Reterritorialização em poemas da literatura marginal/periférica

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Reterritorialização em poemas da literatura marginal/periférica1 Laeticia Jensen Eble2 As I check off my list of privileges, I won’t forget the biggest of them all: my passport. Tim Harford, economista

As pesquisas sobre migração, em geral, concentram sua atenção sobre agrupamentos étnicos de europeus, latino-americanos e asiáticos. A diáspora negra, ligada à escravidão – que no Brasil se estendeu desde o período colonial até pouco antes do final do Império –, está, por sua vez, vinculada a um processo de encarceramento e não de migração. Na medida em que são arrancados de suas sociedades de origem, ao serem trazidos para o Brasil como simples mercadorias, pode-se dizer que a exclusão dos negros trazidos para serem escravizados ocorre como resultado da ruptura de três vínculos: i) com os valores e representações sociais próprios a sua sociedade; ii) com os laços e relações de afeto e parentesco; e iii) com a capacidade de comunicação com o exterior (Nascimento, 2000, p. 60). Vínculos perdidos que, passados os séculos, faz-se necessário recuperar. Após a abolição, e diante da quase total ausência de providências por parte do Estado, na atualidade, a exclusão dos negros, construída histórica e geograficamente, perdura em novas roupagens, com: i) a não integração ao mundo do trabalho por supostamente não terem as qualificações requeridas; ii) o não reconhecimento ou negação de direitos, visto que são representados de forma discriminatória, como um perigo para a sociedade; e iii) a ruptura de vínculos societários, na medida em que são gradativamente afastados dos espaços legitimados de representação (Nascimento, 2000, p. 68-71). Por trás da organização política dos indivíduos supõe-se que existe sempre um poder habilitado a coordenar os que ocupam um determinado espaço. Ou seja, território e poder são duas noções indissociáveis, de tal modo que o território compreende “um espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder” (Raffestin, 1993, p. 54). Mais do que isso, o espaço pode ser utilizado como produto e instrumento do

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Trabalho apresentado durante o V Colóquio Internacional sobre Literatura Brasileira Contemporânea, realizado em Buenos Aires, de 13 a 15 de outubro de 2015. A participação da autora no evento foi possível graças ao apoio financeiro da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAP/DF), por meio do Edital 01/2015 – Apoio à Participação em Eventos Científicos, Tecnológicos e de Inovação. 2

Doutoranda em Literatura na Universidade de Brasília. E-mail: [email protected]

poder. Nesse sentido, o espaço também pode configurar-se num processo de confinamento, considerando-se que “o confinamento socioespacial é o processo pelo qual categorias e atividades sociais particulares estão encurraladas, limitadas e isoladas em um quadrante reservado e restrito do espaço físico e social” (Wacquant, 2015, p. 21). No caso da população periférica, esse confinamento tem sido imposto, na medida em que as pessoas são obrigadas, de forma hostil e por pressões externas, sociais, políticas – e também étnicas –, “a determinar suas atividades, limitar seus movimentos ou restringir sua residência a uma determinada localização” (Wacquant, 2015, p. 21), configurando-se num verdadeiro gueto. [SLIDE] É o que lemos nas palavras de Michel Yakini, em seu poema “Mapas de asfalto”. No início, o poema dedica-se a denunciar a condição em que se vive na periferia: há tempos que o céu das beiradas acorda cinzento as pedras ficam intactas endurecendo vidas pelas esquinas a esperança passa como ventania pelas ladeiras e o asfalto grita denunciando mentiras vencidas são heranças de uma cidade açoitada em silêncio [...]

De acordo com Wacquant, a estruturação de um gueto se dá em torno de quatro elementos essenciais: i) o estigma, segundo o qual uma população é marcada e desvalorizada em relação à categoria dominante; ii) a coação, em que a concentração populacional se dá como resultado de uma imposição externa; iii) a atribuição espacial, ou seja, quando a população estigmatizada é forçada a se estabelecer numa área específica; e iv) o paralelismo institucional, na medida em que a população é pressionada a residir unicamente em determinados bairros, desenvolve-se neles uma

rede de instituições em substituição às da sociedade pela qual foi rejeitada (Wacquant, p. 28-29). Surgem, então, no seio desse espaço periférico e em prol das necessidades coletivas, organizações culturais e econômicas alternativas, bem como práticas de solidariedade interna, ao passo que novas identidades são forjadas, visando superar a exclusão e proteger-se das representações negativas do resto da sociedade. Assim, o gueto acaba se tornando uma faca se dois gumes. Se por um lado, constitui-se em instrumento de dominação, por outro, viabiliza a coesão e a auto-organização daqueles indivíduos segregados, que se mobilizam e alavancam um poder de resistência que converge para a implosão do próprio gueto. Nesse sentido, o gueto deixa de ser gueto e passa a ser quilombo. Em resposta à polarização da cidade entre a casa grande e a senzala, o conceito do quilombo insurge em uma perspectiva decolonial, ecoando nas produções literárias que emergem insufladas por movimentos coletivos como o do hip-hop. Não é por acaso que Zumbi dos Palmares é tantas vezes evocado como símbolo de resistência e inspiração. Assim, ainda na continuação do poema de Michel Yakini, podemos ver como, em lugar do sentimento de derrota, instala-se um discurso de exaltação da resistência: [...] nos mocambos de hoje germina a resistência do amanhã em cada quintal um trançado autoestima se firma no olhar da mulecada vejo uma trilhas sedenta de história é batuque, rodeando as intenções, cravando horizontes grafitando nos muros, poemas da nossa virada declamando ação, sacudindo vozes

e na espreita das ruas ecoam as rimas num versar ritmado de redenção!

Assumindo que a reterritorialização dos afro-descendentes nunca se deu de fato no Brasil, na medida em que nunca lhes foi permitido recriar seus espaços socioculturais (sendo sempre marginalizados e criminalizados), a força com que esses movimentos culturais têm se estabelecido e os princípios estéticos e éticos que têm difundido, não só por meio da literatura, leva a crer que, finalmente, esteja em processo uma reterritorialização de fato, na medida em que esses atores trazem consigo o potencial de afirmar e assumir novas posições enquanto sujeitos da história, capazes de promover sua transformação. Essa nova reterritorialização envolve, por um lado, uma reconexão com a África, como elo original que une essa população diaspórica em torno da noção de pertencimento e resistência. De acordo com Roland Walter (2007, p. 4), “com base em e ao mesmo tempo distanciada da memória vivida, a memória imaginada enquanto revisão tem sido uma das medidas mais importantes para recriar um self fragmentado e alienado na ficção negra pan-americana”. [SLIDE] Mas por outro lado, esse processo de reterritorialização implica também um distanciamento, visto que, imersos em outra realidade, a identificação plena já não é mais possível e é preciso criar novos laços comunitários em outras terras. Por isso que observamos ainda em muitos dos textos produzidos pelos autores periféricos essa sensação de viver em uma fronteira – entendida aqui não como barreira, mas como um entrelugar. É assim que, no poema “Maputo - Moçambique”, Elizandra Souza pronuncia: [...] Que África é essa? Que diz e não me diz... Sentimentos vulcões no peito... Lágrimas tsunamis na alma Até onde vai minha fronteira E se tenho fronteiras, que fronteiras eu sou?

No entanto, em outro poema, que considero emblemático em relação ao que venho dizendo, intitulado “À nossa maneira”, a poeta se dirige a um Outro africano para se explicar (o poema é grande, por isso, para essa comunicação, selecionei apenas alguns trechos):

Descobri que precisamos sim, à nossa maneira aprender a aprender com a nossa história, temos as peles negras, que não são tão negras como as peles que aqui tens. [...] À nossa maneira Muitas vezes é o estranhamento em qualquer lugar [...] À nossa maneira também é o inverso, é nadarmos contra a correnteza é descobrirmos algumas certezas na diáspora [...] À nossa maneira é a busca de um jeito todo nosso de comportar, é uma ginga que veio sim daqui, mas não é a mesma Processo em transformação somos o batuque que estamos a procurar

Nesse poema, ao mesmo tempo que o eu-lírico reconhece suas raízes, enfatiza seu deslocamento. Ao afirmar que as peles negras de cá já não são tão negras como as de lá, não está apenas fazendo referência a uma possível miscigenação, mas também ressaltando que, apesar da origem comum, a distância já não lhe permite mais se afirmar tão africana quanto aquela, é como se uma certa pureza tivesse se perdido. Nesse sentido também afirma que a ginga não é a mesma, e que nesse processo de transformação, ainda está procurando o batuque que vai determinar o ritmo dessa nova ginga. Note-se que esse mesmo batuque aparecia também no poema de Yakini. É importante destacar a figura simbólica e bastante recorrente do batuque e do tambor nesses poemas. O tambor remete diretamente às religiões brasileiras de matriz africana. Nos rituais, ele é o responsável por anular a distância entre o Brasil e a África, permitindo aos negros reviver sua cultura e religião: “Por meio do ritmo e da música do atabaque/tambor/batuque, seus adeptos entram em um transe, que, para eles, significava uma comunhão entre os simples humanos em terras brasileiras e os deuses do continente negro” (Paradizo e Gonçalez, 2014, p. 332) Mas, além disso, para as religiões afro-brasileiras, o atabaque em si é cultuado como divindade. Então, ao anunciar “somos o batuque”, o poeta assume uma noção de filiação e vinculação a esse sagrado, que ressoara para sempre dentro de si. Não se trata de encontrar “outro batuque”, ou seja, não se trata de assumir uma outra cultura estranha para si, pelo contrário, reconhecendo o batuque como parte de sua identidade, oferece o entendimento de que, mesmo assumindo novas nuances, o tambor, a origem, será sempre a mesma.

De acordo com Raffestin, “a territorialidade se inscreve no quadro da produção, da troca e do consumo das coisas”. Assim, para que a reterritorialização se efetive, será preciso, obviamente, questionar os valores culturais e o poder instituídos nesse espaço a ser ocupado. Na medida em que a exclusão dos negros se pauta pela negação e por uma visão eurocêntrica, racista e elitista, esse movimento implica combater o epistemicídio e reconhecer a filosofia e o conhecimento africanos como capazes de constuir novas representações libertadoras. Para isso, vale também lembrar Barthes, quando afirma que a própria linguagem é opressiva (1977/1982, p. 12-13) e “não pode haver liberdade senão fora da linguagem” (p. 16), de modo que só se pode sair dela trapaçeando com a língua, trapaçeando a língua – uma revolução que se dá exatamente pela literatura (p. 16).

Referências BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1982 [1977]. NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do. Dos excluídos necessários aos excluídos desnecessários. In: BURSZTYN, Marcel (Org.). No meio da rua: nômades, excluídos e viradores. Rio de Janeiro: Garamond, 2000. p. 56-83. PARADISO, Silvio Ruiz; GONÇALEZ, Deyse Natali. O ‘tambor’ como símbolo metonímico da identidade afro-brasileira, na poesia de Oliveira Silveira. Revista Cesumar Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, v.19, n. 2, p. 327-346, jul./dez. 2014. RAFFESTIN, C. Por uma geografia do poder. Tradução de Maria Cecília França. São Paulo: Ática, 1993. SOUZA, Elizandra. Águas da cabaça. São Paulo: Edição do Autor, 2012. WACQUANT, Loïc. Projetando o confinamento urbano no século XXI. In: SCISLESKI, Andrea; GUARESCHI, Neuza (Org.). Juventude, marginalidade social e direitos humanos: da psicologia às políticas públicas. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2015. p. 19-39. WALTER, Roland. Encruzilhadas afro-diaspóricas: poéticas-políticas de identidade em Dany Laferrière e Marlene Nourbese Philip. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL MULHER E LITERATURA, 3., Ilhéus, 9-11 out. 2007. Anais... Ilhéus: Anpoll, 2007. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2015. YAKINI, Michel. Acorde um verso. São Paulo: Edição do Autor, 2012.

Resumo: Muito se tem discutido sobre os movimentos de migração ilegal no mundo globalizado. Contudo, na literatura brasileira hegemônica, a migração costuma ser retratada sob uma perspectiva privilegiada, ou seja, de narradores que são movidos mais por contingências profissionais e/ou emocionais que por necessidade de sobrevivência. Por outro viés, o da segregação social/racial e da imobilidade, poetas da literatura marginal/periférica, em grande medida pautados pelo movimento negro, tematizam a diáspora africana para resgatar uma memória sequestrada pela escravidão e impor uma visão de mundo que não apenas torna o Outro presente e legitima sua forma de ver e interpretar o mundo, mas também reterritorializa sua forma cultural. Por um ato de resistência, essa literatura rompe uma certa carceragem social e cultural, engajando-se na construção de uma identidade própria, híbrida, emancipadora e aberta à multirreferencialidade. Palavras-chave: literatura marginal/periférica; poesia contemporânea; segregação; reterritorialização.

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