogismo
instituído na problematização da linguagem enquanto constatação do ser
e do viver. (BRAYNER, 1979, p. 103).


Sobre este aspecto, vale lembrar que, para Mikhail Bakhtin (1993), a
paródia carnavaliza o discurso literário, evidenciando a presença de outras
vozes e, portanto, de outros textos em sua composição. Assim sendo, é de se
averiguar a possibilidade de a escrita de Machado constituir-se em uma
ressignificação paródica da de Camilo, especialmente se levarmos em conta
que Memórias póstumas de Brás Cubas foi publicado em 1881, quase vinte anos
após Coração, cabeça e estômago. À parte tais considerações, o fato é que
ambos os escritores trabalham com a paródia de forma muito semelhante,
veiculando uma postura crítica em relação à importação de modelos
estrangeiros, mais especificamente do modelo francês, no interior das
literaturas portuguesa e brasileira.
O que nos chama a atenção à primeira vista são os procedimentos
narrativos adotados tanto por Camilo quanto por Machado. Coração, cabeça e
estômago é narrado em primeira pessoa por Silvestre da Silva, que divide a
narrativa nas três partes que dão nome à novela. No momento em que a
história é narrada, Silvestre já está morto, de forma que a narração é
entrecortada pelos comentários de um editor. Memórias póstumas de Brás
Cubas é narrado em primeira pessoa por Brás Cubas, que se autodenomina um
"defunto autor". O que chama a atenção nas duas novelas são os constantes
diálogos com o leitor, em trechos metanarrativos que permitem uma reflexão
sobre o caráter da própria ficção. Os procedimentos narrativos presentes
nas Memórias também permitem um desmontar da verossimilhança realista,
primeiro com a ideia inverossímil de um defunto autor, segundo com as
frequentes digressões, citações de outras obras e autores que permeiam a
narrativa. Tais procedimentos são próprios de uma literatura moderna, que
põe em jogo as instâncias autorais a fim de empreender uma reflexão acerca
do estatuto da ficção, trazendo à tona a importância da participação do
leitor no processo de leitura e interpretação da obra literária.
O desmontar da verossimilhança realista, bem como a postura irônica e
sarcástica do editor no romance de Camilo, são aspectos que apontam para a
presença dos elementos parodísticos que nos propomos a analisar neste
artigo. Para José Edil de Lima Alves, a paródia seria uma forma de
exorcizar os fantasmas do colonialismo cultural que incomoda e preocupa
intelectuais inseridos em lugares periféricos relativamente aos centros
irradiadores. (ALVES, 1990, p. 38). Esta afirmação talvez se aplique a
Camilo e Machado, tendo em vista as posições de Brasil e Portugal no
contexto cultural e econômico mundial oitocentista. O autor ainda afirma
que o folhetim francês é o modelo com o qual Camilo estabelece um diálogo
crítico e irônico, provocando o debate sobre o universo cultural português
da época. (ALVES, 1990, p. 46). Isso se torna evidente no seguinte trecho
de Coração, cabeça e estômago, em que Silvestre da Silva afirma ter
incorporado uma série de características do herói romântico a fim de
conquistar as mulheres:


Era-me necessário remediar o infortúnio de ter saúde, sem atacar os
órgãos essenciais da vida, por meio de beberagens (...) Um médico da
minha íntima amizade receitou-me uma essência roxa com a qual eu devia
pintar o que vulgarmente se diz "olheiras". Ao deitar-me, corria
levemente algumas pinceladas sobre a cútis, que desce da pálpebra
inferior até às proeminências malares; ao erguer-me, tinha todo o
cuidado em não lavar a porção arroxada pela tinta, e com uma maçaneta
de algodão em rama desbastava a pintura nos pontos em que ela estivesse
demasiadamente carregada. (CASTELO BRANCO, 2003, p. 46).


O excerto deixa claro que o herói de ar fatal não passa de uma
construção artificial capaz de minar a essência real do sujeito, o que se
materializa no uso de beberagens e pinturas destinadas a falsear a
existência de olheiras. Constata-se, assim, uma paródia ao discurso
romântico de inspiração francesa, que assume uma dimensão crítica mais
explícita em outro trecho do romance:


Foi o romance que degenerou as raças, porque lá de França todas as
heroínas, em 8 e a 200 réis ao franco, vêm definhadas, tísicas, em
jejum natural, tresnoitadas, levadas da breca (...) Se alguma vez o
romancista nos dá, no primeiro capítulo, uma menina bem fornida de
carnes e rosada e espanejada como as belas dos campos, é contar que, no
terceiro capítulo, ali a temos prostrada numa otomana, com olheiras a
revelar o cavado do rosto, com a cintura a desarticular-se dos seus
engonços, com as mãos translúcidas de magreza, os braços em osso nu e
os olhos apagados nas órbitas, orvalhadas de lágrimas. (CASTELO BRANCO,
2003, p. 121).


A paródia pode ser também constatada nas descrições das personagens
femininas, que, tanto nas Memórias quanto em Coração, cabeça e estômago,
são muito pouco ou nada idealizadas, sendo retratadas como imperfeitas ou
damas hipócritas da sociedade, como é o caso de dona Paula de Albuquerque
ou de Eugênia, descrita por Brás Cubas como "bela, porém coxa. Coxa, porém
bela". Em ambos os romances, as figuras femininas funcionam como instâncias
problematizadoras das posturas sustentadas tanto por Brás Cubas quanto por
Silvestre da Silva, mostrando o quanto eles são ingênuos e desarmados
diante da complexidade do real. Tal tendência é bastante recorrente no
romance machadiano, no qual o personagem masculino é representado como
frágil e suscetível aos ardis femininos, conforme podemos observar, por
exemplo, em Dom Casmurro.
Em Machado, a paródia aos elementos advindos do romantismo pode ser
identificada na seguinte passagem, em que Brás Cubas descreve a si mesmo
como:


Um lindo garção, lindo e audaz, que entrava na vida de botas e esporas,
chicote na mão e sangue nas veias, cavalgando um corcel nervoso, rijo,
veloz, como o corcel das antigas baladas que o Romantismo foi buscar ao
castelo medieval, para dar com ele nas ruas do nosso século. O pior é
que o estafaram a tal ponto, que foi preciso deitá-lo à margem, onde o
Realismo o veio achar, comido de lazeira e vermes e, por compaixão o
transportou para seus livros. (ASSIS, 2008, p. 644).


O corcel nervoso, rijo e audaz "comido de lazeira e vermes" e tratado
com compaixão pela estética realista funciona como uma metáfora para o
esgotamento gradual das remanescentes tendências românticas no contexto
cultural oitocentista, o que se manifesta, nas Memórias, nas metáforas de
devoração presentes desde o início da narrativa, mais especificamente na
dedicatória dirigida "ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu
cadáver" (ASSIS, 2008, p. 624). O encerramento da narrativa é também um
verdadeiro golpe de misericórdia nas aspirações românticas que o
protagonista pudesse vir a ter: "não tive filhos, não transmiti a nenhuma
criatura o legado de nossa miséria" (ASSIS, 2008, p. 758). O questionamento
da mentalidade romântica está ainda presente no seguinte comentário de Brás
Cubas acerca de seu enterro: "Tinha uns 64 anos, rijos e prósperos, era
solteiro, possuía cerca de 300 contos e fui acompanhado ao cemitério por
onze amigos. Onze amigos!" (ASSIS, 2008, p. 626). De maneira sutil, o
protagonista sugere que tinha amigos porque tinha dinheiro, desnudando, com
isso, as relações de interesse que moviam a sociedade na qual estava
inserido.
A paródia ao romantismo não significa, contudo, que o Realismo e as
demais tendências que lhe eram subjacentes fossem percebidos com
deslumbramento por parte de ambos os autores. De acordo com Paulo
Franchetti (2003), Camilo irá também parodiar o discurso cientificista com
base na criação, por parte de Silvestre da Silva, de um antídoto contra a
melancolia. O mesmo se observa no romance de Machado, na criação do famoso
"emplasto Brás Cubas", responsável por causar a morte de seu criador. Torna-
se clara, portanto, a crítica direcionada tanto aos exageros românticos
quanto àqueles tributários das teorias científicas que estavam surgindo em
meados do século XIX, como que a alertar os leitores e, porque não dizer,
os círculos intelectuais da época, em relação aos perigos de se incorporar
passivamente certas fórmulas literárias. Esta interpretação encontra
respaldo, por exemplo, na crítica machadiana a O primo Basílio, em que
Machado reclama da falta de originalidade do romance de Eça de Queirós,
percebido por ele como uma imitação do romance naturalista vindo da França.

Ainda que também criticasse o modelo romântico e, de acordo com
Luciene Pavanelo (2012), fizesse defesa implícita do romance social, Camilo
também não assimilou passivamente a estética realista, especialmente se
levarmos em conta sua percepção crítica em relação à condição de escritor
profissional, que enfrentava pressões do mercado editorial e era obrigado a
se adequar a certos modelos de escrita para garantir sua sobrevivência.
Estudos recentes têm mostrado que o escritor português não era assim tão
dócil em relação aos seus leitores e editores, lançando mão da paródia e da
ironia para tecer suas críticas, como se pode observar neste trecho de
encerramento de O que fazem as mulheres (1858): "nada escapa às agulhas da
ironia: nem o escritor na sua incômoda posição de dependência, nem o editor
na frieza de seus cálculos, nem a crítica feita por amigos."
Coração, cabeça e estômago nos fornece pistas bastante concretas dessa
postura, mais especificamente se levarmos em consideração a divisão do
romance em três partes. Na primeira parte, Silvestre é representado como
bastante ingênuo e suscetível às artimanhas femininas, assimilando
passivamente os modelos de comportamento tributários de uma vertente
convencional do romantismo francês. Na segunda parte, ele aparece como um
mordaz crítico da sociedade na qual estava inserido, o que pode ser
observado no trecho a seguir:


Cansei-me de ouvir dizer que a segunda cidade de Portugal é um enxame
de moedeiros falsos, de contrabandistas, de mercadores de negros, de
exportadores de escravos e de magistrados de alquilaria. Venalidade,
crueza e latrocínio são três eixos capitais sobre que roda, no entender
da crítica mordente, o maquinismo social de cem mil almas (CASTELO
BRANCO, 2003, p. 38)


De acordo com o editor, essas "imprecações de Silvestre contra a
sociedade" foram escritas "na passagem da cabeça para o estômago". Cabe
ressaltar que o editor é a figura que conferirá o componente paródico ao
romance, uma vez que, ao comentar com sarcasmo e ironia as ações do
protagonista, gera um tensionamento que nos permite perceber a ingenuidade
e a falta de limites de Silvestre da Silva. O estômago, por sua vez,
adquire um caráter simbólico na narrativa, tendo em vista que "o órgão mais
sensível à eloquência é a barriga, e a humanidade sofredora é um estômago
desconcertado" (CASTELO BRANCO, 2003, p. 50). Aqui, a função do aparelho
digestivo parece bem clara: demonstrar a assimilação de uma nova postura
perante a vida e perante a si mesmo, postura esta que, por ser incorporada
de maneira passiva e acrítica, acaba causando a morte do personagem, como
podemos perceber no soneto abaixo:


Abri meu coração às mil quimeras;
Encheram-mo de fel, e tédio, e lama,
Tive, em paga do amor, riso que infama...
Ai!, pobre coração!, quão tolo eras!


Dobrei-me da razão às leis austeras;
Quis moldar-me ao viver que o mundo ama
O escárnio, a detração me suja a fama,
E a lei me pune as intenções severas.


Cabeça a coração senti sem vida,
No estômago busquei uma alma nova
E encontrá-la pensei... Crença perdida!


Mulher aos pés o coração me sova;
Foge ao mundo a razão espavorida;
E por muito comer eu desço à cova! (CASTELO BRANCO, 2003, p. 222).

É flagrante o simbolismo do estômago, bem como a metáfora da mulher a
sovar o coração do eu lírico, mulher esta representada por Tomásia, esposa
de Silvestre, descrita como uma moça saudável de 26 anos que "almoçava
caldo de ovos com talhadas de chouriço (...) As meias eram de lã ou de
algodão azuis; mas não usava ligas, de jeito que as meias caíam em refegos
à roda do tornozelo – o que não era feio" (CASTELO BRANCO, 2003, p. 182).
Ao partir da aldeia para dar início aos preparativos do casamento,
Silvestre recebe da noiva um alforge com "uma galinha assada, uma cabaça de
vinho e um pão" (CASTELO BRANCO, 2003, p. 197). A gula estimulada pelos
dotes culinários da esposa faz com que o personagem engorde
vertiginosamente, de maneira que, ao terceiro ano de casado, "Silvestre
formava com o peito e o abdômen um arco. A gordura embargava-lhe a ação e
abafava-lhe o espírito nas exúndias" (CASTELO BRANCO, 2003, p. 208). Os
exageros da gula podem ser também interpretados como um elemento
parodístico, no sentido de que veiculam uma crítica ao sujeito que não
consegue assimilar comportamentos e tendências de forma lúcida, sejam estas
tendências relacionadas a uma mentalidade romântica, sejam elas associadas
às novas correntes de pensamento que estavam surgindo em meados do século
XIX, entre elas o Realismo e o cientificismo.
Com base em tudo o que foi exposto, é realmente possível aproximar
Machado e Camilo no que diz respeito a um processo de ressignificação
paródica capaz de evidenciar a modernidade literária de ambos os autores,
considerando suas inserções nos contextos de produção de Memórias póstumas
de Brás Cubas e Coração, cabeça e estômago. A auto-reflexividade é parte
integrante e fundamental de todo esse processo, mostrando que tanto Camilo
quanto Machado foram capazes de se posicionar criticamente em relação aos
problemas e dilemas enfrentados não só pelo escritor, mas pelas
intelectualidades portuguesa e brasileira do oitocentos. A paródia e a
ironia são peças chave de articulação desses posicionamentos, o que nos dá
pistas bastante concretas acerca da lucidez e da modernidade do bruxo de
São Miguel de Seide e do bruxo do Cosme Velho.

REFERÊNCIAS

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Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1990.
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completa. v. 1. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.
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Paulo/Brasília: HUCITEC, 1993.
BRAYNER, Sônia. Labirinto do espaço romanesco: tradução e renovação da
literatura brasileira: 1880-1920. Brasília: INL, 1979.
CARVALHO, João Soares. O segundo romantismo: considerações contextuais. In:
MACHADO, Álvaro Manuel et. al. História da literatura portuguesa. Mem
Martins: Publicações Alfa, 2003, p. 237-253.
CASTELO BRANCO, Camilo. Coração, cabeça e estômago. Organização e
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Universidade Federal do Paraná, 2011. Disponível em:
http://www.abralic.org.br/anais/cong2011/AnaisOnline/resumos/TC0622-1.pdf
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