Rethinking Culture and Cultural Analysis (Revista Filosófica de Coimbra)

July 7, 2017 | Autor: Rafael Garcia | Categoria: Philosophy of Culture, Ernst Cassirer, Georg Simmel
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NOTAS CRÍTICAS

I Duas recentes publicações sobre os Conimbricenses1 MÁRIO SANTIAGO DE CARVALHO

Nos últimos dois anos publicaram­‑se, em Roma e no Porto, dois importantes mas distintos trabalhos que muito interessam à investigação que há alguns anos vimos desenvolvendo no seio da Unidade de Investigação e Desenvolvimento, LIF. Trata­‑se, num caso, de uma surpreendente e rara monografia sobre o Curso aristotélico jesuíta conimbricense (doravante: CAJC) da autoria do jovem investigador Cristiano Casalini (Universidade de Parma); no outro, de uma tradução anotada de uma secção do tomo da Dialéctica do mesmo CAJC, precisamente sobre os sinais, pela mão de um dos mais ilustres estudiosos da escola de Coimbra, Amândio Coxito. Não saberíamos saudar devidamente as duas tão meritórias (e repetimos: diferentes) iniciativas editoriais, mas gostaríamos, em qualquer caso, de as recomendar mediante algumas palavras de apresentação. Oxalá pudessem elas servir não só para estimular a leitura destes títulos (e a necessária tradução do primeiro), como sobretudo para o surgimento de novos, inteligentes, competentes e dedicados pesquisadores que não deixem morrer a mais relevante obra filosófica lusitana de repercussão internacional (1592­‑1606), Magalhães­‑Vilhena dixit. 1 Cristiano Casalini. Aristotele a Coimbra. Il ‘Cursus Conimbricensis’ e l’educazione nel ‘Collegium Artium’. Presentazione di J.W. O’Malley, Roma: Anicia (Teoria e Storia dell’Educazione: 155), 2012, 288pp. Sebastião do Couto. Os Sinais, De Signis. Edição bilingue latim­‑português, fixação do texto latino, introdução, tradução e notas de Amândio Coxito, Porto: Ed. Afrontamento (Imago Mundi: Filosofia em Texto e Tradução: 5), 2013, 268pp.

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Comecemos pelo título de semiótica, numa muito bem cuidada colecção da Faculdade de Letras do Porto, aquela dirigida por Francisco Meirinhos, que nos propõe à leitura a primeira secção do ‘De Interpretatione’ comentado por Sebastião do Couto e que integra, como dissemos, o tomo da Dialéctica, precisamente o último a conhecer o prelo no quadro editorial do CAJC. Os mais puristas ficarão decerto surpreendidos pelo facto de o nome de Sebastião do Couto (Olivença, 1567 – Montes Claros, Évora 1639) encabeçar o volume, haja em vista que o CAJC foi publicado anonimamente como obra colectiva da Companhia. Este facto é particularmente conspícuo se confrontado com uma interessantíssima proposta de leitura de Casalini segundo a qual o CAJC aparece anónimo porque a “brand” (p. 59) seria justamente a cidade de Coimbra e o seu colégio das Artes. Embora tratando­‑se, a aposição do nome do autor, de uma exigência da colecção “Imago Mundi”, semelhante ousadia não parece representar uma grande traição. É certo e incontestável que o CAJC nasceu e divulgou­‑se imediatamente sem a menção dos autores – além de Couto, eles foram Manuel de Góis (Portel, 1543 – Coimbra, 1597), Baltasar Álvares (Chaves, 1560 – Coimbra, 1630) e Cosme de Magalhães (Braga, 1551 – Coimbra, 1624) – mas não é historicamente menos certo que, por exemplo, entre Góis, Fonseca e Molina, por exemplo, se gerou grande contenda em torno da mão que deveria assinar a edição de um curso escolar de Filosofia. Acresce, sobretudo, que as ideias de Góis, de Álvares e de Couto não coincidem sempre em matérias afins, facto que nos permite individualizar os autores cujo nomes, aliás, devem ser distinguidos, pensamos nós, em particular numa época, como a nossa, que cultiva a originalidade, e a singularidade. E não deveria ser esta afinal uma boa oportunidade de adicionarmos alguns nomes mais à nossa história da filosofia? Recordaria que outro cabouqueiro estudioso do CAJC, António Martins, não hesitou em seguir tal linha no seu artigo precisamente intitulado «O Conimbricense Manuel de Góis e a eternidade do mundo» Revista Portuguesa de Filosofia 52 (1996) 487­‑499. Numa louvável – e cada vez mais escassa, ora por razões financeiras, ora por ignorância e desinteresse – edição bilingue, Coxito traduz com impoluta competência técnica – ele é aliás entre nós a pessoa mais bem habilitada para o fazer – as cinco questões do capítulo I do Perihermeneias, a saber: natureza e condições do sinal (signum) em geral; a divisão dos sinais; a significação das palavras pronunciadas e das palavras escritas; se os conceitos são os mesmos para todos e as palavras são diferentes; e se existem no nosso intelecto conceitos verdadeiros, ou falsos, e outros que são desprovidos de verdade e falsidade. Este foi o modo como o CAJC problematizou aquele capítulo inaugural da obra da analítica estagirita sobre a interpretação. Coxito adicionou à sua edição, que pela sua mão conhece também o estabelecimento do texto (edições de Coimbra 1606, e Lião e Colónia, 1607), a bibliografia das fontes citadas por Couto e dois índices, ideográfico e onomástico. Da sua pp. 483-500

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utilidade, escusado será dizermos seja o que for, mas não podemos deixar de reparar numa incongruência patente na Bibliografia; referimo­‑nos ao facto de muitas obras serem citadas a partir de edições modernas, ou mesmo contemporâneas, que naturalmente Couto nunca poderia ter conhecido, pelo que o leitor deve estar prevenido para essa discrepância, que aliás pouco desfeiteia a edição portuense. O que se vê com facilidade é que Coxito teve por modelo a edição afim de John P. Doyle, The Conimbricenses. Some Questions on Signs. (Translated with Introduction and Notes, Milwaukee: Marquette University Press 2001, 217pp.), inaugurada por um Prefácio, algo datado, assinado por John Deely, e intitulado “A new determination of the Middle Ages”. À parte as influências, por Doyle reconhecidas, que o CAJC teve em autores que se estendem de Baltasar Telez a Peirce, o interesse que esta secção do CAJC despertou no tradutor está bem justificado em passagens como: “these pages of the Conimbricenses represent the first really major seventeenth treatise on signs” (p. 17); ou (p. 18), e em particular a respeito da questão 5: “Such discussion and others like it show the Conimbricenses to be aware of many epistemological, psychological, metaphysical, and theological questions which can be raised with regard to signs and signification, In this they also display an understanding of the breadth and scope of semiotics itself.” Enfim, o leitor mais curioso pode encontrar na p.18 da edição norte­‑americana uma apresentação geral muito apelativa dos vários temas tratados, mas felizmente, agora, já não precisará de ir tão longe porque a “Introdução” escrita por Coxito (pp. 9­‑18), apesar de breve, cumpre a missão de verdadeiramente iniciar qualquer curioso nas primícias de uma leitura que lhe revelará, estamos em crer, se for sensível, como foi por exemplo Charles S. Peirce, um Sebastião do Couto à altura de Aristóteles, e de produtividade histórica reconhecida. Há já algum tempo que encetámos, na esteira de A. de Miranda Barbosa, mas sobretudo de Banha de Andrade, um projecto demasiadamente vasto que visava a publicação em português do CAJC. Ingenuamente pensado, somos hoje forçado a reconhecer que a sua vastidão – mais de 3000 páginas impressas – dificilmente poderá encontrar entre nós algum acabamento. De facto, além desta labuta de Coxito e do trabalho inaugural de Banha de Andrade em 1957 (Curso Conimbricense I. Pe. Manuel de Góis: Moral a Nicómaco, de Aristóteles. Introdução, estabelecimento do texto e tradução de António Alberto de Andrade, Lisboa 1957), só o labor, verdadeiramente exemplar e quase incompreensível de Maria da Conceição Camps (Comentários do Co‑ légio Conimbricense da Companhia de Jesus Sobre os Três Livros Da Alma de Aristóteles Estagirita. Introdução Geral à Tradução, Apêndices e Bibliografia de Mário Santiago de Carvalho. Tradução do original latino por Maria da Conceição Camps, Lisboa: Edições Sílabo, 2010), dizíamos, o extraordinário e invulgarmente empenhado labor de Camps, resultou na mais vasta Revista Filosófica de Coimbra — n.o 46 (2014)

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das edições até hoje realizada. Talvez, e dizemo­‑lo com pena, a primeira e a última de tal relevância. Evidentemente que temos de informar da existência de traduções mais reduzidas, tais como, sobre a ética (Manuel de Góis, S.J. Tratado da Felicidade. Disputa III do ‘Comentário aos Livros das Éticas a Nicómaco’. Estudo e Introdução complementar de Mário S. de Carvalho; nova tradução do original latino e notas de F. Medeiros, Lisboa 2009), ou à maneira de antologia (Comentários a Aristóteles do Curso Jesuíta Conim‑ bricense (1592­‑1606). Antologia de Textos. Introdução de Mário Santiago de Carvalho; Traduções de A. Banha de Andrade, Maria da Conceição Camps, Amândio A. Coxito, Paula Barata Dias, Filipa Medeiros e Augusto A. Pascoal. Editio Altera. LIF – Linguagem, Interpretação e Filosofia. Faculdade de Letras: Coimbra 2011, in: http://www.uc.pt/fluc/lif/comentarios_a_aristoteles1). Seja como for, não obstante esta parca situação editorial, o relevo do CAJC não necessita da produção nacional. Ele concita, como se vê, a atenção de jovens investigadores, como Casalini, ou entre outros: L.M. Carolino, C. Marinheiro, M. Miranda, S. Wakúlenko, W.A. Wallace, Th. Meynard, D. Des Chene, H. Hattab, D. Lines, L.Spruit, A. Simmons, S. Salatowsky, C. Sander, entre muitos mais por cuja omissão pedimos desculpa. Isto é, a situa­ ção começa a mudar, a internacionalizar­‑se cada vez mais, e os estudos de outrora, tão valorosos aliás, maioritariamente da escola de Braga, começam a ser ultrapassados por novas interpretações cujo horizonte ainda não é fácil de delinear na sua inteireza. De quase todos aqueles recentes investigadores deu conta o livro de Casalini. E como bom historiador ele não se esqueceu de compulsar também quase toda a interpretação portuguesa, de Teófilo Braga a A. M. Martins, de M. Brandão a A. Coxito, passando ainda por nomes tão importantes como C. Abranches, D.M. dos Santos, A. Dinis, P. Gomes, e sobretudo João Gomes Pereira. Ímpar na recolha da bibliografia, muito apreciável no conhecimento das polémicas filosóficas do tempo, sempre justamente enquadradas, a monografia com o título para nós tão sedutor como Aristóteles em Coimbra apresenta­‑nos, além do mais, uma interpretação absolutamente inovadora. A aventura do CAJC começa assim com o chamado pelo autor “affaire Gouveia”, personalidade que normalmente, entre nós, aparecia citado exclusivamente a propósito do Colégio Real de Artes, mas que agora é amplamente contextualizado com extensões ao próprio devir do Colégio até à sua posse pelos Jesuítas em 1555. Isto justifica­‑se plenamente desde logo porque Loyola foi aluno de Gouveia, mas antes de chegar à iniciativa do CAJC o leitor é ainda convidado a entrar nos meandros – nem sempre muito cristãos – da formação da “província pedagógica”, capítulos estes, juntamente com o terceiro, propriamente sobre o “Curso” mais de cariz histórico. Casalini, como dissemos, mostra­‑se conhecedor da bibliografia mais essencial, discute­‑a criticamente e tem ainda o mérito acrescido do contacto com pp. 483-500

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inéditos do arquivo jesuíta romano. À medida que avança a leitura, somos progressivamente confrontados com a costela não apenas historiográfica, mas também filosófica de Casalini. Provando­‑nos avassaladoramente que o CAJC não fala de Aristóteles, mas com Aristóteles, o que sobressai em particular na quaestio (p. 127), no seio do desígnio pedagógico conimbricense o significado do CAJC “muda em relação à tradição escolástica”, na medida em que “em Coimbra a disputa é o momento de um percurso terreno, na rede de caminhos e situações característicos da civilização humana. (…) Na sucessão das questões e dos textos (ou mesmo apenas no desenvolvimento interior das questões, quando falta o texto), a estrutura dos comentários conimbricenses, corresponde mais às dinâmicas de um ritmo do que à estática de um edifício (…) encontrando­‑se, a parte mais importante do Cursus (…) nas questões levantadas nas disputas durante as aulas com base na criatividade dos estudantes de Artes.” Não resistimos a citar mais o autor, acerca do horizonte didáctico da quaestio, considerada central, mas sem esgotar o CAJC “que, pelo contrário, vive justamente das páginas não escritas e dos exercícios feitos ao longo das disputas, mas não registados. Esta é a exigência curricular característica de Coimbra, que desde a fundação do Colégio Real alia as mais elaboradas subtilezas de Santa Bárbara à inspiração ramista e bordalesa; funde a observância da forma tradicional da quaestio com a posse de uma capacidade dialéctica firme (…), tornando­‑se num exercício. Tornando­‑se didáctica, e escola. Se não fosse assim, o tempo não seria uma categoria tantas vezes mencionada na história pedagógica do Cursus: falta sempre tempo, por isso deixamos de lado por vezes o texto, por vezes um conjunto de questões, por vezes um inteiro volume e assim por diante. Falta tempo porque a finalidade didáctica dos comentários de Coimbra diverge da ‘substância’. Há tempo e deve ser empregue para disputar, para exercitar­‑se. Toda a filosofia torna­‑se então didáctica, e é assim que surge o conceito moderno de escola secundária” (pp. 128­‑9). Os dois últimos capítulos – um examinando a teoria do ensino (o problema do mestre”), o outro a doutrina da causalidade – representam, no entanto, inquestionavelmente, o verdadeiro contributo de Casalini para a filosofia. O mérito deles está na coerência interpretativa, embora a possamos e devamos questionar, como é óbvio. Como não podia deixar de ser, em coerência aliás com a longa citação anterior que nos permitimos fazer, nas páginas que na Dialéctica Sebastião do Couto dedicou ao problema do mestre tenta­‑se superar as doutrinas afins de Agostinho e de São Tomás, isto, evidentemente, interpretado o problema no quadro da exposição dos Segundos Analíticos: “Omnis doctrina, et disciplina ex antecedente cognitione fit”. Trata­‑se aliás, este último, de um problema que se estende até Galileu (De precognitioni‑ bus et praecognitis) e todos os estudiosos conhecem que um investigador norte­‑americano, W. Wallace, encontrou em Coimbra documentos relevanRevista Filosófica de Coimbra — n.o 46 (2014)

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tes para o dossiê Galileu. Casalini teve, no entanto, o mérito de enquadrar a questão conimbricense acerca do mestre, desde Toledo a Fonseca, passando pelo também jesuíta Paulo Valla, fazendo­‑nos ver assim como Couto superou a tradição herdada – com figurantes de relevo como Henrique de Gand ou Caetano – numa autêntica “filosofia da educação” (como dizemos hoje) que gravita em torno das figuras da doctrina e da disciplina, i.e., para simplificarmos, do ensino ou da aquisição da ciência perspectivada sob o ponto de vista da intervenção do professor e do aluno, respectivamente. Ao desprezar a doutrina platónica da reminiscência, mas igualmente ao dar mais relevo do que São Tomás ao papel do docente, Couto (mas também de certo modo Góis) quase faz coincidir o conhecimento humano nas suas várias vertentes com a educação. Casalini, que fala de uma “desconfiança da Dialéctica” em relação ao inatismo, escreve, primeiro (p. 175): “A mesma desconfiança que Couto apresenta perante a hipótese inatista do conhecimento e da aprendizagem em particular, reaparece na questão do naturalismo linguístico, perante o qual Couto manifesta uma atitude que às vezes foi definida «a healthy scepticism»”. Para logo depois concluir, no campo educativo que é o seu, apoiando­‑se também em Coxito: “A Dialéctica do Cursus fornece por isso as bases para uma doutrina da educação que se baseia na experiência, na comunicação entre mestre e discípulo, e que de facto supera o aristotelismo com um aristotelismo mais radical, em que se desvanecem todos os vestígios inatistas (…) [O] baixo contínuo da normatividade lógico­‑aristotélica dos jesuítas portugueses (…) será música para os ouvidos do século XVII francês, ávido de esprit de système (o texto, como vimos, foi adoptado em La Flèche) e sobretudo para os ouvidos alemães, extraordinariamente sensíveis à harmonia da dialéctica e aos encantos da especulação pura” (pp. 176­‑8). Entretanto, afastando­‑se um pouquinho mais da história da educação e entrando definitivamente em outro campo que, como também dissemos, Casalini é competente, a filosofia e a sua história, o último capítulo da sua obra não é menos surpreendente. Trata­‑se agora de estudar a difícil doutrina das causas, justamente considerado um dos “problemas mais adequados” para elucidar outras questões – pela nossa parte, diríamos mesmo: o problema –, e relativamente ao qual imediatamente lemos haver Góis elevado o papel das causas segundas, “tema que se cruza, naturalmente, com o grave problema teológico da disputa de auxiliis, e que, no volume da Física, os conimbricenses abordam na perspectiva da filosofia natural. Recusar a hipótese agostiniana, ou a especular, de Durando (…), significa para o Cursus operar uma elevação das causas segundas sob o signo da sua capacidade de cooperação com Deus, sem serem movidas por ele “ (p. 179). Este último capítulo, que se divide em três secções – “metafísica restrita”, “causas segundas, segundos fins”, e “probabilidades imprevistas” – é a coroa filosófica desta monografia e, por isso mesmo, também, a mais contestável. Desde logo, porque o autor pp. 483-500

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pleiteia pela redução da causa à filosofia natural esvaziando, “restringindo”, no seu vocabulário, a metafísica: “Aparentemente coerentes, as alusões feitas à Metafísica indicam­‑na fundamentalmente como uma ciência das coisas sobrenaturais, da causa primeira e das substâncias independentes da matéria (como é o caso da alma separada). O Cursus coloca­‑se aqui no âmago da transição de paradigmas a partir da qual começará a história da ontologia, como ciência do ente enquanto tal, separada da aglomeração metafísica das épocas anteriores. Góis irá reflectir as ambiguidades (se quisermos, também as contradições) características de um momento de passagem: mas parece claro que a sua atitude hesitante em relação à metafísica como ciência é ditada por uma nítida opção pela plena senão exclusiva legitimidade da filosofia natural” (p. 183). Julgamos que, contra Pereira, o CAJC insiste particularmente na unidade da metafísica e embora não se possa dizer que a formulação de Góis se dirige inteiramente a Bento Pereira2, a referência de Couto a uma metaphysica supernaturalis (cuja tarefa é considerar a dependência das essências em relação à Causa primeira), e a de Góis a uma divina philosophia (como um conhecimento que transcende a natureza e no qual a inteligência humana atinge o ápice contemplativo) permitem­‑nos, apenas em parte, acompanhar Casalini. Assim, no caso de Pereira, a metafísica definir­‑se­‑ia na separação relativamente à teologia, e no de Góis, na ligação àquele saber. Várias são, porém, as alusões à metafísica enquanto ciência do ente enquanto ente, como ciência dos géneros supremos e, acima de tudo, quer Góis, quer Couto deixaram escrito em várias ocasiões a sua intenção de redigirem uma Metaphysica para o CAJC. Eis algumas dessas menções (abreviamos os títulos dos livros e remetemos para a editio princeps): GcIc4q5a2p61, GcIc4q6a3p70, GcIc4q19a2p144, e AnIIc1q3a2p58, AnIIc1q7a3p83, AnIIc10exp241, AnIIIc7p365, e Etd1prp5, Etd7q3a2p66, e Asprp441, e PhIIc7q15a2p310, e Igpfq1a3p65, Igc1q2a2p161, Igc2q1a2p173, Igc5q1a3p221, Cac1q1a2p238, Cac5q1a2p292, Cac7q1a2p341, Cac7q1a4p349, Cac7q2a2p356, Cac9q1a2p384, Cac11exp413, InIc1q5a2p50, InIc8q1a5p148, SaIc1q4a3p334. Mas se Casalini escreve v.g que “o papel que os conimbricenses atribuem à metafísica é inversamente proporcional à relevância que eles atribuem à filosofia natural” (p. 187), isso não deve ser lido como se a metafísica quase desaparecesse no seio da filosofia natural. É preciso, de facto, atribuir um peso maior à psicologia metafísica (vd. aqui pp. 191­‑2) no seio do que, anacronicamente embora, chamaríamos uma antropologia. Evidentemente que a psicologia é filosofia natural – sempre assim insistimos, também nós – mas mal andaríamos se esgotássemos a psicologia naquele quadro, pois esqueceríamos a sua quota­‑parte metafísica, tão bem frisada, Cf. o nosso «A receção da psicologia aristotélica (séc. XVI) em Roma e em Coimbra» Revista Filosófica de Coimbra 23 (2014), 89­‑111. 2

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quer por Manuel de Góis, quer por Baltasar Álvares. (Passaremos por alto a defesa da uma alegada desconsideração conimbricense da moral, mas o problema tem de ser visto, já em relação à quase excepção do seu estudo no contexto dos colégios da Companhia, já como propedêutica ao seu estudo mais desenvolvido na Faculdade de Teologia da qual a das Artes era apenas vestibular, embora as páginas finais que Casalini dedicou à moral estejam longe de ser menores). Embora o autor italiano evidencie outros argumentos ou aspectos, vg. o didáctico ou o epistemológico, em que a metafísica se parece subtrair ou reduzir, sobretudo em relação à física, embora nos proponha que “ou Góis não se apercebe da crise da física aristotélica, ou, mais provavelmente, considera­‑a essencialmente uma desordem lexical na qual é ainda possível ordenar as teorias” (p. 207), o que tem como corolário que “à metafísica de carácter aristotélico (…) sucede a ontologia, na variante, predilecta pelos jesuítas, da semântica dos entes, que substitui a verdade historicizável da linguagem com a correspondente an­‑histórica das substâncias separadas” (p. 208), somos daqueles que julgamos que nada disto serve para justificar a ausência de um comentário à Metafísica, o que invalida poder dizer­‑se sem mais que “Góis escolhe para si o campo da física, deixando para outros as especulações transnaturales, que pouco interessam a quem fez do problema da causa um dos temas basilares do conhecimento humano” E Casalini sublinha: “Em sintonia com uma sensibilidade difundida no interior da Companhia, como em Pereira, Clávio e outros, os conimbricenses, colocam­‑se do lado da filosofia natural e da investigação matemática, em parte aceitando o desafio do século, e em parte pondo em ordem o léxico aristotélico, que segundo eles, opera ainda de forma eficaz no interior do discurso físico­ ‑científico.” (p. 207). Assente esta viragem, e pondo­‑se ao lado de Des Chene, para quem o movimento histórico do debate escolástico do século XVI em direcção à res extensa cartesiana assentou na transformação do sistema da física aristotélica tradicional “num mundo povoado de relações de causa­‑efeito marcadas apenas pela eficiência e, sobretudo, desprovido de fins” (p. 209­‑10), Casalini aproxima Suárez, Fonseca (A.M. Martins apreciará estas páginas), Molina e os Conimbricenses e a segunda parte deste capítulo derradeiro atém­ ‑se sobretudo a desembrulhar o horizonte da causa exemplar, interpretado como uma deslocação que acontece: “… concebendo o exemplar ou ideia não como princípio formal da coisa realizada, mas como terminus, como projecto, propósito intuitivo do homem criador. O que equivale a dizer, segundo uma prática passada definitivamente para a teologia católica: é próprio do ser inteligente agir segundo as ideias concebidas na mente, que por isso são causa exemplar dos efeitos realizados. A passiva imitabilidade que é o modo da causa exemplar, liberta o campo da principal característica das ideias platónicas, a sua actualidade. Assim, a ideia é ‘humanizada’, torna­‑se pp. 483-500

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propósito da acção e da criação.” (p. 224) Isto evidencia­‑se na exterioridade ou no extrinsecismo da causa – “[n]o extrínseco, abre­‑se inevitavelmente o espaço da empiria mensurável, quantificável e reproduzível: o espaço da causa eficiente, assim como será concebida por Descartes.” (p. 225) – interpretada como “centralidade” da causa eficiente (p. 225­‑6). Primeiro em Deus, na Criação, depois pelo enfraquecimento da causa final, reduzida a uma motio metaphorica no campo dos seres desprovidos de razão e vontade (p. 228). Surpreendente e inteligentemente, toda esta deslocação tem por fim uma extensão teológica no âmbito da famosa questão de auxiliis, como dissemos já: “Góis, aqui sem dúvida influenciado quer por Fonseca quer pela recente publicação da Concordia de Luís Molina, adere com força à teoria do concurso das causas em cada acto, recusando soluções unívocas e abrindo o campo para uma série de conclusões que dizem respeito em particular à relação entre homem e Deus, jesuiticamente pensado sob o signo do livre arbítrio.” (p. 230). À liberdade agrega­‑se a felicidade, mas aqui chegado, o jovem investigador de história da educação cujo trabalho muito gostaríamos de saudar, leva­‑nos à conclusão de que a felicidade, no CAJC, também é fruto da educação (p. 259).

II Rethinking Culture and Cultural Analysis. Culture – Discourse – History3. RAFAEL GARCIA

É característico da filosofia uma certa descontinuidade cronológica de seus temas: suas questões não se apresentam em continuidade ininterrupta e retilínea, mas sim passam frequentemente por longos períodos de dormência e percorrem caminhos tortuosos para depois reaparecerem sob os holofotes do escrutínio filosófico, por vezes puxadas pela premência das circunstâncias, que as tornam mais uma vez inadiáveis. Tal é o caso da filosofia da cultura, como um ramo próprio, e, por extensão, de pensadores que tinham nela 3 Christian Möckel & Joaquim Braga (eds.), Rethinking Culture and Cultural Analysis. Culture – Discourse – History. Bd. 3, 200, Logos Verlag Berlin – 2013; ISBN 978­‑3­‑8325­‑3336­‑6.

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seu principal foco de inquirição, como é o caso, aqui em especial, de Georg Simmel e Ernst Cassirer, pioneiros e expoentes desse ramo da filosofia. Após longo período de desinteresse por essa questão4, eis que ela desponta novamente no centro das discussões filosóficas, caudatária das questões levantadas num mundo globalizado – ou em processo de globalização – no qual a noção de cultura é cotidianamente utilizada, sem contudo ser acompanhada de qualquer reflexão mais demorada sobre o que ela de fato significa ou pode significar. É sobre este plano de fundo que devemos tomar o terceiro volume da coleção Culture – Discourse – History, organizada por Thomas Düllo e Jan Standke: Rethinking Culture and Cultural Analysis, editado por Joaquim Braga e Christian Möckel. Trata­‑se de um livro que põe a si a tarefa de refletir sobre o conceito de cultura, bem como sobre tópicos da análise cultural, e, para tanto, resgata justamente elementos dos debates em torno da filosofia da cultura do início do século XX, obliterados pela emergência do existencialismo e da filosofia analítica, que dominam a cena da filosofia a partir de meados da década de 1920­‑30. Refletir sobre o conceito de cultura, como os próprios editores esclarecem no prefácio da obra, significa assumir a cultura como um problema, não como uma solução. Em certo sentido, o que se resgata aqui é um espírito filosófico de inquirição; um modo de filosofar que dispõe de seus próprios pressupostos – quais sejam, os de que a cultura não pode ser reduzida a uma visão substancialista da diversidade de suas manifestações, como frequentemente encontramos em discursos ideologizados (filosóficos ou não) que se apoiam justamente numa noção irrefletida e preconcebida – em geral normativa – de cultura. De fato, ao descreverem a abordagem que pretendem dar à investigação como uma tal que se oponha à substancialização dos fenômenos ditos culturais, seus editores aludem obliquamente a Simmel e Cassirer e, por meio deles, implicam (criticamente) a tradição iluminista alemã. Cassirer é na verdade o autor­‑chave para a compreensão da perspectiva adotada no livro. Sua principal obra, a Filosofia das formas simbólicas, é entendida pelo próprio autor como a transformação da crítica da razão iniciada por Kant numa crítica da cultura.5 Por outro lado, o filósofo diz que sua obra é a continuidade de uma investigação publicada pouco mais de uma década antes, em 1910, de nome Substanzbegriff und Funktionsbegriff – Conceito de substância e con‑ ceito de função, na qual é empreendida uma tentativa de des­‑substancializar os conceitos, ou a forma como eles são entendidos, de modo a desvinculá­‑los de quaisquer pressupostos metafísicos. Em vez dessa concepção substancial, 4 Não é por outra razão que Edward Skidelsky sub­‑intitula seu livro sobre Ernst Cassirer, lançado em 2008, de “o último filósofo da cultura”. 5 Philosophie der symbolischen Formen I, p. 9

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Cassirer propõe que se compreenda a formação de conceitos como funções,6 como relações fundamentais gerativas [erzeugende Grundrelationen]7 e for‑ mas seriais [Reihenformen]8, que não incluem o conceito como um elemento efetivo de sua própria definição; ele passa a ser apenas a expressão e o envoltório de uma relação de necessidade9 que é produzida pela atividade do espírito.10 Abre­‑se assim o caminho para aquilo que, ampliado em seu escopo epistemológico inicial, resulta na necessidade de empreender uma crítica geral da cultura humana que se entende exatamente como fruto da atividade do espírito.11 De fato, a noção de símbolo, que é central na obra madura de Cassirer, guarda as influências dessa investigação prévia da forma de construção dos conceitos; guarda sobretudo a necessidade de não recair em análises substancialistas (e, nesse sentido, metafísicas) das manifestações da cultura. Mas a influência de Cassirer em Rethinking Culture and Cultural Analy‑ sis se evidencia também pelo fato de que seus editores são notórios pesquisadores do pensamento do autor da Filosofia das formas simbólicas: Joaquim Braga, membro do grupo de pesquisa Individuação da Sociedade Moderna da Universidade de Coimbra, defendeu sua tese de doutoramento sobre o pensamento de Cassirer – A pregnância simbólica da imagem: para uma crítica do conceito de imagem segundo a filosofia de Ernst Cassirer12 – na Universidade Humboldt de Berlim em 2010. Christian Möckel é professor na mesma Universidade Humboldt e é um dos editores das obras póstumas de Ernst Cassirer que estão em fase de publicação, além de ter longa produção bibliográfica sobre o mesmo pensador. Além deles, pode­‑se constatar a influência de Cassirer pela presença de outros autores que se dedicam parcial ou integralmente à investigação de sua obra, como Oswald Schwemmer, Jeffrey Barash e Olivier Feron, por exemplo. 6 Importante é notar que a inspiração para essa distinção entre substância e função vem de Simmel, de quem Cassirer foi aluno ainda no final do século XIX, antes de se aproximar de Hermann Cohen. A distinção entre substância e função, num outro contexto que não o da investigação lógica, tal como feito por Cassirer, é apresentada por Simmel em Philosophie des Geldes, de 1900, esp. cap. II. 7 Substanzbegriff und Funktionsbegriff, p. 14. 8 Idem, p. 26. 9 Idem, p. 15. 10 Para mais detalhes sobre os conceitos de substância e de função, Cf. GARCIA, R. Genealogia da Crítica da Cultura, 2014, esp. cap. I. 11 Em menção a Humboldt, Cassirer define seu conceito mais característico, qual seja, o de forma simbólica, como uma energia do espírito. Cf. Der Begriff der symbolischen For mim Aufbau der Geisteswissenschaften, p. 79. Para uma discussão sobre o tema, cf. GARCIA, R. op. cit. p. 47 e ss. 12 Die symbolische Prägnanz des Bildes. Zu einer Kritik des Bildesbegriffs nach der Philosophie Ernst Cassirers.

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Não se deve contudo depreender dessa influência do pensamento de Ernst Cassirer que Rethinking Culture and Cultural Analysis seja um livro meramente exegético sobre este filósofo. Como já dissemos acima, a influência é antes do modo e da direção fundamental do filosofar do que de seu conteúdo. Aliás, a própria filosofia para Cassirer, influenciado por Aby Warburg,13 não possui tanto um domínio de conteúdos quanto cumpre uma função (de articulação) no conjunto da cultura. A des­‑substancialização aparece aqui novamente e auxilia na compreensão do problema da cultura e dos tópicos de análise cultural. Diferentemente de Windelband e Rickert, que buscavam definir os valores universalmente partilhados por todas as culturas, Cassirer fala dela como um processo de progressiva autolibertação (An Essay on Man, p. 244), para o qual todas as formas simbólicas contribuem ao seu modo, mas no qual nenhuma ocupa seu centro. “Apreciamos a policromia e a polifonia da natureza do homem”, diz Cassirer (idem, p. 238). A noção funcional de cultura (e de humanidade, que a supõe) permite a investigação do homem não por relações de identidade14, mas por relações de diferença; permite repensar ideias como as de identidade cultural, por exemplo, para além de uma perspectiva etnocêntrica, pois não tende à construção de uma hierarquia de valores, mas sim à compreensão da pluralidade das externalizações e objetivações que permite, se não a identificação que redunda em homogeneização, a construção de um campo de diálogo em que as diferenças sejam sistematizadas. Daí que a cultura, do ponto de vista de sua totalidade, seja tomada como uma coincidência de opostos; uma harmonia de contrários heraclitiana. Aqui cultura não é sinônimo de civilização, como o que se opõe à barbárie, nem diz respeito somente ao que concerne ao intelecto. Cultura é a ação concreta do homem no mundo; ela compreende as formações mágico­ ‑míticas e o desenvolvimento técnico e artístico tanto quanto as aquisições espirituais. Rethinking Culture and Cultural Analysis parte desses mesmos 13 Cassirer guardava grande afinidade com Aby Warburg, manifesta na organização singular que este deu ao acervo da biblioteca do instituto que fundou em meados da segunda década do século XX. Lá, relata o próprio Cassirer (Cf. Philosophie der symbol‑ sichen Formen II, p. XV­‑XVI), os livros não se encontravam dispostos de acordo com a categorização tradicional por ramos científicos. O arranjo dos livros dizia respeito antes de tudo a uma certa forma de compreensão do desenvolvimento do espírito humano. Nessa organização não havia uma seção dedicada à filosofia. Esta se encontrava em toda parte, mas em nenhuma em especial. Sobre a relação estreita entre a ligação com Warburg e a noção de cultura em Cassirer, cf. HABERMAS, J. Die befreiende Kraft der symbolischen Formgebung: Ernst Cassirers humanistisches Erbe und die Bibliothek Warburg ou KROIS, J. Philosophy of Culture and Cultural Studies: Ernst Cassirer and the Paradigm Change in the “Humanities”, in FOSS et KASA, 2002, p. 19­‑31. 14 De fato, o termo identidade é fortemente evitado por Cassirer desde suas primeiras obras.

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pressupostos de des­‑substancialização, descentralização e pluralidade, atualizados agora para o contexto de um mundo globalizado – ambiente no qual as relações entre nações passam a ser tratadas como eminentemente intercul‑ turais – e que nos demanda reconsiderar o valor metodológico da noção de cultura, bem como sua própria definição. Não é outra a razão que faz de cada capítulo do livro uma contribuição em sua própria perspectiva no sentido da investigação dos problemas em torno da cultura. Vale ainda dizer que Rethinking Culture and Cultural Analysis não deve ser tomado como uma contribuição na mesma linha teórica seguida pelo pós­ ‑estruturalismo no campo dos Cultural Studies15, embora não se coloque em especial a tarefa de criticá­‑lo. Há entretanto uma diferença fundamen‑ tal aqui, segundo se pode depreender do prefácio assinado por Möckel e Braga: ao passo que a mudança de paradigma no estudo das humanidades dos tempos da crítica pós­‑estruturalista os fez de certa forma assumir uma postura decidida contra as categorizações gerais (de humanidade, p. ex.) que supunham e legitimavam implicitamente relações de poder sedimenta‑ das numa tradição que permanecia para além da devida crítica e, ao fazê­‑lo, absolutizou, por assim dizer, a categoria da diferença ao ponto mesmo da hipóstase – converteu­‑a num conteúdo essencial de análise –, na orientação geral que subjaz Rethinking Culture and Cultural Analysis não encontramos tais pontos hipostasiados, dado que procura se manter na esfera da crítica e, em decorrência disso, deve se manter aberta sempre à reavaliação de suas premissas e de seus resultados; uma crítica da cultura tem como imperativo hermenêutico não hipostasiar (substancializar) fenômenos ou configurações culturais, quaisquer que sejam. A cultura como fenômeno essencialmente dinâmico – um processo – não poderia prescindir das contínuas mutações, configurações e reconfigurações que são a marca por excelência do agir humano em todas as suas manifestações. Rethinking Culture and Cultural Analysis conta com dez textos. Entre eles não há um fio condutor, no que tange ao conteúdo dos artigos, como se pode esperar de um livro que se propõe antes a fazer perguntas do que a dar respostas. A título de organização, separamos aqui quatro eixos temáticos, mas que não podem sequer pretender ser uma compreensão sistemática da obra. O que mais impressiona nesse sentido é a amplitude do leque de possibilidades e de diálogos transversais que se abre com essa perspectiva filosófica. Oswald Schwemmer, que escreve o primeiro texto do livro (p. 1­‑21), Culture as a externalised information de nome dialoga com a antropologia, a psicologia e a neuropsicologia em sua tese, que propõe que a cultura seja Termo aqui em referência ao antigo “Centre for Contemporary Cultural Studies” de Birmingham, atual “Departament of Cultural Studies.” 15

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entendida como informação externalizada – um processo de informação. Isso significa que as estruturas existentes precisam ser internalizadas mas que, ao serem, são modificadas por cada um dos indivíduos que a internaliza, num movimento circular que cria a tradição. Em seguida, Schwemmer aplica essa tese ao campo da imaginação e da visão, no caso das obras de arte e deixa a porta aberta para a possibilidade de aplicação da mesma ideia para a música, a técnica e a matemática. Outro texto que também flerta com a psicologia, mas também com a psicanálise, a sociologia e a literatura, para dar conta da estética e da ideologia em representações pós­‑colonialistas – especificamente, da representação de traumas em obras de estudos sociais ou literários, com alguma atenção à relação entre os tais traumas e a formação do vocabulário e de sua respectiva significação – é a contribuição de Ecaterina Patrascu, de nome Cultural Representations of Trauma in Postcolonialism and Postcomunism (p. 99­‑115). Após a violência da experiência colonial, segundo a autora, há um processo de recuperação de conteúdos ignorados ou reprimidos da experiência que moldam o discurso ideológico, mas este não é feito sem certo ficcionalismo das representações históricas na “construção” da memória, que aponta para o (re)estabelecimento de um horizonte mítico perdido – ou a alcançar. Um texto que de certa forma se aproxima deste de Patrascu é o artigo de Henrique Jales Ribeiro, que questiona a existência de filosofias tipicamente nacionais, se se considera a proximidade entre a discussão do colonialismo e do próprio sentido de nação: Towards a General Theory on the Existence of Typically national philosophies: the Portuguese, the Austrian, the Italian and other cases reviewed (p. 117­‑140). Mas a questão em torno da qual se articula o texto de Ribeiro é antes a existência (ou não) de uma filosofia tipicamente nacional, na medida em que a filosofia se pensa universal em sua validade. O autor nos lembra de que a questão sobre as filosofias nacionais está ligada diretamente à questão das identidades nacionais e atuariam sobre elas como promotoras de ideologias ou de utopias. Assim, Ribeiro discorre sobre o caso de Hegel e do neo­‑hegelianismo, que são a um só tempo exemplos de uma filosofia universal e de filosofia tipicamente nacional, e dos casos português, austríaco e italiano até desembocar no que ele chama de filosofias “multinacionais”, como o que ocorre com a divisão entre as filosofias analítica e continental, por um lado, e na crítica da pós­‑modernidade, que coloca em xeque a possibilidade de uma filosofia tipicamente nacional. Um segundo aspecto da consideração do problema de uma filosofia da cultura é trazido no texto de Joaquim Braga, em que é colocada a questão geral sobre o estatuto de uma filosofia que se pretende uma Kulturphilosophie: o texto, escrito em alemão, chama­‑se Philosophie als Kulturphilosophie e é o último da coletânea (p. 165­‑178). Aqui reaparecem elementos que se encontram no mesmo campo geral da formação de uma identidade cultural num de seus aspectos pp. 483-500

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mais contundentes, a saber, a ideia de um Volksgeist, um “espírito de povo”, caudatária de certa concepção de filosofia da cultura que se pretende fornecedora de diagnósticos e prognósticos do espírito de seu tempo e, destarte, se liga ao pessimismo e ao fatalismo, além de apresentar fortes tendências “substancializantes”, ou naturalizantes, da concepção de cultura. A essa perspectiva Braga contrapõe aquela da tradição do pensamento iluminista, que conecta Kant a Cassirer. Para estes, a filosofia é uma ação criadora do espírito, que se opõe a todo determinismo e fatalismo. Braga também argumenta que esta forma de filosofar de caráter fortemente antropológico transforma o imperativo categórico num imperativo da atividade (Werk), tamanha é a ênfase dada à natureza “poiética” do sujeito. Tarefa deste modo de filosofar é, entre outros, prezar pela preservação da comunicação, com fins de evitar fragmentações no interior da cultura – diretriz que nos reconduz ao contexto de surgimento da filosofia das formas simbólicas de Cassirer. Ainda na mesma esteira da discussão antropológica de Kant e Cassirer, podemos elencar o texto de Olivier Feron: Is the Culture an Improbable Pro‑ duct or the Essence of a Rich Man? (p. 141­‑147) O autor resgata a questão antropológica colocada por Kant – o que é o homem? – e por meio dela nos leva ao anthropological turn de Cassirer e Hans Blumenberg. Deste modo, Feron leva a cultura ao centro da discussão filosófica contemporânea, recolocando a necessidade de se pensar a cultura em sua historicidade – o que se propõe a fazer a partir da noção de animal symbolicum, cunhada por Cassirer. Jeffrey Barash também escreve sobre as relações entre Cassirer e Blumenberg, no texto The Rhetoric of Culture: Hans Blumenberg, Ernst Cassirer and the Legacy of Herder (p. 23­‑32). Nele o autor apresenta as críticas de Blumenberg a Cassirer, segundo as quais este não dá conta dos pré­‑requisitos biológicos necessários para sustentar o animal symbolicum, por um lado, e, de outro, ignora a historicidade da cultura, pois que o insere na tradição metafísica platônica. A partir daí, Barash resgata o valor cultural de preservação atribuído à retórica por Blumenberg, sob influência direta de Herder, no contexto de sua definição do homem como um Mängelwesen. A retórica se destaca no seio da cultura justamente porque esta não é teleológica nem progride linearmente; a novidade de cada situação demanda, assim, que se renove continuamente a retórica. Num outro horizonte de possibilidades encontramos a construção de uma comparação entre os projetos de Cassirer e Claude Lévi­‑Strauss feita por Christian Möckel em seu Mythisch­‑magisches Denken als Kulturform und Kulturleistung: eine Fragestellung bei Ernst Cassirer und Lévi­‑Strauss (p. 77­‑97). As aproximações aqui são feitas em torno das afinidades temáticas dos dois pensadores no que tange ao pensamento mítico – guardadas as devidas diferenças de concepção de um filósofo e de um etnólogo –, mas também em torno de semelhanças entre noções fundamentais em suas obras, quais Revista Filosófica de Coimbra — n.o 46 (2014)

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sejam, as noções de forma e de estrutura, respectivamente em Cassirer e Lévi­‑Strauss. Möckel também dá conta da influência exercida sobre Lévi­ ‑Strauss por Cassirer. O intuito do autor com esta comparação, entretanto, é apenas fundamentar um projeto maior, ainda em desenvolvimento, de análise do pensamento mítico desenvolvido por cada um dos teóricos, bem como do papel dessa forma de pensamento no corpo da cultura e na formação das sociedades. O pensamento mítico também ocupa lugar no texto de Paul Cortois, que trata das relações entre nome e identidade pessoal: Individual Es‑ sences: Names and Persons (p. 33­‑55). Parte­‑se aqui das características da significação no pensamento mítico, tal qual apresentadas por Cassirer em Sprache und Mythos, de 1925, e definidas por Cortois como significação­ ‑fusão (conflation meaning). Nessa forma de significação­‑fusão não há divisão clara entre signo, significado e significante, o que abre uma via de compreensão de significações atreladas a objetos singulares e permite uma nova colocação dos problemas em torno dos símbolos evocativos e das relíquias, o que é feito por uma combinação entre as perspectivas de Cassirer e de Kripke, este último com sua teoria causal da referência. Ao final, Cortois trata das aporias contidas na noção de uma essência individual. O último eixo temático que separamos gira em torno do problema da incomensurabilidade no contexto da cultura. Incomensurability in the Com‑ parative Study of Cultures: From Kuhn to Benedict, back & forth (p. 149­ ‑164), escrito por Liza Cortois, discute a questão da incomensurabilidade em geral, marcando as distinções entre comensurar e comparar, traduzir e interpretar, segundo Kuhn, e ao fim faz opção pelo sentido fraco de incomensurabilidade, qual seja, aquele que permite a possibilidade de comparação, mas não de tradução (“sem resíduo ou perda”). Munida de tal distinção, Cortois passa a discutir a taxonomia da língua japonesa, numa tentativa de explicação, de demonstração, dos caminhos que podemos seguir para a compreensão de incomensurabilidades culturais – estas que podem ser consideradas diacrônica ou sincronicamente. Por fim, temos o texto de João Maria André, Künste und Multikulturalität: Das Theater als interkulturelles Dialogfeld (p. 57­‑75), também centrado na questão da incomensurabilidade, mas especificamente no campo do teatro. Aqui, em lugar de especificidades linguísticas que levariam à incomensurabilidade, André enfatiza elementos não­‑textuais que também necessitam de tradução numa peça – gestos e entonação do discurso, por exemplo –, que são apresentados a partir de contribuições nesse campo feitas por Patrice Pavis. Tendo apresentado as diferenças entre tendências estéticas como diferenças de paradigma, André conclui seu texto com o caso do Centre Internationale de Recherces Théâtrales, que tem como premissa de trabalho a interculturalidade, com destaque para princípios metodológicos e estratégias que possibilitem a construção de uma peça transcultural. pp. 483-500

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Rethinking Culture and Cultural Analisys, como aqui buscamos apresentar, é um livro pioneiro na redescoberta dessa linha temática, que não deixa de ser igualmente um modo de filosofar. A interculturalidade que defende e da qual parte tem em si mesmo o primeiro exemplo: trata­‑se de um livro escrito em inglês e alemão, com contribuições de autores portugueses, franceses, romenos, belgas e alemães. Espera­‑se que a clara potencialidade dessa perspectiva inspire sua ampla difusão, tão necessária para os nossos tempos de conflitos (inter)culturais e de ideologias que se escoram na cultura – um termo tão claro, mas tão capcioso – como o resíduo acrítico que justifica a perpetuação de um estado de coisas por vezes injusto. De fato, há esforços notáveis nessa direção, a exemplo dos livros publicados em 2012 por Andreas Jürgen, Humanismus und Kulturkritik e organizado por Birgit Recki, Philosophie der Kultur – Kultur des Philosophierens. REFERÊNCIAS BRAGA, J. Die symbolische Prägnanz des Bildes. Centaurus Verlag, 2012. CASSIRER, E. Philosophie der symbolischen Formen I: Die Sprache. Ernst Cassirers Gesammelte Werke, Vol. 11. Hamburg: Felix Meiner, 1998. ___________. Philosophie der symbolischen Formen II: Das mytischen Denken. Ernst Cassirers Gesammelte Werke, Vol. 12. Hamburg: Felix Meiner, 1998. ___________. An Essay on Man. Ernst Cassirers Gesammelte Werke, Vol. 24. Hamburg: Felix Meiner, 1998. ___________. Der Begriff der symbolischen Form im Aufbau der Geisteswissens‑ chaften. Ernst Cassirers Gesammelte Werke, Vol. 16. Hamburg: Felix Meiner, 1998. HABERMAS, J. Die befreiende Kraft der symbolischen Formgebung: Ernst Cassirers humanistisches Erbe und die Bibliothek Warburg. Berlin: Akad. Verlag, 1997. GARCIA, R. Genealogia da Crítica da Cultura: sobre a filosofia das formas simbó‑ licas de Ernst Cassirer. Saarbrücken: Novas Edições Acadêmicas, 2014. JÜRGEN, A. Humanismus und Kulturkritik: Ernst Cassirers Werk im amerikanis‑ chen Exil. München: Wilhelm Fink, 2012. KROIS, J. Philosophy of Culture and Cultural Studies: Ernst Cassirer and the Pa‑ radigm Change in the “Humanities”. In: Forms of Knowledge and Sensibility. Ernst Cassirer and the Human Sciences. FOSS, G. et KASA, E. (org.) Kristiansand: Norwegian Academic Press, 2002, p. 19­‑31. RECKI, B. (org.) Philosophie der Kultur – Kultur des Philosophierens: Ernst Cassi‑ rer im 20. Und 21. Jahrhundert. Cassirer Forschungen, Vol. 15. Hamburg: Felix Meiner, 2012. SIMMEL, G. Philosophie des Geldes. Leipzig: Verlag von Duncker & Humblot, 1900. SKIDELSKY, E. Cassirer, the Last Philosopher of Culture. Princeton: Princeton University Press, 2008. Revista Filosófica de Coimbra — n.o 46 (2014)

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